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1 A Princesa, a Gata e a Borralheira: construção de imaginários sobre o casamento Marina Blank Virgilio da Silva 1 Resumo: O principal objetivo desta pesquisa é refletir sobre a construção de imaginários que envolvem o casamento, aprofundando a figura da noiva e a associação com o ideal romântico personalizado na “princesa”, relação central a um imaginário sobre matrimônio e estética marcado pelos contos de fada. Destaca-se a memória e o papel da fotografia no ritual. À noiva são atribuídas as características valorizadas das princesas Disney clássicas: beleza, graça, elegância. Existe a necessidade de vínculo conjugal da princesa com um príncipe para a constituição do próprio status de “princesa”, não é uma conceituação fixa, se faz por imagens cambiantes, está compreendida no imaginário sobre o que é ser noiva, assim como o inverso. A construção social que a preparação do casamento é importante para a noiva, devendo ser realizada por ela, é analisada. Para o noivo, tomar decisões poderia ser opcional. A mulher é criada para desejar casar e ser uma princesa, mas para o homem o casamento seria seu "game over". Esta reflexão norteia-se pela desconstrução do sistema “obrigatoriamente” toda mulher deveria desejar se casar/ todo homem deveria fugir deste compromisso. Faz parte deste imaginário figuras como a graciosa Julia de Balzac, oprimida pelas obrigações sociais, cujo casamento (colocado pelo autor como um dos pilares da sociedade burguesa) é um longo sofrimento iniciado em uma ideia de amor romântico juvenil, em “criancices” com um véu nupcial, ou as protagonistas de Jane Austen e o modelo de casamento aristocrático, base para entendermos o ritual nos dias atuais. Reflexões como as apresentadas por Dostoiévski em O Eterno Marido e Tolstói em A Sonata a Kreutzer também são frutíferas para a pesquisa em um desencantamento de um universo encantado. Palavras-chaves: Casamento; Imaginário; Noiva; Princesa; Conto de Fada 1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal da Paraíba. Bacharela em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo.

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A Princesa, a Gata e a Borralheira: construção de imaginários sobre o casamento

Marina Blank Virgilio da Silva1

Resumo:

O principal objetivo desta pesquisa é refletir sobre a construção de imaginários

que envolvem o casamento, aprofundando a figura da noiva e a associação com o ideal

romântico personalizado na “princesa”, relação central a um imaginário sobre

matrimônio e estética marcado pelos contos de fada. Destaca-se a memória e o papel da

fotografia no ritual.

À noiva são atribuídas as características valorizadas das princesas Disney

clássicas: beleza, graça, elegância. Existe a necessidade de vínculo conjugal da princesa

com um príncipe para a constituição do próprio status de “princesa”, não é uma

conceituação fixa, se faz por imagens cambiantes, está compreendida no imaginário

sobre o que é ser noiva, assim como o inverso.

A construção social que a preparação do casamento é importante para a noiva,

devendo ser realizada por ela, é analisada. Para o noivo, tomar decisões poderia ser

opcional. A mulher é criada para desejar casar e ser uma princesa, mas para o homem o

casamento seria seu "game over". Esta reflexão norteia-se pela desconstrução do

sistema “obrigatoriamente” toda mulher deveria desejar se casar/ todo homem deveria

fugir deste compromisso.

Faz parte deste imaginário figuras como a graciosa Julia de Balzac, oprimida

pelas obrigações sociais, cujo casamento (colocado pelo autor como um dos pilares da

sociedade burguesa) é um longo sofrimento iniciado em uma ideia de amor romântico

juvenil, em “criancices” com um véu nupcial, ou as protagonistas de Jane Austen e o

modelo de casamento aristocrático, base para entendermos o ritual nos dias atuais.

Reflexões como as apresentadas por Dostoiévski em O Eterno Marido e Tolstói em A

Sonata a Kreutzer também são frutíferas para a pesquisa em um desencantamento de

um universo encantado.

Palavras-chaves: Casamento; Imaginário; Noiva; Princesa; Conto de Fada

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal da Paraíba. Bacharela em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo.

2

Ter um casamento completo, com cerimônia e festa é o sonho de muitas

mulheres, e de vários homens também, claro, mas não em proporcional número. O

romantismo está ligado a esse ritual, alimentado pelos contos de fada. A associação

entre ser noiva e querer ser uma princesa, mesmo que por um dia, foi desenvolvida

nesta pesquisa.

É socialmente aceito que um casal inicie uma vida conjugal, morem juntos, até

mesmo tenham filhos, sem estarem casados. Então, por que muitos não abrem mão da

celebração do casamento? Que relações, redes de afinidade e parentesco o casamento

está criando? O casamento é legitimador desse estado, da união. Passa- se de um estado

liminar, em que não se é solteiro, mas que ainda não se tem a confirmação social de sua

posição para a de casal estável. Os status de “esposa” e de “marido” são importantes na

sociedade moderna. Com o casamento, a posição social do casal se reestabelece.

O casamento como ritual de passagem, como rito simbólico, está de certa forma

no imaginário dos noivos, famílias, madrinhas, padrinhos, convidados, cerimonialistas,

fornecedores. Mas não só entre os diretamente envolvidos neste processo, essa é uma

ideia presente no senso comum, no que poderíamos chamar de imaginário coletivo, de

uma forma rudimentar. Há uma aparente tensão, no interior do próprio ritual do

casamento, entre imaginários construídos, expectativas dos noivos, das famílias e dos

convidados. Esta aparente tensão e a construção dela são foco desta pesquisa. A

abordagem principal é através do uso da fotografia, utilizando a técnica de foto-

elicitação, e de elementos como filmes, livros e programas de televisão.

