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A CRITICIDADE POR MEIO DA ARTE: UM RELATO DE EXPERIÊNCIA Juliana Tiburcio Silveira Fossaluzza – FCL – UNESP 1 Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota e adiar para outro século a felicidade coletiva. Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan. (Trecho do poema Elegia 1938, de Carlos Drummond de Andrade) RESUMO O presente trabalho se refere a um relato de experiência, de uma atividade que está relacionada a uma disciplina de artes que é desenvolvida junto aos alunos de um 4º ano de um curso de Licenciatura em Pedagogia, de uma Universidade localizada no estado de São Paulo. Estes alunos, por meio de suas criações artísticas, de elegias, expressaram com criticidade as contradições da sociedade em que vivem, com sentimentos de angústia, tristeza, e, até mesmo, de impotência frente à realidade social em que estão inseridos. Como estudantes e futuros professores, estes atuaram como autores, produtores, criadores, estiveram livres para criar uma nova realidade por meio da arte, e assim o fizeram. Palavras-chave: arte; capitalismo, criticidade; emancipação humana. 1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da Faculdade de Ciências e Letras – FCL - UNESP – campus de Araraquara-SP.

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Page 1: A CRITICIDADE POR MEIO DA ARTE: UM … CRITICIDADE POR MEIO DA ARTE: UM RELATO DE EXPERIÊNCIA Juliana Tiburcio Silveira Fossaluzza – FCL – UNESP 1 Coração orgulhoso, tens pressa

A CRITICIDADE POR MEIO DA ARTE: UM RELATO DE EXPERIÊNCIA Juliana Tiburcio Silveira Fossaluzza – FCL – UNESP1

Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota e adiar para outro século a felicidade coletiva.

Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.

(Trecho do poema Elegia 1938, de Carlos Drummond de Andrade)

RESUMO O presente trabalho se refere a um relato de experiência, de uma atividade que está relacionada a uma disciplina de artes que é desenvolvida junto aos alunos de um 4º ano de um curso de Licenciatura em Pedagogia, de uma Universidade localizada no estado de São Paulo. Estes alunos, por meio de suas criações artísticas, de elegias, expressaram com criticidade as contradições da sociedade em que vivem, com sentimentos de angústia, tristeza, e, até mesmo, de impotência frente à realidade social em que estão inseridos. Como estudantes e futuros professores, estes atuaram como autores, produtores, criadores, estiveram livres para criar uma nova realidade por meio da arte, e assim o fizeram. Palavras-chave: arte; capitalismo, criticidade; emancipação humana.

1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da Faculdade de Ciências e Letras – FCL - UNESP – campus de Araraquara-SP.

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INTRODUÇÃO

Este trabalho objetiva apresentar um relato de experiência, de uma

atividade relacionada à arte, que foi vivenciada de forma surpreendente pelos alunos

de um 4º ano de um curso de Licenciatura em Pedagogia, de uma Universidade

localizada no estado de São Paulo.

A arte se manifesta por diferentes formas (artes visuais, música, dança,

teatro, etc.), seu conteúdo é vasto e complexo, assim, a disciplina de artes do curso

mencionado no parágrafo anterior dispõe de aproximadamente cinco meses para ser

desenvolvida, fato que representa um desafio, e é ministrada por uma pedagoga e

doutoranda, que possui a difícil tarefa de selecionar conteúdos e metodologias

voltados à arte e a serem ensinados aos alunos.

Neste sentido, parte-se do princípio que a arte necessita ser vivenciada,

experienciada pelos futuros pedagogos, que atuarão como professores, tanto na

Educação Infantil, como nos anos iniciais do Ensino Fundamental, e somente poderão

proporcionar atividades autênticas relacionadas à arte, uma vez que eles

compreendam a importância deste conteúdo/ instrumento como mediação, como

forma de propiciar o desenvolvimento das potencialidades humanas de seus alunos.

