razão inadequada nº1

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Uma postura inadequada é a nossa forma de viver em uma cultura de adequação... Razao Inadequada 1 Regime Ditatorial de Valores

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Page 1: Razão inadequada Nº1

Uma postura inadequada é a nossa

forma de viver em uma cultura de adequação...

Razao Inadequada

1Regime Ditatorial de Valores

Page 2: Razão inadequada Nº1

Editorial

O termo ditadura pode soar exagerado para alguns, mas nossos tempos ainda são marcados por posturas opressivas. Nossa cultura e, portanto, nosso modo de vida é autoritário. Estamos todos num mesmo campo de batalha e vivemos sendo bombardeados por preferências unificadoras, opiniões rígidas e intolerâncias de todo tipo. Em face disso, procurando ser tanto um veículo de informação quanto de reflexão, esta revista pretende explicitar alguns dos problemas que encontramos em nossa cultura.

Qual é nossa ditadura? Não vivemos mais nos anos do regime militar, não vivemos um estado de exceção. Mas vivemos uma democracia? Nossa liberdade é real, mas é tanto mais ilusória: nos deram a liberdade de escolha, mas nos mostraram tão pouco do que há para escolher. Muitas vezes nossos comportamentos nos parecem alienados de nossas vontades. Chegamos a desconfiar de nossa própria subjetividade, talvez ela não seja menos fabricada do que a abundância de produtos semelhantes que nos rodeiam.

Uma ditadura velada, escondida por sob os panos da mesa de jantar, onde aceitamos a miséria que nos oferecem com o nome de refeição. Uma análise crítica pode nos ajudar a encontrar motivos para recusar e afastar de nossos corpos este veneno que é a organização a que nos submetemos todos os dias. Teremos ganhado suficientemente se encontrarmos linhas de fuga dentro deste turbilhão de informações e modelações que nos permeiam.

Toda tensão tem meio de fuga, a nossa é a criação. Dentre tudo que nos dizem, mandam, sugerem, preferimos nosso caminho; pois só copia quem não sabe criar, só repete quem não sabe fazer o novo, só reproduz quem não inventa. Neste caminho, não batemos de frente com o que está estabelecido, não destruímos pela reatividade, pelo ressentimento, pelo ódio, mas pelo amor por algo maior. Dentre todas as opções, preferimos a nossa. Se vivemos uma ditadura, passamos pela tangente e inventamos novas verdades, novos corpos, novos tempos, novas identidades, novas ideias… é político, mas apenas no nível da micro-política. É mais estético que partidário, é mais ético que moral. Em suma: uma postura inadequada é nossa forma de viver em uma cultura de adequação.

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Apresentaçao

Esta revista é uma espécie de salto rumo ao desconhecido. Com ela, nós comemoramos agora 1 ano de blog. De certa forma, este espaço é consequência do conflito entre nossas ideias e o real, é um primeiro passo na busca de alternati-vas éticas que escalem as paredes do fundo de poço niilista no qual nos encontramos. Através de leituras, reflexões e (muitas) discussões, entendemos que deveríamos propor novos valores que escapassem à metafísica moderna: deus, Humanidade, Verdade, Estado, Trabalho. Sendo assim, este espaço reflete uma busca por caminhos estéticos para a eleição de uma ética da qual possamos nos apropriar.

Somos loucos, com pensamentos perturbados, andando à margem da razão convencional? Talvez este sentimento tenha origem no choque entre ideias estabelecidas, que nos são impostas, e ideias elegidas, que nos apropriamos no curso de nossa existência. A Razão Inadequada é a via alternativa, uma micro-revolução, uma força que não se submete a um conjunto maior de estratégias de adestra-mento do indivíduo. A contradição é clara, pegamos metrô e fazemos as compras do mês como todas as outras pes-soas, mas neste espaço faremos questão de ser loucos, como aqueles encarcerados por não se adequarem, desti-tuídos de sua liberdade por não aceitarem, reprimidos por sempre lembrar que o rei está nu. Será que podemos su- gerir outra razão? Possibilitar novas formas de vivência? Ir além da teoria?

Nada mais natural que, para inaugurar este espaço, escrever o texto à quarto mãos, já que ele é a consequência de mui-tas conversas, discussões, sugestões de leitura e reflexões de longa data. E por que não uma escrita a várias mãos? Partindo do princípio de que aliar ideias é aliar forças. Sob o signo da amizade nasce o conhecer e o reconhecer e, mais do que isso, a relação intersubjetiva é o carimbo que per-mite ao indivíduo a sua afirmação. Se a escola, o trabalho, a televisão e a religião não nos deram a possibilidade deste exercício crítico, que pelo menos boas companhias o façam.

