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Publicado em L. Waizbort (org.), A ousadia crítica . Londrina, Editora da Universidade Estadual de Londrina, 1998, pp. 342-365. ISBN 85-7216-145-7 Ravel no céu Leopoldo Waizbort E vão seguindo em fantasia A viagem-sonho da heroína No país de assombro e magia Em alegre charla com os bichos. E crêem um pouco na utopia. C.L. Dogson, aliás Lewis Carroll, em um livrinho sobre as aventuras de uma certa Alice. A questão que gostaria de formular neste texto é a seguinte: conversava Ravel com as plantas e os animais? Sabia ele a linguagem secreta dos bichos? Para responder a isso, que reputo uma questão difícil, é preciso dar uma vista d'olhos em uma de suas obras, L'Enfant et les Sortilèges 1 . O cenário é une pièce à la champagne, donnant sur un jardin. [...] C'est l'après-midi. A tarde é a hora por excelência das crianças brincarem quando, após o tempo dos deveres e lições, elas podem se deliciar com o sol quente, que penetra pelos interiores e se espraia pelas janelas, e que ilumina os parques e jardins, sempre sob a vigilância discreta, mas sempre atenta, da Miss inglesa. A ela cabe zelar, não totalmente distante do olhar de Maman, pelo momento em que convém voltar para casa. "[...] conhecendo a essência de Ravel, L'Enfant et les sortilèges deve ser a sua obra- prima. Nela cada compasso está infantilmente envolto em magia, mas basta uma palavra de sua terra natal [...] para colocar novamente em ação, com todos os seus antigos direitos e privilégios, a milhares de vezes sufocada natureza. O que disso restará não pode ser profetizado. Mas, talvez, mais tarde, numa outra ordem das coisas, ainda há de se poder ouvir, no minueto da Sonatina, com quanta beleza se conseguiu um dia compor o entardecer às cinco horas. A mesa está posta, as crianças vão sendo chamadas, já ressoa o gongo, elas o escutam e ainda brincam mais uma rodada antes de se reunirem ao grupo que está na varanda. Até se livrarem disso, lá fora já ficou frio, e elas precisam ficar dentro." 2 Os personagens de L'Enfant et les Sortilèges demonstram a relação única que une os humanos com as plantas, os objetos e, sobretudo, os bichos; essa relação é a restauração dos antigos direitos de uma natureza ainda não dominada. Basta ver a lista dos personagens da operazinha --- chamada, por seu criador, de "fantaisie lyrique": L'Enfant Maman 1 Maurice Ravel, L'Enfant et les Sortilèges. Fantaisie Lyrique . Poème de Colette. Paris, Durand & Cie., s.d. A obra foi composta entre 1920 e 1925 e teve sua première no Théatre de Monte Carlo, em março de 1925. No correr do texto, as passagens em itálico, quando não assinaladas, provêm desta peça; a numeração segue a partitura. 176 2 T.W. Adorno, "Ravel" in G. Cohn (org.), Theodor W. Adorno . São Paulo, Ática, 1986, p. 166.

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Publicado em L. Waizbort (org.), A ousadia crítica. Londrina, Editora da Universidade Estadual de Londrina, 1998, pp. 342-365. ISBN 85-7216-145-7

Ravel no céu

Leopoldo Waizbort E vão seguindo em fantasia A viagem-sonho da heroína No país de assombro e magia Em alegre charla com os bichos. E crêem um pouco na utopia. C.L. Dogson, aliás Lewis Carroll, em um livrinho sobre as aventuras de uma certa Alice.

A questão que gostaria de formular neste texto é a seguinte: conversava Ravel com as plantas e os animais? Sabia ele a linguagem secreta dos bichos? Para responder a isso, que reputo uma questão difícil, é preciso dar uma vista d'olhos em uma de suas obras, L'Enfant et les Sortilèges 1.

O cenário é une pièce à la champagne, donnant sur un jardin. [...] C'est l'après-midi. A tarde é a hora por excelência das crianças brincarem quando, após o tempo dos deveres e lições, elas podem se deliciar com o sol quente, que penetra pelos interiores e se espraia pelas janelas, e que ilumina os parques e jardins, sempre sob a vigilância discreta, mas sempre atenta, da Miss inglesa. A ela cabe zelar, não totalmente distante do olhar de Maman, pelo momento em que convém voltar para casa.

"[...] conhecendo a essência de Ravel, L'Enfant et les sortilèges deve ser a sua obra-prima. Nela cada compasso está infantilmente envolto em magia, mas basta uma palavra de sua terra natal [...] para colocar novamente em ação, com todos os seus antigos direitos e privilégios, a milhares de vezes sufocada natureza. O que disso restará não pode ser profetizado. Mas, talvez, mais tarde, numa outra ordem das coisas, ainda há de se poder ouvir, no minueto da Sonatina, com quanta beleza se conseguiu um dia compor o entardecer às cinco horas. A mesa está posta, as crianças vão sendo chamadas, já ressoa o gongo, elas o escutam e ainda brincam mais uma rodada antes de se reunirem ao grupo que está na varanda. Até se livrarem disso, lá fora já ficou frio, e elas precisam ficar dentro." 2

Os personagens de L'Enfant et les Sortilèges demonstram a relação única que une os

humanos com as plantas, os objetos e, sobretudo, os bichos; essa relação é a restauração dos antigos direitos de uma natureza ainda não dominada. Basta ver a lista dos personagens da operazinha --- chamada, por seu criador, de "fantaisie lyrique":

L'Enfant Maman

1 Maurice Ravel, L'Enfant et les Sortilèges. Fantaisie Lyrique. Poème de Colette. Paris, Durand & Cie., s.d. A obra foi composta entre 1920 e 1925 e teve sua première no Théatre de Monte Carlo, em março de 1925. No correr do texto, as passagens em itálico, quando não assinaladas, provêm desta peça; a numeração segue a partitura.