Diante desta situação, o intuito da referida disciplina não é formar técnicos

especializados em artes, e nem que estes formem alunos “artistas” no desenrolar de

sua prática docente no âmbito escolar, tal fato seria impossível, e, sim, colocá-los em

contato com a arte, de maneira que criem uma nova realidade (Kosik, 2011) por meio

da expressão artística e corporal.

Foi o que os alunos de um 4º ano de Pedagogia fizeram. A atividade que

será relatada a seguir propiciou uma riqueza de expressão artística e de criticidade

pelos estudantes do curso supracitado, pois estes não pouparam esforços e criaram

uma nova realidade por meio da arte, de maneira crítica e criativa. Tiveram liberdade

para se expressarem, e assim o fizeram.

DESENVOLVIMENTO

É possível produzir arte de forma crítica na sociedade contemporânea?

Conciliar arte e criticidade? Como aproximar a arte do trabalhador, um instrumento

apropriado pelo capitalismo, tomado como propriedade privada e transformada em

mercadoria, estas questões são os desafios enfrentados no desenvolver de uma

disciplina de artes oferecida aos alunos de um curso de Licenciatura em Pedagogia,

numa Universidade que está localizada no estado de São Paulo.

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A criticidade aqui entendida é tomada a partir da tradição marxista2, a

perspectiva teórica adota pelo presente trabalho. A crítica, neste sentido, é radical

porque toma como raiz, como entendimento da realidade social e a forma como esta é

construída, o próprio homem. “Ser radical significa agarrar a questão pela raiz. Mas a

raiz é, para o ser humano, o próprio ser humano” (MARX, 2010, p.44). Ou seja, o

homem, como ser histórico-social, é quem constrói a realidade em que vive, por meio

de sua atividade vital, o trabalho. Este é nosso ponto de partida, dado que a partir do

posicionamento teórico adotado não poderíamos iniciar nossa discussão a não ser a

partir da centralidade do trabalho.

Dado que vivemos numa sociedade que conserva em sua essência a

desigualdade socioeconômica, e que visa tão-somente o lucro, e não o autêntico

desenvolvimento das potencialidades humanas, reconhecemos que mesmo em

condições contraditórias, sob o capital, há conhecimento científico sendo produzido,

assim como há certo grau de humanização, porém é necessário observarmos em que

condições este mesmo conhecimento vem sendo produzido, por quem tem sido

apropriado, e de que maneira este conhecimento tem sido socializado nesta ordem

social, pois se trata de uma sociedade cindida em classes, estruturada por meio de

uma complexa divisão social do trabalho, que se reproduz a partir do trabalho

assalariado. Esta reprodução se dá de forma mediada, e não imediata, mecânica, por

isso, é pertinente delinearmos em linhas gerais, o movimento desse fenômeno, o

capitalismo, e o desenvolvimento da arte no atual contexto histórico-social.

Para Lukács3,

A característica principal da organização social capitalista deveria ser buscada então no fato de que a vida econômica deixou de ser um instrumento para a função vital da sociedade e se colocou no centro: se converteu em fim em si mesmo, o objetivo de toda a atividade social. A primeira conseqüência, e a mais importante, é a transformação da vida social em uma grande relação de troca; a sociedade em seu conjunto tomou a forma de mercado. Nas distintas funções da vida, tal situação se expressa no fato de que cada produto da época capitalista, como também todas as energias dos produtores e dos criadores, reveste a forma de mercadoria. Cada coisa deixou de valer em virtude de seu valor intrínseco (por exemplo, valor ético, valor artístico): tem valor unicamente como coisa vendável ou adquirível no mercado. Tudo o que este realizou destrutivamente sobre toda a cultura - expressando-se esta seja em atos, em criações de obras de arte, ou em instituições - é algo que não exige análises ulteriores. Da mesma maneira que a independência dos homens das preocupações de sustento e a livre utilização de suas próprias forças

2 Sobre este posicionamento ver Netto (2006).

3 Citação se encontra no texto Velha e Nova cultura disponível em: <https://www.marxists.org/portugues/lukacs/1920/mes/cultura.htm>. Acesso em abr. 2014.

