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1 REABILITACO DOS EDIFCIOS DA ANTIGA ABEGOARIA, ESTUFAS E AVIRIO DA QUINTA DA PENA, NO PARQUE DA PENA, EM SINTRA HUGO FARIAS ALEXANDRA ALEGRE Arquitecto Arquitecta Professor Auxiliar FAUL Professora Auxiliar IST CIAUD CERis, ICIST Faculdade de Arquitectura, U. Lisboa Instituto Superior Técnico, U. Lisboa Lisboa; Portugal Lisboa; Portugal [email protected] [email protected] RESUMO O artigo apresenta os princípios e estratégias que direccionaram a intervenção arquitectónica na reabilitação de um conjunto de edifícios datando da segunda metade do século XIX abegoaria, estufas e aviário localizados na Quinta da Pena, no Parque da Pena, em Sintra. Salientam-se as premissas associadas à preservação, recuperação e restauro, e as opções estéticas, técnicas e construtivas que fundamentaram a intervenção neste conjunto construído. A reabilitação teve como base a reconversão do edifício da antiga abegoaria para servir um programa de recepção e acolhimento aos visitantes desta zona do parque, e de um centro equestre, albergando um conjunto de boxes de cavalos, espaços de apoio e espaços de representação, e a recuperação das restantes estruturas estufas e aviário - para os seus usos originais. 1. INTRODUÇÃO O Parque da Pena, na Serra de Sintra, a oeste de Lisboa, constitui um dos mais notáveis conjuntos arquitectónicos e paisagísticos de Portugal. As referências históricas ao parque remontam ao século XIV, quando aí se construiu uma ermida consagrada a Nossa Senhora da Peña. No século XVI, por ordem de D. Manuel I, a ermida daria lugar ao Real Mosteiro da Senhora da Pena que, depois de um período de decadência, seria vendido em hasta pública em 1838, a D. Fernando de Saxe-Coburgo, rei consorte da rainha D. Maria II. Em colaboração com o Barão de Eschwege, arquitecto militar de origem alemã, D. Fernando inicia o projecto de construção de um palácio que conservará partes do antigo mosteiro, ampliando-o ao gosto romântico, com influências da arquitectura manuelina e mourisca. D. Fernando desenha também o parque envolvente ao palácio: tirando partido da morfologia do terreno, da fertilidade dos solos e do clima de Sintra, manda plantar uma extensa área florestal, com introdução de espécies originárias de países distantes. O parque seria cenário para a construção de um conjunto de pequenos edifícios, ruínas, pavilhões, fontes, edifícios utilitários de apoio ao parque - nos quais se incluem os edifícios da antiga abegoaria, da estufa principal e do aviário, da segunda metade do século XIX -, que contribuem para a criação de um ambiente romântico de grande beleza natural. A antiga abegoaria destinava-se originalmente à guarda de gado e de instrumentos de trabalho de lavoura. O edifício é constituído por um torreão central de dois pisos e sótão, acompanhado de ambos os lados por dois corpos de piso térreo com aproveitamento do desvão da cobertura, inclinada e com estrutura de madeira. Na fachada principal, com princípios de composição simétricos, destaca-se a sul um tanque anteriormente alimentado por uma carranca em bronze, da autoria do mestre escultor Simões d’Almeida; e a norte a abertura de um vão para o e xterior, horizontal e de grande dimensão, suportado pela colocação de quatro pilares metálicos. Em meados do século XX, a construção de um novo

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REABILITACAO DOS EDIFICIOS DA ANTIGA ABEGOARIA,

ESTUFAS E AVIARIO DA QUINTA DA PENA, NO PARQUE DA PENA, EM SINTRA

HUGO FARIAS ALEXANDRA ALEGRE

Arquitecto Arquitecta

Professor Auxiliar FAUL Professora Auxiliar IST

CIAUD CERis, ICIST

Faculdade de Arquitectura, U. Lisboa Instituto Superior Técnico, U. Lisboa

Lisboa; Portugal Lisboa; Portugal

[email protected] [email protected]

RESUMO

O artigo apresenta os princípios e estratégias que direccionaram a intervenção arquitectónica na reabilitação de um

conjunto de edifícios datando da segunda metade do século XIX – abegoaria, estufas e aviário – localizados na Quinta

da Pena, no Parque da Pena, em Sintra. Salientam-se as premissas associadas à preservação, recuperação e restauro, e as

opções estéticas, técnicas e construtivas que fundamentaram a intervenção neste conjunto construído. A reabilitação

teve como base a reconversão do edifício da antiga abegoaria para servir um programa de recepção e acolhimento aos

visitantes desta zona do parque, e de um centro equestre, albergando um conjunto de boxes de cavalos, espaços de apoio

e espaços de representação, e a recuperação das restantes estruturas – estufas e aviário - para os seus usos originais.