1762 T.W. Adorno, "Ravel" in G. Cohn (org.), Theodor W. Adorno. São Paulo, Ática, 1986, p. 166.

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La Bergère La Tasse Chinoise Le Feu La Princesse La Chatte La Libellule Le Rossignol La Chauve-Souris La Chouette L'Écureuil Une Pastourelle Un Patre Le Fauteuil L'Horloge Comtoise La Théière (Wedgwood noir) Le Petit Vieillard Le Chat Un Arbre La Rainette Le Banc Le Canapé Le Pouf La Chaise de Paille Les Chiffres Les Pastoures Les Patres Les Rainettes Les Bêtes Les Arbres

Todos esses personagens se comportam como seres humanos, com suas paixões, desejos e sofrimentos, embora à primeira vista apenas dois deles, a criança e sua mãe, pudessem ser assim considerados. Apenas à primeira vista, pois não demora muito para que a mágica do compositor dê vida a todos eles. Esse ato de mágica é a aura que impregna a operazinha de Ravel; é dele que provém o encanto único, porque impregnado de uma tristeza triste, do fundinho da alma, que torna L'Enfant et les Sortilèges tão belo, dessa beleza triste que respiramos em certos entardeceres de outono.

Quando se fala em sortilégio, pensamos no feiticeiro que, com sua magia, a tudo encanta; o encantamento de Ravel é aquele toque que, ao resvalar nas coisas, lhes dá vida. Os móveis ganham vida, a chaleira e a xícara; o fogo e as cinzas; os desenhos e personagens dos livros começam a se mexer e falar, e também pensar; o que era vivo nos contos de fadas transmigra para o nosso mundo. É inclusive por isso que a atmosfera da fantasia de Ravel é aparentada aos contos de fadas: porque ele os traz, com suas mãos delicadas, para este mundo.

Isto nos remete diretamente para a afinidade de Ravel com os contos de fadas, com um mundo de fantasia em tudo diferente deste mundo. E com o mundo das crianças, que é o único pedaço deste mundo que faz questão de permanecer ligado àquele outro mundo. Como sabemos todos nós, Ravel também sempre fez questão de permanecer no mundo dos contos de fadas e das crianças. Quem não se lembra de Ma Mère L'Oye? 3

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3 Assim como se contam suas fábulas às crianças, que ouvem entre o êxtase e a excitação, são as crianças que tocam e ouvem os sons de mamãe gansa. Ma Mère l'Oye é música a partir de La Fontaine, e isto indica que o motivo da composição já está dado como um motivo infantil, mas de que os adultos também querem participar e compreender, cheios de prazer. O mundo das crianças provoca a imaginação de Ravel; mais que isso, é o próprio mundo da

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O enredo de L'Enfant et les Sortilèges é muito simples, e embora seja atribuído a Collete, de fato provém antes de tudo de Ravel. Tem início com o menino emburrado e rebelde, maldoso e mal-criado, que desafia a mãe e, posto de castigo, põe o quarto de pernas para o ar. Ele est pris d'une frénésie de perversité (Nr. 7): quebra as louças, machuca seu esquilo de estimação, puxa o rabo do gato, brinca com o fogo e as achas de carvão da lareira, destrói o papel de parede, desmonta o pêndulo do relógio, desfolha e rasga seus livros e cadernos de lição e --- a cada destruição --- grita, triunfante: Hourrah!

Começa então o encantamento 4, quando tudo e todos ganham vida e vão mostrando à criança, a cada vez, as conseqüências de suas artes e maldades; os sortilégios vão afligir o menino até o fim, até a redenção final, que é a reconciliação com Maman.

A primeira das danças, que aparecerão recorrentes ao longo da operazinha, é a sarabande do Fauteuil e da Bergère, um Lento maestoso que, anunciado pelo contra-fagote solista, dá logo lugar ao piano, que irá acompanhar os móveis dançantes e falantes. A partitura do piano na sarabanda é uma peça que vale por si só; nela Ravel revive a antiga dança, tal como fizera no Tombeau e em tantas outras peças --- desde o seu não menos que magnífico Menuet antique. 5 Ao final da dança, tendo sido chamados pelos protagonistas, entram rapidamente em cena Le Banc, Le Canapé, Le Pouf e La Chaise de paille. Então, no mais agudo contraste com a lentidão da sarabanda, que corresponde ao peso e à dificuldade dos móveis em se moverem (esta mesma uma peripécia do compositor!), vem o Allegro vivo, em que o relógio mutilado tece sua ladainha de lamentações. O menino fica "imóvel de estupor" (o metrônomo pula de 44 do Lento maestoso para 168 do Allegro vivo). O ritmo frenético da música do relógio --- ding... ding...ding... --- é acompanhado por uma gesticulação também frenética, acompanhada, por sua vez, pela sofisticada percussão. É a percussão, alías, que permite uma passagem criativa para a cena seguinte, onde, aí sim, temos uma obra-prima de Ravel, onde, dentre outras dimensões, a percussão conjugará um máximo de efeito com a maior economia de meios. Trata-se do dueto da xícara com a chaleira, um fox-trot falsificado com melódica oriental, também ela falsificada mediante um pentatonalismo "chinoise", que nada mais é que pura "chinoiserie". Mas o inglês impagável da chaleira --- que remete, sem dúvida alguma, à Miss inglesa que toma conta das crianças no jardim --- dialoga com o chinês onomatopaico da xícara, pura diversão e brincadeira.

