analises caso charlie

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20/01/2015 Atentado na França: Não sou Charlie Hebdo | Internacional | EL PAÍS Brasil http://brasil.elpais.com/brasil/2015/01/09/internacional/1420843355_941930.html 1/3 DAVID BROOKS 10 ENE 2015 - 10:19 BRST ATENTADO TERRORISTA NA FRANÇA » Não sou Charlie Hebdo É um bom momento para adotar uma postura menos hipócrita em relação às nossas próprias figuras provocadoras Arquivado em: Atentado Charlie Hebdo Opinião Paris Charlie Hebdo Liberdade imprensa Tiroteios Incidentes França Humor gráfico Terrorismo islamista Jihadismo Os jornalistas do Charlie Hebdo são aclamados agora justamente como mártires da liberdade de expressão, mas sejamos francos: se tivessem tentado publicar seu jornal satírico em qualquer campus universitário norteamericano durante as últimas duas décadas, não teriam durado nem trinta segundos. Os grupos de estudantes e docentes os teriam acusado de incitação ao ódio. A Administração teria cortado seu financiamento e encerrado suas atividades. A reação pública ao atentado em Paris revelou que há muitas pessoas que se apressam em idolatrar aqueles que são contra as opiniões dos terroristas islâmicos na França, mas que são muito menos tolerantes em relação àqueles que são contra suas próprias opiniões em seu país. Apenas vejam todas as pessoas que reagiram de maneira exagerada às microagressões no campus. A Universidade de Illinois despediu um professor que analisava a postura da Igreja Católica em relação à homossexualidade. A Universidade do Kansas expulsou um professor por criticar no Twitter a Associação Nacional do Rifle. A Universidade Vanderbilt desqualificou um grupo cristão que insistia em ser dirigido por cristãos. Os norteamericanos podem elogiar o Charlie Hebdo por ser corajoso o suficiente para publicar caricaturas que ridicularizavam o profeta Maomé, mas quando Ayaan Hirsi Ali é convidada ao campus, há frequentemente pedidos INTERNACIONAL

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  • 20/01/2015 AtentadonaFrana:NosouCharlieHebdo|Internacional|ELPASBrasil

    http://brasil.elpais.com/brasil/2015/01/09/internacional/1420843355_941930.html 1/3

    DAVID BROOKS 10 ENE 2015 - 10:19 BRST

    ATENTADO TERRORISTA NA FRANA

    No sou Charlie Hebdo um bom momento para adotar uma postura menos hipcrita em relao s nossas prprias

    figuras provocadoras

    Arquivado em: Atentado Charlie Hebdo Opinio Paris Charlie Hebdo Liberdade imprensa Tiroteios Incidentes Frana Humor grfico Terrorismo islamista Jihadismo Atentados terroristas Europa Ocidental Imprensa Acontecimentos Europa Terrorismo Meios comunicao Comunicao

    OsjornalistasdoCharlieHebdosoaclamadosagorajustamentecomomrtiresdaliberdadedeexpresso,massejamosfrancos:setivessemtentadopublicarseujornalsatricoemqualquercampusuniversitrionorteamericanoduranteasltimasduasdcadas,noteriamduradonemtrintasegundos.Osgruposdeestudantesedocentesosteriamacusadodeincitaoaodio.AAdministraoteriacortadoseufinanciamentoeencerradosuasatividades.

    AreaopblicaaoatentadoemParisrevelouquehmuitaspessoasqueseapressamemidolatraraquelesquesocontraasopiniesdosterroristasislmicosnaFrana,masquesomuitomenostolerantesemrelaoquelesquesocontrasuasprpriasopiniesemseupas.

    Apenasvejamtodasaspessoasquereagiramdemaneiraexageradasmicroagressesnocampus.AUniversidadedeIllinoisdespediuumprofessorqueanalisavaaposturadaIgrejaCatlicaemrelaohomossexualidade.AUniversidadedoKansasexpulsouumprofessorporcriticarnoTwitteraAssociaoNacionaldoRifle.AUniversidadeVanderbiltdesqualificouumgrupocristoqueinsistiaemserdirigidoporcristos.

    OsnorteamericanospodemelogiaroCharlieHebdoporsercorajosoosuficienteparapublicarcaricaturasqueridicularizavamoprofetaMaom,masquandoAyaanHirsiAliconvidadaaocampus,hfrequentementepedidos

    INTERNACIONAL

  • 20/01/2015 AtentadonaFrana:NosouCharlieHebdo|Internacional|ELPASBrasil

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    paraquesuaspalestrassejamproibidas.

    Porisso,estepodeserummomentoparaseaprenderalgo.AgoraqueestamoshorrorizadospelomassacredaquelesescritoreseeditoresemParis,umbommomentoparaadotarumaposturamenoshipcritaemrelaosnossasprpriasfiguraspolmicas,provocadorasesatricas.

    Aprimeiracoisaadizer,suponho,queindependentementedoquevoctenhapostadoemsuapginadoFacebooknaquartafeira,incorretoparaamaioriadensafirmarJesuisCharlieHebdoouSouCharlieHebdo.Amaioriadensnaverdadenoadotaohumordeliberadamenteofensivonoqualessejornalespecializado.

    Podemostercomeadoassim.Quandosetem13anos,pareceousadoeprovocadorpaterlabourgeoisie[escandalizaraburguesia],enfiarodedonoolhodaautoridade,ridicularizarascrenasreligiosasdeoutros.

    Mas,depoisdeumtempo,issonosparecepueril.Amaioriadenspassaaadotarpontosdevistamaiscomplexossobrearealidadeemaistolerantesemrelaoaosdemais.(Aridicularizaosetornamenosdivertidamedidaquetomamosmaiorconscinciaarespeitodenossaprpriaefrequenteridicularidade).Amaioriadenstentamostrarummnimoderespeitofrentespessoasdediferentescredosereligies.Tentamoscomearaconversaescutandoemvezdeinsultando.

    Mas,aomesmotempo,amaioriadenssabequeosprovocadoreseoutrasfigurasbizarrasdesempenhamumpapelpblicotil.Oshumoristasecartunistasexpemnossasfraquezasevaidadequandonossentimosorgulhosos.Elesesvaziamoautoelogioinfladodosbemsucedidos.Nivelamadesigualdadesocialaorebaixarospoderosos.Quandoeficazesnosajudamaenfrentarnossasfraquezasemcomunidade,jqueorisoumadasexperinciasdeaproximaonofinaldascontas.

    Almdisso,osespecialistasemprovocaoeridicularizaoexpemaestupidezdosfundamentalistas.Osfundamentalistassopessoasquelevamtudoaopdaletra.Soincapazesdeadotarpontosdevistadiferentes.Soincapazesdeverque,emborasuareligiopossaserdignadamaisprofundavenerao,tambmverdadequeamaioriadasreligiesumtantoestranha.Oshumoristasexpemaquelesquesoincapazesderirdesimesmoseensinamaosdemaisqueprovavelmentedeveriamfazeramesmacoisa.

    Emresumo,aopensarnaquelesqueprovocameofendem,desejamosmanternormasdecivilidadeerespeitoe,aomesmotempo,abrirespaoaessestiposcriativosedesafiadoresquenotmasinibiesdosbonsmodosedobomgosto.

    Quandosetentacombinaressedelicadoequilbriocomasleis,asnormasdediscursoeoradoresvetados,oresultadoumacensuranuaecruaeconversasabafadas.quasesempreumerrotentarsilenciarodiscurso,fixarnormase

  • 20/01/2015 AtentadonaFrana:NosouCharlieHebdo|Internacional|ELPASBrasil

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    cancelarconvitesapalestrantes.

    Porsorte,oscostumessociaissomaismaleveiseflexveisdoqueoscdigos.Amaioriadassociedadesconseguiumanterpadresdecivilidadeerespeitoaomesmotempoemquedeixamocaminhoabertoparaosdivertidos,malcriadoseofensivos.

    Namaioriadassociedades,adultosecrianascomememmesasseparadas.AspessoasqueleemoLeMondeouaspublicaesinstitucionaissentamsemesacomosadultos.Osbobosdacorte,osexcntricosepessoascomoAnnCoultereBillMaherestonamesadascrianas.Nosototalmenterespeitados,massoescutadosporque,comseuestilodemssildescontrolado,svezesdizemcoisasnecessriasqueningummaisestdizendo.

    Associedadessaudveis,emoutraspalavras,nosilenciamodiscurso,masconcedemumstatusdiferenteaosdiversostiposdepessoas.Sbioserenomadosestudiosossoescutadoscomgranderespeito.Oshumoristassoescutadoscomumconfusosemirespeito.Osracistaseantissemitassoescutadosatravsdeumfiltrodeoprbrioedesrespeito.Aspessoasquedesejamserescutadascomatenotmqueconquistarissopormeiodesuaconduta.

    OmassacredeCharlieHebdodeveriaserumaoportunidadeparaporfimsnormassobreodiscurso.Edeverianoslembrarque,dopontodevistalegal,temosquesertolerantescomasvozesofensivas,emborasejamosexigentesdopontodevistasocial.

    EDICIONESELPAS,S.L.

  • 11 de janeiro de 2015 por Paulo Moreira Leite

    Num continente onde o racismo est em alta, denncia do ataque ao

    Charlie Hebdo no pode alimentar a clssica postura de duplicidade

    moral

    Diante dos manifestaes cada vez maiores nas ruas de Paris para protestar pelo massacre na

    redao do Charlie Hebdo preciso lembrar que:

    1.Durante os ataques mais recentes da aviao de Israel sobre Gaza, os protestos em solidariedade

    a populao palestina foram reprimidos na Frana porque se considerou que poderiam se

    transformar numa ameaa a ordem pblica;

    2.Cartunistas e ilustradores solidrios com a causa rabe em Israel chegaram a ser processados

    pelo Estado. Questionado, o primeiro ministro Manuel Valls se justificou: Ns deveramos ficar

    de braos cruzados diante da criatividade do dio?

    3. Em 2006, um grupo de intelectuais de prestgio na mdia assinou um manifesto anunciando a

    apario de uma quarta forma de ditadura dos tempos modernos. Depois do nazismo, do fascismo

    e do estalinismo, o manifesto falava do islamismo que no uma doutrina poltica, mas uma

    religio, que mobiliza perto de 1,5 bilho de pessoas, ou um quarto da humanidade, reunindo

    homens e mulheres com diferentes vises de mundo e costumes bastante diversos.

    Benvindo duplicidade moral do sculo XXI.

    O morticnio na redao do Charle Hebdo foi uma operao cruel e injustificvel. Nenhum

    cidado, em parte alguma do mundo, deve perder a vida em funo de suas opinies. O fato do

    assassinato coletivo ter sido um crime premeditado, sem dar chance de defesa s vtimas, apenas

    refora seu aspecto perverso, inaceitvel.

    Nada disso nos proibe de lembrar que o direito de Charlie Hebdo expressar o ponto de vista de

    seus jornalistas e cartunistas sem restries no deve ser confundido com a sustentao de suas

    opinies polticas. A expresso somos todos Charlie pode gerar muitas confuses.

    Num esforo supostamente didtico, surgiu no pas a conversa que tenta comparar Charles Hebdo

    e o Pasquim, o inesquecvel jornal de humor feito no Leblon que chegou a vender 200 000

    exemplares por semana durante a ditadura militar. bom no exagerar nas primeiras impresses.

  • Estamos falando de publicaes satricas, dedicadas ao humor poltico. Podemos encontrar

    artistas geniais, nos dois lados do Atlantico. E s.

    Mas ningum tem o direito de iludir-se com puras formalidades nem ignorar o ponto essencial.