1. INTRODUÇÃO

O Parque da Pena, na Serra de Sintra, a oeste de Lisboa, constitui um dos mais notáveis conjuntos arquitectónicos e

paisagísticos de Portugal. As referências históricas ao parque remontam ao século XIV, quando aí se construiu uma

ermida consagrada a Nossa Senhora da Peña. No século XVI, por ordem de D. Manuel I, a ermida daria lugar ao Real

Mosteiro da Senhora da Pena que, depois de um período de decadência, seria vendido em hasta pública em 1838, a D.

Fernando de Saxe-Coburgo, rei consorte da rainha D. Maria II. Em colaboração com o Barão de Eschwege, arquitecto

militar de origem alemã, D. Fernando inicia o projecto de construção de um palácio que conservará partes do antigo

mosteiro, ampliando-o ao gosto romântico, com influências da arquitectura manuelina e mourisca. D. Fernando desenha

também o parque envolvente ao palácio: tirando partido da morfologia do terreno, da fertilidade dos solos e do clima de

Sintra, manda plantar uma extensa área florestal, com introdução de espécies originárias de países distantes.

O parque seria cenário para a construção de um conjunto de pequenos edifícios, ruínas, pavilhões, fontes, edifícios

utilitários de apoio ao parque - nos quais se incluem os edifícios da antiga abegoaria, da estufa principal e do aviário, da

segunda metade do século XIX -, que contribuem para a criação de um ambiente romântico de grande beleza natural. A

antiga abegoaria destinava-se originalmente à guarda de gado e de instrumentos de trabalho de lavoura. O edifício é

constituído por um torreão central de dois pisos e sótão, acompanhado de ambos os lados por dois corpos de piso térreo

com aproveitamento do desvão da cobertura, inclinada e com estrutura de madeira. Na fachada principal, com

princípios de composição simétricos, destaca-se a sul um tanque anteriormente alimentado por uma carranca em bronze,

da autoria do mestre escultor Simões d’Almeida; e a norte a abertura de um vão para o exterior, horizontal e de grande

dimensão, suportado pela colocação de quatro pilares metálicos. Em meados do século XX, a construção de um novo

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corpo adoçado a nascente da abegoaria veio permitir a utilização do conjunto enquanto edifício de apoio aos serviços

florestais do parque.

Fig. 1, 2 e 3: Abegoaria: vistas exteriores e interior (estado original).

As estufas da Quinta da Pena são constituídas por três edifícios: a estufa principal, corpo de maiores dimensões,

datando da segunda metade de oitocentos, destinava-se originalmente à produção de plantas e flores. Trata-se de um

edifício de desenho erudito, com uma parede envolvente, baixa, em alvenaria de granito e uma estrutura em madeira, de

desenho cuidado e complexo, com elementos de travamento em aço, a suportar uma cobertura de duas águas de telhas

planas de vidro. A estufa encontra-se dividida em três espaços separados, em sequência e comunicantes, de dimensão

equivalente, correspondentes a estufa quente, estufa morna e estufa fria; a temperatura dos diferentes espaços era

garantida por um sistema de tubagens de ferro fundido inseridas numa caleira envolvente, onde circulava água aquecida

por uma caldeira instalada num compartimento adoçado ao corpo principal da estufa. As estufas de trabalho são dois

corpos de menores dimensões, provavelmente construídos na primeira metade do século XX, pelos serviços florestais

responsáveis pela manutenção do parque. De menor interesse arquitectónico e construtivo, estes dois corpos

rectangulares e dispostos paralelamente, apresentam uma envolvente construída com paredes laterais e de topo em

alvenaria de granito, e uma cobertura de duas águas em elementos de vidro, suportada por uma estrutura muito simples,

originalmente de madeira, constituída apenas pela fileira e pelas pernas.

