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Reacção e compromisso no fim-de-século: o primeiro surto de tendências neo-românticas

Autor(es): Pereira, José Carlos Seabra

Publicado por: Universidade Católica Portuguesa, Departamento de Letras

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MÁ THESIS 5 1996 365-394

REACÇÃO E COMPROMISSO NO FIM-DE-SÉCULO: O primeiro surto de tendências neo-românticas.

JOSÉ CARLOS SEABRA PEREIRA

Quando em 1975 publiquei Decadentismo e Simbolismo na Poesia Portuguesa, e mesmo quando depois se generalizou o acolhimento do constructo histórico-literário ali proposto, nem todos reconheceram ou compreenderam que, de acordo com os fundamentos teóricos e a perspectiva metodológica dos estudos de periodologia literária, a minha tese não pretendia consequentemente dar um quadro exaustivo - nem na vertente do inventário diacrónico, nem na vertente da definição e ilustração textual dos sistemas estético-literários - de toda a poesia do fim-de-século (e ainda menos de toda a sua vida literária). Pretendia explicitamente, pois, historiar, descrever e interpretar a dominante do dinamismo estrutural do período literário, isto é, o Decadentismo e o Simbolismo como estilos epocais prevalecentes, mas não exclusivos; e, ao mesmo tempo, assinalava que, em posição secundária, actuavam também no mesmo período outras tendências estético-literárias - umas, remanescentes do período anterior (Realismo, Naturalismo, Parnasianismo), outras só então emergentes (embora com variáveis relações com a tenaz tradição de literatura menor romântica).

Tratava-se, neste último caso, de certas tendências neo-românticas, que, aliás, ao longo de Decadentismo e Simbolismo na Poesia Portuguesa, várias vezes eram referidas nas discrepâncias dos periódicos, nas alternativas dos textos programáticos, nas inflexões ou contrapontos das obras poéticas. Ficava apontado, em suma, um surto finissecular de tendências neo­românticas - mais policêntricas que heterogéneas, mais convergentes que díspares, no seu comum lusitanismo.

Já então eu entendia que se impunha refazer e aprofundar o estudo desse policêntrico surto de Neo-Romantismo lusitanista no fim-de-século. De facto, até então episódico e lacunar, esse estudo ressentira-se sempre da hiperbolização de uma das suas tendências (o neogarretismo promovido por Alberto de Oliveira e cuja designação ainda hoje se vê extrapolada para

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indevidamente denominar toda a componente neo-romântica da literatura finissecular). Mas ressentira-se também do deficiente enfoque das suas características e das suas ilustrações textuais paradigmáticas (o Só de António Nobre, na lírica, e Os Meus Amores, de Trindade Coelho, na narrativa) fora das correlações reactivas com o Decadentismo e o Simbolismo, na dinâmica hegemónica do período e na estruturação global daquelas obras exemplares. Mesmo quando surgira, através de Augusto da Costa Dias, uma alteração qualitativa no estudo desses paladinos do Neo­Romantismo lusitanista, a proficiente consideração do «Nacionalismo literário» da Geração de 90 como manifestação artística da Crise da Consciência Pequeno-Burguesa viu a sua pertinência interpretativa afectada pelas injunções de um modelo de análise ideológica que se revelava ora unilateral (para Alberto de Oliveira), ora desajustado (para Trindade Coelho), ora nocivo à evidenciação da excelência poética (para António Nobre).

Desde então defendi, em passos de vários trabalhos, que a visão histórica e crítica do fim-de-século deveria actualizar-se pela compreensão da confluência sistémica das suas várias propostas neo-românticas (apesar das diferenciações nominais e circunstanciais) e pela compreensão de que, nessa confluência, elas emparelhavam (mas em dissidência compensatória) com os esteticismos decadentista e simbolista na oposição à modernidade científica, técnica e sociológica oriunda do Iluminismo: enquanto Deca­dentismo e Simbolismo se lançavam nesse litígio em nome do dissídio baudelairiano entre tal modernidade e a autotélica modernidade artística, aquelas tendências neo-românticas moviam-lhe oposição pelas peculiares motivações do seu heterotelismo afectivo, moralizante e nacionalizante (a caminho do seu desenvolvimento e do seu papel hegemónico no primeiro quartel do século XX).

Julgo já ter dado, entretanto, algumas contribuições ensaísticas para um renovador estudo do surto finissecular de tendências neo-românticas lusitanistas. Mas tenho mantido inédito o texto de uma englobante conferência que lhe dediquei em Viseu, no quadro da minha respon­sabilização pelo ensino da Literatura Portuguesa no pólo local da Universidade Católica - justamente quando, em conjunção com a sábia orientação académica do saudoso Prof. Doutor Júlio Fragata, S. J., Monsenhor Celso Tavares da Silva actuava in loco como inexcedível impulsionador e figura tutelar da implantação desse pólo universitário viseense ... e encontrava ainda generosa disponibilidade para acompanhar e acalentar os meus gostos e esforços intelectuais.

É essa conferência que aqui publico, em singela homenagem à nobreza humana e à lucidez cultural de Monsenhor Celso Tavares da Silva.

1. As manifestações doutrinárias do Neo-Romantismo lusitanista são

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antecipadas pela difusão do teatro de inspiração histórica e do teatro que, com ou sem essa inspiração histórica (pense-se nas comédias de Fernando Caldeira e nos "dramas íntimos" de Schwalbach), é de exaltação sentimental e com traços retóricos, pitorescos e patrióticos que só se integram coerentemente dentro das suas coordenadas estéticas e ideológicas. Este teatro constitui, portanto, e ao contrário do que por vezes se tem deixado supor (na esteira da designação consagrada de drama histórico), mais do que uma ilustração antecipatória e desgarrada de um dos seus vectores. Constitui a sua verdadeira tradução no drama enquanto forma natural da literatura - como noutra forma natural da literatura o são narrativas de Lopes de Mendonça e de Júlio Dantas, mais tarde de D. João de Castro e Antero de Figueiredo ... e, logo, a prole romanesca de Campos Júnior.

Este Neo-Romantismo revela-se efectivamente poligenésico; e surge, durante todo o último decénio de Oitocentos, partilhado em correntes ou grupos ou tendências que, não clarificando essa sua condição de parentes de uma farrn1ia literária, se combatem (v.g., Manuel da Silva Caio contra Alberto de Oliveira), ou se disputam, ou se sobrepõem (Trindade Coelho após Palavras loucas) sob designações diferentes - neo-Iusitanismo, neo­garretismo, nacionalismo literário, novolusismo, etc. Todavia, sob todas as erupções suas se pode descobrir a mesma constelação de motivações; e desde os primórdios da erupção teatral se podem encontrar - sobretudo na obra de Silva Caio - manifestações líricas e narrativas do Neo-Romantismo lusitanista.

Mais radicado, naturalmente, no húmus da realidade portuguesa do que o Decadentismo e o Simbolismo - assim se queria doutrinariamente e assim o possibilitavam as nossas condições sociais, culturais e literárias -, o Neo-Romantismo lusitanista aparece mais desprendido de correlações com os seus equivalentes estrangeiros; e, ao contrário do que acontece com os pátrios Decadentismo e Simbolismo, a sua difusão precede a dos movimentos gauleses correspondentes.

Na década de 90, o Neo-Romantismo lusitanista deflagra, quer teoricamente (com destaque para as Palavras loucas de Alberto de Oliveira), quer liricamente como faceta secundária ou fase esporádica de obras predominantemente decadentistas (Só de António Nobre, O Morgadinho de D. João de Castro, Saudades e O jardim da M01le de Júlio Brandão, Náufrago e O Poeta Saudade de Afonso Lopes Vieira, Partindo da Terra de Antero de Figueiredo, etc.). Enquanto tal, responde à crise de espírito e de sensibilidade decadentista e começa por evidenciar o vector ruralista; daí, via casticismo e tradicionalismo, assume quer os caracteres ligados a uma diferente reacção mental anti-positivista, quer os postulados e as consequências da defesa do génio autóctone e do popu­larismo estético.

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Pois também se deve compreender que a meio da década de 80 se dá um fenómeno que ainda em 1898 Lopes Vieira evidenciará no Náufrago. Versos lusitanos: o Neo-Romantismo lusitanista deflagra no teatro, evidenciando o vector historicista e de exaltação patriótica, como resposta a outro aspecto (e o aspecto mais nacional) das motivações que já então segregavam o Decadentismo - o sentimento agónico do destino da Pátria, coroando ou obliterando a consciência da crise das instituições políticas e do sistema burguês, a que todos os quadrantes ideológicos procuram reagir com a corrida aos Centenários e com a doutrina da expansão ultramarina. Mas, na verdade, esse teatro de evocação historicista, de retórica emocional, de exaltação patriótica e de idealização sentimental, tem desde início (e sobretudo depois do Ultimatum e do multiforme ímpeto de desagravo) acompanhamento lírico e narrativo.

Se atentarmos nas primeiras produções de Manuel da Silva Gaio -sem as deformarmos por uma sobrevalorização das consequências da sua integração numa geração de iniciativas académicas com orientação realista e pamasiana (a Revista Literária e Científica, de António Feijó e Luís de Magalhães, por exemplo), mas na realidade "intervalar", como marcou Pedro da Silveira -, aí vemos uma vultuosa conjunção de princípios e de tópicos do Neo-Romantismo lusitanista ser ilustrada na novela Pecado Antigo (1893), na crítica impressionista de Um Ano de Crónica (1888) e sobretudo em poesia, desde o poemeto Ao génio (1881), contribuição para celebrações do centenário camoniano, até à recolha das suas Primeiras Rimas (1887) e às Canções do Mondego (1892).

Também Luís Osório, apesar de mais estruturalmente marcado por um discursivismo realisto-pamasiano, ilustrava desde 1884, com os "contos e apoteoses" em verso que em 1890 reunirá nos Poemas portugueses, as principais directrizes do Neo-Romantismo lusitanista. Para mais, Luís Osório, que responderá ao Ultimatum com Um Grito, cuidava de redigir esclarecedor prólogo, onde defendia uma literatura que não só receptivamente se nacionalizasse pela temática autóctone escolhida, mas que activamente (pelo tratamento dos motivos inspiradores) tendesse a individualizar o país, «conquistando-lhe, quanto possível, maior direito de viver». Assim poderá Trindade Coelho apontar aos «Poetas novos», em 1892, este modelo!