    O Pasquim tinha lado. Extraia sua fora de uma opo poltica clara: denunciava o regime militar

    e seus inimigos. No fazia concesses nem permitia dvidas a respeito. No era um humor sem

    causa. Muito menos com a causa errada. Estava ao lado dos mais fracos.

    No universo cultural europeu do sculo XXI, Charles Hebdo construiu uma relao ambgua com

    o racismo.

    Assumindo aquela viso que classificava o islamismo como o quarto totalitarismo, o prprio

    editor da Charlie Hebdo disse que, para a revista, tanto o fascismo da Frente Nacional, a

    organizao de extrema-direita francesa, como o que chamava de fascismo islmico fazem

    parte da mesma seara e contra eles no economizamos nossa arte.

    O fascismo de Jean Marie Le Pen e outros lderes semelhantes que se espalham pelo Velho

    Mundo tem um projeto de poder de Estado. um movimento violento e nostlgico da velha

    ordem, que tenta restaurar pela fora. Quer eliminar direitos conquistados, que representam

    avanos parciais, limitados rumo a uma situao de menor desigualdade. A opo Le Pen

    um estado forte para submeter os deserdados da globalizao a leis mais duras e severas, como

    mo de obra de segunda-classe seja em casa, seja em seus pases de origem.

    O clero muulmano mantm convices que podem ser ou parecer retrgradas. Como em todas as

    religies organizadas, seus lderes podem ser acusados de exercer o poder de forma autoritria.

    Ali se encontram crculos fascistas que tambm se manifestam no extremismo catlico. Em

    julho de 2011, em Oslo, 76 pessoas morreram em dois atentados cometidos por um

    fundamentalista cristo, adversrio assumido da imigrao islmica, admirador fantico do

    Estado de Israel.

    No h dvida de que lideranas muulmanas participam da resistncia poltica e cultural de uma

    populao segregada e diminuda em seus direitos, em particular no Oriente Mdio, onde a

    atuao do Estado de Israel junto a seus vizinhos e prpria populao rabe no interior de

    suas fronteiras contribui para criar um ambiente de enorme tenso em todo planeta.

  • Este seu papel na cena global, sem relao com o fascismo de Jean Marie Le Pen. por isso

    que so atacados. por isso que o deboche estimulado. Devem ser desqualificados da

    mesma forma que, nos tempos do Pasquim, a ditadura lanava insinuais odiosas sobre a vida

    pessoal de lideranas da Teologia da Libertao.

    O racismo um antigo componente da cultura europia e possvel encontrar suas manifestaes

    mesmo em textos de sbios insuspeitos do iluminismo. Mas h uma novidade recente.

    Com o progresso cientfico, as noes que dividiam a humanidade em raas biologicamente

    inferiores e superiores deixaram de fazer sentido para as camadas mais cultas.

    Est comprovado que nenhuma herana gentica capaz de explicar as diferenas de

    desenvolvimento entre povos e pases. Surgiu, ento, o fator cultural.

    Procura-se definir uma hierarquia entre homens e mulheres pela viso de que h uma hierarquia

    entre culturas. Algumas seriam mais adequadas do que outras para promover o progresso social,

    que no seria produto de opes de natureza economica e poltica, mas dos valores tradicionais de

    cada povo.

    Foi assim que se passou a explicar a hegemonia poltica-militar dos EUA em todo planeta pelos

    valores morais da religio protestante embora outros povos, com os mesmos valores morais e

    religiosos, pudessem padecer de uma condio muito diferente. Ou a falta de desenvolvimento de

    pases tropicais pela falta de amor ao trabalho duro de seus cidados ainda que a jornada de

    trabalho de muito desses povos pudesse ser mais prolongada e estafante. E assim por diante.

    O fator cultural encontra-se no eixo terico do artigo Choque de Civilizaes, de Samuel

    Huntington. Publicado em 1993, ele construiu um novo quadro ideolgico para justificar a

    atuao das grandes potncias aps a queda do Muro de Berlim e o fim da Guerra Fria quando,

    mais uma vez, era preciso manter a hierarquia entre povos e paises, dominantes e dominados.

    Para Huntington, todo esforo para criar um ambiente de convvio harmonico e cooperativo entre

    os povos, com respeito a pluralidade e a histria de cada um, nada mais seria do que uma utopia

    risvel, pois no h uma herana comum entre elas. As diferenas entre as civilizaes no so

    apenas reais; so fundamentais, escreve, para acrescentar: no vo desaparecer em pouco

    tempo. So muito mais essenciais do que as diferenas entre ideologias e regimes polticos.

  • Ele reconhece que diferenas no significam conflito, e conflito no implica necessariamente

    violncia, mas adverte: ao longo dos sculos, as diferenas entre civilizaes geraram os

    conflitos mais violentos e prolongados.

    Dividindo a humanidade em oito civilizaes diferentes, Huntington enxerga um ambiente hostil

    para o chamado ocidente, cada vez mais mais ameaado pelo progresso de outros povos de outras

    culturas. Nesse ambiente de risco, onde a posio de predomnio se encontra ameaada, o

    Ocidente (com maisculas) est condenado a manter o poderio econmico e militar necessrio

    para proteger seus interesses diante das demais civilizaes.

    Quem leu Edward Said j aprendeu a importncia de esteretipos negativos sobre os povos rabes

    para consolidar um domnio de carter imperialista naquela parte do mundo que abriga as

    principais reservas mundiais de petrleo, a principal riqueza estratgica dos ltimos 100 anos.

    Quem ler O que a Europa deve ao Islam de Espanha, de Juan Vernet, poder descobrir a

    formidvel contribuio dos povos rabes para a magnifica exploso cultural do Renascimento

    e todas suas consequncias que muitas pessoas acreditam ter sido uma obra pura de artistas e

    intelectuais europeus.

    A questo encontra-se a.

    A execuo bala da redao do Charlie Hebdo inaceitvel.

    A tentativa de criminalizar o islamismo por este crime tambm inaceitvel. Lembra a piores

    tentativas de manipular conscincias e reforar preconceitos que inevitavelmente iro gerar novas

    tragdias.

  • Altamiro Borges: Papa Francisco

    desperta a ira dos direitistas publicado em 16 de janeiro de 2015 s 14:32

    Papa vai exorcizar Reinaldo Azevedo?

    Por Altamiro Borges, em seu blog

    Reinaldo Azevedo tambm apelidado de pitbull da Veja e de rottweiler da Folha numa baita injustia contra os

    cezinhos est irritado com o Papa Francisco. Alm de receber os movimentos sociais no Vaticano, de intermediar

    o reatamento diplomtico entre EUA e Cuba e de dar uma chacoalhada na decadente hierarquia catlica, o pontfice

    argentino ainda resolveu criticar a libertinagem da mdia.

    H limites para a liberdade de expresso, afirmou o religioso na sua visita s Filipinas. Esta declarao, na

    contracorrente da comoo criada pelo atentado ao jornal Charlie Hebdo, deixou o jornalista histrico. Em artigo

    publicado nesta sexta-feira (16), na Folha, ele rosnou: Francisco, por que no te calas?.

    Para o libertrio Reinaldo Azevedo que at hoje no prestou solidariedade aos seus colegas demitidos na Veja e

    na Folha , as opinies do Papa sobre o atentado na Frana so covardes, imprecisas e politiqueiras. Ele at admite

    que rejeita a linha satrica do jornal francs.

    No gosto do Charlie Hebdo. No vejo graa numa charge em que Hitler aparece saltitante, dando um al pra

    judeuzada. Ou em que o papa Bento 16 troca carcias com um soldado da Guarda Sua. Ou em que um rabe

    lambe o traseiro de um judeu. Mas garante que, mesmo assim, defende a total liberdade de expresso.

    A mdia monopolista, que apoiou ditaduras sanguinrias e guerras imperialistas, tambm jura defender esta tal

    liberdade.

    Contraditoriamente, porm, o calunista d apoio polcia francesa, que deteve na quarta-feira (14) um

    delinquente disfarado de humorista chamado Dieudonn. Seu lugar a cadeia. E no porque recite discursos de

    um antissemitismo tarado, mas porque faz a apologia da violncia.

    O mundo realmente contraditrio e no cabe na viso doentia dos maniquestas. Isto talvez explique o dio de

    Reinaldo Azevedo.

    Para ele, Francisco tem cabea e postura de cura de aldeia, no de papa. Suas entrevistas ambguas so detestveis.

    Suas opinies sobre o atentado e a liberdade de expresso so covardes, imprecisas e politiqueiras Ainda bem que

    nenhum catlico vai tentar me dar mil chicotadas por isso.

    Em artigo recente, o telogo Leonardo Boff alertou que est em curso uma campanha internacional de difamao

    do Papa Francisco. Ela partiria de setores descontentes do prprio Vaticano e contaria com o apoio de jornalistas da

    mdia conservadora.

  • O objetivo seria conter as mudanas promovidas pelo lder religioso, que visam arejar a decadente hierarquia catlica

    no mundo.

    Pelo jeito, Reinaldo Azevedo decidiu reforar o coro dos detratores do Papa. Em certa oportunidade, o prprio

    Leonardo Boff apelidou o servial da Veja e da Folha de rola-bosta aquele besouro que enterra o esterco.

    Ser que algum dia o pitbull ser exorcizado?

    BLOG DESCOLONIZAES (viso de um islmico)

    quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

    Por que no sou Charlie Hebdo - Je ne suis pas Charlie

    Nada justifica o massacre na redao do jornal Charlie Hebdo, mas algumas generalizaes e relativizaes na

    cabea da sociedade so to perigosas quanto kalashnikovs na mo de fundamentalistas.

    O caso Charlie Hebdo levantou grandes discusses. H politicos, instituies, governos, jornalistas e comentaristas

    de facebook de todas as estirpes falando sobre o assunto em tribunas, peridicos e mesas de bar. Todos so

    unanimes em condenar a brutalidade dos ataques, porm as divergncias de opinio so maiores do que as

    concordncias.

    Enquanto muitos discursos falam sobre o perigo da amplificao do dio contra comunidades muulmanas na

    Frana e ao redor do mundo, no faltam aqueles que de pronto condenem a selvageria e brutalidade da religio

    islmica e dos povos rabes, engrossando as fileiras de fundamentalistas nacionalistas que organizam marchas

    xenfobas contra a islamizao da europa, a favor das intervenes militares criminosas dos estados ricos do

    Ocidente nos pases do Oriente Mdio e frica e respaldando o racismo que tornou possvel e aceitavel a longa

    srie de polticas coloniais e prticas exploratrias que sustentaram a economia e poder da Frana desde que esta

    se tornou um Estado-Nao.

    Entretanto, no quero falar agora sobre as divergncias de opinio, e sim sobre o consenso, expresso no slogan

    Je suis Charlie (Eu sou Charlie), que inundou as redes sociais e capas de jornais ao redor do planeta. O slogan

    atrelado ideia de que o que ocorreu ontem na Frana implica um atentado contra a liberdade de imprensa e valores

    democrticos ocidentais; implica dizer que toda imprensa livre pra publicar irresponsavelmente qualquer contedo;

    implica dizer que o direito de zombar de uma religio o mesmo que lutar pelo estado laico; e implica,

    principalmente, que o ataque foi simplesmente resultado do extremismo (ou da falta de senso de humor) religioso

    diante de uma critica cida e sagaz, excetuando-se todo o contexto de marginalizao e discriminao da

    comunidade muulmana na Frana. Principalmente, implica ignorar que se prope e quais os efeitos dessas

    charges no contexto poltico-ideolgico de um pas com nveis alarmantes de racismo.