Datando do século XIX, o aviário é um corpo cilíndrico construído com uma espessa parede de alvenaria de granito,

com abertura de vãos de portas e janelas em quatro pontos diametralmente opostos, sobre a qual assenta uma cúpula

aproximadamente semi-esférica. A cúpula tem uma solução construtiva singular, baseada num sistema que utiliza vasos

cerâmicos abertos para o espaço interior, recobertos por argamassa de cal aérea; constitui assim uma laje esférica

alveolar, solução igualmente utilizada em várias cúpulas do Palácio da Pena. Este volume cilíndrico seria

complementado por três braços rectangulares, dispostos em “T” a partir do corpo principal, que funcionariam como

espaços de exposição das aves, sendo provavelmente delimitados por uma estrutura metálica e rede de protecção.

Fig. 4, 5 e 6: Estufa principal: vista exterior e interior, e aviário (estado original).

Quando, em 2010, por iniciativa da empresa Parques de Sintra – Monte da Lua, se iniciou o processo de reabilitação

deste conjunto, o edificado encontrava-se em avançado estado de degradação, em consequência do seu abandono,

vandalismo e, no caso da abegoaria, do incêndio que sofreu em 1999. Pretendia-se a reabilitação do edifício da

abegoaria para servir um programa de recepção e acolhimento aos visitantes desta zona do parque e de centro equestre,

albergando um conjunto de boxes para cavalos, espaços de apoio e espaços de representação. No caso das estufas,

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pretendia-se que a principal fosse reabilitada para estufa expositiva; e que as de trabalho se requalificassem para

voltarem a ser espaços úteis para o parque, podendo ser também percorridas pelos visitantes do parque. O aviário

deveria ser reabilitado para a sua função original, passando a constituir um novo foco de interesse nesta zona do parque,

onde posteriormente serão instalados uma cafetaria, uma loja e um conjunto de espaços de apoio ao visitante.

2. INTERVENÇÃO SOBRE OS DIFERENTES EDIFÍCIOS

2.1 Antiga Abegoaria da Quinta da Pena

Estratégia de intervenção e opções estruturais e construtivas

As estratégias de reconstrução e reabilitação sobre o conjunto edificado da abegoaria basearam-se nos princípios

estabelecidos pela Carta de Cracóvia [1]: 1) demolição do edifício anexo, construído no século XX, de fraco valor

arquitectónico e excessiva volumetria, que se encontrava muito degradado, comprometendo a leitura do edifício da

abegoaria, e que em nada contribuía para a autenticidade do edifício enquanto estrutura de apoio à exploração do

parque; 2) reconstrução e reabilitação do edifício da abegoaria, de desenho erudito, de modo a restabelecer e potenciar a

sua imagem e identidade, acolhendo os espaços mais representativos do programa de usos: entrada e recepção, sala

polivalente, sala de reuniões, espaço para estacionamento e exposição de charretes; 3) construção de um corpo

independente, a nascente do edifício da abegoaria, semi-enterrado na encosta existente, que permite a autonomização e

valorização do edifício original e a circulação em seu redor, dissimulando esta nova construção na envolvente natural e

devolvendo o protagonismo à abegoaria. Este edifício integra os espaços do centro equestre: cavalariças para cavalos de

trabalho ardennais e para cavalos de recreio; espaço de veterinário e ferrador; espaços complementares de apoio.

Associou-se a este novo corpo a construção de um tanque de água enterrado na encosta, necessário para alimentar as

redes de incêndio e de rega, que servirá os diferentes espaços exteriores desta zona do parque.