2. Ao dilacerado pessimismo e à angústia negativista que servem de pano de fundo ao Decadentismo (e que no Simbolismo serão sublimados, pela superação da crise de espírito e de sensibilidade) correspondem no Neo-Romantismo lusitanista um moderado cepticismo e uma nada paroxística atitude de desencanto e contemplativismo. É este um dos traços invariáveis da obra cronologicamente alongada de Manuel Gaio. Essa atitude derivará, como veremos, para formas sentimentais, nostálgicas e

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fantasistas (se não pitorescas) de evasão e de religiosidade; e só na versão impura, por cristalizar, dos inícios neo-garrettianos do Alberto de Oliveira das Palavras loucas se prende ainda aos acentos schopenhauerianos (cf. os capítulos «Profissão da minha fé» e «António Nobre»). Aliás, logo nas Poesias (1891) do mesmo escritor tudo se resumiajá ao desgosto nefelibático pela realidade circundante e àquele nirvanismo que Manuel Laranjeira com justeza delimitou e desmontou.

É certo que a plataforma de muitas obras do Neo-Romantismo lusitanista é um plangente sentimento de desventura. Mas nessas obras acentua-se o que apenas assomava nos textos mais tangentemente informados pelo Decadentismo: em lugar do derrotismo global, derivado da cosmovisão negativa, surge uma desventura endémica, radicada no fracasso amoroso, no insucesso ou ludíbrio do ente apaixonado. Por outro lado, quando o Neo­Romantismo lusitanista faz seu um estado sofredor de desgraças, de dores físicas e de tormentos morais, de impotências e de repúdios, alia-lhe uma atitude de insatisfação que prenuncia a diferenciação básica: a reacção pela reconquista da saúde moral e da serenidade anímica (como mesmo nas dúbias Palavras loucas se sublinha), ainda que não socialmente interventiva, antes em geral confinada no âmbito de um egotismo pouco combativo.

Sem embargo de ser essa reacção, que se quer salutar e regenerativa, o traço aqui mais fundamente distintivo perante a condição prostrada do Decadentismo e perante o altaneiro recolhimento do Simbolismo, importa assinalar que a diferenciação do espírito neo-Iusitanista se insinuou no tratamento literário da crise decadentista nas obras em que ambos se conjugavam - do Só ao Náufrago. E, sobretudo, importa assinalar que a critica afecta ao Neo-Romantismo lusitanista se apressou a recuperar para si a expressão que nessas obras recebia aquela crise decadentista.

Nesse processo de recuperação, favorecido pelo psicologismo e pela poética sincerista, as dilacerações da sensibilidade e do espírito eram vistas como representativas da agonia geracional de um povo decadente, isto é, como tradução fiel, louvável e supremamente valiosa, dos desgarros e tendências ancestrais, da evolução orgânica e moral da raça lusitana (não apenas, nem primacialmente, de uma evolução universal da civilização e da cultura). Com efeito, para o Alberto de Oliveira da «Profissão da minha fé», mas Palavras loucas, o que se revela na prostração e na precoce senilidade moral da sua jovem geração de intelectuais - forcada em «A Rosa Tirana» e em «Fim» - é a decadência da raça portuguesa; e o mesmo Alberto de Oliveira respondia a Moniz Barreto em defesa do Só, encontrando na excelsa expressão da doença de toda uma mocidade a melhor garantia da perenidade daquele volume lírico. Com o mesmo fito, o Toy, António Homem de Melo, baseia certo combate ao "decadentismo" ou "nefeli­batismo" português, numa concepção algo dolorista do génio literário, sim,

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mas sobretudo numa teoria expressivista da criação poética à maneira de Musset (<<António Nobre», in Novidades, 3 e 29 de Maio 1892).

De resto, a apropriação neo-Iusitanista via-se confortada mesmo por textos críticos que levantavam reservas ao apostolado das «Cartas da última hora». Carlos de Mesquita, por exemplo, cedo reconhecia uma afim fidelidade de expressão auto-psicológica e de representatividade colectiva: «O Só revela dum modo inequívoco um exausto de nascença, que se compraz em escutar piedosamente a palavra distante e confusa dos seus atavismos, em sentir os impulsos da ingénua e encantadora alma nacional.» (<<Psicologia contemporânea», in Revista Nova, Abril 1893).

Notemos que é em parte por esta ordem de razões que Anto se transformará num mito e num motivo de inspiração, num modelo e num tópico de referência para a poesia do Neo-Romantismo lusitanista (que no Só via também, decerto, outras razões de valor paradigmático quanto à figura de Purinha e à quimera amorosa por ela catalisada, quanto à utopia regressiva do patriarcalismo provinciano tecida à volta dessa quimera e da evocação narcísica da infância, quanto à contribuição para o etnografismo lírico do Norte e de Coimbra, quanto ao fôlego, ao poder comunicativo e à sedução que a oralidade apostrofante, coloquial e exclamativa empresta ao discursivismo e ao estilo aditivo).

3. O pouco que levamos dito sobre o Neo-Romantismo lusitanista apela já para o esclarecimento de várias implicações quer ao nível da doutrina estética, quer ao nível da visão das relações do poeta com a comunidade nacional a que pertence e com as fontes de inspiração susceptíveis de serem buscadas pela sua obra. Ocupemo-nos, primeiro, de alguns princípios de poética rapidamente analisáveis.

Em lugar da posição de síntese baudelairiana que, implícita e explicitamente, os esteticismos decadentista e simbolista adoptaram sobre a criação poética, em lugar do seu tendencial fingimento poético e do carácter inconfidente da sua lírica (alusiva ou figurativamente amorosa), o Neo-Romantismo lusitanista dá, como nos artigos de Toy, sequência às variantes menores ou reducionistas da concepção romântica de ins­piração.

O confessionalismo de deambulações sentimentais, ou de casos amorosos com alcance individual, ganha um relevo ainda não conscien­cializado em livros hIôridos como as Agonias de António de Cardielos. O expressivismo é mais do que aceite, pois arei vindicação da espontaneidade e da ligação imediata ao pré-texto existencial sobrepuja o gosto da beleza estrutural e da perfeição formal: «Têm do meu sangue os versos todos que aqui vedes, / Como saíram, bons ou maus, assim lá vão», ostentava Afonso Lopes Vieira a abrir o Náufrago.

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A valorização da poesia depende em muito, para o Neo-Romantismo lusitanista, duma tradução sincera do vivido. Quando em 1892, com O Morgadinho, D. João de Castro dá conta, em preambular «Comentário», da viragem que julga realizar na sua trajectória literária, apoia-se numa ligação preconceituadamente sincerista de vida e arte: «certas modificações da minha vida exterior fizeram nascer este livro resignado e puro, singelo e afectuoso. Liberto de um meio artificial de sociedade, libertei-me naturalmente das sedas faustosas e decorações bizarras a que esse meio obrigava, e o renascimento feliz que deu ao meu espírito o mundo aldeão do Minho, reclamou-me espontaneamente esta pequena obra».

Este parecer de D. João de Castro, como apontamentos dispersos e temporãos de Manuel da Silva Gaio - o poema «Alfredo de Musset» nas Primeiras Rimas (1887) ou o louvor, na Revista de Portugal (1889), da «emoção sincera e expressão fácil» das Aguarelas de João Dinis - mostram que com essa teoria da criação poética (e bem assim com o popularismo estético e o casticismo estatuídos no capítulo «Rosa Tirana» das Palavras loucas) se conecta o apreço pela singeleza ideotemática e pela simplicidade estilística. Traços como a complexidade inquieta das psicologias, o rebuscamento dos temas, o exotismo cosmopolita dos ambientes, o contorcionismo frásico, o ineditismo estrangeirado dos vocábulos e a sábia artificialidade das formas - traços que dos versos decadentistas e simbolistas extravasavam, a partir dos Gouaches de João Barreira, para a para­digmática expressão por poemas em prosa - eram negativamente julgados "inacessíveis", isto é, rejeitados pela sensibilidade e pela orientação de pensamento dos neo-Iusitanistas, como proclama Alberto de Oliveira até num artigo de complacente defesa unitária dos Novos (<<Gouaches, por João Barreira», in Revista de Portugal, 1892). Por isso, em contra­partida, ao agradecer uma obra fundamental do lusitanismo (Os Meus Amores de Trindade Coelho), um dos autores mais representativos da renovação esteticista, o poeta António de Oliveira-Soares, faz questão de afirmar em carta que «é bastante difícil, senão impossível, ao meu espírito complexo e frisandé, iniciar-se na forma simplista e clara que V. Exa

escolheu». Uma das efémeras revistas que na década de 90 tenta contrariar neo­

romanticamente o predomínio do esteticismo cosmopolita, A Reacção de Coimbra (1893), reflecte esta demarcação no registo polémico de várias afirmações programáticas ou no aproveitamento da recensão ao poemeto de um obscuro Mário Alves: louva-se, nesse Drama Antigo, «a facilidade junqueiriana» dos alexandrinos e ataca-se os decadistas de «originalidades burlescas de silvas esotéricas para os raros apenas, comboios que passam, a simbolizar a vida, e quejandos».

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De resto, desde as «Cartas da última hora» que os teorizadores principais do Neo-Romantismo lusitanista não esquecem a apologia da simplicidade estética, quer em oposição a supostos ou reais amaneira­mentos, quer contra a complexidade temático-formal tão compreensível na época.

4. A demarcação frente ao nevrosado e cosmopolita esteticismo dos decadistas e simbolistas escolheu por cavalo de batalha o naciona­lismo literário, de registos variáveis na sua maior ou menor clarificação reflexiva.

Os coriféus das vertentes finisseculares do Neo-Romantismo lusita­nista exaltam-se na identificação com Garrett quanto aos princípios de que a literatura deve ter carácter nacional e de que as mais genuínas fontes da lusitanidade se encontram nas tradições seculares e no folclore. É certo que todos eles propendem a ser executantes não fiéis da sua herança ou maus discípulos desse modelo teórico e prático, dado o desequilíbrio evasivo com que sobrepõem um historicismo sem relação dinâmica com o presente e uma idealização regressivista do contemporâneo, alheada da historicidade social. Mas todos eles enaltecem o magistério de Garrett desde o início: Silva Gaio nas Primeiras Rimas (<<Se leio de Garrett a obra colossal! -saudosa criação da alma ocidental-») como António Nobre no Só (<<Ora, às ocultas, eu trazia, I No seio, um livro e lia, lia, I Garrett da minha paixão ... »), Alberto de Oliveira nas «Cartas da última hora» (onde lança a designação de neo-garrettismo) e nas Palavras loucas como Alfredo da Cunha e Trindade Coelho na «Apresentação» da Revista Nova, Luís de Magalhães e o Lopes Vieira que o próprio Alberto de Oliveira cognominará de «neo-Garrett» ...