    O argumento mais comum que encontrei nas redes sociais e comentrios de jornais on-line o de que o Charlie

    Hebdo fazia charges ofensivas sobre todas as religies, e que portanto, se cristos conseguem ver charges com

    Jesus e levar como uma piada, ento muulmanos tambm deveriam. Esse um argumento raso porque coloca no

    mesmo patamar a situao das comunidades muulmanas e das comunidades crists na Europa, ao mesmo tempo

  • que refora a ideia de superioridade ocidental racionalista. o mesmo simplismo de quem diz que chamar um

    branco de palmito tem o mesmo peso de chamar um negro de macaco. No s uma piada.

    A quem serve a islamofobia?

    No dia anterior ao massacre de Charlie Hebdo aconteceram duas marchas na Alemanha: uma pela expulso de

    rabes e muulmanos do pas e outra contra o discurso xenfobo da direita ultra-nacionalista alem. Esse tipo de

    manifestaes populares contra minorias tnicas fica cada dia mais comum em toda a europa, e a Frana,

    sempre avant-garde, um dos maiores focos de marchas e movimentos racistas, machistas e xenfobos na Europa.

    Na Frana a Questo Muulmana uma obsesso prioritria dos grupos de direita. O jornalista Edwy Planel, autor

    do livro Pelos Muulmanos (ttulo dado em aluso ao artigo Pelos Judeus, escrito por Emile Zol em sobre o caso

    Dreyfus) aponta os ataques comunidade muulmana com sendo a principal plataforma de discurso eleitoral na

    Frana de hoje.

    Nicolas Sarkozy um exemplo claro da presena do discusro racista na poltica francesa. Podemos citar seu

    discurso na Universidade de Dakar, em julho de 2007, quando disse:

    O drama da frica que o homem africano no entrou totalmente na histria. O campons africano, que desde

    milhares de anos vive conforme as estaes, cujo ideal de vida estar em harmonia com a natureza, s conhece o

    eterno recomeo do tempo ritmado pela repetio sem fim dos mesmos gestos e das mesmas palavras. Nesse

    imaginrio onde tudo recomea sempre, no h lugar nem para a aventura humana, nem para a ideia de progresso.

    Nesse universo onde a natureza comanda tudo, o homem escapa inquietude da histria que inquieta o homem

    moderno. Mas o homem permanece imvel no meio de uma ordem imutvel, onde tudo parece ser escrito antes.

    Nunca ele se lana em direo ao futuro. Nunca no lhe vem ideia de sair da repetio para se inventar um

    destino

    Vamos lembrar que quando fala do homem africano (como se todos os povos de Africa fossem um nico grupo

    homogneo) Sarkozy alude especialmente populao muulmana, uma vez que a Frana invadiu e colonizou a

    Arglia e o Marrocos, de onde vm a maior parte dos imigrantes islmicos da Frana.

    Atualmente vem ganhando muito espao ideolgico o partido de extrema direita Frente Nacional, cuja principal voz

    Marine LePen, famosa pelo discurso islamofbico e pelas polticas anti-imigrao. Le Pen, forte candidata para as

    prximas eleies presidenciais, declarou hoje, no embalo do ataque de ontem, que a Frana est sendo atacada,

    e aproveitou para reforar sua proposta de instaurar a pena de morte no pas.

    O professor Reginaldo Nasser aponta, em artigo publicado ontem, pra o perigo do uso do caso Charlie para fortalecer

    as polticas ultra-nacionalistas francesas:

    H de fato uma situao conturbada na Frana e que vai piorar a partir de agora, os preconceitos com os imigrantes

    podem aumentar e reforar um sentimento nacionalista. Le Pen a representante de um pensamento xenfobo no

    pas. Mas temos que esperar ainda pra ver quais sero dos desdobramentos quando se descobrir os culpados

  • Portanto, a mobilizao massiva criada em torno do slogan "Je suis Charlie", se for ausente de uma crtica sria

    sobre a situao dos muulmanos na Europa e as razes da islamofobia na Frana, tende a ser apenas combustvel

    para a xenofobia e os partidos ultra-conservadores.

    A quem serve a liberdade de expresso?

    Aqueles que ostentam orgulhosos o slogan Eu sou Charlie se dizem advogar pela liberdade de expresso, porm

    no questionam o que significa essa liberdade de expresso nem tampouco quem tem direito a essa liberdade.

    Ningum se preocupa com a censura liberdade de expresso religiosa islmica na Frana.

    Em 1989 o jornal Le Nouvel Observateur publicou uma capa contra o uso do hijab, o vu muulmano, nas escolas.

    Isso levou a uma discusso que culminou na lei de 2004 proibindo que meninas islmicas usando lenos

    frequentassem as aulas, e desde 2011 h uma circular do Ministrio da Educao recomendando que se impea a

    presena de mes usando hijabs na rea em torno dos colgios. Nunca houve proibio do uso de crucifixos ou

    camisas com slogans cristos. A esquerda francesa (e a maior parte da esquerda ocidental) se mostrou favorvel a

    esta lei ou, na melhor das hipteses, silenciou sobre ela, sob o pretexto da defesa do Estado Laico. Esquecem-se

    que o laicismo serve para preservar o direito liberdade de exerccio de pensamento religioso ou liberdade de

    no exercer nenhuma crena religiosa. E esquecem-se de que o isl no apenas uma crena religiosa, mas

    tambm um referencial de identidade de toda uma comunidade histricamente oprimida, remetendo questes

    religiosas, culturais, tnicas e polticas.

    Proibir a expresso de sua religio censura. Proibir a expresso de seus sua identidade cultural eugenia.

    Imaginem, por exemplo, uma lei brasileira proibindo o uso de turbantes e smbolos da Umbanda e Candombl em

    reas pblicas. Seria uma conquista do estado laico ou (mais) um ataque s crenas afro-brasileiras?

    Na esteira das liberdades de expresso negadas pelo governo francs intrinsecamente conectadas ao Isl est a

    abominao legislativa sancionada no ano passado, quando a Frana tornou-se o primeiro pas do mundo proibir

    manifestaes de apoio Palestina, durante os bombardeios israelenses Faixa de Gaza, que assassinaram 1.951

    pessoas e feriram 10.193 civis. Qualquer pessoa que participasse de um protesto contra os crimes de guerra de

    Israel, praticas de Terrorismo de Estado respaldadas ideologicamente por polticos e formadores de opinio entre a

    populao israelense atravs de fundamentalismo nacionalista e argumentos de fundamentalismo religioso judaico

    e islamofobia, seria preso por um ano ou pagaria multa de 15 mil euros. Se o manifestante cobrisse o rosto durante

    o protesto, a pena subia pra trs anos de deteno.

    Cabe ressaltar aqui que no sei qual foi o posicionamento do jornal Charlie Hebdo sobre esse caso em particular,

    mas certamente a comunidade internacional no se manifestou to passionalmente sobre o direito dos franceses

    liberdade de expressar apoio aos palestinos.

    Ento, cabe a pergunta:

    A quem faz rir o humor de Charlie Hebdo?

    No existe piada sem um alvo, e o senso de humor tem poder poltico por natureza. Piadas podem ser um meio de

    constestao ou de sedimentao do senso comum, do status quo dominante. Quando um humorista faz uma piada

    racista, est endossando o racismo de quem ri, criando no riso um lugar seguro pra que os esteretipos racistas

    cresam, legitimando ignorncia e raiva disfarados de senso de humor. As pessoas formam suas concepes de

  • mundo, de certo e errado, de verdade e justia, muito mais atravs de piadas e slogans simplistas do que de

    resolues da ONU e tratados de sociologia.

    Me lembro que, quando era criana, meu pai comprava livros de piadas em bancas de jornal e passava o dia

    atormentando minha me com piadas machistas sobre loiras burras e mulheres caricaturizadas da pior forma

    possvel. Eram sesses ininterruptas de ofensas, mas que ela ouvia com um sorriso amarelo, uma vez que era s

    piada. Da mesma forma, ele contava as piadas mais ofensivas possveis sobre negros, sempre respaldado pelo

    fato de que no era o que ele pensava, e sim s o que estava escrito nos livros de piada. Foram anos desse tipo

    de piada inocente, at o dia em que, sem tom de piada ou riso suave, ele me proibiu de namorar mulheres negras.

    muito comum que se veja, no Brasil, humoristas como Danilo Gentili e Rafinha Bastos, vindos de uma mesma

    escola de racismo, machismo e homofobia que geraram o riso bobo de Costinha e Renato Arago, defenderem seu

    direito de ser promover discurso de dio como se isso fosse liberdade de expresso. E, mais triste ainda, muito

    comum ver a populao brasileira defendendo essa liberdade de humilhar, ofender e sedimentar preconceitos

    contra minorias, sob o rtulo falsamente liberal (e bastante estpido) de politicamente incorreto. Muitas vezes eles

    dizem que esto fazendo humor poltico, expondo o racismo ao fazer piadas racistas. Esse um argumento

    preguioso e altamente hipcrita pra manter seu direito de ser um racista alegre e ainda posar de Voltaire do

    facebook.

    O humor das charges do jornal Charlie Hebdo esto na mesma esteira de qualquer senso de humor racista. Os

    defensores do Je suis Charlie no cansam de dizer que so a revista o Pasquim Francs. Dizem que as

    caricaturas so cidas e corajosas, atacando todas as religies e expondo a homofobia e o fundamentalismo do

    isl. Porm, o que as caricaturas de Mohammad fazem respaldar o dio e a ignorncia sobre o isl, as

    comunidades muulmanas francesas e os povos rabes.

    Na caricatura em que o profeta Mohammad aparece beijando um cartunista branco no h contestao nem

    levantamento de discusso. No um canal de dilogo com as comunidades muulmanas para contestar as

    posturas homofbicas da religio e de suas muitas multi-culturais comunidades ao redor do mundo. apenas um

    desenho de um homem branco europeu beijando o smbolo mximo de uma religio pertencente outro povo. No

    assim que se levanta um debate, no assim que se dialoga e no assim que se contesta. Tudo o que a

    caricatura faz zombar do Isl (cuja crena considera ofensivo representar graficamente seu profeta), cortar os

    possiveis canais de discusso com a comunidade que criticam e aumentar os preconceitos dos franceses

    islamofbicos, que assim se sentem superiores aos seus vizinhos islmicos. No um discurso que contesta a

    homofobia das comunidades islmicas, e sim uma agresso que contesta a legitimidade de uma comunidade

    marginalizada e que no d voz essa comunidade. Esse tipo de agresso s torna mais dificil que a sociedade em

    geral oua muulmanos que buscam combater o discurso conservador dentro da sua religio despeito de

    professarem sua f.

    Em outra caricatura, um muulmano segura um Coro enquanto balas atravessam o livro e o seu corpo. A legenda

    diz O Coro uma merda. Isso no levanta debate nenhum, apenas diz sua religio uma merda, o que implica

    dizer, no caso, sua sociedade muulmana, sua histria muulmana, seus parentes e crenas muulmanas, so

    uma merda.

  • As caricaturas da Hebdo retratam muulmanos como sendo

    terroristas, estpidos e perigosos. As pessoas se acostumam a

    pensar nessas imagens quando pensam em muulmanos, e isso

    gera medo, dio, deboche e xenofobia. Eu, enquanto estudante de

    lngua rabe, perdi a conta de quantas vezes ouvi tanto piadas

    imbecis quanto preocupaes srias de meus amigos que pensavam

    que eu vivia uma terra de selvagens e fundamentalistas perigosos.