Reabilitação do edifício antigo

O edifício da antiga abegoaria da Quinta da Pena encontrava-se num estado de quase ruína quando se iniciou o processo

da sua reabilitação. Após a demolição do edifício que se havia adicionado à fachada posterior durante o século XX, a

primeira intervenção foi de remoção de todos os elementos construídos que colocavam em causa a autenticidade do

edifício, de desmonte do telhado ainda existente (telhas e elementos estruturais) e de limpeza dos elementos construídos

restantes. Verificou-se a resistência das paredes estruturais de alvenaria de granito. Os rebocos interiores foram

retirados, não apenas como resultado da impossibilidade da sua preservação devido ao estado de conservação, mas

também pela necessidade construtiva de introduzir uma lâmina de betão projectado sobre uma malha de aço com função

de estabilizar e consolidar as alvenarias. Esta, em conjunto com a inserção de um lintel de betão perimetral ao nível dos

topos das paredes, funcionando simultaneamente como elemento de ligação para a estrutura de madeira da cobertura,

garante a estabilidade do edifício, nomeadamente em termos sísmicos. Ao nível térreo, reconstruiu-se todo o pavimento,

tendo-se optado por utilizar uma solução de laje ventilada com recurso a moldes de polipropileno reciclado. Para os

pavimentos do primeiro piso utilizou-se uma estrutura em barrotes de madeira maciça, placas de aglomerado de fibras

de madeira de grande dimensão (OSB) e revestimento em madeira. A nova escada e passadiço que ligam esta à sala

existente no torreão central têm uma estrutura de aço, revestida a madeira.

Para a cobertura do edifício optou-se por manter as soluções estruturais e construtivas originais: redesenharam-se as

asnas de madeira maciça e os elementos metálicos de ligação a partir dos originais que resistiram à ruína;

redesenharam-se os pormenores originais dos remates dos beirados do telhado, os elementos de apoio, a caleira

envolvente e as forras inferiores das abas da cobertura; substituíram-se as telhas originais por telhas Marselha de

dimensão e desenho idêntico, em virtude de as existentes não garantirem as necessárias qualidades de resistência e

estanquidade. Introduziu-se uma protecção de impermeabilização e um painel sandwich de isolamento térmico entre as

telhas e as varas da estrutura da cobertura.

Todos os vãos exteriores de portas e janelas abertos sobre a fachada principal e sobre as fachadas dos topos norte e sul

do edifício foram reconstruídos em madeira maciça, reconstituindo-se o seu desenho, soluções e cor originais. Os vãos

da fachada nascente, alguns já inexistentes, outro novos, assumem um desenho mais simplificada, construindo-se

igualmente em madeira maciça, sendo todos pintados na cor branco. As cantarias dos vãos, de calcário, foram limpas e

escovadas, sendo pontualmente reparadas com a inserção de novas pedras idênticas em termos de natureza e cor. Com

uma composição de alçados de base simétrica, a imagem exterior do edifício joga com diferentes vãos, com o desenho

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das suas cantarias, com um soco em pedra calcária e com um conjunto de pilastras e molduras em argamassa, a fingir

cantaria. A superfície principal das fachadas é constituída por uma argamassa de cal pigmentada, numa cor entre o rosa

e o salmão, que estabelece uma relação cromática equilibrada com as cantarias, o verde das madeiras e o alaranjado das

telhas da cobertura.

A recuperação destas superfícies de argamassa, teve em especial atenção a reconstituição da imagem original do

edifício, procurando incorporar, sempre que possível, as superfícies já existentes e não degradadas. Assim, quanto aos

fingidos, encontrou-se uma argamassa de cal num tom semelhante ao original e trabalhou-se a sua superfície de modo a

alcançar um acabamento semelhante ao pré-existente (superfícies lisas, bujardadas, alhetas, chanfres, etc.). Na

superfície de cor, após uma limpeza profunda (para além de manchas, apresentava marcas, grafites, etc.), manteve-se ao

máximo o revestimento ainda consolidado, e preencheu-se as lacunas com uma argamassa de revestimento que

restituísse, na cor e textura, as argamassas antigas. Este trabalho revelou-se difícil, tanto na procura da afinação da cor,

como sobretudo na dificuldade constatada da não existência de uma cor única, mas sim muitas variações tonais na

mesma e em diferentes paredes; por outro lado, face à humidade da Serra de Sintra, a secagem destas argamassas

demorou um tempo considerável, variando a sua cor significativamente ao longo deste período de secagem.