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como fim em si são a condição humana e social preliminar da cultura, assim tudo o que a cultura produz pode ter valor cultural autêntico só quando tem valor para si. No momento em que assume o caráter de mercadoria e entra no sistema de relações que o transforma em mercadoria, cessa ainda sua autonomia, a possibilidade da cultura.

De acordo com a citação anterior, a partir do capitalismo, a produção

material, no sentido econômico, como algo dado, torna-se a premissa básica e

essencial, em que tanto o trabalhador, como o próprio capitalista, se encontram

subjugados às relações contraditórias e desiguais de produção, relações estas

firmadas a partir de um contrato, em que ambas as partes são tomadas, do ponto de

vista jurídico-político, como “iguais” e “livres”4, porém a maior parte do que é produzido

socialmente, agora produzido em larga escala, graças ao desenvolvimento da

indústria, será apropriada injustamente pelo proprietário dos meios de produção, o

capitalista. Sem dúvida, este novo sistema – o capitalismo - exigirá novos meios,

instituições que de forma mediada venham a permitir a reprodução da vida de forma

cada vez mais alienada.

Consequentemente, a própria cultura e a arte, que estão subsumidas a

este sistema contraditório, sofrem deformações. Pois, tal como menciona Lukács no

texto supracitado, para o desenvolvimento da cultura é necessário que os homens se

encontrem livres das preocupações do sustento, o que não observamos na forma de

sociabilidade atual.

Enquanto cidadãos, trabalhadores, submetidos a uma forma de trabalho

que nos desgasta, no pouco tempo livre que nos resta, acabamos, muitas vezes, nos

objetivando em formas de lazer que não favorecem o desenvolvimento de nosso

potencial criativo. Ou seja, não escolhemos (consciente ou inconscientemente) nos

apropriarmos, em determinadas circunstâncias, de atividades artísticas que poderiam

propiciar o desenvolvimento de nosso potencial humano, queremos, tão-somente, o

descanso, o esquecimento, por alguns instantes, dias, e até mesmo, semanas, de

nosso dia a dia corriqueiro, alienante. Na atual sociedade em que vivemos é muito

mais fácil recorrermos à TV, a um passeio ao shopping center, por exemplo, do que

nos dedicarmos a atividades artísticas (espetáculos de dança, teatro, concertos de

música, etc.), sem falarmos no acesso das diferentes classes sociais a estas mesmas

atividades.

4 Sobre a reivindicação da igualdade e da liberdade pela classe burguesa como meio para assegurar seus interesses contra a ordem feudal, e firmar o capitalismo como sistema econômico dominante, ver em Engels (1974) em Anti-Dühring.

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Lukács em seu artigo Velha e Nova cultura também discorre sobre a moda,

que se contrapõe à cultura, em que novos produtos necessitam ser, constantemente,

desenvolvidos e produzidos em larga escala, e, neste sentido, tudo que é fabricado

por meio do trabalho assalariado se transforma em mercadoria, seu valor-de-uso é

subsumido pelo valor-de-troca. Até mesmo quem se dedica às artes, encontram-se

submetido às exigências do mercado de consumo, assim como da moda.

Nesse sentido, a obra de arte não deve ser criada para ser consumida, a

obra de arte é criação única do indivíduo-criador, por meio dela é criada uma nova

realidade social, a obra é patrimônio do gênero humano, pertence à história da

humanidade, e não lhe deve ser atribuído um valor monetário, sendo assim, esta

relação não deve ser mediada pelo dinheiro, seu valor-de-uso não deve ser subsumido

pelo valor-de-troca, caso contrário, ao valor artístico se sobrepõe a apropriação pela

classe que domina. Trata-se de uma mediação que reproduz as relações sociais a

partir da propriedade privada. O consumo, a apropriação privada não pode ser

equivalente à apreciação da obra, que pertence à universalidade, ao gênero humano.

Segundo Kosik (2011, p.128-129, grifo do autor), “Sendo obra e sendo arte

ela reconhece a realidade e ao mesmo tempo, em unidade indissolúvel com tal

expressão, cria a realidade, a realidade da beleza e da arte”. Este foi o conceito de

arte, em que o criador, o homem, sujeito histórico-social, que cria a realidade a partir

do trabalho, foi apresentado e discutido junto aos alunos de um 4º ano de um curso de

Licenciatura em Pedagogia.