    Esse tipo de humor raso e infantil no razo para que se

    assassinem seus perpretadores. Eu no defenderia que militantes

    feministas armadas invadissem o Comedians e assassinassem

    Rafinha Bastos. Ainda assim, elas tem todo o direito de se sentir

    ultrajadas, agredidas e ofendidas quando ele usa seu poder de

    discurso para convencer sua platia de que mulheres feias devem

    ser estupradas e ficar agradecidas pela caridade. Mais importante,

    preciso ter em mente que, sendo elas elas o grupo diretamente

    atingido pelas piadas infelizes dele, a elas que a sociedade deve

    ouvir. No me cabe o direito de julgar se uma mulher pode ou no se sentir ofendida com uma piada machista, e

    no me cabe dizer se um muulmano deve se sentir ultrajado por uma piada islamofbica, porque existe todo um

    contexto social por trs dessas piadas que eu no compreendo e do qual eu no sou a vtima.

    Acreditar que as reaes de muulmanos s caricaturas simples extremismo dizer que s uma piada. No

    . A reao tem a ver com todo o contexto de discriminao social e econmica, s humilhaes dirias que essa

    populao sofre nos pases europeus, invisibilidade de sua identidade, ao histrico colonial e tambm com as

    atuais politicas intervencionistas dos pases ocidentais no Oriente Mdio e frica, que se negam a ouvir as vozes

    rabes e africanas enquanto financiam grupos extremistas e assassinam populaes civis com drones e

    democracias.

    Um relatrio do Observatrio Europeu do racismo e Xenofobia aponta que, na Frana, a chance de algum de

    origem rabe/muulmana conseguir um emprego cinco vezes menos do que um caucasiano com as mesmas

    qualificaes, possuem menos acesso educao formal, vivem nas reas mais sucateadas das cidades e esto

    sujeitos todo tipo de descriminao e violncia fsica. O relatrio aponta o sentimento de desespero e excluso

    social do jovem muulmano que v sua possibilidade de progresso social dificultada por racismo e xenofobia.

    O massacre que ocorreu ontem foi um crime horrvel de terror e silenciamento, cometido por algum que no

    sabemos ainda quem (e nada impede que seja uma operao de false flag) nem com qual inteno. Um crime

    horrvel e abominvel, como foram horrveis e abominveis os crimes de terror e silenciamento promovidos pelo

    Mossad quando assassinou o cartunista Naji Al-Ali, ou quando Bashar Al-Assad mandou quebrar as mos do

    cartunista Ali Ferzat, ou todos os dias quando a polcia militar de Geraldo Alckmin, aterroriza e assassina os jovens

    que imprimem sua critica e revolta com latas de spray nas paredes da minha cidade. Todos so crimes horrveis de

    silenciamento, e todos devem ser condenados, mas cada um tem suas particularidades, razes e contextos prprios

    e nicos, e no podemos cair no erro de diluir nossa crtica no simplismo maniquesta, ou corremos o risco de que

    a voz que queremos dar democracia seja um megafone para os absurdos da teoria de "choque de civilizaes"

    de Huntington.

    Por tudo isso, eu No sou Charlie.

    http://desacato.info/mundo/islamofobia-virou-ideologia-rotineira-na-franca-analisa-autor-de-livro-sobre-

    muculmanos/

    http://www.brasildefato.com.br/node/30930

  • https://fra.europa.eu/sites/default/files/fra_uploads/1936-EUMC-highlights-PT.pdf

    ATUALIZADO: Uma fonte da Al Qaeda aparentemente reivindicou a autoria pelos ataques agora. Isso

    importante em diversos contextos, mas no muda a anlise feita neste artigo que se centra no poder

    ideolgico das charges. Em breve publicarei outro artigo sobre o tema abordando a autoria do ataque

    Postado por Zuni s 13:30

    Tariq Ali: Guerra entre fundamentalismos Publicado em 12/01/2015

    oi um acontecimento terrvel. Foi repudiado em muitas partes do mundo e de maneira mais veemente por cartunistas de

    pases rabes e de outros lugares. Os arquitetos dessa atrocidade escolheram seus alvos com bastante cuidado. Eles sabiam

    muito bem que tal ato criaria o maior dos horrores.

    Foi a qualidade, no a quantidade que eles procuravam. Eles no do a mnima para o mundo dos incrdulos. Como Kirilov

    em Os Demnios, romance de Dostoivski, eles pensam que se Deus no existisse, tudo seria permitido.

    Ao contrrio dos inquisidores medievais da Sorbonne, eles no tm a autoridade legal e teolgica para assediar livreiros

    ou donos de grficas, proibir livros ou torturar escritores, de modo que se sentem livres para dar um passo alm.

    E os soldados de infantaria? As circunstncias que atraem homens e mulheres jovens para esses grupos no so escolhidas

    por eles, mas pelo mundo ocidental no qual vivem ele prprio resultado de longos anos de domnio colonial.

    Os terroristas que realizaram o massacre no semanrio satrico Charlie Hebdo, em Paris, na quarta-feira (7), gritavam

    Deus grande. No fao ideia se eles acreditavam que tinham sido acolhidos por Deus ou que estavam a mando dele,

    mas o que sabemos que os dois irmos parisienses Chrif e Said Kouachi eram maconheiros cabeludos que viram

    imagens da Guerra do Iraque, em 2003, e, em particular, das torturas na priso de Abu Ghraib e dos assassinatos a sangue

    frio de iraquianos em Fallujah.

    Esses rapazes buscaram conforto na mesquita. Foram recrutados por radicais islmicos que viram na guerra ao terror do

    Ocidente uma oportunidade de ouro para recrutar jovens tanto no mundo muulmano como nos guetos da Europa e da

    Amrica do Norte.

    Enviados primeiro ao Iraque para matar americanos e, mais recentemente, Sria (com a conivncia do Estado francs?)

    a fim de derrubar Bashar al-Assad, eles foram ensinados a utilizar armamentos de forma eficaz. De volta Europa,

    colocaram em prtica os seus conhecimentos. Eram perseguidos e o semanrio representava seus perseguidores. Deixar o

    horror nos cegar para essa realidade seria miopia.

    O Charlie Hebdo nunca escondeu o fato de que continuaria provocando os muulmanos com blasfmias ao profeta. A

    maior parte dos muulmanos estava com raiva, mas ignorou os insultos.

    Para a publicao, era uma defesa dos valores seculares republicanos contra todas as religies. O semanrio atacava

    ocasionalmente o catolicismo, dificilmente ou nunca o fazia contra o judasmo, mas concentrou sua ira sobre o isl.

    A secularidade francesa de hoje significa, essencialmente, qualquer coisa que no islmica. Defender o direito de publicar

    o que quiserem, independentemente das consequncias, uma coisa, mas sacralizar um jornal satrico que dirige ataques

  • regulares queles que j so vtimas de uma islamofobia desenfreada nos EUA e na Europa quase to tolo quanto justificar

    os atos de terror contra a publicao.

    A Frana tem leis para restringir liberdades se h alguma suspeita de que elas possam causar agitao social ou violncia.

    At agora elas tm sido usadas para proibir apenas as aparies pblicas do comediante francs Dieudonne por causa de

    piadas antissemitas e proibir manifestaes pr-palestinos.

    Mas isso no visto como algo problemtico por uma maioria de franceses que chia bem alto. Tambm no houve viglias

    pela Europa quando se soube h alguns meses que foi utilizada tortura contra prisioneiros muulmanos entregues CIA

    por pases europeus.

    H um pouco mais que stira em jogo. O que estamos testemunhando um conflito entre fundamentalismos rivais, cada

    um mascarado por diferentes ideologias.

    A economia poltica da Europa est confusa e, na ausncia de uma alternativa real ao capitalismo (no apenas ao

    neoliberalismo), o vcuo poltico vai crescer e novas foras emergem na luta pelo poder.

    A extrema direita est em ascenso na Frana. Marine Le Pen est na vanguarda, liderando as pesquisas para a prxima

    eleio presidencial, sempre relacionando os recentes acontecimentos imigrao desenfreada e dizendo que ela sempre

    havia alertado para isso.

    Que pena que o filme de Gilli Pontecorvo A Batalha de Argel (1966) ainda tenha que ser visto em Marselha. Algumas

    liberdades so claramente mais preciosa que outras.

    * Publicado originalmente no jornal

    Folha de S.Paulo em 11 de janeiro de 2015.

    Tariq Ali jornalista, escritor, historiador, cineasta e ativista poltico. Nascido em 1943 no Paquisto,

    atualmente vive na Inglaterra, onde colabora com diversos peridicos e um dos editores da revista New Left

    Review. especialista em poltica internacional e tem se destacado com anlises sobre o Oriente Mdio e a

    Amrica Latina.

    iek: Pensar o atentado ao Charlie Hebdo Publicado em 12/01/2015

    agora quando estamos todos em estado de choque depois da carnificina na sede do Charlie Hebdo o momento certo

    para encontrar coragem para pensar. Agora, e no depois, quando as coisas acalmarem, como tentam nos convencer os

    proponentes da sabedoria barata: o difcil justamente combinar o calor do momento com o ato de pensar. Pensar quando

    o rescaldo dos eventos esfriar no gera uma verdade mais balanceada, ela na verdade normaliza a situao de forma a nos

    permitir evitar as verdades mais afiadas.

    Pensar significa ir adiante do pathos da solidariedade universal que explodiu nos dias que sucederam o evento e

    culminaram no espetculo de domingo, 11 de janeiro de 2015, com grandes nomes polticos ao redor do globo de mos

    dadas, de Cameron a Lavrov, de Netanyahu a Abbas talvez a imagem mais bem acabada da falsidade hipcrita. O

    verdadeiro gesto Charlie Hebdo seria ter publicado na capa do semanrio uma grande caricatura brutal e grosseiramente

  • tirando sarro desse evento, com cartuns de Netanyahu e Abbas, Lavrov e Cameron, e outros casais se abraando e beijando

    intensamente enquanto afiam facas por trs de suas costas.

    Devemos, claro, condenar sem ambiguidade os homicdios como um ataque contra a essncia das nossas liberdades, e

    conden-los sem nenhuma ressalva oculta (como quem diria mas Charlie Hebdo estava tambm provocando e

    humilhando os muulmanos demais). Devemos tambm rejeitar toda abordagem calcada no efeito mitigante do apelo ao

    contexto mais amplo: algo como, os irmos terroristas eram profundamente afetados pelos horrores da ocupao

    estadunidense do Iraque (OK, mas ento por que no simplesmente atacaram alguma instalao militar norte-americana

    ao invs de um semanrio satrico francs?), ou como, muulmanos so de fato uma minoria explorada e escassamente

    tolerada (OK, mas negros afro-descendentes so tudo isso e mais e no entanto no praticam atentados a bomba ou

    chacinas), etc. etc. O problema com tal evocao da complexidade do pano de fundo que ele pode muito bem ser usado

    a propsito de Hitler: ele tambm coordenou uma mobilizao diante da injustia do tratado de Versalhes, mas no entanto

    era completamente justificvel combater o regime nazista com todos os meios nossa disposio. A questo no se os

    antecedentes, agravos e ressentimentos que condicionam atos terroristas so verdadeiros ou no, o importante o projeto

    poltico-ideolgico que emerge como reao contra injustias.

    Nada disso suficiente temos que pensar adiante. E o pensar de que falo no tem absolutamente nada a ver com uma

    relativizao fcil do crime (o mantra do quem somos ns ocidentais, que cometemos massacres terrveis no terceiro

    mundo, para condenar atos como estes?). E tem menos ainda a ver com o medo patolgico de tantos esquerdistas liberais

    ocidentais de sentirem-se culpados de islamofobia. Para estes falsos esquerdistas, qualquer crtica ao Isl rechaada como

    expresso da islamofobia ocidental: Salman Rushdie foi acusado de ter provocado desnecessariamente os muulmanos, e

    portanto responsvel (ao menos em parte) pelo fatwa que o condenou morte etc.