Silva Gaio é o primeiro a pregar a doutrina do reaportuguesamento da nossa literatura. Formalizando o que ele próprio já sugerira na lírica de Primeiras Rimas (1887) e nos poemas que fora publicando das Canções do Mondego (1892), Manuel Gaio elogia em 1890 na queirosiana Revista de Portugal os passos que, com Notas e Impressões e seus capítulos «A Nau Catrineta» e «Cantigas e Provérbios», no mesmo sentido havia dado Luís de Magalhães - seu companheiro de geração intervalar, mas mais do que ele trânsfuga duma primeira fase de intervenção estético-ideológica norteada pelo Positivismo e pelo Parnasianismo. No mesmo ano, uma das suas crónicas para a Revista Ilustrada de Lisboa, ao constatar doloridamente a decadência de Portugal, descobre-lhe a causa «no desamor, no abandono de nós próprios», na desnacionalização, e advoga relativamente à literatura: «Hoje, que uma desgraça aterradora ameaça subverter-nos, devemos, mais do que nunca, pensar na nacionalização da nossa literatura, aliando aos progressos incontestáveis da técnica literária, aos processos ricos, aos

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elementos que da cultura geral e da arte europeia se infiltraram até nós, -a compreensão e a renascente inspiração no carácter português».

Também na Revista de Portugal, mas só em 1892, Alberto de Oliveira disserta nas «Cartas da última hora» sobre a «inspiração nacional» destacada no tríplice subtítulo (<<O Teatro - Neo-garrettismo - A inspiração nacional»), enquanto na já referida crítica a Gouaches define como «papel literário próprio da nascente geração dos Novos» implantar um mais assíduo ponto de vista da arte nacional. O lusitanismo temático continuará a serpropugnado por Alberto de Oliveira nas Palavras loucas (<<A respeito de Portugal») sob uma modalidade que Silva Gaio não deixará de pôr sob caução quando na Arte fizer, pro domo sua, a apresentação à Europa de «Lajeune littérature portugaise» (Novembro, 1895).

Quanto a Trindade Coelho, começa, em 1892, por exortar na Revista Ilustrada a que se siga o programa neo-garrettiano das «Cartas da Última Hora»: «Nas mãos imaculadas de Alberto de Oliveira, esse que há-de ser, indubitavelmente, o Santo Antero da nova geração, o evangeliário está aberto. Lede-o com devoção religiosa, professai-o com fé ardente, segui­-o com intemerata coragem». Depois, em 1893, virá a defender uma orientação colaça mas mais salutar, menos estreita e mais criticamente concebida (que lhe permitirá, aliás, também permanecer generoso apreciador dos decadistas e simbolistas). No manifesto de «Apresentação» da Revista Nova, proclama Trindade Coelho: «Cerrarmo-nos num bisonho isolamento, fechando as nossas fronteiras a pessoas, a coisas e a ideias, como o misantropo fecha a sete chaves as suas portas a qualquer convívio, seria cair num mortal ridículo; mas chamar à guerra santa contra o cego culto com que hoje se adora o Estrangeirismo, e implantar, em seu lugar, fanática e intolerante, a religião sagrada do Nacionalismo, é um dever que se nos impõe com uma urgência iniludível».

A estas apologéticas convergentes depressa correspondiam, para além das obras dos coriféus, várias outras que até no título - v.g., Poemas portugueses (1890) de Luís Osório - ou no subtítulo - Versos lusitanos, no Náufrago (1898) de Lopes Vieira - se queriam defluentes da peculiar inspiração nacional.

O fundo mais sério da reacção contra o francesismo e demais importações culturais é a crença na realidade e no alto valor do génio autóctone, que derivava da doutrinação de Teófilo Braga e se volverá simultaneamente em fundamento e em manifestação tópica do lusitanismo literário. Quer pelas raízes étnicas que esse génio autóctone recebe em Teófilo, quer pela incidência das pesquisas que cientistas de disciplinas históricas e filológicas - mesmo de orientação ideológica baça, ou diversa (como o grupo da revista Portugália, do republicano Ricardo Severo) -, o Neo-Romantismo lusitanista perspectivar-se-á amiúde por referência ao

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sentido da "Raça", embora na fase finissecular não se avance até às especulações da geração integralista de António Sardinha.

No fim-de-século, o pressuposto étnico era acarinhado pelo pensa­mento português de quase todos os quadrantes ideológicos. De acordo, porém, com a vaguidade de concepções e com a primazia da sensibilidade que globalmente caracteriza o Neo-Romantismo lusitanista, o carácter estritamente rácico da unidade nacional esbate-se em favor duma mais genérica "personalidade colectiva", cuja defesa aparecia ilustrada pela obra de Ramalho Ortigão. A crença galvanizadora num génio autóctone outrora fulgurante (e que agora devia ser libertado das patines estrangeiradas que progressivamente o haviam embaçado, pervertido e rniasmado) tem a ver, como analisaremos, com o historicismo e o folclorismo nodais do Neo­Romantismo lusitanista; mas as derivadas mais próprias são o casticismo e o tradicionalismo, a busca e a revitalização dos valores e das formas de vida genuínos, o culto da Tradição - a que o próprio Eça d' A Cidade e as Serras e d' A Ilustre Casa de Ramires não ficou alheio -, que desde o início incentivam uma versão positiva de regionalismo. Como diria Óscar Lopes, para os lusitanistas o Povo afigurar-se-á museu natural do passado.

Com alguma razão, mas também com alguma injustiça (sobretudo quando se teima em encerrar o lusitanismo num caixilho de Decadismo francês ou quando não se distingue a linha dum Alberto de Oliveira do equilíbrio de Silva Gaio, que já observámos, e da prática dum Trindade Coelho, que hoje conhecemos melhor através d'O Senhor Sete), tem-se sublinhado a distância que se cava entre a atitude dos neo-românticos de 90 e, de outra banda, o pensamento e a acção de Garrett e, mesmo, a orientação lusitanista de um Teófilo (conjugando a doutrina geral e a óptica do seu historiar da literatura portuguesa com um aturado estudo das fontes e manifestações do génio do Povo português) e de um Ramalho Ortigão (almocreve cultural, com conhecimento directo do País e das criações artísticas populares).

Para além do que nela há de evasão fantasista e pitoresca, a reacção castiça desses neo-românticos contém ainda muito de real Amor das nossas coisas (como mais tarde, em 1933, fixará em registo panegírico Jaime de Magalhães Lima); e se essa reacção explora a ressonância de pesquisas coetâneas de arqueólogos, etnógrafos, linguistas, etc., também é verdade que inversamente a onda literária do Neo-Romantismo lusitanista catalisou a difusão dessas pesquisas -qual colectiva Demanda do Graal, como fixará em 1922 um dos seus melhores cruzados, em verso e prosa.

Neste Afonso Lopes Vieira - que desde o Náufrago identifica o cantar do homem prostrado com o do destino da nação e da raça (<<Dedicatória», «Português d'hoje», «Raça de Náufragos»), com o diagrama da sentimen­talidade e dos descarninhos do povo lusíada, com a correlacionação do

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«Fado» e das «Naus» -, no Alberto de Oliveira das Palavras loucas, no Trindade Coelho do manifesto da Revista Nova - «O que desejamos é que se chame para o movimento e para a actividade de hoje, como uma transfusão de sangue puro num organismo derrancado, tudo o que o passado teve de bom e de salutar, e principalmente tudo o que no presente pode afirmar a nossa individualidade, apagada e diluída em mil imitações incongruentes, em mil exotismos ridículos» -, a preservação e frutificação do génio autóctone está umbilicalmente ligada ao elogio da língua pátria, à defesa e ao exercício da vernaculidade, à prospecção da riqueza expressiva oculta nos seus Mistérios (como também dirá tardiamente Jaime de Magalhães Lima). Na apoteose que ergue aos «Poetas Novos» em 1892 na Revista Ilustrada, Trindade Coelho proclama: «Entretanto, se têm, como é natural, de conjugar os seus esforços na rota e na conquista de um alto ideal, exoro-os que de preferência a tudo professem com devoção o culto da sua língua»; ano e meio depois, na Revista Nova, renovará o apelo: «que seja portuguesa anossalinguagem ( ... ) que portugueses sejam enfim, e sobretudo - porque o resto virá por uma derivação natural- o nosso pensar e o nosso sentir».

Poetas e prosadores não deixarão de corresponder a tal apelo, por vezes com pecha arcaizante. E alguns renegarão criticamente as pri­roícias decadentistas para combaterem o estrangeiramento temático e verbal.

O caso mais espectacular é o do jovem Júlio Dantas, que logo a seguir ao sucesso do Nada enceta na revista Renascença a apologia duma literatura que recupere a riqueza do idioma na fidelidade às raízes (<<Hoje, que todos nós devemos cuidar em purificar na fonte de oiro do classicis~o esta nossa pobre língua portuguesa», v.g.), num movimento que, de resto, se limitaria a dar sequência às facetas de neo-quinhentismo formal e de linguagem arcaizante do mesmo Nada. Essa apologia esclarece-se um ano depois, na recepção às narrativas de Partindo da terra, de Antero de Figueiredo: «Literatura a que se apague o carácter da raça, é literatura que morre.( ... ) Livros de sentimento, escritos em bom português: é o que é preciso. A reacção tinha de fazer-se, ainda que se levasse essa reacção até ao exagero das formas arcaicas.» (in Novidades, 4 Maio 1897)

5. O apego ao génio autóctone desdobra-se no Neo-Romantismo lusitanista numa posição nacionalista, lato sensu: sentir da nação como unidade de destino no universal e valor supremo a nortear a acção individual e colectiva, a presidir às opções comunitárias na organização interna e nas relações com outras nações, como conjunto de factos multi-seculares objecto de orgulhosos retrospectos históricos, como vocação de grandeza a recuperar, como missão expansiva a realizar.

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Relacionado nos quatro últimos lustros do séc. XIX com as campanhas africanas e com a crise do regime monárquico, com o sonho do Mapa cor­-de-rosa e com o ultraje do Ultimatum, com a agitação política e com a depressão económica do início dos anos 90, instrumento de propaganda dum Partido Republicano convertido à estratégia frentista da salvação pública e ponto de despique entre os partidos monárquicos (assim comparticipando das motivações da corrida às comemorações centenárias e destas saindo mais aceso), o nacionalismo insufla todos os aspectos do lusitanismo finissecular, embora só na fase do séc. XX se estruture um sistema político integral na mais séria projecção extra-literária dessa sensibilidade neo-romântica.

No seio desse Neo-Romantismo lusitanista, o nacionalismo não se encaminhará apenas para a evocação histórica e para a exaltação patriótica, numa poesia ora mais ciosa de compensações nostálgicas e de fuga às agruras, às degradações ou simplesmente às mudanças do presente, ora mais apostada numa atitude interventiva (tradicionalista ainda que liberal). Também aqui Alberto de Oliveira juntava ao programa «Profissão da minha fé», nas Palavras loucas, o exemplo lírico (desde a «Elegia às Armas e aos Barões assinalados», in Os Novos, Fevereiro 1894); e o mesmo se diga do sempre diferente Silva Gaio. Logo secundados por Lopes Vieira, desde Náufrago, ver-se-ão seguidos por muitos no século XX, a partir das Cantigas (1902) de António Corrêa d'Oliveira.