Esta pesquisa desenvolvida no mestrado é fruto de pesquisas anteriormente

realizadas durante a graduação. A primeira, para a disciplina de metodologia e pesquisa

de campo em Antropologia, possibilitou interessantes reflexões sobre o casamento e

verificou a falta de pesquisas contemporâneas na área das Ciências Sociais sobre o

tema. A partir desta, que abordava de forma ampla cerimônia e festa como ritual, uma

posterior foi desenvolvida em disciplina de Antropologia Visual, conjuntamente ao

início da pesquisa de Iniciação Científica, recortando o objeto casamento, iniciando a

reflexão sobre a construção de imaginários sobre este tema e inovando a metodologia. A

reflexão parte da necessidade de se compreender por que e como o ritual do casamento

perdura até a modernidade e, apesar da reconfiguração da instituição família

contemporânea, se fortalece.

O apoio na trajetória de mudanças nesse ritual já descrita pela literatura e

contexto em que os casamentos são ou não realizados colaboraram para a possibilidade

3

de enxergar um cenário em que as categorias conceituais e símbolos estão inseridos,

além de servir como campo propício para reflexão sobre a inter-relação entre

indivíduos, espaço e tempo, mas não são focos para a pesquisa a ser desenvolvida,

apenas pontos de apoio à análise. Desta forma, não é o objetivo abarcar toda a

diversidade de formas de expressão desse ritual de passagem notadamente presente em

praticamente todas as sociedades e diversas épocas e sim contribuir para o entendimento

antropológico e sociológico deste importante ritual.

Turner, refletindo sobre a experiência, lembrando do que Dewey chamou de

“uma iniciação e uma consumação”, dá como exemplo a cerimônia de casamento como

uma experiência formativa e transformativa, uma sequência distinguível de eventos

externos e reações internas a ele tais como iniciações em novos modos de vida (Turner,

2005). Essa experiência interrompe o comportamento rotinizado, não é um mero

momento, mas um momento, quando a vida pode ser sentida de forma mais intensa e as

trocas são ampliadas. Daí podemos entender a relevância do “dia mais importante na

vida dos noivos”, ou pelo menos um deles, e como o comportamento dos envolvidos

nesse ritual se transforma durante o período de preparação e celebração.

Ainda pensando com Turner (1974), noiva e noivo se tornam personae

liminares, há um contraste entre seu “estado” e a “transição”, é um período ambíguo,

não possuem ainda o status de casados e, portanto, inclusive legalmente, de marido e

mulher, mas por outro lado não são indivíduos separados e nem correspondem aos

papéis de mulher e homens solteiros. No ritual da cerimônia e festa, os convidados

vivenciam “momentos de communitas”, em que há algo de sacralidade.

Nas ciências sociais existe uma percepção de que a relevância dos fenômenos

reside na sua significação, tanto para o observador quanto para os que dele participam.

Por isso é importante destacar que o ritual é maleável, a variabilidade dos ritos de

casamento está não só na diferença entre regiões e religiões, mas entre “tradição”,

“renovação” e “adaptação”, entre imaginários compartilhados. M. Segalen coloca que

perceber a plasticidade dos ritos e se interrogar sobre as condições sociais dessa

variabilidade significa compreender melhor as causas de sua manutenção na sociedade

moderna. (Segalen, 2002). A plasticidade do ritual do casamento impressiona.

Combinada com o seu alto grau de fragmentação é possível que cada elemento se

transforme seguindo uma orientação e não necessariamente quebrando a tradição. A

noiva pode entrar dançando e de vermelho na igreja, mas ainda assim manter uma ideia

romântica de casamento.

4

Atentamos às tensões entre a importância do dar, principalmente compreendido

como gastar, e o receber na celebração do ritual. Busca-se uma articulação teórica entre

o simbolismo tradicional, a plasticidade de rito e a reciprocidade da troca entre os

noivos e convidados. E a dupla dimensão possível neste ritual: por um lado pode ser

compreendido como um momento de desprendimento e, por outro, como uma

demarcação social e demonstração de status.

O casamento como negócio e o negócio de casamentos

Este ritual também é uma demonstração de status no sentido próximo de

ranking, prestígio social, como Mauss aponta ao analisar o Potlatch do noroeste

americano. A pompa da celebração mostra abundância para se compartilhar e ser

mostrada. Não importa se esse status é real ou não, se o casamento foi pago vendendo o

que for preciso não é relevante no momento em que está ocorrendo a celebração. No

início da festa do casamento do casal Lontra, antes do aguardado jantar, os noivos,

agora marido e mulher, fizeram um discurso, após agradecer a presença de todos e

ressaltarem o quanto estavam felizes neste dia tão especial, a noiva declarou “só nós

sabemos os sacrifícios que tivermos que fazer para ter tudo isso hoje, só nós”. Com

direito a helicóptero, Rolls Royce, fogos de artifício, tapete vermelho e banquete, o

casamento de princesa e estrela de cinema fez valer um orçamento da realeza de

Hollywood.

2

E viveram felizes para sempre, assim que terminaram de pagar as parcelas

Além dessa dimensão de pompa e demonstração de poder, também há outra, o

verdadeiro desprendimento, a communitas. Noivos e convidados compartilham

momentos de verdadeira comunidade.