    O resultado de tal postura s pode ser esse: o quanto mais os esquerdistas liberais ocidentais mergulham em seu sentimento

    de culpa, mais so acusados por fundamentalistas muulmanos de serem hipcritas tentando ocultar seu dio ao Isl. Esta

    constelao perfeitamente reproduz o paradoxo do superego: o quanto mais voc obedece o que o outro exige de voc,

    mais culpa sentir. como se o quanto mais voc tolerar o Isl, tanto mais forte ser sua presso em voc

    por isso que tambm me parecem insuficientes os pedidos de moderao que surgiram na linha da alegao de Simon

    Jenkins (no The Guardian de 7 de janeiro) de que nossa tarefa seria a de no exagerar a reao, no sobre-publicizar o

    impacto do acontecimento. tratar cada evento como um acidente passageiro do horror o atentado ao Charlie Hebdo no

    foi um mero acidente passageiro do horror. Ele seguiu uma agenda religiosa e poltica precisa e foi como tal claramente

    parte de um padro muito mais amplo. claro que no devemos nos exaltar se por isso compreendermos no sucumbir

    islamofobia cega mas devemos implacavelmente analisar este padro.

    O que muito mais necessrio que a demonizao dos terroristas como fanticos suicidas heroicos um desmascaramento

    desse mito demonaco. Muito tempo atrs, Friedrich Nietzsche percebeu como a civilizao ocidental estava se movendo

    na direo do ltimo homem, uma criatura aptica com nenhuma grande paixo ou comprometimento. Incapaz de sonhar,

    cansado da vida, ele no assume nenhum risco, buscando apenas o conforto e a segurana, uma expresso de tolerncia

    com os outros: Um pouquinho de veneno de tempos em tempos: que garante sonhos agradveis. E muito veneno no final,

    para uma morte agradvel. Eles tm seus pequenos prazeres de dia, e seus pequenos prazeres de noite, mas tm um zelo

    pela sade. Descobrimos a felicidade, dizem os ltimos homens, e piscam.

    Pode efetivamente parecer que a ciso entre o Primeiro Mundo permissivo e a reao fundamentalista a ele passa mais ou

    menos nas linhas da oposio entre levar uma longa e gratificante vida cheia de riquezas materiais e culturais, e dedicar

    sua vida a alguma Causa transcendente. No esse o antagonismo entre o que Nietzsche denominava niilismo passivo

  • e ativo? Ns no ocidente somos os ltimos homens nietzschianos, imersos em prazeres cotidianos banais, enquanto

    os radicais muulmanos esto prontos a arriscar tudo, comprometidos com a luta at sua prpria autodestruio. O poema

    The Second Comming [O segundo advento], de William Butler Yeats parece perfeitamente resumir nosso predicamento

    atual: Os melhores carecem de toda convico, enquanto os piores so cheios de intensidade apaixonada. Esta uma

    excelente descrio da atual ciso entre liberais anmicos e fundamentalistas apaixonados. Os melhores no so mais

    capazes de se empenhar inteiramente, enquanto os piores se empenham em fanatismo racista, religioso e machista.

    No entanto, ser que os terroristas fundamentalistas realmente se encaixam nessa descrio? O que obviamente lhes carece

    um elemento que fcil identificar em todos os autnticos fundamentalistas, dos budistas tibetanos aos amistas nos EUA:

    a ausncia de ressentimento e inveja, a profunda indiferena perante o modo de vida dos no-crentes. Se os ditos

    fundamentalistas de hoje realmente acreditam que encontraram seu caminho Verdade, por que deveriam se sentir

    ameaados por no-crentes, por que deveriam invej-los? Quando um budista encontra um hedonista ocidental, ele

    dificilmente o condena. Ele s benevolentemente nota que a busca do hedonista pela felicidade auto-derrotante. Em

    contraste com os verdadeiros fundamentalistas, os pseudo-fundamentalistas terroristas so profundamente incomodados,

    intrigados, fascinados pela vida pecaminosa dos no-crentes. Tem-se a sensao de que, ao lutar contra o outro pecador,

    eles esto lutando contra sua prpria tentao.

    aqui que o diagnstico de Yeats escapa ao atual predicamento: a intensidade apaixonada dos terroristas evidencia uma

    falta de verdadeira convico. O quo frgil no tem de ser a crena de um muulmano para que ele se sinta ameaado por

    uma caricatura besta em um semanrio satrico? O terror islmico fundamentalista no fundado na convico dos

    terroristas de sua superioridade e em seu desejo de salvaguardar sua identidade cultural-religiosa diante da investida da

    civilizao global consumista.

    O problema com fundamentalistas no que consideramos eles inferiores a ns, mas sim que eles prprios secretamente

    se consideram inferiores. por isso que nossas reafirmaes politicamente corretas condescendentes de que no sentimos

    superioridade alguma perante a eles s os fazem mais furiosos, alimentando seu ressentimento. O problema no a

    diferena cultural (seu empenho em preservar sua identidade), mas o fato inverso de que os fundamentalistas j so como

    ns, que eles secretamente j internalizaram nossas normas e se medem a partir delas. Paradoxalmente, o que os

    fundamentalistas verdadeiramente carecem precisamente uma dose daquela convico verdadeiramente racista de sua

    prpria superioridade.

    As recentes vicissitudes do fundamentalismo muulmano confirmam o velhoinsight benjaminiano de que toda ascenso

    do fascismo evidencia uma revoluo fracassada: a ascenso do fascismo a falncia da esquerda, mas simultaneamente

    uma prova de que havia potencial revolucionrio, descontentamento, que a esquerda no foi capaz de mobilizar.

    E o mesmo no vale para o dito islamo-fascismo de hoje? A ascenso do islamismo radical no exatamente correlativa

    desapario da esquerda secular nos pases muulmanos? Quando, l na primavera de 2009, o Taliban tomou o vale do

    Swat no Paquisto, o New York Times publicou que eles arquitetaram uma revolta de classe que explora profundas fissuras

    entre um pequeno grupo de proprietrios abastados e seus inquilinos sem terra. Se, no entanto, ao tirar vantagem da

    condio dos camponeses, o Taliban est chamando ateno para os riscos ao Paquisto, que permanece em grande parte

    feudal, o que garante que os democratas liberais no Paquisto, bem como os EUA, tambm no tirem vantagem dessa

    condio e procurem ajudar os camponeses sem terra? A triste implicao deste fato que as foras feudais no Paquisto

    so os aliados naturais da democracia liberal

    Mas como ficam ento os valores fundamentais do liberalismo (liberdade, igualdade, etc.)? O paradoxo que o prprio

    liberalismo no forte o suficiente para salv-los contra a investida fundamentalista. O fundamentalismo uma reao

  • uma reao falsa, mistificadora, claro contra uma falha real do liberalismo, e por isso que ele repetidamente gerado

    pelo liberalismo. Deixado prpria sorte, o liberalismo lentamente minar a si prprio a nica coisa que pode salvar seus

    valores originais uma esquerda renovada. Para que esse legado fundamental sobreviva, o liberalismo precisa da ajuda

    fraterna da esquerda radical. Essa a nica forma de derrotar o fundamentalismo, varrer o cho sob seus ps.

    Pensar os assassinatos de Paris significa abrir mo da auto-satisfao presunosa de um liberal permissivo e aceitar que o

    conflito entre a permissividade liberal e o fundamentalismo essencialmente um falso conflito um crculo vicioso de

    dois polos gerando e pressupondo um ao outro. O que Max Horkheimer havia dito sobre o fascismo e o capitalismo j nos

    anos 1930 que aqueles que no estiverem dispostos a falar criticamente sobre o capitalismo devem se calar sobre o

    fascismo deve ser aplicada tambm ao fundamentalismo de hoje: quem no estiver disposto a falar criticamente sobre a

    democracia liberal deve tambm se calar sobre o fundamentalismo religioso.

    * Texto enviado pelo autor ao Blog da Boitempo. A traduo de Artur Renzo. Uma verso encurtada deste artigo foi

    publicada em ingls no New Statesman em 10 de janeiro de 2015.

    SLAVOJ IEK

    Nasceu na cidade de Liubliana, Eslovnia, em 1949. filsofo, psicanalista e um dos principais tericos contemporneos.

    Transita por diversas reas do conhecimento e, sob influncia principalmente de Karl Marx e Jacques Lacan, efetua uma

    inovadora crtica cultural e poltica da ps-modernidade. Professor da European Graduate School e do Instituto de Sociologia

    da Universidade de Liubliana, iek preside a Society for Theoretical Psychoanalysis, de Liubliana, e um dos diretores do

    centro de humanidades da University of London. Dele, a Boitempo publicou Bem-vindo ao deserto do Real! (2003), s portas

    da revoluo (escritos de Lenin de 1917) (2005), A viso em paralaxe (2008), Lacrimae rerum (2009), Em defesa das causas

    perdidas, Primeiro como tragdia, depois como farsa (ambos de 2011) e o mais recente, Vivendo no fim dos tempos (2012).

    Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.

    Charlie Hebdo: uma reflexo difcil Publicado em 14/01/2015

    Por Boaventura de Sousa Santos.

    O crime hediondo que foi cometido contra os jornalistas e cartunistas do Charlie Hebdo torna muito difcil uma anlise

    serena do que est envolvido neste ato brbaro, do seu contexto e seus precedentes e do seu impacto e repercusses futuras.

    No entanto, esta anlise urgente, sob pena de continuarmos a atear um fogo que amanh pode atingir as escolas dos

    nossos filhos, as nossas casas, as nossas instituies e as nossas conscincias. Eis algumas das pistas para tal anlise.

    A luta contra o terrorismo, tortura e democracia

    No se podem estabelecer ligaes diretas entre a tragdia do Charlie Hebdo e a luta contra o terrorismo que os EUA e

    seus aliados travam desde o 11 de setembro de 2001. Mas sabido que a extrema agressividade do Ocidente tem causado

    a morte de muitos milhares de civis inocentes (quase todos muulmanos) e tem sujeitado a nveis de tortura de uma

    violncia inacreditvel jovens muulmanos contra os quais as suspeitas so meramente especulativas, como consta do

  • recente relatrio apresentado ao Congresso norte-americano. E tambm sabido que muitos jovens islmicos radicais

    declaram que a sua radicalizao nasceu da revolta contra tanta violncia impune.

    Perante isto, devemos refletir se o caminho para travar a espiral de violncia continuar seguindo as mesmas polticas que

    a tm alimentado, como agora demasiado patente. A resposta francesa ao ataque mostra que a normalidade constitucional

    democrtica est suspensa e que um estado de stio no declarado est em vigor, que os criminosos deste tipo, em vez de

    presos e julgados, devem ser abatidos, que este fato no representa aparentemente nenhuma contradio com os valores

    ocidentais. Entramos num clima de guerra civil de baixa intensidade. Quem ganha com ela na Europa? Certamente no o

    partido Podemos, na Espanha, ou o Syriza, na Grcia.