Para tanto, seremos tendenciosos, pois toda proposta ex-pressa uma vontade. Na elaboração deste pensamento, utilizaremos ideias libertárias, hedonistas, materialistas e ateístas; mas sem tomá-los como crenças. Para nós, é importante dizer, não há destruição sem perspectiva de criação. Críticas construtivas serão sempre bem-vindas. Como Nietzsche, não sejamos outra coisa senão pura afir-mação. Não sejamos outra coisa senão aquele que apren-deu a dizer Sim!

Rafael LauroSou formado pelos livros que li, pelas músicas que toquei, pelos filmes que vi, pelas obras que observei e pelos encontros que tive. Formação esta que continua a ser construída a cada dia, sem perspectiva de término.

Rafael TrindadeEstudo psicologia e filosofia, mas tenho interesse em todas as áreas do saber humano. Troquei a guitarra pelo violão, o inglês pelo francês e a ciência pela arte... de resto, não sei definir-me.

Miguel Angelo LebreUm estudante de psicologia ex-tremamente apaixonado pela arte e pelo conhecimento. Tento traçar meu caminho intelectual conside-rando as inúmeras possibilidades de subversão que nos são subtraídas diariamente.

Priscilla FierroEstudo Artes Plásticas, passei pela Letras e sigo caminhos Feministas.

Ana Carolina PasFreelance designer, maníaca de feeds, rabisco o imaginário na maior parte do tempo e acho que enviar links também é amor.

Amanda MunizDesenvolvo minhas ilustrações a partir da condição humana, brincan-do com a realidade da existência.

Quem somos nos:

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Rafael Lauro (textos, diagramação)Rafael Trindade (textos, revisão)Miguel Lebre (texto)Priscilla Fierro (ilustrações)Ana Carolina Pas (ilustrações)Amanda Muniz (ilustrações) Maíra Valentim (diagramação)

Felipe CavalheiroMilena KlinkePenelope BaldassinSergio PoggioVinicius Lopes

Expediente desta ediçao:

arazaoinadequada.wordpress.comfacebook.com/arazaoinadequada

“ Nos deram a liberdade de escolha, mas nos mostraram tão pouco do que há para escolher. ”

Agradecimentos:

Ditadura da Beleza ......... pág. 5 Ditadura da Identidade ......... pág. 8 Ditadura do Tempo ......... pág. 10 Ditadura da Verdade ......... pág. 12 Ditadura da Informação ......... pág. 14

Indice

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Ditadura da belezaRafael Lauro

O que é propriamente um regime ditatorial de va-lores? Se no sentido político tradicional, o dita-dor é aquele bigodudo que possui o total contro-

le dos poderes do estado, na esfera dos valores o ditador é aquele que legitima de forma absoluta os valores de uma sociedade. Dizem por aí que a ditadura acabou, está nos livros de história. De fato, o que não parece mais existir em nossa sociedade é o tal do bigodudo mandão, entretanto, sobram mecanismos autoritários de valori-zação e desvalorização dos valores culturais. Sob este prisma, pouco importa sermos uma democracia formal, é pouco. Pensávamos ter nos livrado da ditadura, quan-do na verdade só mudaram nossos ditadores e assim permaneceremos enquanto não nos emanciparmos de quem dita nossos costumes.

Em nossos textos, prezamos sempre pelas individuali-dades. Nos parece irreal a crença no absoluto, nos valo-res imutáveis, na percepção das formas puras, no belo objetivo (acesse o blog para ler a respeito). Entretanto, mais uma vez nos encontramos em face desta discussão: o caráter inquestionável da beleza. O fato de termos de nos esforçar para perceber que aquilo que consideramos ideal no corpo feminino/masculino é apenas uma ques-tão de gosto (como todo o resto!) mostra o quão eficaz em empurrar determinados desejos goela abaixo é o re-gime em que vivemos.

Não é difícil perceber que a noção de beleza, assim como qualquer valor, não é imutável, mas determinada por processos de valorização e desvalorização. O exem-plo corriqueiro é o da época do Renascimento, de como as “gordinhas” eram o padrão. Para fugir do exemplo óbvio, basta voltar um pouco na história de nosso país. Na época da escravidão, jamais se consideraria a pele bronzeada como algo belo, pois este traço trazia consigo a informação de que a pessoa trabalhava fora da casa, exposta ao sol e se assemelhava, portanto, ao escravo. Um pouco distante das nossa atual preferência pelas “marquinhas de biquíni”, não?