Já aí, quer pela obsidente referência a figuras e grandezas pretéritas, quer pelo enquadramento no patriarcalismo rural, o lusitanismo se afastava de outras correntes neo-românticas que se afirmarão nos inícios do séc. XX e' que serão também, embora diferentemente, nacionalistas (quer na intervenção jacobina do Neo-Romantismo vitalista, de João de Barros, quer na contemplação prospectiva do Neo-Romantismo saudosista, de Pascoaes). Todavia, é na variante visionária do nacionalismo - incrementada no fim­-de-século por Oliveira Martins, no prefácio de 1884 a Odes e Canções de Luís de Magalhães (aliás, em coerente contrapartida do influxo depressivo originado pela sua interpretação apocalíptica da História de Portugal) e pela especulação anti-positivista de Sampaio Brumo (que em 1904 cristalizará n'O Encoberto) - que o primeiro surto de tendências lusitanistas mais caracterizadamente se empenha.

Como se vê em Luís de Magalhães, na passagem de «As Navegações» de 1881 (Odes e Canções) para o longo poemaD. Sebastião (1898),émuito coerentemente com os seus axiomas de fidelidade ao génio autócto-ne e à Tradição que o Neo-Romantismo lusitanista escolherá para forma privilegiada de nacionalismo visionário a exploração vária do mito sebástico, do culto histórico do Desejado e da lenda popular (do D. Sebastião «transfigurado pelo espelho da alma nacional», diria em 1932 Manuel Gaio

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a Castelo Branco Chaves). Cedo, prenunciando um tópico da vária poesia nacionalista do século XX, os neo-românticos lusitanistas do fim-de-século envolvem em sebastianismo a poesia elegíaca ou exaltante, de evocação histórica ou de translação mitogenésica, de temática colectiva (A. Lopes Vieira, «O Desejado», n'O Poeta Saudade) ou de epicização egótica (António Nobre, «O Desejado», nas Despedidas), de aproveitamento engagé ou de sereno retratar de uma realidade nacional em ordem à sua catarse num espírito universalista (de Teófilo Braga ao Silva Gaio de «O louco» em Mondego).

6. Podendo faltar embora em autores importantes como Trindade Coelho, o historicismo é aspecto recorrente e exigido quer pelo próprio retomar da matriz romântica, quer por tudo quanto levamos dito sobre o enquadramento epocal do Neo-Romantismo lusitanista e sobre os seus propósitos. Diferencia-se do genuíno historicismo romântico pelo caldeamento psicologista, pela projecção lírica em figuras vistas à luz da filosofia carlyliana da História e no alheamento das condições culturais da vida social, e pelas necessidades de um egotismo malferido ou, noutros casos, frívolo, que se compensa então nas evocações fantasistas da tríade fixada por Dantas (O Heroísmo, a Elegância e o Amor) e se patenteia sobretudo após o êxito do Cyrano de Bergerac (1897) de Rostand. Enquadrado por inédito surto de pesquisa histórica, incentivado pela narração literária de Oliveira Martins, mais idealizante n' Os Filhos de D. João I e em Nun' Alvares (que Eça acalentará epistolograficamente), o historicismo pesará nestes neo-românticos como impulso da inspiração em épocas, figuras e casos do passado nacional, mas também pela busca nesse passado de modelos a seguir, quer no plano do ressurgimento comunitário - a grandeza de homens e de feitos pretéritos devendo funcionar como factor de exaltação patriótica e como estímulo de regeneração colectiva -, quer no plano das formas literárias - de modo que o desejo de seguir códigos de géneros e sub-géneros, de revitalizar sistemas estróficos e poemáticos, de repor estilo e linguagem pregressos, vai desembocar em medievismo, em quatrocentismo palaciano e em quinhentismo.

Além dos motivos de comemoração de centenários, desde o de Camões em 1880 ao da viagem de Vasco da Gama em 1898 (ao qual o próprio Eugénio de Castro projecta acorrer, em cartas a Teófilo Braga), passando pelo do nascimento do Infante D. Henrique (ao qual entre outros responde, coerentemente, com o poemeto O Mar Tenebroso (1894), o Teófilo das Rapsódias da Epopeia Portuguesa (1902), de Os Doze de Inglaterra (1902), Viriato (1904), etc.), a poesia neo-Iusitanista canta a gente grada e os fastos da nossa História com o amplo fito interventivo de oposição à agonia dissolvente da Grei. Por isso o pode fazer mesmo com

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autores ciosos de ultrapassar os limites que Eça censurava caricaturalmente nas Palavras loucas e orgulhosos de aspirar a um "universalismo" final: é o que ocorre com Silva Gaio, desde o poema «Madalena de Vilhena» de Primeiras Rimas, pelo menos.

Sintomaticamente, outro dos iniciadores, Luís Osório, no prólogo dos Poemas Portugueses - cujos «contos e apoteoses» versificados con­templam o castelo de Faria, D. João de Castro, o mosteiro da Batalha, o hino da Restauração, etc. -, juntava a apologia do culto da língua na exploração dos «assuntos nacionais» e o reconhecimento do valor cimeiro que Goetbe atribuía à busca de uma literatura universal; mas insistia na defesa, como única medida anti-suicidária, da estratégia casticista: «na situação geográfica, histórica e de fraqueza orgânica em que nos achamos, nada demove a convicção que perfilho numa literatura nacional acentuada, carac­terizadíssima». Em 1892, procurando dar dimensão decisiva a confrontos de uma Questão Literária aberta entre os poetas novistas nas páginas das Novidades, Alberto de Oliveira caracterizava a corrente oposta aos nefelibatas pelos desígnios de «renovar a poesia nacional regressando aos assuntos, lendas e ritmos que impressionaram nossos maiores, e comuni­cando ao velho cadáver da Alma portuguesa todo o sangue filial das nos­sas almas novas». Em 1893, na «Apresentação» programática da Revista Nova, o próprio Trindade Coelho e Alfredo da Cunha propõem-se, «numa regressão ao passado, ir buscar alento e estímulo para a iminente revolução do futuro». Em 1898, com os Versos lusitanos de Náufrago, Monso Lopes Vieira dava a primeira grande realização lírica ao contraponto de sentimento de decadência e de historicismo semi-reactivo, semi-evasivo.

Quanto ao historicismo encaminhado para a reposição de modelos literário ou de esquemas formais, é passível de ser apropriado também por Decadentismo e Simbolismo, no que toca às revivescências da poesia palaciana derivada do Cancioneiro Geral e aos elementos mediévicos - a que o popularismo estético empresta, porém, conotações distintas no seio do Neo-Romantismo lusitanista, onde é mais coerente o discursivismo de rimance, o devaneio passadista e sentimental de troveiros e baladas, a idealização amorosa e heróica de cavaleiros e princesas - tão integrados na poesia de um Júlio Brandão, desde Saudades, e coarctados no Eugénio de Castro de «Dona Briolanja» (Horas), de «Rimance» e «Cantiga» (Silva), de «Dona Auzenda» (1892) e outros poemas dispersos, da evocação lendária da Rainha Santa em Constança, etc.

Quanto ao quinhentismo, ostensivo sobretudo na glosa camoniana, no artifício eglogal e no estilo arcaizante, prestou-se ao tempo (e tem conti­nuado a prestar-se) ao equívoco - paralelo ao de tentativas estrangeiras como, em França, o romanismo de Moréas e no séc. XX as renascenças meridionais-clássicas de espírito mais ou menos maurrasiano - de uma

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erupção dita neo-clássica, mas na realidade inestruturável com outros elementos de uma poética globalmente inspirada pelo retomo ao Neo­Classicismo ... desde logo, porque esses elementos não existem na época!

Importa reconhecer que o estilo arcaizante participa da generalizada busca da reinvenção da língua literária, e aí mesmo ressaltando nos neo­lusitanistas por não se associar à linguagem galicistamente neológica como nos textos decadentistas e simbolistas. Importa lembrar que o próprio Eugénio de Castro faz datar da 1 a. ed. de Oaristos «a restauração das formas arcaicas» como parte da renovação literária depois por todos seguida e que, de facto, essa restauração subserve na década dé 90 poéticas diferentes, de Eugénio de Castro e Henrique de Vasconcelos a Júlio Brandão e ao "neo­Crisfal" Lopes Vieira, passando pelo Júlio Dantas do Nada e pelo José Duro do Fel. Importa atender a que a glosa camoniana retira motivações do culto neo-romântico do poeta incompreendido, do génio perseguido, e da vibração nacionalista com heroicidades da acção militar e navegante e com grandezas literárias do nosso passado. Importa compreender que o bucolismo finissecular se cifra na variante da mitificação neo-romântica da vida rural; e que o artifício eglogal constitui uma de entre as várias formas de expressão translata do devaneio sentimental e da idealização amorosa, beneficiada distintivamente pelas injunções duma leitura de Bernardim e de Crisfal como antecipações da sensibilidade romântica. Finalmente, importa ter presente que o quinhentismo corresponde nos poetas neo-Iusitanistas a um vago sentido de recuperação de valores literários muito nacionalmente característicos, profundamente tradicionais e próprios do génio autóctone. Não estamos, pois, perante uma vera involução neo-classicizante, mas perante uma apropriação de formas do conteúdo e da expressão por parte do Neo-Romantismo lusitanista.

Sobretudo no que concerne ao bucolismo, o livro Mondego (1900) de Silva Gaio é o melhor apoio desta interpretação, quer pelo enquadramento da écloga «Lemano» na dedicatória «Aos Poetas Novos» e no conjunto dos textos (completado pelos neo-românticos e lusitanistas «Contos do rio»), quer por aquele poema constituir, sob o artifício bucólico, um autêntico manifesto rimado do Neo-Romantismo lusitanista.

Com efeito, depois de um trajecto exemplar (périplo e regresso do adolescente e virtual herói, em versão bucólico-Iusitanista do modelo junqueiriano de redução da genuína Bildungsreise romântica), Lemano retira as devidas lições, que prodigaliza aos outro zagais (poetas). Em ambiente idt1ico, em pleno renovo primaveril, nos decantados campos do Mondego, Lemano abre a sua mensagem pelo contraste do erro pregresso e da perspectiva entrevista.

O mal adviera do afastamento do quadro nativo e do espírito nacional: «Nunca deixeis vosso rio, / Se é espelho de verdes montes / E de olivedo

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sombrio. I Nunca deixeis vossas fontes, I Chorando por vós em fio. I Nunca por famas levados I Ai! nunca de longes terras I Busqueis os frutos gabados, I Pois vos serão amargados,! E em tudo só tereis guerras.» (e, no Silva Gaio d' O Instituto, da Arte e dos equívocos subsequentes, não surpreende este acrescento: «Tal foi, tal foi meu fadário ... I Porque atrás de alheios cantos I Levado andei, peito vário! I Desfiz meus dias em prantos I E fiz da vida calvário. I Para guardar o de estranhos I Meu próprio gado deixei; I Mas, por castigo, em vez de anhos I Só, entre os homens, rebanhos I De feros lobos achei.»).