    A liberdade de expresso

    um bem precioso mas tem limites, e a verdade que a esmagadora maioria deles so impostos por aqueles que defendem

    a liberdade sem limites sempre que a sua liberdade a sofr-los. Exemplos de limites so imensos: se na Inglaterra um

    manifestante disser que David Cameron tem sangue nas mos, pode ser preso; na Frana, as mulheres islmicas no podem

    usar o hijab; em 2008 o cartunista Maurice Sin foi despedido do Charlie Hebdo por ter escrito uma crnica alegadamente

    antissemita. Isto significa que os limites existem, mas so diferentes para diferentes grupos de interesse. Por exemplo, na

    Amrica Latina, os grandes meios de comunicao, controlados por famlias oligrquicas e pelo grande capital, so os que

    mais clamam pela liberdade de expresso sem limites para insultar os governos progressistas e ocultar tudo o que de bom

    estes governos tm feito pelo bem-estar dos mais pobres.

    Aparentemente, o Charlie Hebdo no reconhecia limites para insultar os muulmanos, mesmo que muitos dos cartuns

    fossem propaganda racista e alimentassem a onda islamofbica e anti-imigrante que avassala a Frana e a Europa em geral.

    Para alm de muitos cartuns com o Profeta em poses pornogrficas, um deles, bem aproveitado pela extrema-direita,

    mostrava um conjunto de mulheres muulmanas grvidas, apresentadas como escravas sexuais do Boko Haram, que,

    apontando para a barriga, pediam que no lhes fosse retirado o apoio social gravidez. De um golpe, estigmatizava-se o

    Isl, as mulheres e o estado de bem-estar social. Obviamente, que, ao longo dos anos, a maior comunidade islmica da

    Europa foi-se sentindo ofendida por esta linha editorial, mas foi igualmente imediato o seu repdio por este crime brbaro.

    Devemos, pois, refletir sobre as contradies e assimetrias na vida vivida dos valores que alguns creem ser universais.

    A tolerncia e os valores ocidentais

    O contexto em que o crime ocorreu dominado por duas correntes de opinio, nenhuma delas favorvel construo de

    uma Europa inclusiva e intercultural. A mais radical frontalmente islamofbica e anti-imigrante. a linha dura da extrema

    direita em toda a Europa e da direita, sempre que se v ameaada por eleies prximas (o caso de Antonis Samara na

    Grcia). Para esta corrente, os inimigos da civilizao europeia esto entre ns, odeiam-nos, tm os nossos passaportes,

    e a situao s se resolve vendo-nos ns livres deles. A pulso anti-imigrante evidente. A outra corrente a da tolerncia.

    Estas populaes so muito distintas de ns, so um fardo, mas temos de as aguentar, at porque nos so uteis; no

    entanto, s o devemos fazer se elas forem moderadas e assimilarem os nossos valores. Mas o que so os valores

    ocidentais?

    Depois de muitos sculos de atrocidades cometidas em nome destes valores dentro e fora da Europa da violncia

    colonial s duas guerras mundiais exige-se algum cuidado e muita reflexo sobre o que so esses valores e por que

    razo, consoante os contextos, ora se afirmam uns, ora se afirmam outros. Por exemplo, ningum pe hoje em causa o

    valor da liberdade, mas j o mesmo no se pode dizer dos valores da igualdade e da fraternidade. Ora, foram estes dois

    valores que fundaram o Estado social de bem-estar que dominou a Europa democrtica depois de segunda guerra mundial.

    No entanto, nos ltimos anos, a proteo social, que garantia nveis mais altos de integrao social, comeou a ser posta

  • em causa pelos polticos conservadores e hoje concebida como um luxo inacessvel para os partidos do chamado arco

    da governabilidade. A crise social causada pela eroso da proteo social e pelo aumento do desemprego, sobretudo entre

    jovens, no ser lenha para a fogueira do radicalismo por parte dos jovens que, alm do desemprego, sofrem a

    discriminao tnico-religiosa?

    O choque de fanatismos, no de civilizaes

    No estamos perante um choque de civilizaes, at porque a crist tem as mesmas razes que a islmica. Estamos perante

    um choque de fanatismos, mesmo que alguns deles no apaream como tal por nos serem mais prximos. A histria mostra

    como muitos dos fanatismos e seus choques estiveram relacionados com interesses econmicos e polticos que, alis, nunca

    beneficiaram os que mais sofreram com tais fanatismos. Na Europa e suas reas de influncia o caso das cruzadas, da

    Inquisio, da evangelizao das populaes coloniais, das guerras religiosas e da Irlanda do Norte. Fora da Europa, uma

    religio to pacfica como o budismo legitimou o massacre de muitos milhares de membros da minoria tamil do Sri Lanka;

    do mesmo modo, os fundamentalistas hindus massacraram as populaes muulmanas de Gujarat em 2003 e o eventual

    maior acesso ao poder que tero conquistado recentemente com a vitria do Presidente Modi faz prever o pior; tambm

    em nome da religio que Israel continua a impune limpeza tnica da Palestina e que o chamado califado massacra

    populaes muulmanas na Sria e no Iraque.

    A defesa da laicidade sem limites numa Europa intercultural, onde muitas populaes no se reconhecem em tal valor,

    ser afinal uma forma de extremismo? Os diferentes extremismos opem-se ou articulam-se? Quais as relaes entre os

    jihadistas e os servios secretos ocidentais? Por que que os jihadistas do Emirato Islmico, que so agora terroristas,

    eram combatentes de liberdade quando lutavam contra Kadhafi e contra Assad? Como se explica que o Emirato Islmico

    seja financiado pela Arbia Saudita, Qatar, Kuwait e Turquia, todos aliados do Ocidente? Uma coisa certa: pelo menos

    na ltima dcada, a esmagadora maioria das vtimas de todos os fanatismos (incluindo o islmico) so populaes

    muulmanas no fanticas.

    O valor da vida

    A repulsa total e incondicional que os europeus sentem perante estas mortes devem-nos fazer pensar por que razo no

    sentem a mesma repulsa perante um nmero igual ou muito superior de mortes inocentes em resultado de conflitos que,

    no fundo, talvez tenham algo a ver com a tragdia do Charlie Hebdo? No mesmo dia, 37 jovens foram mortos no Yemen

    num atentado a bomba. No ano passado, a invaso israelense causou a morte de 2000 palestinos, dos quais cerca de 1500

    civis e 500 crianas. No Mxico, desde 2000, foram assassinados 102 jornalistas por defenderem a liberdade de imprensa

    e, em Novembro de 2014, 43 jovens, em Ayotzinapa. Certamente que a diferena na reao no pode estar baseada na

    ideia de que a vida de europeus brancos, de cultura crist, vale mais que a vida de no europeus ou de europeus de outras

    cores e de culturas assentes noutras religies ou regies. Ser ento porque estes ltimos esto mais longe dos europeus

    ou so pior conhecidos por eles? Mas o mandato cristo de amar o prximo permite tais distines? Ser porque os grande

    media e os lderes polticos do Ocidente trivializam o sofrimento causado a esses outros, quando no os demonizam ao

    ponto de fazerem pensar que eles no merecem outra coisa?

    Boaventura de Sousa Santos Professor Catedrtico Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e

    Distinguished Legal Scholar da Faculdade de Direito da Universidade de Wisconsin-Madison e Global Legal Scholar da

    Universidade de Warwick. Atualmente dirige o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e coordena o

    Observatrio Permanente da Justia Portuguesa. Pela Boitempo, publicou Renovar a teoria crtica e reinventar a emancipao

    social (2007) .

  • Ser ou no ser (Charlie) Publicado em 12/01/2015

    Por Osvaldo Coggiola.

    Em 1998, Zinedine Zidane conduzia a seleo francesa de futebol sua primeira conquista da Copa do Mundo, em Paris.

    O craque francs de origem argelina integrava um time histrico (tambm venceu a Eurocopa de 2000) com Didier

    Deschamps, Emmanuel Petit (nomes mais franceses, impossvel), o ghans Odenkey Addy Abbey (mais conhecido como

    Marcel Desailly), Lilian Thuram, tambm de origem africana subsaariana, Robert Pirs (que, se tivesse nascido no pas

    que seus pais abandonaram a procura de trabalho, teria se chamado simplesmente Roberto Pires, e envergado a casaca cor

    de vinho tambm usada por Cristiano Ronaldo). A Frana e o mundo celebraram, na maior conquista esportiva de sua

    histria, a vitria definitiva, no pas do hexgono, de uma sociedade multitnica e multicultural reconciliada consigo

    prpria. O estraga-prazeres que ousou apontar que o time galo mais parecia um catlogo futebolstico do antigo imprio

    colonial francs recebeu, discretamente, no uma taa, mas uma garrafada de champanhe na cabea.

    Menos de sete anos depois, em 27 de outubro de 2005, aps a perseguio pela polcia, seguida de morte, dos

    jovens franceses descendentes de africanos Bouna Traor e Zyed Benna, que fugiam de uma das habituais blitz policiais

    contra jovens no brancos das banlieues, entraram em um terreno fechado, pertencente EDF (companhia de eletricidade),

    refugiando-se dentro de uma edificao onde havia instalaes eltricas, onde morreram eletrocutados (um terceiro,

    Muhittin Altun, sofreu queimaduras graves). Pouco depois, comearam os confrontos em Chne-Pointu, entre grupos de

    jovens e a polcia. A revolta se espalhou rapidamente pela periferia de Paris e de outras cidades da Frana, instaurando-se

    o estado de emergncia em 25 departamentos, a partir de 8 de novembro de 2005 at 4 de janeiro de 2006. Os distrbios

    duraram dezenove noites consecutivas, at o dia 16 de novembro. Jovens indignados queimaram 8.970 carros e entraram

    em confrontos com a polcia francesa, foram presos 2.888 jovens e houve mais um morto. Em 17 de novembro a polcia

    declarou que a situao tinha sido normalizada. Certo Chrif Kouachi, rapper amador, foi posto na priso.

    Em 2011, os escritrios do semanrio humorstico Charlie Hebdo, que tinha reproduzido as charges ofensivas sobre o

    profeta Maom publicadas h pouco tempo no jornal dinamarqus Jyllands Posten (provocando manifestaes de rua em

    repdio em pases rabes e/ou islmicos) foram vtimas de um atentado a bomba, que provocou danos materiais, mas no

    vtimas. E, em novembro de 2013, a coluna sonora do filme francs La Marche dava a conhecer ao mundo um rap,

    livremente composto e cantado por vrios conhecidos rappersfranceses (Akhenaton, Disiz, Kool Shen e Nekfeu), em

    que o refro solicitava, com alguma insistncia, um Auto da F contra esses cachorros de Charlie Hebdo. Pouco tempo

    antes, Al Qaeda divulgara uma lista de condenados morte (Fatwa), entre os que se encontrava o editor do semanrio,

    Stphane Charbonnier (ou Charb). Et que vive la liberte dexpression!

    Uma operao profissional

    A 7 de janeiro de 2015, dois jovens (irmos) franceses de origem rabe (e de declarada profisso de f islmica) decidiram

    invadir a sede de Charlie Hebdo, e realizar o pedido dos rappers, com meios mais modernos do que os outrora utilizados

    pelo frade Torquemada. Apresentados depois como profissionais altamente treinados em bases terroristas iemenitas e

    outros centros de treinamento do Oriente Mdio, inicialmente erraram o endereo do jornal, que lhes foi revelado por acaso

    por uma das jornalistas do semanrio que, nesse momento, se apresentava ao trabalho. Graas a isso, entraram e mataram

    quase todos os presentes na redao (onze pessoas), numa ao realizada com armas sofisticadas (como as que circulam

  • em qualquer favela do Rio) e com grande profissionalismo, segundo jornais e comentaristas. To grande, que um dos

    jornalistas presentes salvou-se ao esconder-se em baixo de uma mesa. Uma jornalista presente teve a vida perdoada por

    ser mulher (foi aconselhada a ler o Coro pelos assaltantes/assassinos), mas outra (Elsa Cayat, psicanalista) tinha sido

    previamente massacrada a pesar de possuir evidentemente a mesma condio.