O programa do edifício consiste, ao nível do piso térreo: num átrio, onde funciona uma recepção-loja para os visitantes;

numa sala polivalente; numa instalação sanitária pública e na escada de acesso ao piso superior. Ao nível do piso

superior: uma ponte-passadiço, sobre o átrio de entrada, que liga a escada a uma sala de reuniões, localizada no torreão

central; uma pequena habitação, de apoio a eventos realizados nos espaços mais públicos do edifício, ou para alojar,

temporariamente, algum visitante do parque. No desenho e qualificação destes espaços interiores, por se tratar de um

programa inteiramente novo, optou-se por uma linguagem contemporânea utilizando pedra lióz e madeira de pinho nos

pavimentos, painéis de madeira de sucupira na escada, guardas, portas, armários, e estuque pintado de branco em todas

as restantes superfícies.

Fig. 7, 8 e 9: Abegoaria: vistas exteriores e vista interior da sala polivalente.

Construção do edifício novo

Para a resolução do programa de usos ligado ao centro equestre – boxes para cavalos, veterinário, ferrador e espaços

complementares -, optou-se por construir um novo corpo localizado a nascente do edifício da abegoaria, encastrado na

encosta existente e desenhando um espaço-canal que estabelece uma rua entre as duas edificações.

O edifício constrói-se como uma caixa paralelepipédica em betão armado, abrindo todos os seus compartimentos para

poente, sobre a abegoaria, e deixando entrar luz e ventilação superiormente, através de clarabóias que se recortam na

sua cobertura ajardinada. Assume-se o betão aparente como a matéria que dá expressão ao edifício, tratando-se as suas

superfícies de modo diferente: ao nível térreo e nos interiores das boxes o betão é liso e envernizado; na platibanda que

remata superiormente o corpo construído optou-se por picar a superfície, obtendo-se um betão bujardado cuja expressão

se aproxima da rugosidade das pedras graníticas dos muros de suporte laterais. Na preparação do betão deste elemento

construído optou-se por inertes de granito amarelo, de modo a que ao aparecerem pela picagem, se aproximasse da cor

dos muros referidos. Em complemento aos elementos em betão, os vãos (portas e portões das boxes) constroem-se com

uma estrutura em aço pintado a tinta de esmalte forja na cor preto, e preenchimento em elementos de madeira maciça de

casquinha, envernizados. Lateralmente ao corpo habitado, dois muros de pedra irregular de granito amarelo da Serra de

Sintra desenham uma curva que por um lado, sustenta as terras da encosta, e por outro abraçam o espaço envolvente ao

conjunto da abegoaria. Nos arranjos exteriores optou-se por dar continuidade às materialidades já existentes no parque:

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caminhos em saibro granítico, valetas envolventes aos edifícios e espaço fronteiro em calçada de cubos irregulares de

granito cinzento.

Fig. 10 e 11: Abegoaria, edifício novo: vistas exteriores.

2.2 Estufas da Quinta da Pena

Localizadas a poente do conjunto da abegoaria, a uma cota inferior, encontramos as estufas da Quinta da Pena. Estas

são constituídas pela estufa principal e pelas estufas de trabalho.

2.2.1 Estufa Principal - Estratégia de intervenção e opções estruturais e construtivas

Quando se iniciaram os trabalhos de reabilitação este edifício encontrava-se em avançado estado de degradação: a

estrutura de madeira encontrava-se parcialmente destruída, a maioria dos elementos de vidro já não existiam, os muros

envolventes e os interiores encontravam-se praticamente em ruína. No entanto, foi possível proceder a um levantamento

completo de todos os elementos constitutivos do sistema construtivo da estufa, de modo a poder reconstruí-la o mais

fielmente possível.

A estratégia de intervenção seguiu as seguintes premissas: 1) Redesenho e reconstrução integral da estufa, procurando

devolvê-la a um estado próximo do original, significando a reconstituição de todos os elementos de acordo com o

levantamento efectuado: paredes envolventes exteriores; elementos de madeira e metálicos da estrutura; telhas de vidro

e elementos de fixação; vãos de janelas e de portas; canteiros e tanques interiores; caleira envolvente e sistema de

aquecimento; 2) Demolição do corpo anexo e desqualificado que continha a caldeira de aquecimento, prejudicando a

imagem e clareza da estufa, mantendo-se a chaminé, volume cónico em alvenaria de tijolo maciço, rebocado; sua

substituição por um novo corpo, estrutural e compositivamente decorrente da lógica arquitectónica da estufa; 3) Arranjo

dos espaços envolventes, reconstruindo muros de suporte, escadas e caminhos, de modo a garantir uma circulação

confortável e uma comunicação entre as diversas plataformas que constroem esta zona do Parque da Pena.