O mal residira no cultivo de uma arte infiel à tradição autóctone e conformada em função do sucesso cosmopolita, sob a pressão da hege­monia das correntes esteticistas: «E meu mais vivo sofrer, I E minhas penas constantes I Nasciam de longe ser I A frauta que fora dantes I A graça de meu viver. I Pois desque, apartado desta, I Doiradas frautastangi, I Nunca mais, trocaJunesta, I Ninguém, com trinos de festa, I Ou brados de dor, venci. I I Nunca assim, moços zagais, I Deixeis, por novas cantigasl Trinados e duros ais I De vossas frautas antigas, I Por muito que outras ouçais.! Olhai que se agora pude I As almas destes lugares I Vir acordar, foi virtude I Só desta avena, da rude I Cigarra de meus cantares. /I E se quereis ver amados I Os vossos cantos, então I Que os passos por vós andados I Perdidos além não vão I Da extrema de vossos prados. I Se ouvidos vós quereis ser, I Que as queixas de íntimos males I Não vão ao longe baterl Da terra onde hão­-de morrer I Os ecos de vossos vales.»

Repesa ante as carreiras transviadas, a nova consciência estético­-literária reconhece que uma arte conseguida exige ser conformada genuinamente e ser dirigida intencionalmente ao leitor compatriota: «É que para alguém na vida I Contar seu bem ou seu mal I Há só a fala nascida I Na mesma terra natal I Dessa alma, alegre ou sentida. I E só também hão-de amar I Seu canto os que em seu torrão I Tiveram berços e lar, I Que é isto o que faz medrar I Igual sentir e razão.». Essa arte viverá, naturalmente, acendrada em exaltação da mátria - o pundonor patriótico desdobrando­-se no embevecimento mirífico perante a paisagem física e humana: «E não vos pareça estreito I O vosso torrão, pastores, I Pois este é torrão de jeito I Para seara de amores, I Que à farta vos encha o peito. I Outra não há que assim seja I Terra de doces cantigas; I ... /I Que raparigas então! I Ah! vede que airosas moças I As lavradeiras não são, I E as que por prados e bouças I Guardando rebanhos vão! I ... », «Se para longe partir, I Quanto mais distante for, I Mais lhe hão-de os rios lembrar I Deste país do Senhor/Onde se morre d'amor,/E se moireja a cantar.».

A salvação da arte - que é, a um tempo, a solução nacional na arte e pela arte - estará em ouvir o Mondego e outros rios portugueses, isto é, em beber nas fontes de inspiração castiças ou ancestrais. Agindo os escritores

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em consequência, a poesia fruto dessa inspiração será, neo-romanticamente, canto plangente de nostalgias do Passado e de melancolias amorosas ou silvestres (<<Rio de falas mais tristes, / De mais saudosas toadas, / Ai! nunca no mundo o vistes! / Tão lindas coisas passadas / Nunca a ninguém nas ouviste !», «Ouvi-o, para que então / De vossos sonhos ou mágoas / Melhor se afine a canção; / Pois sempre por estas águas / Cantigas se afinarão.». Esse canto acenderá o sentimento patriótico - «Ouvi-o, pois quem mais no ouvir / Maior afecto há-de ter, / Por Mondego nela ir, / À Pátria que o viu nascer» - e a sua grandeza não será menor que a da arte esteticista de inspiração estrangeira,como se depreende do poder órfico que lhe é predito: «E com a graça e valia / Que, assim, no cantar puserdes / Não estranheis se algum dia / Atrás de vós, à porfia, / Brutos e rochas moverdes.».

Quanto ao quinhentismo, em geral, é talvez no jovem Dantas -empenhado logo a seguir à aparição do Nada em surpreendente e parcial demarcação ante o Decadentismo dominante naquele seu livro de estreia­que melhor se patenteia a sua valência conjuntural como instrumento de reacção lusitanista contra o esteticismo cosmopolita e, ao mesmo tempo, como evasão da atmosfera agónica de fim de civilização. Por ambos os valores,aliás, emparceirava com o ruralismo, como Júlio Dantas punha a claro no já referido elogio a Partindo da Terra, de Antero de Figueiredo: «É necessário dar aos livros portugueses uma fisionomia própria ( ... ). O ruralismo e a regressão a épocas mortas são bem duas altas promessas de ressurgimento.» .

8. Princípio sumamente distintivo do Neo-Romantismo lusitanista e de fundas consequências na sua poética, nos seus motivos de inspiração e na sua expressão formal, é o popularismo estético, isto é, a atribuição do supremo valor criativo à espontaneidade colectiva do Povo. Caldeados os pendores do Romantismo nesse sentido pela obra caudalosa e difundida de Teófilo Braga, é nesta obra que directa ou indirectamente vão beber os neo­românticos lusitanistas do fim-de-século.

Este princípio do popularismo estético leva, desde logo, à devoção pela poesia popular (genuína ou em contrafacção), traduzida num labor de recolha e estudo de textos ou, como dizia Trindade Coelho, na sua «afinação» em obra literária que se quer fiel à matriz popular. Teófilo dera o exemplo, por um lado com Cancioneiro Popular (1867), Romanceiro Geral (1867), Floresta de Vários Romances (1868) e História da Poesia Portuguesa (1 a. ed. 1867), por outro lado com a segunda Alma Portuguesa, série de poemas heróicos já referidos. A viragem anti-naturalista de Luís de Magalhães, em Notas e impressões (1890), passa também pela atenção amorosa à poesia da tradição oral. Trindade Coelho desde cedo pugnou em periódicos por tal devoção; e desde cedo realizou o duplo trabalho de

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recolha e de reelaboração literária de textos populares (como hoje facilmente se constata na colectânea O Senhor Sete). Alberto de Oliveira e Agostinho de Campos consagrarão a directriz lusitanista ao organizarem e prefaciarem a colectânea Mil trovas populares portuguesas (1903).

Mas o popularismo estético acarretava também que, ao lado da poesia (real ou supostamente) vinda do povo, o poeta cultivasse um tipo de poesia para o povo, isto é, acessível à sua compreensão iletrada e tocante para a sua sensibilidade, pela simplicidade de temas e estilo, pela familiaridade ou similitude das formas prosódicas, das imagens e da linguagem. O que, cruzando-se com o casticismo, implicava ainda que o poeta privilegiasse o folclore como campo de inspiração (ao lado da História pátria); e, redimensionando a doutrina expressivista da criação poética, implicava a defesa do primitivismo artístico e o culto da simplicidade, em oposição ao exigente aristocratismo e ao rebuscamento temático e formal do Decadentismo e do Simbolismo.

Poesia popularizante, neste sentido, oferecem-na, por vezes com grande beleza e eficácia, as faces lusitanistas do Só de António Nobre, de O Livro de Aglais, Saudades e O jardim da Morte (maxime no «Mistério da Rosa Branca» que lhe vem apenso) de Júlio Brandão, de O Morgadinho de D. João de Castro, de Para Quê?, Náufrago e O Poeta Saudade de Monso Lopes Vieira, do Fel de José Duro, etc., e quase toda a lírica de Manuel da Silva Gaio, de Luís Osório e, já nos fins de Oitocentos, de António Corrêa de Oliveira.

Manuel Gaio, numa crónica de 1890 já referida, é dos primeiros a apontar neste sentido. Em 1892, nas «Cartas da última hora» para a Revista de Portugal, Alberto de Oliveira enceta a sua teoria popularizante da simplicidade estética e do folclorismo temático-formal. No mesmo ano, logo antes do Só, várias composições de O Livro de Aglais lhe ilustravam a doutrina (<<As Boas Fadas», «truz-truz! - Quem bate ao postigo?», «A Dobadeira», «Versos à Joaninha», «O Conde-Almirante», «Canção», «Rosinda» e «Já cansada da viagem co'o aroma»); e, na Carta-prefácio a esse livro, Junqueiro completava o seu ataque aos decadistas com o elogio da inclinação última de Júlio Brandão «para a poesia do povo». Ainda no mesmo ano de 1892, O Morgadinho juntava a outras facetas de Neo­Romantismo lusitanista o abandono aos ritmos de tradição popular e aos temas de rimance e de cantares folclóricos (<<Noite de Natal», «Cantos do meu hortelão», «Canção das Maias»); a propósito dos rimances «Os novelos de Oiro» e «Rimance de D. Soeiro», D. João de Castro vai até à preocupação folclorista de frisar a sua natureza castiçamente hispânica, em contraste com a difusão internacional dos romances de Garrett e do Livro de Aglais. Em 1893, Alfredo da Cunha e Trindade Coelho evidenciavam no programa nacionalista da Revista Nova a necessidade de mergulhar «nesse

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fecundo veio que, depois de Garrett, ninguém mais soube sondar e seguir, nessa remoçante corrente popular». Em 1894, no capítulo «A Rosa Tirana» de Palavras loucas, Alberto de Oliveira procurava fundamentar filosofi­camente o popularismo estético, apoiando-se nas doutrinas de Vico.

7. Foi um autor de consagração anterior ao fim-de-sécul0, e depois parcialmente identificado com aspectos dos estilos epocais que dominam esse fim-de-século, que mais contribuiu para difundir na literatura uma das ideias primaciais da reacção ideológica finissecular - a pacificação pelo retiro para o campo, a redenção da crise mental e sensível pelo retorno à pletora natural e à convivência com a gente cândida e imune de civilização, a regeneração económica e social do país pela agricultura e pelo patriarcalismo moral -, que é ao mesmo tempo uma das principais demarcações entre Decadentismo e Simbolismo, de um lado, e Neo­Romantismo lusitanista, de outro. Com efeito, mais do que as narrativas de Camilo, Júlio Dinis e Fialho, foram Os Simples (1892) de Junqueiro que consagraram a voga lírica da panaceia rural, que, de forma ora mais evasiva, ora mais sadiamente reactiva, se estenderá a toda a lírica lusitanista, bem como aos contos de Trindade Coelho e de Júlio Brandão (fundados em estéticaanti-naturalista, mas fundindo ainda, sobretudo no caso do primeiro, visão realista e idealização), às narrativas de Eduardo Perez e de Guilherme Gama, ao Partindo da Terra (1897) de Antero de Figueiredo, etc.