    O corretor de provas de Charlie Hebdo, Mustapha Ourrad, no teve a vida perdoada em que pese sua bvia e visvel origem

    (tnica) semelhante dos assassinos. Na sada, os irmos Chrif e Sad Kouachi proclamaram aos passantes sua filiao a

    Al Qaeda (sua filial iemenita) e arremataram (desnecessariamente, de qualquer ponto de vista militar ou propagandstico)

    o j previamente ferido policial Ahmed Merabet, francs de bvia e evidente origem rabe, demonstrando, se diz, se no

    seu aguado faro poltico ou humanitrio, pelo menos seu excelente treino militar, pois usaram um s disparo (contra

    um alvo imvel, que pedia clemncia no cho, situado a menos de um metro de distncia).

    Pouco depois, outro terrorista, Amedy Coulibaly, acompanhado de sua namorada (ou ex) Hayat Boumeddiene,

    assassinou primeiro um agente policial na periferia parisiense (Montrouge) para depois invadir, supostamente

    sincronizado militarmente com os Kouachi, um comrcio judeu (Hyper Casher), em uma ao de caractersticas

    claramente suicidas, durante a qual foi abandonado pela sua profissional cmplice, que j estaria na Sria. Depois de

    conceder entrevistas telefnicas em que proclamou sua filiao ao ISIS (Estado Islmico, EI) foi atacado por foras

    policiais, que o abateram, no sem lhe deixar tempo suficiente para assassinar quatro pessoas presentes, que no faziam

    obviamente parte de lista nenhuma de grupo nenhum. O ISIS (EI) reivindicou sua ao, tanto quanto saudou o massacre

    do Charlie Hebdo.

    Os sincronizados militarmente irmos Kouachi, ao contrrio, no pretendiam se suicidar, nem ser mortos. Fugiram,

    demonstrando o sofisticado esquema militar que os rodeava, depois de roubar uma potente Renault Clio 1.0 de um

    aposentado, ao qual mostraram seus rostos (cobertos durante o massacre) e deixaram recuperar seu cachorro do banco

    traseiro (le rflexe douvrir la porte arrire et de dire : Je rcupre mon chien. Jai donc rcupr mon chien), depois

    de lhe informar, novamente, sua filiao a Al Qaeda de Imen (a concorrncia dentro da franquia criada h trs dcadas

    pelo saudita Osama Bin Laden deve estar forte).

    Com enorme profissionalismo e demonstrao de recursos secretos em rede, assaltaram no caminho uma loja de

    mantimentos para ter do que comer, o que foi um dos elementos que denunciou sua localizao. Previamente, os Kouachi

    tinham sido abandonados pelo treinadssimo profissional terrorista francs Mourad Hamyd, de 18 anos, que dirigira o carro

    que os levou at a sede do jornal humorstico, que se entregou polcia logo que as redes sociais vincularam seu nome

    com o massacre parisiense. Os Kouachi foram dados inicialmente como prximos fronteira com a Blgica, mas foram

    finalmente cercados em Dammartin-em-Gole, no longe de Paris, por uma parte (GIGN) dos 90 mil (!) policiais lanados

    em seu encalo, e foram mortos.

    Respostas, reaes e interpretaes

    A indignao e o repdio contra o massacre de Charlie Hebdo cobriram rapidamente a Frana e o mundo inteiro. Um

    desfile pela avenida Champs Elyses com participao de todos os chefes de estado da Europa foi realizado domingo 11

    de janeiro, com presena de um milho de pessoas. Antes disso, e tambm paralelamente, manifestaes enormes foram

    realizadas em todas as grandes cidades francesas, convocadas por todos os partidos polticos, centrais sindicais e

    movimentos. As entidades islmicas (ou rabes) francesas manifestaram tambm seu repdio ao massacre, enfatizando

    sua incompatibilidade com o verdadeiro Isl.

    Je Suis Charlie invadiu jornais, sites e redes sociais de todas as cores polticas e ideolgicas. Outra unanimidade foi definir

    o massacre como um atentado liberdade de expresso, uma coisa qual Frana est trs attache desde os tempos da

  • Grande Revoluo (1789), como lembrou Barack Obama e seu enviado John Kerry, este em francs (merci, Johnny), e

    como sabem todos seus habitantes no brancos submetidos a cotidianos controles policiais (e expulses do territrio) no

    pas que inventou os direitos humanos, no melhor estilo de Ferguson (EUA). Sem falar dos que lembram o sequestro das

    bancas da edio deCharlie Hebdo quando este anunciou escrachadamente a morte do General de Gaulle (Bal Tragique

    Colombey: un Mort).

    A defesa da liberdade de expresso um princpio, mas no abstrato e intemporal. Ela foi defendida na Revoluo Francesa

    (e antes dela) contra o Antigo Regime e seu sistema de privilgios de classe. Na Frana de hoje ( diferena dos EUA)

    queimar a bandeira nacional em manifestao pblica (contra a interveno militar francesa em Mali, por exemplo) um

    delito que d cadeia. No mesmo pas, essa liberdade deve ser defendida contra as sistemticas tentativas do clero catlico

    de introduzir no cdigo penal o delito de blasfmia (falando em Maom, isso lembra alguma coisa?) para no falar do

    apoio dado ministro socialista Manuel Valls queles que propem equiparar o antissionismo (oposio ao Estado de

    Israel, isto , ao genocdio palestino) ao antissemitismo, responsvel pelo Holocausto judeu.

    A unio nacional xenfoba (europeia inclusive) tentada pelos governos, aproveitando o infame massacre mltiplo,

    comeou a fracassar logo de cara: em Lyon, na manifestao popular reunida em frente prefeitura, a multido respondeu

    com um poderoso coro Charlie, Charlie tentativa das autoridades de puxar o canto de La Marseillaise (os mais velhos

    talvez lembrassem os quebra-quebras promovidos pelos veteranos paraquedistas franceses quando o francs-judeu Serge

    Gainsbourg pretendia cantar em pblico sua verso rap do hino nacional francs, Aux Armes, etcetra; eram s duas

    liberdades de expresso em confronto, foi dito ento uma armada, a outra no). A manifestao era por Charlie Hebdo,

    no pela Frana eterna.

    O por vezes lucrativo mercado das interpretaes estapafrdias e conspiracionistas foi, como no podia deixar de ser,

    acionado de imediato. Um inefvel pesquisador belga, que j montara une petite affaire baseada na afirmao de que os

    atentados s Torres Gmeas de 11 de setembro de 2001 foram obra da CIA e do Mossad (os rabes, como se sabe, seriam

    totalmente incapazes de uma empresa como essa, sobretudo contra os eficientssimos servios secretos ocidentais) j soltou

    a bomba (de crema) de que os irmos Kouachi seriam agentes dos servios secretos franceses (estes, certamente, j fizeram

    vrias e boas, como a exploso de um barco do Greenpeace). Os herdeiros de Fouch e Talleyrand andariam, ao que

    parece, recrutando franco-rabes pobres e suicidas, se possvel com um passado na priso. Uma clebre pesquisadora

    argentina descobriu, desde Buenos Aires (!) (a distncia dos acontecimentos s vezes ajuda), o brao longo da OTAN atrs

    dos dedos que puxaram os gatilhos na rua Nicolas Appert. A feira s acabou de abrir, outros produtos mais sofisticados

    logo viro.

    Os produtos mais perigosos nessa seara, no entanto, so os vendidos na feira montada do outro lado da calada. Os

    grandes jornais franceses (se que algum deles merece ainda esse qualificativo) j lanaram a espcie de que a

    sincronizao (provavelmente s imaginria, ou desejada) entre os Kouachi e Coulibaly anuncia (ou evidencia) uma

    juno entre Al Qaeda e Estado Islmico, ou seja, uma nova etapa do guerra terrorista internacional, em que o inimigo

    estaria agora dotado de um exrcito regular (EI) e de um brao terrorista (Al Qaeda). Que obrigaria a um Patriotic

    Act internacional, uma contradio em seus termos.

    A francesa Marine Le Pen, provvel beneficiria eleitoral dos acontecimentos com sua xenfoba Frente Nacional, j lanou

    sua proposta de reintroduo da pena de morte (abolida, na Frana em 1981), criticando o governo Hollande por no

    dar nome aos bois da ameaa antifrancesa (o islamismo radical), mas excluindo de seu alvo os bons islmicos

    franceses. A senhora pretende mesmo vencer as eleies (seu papai, Jean-Marie Le Pen, fundador da FN, s chegou a um

    segundo turno presidencial) e demonstra que at os fascistas aprendem, quando necessrio: Papai Jean-Marie havia

  • criticado, em meados dos anos 1990, a presena de negros e rabes na seleo francesa de futebol, responsvel segundo

    ele pelo seu baixo desempenho (os bleus no classificaram para a Copa de 1994, sendo derrotados na eliminatria, em

    casa, por Israel); pouco tempo depois, Zidane e amigos lhe fizeram enfiar suas palavras numa parte de seu corpo

    frequentemente retratada por Charlie Hebdo.

    Do outro lado dos Alpes, onde as autoridades costumam ser mais papistas que o Papa (o que no surpreendente, num

    pas que abriga o Vaticano), uma circular das autoridades educacionais do Veneto (de 8 de janeiro!) recomendou que se

    exigisse dos pais de alunos de origem rabe que se pronunciassem condenando os atentados da Frana, e que a questo do

    terrorismo islmico (sic) seja abordada em sala de aula, pondo em guarda os alunos e famlias contra uma cultura che

    predica lodio contro la nostra cultura. Ou seja, que se trata de cultura mesmo, no de armas ou de atentados.

    A temida frente Al-Qaeda/EI, destinada a cobrir com uma onda de terror o planeta inteiro, se acontecer, ter por razes no

    conspiraes urdidas em cantos escuros de mesquitas orientais, mas negcios urdidos em corredores com os paladinos da

    guerra contra o terror. EI , ao que parece, uma ciso de Al-Qaeda, depois que esta se mostrou cada vez menos

    operacional. Um oficial arrependido (h vrios) da inteligncia norte-americana denunciou que o monstro EI foi parido

    pelos servios (mais ou menos) secretos ianques, diretamente ou atravs da intermediao de seus aliados da Arbia

    Saudita, Catar e Emirados rabes Unidos. Os Estados Unidos se recusaram a ajudar o governo da Sria a combater grupos

    como Al-Qaeda e o ento chamado ISIS (Exrcito Islmico do Iraque e da Sria, que mudou de nome para Estado

    Islmico). Alm disso, segundo revelaes feitas pelo site WikiLeaks, o governo norte-americano armou grupos, como o

    ISIS e outros, para derrubar o governo srio.

    Quase trs mil documentos sobre essa questo foram vazados pelo site de Julian Assange em agosto de 2014. Que tambm

    revelaram que isso aconteceu depois de Bashar al-Assad, o repressor presidente srio, mostrar empenho no combate ao

    terrorismo e aos grupos radicais islmicos no Oriente Mdio, ou seja, declarar sua inteno de colaborar com os EUA na

    regio. Para enviar as armas para o ISIS, o governo Obama usou bases clandestinas na Jordnia e na Turquia. Aliados dos

    EUA na regio, como Arbia Saudita e Catar, tambm forneceram ajuda financeira e militar. Agora, o demnio parece ter-

    lhes fugido do controle, como j acontecera com Al-Qaeda.

