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Boletim Informativo do Programa Uma Terra e Duas Águas Boletim Informativo do Programa Uma Terra e Duas Águas Ano 8 • nº1606 Março/2015 RDS-NASCENTES GERAIZEIRAS: o processo de luta para criação da reserva extrativista que garante modos de vida da população Geraizeira no Norte de Minas Gerais Implantação dos projetos de eucalipto no norte de minas. O Norte de Minas Gerais vem sofrendo desde as décadas de 1970-1980 com a implantação de maciços florestais de eucalipto. O incentivo para a implantação desse empreendimento foi uma orientação governamental, do período militar. Com um discurso de que era preciso ocupar os espaços vazios e levar desenvolvimento aos sertões norte mineiros, realizou-se um verdadeira tentativa de assassinato cultural dos povos tradicionais que habitavam as chapadas sertanejas dos Gerais de Minas. As firmas foram ocupando as terras, ora por meio de processos de grilagem, ora forçando as populações à migração, já que perderam os seus meios e modos de vida. Contudo, muitos resistiram, esperaram o término da concessão das terras e autodemarcaram seus territórios. Organizaram-se, entraram em movimento, debateram sobre o que estava acontecendo com seus modos de vida, fizeram denúncias, se colocaram na linha de frente em defesa dos seus territórios. Esse é um pequeno pedaço dessa história de resistência às opressões, aos desrespeitos à racionalidade cultural e ambiental dos povos sertanejos na sua relação com o território, lembrando que território é mais que espaço; para os povos tradicionais é memória, cultura e identidade. O Processo de perda do Território Segundo Zé da Silva, liderança comunitária de Roça do Mato – Montezuma “nas décadas de 60 e 70 as terras era nas mãos dos agricultores, todo mundo usava ela coletiva, já na década de 70 para cá começou a grilagem das terras pelo coronelismo, querendo ser dono, também nessa ganância de ter essas terras, então ficou limitado o uso delas pelas comunidades tradicionais, isso envolvendo politico dos municípios, isso atrapalhou muito as comunidades, ficou muito tumultuado, sem ter para onde ir, porque as terras foram griladas, pelos grileiros lá, principalmente em Alto Rio Pardo. Teve muito isso na questão da grilagem de terra”. Perder território não significa simplesmente que os povos vão ter que mudar, toda uma cosmovisão de mundo é construída em torno das relações com os territórios. RDS -Nascentes Geraizeiras A criação da reserva, além de permitir a conservação do cerrado, permite também a manutenção do modo vivendi dos povos e comunidades do cerrado. Por isso Dona Lúcia faz questão de ressaltar a importância da Bíblia como condutora dos caminhos trilhados pelos Geraizeiros nos momentos de luta. Sobre a celebração da conquista pela criação da RDS ela disse que “então pra nós é uma conquista sem cálculo de tão grande que ela é pra nós, muito boa, e foi de grande sofrimento, chegar até onde chegamos hoje, a gente teve que se expor a muita ameaça de morte sabe, enfrentar empresário de frente, confrontar mesmo com a situação, parar máquinas, enfrentar ameaças de morte e foi dolorido, mas graças a Deus foi um parto que agora a criança nasceu”. Zé da Silva lembra ainda que a conquista da RDS foi algo muito desejado, sonhado e que a importância desse decreto é que agora está garantido o Cerrado em pé e a preservação da natureza. Agora as nascentes vão ficar protegidas. Lembra ainda que mesmo com a criação do decreto a luta continua, citou exemplo de invasão do território por empresários, querendo construir barragens com apoio do prefeito de Vargem Grande, mesmo após a criação da RDS, ou seja, demonstra consciência de que a criação da RDS trouxe um grande avanço para o movimento, mas que é preciso ainda ficar alerta e articular em defesa do território. Realização Apoio A Conquista da RDS não foi resultado somente da luta do povo Geraizeiro, mas sim da Aliança dos Povos, por isso os quilombolas dançam batuque comemorando a vitória e a representante do Instituto Chico Mendes celebra junto com as comunidades. Com a entrega do diário oficial pelo secretário da casa Civil os povos celebram a conquista. A bandeira do movimento Geraizeiro se tornou sinônimo da luta.

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ovos e Comunidades Tradicionais se organizam para efetivar a criação de Reserva de Desenvolvimento Sustentável-nascentes Geraizeiras que vai permitir a preservação dos modos de produção e vida dos Geraizeiros.

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Page 1: RDS-NASCENTES GERAIZEIRAS: o processo de luta para criação da reserva extrativista que garante modos

Boletim Informativo do Programa Uma Terra e Duas Águas

Boletim Informativo do Programa Uma Terra e Duas Águas

Ano 8 • nº1606

Março/2015

RDS-NASCENTES GERAIZEIRAS: o processo de luta para criação da reserva extrativista que garante modos de vida da população

Geraizeira no Norte de Minas Gerais

Implantação dos projetos de eucalipto no norte de minas.