Se, desde Silva Gaio (que logo de início tende a conformá-lo ao paradigma bucólico) até Corrêa d'Oliveira, o ruralismo aparece como um dado natural e primigénio, na maioria dos textos finisseculares informados pelo Neo-Romantismo lusitanista o ruralismo aparece como medicina para a crise decadentista num impulso evasivo bem diverso da dinâmica de identificação e protesto instaurada, havia ainda pouco tempo, pela poesia de Cesário Verde (Alberto de Oliveira reconhecia nas Palavras loucas: «é por eu não ser um simples que os simples me atraem»). O campo contrapõe a tranquilidade à nevrose, o remoço à exaustão, a l~z e a cor à soturnidade, a vida sã à morbidez física e moral, a paz e a harmonia ao struggle for life, as virtudes ancestrais à perversão cosmopolita, a frescura e a apetência à astenia e ao tédio, a unção religiosa à desolação metafísica, etc.

Nas Poesias (1889-1891) de Alberto de Oliveira, a la. Parte, Bzôliado Sonho, proclama liminarmente o amor da natureza, mas depois dá ténues mostras dessa atracção, logo afogadas em fugas dos flagrantes captados para o fantasiar livresco (poemas I e X); todavia, na 2a. Parte, Pores-de-Sol, ao estado decadentista de sensibilidade faz contraponto uma via que leva ao Neo-Romantismo lusitanista. Aberto para o mundo físico, embora sem participação na real vida humana que aí se desenrola (<<Vimos aqui, aqueles que o vibrião I Da fria Realidade dilacera: I E à vossa sombra, à vossa

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protecção / Vimos pedir a luz de uma Ilusão, / O doce bálsamo de uma Quimera!»), o poeta busca o socorro da natureza garrida e vitalizante do Minho, contrafeito no poema «Em Wagon», peremptório na série «Aldeãs», onde o mundo rural oferece saúde e cor, silêncio e paz alienantes: «Que sabeis vós da Luta pela Vida, / do caminhar da Humanidade impura? / Do ruído brutal das multidões / Viveis àparte, calmos e isolados», «Por isso vimos todos em romagem, / À vossa sombra cheia de perdões, / Exaustos e cansados da viagem / Por sobre o alarme fúnebre, selvagem, / Das torturantes civilizações!», «E enquanto os outros, mar da Vida em fora, / Vão numa dor, numa tortura viva, / A minha puberdade sofredora/Encontra em vós todo o viver de outrora, / E toda a Ingenuidade primitiva!». N'O Morgadinho, como no Só, a tentativa, imaginada e vã, de ultrapassar a crise decadentista na tebaida de aristocracismo provinciano, visa a ventura rústico-patriarcal num paraíso campestre, que emerge da poetização transformadora do Minho (<<Primeira canção», «Fim de tarde», «Ovos tingidos», «As segadoras», «Noite de Natal», «Serão à Lua», «Maio-I», «Última canção»). Um ano depois, também nas Saudades de Júlio Brandão o escapismo nostálgico e a mitificação da infância se ligam ao embeve­cimento com as belezas rústicas. O mesmo se diga para o Lopes Vieira e o Corrêa d'Oliveira finisseculares, bem como para as Agonias de Cardielos e para o Fel de José Duro, onde explicitamente se reconhece que o ideal patriarcalista de «Rústica» é um desiderato que o poeta não pode realizar.

Mas, nem por se tratar quase sempre de desdobramento compensatório ou de evasão imaginativa, o ruralismo deixa de revestir nestes neo­românticos autenticidade estética, originando ou reforçando outros caracteres, como uma nova imagística telúrica e agrícola (<<Nossa alma é o alvo casal, / E a pascigo da boiada», nas Poesias de Alberto de Oliveira; «És como as velas alvas dum moinho, / Sobre a montanha onde a urze germina», «É como o céu do Oriente, se amanhece; / Cesto de rosas sobre linho puro», nas Saudades de Júlio Brandão; etc.).

Para além da alternativa à crise decadentista, eram múltiplas as motivações internas do ruralismo neo-romântico. Só no campo e no meio das suas gentes, reino dos raros contactos e das lentíssimas mudanças, os lusitanistas podiam cumprir os ditames do casticismo e do tradicionalismo, só aí julgavam poder encontrar os modelos de cândida imaginação criadora, de simplicidade artística, de vernaculidade expressiva. Só no campo podiam alimentar a evasão pitoresca de personalidades afeitas à civilização urbana, mas desgostosas dela e sobretudo da sua face tecnológica e industrial (como mostram as Palavras loucas e o Náufrago, com os poemas «Carta ao Alberto» e «Fábrica»), saciando-se com o que por anacronia começava a ser invulgar - «longe da civilização banal», diziam as Palavras loucas. No campo, melhor podiam alimentar a evasão saudosa

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para uma infância nele realmente vivida ou, como analisou rigidamente Costa Dias, para os bons tempos de uma organização social em vias de derrogação mas ali ainda fruível nos resquícios da relação privilegiada do jovem morgado ou do doutor com o povo humilde.

Por outro lado, quer quando a idealização das realidades institu­cionais e das condições de trabalho e da vida quotidiana não é instrumento dum regressivismo pequeno-burguês (caso de Trindade Coelho, por exemplo), quer quando essa idealização corresponde à valorização do paradigma tradicional, há que reconhecer que umas vezes o Portugal provinciano é apenas visto como reino do contraponto entre o pitoresco de desgraças e misérias e o pitoresco das maravilhas e do maravilhoso, enquanto que de outras vezes é visto também como húmus de um autêntico reencontro com as raízes da grei, de uma sadia reconquista de confiança nos seus destinos e de uma recuperação de forças para contrariar o seu declínio angustioso (dos versos de Luís Osório aos de Corrêa d'Oliveira, passando pelo Manifesto de Alfredo da Cunha e Trindade Coelho que em 1893 ditava: «E para que se não demude a fisionomia nacional, e se não alterem as qualidades fundamentais do nosso génio, necessário é retemperarmo­-nos nas camadas onde essas qualidades mais perfeitamente se mantêm, indo às províncias do país buscar para os desfalecimentos do espírito a saúde e o vigor») .

9. Paralelo ao popularismo estético e à evasão rústica, desenvolve-se outro traço fundamental do Neo-Romantismo lusitanista, como sempre gerado na tensa confluência de mitificação do génio autóctone, de louvável autognose da personalidade colectiva e de diversão pitoresca: trata-se da exploração literária dé dados etnográficos, da preocupação folclórica com lendas, superstições, costumes, danças, falares, trajos, artefactos e modos de trabalho considerados típicos do país ou de uma região. Seguindo a lição neogarrettiana de Ramalho (Farpas, O Culto da Arte em Portugal) e de Teófilo (O Povo português nos seus costumes, crenças e tradições, 1885), prosseguindo aproveitamentos literários anteriores (por exemplo, no Camilo de Doze Casamentos Felizes), os neo-românticos lusitanistas alongam-se, deleitados, nessas evocações típicas, não tanto no teatro (onde este pendor contamina peças como Amor Louco de H. Lopes de Mendonça ou Os Velhos e O Ganha-Perde de D. João da Câmara) quanto na narrativa (do cap. I da novela Pecado Antigo, de Silva Gaio, aos contos de Os meus Amores) e na lírica: Poesias, de Alberto de Oliveira (soneto XII de Bl'blia do Sonho, «Aldeã-6» de Pores-de-Sol), Só de António Nobre (<<Poveirinhos! meus pobres pescadores!», «Lusitânia no Bairro Latino», «Santa Iria», «Viagens na minha terra», etc.), O Livro de Aglais (poemas já indicados) e O jardim da Morte (<<Moira encantada», «Eu subi por uma encosta» e

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«Mistério da Rosa Branca») de Júlio Brandão, O Morgadinho de D. João de Castro, Flores de José Duro, Eiradas e Auto do Fim do Dia de Corrêa d'Oliveira, O Poeta Saudade de Lopes Vieira, etc.

Como nessas obras se vê, a panaceia rural, o culto etnográfico e a evasão pitoresca, subservidos por destro discursivismo (descritivo e narrativo) e pela evocação transfiguradora, pela oralidade exclamativa, coloquial e apostrofante, traduzem-se em regionalismo, isto é, na exploração poética de paisagens, ambientes e tipos representativos de cada região do país (e, assim, genuinamente lusitanistas).

Silva Gaio é, como noutros pontos, dos primeiros a ilustrar, nas CançõesdoMondego(1892)eemMondego(1900),esseregionalismo,que ele paradigmaticamente entendia como etapa do nacionalismo -(re )conhecimento e exaltação da identidade colectiva -, assim como o nacionalismo do mesmo passo se constituiria em contribuição (indispensável) para o universalismo.

Quanto a Alberto de Oliveira, que teoriza o regionalismo literário nas «Cartas da última hora» e no «A respeito de Portugal» de Palavras loucas, e que já o esboçara no enaltecimento lírico da terra natal e do povo em Pores-de-Sol (<<Em Wagon», «Melodia outonal», «Aldeãs»), publicou outro texto menos conhecido, mas ainda mais sintomático. Trata-se duma recensão jornalística de O Livro de Aglais, onde Alberto de Oliveira começa por fazer corresponder uma leitura parcial dessa obra de Júlio Brandão - «O seu livro (refiro-me às composições recentes, onde já o tem­peramento vai em liberdade) é cândido, fresco, puro e alegre» - à visão edenizante do Minho: «gaiteiro alegre e moço dessa região satisfeita e remediada, onde não há miséria nem lepra, as raparigas são todas sadias e têm noivo, as árvores engordam à discrição, e cada retalho de campo é propriedade culta e útil de alguém humano»; em seguida, Alberto de Oliveira parte do caso particular para o programa literário da nova geração: «Visto que a paisagem portuguesa está quase toda inédita e inexplorada pela arte, seria talvez extremamente eficaz que a geração dos novos tentasse organizar uma lista de Poetas regionais, cada um vestindo aos seus versos a cor e o encanto das árvores, das montanhas, das flores, no meio das quais vivesse, e envolvendo a sua obra (por mais universal de assunto) na diversa atmosfera moral que a cada paisagem é própria» (inNovidades, 28.IV.l 892).

10. É evidente que, embora por vezes preso (como uma das suas fontes e realizações principais, a obra de Teófilo) a um Comte de especulação finalmente religiosa, o Neo-Romantismo lusitanista releva de um movi­mento de reacção anti-positivista. Avesso a uma precisa alternativa filo­sófica, movendo-se indefinidamente nos terrenos idealistas e espiritua­listas, busca sobretudo escape para a sensibilidade, a imaginação e a

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inerradicável religiosidade contra a aridez racionalista do cientismo e contra a insuficiência do imanentismo - fenómeno epocal que reflectem as Notas Contemporâneas (e a seu modo as Vidas de Santos) de Eça de Queirós.