2 Chegada da noiva Lontra de helicóptero e ida até o espaço da celebração com um Rolls Royce

5

“Fui a um casamento em que, no final do convite, lia-se a frase „Os noivos receberão os

cumprimentos na igreja‟. Estando lá, percebi que foi a primeira vez na vida que fui a um casamento

onde não haveria festa, e confesso que só vi vantagens! Não, não pense que não sou adepta a festas,

celebrações e comemorações! Mas sinceramente, sou muito mais a favor da realidade, da

humildade e das escolhas ponderadas, feitas a dois, do que imaginar que tem gente que gasta o que

não pode para fazer uma festa pensando no que os “outros” vão pensar se não servir vinho tipo „A‟

e sim tipo „B‟ mais em conta, ou ainda que compare seu casamento à festa da amiga, da colega de

trabalho, ao da prima abastada e que faz de tudo para tentar superá-los, entrando numa verdadeira

competição ilusória sem sequer perceber que está indo por este caminho… Infelizmente, o que mais

vemos por ai são exibicionismos que realmente não têm nada a ver com a celebração do amor, da

vida a dois, da constituição de uma família.

(...) Estou contando esta história aqui porque sei que muitas noivas que passam por aqui, por opção

ou não, não terão uma festa de casamento. Que esta história inspire você a seguir em frente, a ter

certeza de que o seu casamento será único e especial, porque ele será realizado com o item mais

importante de todos: com amor.” 3

Este depoimento retirado de um blog voltado para noivas traz questões que as

ciências sociais podem trabalhar. Busco contribuir para o aprofundamento das reflexões

sobre a lógica da troca e a relação com o imaginário em construção.

No artigo de Maria de Fátima Araújo, a autora coloca que o casamento

malthusiano é um modelo de união conjugal em que a procriação não é o objetivo

principal do casamento. Não se trata de uma nova conduta que valoriza a vida comum,

respeito entre os cônjuges e afeição compartilhada como na História da Sexualidade de

Foucault. Nesta perspectiva, coloca-se como um sistema de casamento que privilegia a

ética cumulativa, o desejo de ascensão social e o individualismo possessivo (valores da

ideologia burguesa). Malthus propôs uma avaliação dos custos e benefícios do

casamento O casamento seria assim uma escolha racional, economicamente racional. O

matrimônio seria algo que envolveria custos econômicos e sociais consideráveis, que

deveriam ser pesados contra suas vantagens. Implica mais despesas e responsabilidades.

Por isso, Malthus condenava o casamento antes da independência financeira. Araújo

destaca que, com o desenvolvimento capitalista, esse modelo de casamento malthusiano

se espalha pelo mundo, sofrendo as adaptações necessárias às diferentes culturas e

níveis de desenvolvimento econômico. Por outro lado, precisamos atentar que a variável

econômica é importante, mas não é dominante. Há facetas de imaginários sem valor

econômico imediato. Imagens e fantasia constituem realidade, não são apenas ficções,

3 http://enoivasblog.com/os-noivos-receberao-os-cumprimentos-na-igreja/

6

não estão descoladas do real e nem podem ser desqualificadas como lado irracional da

compra.

Em contraposição, ou ainda coexistindo à perspectiva racionalista, nota-se que o

circuito que noivas e noivos percorrem no processo do casamento (Feiras de noivas &

debutantes, visitas a fornecedores, workshops) é cheio de novidades, deslumbramento,

sabores, cheiros, texturas, negociações, decepções, sacrifícios e sonhos. O mercado de

casamentos faz circular bilhões de reais anualmente.

4

Predominantemente, esses espaços são frequentados pelas noivas, por vezes

acompanhadas de seus noivos, mães ou amigas. É uma verdadeira maratona, são horas

andando de estande em estande, fazendo contatos, conhecendo novos produtos e

serviços, tendo ideias para o casamento, negociando descontos de feira, fazendo

degustações e assistindo aos desfiles de moda para noivas, noivos e debutantes. Quando

o casal está junto, pode ser um momento de certa tensão, ele entediado, ela querendo a

opinião dele, frenética em busca da compra ideal. Logo na entrada da primeira feira

visitada por mim, no guichê, ouvi um noivo reclamando, “E ainda por cima eu tenho

que pagar para entrar nesse lugar?”. Em um estande de um local para casamentos

presenciei uma noiva mais nervosa, “Vem aqui agora, a gente veio para ver as coisas

juntos, e vamos ficar juntos”- “Mas eu queria ver aquilo ali”, diz ele - “Vem logo! Fica

do meu lado!”, reafirma ela - fornecedores e outras pessoas que estavam negociando

4 Feira da Noiva & Debutante realizada em Santo André- SP

7

orçamentos ficaram caladas, sem reação. O noivo voltou e ficou parado ao lado da

noiva. Este é um exemplo de um tipo que ficou conhecido como “bridezilla”, termo em

inglês que brinca com as palavras Bride (noiva) e Godzilla (monstro do filme japonês

de 1954), que pode ser traduzido para o português como “noiva neurótica”. Mas o caso

também reflete a construção social de que a preparação do casamento é importante para

a noiva e deve ser realizada por ela, não pelo noivo, para ele, então, tomar decisões

poderia ser opcional. Este ponto será retomado mais adiante na análise.

Para os fornecedores, as feiras são um grande momento para fechar negócios,

caso eles percebam que você não irá assinar nada naquele momento, rapidamente já

focam a atenção nos próximos interessados. A relação comercial se sobrepõe, de uma

maneira quase irônica, à ideia reiterada constantemente de que os noivos (mais

especificamente, a noiva) merecem atenção total, pois aquele é um dos momentos mais

especiais de suas vidas, vendido como “o” momento mais especial.

5

As feiras de noiva também são, em letras miúdas, de debutantes. Os dois

universos compartilham o mesmo imaginário, as poses, decoração, vestidos, fotos,

álbum e filmagens seguem a mesma construção romântica. A diferença é que para a

debutante, ainda falta o noivo. A comparação é colocada pelo universo da pesquisa, faz

parte do entendimento sobre a construção de imaginários sobre o casamento.