O Norte de Minas Gerais vem sofrendo desde as décadas de 1970-1980 com a implantação de maciços

florestais de eucalipto. O incentivo para a implantação desse empreendimento foi uma orientação

governamental, do período militar. Com um discurso de que era

preciso ocupar os espaços vazios e levar desenvolvimento aos

sertões norte mineiros, realizou-se um verdadeira tentativa de

assassinato cultural dos povos tradicionais que habitavam as

chapadas sertanejas dos Gerais de Minas. As firmas foram

ocupando as terras, ora por meio de processos de grilagem, ora

forçando as populações à migração, já que perderam os seus

meios e modos de vida. Contudo, muitos resistiram, esperaram o

término da concessão das terras e autodemarcaram seus territórios. Organizaram-se, entraram em movimento,

debateram sobre o que estava acontecendo com seus modos de vida, fizeram denúncias, se colocaram na linha

de frente em defesa dos seus territórios.

Esse é um pequeno pedaço dessa história de resistência às opressões, aos desrespeitos à racionalidade

cultural e ambiental dos povos sertanejos na sua relação com o território, lembrando que território é mais que

espaço; para os povos tradicionais é memória, cultura e identidade.

O Processo de perda do Território

Segundo Zé da Silva, liderança comunitária de Roça do Mato – Montezuma “nas décadas de 60 e 70 as

terras era nas mãos dos agricultores, todo mundo usava ela coletiva, já na década de 70 para cá começou a

grilagem das terras pelo coronelismo, querendo ser dono, também nessa ganância de ter essas terras, então

ficou limitado o uso delas pelas comunidades tradicionais, isso

envolvendo politico dos municípios, isso atrapalhou muito as

comunidades, ficou muito tumultuado, sem ter para onde ir,

porque as terras foram griladas, pelos grileiros lá, principalmente

em Alto Rio Pardo. Teve muito isso na questão da grilagem de

terra”. Perder território não significa simplesmente que os povos

vão ter que mudar, toda uma cosmovisão de mundo é construída

em torno das relações com os territórios.

RDS -Nascentes

Geraizeiras

A criação da reserva, além de permitir a conservação do cerrado, permite também a manutenção do

modo vivendi dos povos e comunidades do cerrado. Por isso Dona Lúcia faz questão de ressaltar a

importância da Bíblia como condutora dos caminhos trilhados pelos Geraizeiros nos momentos de luta.

Sobre a celebração da conquista pela criação da RDS ela disse que “então pra nós é uma conquista sem

cálculo de tão grande que ela é pra nós, muito boa, e foi de grande sofrimento, chegar até onde chegamos hoje,

a gente teve que se expor a muita ameaça de morte sabe, enfrentar empresário de frente, confrontar mesmo

com a situação, parar máquinas, enfrentar ameaças de morte e foi dolorido, mas graças a Deus foi um parto

que agora a criança nasceu”.

Zé da Silva lembra ainda que a conquista da RDS foi algo muito desejado, sonhado e que a

importância desse decreto é que agora está garantido o Cerrado em pé e a preservação da natureza. Agora as

nascentes vão ficar protegidas. Lembra ainda que mesmo com a criação do decreto a luta continua, citou

exemplo de invasão do território por empresários, querendo construir barragens com apoio do prefeito de

Vargem Grande, mesmo após a criação da RDS, ou seja, demonstra consciência de que a criação da RDS

trouxe um grande avanço para o movimento, mas que é preciso ainda ficar alerta e articular em defesa do

território.

Realização Apoio

A Conquista da RDS não foi resultado somente da luta do povo Geraizeiro,mas sim da Aliança dos Povos, por isso os quilombolas dançam batuque comemorando a vitória e a representante do Instituto Chico Mendes celebrajunto com as comunidades.

Com a entrega do diário oficial pelo secretário da casa Civil os povos celebram a conquista. A bandeira do movimento Geraizeiro se tornou sinônimo da luta.

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Articulação Semiárido Brasileiro – Minas GeraisBoletim Informativo do Programa Uma Terra e Duas Águas

Segundo Eliseu José de Oliveira, agricultor e liderança do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio

Pardo, “as terras para os povos tradicionais são terras de uso comum, de uso comunitário, o gado fica pastando

solto”. Uma qualificação muita usada e simbólica, que representa a ligação com o território, é que os

Geraizeiros falam que o “gado fica na solta, ou na larga”. Eliseu afirma que isso aponta para o uso comunitário

do território, o que reflete também na relação com o Cerrado. “Antes da perca do território o povo usava o

território para extrativismo, como dizem hoje, mas a gente na época falava catar pequi, pegar plantas

medicinais, plantar roça, pescar”. Tudo isso tem uma relação simbólica para o Geraizeiro. Com a perda do

Território, que vem ocorrendo por grilagem de empresas de eucalipto, por políticos e até mesmo o Estado, no

passado e no presente, o seu sentido de vida se esvazia.