Depois de removidos todos os elementos estruturais e da cobertura da estufa, e da demolição do corpo da caldeira,

procedeu-se a uma limpeza de todos os restantes elementos: paredes, muros interiores de canteiros, tanques e suportes

de prateleiras. Os rebocos das paredes envolventes de alvenaria de pedra foram removidos, tendo-se verificado que estas

se encontravam em excelente estado de conservação. Um novo reboco de cal aérea foi aplicado sobre as paredes, tendo-

se optado por um acabamento semelhante ao aplicado no edifício da abegoaria: barramento com pasta de cal, com

adição de pó mineral do tipo ocre, de modo a obter uma cor branco-creme. De forma a garantir uma maior resistência

destes muros exteriores à chuva e humidade, introduziram-se cantarias de calcário sobre os topos das paredes,

constituindo um peitoril contínuo de remate às paredes, servindo de apoio à estrutura da cobertura e aos vãos de janela.

Também nas portas de entrada se aplicaram novas soleiras de pedra, na medida em que as originais se encontravam

muito degradadas.

A reconstrução de todos os elementos de madeira (com madeira maciça de casquinha) e metálicos (tirantes transversais

e longitudinais) respeitaram a forma, o material e dimensões originais. As portas e janelas foram reconstruídas a partir

das ainda existentes; as ferragens de movimento das janelas projectantes também foram construídas em aço conforme as

originais; e as telhas de vidro da cobertura respeitam o desenho original, sendo hoje construídos num vidro mais espesso

(3 mm em vez dos 2 mm originais), por razões de resistência.. No assentamento das telhas de vidro actualizou-se a

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solução original de fixação das telhas às varas da estrutura da cobertura. Originalmente fixadas com elementos de

chumbo, dobrados dos dois lados do topo inferior de cada telha, foram agora substituídos por zinco, com a mesma

solução.

Recuperaram-se os muretes de suporte das prateleiras existentes no interior dos compartimentos da estufa, e os muretes

e fundos dos canteiros e tanques de água. Repavimentou-se o interior em saibro estabilizado, mantendo a solução

original. Reconstruíram-se os muretes em tijolo maciço da caleira envolvente, e restabeleceu-se a solução de

aquecimento das estufas quente e morna, com a introdução de nova tubagem em ferro suspensa em apoios metálicos

dentro da caleira. A água que circula nesta tubagem será aquecida por uma nova caldeira, funcionando a pellets de

madeira, ocupando um espaço no corpo que futuramente albergará a loja e outras dependências de apoio aos visitantes

do parque.

Na envolvente directa ao edifício, reconstruíram-se as escadas de acesso à plataforma onde está implantado, e os muros

de suporte que delimitam esta plataforma a norte e a nascente. Os muros constroem-se com pedra irregular de granito da

Serra de Sintra; as escadas apresentam um espelho de pedra irregular de granito e cobertores e patim em cubos

irregulares, também de granito. Reconstruíram-se também os pavimentos exteriores, utilizando as mesmas soluções da

envolvente da abegoaria: saibro granítico e calçadas.

Fig. 12 e 13: Estufa Principal: vista exterior e vista interior.

2.2.2 Estufas Secundárias - Estratégia de intervenção e opções estruturais e construtivas

Construídas já no século XX, as estufas de trabalho são dois corpos rectangulares de proporção longitudinal, dispostos

paralelamente e bastante próximos, com uma cobertura simples de duas águas. Embora não tão degradadas como os

restantes edifícios, estas estufas apresentavam uma solução construtiva pouco interessante, que se julgou não ser a

original: sobre um muro baixo envolvente de alvenaria de pedra repousavam pernas de betão pré-esforçado (vigotas pré-

fabricadas) sobre as quais se dispunha uma estrutura de madeira que encaixilhava as telhas de vidro da cobertura. Toda

a estrutura de cobertura era fixa, sendo somente possível ventilar o interior das estufas através da abertura das portas,

localizadas nas fachadas de topo voltadas a sul. No interior, a organização espacial era extremamente simples: um

corredor central, na zona mais alta da estufa, permitia a circulação a partir da porta de entrada e ao longo de dois

canteiros, existentes ao longo de toda a construção, de um lado e outro da circulação.