A linguagem dos bichos, das plantas e das coisas é, já há muito, um problema para os lingüistas e os filósofos, e muitos já quebraram a cabeça tentando resolver, e entender um pouco, os enigmas desse problema tão assombroso. Creio que pouca atenção se deu à contribuição de Ravel nesse tópico que, como se pode ver pelo canto da taça chinesa (dentre outros que ainda aparecerão), tem algo a dizer a esse respeito:

Kengçafou, Mahjong

imaginação do compositor. Assim como o que é estranho: o jazz, a música dos hebreus, de Madagascar, de Espanha, o tango. Aqui seria preciso revolver a diferença do estranho e o exótico. Quando a música de Ravel passa do estranho para o exótico, ela perde toda a sua força. Talvez seja justamente essa passagem a mais adequada para uma démarche na obra do compositor. Sob o fascínio e a magia do estranho, sua música atinge sua verdadeira expressão. Sob o domínio do exótico, ela tende aos fogos de artifício. Creio que a duplicidade da música de Ravel espelha a ambigüidade, que diz respeito a sua fisionomia social: um mesmo compositor que escreve a Sonata para violino e violoncelo e o Concerto para a mão esquerda. 4 Saôul de dévastation, il va tomber essoufflé entre les bras d'un grand fauteuil couvert d'une housse à fleurs. Mais, ô surprise! le bras du fauteuil s'écartent, le siège se dérobe, et le Fauteuil, clopinant lourdement comme une énorme crapaud, s'éloigne. (Nr. 16)

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5 A categoria do "antigo" em Ravel tem a ver com uma época burguesa que sente o chão tremer sob seus pés e, assim, acolhe como modelo formas e modos do Ancien Régime. Ao mesmo tempo, é preciso ter em vista que a simbiose entre burguesia e nobreza, na França (N. Elias), é fundamental para que se possa compreender a fisionomia de Ravel (assim como, se poderia dizer, de Proust). Isto demarca, inclusive, seu caráter "francês", embora a autodenominação "musicien français" não tenha sido sua. Os nexos da simbiose explicariam, talvez (e caberia explorar), a nostalgia pelo clássico, de que Le Tombeau de Couperin é a mais bela expressão. Caberia também explorar esse elemento nas Valses nobles et sentimentales, onde o próprio "nobre" já aponta para o problema.

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Kengçafou, Puis'kongkongpranpa Çaohrâ, Çaohrâ, Çaohrâ, Caskara, harakiri, Sessue Hayakawa! Hâ! Hâ! Hâ! Çaohrâ, Çaohrâ, Hâ! Çaohrâ, Çaohrâ, Çaohrâ toujours l'air chinoâ.

O uso dos falsetes, dos portamentos, dos glissandos (vocais e instrumentais, embaralhando os registros); a utilização da celesta, assim como o belo solo do primeiro trombone (Nr. 33), acompanhado pelas trompas, divididas e orquestradas com a maior perfeição (o tratamento dos metais na passagem é, sem favor, brilhante) --- é nisto que se vê porque Ravel é um compositor tão extremado (para o bem e para o mal), e portanto tão assíduo aos superlativos.

Ao terminar o fox-trot, o menino está "aterrado" (Nr. 37); o sol se põe cada vez mais, compondo um entardecer avermelhado. L'Enfant frissonne de peur et de solitude. A criança, amedrontada, (J'ai peur, j'ai peur! Nr. 49) procura, correndo, aproximar-se do fogo, mas também ele ganha vida e repudia o menino malvado e traquinas. O fogo, dançando, vai, pouco a pouco, esvaecendo, restam algumas achas de carvão e, por fim, a escuridão se aproxima.

No lusco-fusco, já sem saber bem se o que vê está ou não lá, se é verdade ou visão, sonho ou vigília, ele vê surgir diante de si todo um cortejo de pastores e pastoras, carneiros, cães e outros bichos que, estampados no papel de parede, se descolam e ganham vida. Ravel escreveu um coro de pastores e pastoras, singelo e etéreo, acompanhados de une musique naïve de pipeaux e de tambourins (Nr. 50, Moderato), evocando antigas canções francesas, como em um balé neoclássico em miniatura. E como nas antigas óperas, a dança é acompanhada de um balé de todos os personagens envolvidos... e os solos de oboé e clarinete também querem reviver a sonoridade anasalada das antigas madeiras. A figura rítmica constante, marcada pelos pequenos tímpanos em ré (uma exigência da partitura), acompanha toda a passagem em 2/4: colcheia pontuada e semicolcheia; duas colcheias; colcheia e duas semi-colcheias; duas colcheias.