Estes alunos certamente acumularam algum conhecimento ao longo dos

anos do referido curso, possuem algum grau de consciência acerca da realidade social

em que vivem. Portanto, em certa medida já possuem criticidade, inclusive, uma

criticidade que aponta para o ponto de vista da tradição marxista.

Sendo assim, o grande desafio da disciplina é aproximar os alunos da arte,

aproximá-los no sentido de eles serem os criadores, e, ao mesmo tempo, criadores

conscientes das contradições de uma ordem social essencialmente desigual, mas que

possam compreender a arte também como um instrumento que auxilia no

desenvolvimento das potencialidades humanas5.

Sabemos que este desenvolvimento sob a atual forma de sociabilidade em

sua plenitude não é possível, mas há meios, estratégias que podem e devem ser

criadas e incentivadas para que por meio da educação escolar, especificamente, por

meio da relação arte e educação, possamos, minimamente, colaborar para o

5 Peixoto (2006), em seu artigo Arte e educação política: resistir, sim!, faz uma interessante discussão neste sentido.

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desenvolvimento do potencial humano de nossos educandos. Esta questão também

tem sido bastante ressaltada aos alunos do curso supracitado. A educação se dá entre

seres humanos, entre professor e aluno, mediados pelo conhecimento, neste caso,

mediados também pela arte.

Num primeiro momento da disciplina mencionada, antes da discussão do

conceito de arte em Kosik (2011), foram apresentados três episódios da série Obra

Revelada6, no primeiro deles, um trabalhador da Pinacoteca do Estado de São Paulo,

que demora cerca de uma hora de trem, todos os dias, para chegar ao seu local de

trabalho, apresenta sua obra preferida Ventania (1888) de Antônio Parreiras, e faz

uma apresentação, uma apreciação emocionante, em que estabelece relações entre a

referida obra e suas condições de vida, esta leitura da obra de arte escolhida pelo

trabalhador Edilson de Souza é acompanhada pelo Prof. Jorge Coli.

Neste sentido, foi chamada a atenção dos alunos, e alguns deles

perceberam que não se tratava de um curador, de um especialista em arte para

discorrer acerca de uma obra específica, mas, sim, de um trabalhador.

Os alunos também assistiram ao segundo vídeo, da mesma série, onde é

mostrada, pelo referido professor, a estátua de Drummond no calçadão (2002), criada

pelo escultor mineiro Leo Santana, que se encontra na orla de Copacabana, na cidade

do Rio de Janeiro-RJ, fazia também parte do documentário, a artista e convidada, Elke

Maravilha, que declama o poema Elegia 1938, de Carlos Drummond de Andrade. Em

seguida, conversamos sobre o que é uma elegia.

Neste sentido, no decorrer das aulas, foram propostas outras atividades,

apreciações de algumas obras de arte, tal como, A Idiota (1991), do artista Iberê

Camargo, que é também parte do terceiro documentário da série Obra Revelada, e a

própria discussão do texto já mencionado (KOSIK, 2011), e aos alunos foi então

proposta uma atividade desafiante, que se tratava da criação de elegias, com o intuito

de que vivenciassem o processo de criação, que criassem novas realidades a partir de

diferentes linguagens artísticas (teatro, dança, artes plásticas, fotografia, vídeos, etc.),

essas criações poderiam ser produzidas individualmente, em duplas, ou em grupos,

desde que criassem livremente, que fossem produtores/ autores de suas próprias

obras. O resultado superou todas as expectativas.

No que se refere ao perfil dos alunos da sala de aula do curso, verificamos

que a turma é composta em sua maioria por alunas, e apenas quatro alunos, num total

de 40 estudantes, estes, de modo geral, encontram-se numa faixa etária que varia

6 Série de documentários produzida pela instituição Itaú Cultural, sob a consultoria de Jorge Coli, professor titular de História da arte e da cultura da Universidade de Campinas (Unicamp).