Tendo em vista esta caracterização, os princípios de intervenção foram os seguintes: 1) Demolição e remoção de toda a

estrutura da cobertura, incluindo os elementos de vidro, de madeira e de betão armado; 2) Abertura de portas, iguais às

existentes na fachada sul, nas fachadas norte, de modo a permitir uma dupla entrada ou um percurso de atravessamento

das construções; 3) Desenho de uma nova solução para a cobertura, agora toda construída em madeira maciça e

contemplando a introdução de janelas, para garantir a ventilação e controlo da temperatura nos interiores. O desenho

dos elementos de madeira, telhas de vidro e ferragens das janelas, tomou como modelo a estufa principal,

desenvolvendo-se uma solução que aproxima as estufas de trabalho da qualidade arquitectónica daquela; 4)

Recuperação das paredes envolventes, tanto dos muros longitudinais baixos, como das paredes dos topos; recuperação

dos muretes interiores dos canteiros, dos pavimentos interiores e dos pavimentos exteriores envolventes.

Uma vez realizadas as operações de demolição e remoção mencionadas, toda a solução estrutural e construtiva foi muito

semelhante à desenvolvida na estufa principal: removeram-se os rebocos das paredes de topo e dos muretes, aplicou-se

um reboco de cal aérea e revestiram-se todas as superfícies com uma pasta de cal, com adição de pó mineral do tipo

ocre, para se obter a mesma cor branco-creme. Nas fachadas norte e sul reacertou-se o desenho, na medida em que se

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constatou que apesar de serem semelhantes, não eram iguais. Construiu-se uma nova estrutura de madeira maciça de

casquinha para a cobertura, que seria revestida com telhas de vidro de desenho semelhante às da estufa principal.

Introduziram-se janelas projectantes, também de madeira e vidro, com ferragens construídas em aço, replicando o

desenho já aplicado. No encontro da estrutura da cobertura com alvenaria, optou-se por revestir os topos dos muretes a

chapa de zinco, que seria depois pintada a tinta branca apropriada. Aplicaram-se novas portas, desenhadas a partir das

preexistentes, mas introduzindo um postigo, para possibilitar mais uma solução de ventilação dos interiores. Nos

exteriores, replicaram-se as soluções já descritas, utilizando-se saibro granítico, pedras irregulares em espelhos de

degraus e calçadas de cubos irregulares, em valetas de escoamento de águas e no revestimento da plataforma existente

entre as duas estufas.

Fig. 14, 15 e 16: Estufas de Trabalho: vistas exteriores e vista interior.

2.3 Aviário da Quinta da Pena

O aviário da Quinta da Pena, construção singular do século XIX, localiza-se entre as estufas e o conjunto da abegoaria.

Futuramente, espera-se que venha a constituir um foco principal na zona em que se irão desenvolver a loja e a cafetaria

que servirão esta área do Parque da Pena. Com o projecto de recuperação concluído, prevê-se que a obra avance até ao

verão de 2015.

Quando se iniciaram os trabalhos de reabilitação, devido ao abandono a que havia sido deixado durante longos anos, o

mau estado de conservação do aviário era significativo. De facto, se, por um lado, as suas espessas paredes envolventes

e a sua cúpula se apresentavam consolidadas, por outro, destacavam-se a ausência de vãos – portas e janelas -, os

rebocos desagregados, fendilhados e cobertos de líquenes, e constatou-se a inexistência de um pavimento superior que

outrora dividiria, verticalmente, o espaço interior em dois. Também os já referido braços laterais, onde se exporiam as

aves, estavam totalmente desaparecidos. Em 2011, para travar a degradação do edifício, fizeram-se obras de

beneficiação: limparam-se e regularizaram-se os rebocos exteriores e interiores; caiaram-se as superfícies e assentaram-

se novas portas e janelas em caixilharia de madeira, com preenchimento com uma grelhagem reticulada.

Estratégia de intervenção e opções estruturais e construtivas

Baseando-nos em plantas do Parque da Pena datando da segunda metade de oitocentos, foi possível estabelecer que o

aviário havia funcionado com três braços dispostos radialmente em forma de T, que constituiriam os espaços,

provavelmente gaiolas, onde se exporiam as aves. Uma prospecção arqueológica conseguiu confirmar esta hipótese,

tendo encontrado as fundações de muros que desenhariam os rectângulos do contorno destas espaços e fundações

pontuais, numa linha central, provavelmente constituindo apoios para a estrutura metálica que suportaria a rede de

protecção das gaiolas.