Explorando poeticamente as aberturas da síntese subjectiyaou afectiva do último Comte, ou a doutrina ao Incognoscível de Spencer, ou uma versão solipsista do Idealismo, os neo-românticos visam, no fundo, compensar uma iniludível descrença no Progresso científico e um desgosto profundo pelas consequências civilizacionais e sociais da erosão das crenças e do desenvolvimento técnico-industrial (veja-se o vário reflexo disso desde A Cidade e as Serras e Palavras loucas até Jaime de Magalhães Lima). Acabam por encontrar porto de salvamento em formas várias de religiosidade (tocando por vezes a raia da crendice popular, na senda de «Ao canto do lume» do Só), de intuicionismo arracional e de moralismo - retomo ao catolicismo tradicional, evangelismo de inspiração liberal ou tolstoiana, franciscanismo mais ou menos ortodoxo.

Mas o que sinteticamente distingue a atitude mental do Neo­-Romantismo lusitanista - para além das tonalidades diversas entre um Silva Gaio e um Alberto de Oliveira, entre um Trindade Coelho e um Jaime de Magalhães Lima - é, por um lado, a posição inicial de moderado pessimismo e de desencantado contemplativismo, e, por outro lado, a solução final de corruptelas sensíveis, fantasistas, afectivas, mas em geral também encamacionistas, das doutrinas filosófico-morais e religiosas. De resto, a mais característica poesia lusitanista (parte do Só e das obras finisseculares de Júlio Brandão e Lopes Vieira, etc.) coloca-se para além destas questões, banhada numa religiosidade cristã tradicional.

Na fase do final do séc. XIX, talvez o caso mais elucidativo seja o de Júlio Brandão. O traço ideológico mais saliente d' O Livro de Aglais é mesmo uma religiosidade de expressão ingénua e, às vezes, popularizante nas suas manifestações mais autênticas, implantada na candura sentimental do despojamento infantil; é o arroubo despertado pela «Oração da manhã», ao Anjo da Guarda, no menino que se extasia diante das suas «asas de neve» e compara a pureza angelical ao linho e às açucenas que conhece. Esta mesma religiosidade se manifesta, a espaços, pela confiança familiar no Pai (<<O Senhor há-de ser doce para contigo») e encaminhar-se-á, muito lusitanistamente, para a devoção mariana do poema «Santa Virgem das Virgens, Mãe piedosa». Também em Saudades a religiosidade se apresenta como socorro da vida atribulada do poeta e se concentra predominantemente na devoção mariana, de acordo com uma ingénua ternura sentimental (<<E assim se afez meu coração como um cordeiro / A amar a Deus, a amar os bons, a amar aTerra»), em cujas manifestações se integra: é ver «Ramo de

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Saudades» e «Mãe». N'O jardim da Morte, voltamos a encontrar uma súplice «Oração» à Virgem.

Mas podemos referir, com brevidade, alguns casos ilustrativos de rotas espirituais menos simples no Neo-Romantismo finissecular.

Manuel Gaio, vindo de uma geração intervalar e aparentando sempre um maior apego à lucidez racional, cultivará o que ele próprio definiu, na Arte, como "1' amere douceur de penser" ao serviço de uma questionação lírica do sentido da vida que, sem frutificar em iluminação cosmovisiva, se apazigua numa pessoal versão da livslf)gn ibseniana (sem embargo de certa inflexão, no fim da carreira novecentista). As Primeiras Rimas encontravam já «o tesoiro eterno da Ilusão», tópico caro às obras ulteriores. Quando, com O Mundo vive d'llusão (1896) e a paráfrase mítica As três Ironias (1897), abre um breve parêntese no seu "regionalismo" pela preocupação de inspiração "universalista", um pouco se aproxima da mundividência simbolista (no primeiro caso) e da crise espiritual decadentista (no segundo caso); mas o trajecto e a convicção dominantes permanecem os mesmos, sugeridos pelo título do primeiro poema. Neste, o encontro salvífico com o Ser alcançar-se-ia numa intuição altaneira como uma montanha a que se sobe por um lento e penoso processo de depuração ascética e de desprendimento céptico; se a visão do mundo terreno é pessimista (<<A Fé morreu nos corações, e a Vida/ Já não se chama Acção»), a busca metafísica só fará que nele não se passe a ver mais do que «um fumo de aparência», conduzirá o sujeito à conclusão de que «o mundo ... o mundo vive d'Ilusão», e fá-Io-á aspirar à «suprema ventura! De nada desejar».

Se passarmos a Alberto de Oliveira, cujos inícios em revistas como Boémia Nova (Coimbra) e Interme:a.o (Porto) e no volume de Poesias (1889-91) se revelam ainda fortemente influídos pelo Decadentismo, encontramos a ilustração doutra variante mental do Neo-Romantismo lusitanista. O cerne de Bíblia do Sonho está num nirvanismo que da sensibilidade se estende ao espírito e deste reflui àquela em busca de escape satisfatório; julgando-se repetidamente próximo de Buda pela «contemplação boquiaberta e muda» e por um nefelibatismo que o compensa do desgosto perante a realidade circundante, o poeta revela que o essencial da sua personalidade é o horror das necessidades concretas, das actividades e sofrimentos da comum humanidade, e um impreciso repúdio da forma que quotidianamente reveste a vida modema. A ausência de uma cosmovisão rigorosamente idealista transparece não apenas de cada vez que o poeta valora o concreto contornante, mas também sempre que, ao opor-lhe o universo salvífico do "Ideal" ou do "Sonho", o representa como mera via evasiva, mundo fictício de construção subjectiva a que acorre com ardor religioso e abandono irracional. É facto que a gestação desta fuga tem, por vezes, uma dimensão que a aproxima do renovo finissecular do Idealismo,

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na medida em que o poeta rejeita uma visão do mundo de matriz positivista e naturalista, abrindo-se ao Absoluto e ao Mistério: «Pois se, além do que enxerga, a custo, a Humanidade, / Do que ela chama Exacto, Observação, Verdade, / Há tanta coisa bela, em nevoeiro envolvida: / O Infinito, o Divino, o Absoluto da Vida!». Não vai mais longe, porém, esta profissão de fé metafísica, modulação poética (parcamente poética ... ) do Incognoscível spenceriano.

Nas Palavras loucas, dominadas por uma incompreensiva, passadista e pitoresca repulsa pelos avanços da civilização urbana e industrial em Portugal, oferecendo também (em modulação teórica do Só) uma não menos pitoresca e mórbida apologia das cognições arracionais (adivinhos, videntes, etc.) e das insanidades pretensamente geniais (epilépticos, loucos, etc.), também o primordial pessimismo à maneira de Schopenhauer se deve conjugar com o Incognoscível de Spencer e com o Inconsciente de Hartmann (veja-se «Profissão da minha fé»). Por sua vez, esta conjugação de ideias é coroada pela adesão ao renovo religioso epocal. Pelo espírito religioso se julga dever fecundar-se a arte (veja-se «A Rosa Tirana»). Religião, arte e vida devem ser regidas por um indefinido "Idealismo", que é ímpeto irracionalista, ainda não nietzscheanamente vitalista e volun­tarista, mas emotivo e quimérico (como se manifesta em «Profissão da minha fé»).

Quer em Alberto de Oliveira (cf., por ex., na Blôlia do Sonho a condenação do egoísmo esteticista no soneto XV e estes versos do poema IV: «E prometemo-nos, então, nunca ceder / À terrena Vaidade, ao mesquinho Prazer, / À Glória, às seduções baixas da Humanidade: / Sonhamos construir uma nova cidade, / Onde se pregue o Bem, o Amor, o Isolamento»), quer em Silva Gaio (cf. os amargos contrastes que a baixa realidade de indivíduos e sociedades oferece com a quimera do espírito, em O Mundo vive d' Ilusão), o egotismo da construção do "Ideal" e da vivência da "mentira vital" coabitam com uma preocupação moralista, iniludível tambémn'OsMeusAmores de Trindade Coelho e mais notória, naturalmente, em toda a lírica lusitanista de inspiração cristã tradicional.

Esse vector moralista contrasta tanto com o esteticismo amoral ou satânico do Decadentismo e com a estesia autotélica ou iniciática do Simbolismo, quanto o seu correspondente formal- o pendor didáctico - se contrapõe, junto com o discursivismo descritivo e narrativo e com a simplicidade e a clareza, à poética da sugestão daqueles dois estilos de época.

Também quando, em Via Dolorosa, D. João de Castro inflecte em sentido neo-romântico o tratamento da problemática de Jesus (a procura de um sentido imanente da Vida), a figura do "Velho" faz a apologia do compromisso humanitarista, exaltando-se até à pregação de um moralismo

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que impõe vigilância contra a ventura alienatória de todo aquele cuja «vida passa, sem um gemido» porque «voando, / Dorme, sonhando! Sonha esquecido!». A pouco discreta sentimentalidade do altruísmo do "Velho" conforma também o vago sonho do mundo ideal a procurar; o mesmo acontece com o "Príncipe" e com o "Escravo" (o qual se distingue pelo seu passado sofredor e pela fé religiosa que nesse sofrimento floresceu e que lhe norteia sempre os passos).

Quanto a Jaime de Magalhães Lima, desde meados de 80 que analisa as causas transitórias e perenes do pessimismo, reconhecendo-o válido e muito próximo do Cristianismo enquanto incentivo a algum desprendi­mento céptico das ambições do homem moderno e a uma ascética redução das necessidades da sua personalidade sensual e envelhecida ( «Ascetismo», in A Província, l.IV.1886). Ao recolher, em 1886, os Estudos sobre a Literatura Contemporânea que se demarcam criticamente da geração realista e naturalista, Magalhães Limajunta~lhes importante prefácio onde se esboça o seu pensamento espiritualista, desde início oposto ao racionalismo e ao cientismo em favor de uma vaga intuição e do moralismo neo­franciscano, e que em breve, nas páginas da Revista de Portugal e alhures, tomará a forma de apologia da "renascença religiosa".

Entretanto, vinha descobrindo no derradeiro Tolstoi onde a exemplar defesa e aplicação das directrizes que intimamente o atraíam; natural, portanto, que viaje até à Rússia e procure o Mestre, com quem estabelece breve convívio. Por finais de 1892, publica em volume As Doutrinas do Conde Leão Tolstoi, onde não se limita a apoiar no mestre russo o protesto anti-burguês, a pregação contra a injustiça social e contra o apego à materialidade. Seduzido pelo seu ascetismo e pela sua espiritualidade, considerando a moral cristã indispensável à vida social, Magalhães Lima adere ao cepticismo de Tolstoi perante os progressos da civilização, ataca os partidários do cientismo materialista, ao mesmo tempo que rejubila com a iminência da «ressurreição religiosa» e erige em ideal supremo a «vida segundo a doutrina de Jesus».

Magalhães Lima colocava-se, assim, à cabeça das várias vozes que difundem a vaga do "Neo-Cristianismo" que, sob os ventos do tolstoismo e do franciscanismo heterodoxo ou ortodoxo, alastrará enquanto evangelismo doce, altruísta e capaz de assimilar reivindicações enfatizadas pela propaganda libertária (como o anti-militarismo).