    Buscar as origens de toda essa porcaria, e dessa crise da poltica externa doimperialismo norte-americano, no islamismo

    poltico (Irmandade Muulmana) fundado por Hassan por Al-Banna no Egito dos anos 1920 um belo exerccio de

    erudio intil. O islamismo (institucional ou no) foi um fator de moderao, com polticas assistencialistas e prdica

    religiosa, e at de combate do nacionalismo e do anti-imperialismo rabe (ou iraniano) nas dcadas sucessivas, quando

    este se aproximou mais da URSS, do maoismo e at do marxismo revolucionrio. A guerra fria aguou essas

    caractersticas. A passagem para o islamismo com metralhadora foi auspiciada pelos EUA em resposta a, e graas ,

    invaso sovitica do Afeganisto (vinculada ao desenvolvimento da revoluo contra o X Reza Pahlavi e seu governo de

    charmosos assassinos no Ir).

    Osama Bin Laden (entre outros) contou com importantes meios financeiros e militares fornecidos pelos EUA (alm dos

    prprios, que j eram importantes, como filho de uma das mais ricas famlias sauditas) para provocar o desejado Vietn

    da URSS, cinco anos depois do Vietn americano. Tornou-se carta fora do baralho (americano) com a retirada sovitica

    do Afeganisto e o consecutivo incio da contagem regressiva da URSS. Mas era uma carta armada at os dentes e com

    contas bancrias de muitos dgitos espalhadas pelo mundo. O feitio virou-se contra o feiticeiro e o restante, do atentado

    de Nairobi at o World Trade Center em 2001, histria hoje conhecida. Seu declnio e sua morte num vilarejo perdido

    do Paquisto, sem custdia e com 300 euros no bolso, no deram, porm, fim histria do pntano da poltica imperialista

    (norte-americana e europeia) no Oriente Mdio e na sia Central. Os EUA se retiraram do Afeganisto e do Iraque

  • invadidos, deixando atrs de si o caos poltico mais completo, devido a presses internas e internacionais (e sua prpria

    crise econmica galopante), que os obrigaram tambm a retirar da Casa Branca o cl Bush e seus alucinados planejadores

    da guerra infinita (Donald Rumsfeld, Blackwater and Co.).

    E tiveram de voltar logo depois, agora com drones, tropas preventivas e, sobretudo, agentes interpostos (enviar tropas

    prprias seria extremamente impopular, nos EUA), que deram nova vigncia Al-Qaeda e seus filhotes (desejados ou

    no). Estes j aprenderam (Osama Bin Laden sacrificou sua vida no aprendizado) que possvel ter seu prprio jogo nesse

    xadrez de morte. E comearam a recrutar na Europa, na Rssia, na China e nos prprios EUA, para aes onde for preciso,

    ou simplesmente possvel. Mas s se recruta onde h bases para esse recrutamento; Frana um territrio privilegiado.

    Como afirmou um panfleto (de LInsurg) lanado em Paris logo depois dos assassinatos noCharlie Hebdo:

    Comment ne pas comprendre que ces groupes, jouant sur la xnophobie et la misre dont sont victimes, en Europe,

    nombre denfants dimmigrs, puissent leur tour embrigader quelques dizaines de paums? Et en usant pour cela de la

    religion comme dune drogue?.

    8,4% da populao francesa est composta por imigrantes; seus filhos, por sua vez, perfazem 11% da mesma populao.

    Ao todo, quase 20% da populao, sendo os rabes (ou de origem rabe) o contingente mais numeroso. A maioria dos

    imigrantes chegou nas dcadas entre 1950 e 1970, quando as portas da Frana (e de outros pases europeus) se abriram,

    em meio ao boom econmico, para trabalhadores em setores de mo de obra escassa, ou em servios (limpeza, colheitas,

    servios domsticos) que os franceses se recusavam doravante, por variados motivos (salariais, em primeiro lugar) a

    executar.

    Os primeiros (os imigrantes) carecem de direitos polticos; os segundos os possuem, mas so objeto de discriminaes

    cotidianas. A integrao dos OS pees de cho de fbrica imigrantes na vida sindical, primeiro passo para sua

    integrao na luta de classes e na vida social do pas, foi limitada. As polticas das direes socialistas e comunistas,

    que s os aceitaram como enfeite, e das burocracias sindicais, foram as principais responsveis por isso. Empilhados em

    alojamentos precrios (os foyers Sonacotra), vtimas de mil entraves burocrticos para reunir suas famlias no novo lar,

    inclusive depois de dcadas de trabalho. Discriminados nas escolas, discriminados at nos bares, nos lugares de lazer,

    confinados em guetos. Os importadores de mo de obra barata, que acelerou a acumulao de capital e os lucros do

    capitalismo francs nos trinta anos gloriosos, esqueceram (propositalmente, claro) que no estavam importando apenas

    trabalho, mas pessoas, com cultura, desejos e aspiraes prprias. Atender essas necessidades no dava lucro, apenas

    gastos.

    Pais rabes sem religio (ou no praticantes) passaram no raro a ter filhos islmicos praticantes. O responsvel da

    mesquita frequentada pelos irmos Kouachi se lembrou deles (em entrevista TV) como discretos e calados, usando roupas

    ocidentais, mas que se exaltaram (contra) quando na mesquita foi feito um chamado a participar da vida poltica do pas,

    nas eleies francesas. Estrangeiros no pas em que nasceram e se criaram. Essa informao vale mais que todas as

    descobertas de pesquisadores sensacionalistas cata de negcios editoriais.

    Fracasso da badalada sociedade multicultural, da tolerncia entre culturas? Mas a prpria noo de tolerncia no

    implica que haja tolerantes e tolerados, isto , opressores e oprimidos? Quem que quer ser apenas tolerado durante

    toda uma vida? Alguns setores da vida do pas se abriram para os rabe-franceses, em especial na cultura; alguns franceses

    passaram a apreciar a msica rabe. O rap franco-rabe conquistou algum lugar nas paradas. Mas foi pouco, foi lento, e a

    mquina trituradora da sociedade de classes continuou a funcionar com muito maior rapidez e eficincia.

    A crise econmica e o desemprego estrutural, a partir de meados da dcada de 1970, completaram a catstrofe. Les

    Franais dabord no foi s um slogan de partidos de extrema-direita (depois, apenas de direita), mas tambm uma frase

  • que se ouvia com demasiada frequncia nas filas das agncias oficiais de emprego. E a esmola oferecida aos

    desempregados crnicos passou a ser chamada, quando concedida a trabalhadores estrangeiros, de aproveitamento parasita

    por parte destes dos impostos pagos pelos honestos franceses. A extrema direita xenfoba (no incio, explicitamente

    antissemita) pulou gradativamente de menos de 1% para mais de 20% dos votos, obtidos inclusive entre os setores mais

    pobres dos antigos eleitorados socialista e comunista.

    Fracasso do sistema educacional francs em integrar comunidades de origem algena aos valores e tradies republicanas

    da Frana, inclusive quando j se encontram na sua terceira gerao de rabes nascidos no pas? Valores que integram, por

    exemplo, a invaso napolenica do Egito, em 1798 (as peas arqueolgicas e obras de arte roubadas na empreitada enfeitam

    at hoje o Museu do Louvre e o Museu Britnico, em que pesem as reclamaes dos governos egpcios). A colonizao

    da frica do Norte pelos franceses, a partir de 1830. As aventuras coloniais africanas de Napoleo III. A corrida s colnias

    de franceses (e outros europeus) na frica e na sia, na passagem do sculo XIX para o sculo XX.

    E, no sculo XX, os acordos Sykes-Picot que dividiram Oriente Mdio ao sabor dos interesses das potncias colonialistas

    europeias. A represso sangrenta da revolta encabeada por Abdelkrim (Abd el-Krim El Khattabi) no Marrocos (Riff)

    franco-espanhol, na dcada de 1920, realizada pelo marechal Ptain, o mesmo que entregou depois a Frana aos nazistas.

    O uso das tropas coloniais para as tarefas mais sujas, podres e perigosas, como a ocupao do Rhr alemo (1923), ou

    na Segunda Guerra Mundial. A guerra suja (foi a que o termo foi cunhado) de Frana contra a luta pela independncia

    da Arglia, modelo das ditaduras latino-americanas. O bombardeio massacrador de Stif e Guelma, com 50 mil mortos. O

    massacre de manifestantes pela independncia argelina no metro Charonne, em 1962, com dezenas de mortos e feridos,

    ordenado pelo prefeito parisiense Maurice Papon (depois julgado por crimes de guerra e colaboracionismo com os

    nazistas). E, como dizem os franceses, jen passe (os massacres no Chade e em Ruanda, a interveno na Lbia, a atual

    interveno anti-islmica no Mali) Como integrar as vtimas s tradies e valores de seus aougues?

    Por que Charlie Hebdo?

    Por que estava Charb na lista de alvos de Al-Qaeda, ao lado de Shalman Rushdie e outros? Existe uma explicao mais

    bvia do que a bvia, citada inicialmente: porque essa lista existe. Se no existisse, Al-Qaeda, grupo (ou melhor, franquia)

    terrorista, perderia uma de suas razes de ser. O terrorismo existe em razo de seu alvo, real ou imaginrio, justificado ou

    inventado.

    E porque Charlie Hebdo? Vamos deixar de lado a explicao sem p nem cabea de que se trata de uma publicao de

    extrema esquerda, portanto ateia, marxista-anarquista ou coisa que o valha. As crticas de Charlie Hebdo corrupo

    estatal e ao capitalismo predador a situam (sem grande destaque) dentro de uma constelao de publicaes francesas

    semelhantes (sendo a mais clebre Le Canard Enchan). Charlie Hebdo no tem vnculos polticos explcitos, a no ser a

    colaborao de seu mais clebre cartunista, mundialmente reconhecido e assassinado a 7 de janeiro, Georges Wolinski, e

    do prprio Charb, com as publicaes do Partido Comunista (PCF).

    O especfico de Charlie Hebdo no isso, mas seu humor escrachado, multidirecional e sem limites (morais, polticos, ou

    seja l o que for) de qualquer espcie. De valor desigual, e convenhamos em que produzir semanalmente cinquenta pginas

    de humor grfico ou escrito escrachado em extremo no tarefa para qualquer um. Perto de Charlie Hebdo, o CQC

    (brasileiro ou argentino) ou o extinto Cassetta & Planeta de Bussunda e amigos parecem programas infantis com roteiro

    redigido por freiras. Algumas de suas capas (sobre a morte de de Gaulle; sobre a exposio do cadver de Paulo VI durante

    uma semana no Vaticano, ilustrada por um queijo camembert em decomposio; sobre a fracassada e carbonizada

    expedio americana para resgatar os refns de Teer Carter offre un mchoui aux iraniens e outras) se tornaram

    histricas.

  • Sustentou-se que se trata de uma tradio especificamente francesa, do pas da liberdade, que remonta prpria Grande

    Revoluo do sculo XVIII. Uma verdade parcial (ou, como dizia Sarmiento, a pior das mentiras): o humor bombstico

    dos panfletistas e desenhistas revolucionrios tinha, naquele tempo, alvos bem especficos (a famlia real, a nobreza, o

    sistema autocrtico, etc.).Charlie Hebdo tem (tinha?) todos os alvos, franceses, europeus, internacionais. Ningum estava

    a salvo. Aventuraria dizer que Charlie Hebdo era (junto com seus antecedentes, Hara-Kiri e publicaes assemelhadas) o

    ltimo e impenitente sobrevivente de Maio 1968, do escrache total com vistas revoluo total. Por ser francs (e muito)

    foi imitado por outras publicaes europeias, que no conseguiram chegar nem perto padeceu tambm de taras e

    preconceitos tipicamente franceses: a capa com Maom de quatro, com uma estrela no lugar do nus (Une toile est ne)

    era bem me