Evocar o exemplo da escravidão nos remete a outra questão: quem estabelece o que é bonito? Numa socie-dade com estratos tão definidos quanto a escravagista, parece óbvio que a elite, que possui todo o poder, de-termine o bonito e o feio. E na nossa sociedade atual, será que o padrão de beleza continua associado a quem tem o poder? Se entendermos esse poder como poder econômico, parece que sim. Basta perceber que não con-

seguimos imaginar o dia em que o cabelo “ruim” (repare que a palavra que usamos para nos referir a um determi-nado tipo de cabelo já é um juízo de gosto!) se tornará o padrão. O mais triste é o fato de que este padrão ditado não é aceito apenas por quem dita, mas por todos, inclu-sive pelos que têm “cabelo ruim”, são “gordinhos”, “mal vestidos”…

É uma imposição vertical que atinge a horizontalidade. Esse poder econômico, muito menos personificado, se torna efetivamente poder nas relações, mas não se res-tringe somente a um poder social, é também biopoder, isto é, uma relação de dominância instituída sobre os corpos. Parece bastante abstrata, mas na realidade esta relação de dominância pode ser percebida por marcas corporais bastante claras. Observe, por exemplo, os tra-ços físicos do que serve e do que é servido. Há qualquer coisa de distinto em seus corpos, em suas constituições, algo que denuncia o pertencimento a uma determinada classe.

Antes de tudo, é necessário perceber que a crítica não é apenas ao padrão atual. É preciso questionar a própria necessidade de um padrão, ainda mais um que seja de-finido por processos tão oligárquicos como os da nossa mídia. A questão não é defender quem é gordinho, mas defender a possibilidade de uma escolha que parte de um desejo legítimo e não de uma aceitação submissa.

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O problema fundamental aqui é o fato de que nosso de-sejo não é propriamente nosso. Ele é fabricado no seio de um sistema de produções doente, que para seu próprio sustento precisa ver a beleza associada ao dinheiro, aos produtos e à fama. No interior da máquina social, nosso desejo é uma pequena engrenagem que acredita querer, quando na verdade apenas aceita o que lhe é sugerido, ou melhor, obedece às ordens da gerência. Dentro deste sujeito, não há desejo, há uma espécie de eco, uma repe-tição do que o mercado define como necessidade e colo-ca na capa de suas revistas. “Quando o desejo obedece a este ponto, constrangido, fabricado e possuído pelo mercado, ele se torna o corpo estranho integrado e dige-rido pelo sujeito alienado” (Política do rebelde, Michel Onfray, p.189)

Por que chamar de regime ditatorial? Simplesmente por-que há, de fato, algum mecanismo que dita valores e este mecanismo, no que concerne boa parte dos indivíduos de nossa sociedade, não parte deles mesmos. Há, como diria Deleuze, uma fábrica de buracos. Escavadeiras dis-postas em fila, prontas para nos atacar, invadir, nossos meios de transporte, nossas casas, nossos corpos, nossos afetos; e cavar sem parar, criar uma série de buracos, de “faltas”. Não há ingenuidade por parte de quem mani-pula essas máquinas, é muito bem sabido que só o ideal preenche o desejo quando este é interpretado como fal-ta. Mas como alcançar este ideal? Existe corpo tal qual o da capa de revista? Que escavadeiras são essas? O que é que nos faz tomar o desejo por falta? Inúmeras respostas são possíveis, eis algumas: a publicidade, este mecanis-mo de persuasão apodrecido; a ditadura da identidade, esta normatividade imposta pelo ser; a moral, estes valo-res condensados em deveres; o prazer conservador, esta fuga incessante do prazer intensivo…

Nossos poros estão entupidos. Estamos impedidos de experimentar nossos próprios corpos. Com a desculpa do belo, cria-se a norma e, quando há tentativa de sub-vertê-la, surgem pequenas sentenças de morte: cons-trangimento, coação, coibição, intimidação, restrição… O sujeito vai se convencendo de que tem que ser como é e vai deixando de lado sua criatividade e sua disposição para a experimentação. Aceitamos, enfim, que devemos ter um gênero X, casar com alguém do gênero Y, não qualquer um, mas alguém perfeito. Esquecemos comple-tamente que nosso corpo é uma festa e que nesta festa não há mestre de cerimônias.

Muitas questões se levantam. Difícil abordá-las todas num pequeno texto como este. Contudo, para finalizar, gostaríamos de destacar ainda duas destas questões.

Primeiro, idealizar o corpo gera desprezo pelos corpos. Parece paradoxal, mas é muito simples. Estabelecer uma ideia perfeita de corpo implica em desprezar, mesmo que parcialmente, a materialidade de todos os corpos, pois jamais o objeto se eleva à perfeição eterna da ideia dele. Segundo, buscar o corpo ideal, implica necessaria-mente um procedimento ascético (no sentido etimológi-co: que necessita esforço, exercício), precisaria de regras rigorosas para sua obtenção (pense nas dietas mirabo-lantes, nos regimes e práticas físicas sacrificantes). Nes-te sentido, é como uma religião, com suas práticas para obtenção de paz de espírito e vida eterna. Seja lá qual for o fim último, não deixa de ser arbitrário, escolhido. Que seja escolhido por cada um de nós, então! A pergunta que cabe ser feita é: “Será que sou eu que desejo ser loira e esbelta?” •

“Esquecemos completamente que

nosso corpo é uma festa e que nesta festa não há mestre de cerimônias.”