5 Foto negociação estande de vestidos e acessórios no Salão das Noivas & Debutantes

8

6

“Mas eu queria tanto um vestido de baile para meu casamento... Sabe, eu não pude ter uma

festa de quinze anos... É minha última chance de parecer uma princesa”

O glamour de fogos de artifício brilhando no céu em um grande momento, seja

ele o début de uma jovem que completa quinze anos, o dia de princesa de uma noiva em

seu casamento ou no “felizes para sempre” de uma princesa Disney é mais uma imagem

compartilhada por este imaginário que estamos tentando reconstruir neste pesquisa.

A Disney lançou em 2013 uma linha de vestidos inspirada nas princesas, a

coleção tem o nome Quinceañera Disney Royal Ball, voltada para o público latino dos

Estados Unidos e Canadá. Gilberto Martínez Kladt, vice-presidente de licenças da

divisão Disney Princess, afirmou para o jornal brasileiro Folha de São Paulo (versão

virtual) que "A Disney está muito contente por poder brindar as jovens latinas e criar

oportunidades para celebrar com elegância, graça e porte de seus personagens favoritos

das Princesas da Disney em uma ocasião tão especial e memorável".

Desde 2012, a Disney investe comercialmente em sua linha para noivas,

Disney´s Fairy Tale Weddings and Honeymoons (Conto de fada da Disney –

Casamentos e Luas- de-mel ), a Bridal Collection é a linha de vestidos para noivas

inspirada nas princesas, descrita pelo site como “homenagem às princesas que se

atrevem a sonhar, Alfred Angelo (estilista que assina a coleção) revela uma

impressionante coleção de vestidos que capturam a essência de cada Disney Princess:

sua graça, sua centelha e sua beleza lendária. O seu era uma vez agora está em uma

criação de noiva etéreo alimentada pela fantasia, romance e aventura, desde as

profundezas do mar para muito acima das nuvens.” (tradução da pesquisadora).

6 Foto esquerda: desfile vestidos de debutante em uma Feira de Noiva & Debutante; Foto central:

chegada da noiva Lontra em seu casamento; Foto direita: imagem W. Disney Pictures presente na abertura de seus filmes.

9

7

Tanto à debutante quanto à noiva são atribuídas as características valorizadas das

Princesas Disney clássicas. Beleza, graça, elegância, verdadeiras Cinderelas em seus

dias de conto de fada. A pesquisa de Michele E. Bueno, mestre pela Universidade de

São Paulo, também sobre a construção de imaginários femininos, ainda que focada no

universo infantil, chama a atenção sobre a necessidade de vínculo conjugal da princesa

com um príncipe para a constituição do próprio status de “princesa”. Vale citar a fala de

uma das crianças: “Tia, para ser princesa precisa casar, né? Senão não vai ser

princesa, vai ser solteira!” (cf. Bueno, 2012).

Bueno apresenta uma dicotomização operada pela Disney entre “Princesas

clássicas” e “Princesas rebeldes”. Os referenciais de feminilidade dispostos pelas

protagonistas Disney apresentam continuidades, caso contrário não estariam todas sob a

mesma rubrica de “Princesas”, mas também importantes rupturas. Um eixo de

continuidade da forma feminina entendida como “princesa” destacado pela autora é a

potencialidade de sucesso do amor conjugal. Pensando na personagem Cinderela como

representante das “Princesas clássicas”, sua caracterização e comportamento a levam ao

“felizes para sempre”. Como Bueno descreve, Cinderela parece flutuar pelo salão, com

seus gestos contidos e grande discrição chama toda a atenção para si, principalmente a

do príncipe, que, por diferenciá-la das demais moças casáveis no salão, a convida para

dançar e já nesta primeira dança ocorre o primeiro beijo. O beijo final do conto de fada

evoca o casamento como desfecho. A personagem do Grão-duque já sussurra ao rei que

7 Foto esquerda: http://f5.folha.uol.com.br/humanos/2013/05/1279329-disney-lanca-linha-de-vestidos-

para-debutantes-inspirados-nas-princesas.shtml ; Foto direita: https://www.disneyweddings.com/disney-boutique/bridal-gowns/

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“o coração (do príncipe) lhe diz que ela é a jovem destinada a ser sua noiva”. Esse

triunfo do amor romântico, do amor à primeira vista reflete um imaginário de que

“foram feios um para o outro”, “estão destinados a ficar juntos”. O casamento que se

coloca como destino final é corroborado pela cena que finaliza o filme: o príncipe e

Cinderela, agora sua esposa, saem de seu casamento em uma linda carruagem ao som do

coro que canta “seu dia feliz, um dia vai chegar; não importa o mal que te atormenta se

o sonho te contenta e pode se realizar”.

Mulan é a representante das “Princesas rebeldes” trabalhada na pesquisa de

Bueno. Quase cinco décadas depois de Cinderela suportar bondosamente a crueldade da

Madrasta, calçar seu sapatinho de cristal e se casar com o príncipe, a heroína da China

Imperial da Disney é uma jovem que foge de casa e vai para a guerra no lugar de seu

pai, após ser humilhada pela casamenteira da vila por não possuir as qualidades

esperadas de uma “noiva exemplar” (calma, reservada, graciosa, educada, delicada,

refinada, equilibrada, pontual, praticamente uma Cinderela). Travestida de soldado,

encontra seu amado, o Capitão. Depois de salvá-lo e salvar o Império contra os hunos,

se torna uma heroína de guerra, através de disciplina, força e coragem, que acabam a

conduzindo àquelas qualidades que como noiva em um modelo de feminilidade clássico

não alcançaria. Vale ressaltar que em nenhuma das coleções de vestidos

comercializadas pela Disney, seja para debutantes ou noivas, inspiradas nas Princesas,

há algum modelo “Mulan”. A associação entre noiva (e debutante) e princesa não é

realizada com qualquer princesa, a “noiva exemplar” do filme infantil repercute na

noiva real.