11. Resta-nos delinear o vector que catalisa ou centra a desenvo­lução da literatura neo-romântica, que - na lírica, como na narrativa e no drama, na crítica impressionista, na crónica e no memorialismo - se revela difusora do psicologismo, coerente com a crítica ao Realismo e ao Naturalismo levada a cabo em nome do "Homem total" e da sua ex-

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pressão (até aí ilegitimamente cingida às determinações somáticas e ambientais), desde Jaime de Magalhães Lima a Luís de Magalhães (Estudos sobre a Literatura Contemporânea, 1886, e Notas e Impressões, 1890), desde Alberto de Oliveira (Palavras loucas) e Silva Gaio (Um Ano de Crónica) a Trindade Coelho (cf. Autobiografia e Cartas e O Senhor Sete), etc.

Ora, tal como o fundo elegíaco ou desencantado de muita poesia do Neo-Romantismo lusitanista radica no temor ou na lamentação da impossibilidade de realização amorosa, assim também no centro da utopia ou do regressivismo rústico-patriarcal e como catalisador ou expoente da evasão e do embriagamento no pitoresco, na nostalgia da infância e de eras passadas, na fantasiação quimérica e no cenário luarento, isto é, no centro de quase todas as criações literárias do Neo-Romantismo lusitanista, vamos encontrar o tratamento idealizado e tradicionalista do amor. Essa ideali­zação amorosa situa-se quase sempre numa dulcorosa derivação de João de Deus, reelaborada pelo contexto ideológico do estilo epocal. Algumas vezes, mas quase só no drama e na narrativa, como nas novelas Pecado Antigo, de Silva Gaio, e Maria do Céu, de Júlio Brandão, ou em certos textos d'Os Meus Amores, deparam-se-nos atalhos da rota passional de Camilo Castelo Branco.

Para compreender a imagem de mulher amada e o devaneio erótico típicos do Neo-Romantismo tradicionalista, desde a lírica que refaz o modelo da Purinha e a quimera afectiva de Anto até ao teatro que dramatiza o paradigma tarde consubstanciado por Júlio Dantas no prelado português d' A Ceia dos Cardeais, importa atender a que os lusitanistas corporizavam a ligação que Teófilo Braga (veja-se o preliminar da primeira Alma Portuguesa, 1893) estabelecia entre o carácternacional e uma predisposição amorosa daquele tipo; e que desde 1884 Joaquim de Araújo teorizava, no prefácio aos Dispersos de Eduardo Coimbra, sobre a ligação placentária entre essa disposição amorosa peculiar e a genuína tradição poética portuguesa: «A característica particular e predominante do lirismo português é essa vaga saudade amorosa, terna e profundamente viva, que é como que o nítido espelho de dores, aspirações e anseios de toda uma alma colectiva. Atravesse-se numa jornada rápida o largo espaço, que vem do balbuciar dos nossos cancioneiros aos suavíssimos poemas primaverais de João de Deus, e encontrar-se-á sempre mais ou menos patente esse fundo de ideal tristeza, essa aspiração a um amor indefinido, simples e puro, como de quem vem de um mundo espiritual extinto.».

Importa reconhecer, por outro lado, que o sonho de conquista da mulher amada aparecia como fulcro do projecto evasivo ou reactivo, resultante do desgostado confronto com a nova face ascensional da civilização burguesa.

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o paradigma da mulher amada será, por isso, situado de preferência no quadro sociológico da aristocracia provincial e da burguesia rural. O Neo­Romantismo lusitanista combinará os atributos físicos e morais da mulher angelical da nossa tradição romântica com os do tipo feminino apresentado pela pintura pré-rafaelita; e enxertará essa conjugação na figura de morgadinha tradicional - airosa, recatada, tema, esmoler, virtuosa, etc., quase fisicamente invisionada, mas sonhada como companheira de amor consumado e como coração do lar familiar.

A Purinha e o mundo quimérico, que, no meio das dores do Só, Anto em seu tomo sonha realizar, são o protótipo lusitanista - embora desde «A lenda da princesa» nas Primeiras Rimas de Manuel Gaio, possa aparecer transposto em exotismo mediévico, nas baladas da conquista da princesa pelo cavaleiro e/ou troveiro. De resto, a própria «Profissão da minha fé» que serve de pórtico às Palavras loucas de Alberto de Oliveira propugna esta concepção anti-decadentista e anti-simbolista do amor.

Dois autores parcialmente dominados pelo Decadentismo (e aqui ou além tocados pelo Simbolismo) na década de 90 - Júlio Brandão e D. João de Castro - são também dos que melhor reflectem em certos textos dessa mesma década o sortilégio do amor e da amada lusitanistas.

N' O livro de Aglai"S, o amor acaba decadentistamente na não­-consumação prostrante, e de passagem pode, não menos decadentista­mente, consubstanciar-se numa Rainha de Sabá que é sensual sedutora e esfíngica dominadora, evocadora do Mistério e do Crime. Porém, a linha dominante é um monótono cantar do amor convencionado na tradição romântica menor. A mulher que desperta esse amor, e que às vezes parece capaz de restituir ao poeta o gosto de viver, recebe uma caracterização abstractizante de benfeitora angelical; apesar da seiva que certos ele­mentos campestres inoculam na entronização da amada, é de modo frouxo, com adjectivação gasta, que o poeta lhe vai exalçando a beleza e a pureza, a «formosura casta» (<<Ela é sem mácula e alva de espuma», «boa e pura, nada egoísta e toda humana» ), o magnetismo do «olhar luaroso», do «lume» dos olhos, a doçura da boca (<<esse panal divino / De mel, de riso claro, e de graça e de nardo») e o andar em que desliza «eteral, modesta».

Em Saudades, o tratamento do amor está de acordo com o substrato de sentimentalidade nobriana na evasão para a infância, de vaguidade emotiva nas várias Quimeras coadas pelo troveirismo de balada (cf. «A ronda das Quimeras», por exemplo), de acolhimento das belezas rústicas, das sugestões de vida patriarcal, do folclorismo do maravilhoso e dos ritmos de romanceiro e cancioneiro. De acordo com tudo isso, a figura de mulher amada situa-se na linha predominante em O livro de Aglai"s: mulher angelical e adorada, nunca concretamente representada, mas de cuja acção se conhecem os efeitos de doçura e paz.

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REACÇÃO E COMPROMISSO NO FIM-DE-SÉCULO 393

N' O jardim da Morte, prolonga-se a ubiquidade da motivação amorosa (<<A minha alma é uma lira e tu passas-lhe os dedos»), a dependência perante um amor genesíaco e rejubilante (<<A minha alma, a imergir nas águas religiosas, / Era um jardim de inverno, e inunda-se de rosas ... »), embora só evocável numa vivência passadista (<<O tempo em que te amei, se ele ainda voltasse!. .. », diz o primeiro verso do mesmo poema).

N'O Morgadinho de D. João de Castro, de acordo com a 28 parte de «Espelhos fiéis» a renovação moral e o optimismo (depressa malogrado) vinham de uma caridade cristã em que o poeta é conduzido por «uma mulher que é uma Santa». Este papel da mulher vê-se confirmado em «Noiva», onde o poeta adere a uma concepção de amor próxima da dos momentos optimistas do Só, isto é, da felicidade evasivamente imaginada para Anto e Purinha (conducente ao casamento próprio de uma ventura rústico-patriarcal, tal como a retrata a álacre «Última Canção» ). Em «Maio­I», a «doce Prometida» é naturalmente associada ao paraíso campestre circundante - as «Alegrias do Minho!» a quem o poeta já pedira um refúgio ameno, explicitamente equiparado à ventura da infância. Dando seguimento à questionação lírico-metafísica de Jesus (livro intercalar onde o Amor é visto pela óptica das fundamentais contradições decadentistas), o poemeto Via Dolorosa, ao inflectir em sentido neo-romântico o tratamento da interrogação idealista sobre o sentido da Vida, coloca também um amor neo-romântico no centro de trajectos utópicos como a jornada do Velho. Citemos um passo, para que se verifique como o metaforismo manifesta essa inflexão neo-romântica:

Lá muito longe, onde o luar se esconde, Num vaI murado por milhões de serras, Fica um país maravilhoso, onde Entre os homens não há ódios, nem há guerras. Dão pomos d'oiro, a paz e o Amor; Uma fecunda e próvida harmonia Rege os braços que amassam, em suor, O milagroso pão-de-cada-dia. De lá, de esse país estranho, é que acena Aquela que eu adoro, e que perdi ... À sombra da sua mão abençoante e serena, Tudo auroresce em virgindade de açucena, Tudo esplende e flori!

12. Afastado da poética da sugestão encetada pelo Decadentismo e desenvolvida pelo Simbolismo com o acume da transposição e da recognição simbólicas, o Neo-Romantismo lusitanista revaloriza o

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394 JOSÉ CARLOS SEABRA PEREIRA

discursivismo e esbate o alusivo. O descritivo, sobretudo paisagístico, realcança tangível peso sistémico, sem dúvida diverso do que coubera ao descritivo parnasiano, mas também inconcebível no contraponto impressionista/expressionista da poesia íntima de decadentistas e sim­bolistas. O narrativo, que estes por vezes continuavam a cultivar, também se reforça nos cantos de amor e de lenda, nas evocações da História e do Povo, nos sucedâneos do Romanceiro e do Cancioneiro populares.

Alheando-se de ousadias prosódico-versificatórias para preferirem as composições em redondilhas maior e menor e para complementarem-nas com um aproveitamento moderado da renovação métrica realizada pelos esteticistas e das potencialidades do poema em prosa ou da prosa poética, os neo-românticos lusitanistas falham algumas vezes pela banalidade do sentimento e da expressão; mas também alcançam êxitos ao recriar esteticamente o prosaico, o telúrico, o rural, ao tornar a discursividade cativante pela surpresa da inserção da oralidade na lírica. Além disso, ao adequarem textos programaticamente popularizantes à psicologia, ao tom, ao ritmo e à linguagem das criações autenticamente populares, Júlio Brandão e outros conduzem à melhor poesia de Corrêa d' Oliveira, a partir de Eiradas (1899) e de Auto do Fim do Dia (1900).

A maior parte das preferências imagísticas de Decadentismo e. Simbolismo desaparecem. Quase só o campo das imagens religiosas se mantém, e esse mesmo transformado, pois o sumptuarismo litúrgico dá lugar à inspiração na vida religiosa tradicional do habitat aldeão português (capela, procissão, romaria, promessa, culto da Virgem e dos Santos, etc.). E essa transformação da imagística religiosa faz-se de acordo com o fundo geral de símiles e metáforas, que agora radicam na idealização da natureza, das actividades tradicionais e da vida agrícola.