Ditadura da beleza

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Estamos preocupados demais com quem somos. Fomos engolidos pela mensagem do Oráculo de Delfos: conhece a ti mesmo. Será que não conse-

guiremos escapar destas formatações? Será que não po-demos fugir destas definições?

A ditadura da identidade é o ímpeto pelo nome, pela de-finição, pela forma. Não sabemos mais conviver com o desconhecido, tanto em nós como no outro. O mundo se tornou uma sala de interrogatório: qual seu nome? Nú-mero do RG? Quantos anos? Solteiro ou casado? Qual sua orientação sexual? Qual seu partido político? E não conseguimos nos abster. Em busca de aceitação, pensa-mos apenas em responder tudo certo. Uma ficha nos de-fine, nosso perfil de facebook é nosso novo templo.

Mas quanto mais nos nomeamos, mais nos perdemos de nós mesmos. O ser é inefável. Cada palavra que utilizamos para nos comunicar apenas nos torna mais comuns. Carregamos como camelos todos os nomes em nossas costas. Somos tantas coisas que não temos tempo para apenas estar. O que há de mais essencial em nós se perde na gramática, que cria uma identidade, um número, com o qual nos identificam.

A identidade é uma função do poder: as “estruturas” do eu, a “forma” do indivíduo, mas a unidade é sem-pre simulada, sempre um corte, uma prisão. A vida existe de modo plural, não em um formato definido. Ela é uma reta que passa por infinitos pontos entre A e B, e faz infinitas conexões de um lugar a outro.

Não sabemos mais tirar a máscara que pedimos para nos darem. Nos irritamos quando erram nosso nome: “sou

Fulano! Não Sicrano!” Mas por que não Sicrano? Ele também é legal, não podemos ser ele por alguns segun-dos? É mentira? E quando a mentira passou a ser menos interessante que a verdade? O ego é efeito de submissão, existe uma pluralidade em mim a qual não posso (e não quero) submeter. Não é possível acabar com a potência em nós sem pagar um preço muito alto pela vida. Mas parece que não há lugar para a vida intensiva em nossa sociedade: precisamos ser responsáveis, sérios, frágeis, “humanistas”. Isto quer dizer: faça seu trabalho, mande seu filho para a escola e não reclame do trânsito.

As formas são o último efeito da nossa sociedade: ho-mem, branco, heterossexual, meia-idade, com carro, conta bancária, barba por fazer, terno e gravata. Mulher, jovem, gostosa mas não vulgar, mãe, esposa, cabelo comprido, amorosa, atenciosa, fiel. As formas são menti-ras inalcançáveis.

Ditadura da identidadeRafael Trindade

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Vivemos constantemente sob tutela, fazemos falsas es-colhas mentirosamente oferecidas. Todo Sim que nos obrigam a dizer faz parte de um Não maior que nos impõem: será que não saberemos um dia apenas dizer Sim? Nietzsche soube, e o chamou de Amor-fati. Porque eu não posso escolher rock e bossa nova? Não há todo um universo infinito entre um e outro que eu posso ex-perimentar? Por que escolher entre ser homem ou mu-lher? Só escolhe quem ainda não aprendeu a criar. Só pede opinião quem não inventou seu modo de existir.

Nos seguramos à nossa identidade com unhas e den-tes, esta máscara que vestimos já está colada. E assim tememos o que há de mais verdadeiro em nós, que foge à toda racionalidade, toda unidade. A única coisa eterna em nós é a potência. Mas potência é vontade de diferir, mudar, trocar de pele. Matamos o que há de eterno em nós para apostar na mentira da identidade. A vontade de conservação em nós é diretamente oposta à vontade de criação. Mas alguns acham que o investimento na forma poderá salvar o homem, coitados, alguns acham que podem parar o tempo. Não dá pra parar o tempo, não dá pra descer do mundo, nós temos que nos efe-tuar, tudo em nós se usa, gasta, queima, e no fim nada se conserva. É impossível que cada momento não seja absolutamente inédito, e por isso é impossível que não sejamos absolutamente diferentes a cada momento.

A diferença em nós se submete à identidade na qual nos escondemos. É muito pouco “transgredir” essa máscara, a verdadeira diferença não se compara com qualquer outra coisa. A diferença não pede reconhecimento. Não há senhor, nem escravo, nem espelho, nem reconheci-mento, tampouco dialética: há apenas uma vontade de criar, inventar, produzir, diferir e experienciar a transfor-mação de si que acontece a cada encontro.