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entre 20 e 40 anos de idade, sendo que grande parte é provável que esteja

concentrada entre 20 e 30 anos. Estes alunos também tiveram ao longo de suas vidas

algum envolvimento, alguma vivência com a arte, e o resultado dos trabalhos

apresentados foi além do esperado.

Os educandos, em sua maioria, optaram por trabalhar em grupos. Alguns

saíram por suas cidades, pelas ruas e fotografaram cenas do cotidiano, procuraram

captar imagens que representam o descaso do Estado com o espaço público,

capturaram a imagem de buracos nas ruas, pessoas abandonadas; houve um grupo

que fotografou as “grandes muralhas” que cercam os condomínios fechados, o que

também representa as pessoas, as famílias que se isolam dentro da própria cidade em

que vivem; abaixo há a foto de um patrimônio público - uma fonte – que foi cercada

por grades, para impedir o acesso de moradores de rua, que residem numa praça de

uma cidade do estado de São Paulo.

Imagem 1 – Fotografia em preto e branco retirada por alunas de moradores de rua

Imagem 2 – Fotografia de patrimônio público – a fonte - cercado por grades

Outra aluna capturou imagens de pessoas caminhando em shoppings

centers, com objetivo de explicitar o individualismo, o consumo, a solidão em meio à

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multidão, ao fundo do vídeo, ela compôs uma canção instrumental, como trilha sonora;

noutro trabalho, o sentimento de solidão também aparece e foi representado por meio

de uma fotografia encenada, um ambiente intencionalmente montado, obscuro, com

uma cadeira, apenas uma, que era possível imaginar que alguém acabara de sair

daquele lugar, uma garrafa de bebida, improvisada, deixada ao chão, e, ao lado, um

vaso de flores de plástico, um ambiente, vazio, sombrio, uma foto em preto e branco.

Outros alunos também compuseram poemas; houve um grupo que representou

sincronicamente a música Elegia, interpretada por Caetano Veloso, mas que foi lida

por um de seus integrantes. Outra estudante, com aproximadamente 40 anos de

idade, declamou seu poema, demonstrando com sofrimento, angústia e sentimento de

impotência, o que caracteriza a elegia, a sua falta de tempo frente sociedade em que

vive. Um tempo que é roubado pelo capital.

Já outras alunas trabalharam com artes plásticas e criaram a tela abaixo,

que representa o indivíduo alienado, sua cabeça foi feita com uma caixa de fósforos,

criando um efeito tridimensional, e aponta, neste caso, a influência das mídias,

especialmente, da televisão, no sentido de reproduzir as ideias da classe que domina

no espectador, que assiste passivo, impotente, a programas alienantes, que se

justificam como sendo uma opção de lazer e entretenimento aos trabalhadores.

Imagem 3 – A elegia por meio das artes plásticas, produzida por alunas do curso

Assim, neste relato, expusemos apenas alguns dos trabalhos produzidos,

pois como se trata de uma apresentação recente, os alunos optaram por guardar suas

criações consigo, e, grande parte, até o momento de elaboração deste texto, ainda

está encarregada de enviar os registros de suas apresentações.

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No entanto, é possível observarmos nas produções de alguns grupos, aqui

expostas, a contradição da sociedade capitalista, e que a sociedade contemporânea

na qual vivemos foi (re)criada de forma livre, e cada um à sua maneira, a seu modo,

vivenciou a arte.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O relato de experiência mostrado no decorrer deste trabalho, foi, sem

dúvida, uma vivência exitosa, no entanto, a partir de situações como essa podemos

pensar de que maneira, por meio da educação escolar, enquanto professores, é

possível propiciar situações, atividades que possam, de algum modo, favorecer o

desenvolvimento da sensibilidade, da criatividade, da imaginação do ser humano.

Sabemos que numa sociedade como na qual vivemos, uma educação

escolar organizada a partir da perspectiva da emancipação humana é algo impossível,

já que a educação está sob a totalidade social, e entendemos que não é a escola que

modifica a sociedade, e sim o contrário, é a ordem social que interfere na configuração

do sistema de ensino, por fim, da instituição escolar.