Terminada a dança, todos se vão e o menino fica só, em lágrimas. Então, de uma folha de um dos livros rasgados e picados, surge a Princesa dos contos de fadas, uma princesa que terá sua ária como nas grandes óperas e, no entremeio, estabelecerá um dueto único com a flauta --- uma dessas combinações sonoras e melódicas singulares, que Ravel, e Debussy, realizaram em suas Sonatas.

Também o mundo dos sonhos se mistura na fantasia de Ravel. Os sortilégios do menino transcorrem em um mundo que é real e de sonho, onde de fato já não se sabe muito bem se é sonho ou não, porque essa classificação se esvae por entre o pentatonismo recorrente da pauta 6. A princesa do conto de fadas predileto da criança, com a qual ele sonha ao dormir e ao despertar, canta em dueto com a flauta (Nr. 70, Lento):

Helás! petit ami trop faible. Que peux-tu pour moi? Sait-on la durée dún rêve? Mon songe était si long, si long, Que peut-être à la fin du songe, C'eût été le Prince au Cimier d'aurore!

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6 Como se percebe, não é aqui o lugar para uma discussão dos elementos mais técnicos do procedimento composicional da fantasia lírica. Apenas para não deixar passar em branco a questão principal, a do uso da dissonância --- que, como já discuti alhures ("Estilo musical da liberdade" in Kriterion, vol. 33, Nr. 85, 1992, pp. 31-48), significa em mesma medida polifonia ---, cito rapidamente Adorno: "A harmonia impressionista foi desenvolvida, especialmente por Ravel, no sentido de uma autonomização da dissonância." (T.W. Adorno, Gesammelte Schriften. Frankfurt/M, Suhrkamp, 1984, vol. 18, pp. 74-75). Isto se deu, entretanto, para utilizar uma expressão do mesmo Adorno, por meio de uma "casta espiritualidade", temperada de ironia (cf. Adorno, Gesammelte Schriften, op. cit., vol. 19, p. 231). O que é mais do que evidente se pensarmos a dissonância em sua dimensão polifônica que, embora não seja aqui destrinchada, está por detrás de toda a obra.

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Mas nesse sonho tão longo, seria possível saber onde ele termina? E, assim, seria possível saber quem é o príncipe, e se ele está no mundo da vigília ou do sonho? E seria possível prolongar para a eternidade a presença da Princesa?

Por mais próxima que a felicidade pareça estar, e a felicidade, para a criança, é viver para sempre em meio aos seus amigos dos contos de fadas, e para o menino não há felicidade maior do que defender sua princesa tão amada, que é toda e nada mais que encanto, mesmo então toda a sua força e vontade nada são e nada podem: une force invisible aspire la Princesse que disparaît sous la terre (Nr. 72). As forças ctônicas, mais que tudo envoltas em mistérios insondáveis, conduzem o destino já traçado da Princesa.

A criança folheia, deseperada, os livros destruídos, mas não há como trazer a Princesa de volta. A despeito disso, ao revolver as folhas esparramadas pelo chão, são os números do livro de matemática que começam a se levantar e a rodear o menino. Aparece então um pequeno ancião, que marche à tout petits pas dansé, en récitant des bribes de problèmes (Nr. 75), que vai rapidamente se revelar como sendo a Aritmética. Mas que Aritmética!

É um coro de crianças que desempenha o papel dos números. As contas que os números e a aritmética cantam --- Quatre et quat'dix-huit, Onze et six vingt-cinq, [...] Sept fois neuf trent'trois [...] Trois fois neuf? Trent'trois. Deux fois six? vingt-sept [...] Deux fois six trente et un! Quatre e sept cinquant'neuf! --- são um mundo de brincadeira e fantasia, onde tudo pode ser, onde todos os resultados valem. Não é à toa que Ravel escreveu a cantoria dos números e da aritmética como uma "Ronde Folle", uma "ciranda maluca" (Nr. 87). É puro nonsense, uma outra lógica, um outro mundo, onde as contas são diferentes, onde as coisas podem ser como queremos. Tamanho nonsense, tamanha ciranda maluca deixam o menino completamente aturdido, em meio a um accelerando que culmina em um Prestissimo alucinante (Nr. 92).

Segue-se uma das cenas mais conhecidas da operazinha, o dueto da gata e do gato, que pode ser entendido, também, como uma outra contribuição magistral de Ravel para aquelas questões da linguagem dos bichos.

O tratamento camerístico do início do dueto, com o solo de contrabaixo, já anuncia os glissandos com que será composto o duo miado dos gatos, somado ao tratamento em continuidade da tessitura das cordas (contrabaixo, violoncelo, viola e violino). No dueto, os glissandos das vozes são acompanhados pelos glissandos das cordas 7; e são esses glissandos, que crescem no tratamento