Comunidades se Organizando

Diante do contexto de negação de seus direitos, o povo do Cerrado se organizou para pensar em

estratégias e saídas para os problemas colocados. Vários

movimentos foram articulados nesse sentido, tais como o

movimento Mastro – Movimento Articulado dos Sindicatos

dos trabalhadores rurais do Alto Rio Pardo -, o movimento

Pequizeirão – momento de ocupação na cabeceira do córrego

Roça do Mato e expulsão de empresário - e o Movimento

Geraizeiro. Todos esses movimentos têm em comum a luta pelo

território tradicional dos povos do lugar. Para tanto, organizam

também as conferências Geraizeiras. A 1ª ocorreu na comunidade de Tapera (2004-05) – município de

Riacho dos Machados; a 2º no Vale do Guará – município de Montezuma,(2006), a 3ª em Vereda Funda –

Município de Alto Rio Pardo (2007) e a última em Cútica – Município de Fruta de Leite (2014).

As conferências Geraizeiras são momentos de conversa sobre a realidade regional e nacional. Os

Geraizeiros se reúnem para discutir o significado de sua existência e seus direitos, refletir o impacto na

dinâmica de suas vidas com a chegada dos grandes empreendimentos (monocultivo de eucalipto -

mineração). Realizam reflexões sobre o modelo de desenvolvimento que os coloca à margem e buscam

afirmar um novo modelo de desenvolvimento baseado na convivência com o Cerrado. Nesse sentido, as

conferências mostram que o povo não pode ficar parado, que precisa se organizar para defender seus

direitos e fazer denúncia das situações de opressão, exploração e das ameaças sofridas. As conferências

Geraizeiras e os movimentos articulados criaram ações que possibilitaram a efetivação da Reserva de

Desenvolvimento Sustentável RDS-Nascentes Geraizeiras e também fortaleceram a ideia e a necessidade

de um movimento permanente em defesa do Cerrado. Dentro

desse processo de luta e resistência em defesa do modelo de

vida Geraizeiro, as mulheres tiveram um papel fundamental. As

mulheres também são protagonistas de embates frente ao

ataque dos grileiros e empreiteiras na tentativa de derrubar o

cerrado para implantar um modelo de desenvolvimento

excludente.

Participação das Mulheres no processo de luta – “a parada das máquinas”

As mulheres Geraizeiras por diversas vezes se posicionaram dentro do processo de luta e preservação dos ecossistemas do

cerrado. Um dos momentos mais simbólicos desse longo processo foi

quando, por diversas ocasiões, as mulheres se colocaram na frente das

máquinas, fazendo-as parar. Duas mulheres trazem um relato de

resistência frente à destruição do Cerrado. Neuzita e Maria Lúcia, da

comunidade de Água Boa, Rio Pardo de Minas, dão um lindo

depoimento de bravura e coragem da mulher sertaneja:

Neuzita: ‘‘nós tentamos conversar, tia Lúcia conversou com ele,

falando que não tava mais nessa época de desmatar, que aqui era

nosso ganha pão. Aí ele falou assim 'Ah, mas isso aqui eu tenho

licença, tá a caminho de ser liberada a licença”, falou que depois de chegar a licença pra fazer a denúncia, achou que nós eramos

besta.’’

Lúcia: ‘‘Independente da licença, se o senhor insistir nós vamos buscar mais pessoas, que hoje é só nós, essas mulheres que você

está vendo aqui, mas se o senhor insistir nós vamos chamar mais umas 200 pessoas, outros companheiros de outras comunidades, aí

ele decidiu parar. Mas aí nós refletimos um pouco, que nos não íamos aceitar que as máquinas ficassem aqui não, as máquinas

teriam que descer primeiro, aí eles perguntaram se não confiamos, mas vai que à noite eles voltam e terminam de detonar tudo.

Como ele viu que não íamos dar moleza para ele mesmo, porque a área é território da comunidade aqui, a gente que quer continue do

jeito que era sempre, já detonou alguma coisa, mas daqui pra frente não é para fazer mais nada.’’

O protagonismo dessas mulheres, e de muitas outras, possibilitou naquele dia que um pedaço do Cerrado do Alto Rio

Pardo não fosse derrubado. Mais do que isso: influenciou e deu energia para movimentos em defesa da vida.

Dia 13 de outubro de 2014. Cria-se o Decreto RDS – Nascentes Geraizeiras

Maria Lúcia, Geraizeira do norte de Minas, é agricultora extrativista e uma personagem importante na luta pela criação da

RDS – Nascentes Geraizeiras, principalmente porque é um exemplo de como a espiritualidade esteve presente desde o começo na

luta pela criação da RDS.

Dona Lúcia relata como sua fé a fortaleceu durante o processo de luta para criação da RDS. “Eu sou uma pessoa de muita

fé, desde pequena gente apreendeu a buscar na palavra a solução, a palavra de Deus para nós sempre foi uma condutora da vida da

gente. E essa palavra foi muito forte pra mim, me encorajou, sabe, meu medo,

o medo que eu tinha da batalha na resex acabou. Ai moço, quando eu tive essa

palavra que falou de reserva também eu nem me controlei”. A espiritualidade

sempre esteve presente no processo de luta para criação da RDS-nascentes

Geraizeiras.

A conquista é resultado de uma longa luta social

Constantemente máquinas eram paradas, os Geraizeiros sempre se colocaram na frente da luta