Por outro lado, sabemos que ainda há certa autonomia no desenvolver da

prática docente, não podemos ser apenas dependentes do material didático, por

exemplo, é possível e necessário ir além dele. Este além pode ser compreendido

como a contribuição que uma concepção teórico-filosófica pode oferecer e auxiliar na

construção de uma visão crítica de mundo.

Nesse sentido, vimos que com a arte não é diferente, algum conhecimento

da tradição marxista por parte da professora responsável pela disciplina já

mencionada, é um dos fatores determinantes e que influencia no processo de seleção

e ensino dos conteúdos, mesmo que estes estejam relacionados à arte.

E os alunos não responderam às respectivas aulas de outro modo. Por

meio de suas elegias, eles criaram uma nova realidade crítica, pois nos trabalhos

apresentados, os alunos (re)produziram as contradições da sociedade capitalista: o

descaso com o bem público por parte do Estado, o individualismo, o consumo

exacerbado, a alienação, o sentimento de impotência, angústia, tristeza que

caracteriza uma elegia, foi explicitado por meio de suas criações.

Sendo assim, é possível conciliar arte, educação e criticidade, e uma aula

não é feita somente por professores, ou só por alunos, uma aula é feita por ambos,

num processo que deve propiciar o desenvolvimento de relações sociais num sentido

mais humano, e a arte pode ser um forte componente/ instrumento à prática educativa.

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Não acreditamos ingenuamente que a realidade social será transformada

apenas pela via da educação escolar, ou somente pela arte, mas estes instrumentos,

certamente, são necessários como contraponto, como embate às relações alienadas,

que, por outro lado, estão cada vez mais preenchidas pelo consumo desenfreado, que

é fundamental para a reprodução do próprio capitalismo.

Professores e alunos mais conscientes de sua realidade social são, sem

dúvida, um fator importante, não único e determinante para transformar o capital, não

podemos ser idealistas, mas tal fator pode auxiliar na luta por uma sociedade justa,

igual, mais humana.

REFERÊNCIAS

1. ANDRADE, C. D. Elegia 1938. Disponível em: <http://www.jornalopcao.com.br/posts/opcao-cultural/a-contemporaneidade-de-elegia-1938-de-carlos-drummond-de-andrade>. Acesso em: abr. 2014.

2. ENGELS, F. Anti-Dühring; tradução de Isabel Hub Faria – Teresa Adão. Lisboa: Fernando Ribeiro de Mello/ Edições Afrodite, 1974. 398p.

3. ITAÚ CULTURAL. Edilson de Souza: Obra Revelada. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=g_3dlQRn_wc>. Acesso em: abr. 2014.

4. ITAÚ CULTURAL. Elke Maravilha: Obra Revelada. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=P42bDpAGuu8>. Acesso em: abr. 2014.

5. ITAÚ CULTURAL. Fabrício Carpinejar: Obra Revelada. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=AsTwTfQCbbo>. Acesso em: abr. 2014.

6. KOSIK, K. Dialética do concreto; tradução de Célia Neves e Alderico Toríbio, 9ª reimpr. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 2011. 250p.

7. LUKÁCS, G. Velha e Nova cultura. Disponível em: <http://www.marxists.org/portugues/lukacs/1920/mes/cultura.htm>. Acesso em: abr. 2014.

8. MARX, K. Contribuição à crítica do direito de Hegel: introdução; tradução de Lúcia Ehlers. 1.ed. São Paulo: Expressão Popular, 2010. 56p.

9. NETTO, J. P. O que é marxismo. 1ª reimpr. da 9. ed. São Paulo: Brasiliense, 2006. (Coleção primeiros passos). 84p.

10. PEIXOTO, M. I. H. Arte e educação política: resistir, sim! Disponível em: <http://www.embap.pr.gov.br/arquivos/File/anais4/maria_hamann.pdf>. Acesso em: abr. 2014.