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7 Vale a pena destacar aqui um parágrafo do Doktor Faustus de T. Mann (fala Zeitblom): "Citarei um exemplo que sempre assustou sobremodo minha temerosa mente de humanista e nunca deixou de ser alvo do ódio e do escárnio de uma crítica hostil. Mas antes terei de fazer uma pequena digressão: nós todos sabemos que o primeiro objetivo da Música, sua mais antiga conquista, tem sido o processo de desnaturar o som, de conservar numa única tonalidade o canto, que originalmente se limitara a uivos primitivos de homens primevos, através de todos os degraus sonoros, e de arrancar ao caos o sistema das notas. Entende-se, claro, que uma ordem reguladora, normativa dos sons era a condição prévia e a primeira manifestação daquilo que para nós significa música. Nela se manteve, por assim dizer: como atavismo naturalista, como resquício bárbaro de dias pré-musicais, o glissando, esse recurso que por razões culturais deve ser usado com máxima parcimônia. Sempre me senti inclinado a reputá-lo demoníaco, anticultural, e até desumano. Não quero afirmar que Leverkühn haja tido uma preferência por esses sons deslizantes. Empregou-os, contudo, com extraordinária freqüência, pelo menos na obra em apreço, o Apocalipsis, cujas cenas terríficas realmente propiciam as mais tentadoras e também as mais legítimas oportunidades para a utilização desse recurso selvagem. Quão horripilante não é o efeito daqueles glissandi dos trombones, na passagem em que as quatro vozes do altar dão a ordem de soltar os quatro anjos exterminadores, para que ceifem cavaleiros e montarias, o Imperador, o Papa e um terço da Humanidade! Nesse momento, os glissandi representam o tema, ao percorrerem as sete posições da vara do instrumento. O ululo como tema --- que horror! E quanto pânico acústico não emana dos glissandi dos timbales, que o compositor prescreve repetidas vezes! Esse efeito de tons ou sons é obtido, quando, durante o rufo, manipula-se a afinação automática do timbale a pedal, passando de uma tonalidade a outra. O resultado é sumamente impressionante. Mas o mais horripilante de tudo é a aplicação do glissando à voz humana, que todavia fora o primeiro objeto de ordenamento regulador dos tons e da libertação do estado primordial dos ululos arrastados através de todas as notas da gama. Com o glissando, retorna-se, pois, a essa fase primitiva, tal como faz o coro do Apocalipsis por ocasião do rompimento do sétimo solo, quando o sol se tinge de preto, a lua sangra e os barcos naufragam, na pavorosa descrição das vozes que clamam." T. Mann, Doutor Fausto. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984, pp. 505-506. Ed. alemã:

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camerístico-orquestral rumo ao tutti, que realizam a passagem do interior para o jardim. Será seguindo os gatos, em seu vai-e-vem coquete do jogo da sedução, que o menino irá para o jardim, onde transcorrerá todo o restante da ação.

Ao chegar ao exterior (Nr. 100), o menino encontra o jardim completamente iluminado pela lua cheia, e os bichos lá fora em completa euforia. Ele fica maravilhado (Ah, quelle joie de te retrouver, Jardim!) --- chamaria a atenção para o uso, pelo compositor, da flûte à coulisse; a paleta orquestral, adensada ao extremo pelas cordas, marca sem deixar dúvidas a passagem para o novo cenário, ao mesmo tempo em que já o vai povoando, pela variedade instrumental e sonora, com os novos personagens que o habitam ---, mas basta tocar na primeira árvore do jardim, para esta começar a gemer de dor. O menino malvado a havia machucado durante o dia, e da ferida ainda corre a seiva perdida. Logo todas as árvores do jardim se juntam, gémissant et se balançant, condenando o menino, cujo prazer é rasgar e ferir, impiedoso e insensível, as plantas.

Vem então, em tempo de uma valsa lenta --- e não há como não se lembrar de umas valsas nobres e sentimentais ---- o vai-e-vem das libélulas e mariposas, representadas nos arpejos do piano, fugazes e esvoaçantes. Tem lugar então a "Valse américaine", "dança das libélulas e das mariposas" (Nr. 107). Logo o rouxinol também começa a entoar seu canto, e a seguir a saparia entra em coro.

Voando de cá para lá, de lá para cá, a libélula procura, desesperada, sua companheira, e pergunta aos quatro ventos onde ela está. O menino percebe, só então, que a libélula procurada é aquela mesma que ele prendeu, com a ponta de um alfinete, contra a parede... Imediatamente começa a ciranda dos morcegos (Ronde des Chauve-Souris, Nr. 113, bem rápida); é no diálogo com o morcego que o menino percebe que os animais também têm mãe, e isto o faz lembrar, pela primeira vez desde o início da operazinha, que ele também tem sua mãe, de quem fizera pouco caso, desobedecera e desprezara.

Aos poucos, a saparia vai saindo do brejo, pondo a cabeça e as mãos para fora da lagoa e tem início a "Dança das Rãs" (Nr. 122-128). Ao final da dança, reaparece o esquilo ferido, que explica a uma rã o que é a jaula onde ele vivia aprisionado. O menino se apressa em replicar que a jaula servia para que o esquilo pudesse ser melhor admirado... Ao que o esquilinho responde, cheio de sarcasmo:

Oui, c'était pour mes beaux yeux! Sais-tu ce qu'ils reflétaint, mes beaux yeux? Le ciel libre, le vent libre, mes libres frères, au bond sûr comme un vol... Regarde donc ce qu' ils reflétaint mes beaux yeux tout moroitants de larmes!

Pendant qu'il parle, le jardin se peuple d'écureuils bondissants. Leurs jeux, leurs caresses, suspendus en l'air, n'inquiètent pas ceux des Rainettes au-dessous. Un couple de libellules, enlacé, se disjoint, s'accole. Un groupe de Sphinx du laurier-rose les imite. Le jardin, palpitant d'ailes, rutilant d'écureuils, est un paradis de tendresse et de joie animales.