As protagonistas estão ligadas à marca de “Princesas” por caminhos diversos,

Cinderela pela delicadeza e passividade, Mulan por sua rebeldia e coragem, porém

ambas chegam a um mesmo ponto no final de seus filmes, a realização do amor

romântico e conjugal. Importante destacar que no caso da segunda, esse desfecho não se

realiza no longa-metragem, apenas orienta nesta direção. Interessante notar que a

criança da pesquisa de Bueno não considerou Mulan uma princesa por esta não ter se

casado no final. A ideia de princesa, desta forma, parece estar compreendida no

imaginário sobre o que é ser uma noiva, e vice-versa. Não é uma correspondência

direta, claro, inclusive porque o que se entende por “princesa” não é uma conceituação

fixa, se faz por imagens cambiantes. Ainda assim, a própria dicotomia da Disney

demonstra: uma imagem ressoa na outra, reforçando espelhamentos.

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Simbolismo, sonho, comunhão e finanças

Essa é a mensagem que recepciona os visitantes do site do casal Gade8:

Queridos familiares e amigos, criamos esse site para todos participarem de

alguns detalhes da realização de mais um sonho que Deus colocou em nosso coração.

É com a imensa alegria que estamos compartilhando com todos a contagem

regressiva do nosso casamento, que é o dia mais feliz das nossas vidas, também

queremos que todos conheçam um pouco da nossa história de amor escrita pelo dedo

de DEUS!

Obrigada pela sua visita!

Novamente aparece a ideia do “dia mais feliz na vida dos noivos” e o casamento

como sonho compartilhado. Além do amor romantizado e a importância religiosa.

“Te wo nobaseba kimi ga ita mada kokoro ni kimi ga ita”, o verso da música da

banda japonesa favorita do jovem casal Miyavi, viciado em animes, mangás,

videogames e afins, está no topo do convite de seu casamento. A questão da presença ou

não da tradução foi debatida entre noiva e madrinha, a primeira só cedeu quando a

segunda argumentou que o convite deveria ser a primeira forma de compartilhar essa

experiência dos noivos com os convidados, deixar apenas em japonês seria uma forma

de excluí-los do significado, ao invés de ser um momento de compartilhamento. Para o

leitor sentir também o clima desse casamento, segue a tradução: “Quando eu estendi

minha mão livremente você estava lá, no meu coração você continuava lá”.

Este “momento compartilhado” podemos associar ao conceito de communitas

em Turner, “uma comunidade, ou mesmo uma comunhão, de indivíduos iguais que se

submetem em conjunto à autoridade geral” (Turner, 1974) com um componente

sagrado adquirido pelos beneficiários das posições sociais nos “ritos de passagem”, esse

momento de transitória humildade legitima as posições sociais e implica que sem a

liminaridade “o alto não poderia ser alto sem que o baixo existisse”, da mesma forma

como os casados não o seriam sem que existissem os solteiros, e o ritual do casamento

reestabelece essa diferença estrutural, ao mesmo tempo em que estabelece um momento

transitório de ausência de “status”, em que noiva e noivo são figuras liminares. Ainda

pensando com Turner, noiva e noivo se tornam personae liminares, há um contraste

entre seu “estado” e a “transição”, é um período ambíguo, não possuem ainda o status

de casados e, portanto, inclusive legalmente, de marido e mulher, mas por outro lado

8 Nomes de colaboradoras e colaboradores pesquisados e entrevistados nesta pesquisa foram alterados

12

não são indivíduos separados e nem correspondem aos papéis de mulher e homens

solteiros.

Aquilo que chamamos aqui de communitas criada no casamento é um processo

peculiar, espontâneo, que pode ocorrer dentro de um fluxo de relações que estão

afirmando todo o tempo o “status” dos participantes enquanto reativam o parentesco,

não estabelecendo exatamente igualdade. Um exemplo ocorrido durante festa de

casamento do casal Gade mostra esses “momentos de communitas” que o ritual pode

gerar: a primeira dança do casal como esposa e esposo é claramente um espaço de

estabelecimento de desigualdade no ritual, os noivos tomam o centro do salão e apenas

eles estão dançando, enquanto convidados os cercam e observam, mas os Gade,

seguindo uma nova moda na dança do casal que tenta quebrar a tradicional valsa

tocando um pot-pourri inesperado de vários ritmos, sem ter a intenção de gerar uma

experiência de comunhão, gerou. A faixa musical iniciou com uma valsa tradicional,

mas o trecho seguinte era uma canção gospel famosa entre os convidados (os noivos se

conheceram na igreja e praticamente todos naquela celebração frequentavam o mesmo

templo evangélico), quando noiva e noivo seguiram com a coreografia, todas e todos ao

redor começaram a cantar e dançar junto a eles, em poucos segundos o círculo ao redor

do casal estava desfeito, todos estavam animados ocupando o centro, os trechos

seguintes da faixa de músicas de sucesso agrupadas mantiveram a experiência

compartilhada por todos, até que a valsa inicial voltou a tocar, espontaneamente as

convidadas e convidados voltaram a se posicionar em círculo ao redor dos noivos e

observar o fim da dança, a diferenciação estava reestabelecida.