Foucault disse, “não me pergunte quem sou, e não me diga para permanecer o mesmo!”. Enquanto eu puder dizer “eu não sou, eu estou”, ainda valerá a pena viver •

“A diferença em nós se submete à identidade na

qual nos escondemos”

Ditadura da identidade

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Que é esta vida senão um moto perpetuo? É possível questionar o caráter transitório do momento? Acontecemos no tempo, não há

dúvida. Somos, pois, seres do tempo, criações espon-tâneas de um movimento contínuo. Sendo assim, importa-nos refletir sobre o emprego deste tempo, que compartilha conosco um pouco de sua grande-za. Fato é que o tempo nos excede, mas nos concede a lisonja de nos usarmos dele. “O relógio é o novo senhor!” bradou alguém em algum momento. Este texto pretende-se um grito de resposta, algo como: “Para o inferno com tais máquinas!”. É muito interessante para alguém que carreguemos nos bolsos o horário exato, será interessante para nós mesmos?

A medida é uma das maneiras de colocar as coisas à nossa disposição. Elas não são pro-blemáticas em si mesmas. O que devemos questionar é o uso destas medidas, pois não sabemos ao certo a quê (ou a quem) elas servem. O relógio e o calendário, tal como os conhecemos na grande cidade, estão fundamentalmente a serviço do capital, aí reside o problema. Não há uma só alma que tenha uma boa relação com o relógio, isto porque o uso que fazemos dele é autoritário. Já o calendário prevê nossas misérias, ele é “misericordioso” e nos presenteia com os fins de semana e feriados, enquanto nos obriga a ser úteis nos outros dias. Pensemos seriamente por um momento: estes instrumentos estão a nosso serviço ou nós estamos a serviço deles?

A resposta é obvia: estamos submissos a eles, assim como estamos submissos à lógica perversa do mercado atual. O que regulamenta o uso do relógio é o quanto de valor monetário nós somos capazes de produzir, é o nosso devir-máquina, isto é, a exploração da capacidade que o homem tem de repetir-se reproduzindo até a exaustão alguma utilidade social. Eis o sonho capitalista: uma sociedade de máquinas reproduzindo com regularidade cronométrica seus serviços e bens de consumo. Esta mensura absoluta permitiria calcular tudo com exatidão, o que é fundamental para o conservador, pois a previsão do futuro serve justamente a ele, que quer se conservar e não ao que quer se transformar.

Ditadura do tempoRafael Lauro

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Não nos interessa ser máquina. Não nos interessa ter o coração medido em batimentos por minuto. Não nos interessa ter o corpo organizado para a repetição. Diria Marcuse que a sociedade industrial nos produziu em série, todos iguais, e nós, como extensão das máquinas, reproduzimos tudo da mesma forma. Ora, não nos inte-ressa a reprodução, mas a criação! Não queremos ter o sono, a fome, o desejo regulados pelo relógio. Queremos o corpo como um território livre de organização, como um espaço autônomo de criação de si mesmo. Interes-sa-nos ser Sísifo na medida em que ele pode ser artista. Antes de tudo, queremos enxergar a pertinência daquilo que produzimos. Para isso, não há outra opção senão en-trar em combate, pois aquilo que queremos não parece interessar aos homens deste mundo: a intensidade não tem valor monetário.

Nesta batalha contra o tempo como relógio, devemos buscar outros prismas para enxergá-lo, pois se olharmos para o tempo unicamente pelos instrumentos que te-mos para medi-lo, acabaremos convencidos de que ele é a medida, ou seja, de que ele nada mais é do que um ciclo de 24 horas que se repete indefinidamente. O reló-gio não nos diz muito além disso. O que pode nos mos-trar outra maneira de se relacionar com o tempo? Lewis Carrol costumava dizer que a arte funciona como uma máquina de “esticar tempo e movimento”. Colocando em poucas palavras: desejamos brincar com o tempo e não lutar contra ele. O devir-criança nos interessa mais do que o devir-repetição.

Pensemos na música. Que é ela senão a arte de construir novas durações? Nos limites da melodia, os segundos são desprezados. O tempo da música se sobrepõe ao tempo do relógio e cria uma nova consciência de duração. “Ouvir uma melodia é ouvir, ter ouvido e estar prestes a ouvir, tudo ao mesmo tempo. Toda melodia nos declara que o passado pode estar aqui sem ser lembrado, e o futuro sem ser previsto” diz Victor Zuckerkandl. Qualquer experiência que se fundamente no estético, na criação portanto, não terá no tempo do

relógio o alicerce de sua construção. O tempo entendido como Chronos é inútil do ponto de vista do artista, o que o interessa é o Kairos, o momento oportuno, o do acontecimento, o do encontro.