Tem início a armação do final da fantasia lírica de Ravel, com a reunião de todos os animais no jardim. Apesar disso, o menino vai se sentindo cada vez mais só: os bichos se amam e se entendem, mas não dão bola para ele. Ils m'oublient...Je suis seul... E, então, chama pela mãe... como que a reconhecer que assim não pode ser.

O pedido de socorro à mamãe é o sinal para que todos os bichos e as árvores entoem em conjunto um coro, acusando o menino de todas as suas artes e maldades. Eles cercam o menino e o provocam, ameaçam-no, são tomados por um frenesi, todos eles querem punir o menino e, com isso, instaura-se uma confusão geral, em que todos brigam entre si para ver a quem caberá castigar a criança. Nisso ecoa um grito do esquilo ferido. O menino, para a surpresa de todos, apressa-se em fazer um curativo no esquilinho. Está dado o passo para o seu perdão e sua redenção. O menino

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Doktor Faustus. Frankfurt-am-Main, S. Fischer, 1987, pp. 373-374. Discuti a questão em Aufklärung musical. Dissertação de mestrado, FFLCH-USP, 1991.

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desmaia de cansaço e tensão. Todos os bichos se voltam para ele, preocupados. Onde, e como, podemos salvá-lo? Um dos bichos aponta para a casa: C'est là qu'est le secours! Todos os bichos se juntam e vão levando o menino, desfalecido, em direção à casa, chamando pela mãe. O menino desperta, uma luz se acende por detrás das vidraças; a lua irradia, como nunca, une clarté pure sobre o jardim. Os bichos se afastam, deixam a criança já às portas de casa; ele abre os braços e clama pela mãe.

L'Enfant et les Sortilèges é não uma revolta da natureza, como se poderia pensar em

virtude do fato de que, na história, os animais e plantas se revoltam contra a maldade da criança. Entretanto, essa revolta, no plano do enredo, não pode ser confundida com o que de fato se mostra por detrás dela: não a revolta da natureza dominada e instrumentalizada, mas o retorno mágico a um tempo anterior, anterior à dominação da natureza. A idéia de que os bichos se amam e se entendem é cheia de implicações: ela aponta para uma natureza pacificada --- ou melhor, em estado de paz originária ---, uma terra sem mal, anterior à chegada do homem dominador. Ravel compõe, neste mundo, um outro mundo, em tudo diferente. O absolutamente outro é encontrado no passado, embora mágico.

A comunicação dos animais implica em uma linguagem que todos falam, anterior à Torre de Babel, uma linguagem do Paraíso. Não é, justamente, o jardim de L'enfant et les Sortilèges uma imagem do Paraíso, antes do Pecado Original? A proximidade com as crianças também toca aqui: elas são as que permanecem inocentes, neste mundo louco, alucinado e sem sentido; elas são o que restou da pureza em um mundo impuro.

Excurso

Há aqui vários elementos para compreendermos a fisionomia de Ravel. A figura do

compositor celibatário não é a menos importante, pois implica em um relacionamento com uma estrutura familiar forte e autoritária 8. Embora possa parecer estranho, isto toca um aspecto do caráter social de Ravel. "'No mundo civilizado', diz Taine, as principais necessidades de um homem são 'um ofício e um lar'. É também um meio de escapar ao domínio dos pais e de levar uma vida independente." 9 O ofício escolhido sempre esteve, salvo muito raras exceções, em relação de enorme tensão com a vida no mundo. Ravel se increve em um campo em algo semelhante ao de Flaubert, descrito por Bourdieu. A relação com o público é difícil, e não menos com os colegas de ofício; ao mesmo tempo, o mecenato do Estado, que parece ser imprescindível (pense-se nos enormes esforços pelo Prix de Rome), nunca se concretiza. O lar, assim, ganha um peso enorme, como instância de verdadeiro reconhecimento e plenitude; todas as energias que são direcionadas, em um certo registro, para a composição, afluem, em outro, para o interior. É nesse sentido, inclusive, que se pode qualificar sua música de música de interior. A necessidade do lar está na relação mais íntima com o enorme peso dado às relações familiares: o pai, a mãe e o irmão são, sem qualquer possível competidor, os núcleos em torno dos quais a vida de Ravel se orienta. O pai, o inventor excêntrico e genial, mas não completamente reconhecido, é aquele que estimula o filho músico; a mãe, a presença sempre presente, a confiança e segurança (e me abstenho de explorar os paralelos tão evidentes com a figura da mãe em L'Enfant); o irmão, o único que o acompanha por toda a vida. Seria de se perguntar se o custo do ofício --- não há como não se lembrar de Leverkühn --- é a vida confinada nos pequenos círculos, na família e, por fim, a doença.

Com isto, ademais, temos claramente delineado o problema do interior burguês, e da sociabilidade que lhe é correlata 10. O interior, a configuração arquitetônica e decorativa da interioridade, é o refúgio e paraíso do burguês, o único espaço onde ele reina absolutamente 8 Cf. M. Horkheimer e T.W. Adorno (orgs.), Temas básicos da sociologia. 2a. ed., São Paulo, Cultrix, 1978, pp. 132 ss. 9 M. Perrot, "Os atores" in M. Perrot (org.), História da vida privada IV. Da Revolução Francesa à Primeira Guerra. São Paulo, Cia. das Letras, 1991, p. 134

18210 Discuti um pouco do assunto em Vamos ler Georg Simmel? Tese de doutorado, FFLCH-USP, 1996.

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soberano, protegido dos perigos do mundo exterior. A casa --- assim como a família --- é uma proteção, e em Ravel isto é muito claro, seja nas habitações parisienses, seja na casa em Montfort-l'Amaury, nos arredores de Paris, para onde Ravel se retira após a Guerra e a morte da mãe 11. Quanto mais Ravel se separa da família, mais importante se torna o interior.