O caso dos convites do casal Miyavi e a dança dos Gade colocam a questão de

que no casamento há vários símbolos, seus significados muitas vezes são

compartilhados pelo senso comum, como a troca de alianças, a tradição de se jogar o

buquê, mas há simbologias particulares, elementos que fazem sentidos apenas para o

casal, como uma música que será tocada, algo na decoração que lembre um momento

especial, será que estes significados devem ser partilhados com os convidados para que

eles possam entrar na lógica total (ou tentar) da celebração?

O processo do casamento pode ser algo que une mais o casal ou que gere

grandes tensões entre os dois. O casal Gade realizou as visitas aos locais e fornecedores

em conjunto, assim como as negociações contratuais. Ambos tinham direito a voz e

voto, e ambos utilizavam esse direito, as opiniões da noiva e do noivo foram levadas em

13

consideração em cada decisão. A indecisão dos dois se complementava, mesmo que

discórdias surgissem.

O casal Miyavi teve uma experiência diferente. O noivo Miyavi, partindo da

ideia “você é a estrela do dia” em relação à sua noiva, se isentou da obrigação de ser um

noivo presente no passo a passo do casamento. No comportamento desse casal está

exemplificado o senso comum de que casar é o sonho da mulher, o dia dela de ser

princesa, por isso é a noiva que tem que cuidar de cada detalhe e tomar decisões de

“estilo”, cabendo ao noivo ser rigoroso com o orçamento. Mas neste caso, o salário de

ambos estava financiando a cerimônia e festa. Acessórios populares, principalmente

camisetas, brincam com esse senso comum estampando “Game over” (fim de jogo) para

o noivo, o que reforça a construção social de que esse é, na verdade, “o dia mais

importante da vida” da noiva, o homem é uma figura indispensável, mas não central, e

deseja manter seu papel como coadjuvante principal.

Em Feiras de noivas há vários estandes de locais especializados no “dia da

noiva”, espaços em que ela relaxará e será arrumada para o grande momento, se

analisarmos com mais atenção os orçamentos, geralmente na última página também há a

opção do “dia do noivo”, com menos serviços oferecidos, uma fornecedora, ao me

abordar em uma Feira se eu já tinha escolhido o espaço para meu dia e ouvir em

resposta que, na realidade, nunca tinha prestado muita atenção a este aspecto do

processo do casamento, disse “nossa, como? É o dia do noiva!” e eu complementei “e

do noivo”, ela rapidamente “ah, sim, também, do noivo também, tenho opções para os

homens. Mas, de verdade, todo mundo presta atenção é na noiva, né?!”. O negócio do

casamento tem um público alvo insistentemente feminino.

Esta é uma questão que não pode ser simplificada como unilateral. É um padrão

de comportamento ensinado e reforçado socialmente desde a infância, a menina sonha

em encontrar seu príncipe encantado, a mulher realiza seu conto de fada em seu

casamento, mas ninguém ensina o menino a ser o príncipe e o homem se sente livre da

obrigação de lidar com preparativos do casamento. A escritora feminista Chimamanda

Ngozi Adichie, em uma entrevista para o jornal paulista O Estado de São Paulo,

14

apontou que ainda hoje são as mulheres que valorizam o casamento e o compromisso,

os homens não. Além disso, busca responder sobre generalização desse comportamento

afirmando que “a mensagem da mídia, hoje, é: „Como manter um homem‟, „Como

encontrar um homem‟. E mesmo que você seja uma superprofissional ou tenha uma

empresa, não está totalmente satisfeita de verdade até encontrar um homem. Essa é a

mensagem. Com os homens é diferente. Então, as mulheres são criadas para achar que

o casamento é muito importante. Os homens não.” 9. Seu interesse é como mudar esse

padrão de comportamento, o interesse desta pesquisa, refletindo sobre imaginários

construídos em relação ao casamento, é também explorar como essas ideias de noiva e

de noivo operam nos casos estudados.

Uma comunidade da rede social Facebook , Moça, você é machista, seguida por

mais de trezentas mil pessoas, compartilhou um conteúdo que provoca o outro lado do

estereótipo, comumente associado às “bridezillas” que já citamos, não coloca o

comportamento do homem em questão, mas o da noiva principalmente.

10

Um depoimento, que segue a imagem acima, de uma seguidora da página, criada

por uma educação machista que sempre a incomodou e que conheceu o movimento

feminista durante a graduação em psicologia, é mais um exemplo desta lógica ensinada

para mulheres e homens, do casamento reestabelecendo diferenças de gênero: "Tenho

26 anos e meu noivo 25. Nos casaremos ano que vem. Sempre que conto, todos ficam

felizes. Porém, meu noivo, quando conta, perguntam se ele não acha que é muito novo e

9 Entrevista disponível em http://blogs.estadao.com.br/sonia-racy/as-mulheres-sao-criadas-para-achar-

que-o-casamento-e-muito-importante/ 10 Disponível em:

https://www.facebook.com/photo.php?fbid=535573199868998&set=a.346412782118375.809

17.346411042118549&type=1&ref=nf

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dizem que deveria aproveitar mais a vida. O que mais me espantou foi uma mulher que

disse a ele pra ele aproveitar muito até o casamento, por que depois não poderia mais!

Meu noivo respondeu que o compromisso existe mesmo ainda não casado. Enfim. Pra

mulher, casar é sempre bom, nova ou velha. Somos úteis se esposas e só. Pro homem

não. Quanto mais aproveitar, melhor. Esse machismo entra em nossas vidas por tantas

vias que as vezes minha vontade é sumir e esquecer. Mas enquanto houver luta, eu

estarei de pé."