Ao tomar o tempo como o momento oportuno da experi-ência, toda medida se torna trágica. Medir a intensidade da experiência como uma grandeza comum acaba

por desencantá-la. É como querer contar ao Don Quixo-te que os gigantes eram na verdade moinhos de vento. O que há de pior nesta vontade de mensura é a suposi-ção de que lidamos sempre com o esgotável, afinal não pode haver o infinito onde se pretende saber a dimensão exata. Quando percebemos, estamos poupando tempo. Que doença…

O jardineiro toma como referência o sol, suas flores não se preocupam com os segundos. O monge toma como referência a própria respiração, sua meditação tem pe-ríodos definidos pelos pulmões. O pintor toma como referência a própria inspiração, seus quadros não se im-portam de nascer aos fins de semana. O ritmo da civili-zação ignora, atropela, dilacera todos estes andamentos paralelos e impõe um ritmo marcado por combustões a díesel por sobre as vontades particulares.

Projeto simples, mas nada fácil: aprender a dispor do próprio tempo. Um primeiro passo é desprezar os relógios quando estes forem colocados acima de nós, mandá-los ao inferno como sugerimos anteriormente. Buscar satisfazer as necessidades da melhor maneira possível, isto é sobreviver; buscar o tempo dos artistas, o momento oportuno, a potência em ato, isto é viver •

Ditadura do tempo

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Dos temas que escolhemos para esta revista, tal-vez o mais sutil seja o da ditadura da verdade. Ele passa muitas vezes despercebido porque es-

tamos de tal forma acostumados a operar com a noção de verdade/mentira que nunca paramos para questioná- la. Mas também, são quase 2500 anos de ditadura da ver-dade, desde Sócrates até os tempos de hoje.

Quem busca a verdade? A quem ela interessa? Talvez se-jam perguntas estranhas de se fazer, mas não para nós. O problema não é o conhecimento, mas o ideal de verdade, a crença de que podemos iluminar o mundo com nossa razão, corrigi-lo, melhorá-lo, redimi-lo. O conhecimento e a verdade são sempre instrumentos, são sempre cria-ções que estão a serviço de alguém.

“O mundo é o texto e nós só temos a interpretação”. Com estas palavras Nietzsche abre caminho para re-pensarmos o que é a verdade. A ilusão de que a razão pode penetrar na essência das coisas, separar verdade de mentira, é o que nos leva a considerar o erro como um mal. Através das ideias que nos passam, pensamos a verdade como um descobrimento, como se houves-se algo por trás da realidade. Temos medo da ilusão e buscamos desesperadamente a resposta correta, sem nos preocupar com o que isso significa para nós. Mas é um erro achar que podemos não nos iludir. A aparência não oculta a realidade, é a única realidade.

Esta busca pela verdade passou pela religião e nos levou diretamente à racionalidade científica, hoje talvez nosso maior objeto de crença. O padre sempre diz a verdade, pelo menos é o que ele acredita. Suas ideias, sua visão de mundo, suas crenças têm o aval de Deus. E assim, quan-to mais absurdo, mais ele deve ter fé, mas não sejamos hipócritas, há sempre um padre em nós que acredita es-tar dizendo a verdade em nome de algo superior.

O mesmo acontece com a ciência, ela não é capaz de ex-plicar a realidade, apenas a interpreta tanto quanto qual-quer outra área do saber humano. A má ciência se acha

imperturbável, imóvel, imperecível, cria dogmas. Encon-tramos muitos cientistas crentes ainda hoje. O ideal é o modo de sustentar a vida fraca, não surpreende sacerdo-tes e cientistas se apropriarem dele para seu discurso. Mas todo bom pesquisador reconhece o caráter ilusório da ciência. Cabe a nós dizer quais são seus limites, que é colocar o conhecimento a serviço da vida, da vida inten-sa, claro. O bom filósofo não despreza a ciência, se utiliza dela para seus fins.

A causa do niilismo é essa super abundância do racional. A arte pode ser um modelo mais apropriado para a vida do que a razão. Por isso precisamos de filósofos-artistas: a arte reconhece e se orgulha de ser aparência. Pensar não revela, não descobre verdades, as cria. Queremos inventar novas verdades! A arte servindo-se da criação, esta por sua vez está a serviço da intensificação da vida. Pensar não é contemplar, é criar novas realidades. Como se pode descobrir a verdade se ela sempre é criada?

Não estamos tão preocupados assim com a razão (se as-sim fosse, não chamariámos de Razão Inadequada a nos-sa proposta), devemos deixar de lado esta luz e apren-der a mergulhar nas sombras. Ter contato com nossos monstros pode nos fortalecer mais do que se preocupar em apenas apontar a lanterna da verdade em todas as direções. Nossos medos, monstros, inimigos nunca são tão grandes ao ponto de não podermos ser seus amigos.