Apesar de muito conhecida, vale a pena reproduzir algo da sociologia do interior de Walter Benjamin, que é em tudo pertinente para o nosso compositor.

"A oposição entre o espaço da vida e os locais de trabalho aparece pela primeira vez para o homem privado. O espaço da vida constitui-se em interior. O escritório é o seu complemento. O homem privado, que no escritório leva em conta a realidade, pede ao interior para ser mantido em suas ilusões. Essa necessidade é tanto mais urgente, quanto ele não pensa em ampliar as suas reflexões acerca dos negócios à reflexões acerca da sociedade. Na configuração de seu mundo interior, ele reprime ambas. Dele evadem as fantasmagorias do interior. Este representa para o homem privado o universo. Nele, ele reúne o distante e o passado. Seu salão é um camarote no teatro do mundo. [...] / O interior é o refúgio da arte. O colecionador é o verdadeiro ocupante do interior. Ele toma para si a apoteose/transfiguração das coisas. Cabe-lhe o trabalho de Sísifo de, mediante a sua posse das coisas, despi-las de seu caráter de mercadoria. Mas ele lhes atribui apenas o valor do amor, ao invés do valor de uso. O colecionador sonha não só com um mundo passado ou distante, senão que sonha ao mesmo tempo com um mundo melhor, no qual os homens na verdade são munidos com tão poucas das coisas que precisam como no mundo cotidiano, mas as coisas estão livres da servidão de serem úteis. / O interior é não só o universo do homem privado, mas também seu estojo. Morar significa deixar rastros. No interior eles são acentuados. Inventam-se colchas e fronhas, caixas e estojos em abundância, nos quais se imprimem os traços dos objetos de uso cotidiano. Também os traços do morador imprimem-se no interior." 12

Interessa-me aqui menos comentar o texto de Benjamin do que aproximá-lo rapidamente de uma descrição que temos do interior em Ravel.

"The homes that Ravel furnished for himself in Paris and in Montfort-l'Amaury are full of riddles, grotesque notions, and arbitrary collections of treasures and trash. [...] Gradually the house [em Montfort-l'Amaury, LW] acquired a profile. Ravel sketched out his own wallpapers, had his chairs decorated by brandind in the style of the turn of the century, painted the marble of the fireplace with odd designs, and began to colect crazy and trashy objects, including Gothic ashtrays, pieces of fake Chinese porcelain, and a mechanical nightingale that sang when it was wound up. The dimensions of the house were small, so the forniture had to be small as well --- quite suitable to the master of the house. The list of contents remind one of an out-of-place child's nursery. It was a playhouse set up by a spirit of fantasy. / Ravel gave his microcosmic inclinations free rein even the garden. He provided himself with dwarf plants, miniature tree, and small shrubs, such as are cultivated in Japan. One would imagine oneself in a dream of Jonathan Swift or in the fairy tale of Tom Thumb. Even the piano was covered with unusual things. Ilumination was provided by two imposing metal lamps with the pressed milk-glass globes of the belle époque. Snuffboxes and all sorts of little containers of uncertain origin lay about. A tremendous feather, wich might have come from an ostrich or a swan, was stuck in the inkwell. The corners were fitted with cabinets with several

11 Não é nenhuma mera coincidência o fato de que o ambiente de L'Enfant et les Sortilèges, o interior das cenas iniciais e o jardim das finais, pareça muito semelhante à villa de Ravel em Montfort-l'Amaury, intitulada pelo proprietário "Le Belvedère", onde a operazinha foi composta praticamente por inteiro.

18312 W. Benjamin, Gesammelte Schriften. Frankfurt/M, Suhrkamp, 1991, vol. V.1, pp. 52-53, tb. 67-69.

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shelves filled with knickknacks of Meissen and French manufacture --- some pretty, some ridiculous. Only the large wide-framed picture of his mother (frontispiece) gazed, serious and proud, on the 'Curiosity Shop' her son had collected for himself." 13

O interior é o espaço povoado pelo compositor, onde ele imprime seus gostos e desejos, preferências e manias. A individualidade única se espelha e realiza no interior. Este é elaborado em seus mínimos detalhes, e em todos eles a mão e o olhar do habitante deixam seus vestígios. A partir disso, é possível encontrar muitas correspondências, que caberia desenvolver; veja-se apenas esta passagem de Baudelaire: "une chambre qui ressemble à une rêverie, une chambre véritablement spirituelle... Les meubles ont des formes allongées, prostrées, alanguies. Les meubles ont l'air de rêver; ont les dirait doués d'une vie sonambulique, comme le végétal et le minéral." 14 Isto pode ser facilmente relacionado tanto à morada do compositor, como ao cenário e os personagens de L'Enfant et les Sortilèges.