Da leitura efectuado no edifício determinou-se que teria havido um pavimento interior – apoiado em mísulas de pedra

ainda existentes – que dividiria o espaço, verticalmente, em dois compartimentos. Esta hipótese poderia significar que o

piso inferior seria utilizado por aves de maior porte e que poderiam sair para as gaiolas referidas, e que o piso superior

poderia funcionar como um pombal, podendo os pombos entrar e sair pelas janelas superiores do aviário.

Assim, tendo em conta estes argumentos, e no sentido de garantir a recuperação deste edifício para a sua reutilização

como aviário no contexto da reabilitação desta área do parque, estabeleceram-se o seguintes princípios de intervenção:

1) Recuperação dos elementos existentes: limpeza e reparação de rebocos das paredes e da cúpula; tratamento e

recolocação dos elementos de pedra que resolvem o encontro da cúpula com a parede e que se encontram degradados e

Page 8: REABILITACÃO DOS EDIFÍCIOS DA ANTIGA ABEGOARIA, …CP2015/Link/Papers/8250.pdf · asnas de madeira maciça e os elementos metálicos de ligação a partir dos originais que resistiram

Hugo Farias, Alexandra Alegre, Reabilitação dos Edifícios da Antiga Abegoaria, Estufas e Aviário da Quinta da Pena,

no Parque da Pena, em Sintra

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incompletos; 2) Substituição das portas e janelas por soluções de maior qualidade e desenho diferentes; 3) Introdução de

um pavimento em madeira para dividir o espaço interior do aviário em nível inferior e nível superior; 4) Reconstrução

dos muretes baixos, envolventes às gaiolas das aves e reconstrução de pavimentos, no interior do aviário e nas zonas de

gaiola; 5) Desenho de uma solução de gaiola, compatível com a recuperação deste edifício singular.

Construtivamente, a recuperação do aviário dá continuidade às soluções aplicadas na abegoaria e nas estufas: paredes

revestidas a reboco de cal; vãos em madeira maciça de casquinha; pavimento interior e elementos de pedra repostos em

calcário vidraço branco; muros envolventes às gaiolas em alvenaria de pedra, revestida a reboco de cal; pavimentos das

gaiolas em calçada de cubos irregulares de granito.

No interior, para a construção do pavimento do piso superior, optou-se pela introdução de uma estrutura de aço. Esta

funciona com um suporte central e com um conjunto de vigas dispostas radialmente, que apoiam sobre as mísulas

referidas. Sobre esta estrutura metálica – que serve igualmente como suporte para umas divisórias de rede que dividem

o espaço térreo em quatro quadrantes – constrói-se um piso em painéis de OSB, revestido inferiormente a réguas de

madeira maciça e superiormente a tela vinílica, pela facilidade de limpeza. Acede-se ao nível superior a partir de uma

escada metálica encastrada na parede, através de um alçapão que se recorta no pavimento.

Fig. 17, 18 e 19: Aviário: vista exterior, pormenor exterior e pormenor da cúpula.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Assumido como linhas gerais orientadoras as estabelecidas pela Carta de Cracóvia, a reabilitação do conjunto

abegoaria, estufas e aviário da Quinta da Pena procurou: 1) recuperar um património praticamente desconhecido do

público, que se encontrava em estado de ruína e que agora se integra na vida e nos percursos de visita do Parque da

Pena; 2) reabilitar os edifícios de modo a restabelecer e potenciar a sua imagem e identidade originais, recorrendo-se,

sempre que possível, a matérias, técnicas e soluções tradicionais, de modo a valorizar e respeitar o património

construído; 3) requalificar a envolvente aos edifícios, garantindo a sua correcta integração e potenciando o seu usufruto

pelos visitantes do parque.

4. REFERÊNCIAS

[1] Carta de Cracóvia 2000, Princípios para a Conservação e o Restauro do Património Construído. Conferencia

Internacional sobre Conservação Cracóvia 2000, Cracóvia, Polónia, Outubro de 2000.