Quando a verdade deixou de ser menos interessante que a mentira? Certamente não para nós. E quantos não di-zem a verdade por covardia? Mas não somos tão fracos para querer a verdade, o pensamento autêntico encontra provas em si mesmo. Afinal, já está claro, existem ver-dades que não nos beneficiam, mas que nos obrigam a aceitá-las. Será que não nos livraremos destas regras? Deixai-nos em paz, não queremos sua perfeição, somos criadores, não copiadores!

Se a vida é aparência então afirmar a vida significa afir-mar a própria aparência. Verdades são ilusões que es-quecemos como tais, são mentiras que se envergonham de si mesmas. A ditadura da verdade nos mostra a impo-tência de criar, ela não passa de um suicídio passivo, de uma fuga da realidade, de um desejo de imutabilidade, de um ressentimento com o devir, com a vida, com tudo que este mundo tem a oferecer. Esta ditadura rechaça tudo que não consegue dominar e adestrar, mas verda-des nômades perambulam, perigosas, tornando instável o conhecimento racional.

“A arte reconhece” e se orgulha de ser

ApARêNciA

Ditadura da verdadeRafael Trindade

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Page 13: Razão inadequada Nº1

A verdade não deve ser descober-ta ou encontrada, mas criada! No-vos conhecimentos e novas ver-dades implicam em novos modos de vida, novas possibilidades. Sendo assim, não podemos rei-vindicar a posse dela, mas ain-da podemos ser honestos com nós mesmos. Você é capaz de suportar sua própria verdade? •

Ditadura da verdade

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O Fenômeno social conhecido por modernidade emergiu como um conjunto de fatos que reorga-nizaram a forma do homem pensar e se relacio-

nar com outrem. Podemos destacar dentre estes fatos a desdivinização da terra, onde o homem passa a ocupar o centro das preocupações terrenas o que culmina na criação da visão de homem indivíduo. O indivíduo é o ser capaz de se relacionar por si só com o divino e com o mundano, sem a intercessão de sacerdotes ou media-dores, de forma que se faça possível a vivência social, construindo, preservando, e transmitindo à novas gera-ções suas ideias e particularidades. Para alguns, ultra-passamos a modernidades há tempos e portanto somos sujeitos pós-modernos, ocasionando uma série de novos comportamentos sejam eles positivos ou negativos, en-tretanto manteremos por uma questão didática o ho-mem moderno e a modernidade como padrão, uma vez que o conceito se faz suficiente para a compreensão da linha argumentativa do texto. Apresentaremos também uma forma de comportamento que a rigor anulam algu-mas das características que anulam a existência indivi-dual descrita acima: o comportamento de massas.

O fenômeno do comportamento de massas, extrema-mente difundido pelos psicólogos Gustave Le Bon e Sigmund Freud consiste em uma forma de comporta-mento caracterizada por uma adesão irracional a um propósito, ou seja, deixamos de ter um vínculo reflexivo com determinada ação em função de uma atitude pre-dominantemente passional. Com a compreensão e apro-priação do fenômeno de massas como ferramenta de mí-dia, os meios de comunicação passaram a usar a adesão irracional como forma predominante de garantia do vín-culo produtor-consumidor, ao fenômeno de apropriação da massa pelos meios de comunicação chamaremos de indústria cultural.

Nunca tivemos tanta facilidade ao acesso de informa-ções, aparentemente os meios de comunicação se ade-quaram a todo nicho social, ainda que vivamos em um país de terceiro mundo onde as desigualdade sociais são latentes, somos abraçados por doces palavras que nos confortam e nos mostram a “realidade como ela é”. Tudo isso motivado pela imensa benevolência midiática, correto? Não. Podemos à partir da definição de massas compreender a intenção da “Mídia de massas” que nas-ce como uma forma de controle e não como uma bondo-sa forma de democratização da informação.

Atualmente somos nivelados pela indústria da informa-ção que nos vende emoções travestidas de racionalida-de, religiosidade e moralismo em forma de tecnologia e a exploração como a mais bela forma de cooperação. Esta indústria perversa é de extrema importância para a manutenção do status quo e para que este fim seja de-vidamente assegurado uma série de ferramentas foram criadas para garantir o acesso do cidadão à mídia de massas, ao conjunto destas ferramentas chamaremos de Ditadura da Informação.

Os elementos ditatoriais estão presentes em nosso coti-diano e constituem uma das mais poderosas formas de controle da atualidade. Tomemos como exemplo o exa-me nacional do ensino médio, exame que nasceu com a ânsia de selecionar para o ingresso no ensino superior pessoas que tivessem sobretudo a capacidade de formar sua própria opinião, transpondo as barreiras da reprodu-ção do conhecimento. Ocorre que hoje o foco do Enem mudou, sua nova ênfase segue a tendência da superva-lorização e da reprodução do conhecimento midiático de massas. Citei o Enem como exemplo mas as formas de controle não estão restritas ao contexto do ensino, o mercado de trabalho tem como uma de suas principais exigências um sujeito “bem informado” que consuma diariamente boas doses da mais fictícia das realidades. Devo alertar ( ainda que me pareça óbvio) que a apro-priação dos meios de acesso ao ensino superior por par-te das universidade é um dos golpes mais baixos para a manutenção de um país segregador e exploratório.