Como mostrado na imagem, diversos modelos de topos de bolo, item de

destaque na festa de casamento, representam as noivas como carrascas de noivos

desesperados para fugir. “Obrigatoriamente” toda mulher deveria ter que desejar se

casar, assim como todo homem deveria fogir deste compromisso. Dois estereótipos para

uma lógica que opera duas personagens, uma supostamente feminina e outra

supostamente masculina, ambos preciam ser rompidos.

A noiva Miyavi sentiu falta da presença do noivo para tomar conjuntamente as

decisões, principalmente porque ela não quer decidir nada que depois ele não goste.

Enquanto fomos fechar o contrato dos convites, a sogra acompanhou, mas o noivo foi

jogar futebol com os amigos. Ela ficou comentando o quanto estava chateada que o

noivo não estava lá e brincando com a sogra para que ela brigasse com o rapaz. Minutos

depois o noivo ligou, o tom da noiva mudou completamente, sua voz, muito amável,

nem citou o fato de estar chateada. No momento de assinar o contrato, ela ainda tirou

mais uma foto com o celular e enviou para o noivo, assim teria certeza que era isso

mesmo, que ele iria gostar de tudo. No mesmo dia, após alugarmos o vestido, noiva

Miyavi queria que seu noivo se juntasse ao grupo para escolher os itens da lista de

presentes do casamento. O noivo falou que iria sair para tomar umas cervejas com os

amigos e não poderia acompanhá-la. Mais uma vez a noiva ficou magoada, mas

justificava a ausência do noivo, quase que para ela mesma, “ah, é melhor deixar ele lá,

tudo bem, se ele vier vai ser pior, vai ficar emburrado, eu conheço ele, quando ele não

quer alguma coisa é melhor deixar para lá”.

Encantando e desencantando um universo romantizado

A pesquisa está sendo realizada entrelaçando cinco tecidos, refletindo sobre a

construção de imaginários através do acompanhamento de casais durante o processo e

na data do casamento, com entrevistas baseadas na técnica de folhear conjuntamente o

álbum de casamento, pela comparação entre noiva e debutante, por um olhar atento ao

16

circuito de serviços relacionados ao ramo de casamentos e através dos discursos

reproduzidos e reprodutores de filmes, programas de televisão sobre o tema e literatura,

principalmente contos de fada.

No decorrer da etnografia, são recolhidos informações e materiais que servem de

objeto para uma elaboração teórica posterior. É uma ferramenta útil para a compreensão

do modo como as pessoas veem a sua experiência. Assim como Ingold propõe,

antropólogos trabalham e estudam com pessoas (cf. Ingold, 2011), a imersão buscará

alcançar o imaginário construído pelas pesquisadas e pesquisados.

Uma importante técnica metodológica é a observação participante, com inserção

da pesquisadora nos grupos observados durante partes do processo de preparação para o

casamento e o dia da cerimônia em si. Uma das entradas no campo foi através da

participação como assistente de cerimonialista, para poder observar etapas da

preparação e os “bastidores” do grande dia. Também houve o caso de uma situação de

participação-observação, já que em um dos rituais de casamento observados, a

pesquisadora também foi madrinha dos noivos, já sendo parte integrante do grupo

observado, realizando uma participação profunda e integrada. Existe um conflito

relacionado à observação participante ativa, decorrente da prática de uma etnografia

verdadeiramente participante, se tenta evitar participar das mudanças ou mesmo

provocá-las. Também se coloca a pergunta: não correrá o investigador o risco de

introduzir os seus valores na situação que estuda, devido ao seu grau relativamente

elevado de implicação? Neste caso específico, já era conhecida a dificuldade da

pertença íntima ao grupo social observado, mas isso não condicionou ou enfraqueceu a

objetividade do processo investigativo, por isso este material rico em detalhes de

“bastidores” também faz parte da análise.

Partindo do método utilizado por Sylvia C. Novaes em “A construção de imagens

na pesquisa de campo em antropologia”, tendo em mente que as fotos podem

desencadear conversas cruciais para obter dados de pesquisa, motivando o assunto,

possibilitando introduzir questões, esclarecer dúvidas e colher depoimentos, as

entrevistas são realizadas baseadas na técnica de observar conjuntamente álbuns de

casamento, foto-elicitação. Um dos focos é, então, a fotografia, como memória, arte e

construção do ritual. O argumento da memória não está só na teoria visual, mas nas

negociações das feiras e estúdios.

É possível pensar nos álbuns de casamento como retratos de família. A partir da

reflexão de M. M. Leite sobre esses retratos, é importante pensar no processamento

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inconsciente de imagens, para além do processo mecânico, tanto de tirar, quanto de

olhar fotos. A autora diz que “ao olhar retratos, a pessoa que olha está sempre à

procura de uma relação entre ela e a imagem, cada uma verá parcelas e níveis

diferentes da fotografia”. Assim, a forma que eu, como pesquisadora, vejo as fotos de

um casamento, não será a mesma que a do fotógrafo profissional do ramo, e certamente

os noivos verão algo bem diferente, principalmente por se verem naquela imagem e a

relacionarem com suas lembranças e emoções do momento. Novamente pensando em

M. Leite, “o que ficou registrado pode não ser o que se quer reproduzir”. A fotografia

não só documenta este dia, ela o cria. O posicionamento, a luz, as poses, vários

elementos orbitam o processo de cobertura fotográfica do casamento.

A presença intrusiva de uma equipe de fotógrafos e filmagem parece um ruído na

sacralidade do altar no momento da benção religiosa. Entre noiva, noivo, celebrante,

madrinhas e padrinhos, fixos em suas posições no palco/ altar, circulam livremente os

fotógrafos, alterando o cenário em busca do melhor enquadramento e montagem. Para

aqueles que estão na plateia, os convidados, aquelas figuras de preto atrapalham a visão.

Aqueles que estão em seus papéis no altar têm que estar o tempo todo atentos a suas

expressões e posturas. Mas essa presença estranha já foi incorporada ao ritual, esse

elemento “paparazzo” reflete um imaginário de “estrelas de cinema” que noivas e

noivos alimentam. Esse ruído desaparece nos álbuns, a cerimônia é representada como

arte sem interferências. O fotógrafo ajuda a construir a memória, mas não será

lembrado.

As fotos de casamento costumam sugerir uma narrativa, evocando certos roteiros,

mais flexíveis na concepção moderna de fotojornalismo na cobertura de cerimônia e

festa, mas esse roteiro não é só do profissional, compartilha um imaginário sobre o que

deve ser documentado e então lembrado nesta celebração. A estética da moda também

está presente, principalmente nos retratos da noiva no making-of, como a preparação de

uma modelo antes do editorial. Essa etapa da maquiagem e de se vestir também mudou

no ritual de casamento, como uma mise-en-scene dessa etapa, a mulher virando “noiva”.

Em outras ocasiões, as mulheres se fecham para se maquiar e se vestir e só se mostram

prontas, mas neste novo conceito de fotografia de casamento, as noivas publicam esse

processo de produção. A maquiagem e roupagem perderam aquela atmosfera intimista e

“misteriosa”, do tipo a “noiva-só-pode-ser-vista-depois-de-pronta-senão-dá-azar”. O

ritual pode não ser declaradamente teatral, mas o casamento se coloca não como

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encenação, mas realidade ensaiada, com papéis e falas, figurinos próprios e cenário

elaborado.

11

L. Bittencourt, em “Algumas considerações sobre o uso da imagem fotográfica

na pesquisa antropológica, aponta a ambiguidade da imagem fotográfica, que se

encontra na tensão entre realismo e não realismo inerente ao processo de criação e

interpretação da fotografia, afirma que “a imagem fotográfica produz uma síntese

peculiar entre o evento representado e as interpretações construídas sobre ele”. Desta

forma se colocam tanto a captação de imagens no casamento por profissionais, que

seguem mais ou menos flexivelmente um roteiro baseado em momentos “tradicionais”,

fotos que todo álbum de casamento deve ter, quanto as imagens feitas pelos convidados

e por fim a imagem construída por aqueles que participam do ritual sobre si mesmos.

Bittencourt também aponta outra questão fundamental ao nosso objeto, a imagem

indica não só uma memória que lhe é intrínseca, mas também evoca uma memória que

lhe é externa, a memória do expectador. Ver e rever as fotos do casamento se torna uma

continuação do ritual, uma etapa que não se limita, que faz aquele dia circunscrito e

limitado temporal e espacialmente extrapolar essas fronteiras e se tonar “eterno”.

A fotografia de casamento é um instrumento de análise e pesquisa que se mostra

muito frutífero para a busca da forma como se constrói imaginários sobre esse ritual.

Como Bittencourt afirma, elucidam experiências sociais como formas de prática

simbólica, no processo imagético, processo de atribuição de significados produzidos

11

Making-of noiva Gade.

19

pelos atores sociais, pensando também na negociação de sentidos. Em “A fotografia e a

vida cotidiana: ocultações e revelações”, J. S. Martins afirma que o ato fotográfico é

construção imaginária, como conjunto narrativo de histórias, assim como no álbum de

casamento, se propõe como memória dos dilaceramentos, como recordação do que não

retornará. Também coloca que “a fantasia é um dado fundante da identidade”, assim, a

noiva que se fantasia de princesa, está construindo uma imagem de si especialmente

para “seu grande dia”, que reflete um imaginário romântico compartilhado desde a

infância, assim como a debutante.

O trabalho com outras imagens, além dos álbuns, tal como obras

cinematográficas e programas televisivos sobre casamento é estímulo para ampliar a

reflexão e a investigação, constituindo o último tecido metodológico desta pesquisa.

Considera-se que esses filmes e programas são da maior importância para a constituição

de imaginários sociais e também universo compartilhado das noivas e famílias

envolvidas na pesquisa, por sua ampla inserção social e possibilidades de reflexão. A

literatura também é uma fonte muito importante para uma pesquisa que tem como foco

alcançar imaginários, no caso do ritual do casamento, os contos de fada e a imagem de

“princesa” são fundamentais para esta construção, desde a infância, principalmente para

as mulheres. Folheando um álbum promocional em um estande de local para realização

de cerimônia e festa, que, aliás, busca imitar a arquitetura de um castelo, visualizei uma

frase que resume esse encantamento construído: “Seu dia, seu conto de fadas”.

12

12 Foto esquerda: Cena do filme Noivas em Guerra. Foto central: Casamento temático

Princesas Disney realizado em Missouri, EUA. Reportagem disponível no blog

http://geekiss.com/2013/07/casamento-princesas-disney/#comments. Foto direita: Boneca

Disney princesa Ariel noiva e príncipe Eric

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Referências bibliográficas

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configurações”. (In: Psicologia: Ciência e Profissão, vol. 22, n°2, Brasília, junho de

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de gênero em uma etnografia com crianças”. 2012. Dissertação (Mestrado em

Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,

Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012. Disponível em:

http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8134/tde-08012013-124856

CAIUBY NOVAES, Sylvia: “A construção da imagem na Pesquisa de Campo em

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Contos de fadas: edição comentada e ilustrada. (Rio de Janeiro, Zahar, 2004,

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