Ora, uma vez que consideramos uma das principais características da modernidade a possibilidade da re-lação com outrem e da produção do conhecimento em algo conhecido como subjetividade privatizada ou seja, a plenitude da vivência humana deixa de ser pautada em valores estruturais (ou seja, organizados referen-

Ditadura da informaçaoMiguel Lebre

Nenhum pensamento é imune à sua comunicação, e basta já expressá-lo

num falso lugar e num falso acordo para minar a sua verdade.

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cialmente pelo coletivo) e esta forma de subjetividade desencadeia a formação do indivíduo moderno, deve-mos considerar essa nova forma de imposição de no-vas verdades e a valorização da reprodução de um co-nhecimento adquirido (independentemente da fonte de aquisição) e nos atentarmos para uma questão que apesar de alarmante só poderá ser respondida longitu-dinalmente: estamos, através da Ditadura da Informa-ção, participando ativamente do processo de formata-ção do indivíduo? Ao meu ver o processo é plausível.

Passamos a incorporar valores muito mais ligados ao espírito de nossa época do que à nossa própria visão acerca do mundo, nossas condutas estão extremamente ligadas aos interesses das mais diversas instituições, e por mais diversas que estas sejam o ponto culminante é sempre o capital. Apesar da estruturação desta forma di-

tatorial de vida estar extremamente estabelecida há uma luz ao fim do Túnel: a emancipação intelectual.

A possibilidade de produzir, acumular e transferir co-nhecimento, e portanto informação, nos tirou da con-dição de animais irracionais, portanto a culpa de nosso cativeiro não está na informação em si, mas sim no ca-ráter ideológico com que a usamos, entendamos como ideologia o sentido freud-marxista do conceito, onde a rigidez de conceitos irrefletidos impossibilita a transfor-mação social. Quando falo em emancipação intelectual, pretendo objetivar a possibilidade do uso da informação (seja ela jornalística, científica ou filosófica) na formação ou no resgate (se é que um dia existiu) do sujeito crítico e reflexivo e que portanto constrói a partir de seu reper-tório intelectual um mundo ético, crítico e por fim livre •

Ditadura da informacao

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“E sabeis sequer o que é para mim o “mundo”? Devo mostrá-lo a vós em meu espelho? Este mundo: uma monstruosidade de força, sem início, sem fim; uma firme, brônzea grandeza de força, que não se torna maior, nem menor, que não se consome, mas apenas se transmuda, inalteravelmente grande em seu todo; uma economia sem despesas e perdas, mas também sem acréscimo, ou rendimentos, cercada de “nada” como de seu limite, nada de evanescente, de desperdiçado; nada de infinitamente extenso, mas como força determinada posta em um determinado espaço, e não em um espaço que em alguma parte estivesse “vazio”, mas antes como força por toda parte; como jogo de forças e ondas de força, ao mesmo tempo um e múltiplo, aqui acumulando-se e ao mesmo tempo ali minguando; um mar de forças tempestuando e ondulando em si próprias, eternamente mudando, eternamente recorrentes; com descomunais anos de retorno, com uma vazante e enchente de suas configurações, partindo das mais simples às mais múltiplas, do mais quieto, mais rígido, mais frio, ao mais ardente, mais selvagem, mais contraditório consigo mesmo; e depois outra vez voltando da plenitude ao simples, do jogo de contradições de volta ao prazer da consonância, afirmando ainda a si próprio, nessa igualdade de suas trilhas e anos; abençoando a si próprio como aquilo que eternamente tem de retornar, como um vir-a-ser que não conhece nenhuma saciedade, nenhum fastio, nenhum cansaço -: esse meu mundo dionisíaco do eternamente-criar-a-si-próprio, do eternamente-destruir-a-si-próprio, esse mundo secreto da dupla volúpia, esse meu “para além de bem e mal”, sem alvo, se na felicidade do círculo não está um alvo, sem vontade, se um anel não tem boa vontade consigo mesmo -, quereis um nome para esse mundo? Uma solução para todos os seus enigmas? Uma luz também para vós, vós, os mais escondidos, os mais fortes, os mais intrépidos, os mais da meia-noite? - Esse mundo é a vontade de potência - e nada além disso! E também vós próprios sois essa vontade de potência - e nada além disso!”

(NIETZSCHE, Friedrich. Col. Os Pensadores, Tradução: Rubens Rodrigues Torres Filho)