O compositor-colecionador é apaixonado por bric-a-brac, pelos objetos ornamentais os mais estranhos e bizzarros. Todos os visitantes de "Le Belvedère" impressionavam-se com a disparidade, exagero e gosto das coisas cuidadosa e amorosamente reunidas pelo compositor. O interior é o locus por excelência do colecionador, envolto por seus objetos mais queridos. Até mesmo a sociabilidade dos pequenos círculos poderia ser vista sob esse prisma, como uma coleção de convidados que o colecionador junta ao seu redor: eles são poucos, exclusivos, escolhidos a dedo pelo anfitrião, que teme qualquer desequilíbrio nas relações do círculo. Se a sociabilidade da família parece ter sido tão feliz --- pai, mãe e irmão são, sem dúvida alguma, as figuras humanas mais importantes para Ravel ---, parece que os esforços do compositor celibatário concentraram-se em conseguir rearticular um Ersatz do círculo primeiro, à medida em que ele ia se desfazendo pelas mortes dos pais.

A casa de Ravel parece uma casa de sonho, que por sua vez está próxima da casa dos contos de fadas. E então já não há mais dúvidas de que estamos no ambiente de L'Enfant et les Sortilèges 15. Tal ambiente, tão encantador e envolto em mistério, é especialmente propício às viagens, e é então que começam as viagens ao redor dos quartos; quanto mais povoados pelo estranho e pelo diverso, tal como o faz a coleção, mais rica e emocionante a viagem pelo interior. Naturalmente, tal viagem é também uma descoberta, e o que se descobre é a subjetividade do seu habitante. É por essa razão, inclusive, que as "invitations au voyage" não são feitas a qualquer um, mas apenas aos amigos que penetram no círculo mais íntimo da sociabilidade.

O local para tal recolhimento e sossego não poderia ser melhor. A necessidade imperiosa de abandonar a vida nervosa da Paris agitada e cada vez mais frenética é contrabalançada pela distância de Montfort-l'Amaury, em rápida conexão com a metrópole, permanecendo perto o suficiente para, sempre que preciso, rapidamente alcançá-la. A tensão e ambigüidade entre o refúgio e a imersão no movimento da cidade deixou rastros na música de Ravel; mesmo no interior de L'Enfant et les Sortilèges, é possível perceber algo disto na contraposição da aparição dos pastores e pastoras e na intervenção mais-do-que-frenética do relógio 16. Também aqui a sociologia da cidade grande e moderna pode ter algo a dizer:

13 H.H. Stuckenschmidt, Maurice Ravel. Variations on his Life and Work. Philadelphia etc., Chilton, 1968, pp. XII, 193-194. 14 C. Baudelaire apud W. Benjamin, Gesammelte Schriften, op. cit., vol. V.2, p. 687. O texto de Baudelaire provém de Le spleen de Paris ("La chambre double"). 15 Em um curto fragmento sobre Ravel, Adorno chamou a atenção para o fato de que o objeto de desejo da música de Ravel está situado não no exterior, mas no interior, e habita os próprios sonhos do compositor. Isto aponta para aquela diluição entre o sono e a vigília a que fiz menção; aponta também para a continuidade casa de sonho - casa de contos de fadas. Cf. T.W. Adorno, Gesammelte Schriften, op. cit., vol. 18, pp. 273-274.

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16 O que poderia ser explorado, no âmbito do procedimento composicional, sob a chave da "Motorik". Para não mencionar a obra mais conhecida do compositor, lembro o "perpetuum mobile" da Sonata para violino e piano.

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"E isto conduz a, em sentido estrito, individualização espiritual dos atributos anímicos, que a cidade, em função de sua magnitude, propicia. Há uma série de causas para tanto. Inicialmente a dificuldade em fazer valer a própria personalidade nas dimensões da vida na cidade grande. Onde a intensificação quantitativa de significação e energia chega ao seu limite, apela-se à singularização qualitativa a fim de, mediante a excitação da sensibilidade para a diferença, ganhar para si de algum modo a consciência do círculo social. O que leva então finalmente às mais tendenciosas esquisitices, às extravagâncias típicas da cidade grande como o exclusivismo, o capricho, a pretensão, cujo sentido não está mais absolutamente nos conteúdos dessas condutas, mas sim apenas na sua forma de ser diferente, de se salientar, e com isso de se tornar notado --- para muitas naturezas, por fim, o único meio, através do desvio pela consciência dos outros, de preservar para si alguma espécie de autovalorização e a consciência de que ocupa um lugar." 17

Essa necessidade de distinção e individualização, característica da cidade grande, encontra no interior o seu refúgio. É certo que ela não se limita ao interior, mas nele ela consegue reinar. No final do século, o "dandy" no registro estético e o "snob" no registro social são a encarnação mais perfeita dessa figura. Em certa medida, é uma figura característica do fin-de-siècle, e que perdura até Ravel e Proust (aqui sucumbo à aproximação, que evitava ao máximo); quem sabe algo da biografia do compositor, conhece o quanto estes registros --- o dandy, o apache --- são significativos em Ravel 18. O tema, importante, leva-nos muito mais longe do que convém e, por comodidade, utilizo um retrato já pintado:

"De origem britânica e essência aristocrática, o dandismo toma a distinção como o próprio princípio de seu funcionamento. [...] ele exacerba a diferença numa sociedade que tende à massificação. [...] Anti-igualitário, ele gostaria de recriar uma aristocracia que certamente não seria a do dinheiro ou a da linhagem, mas a de um temperamento --- 'nasce-se' dândi --- e de um estilo. / Homem público, o dândi, ator do teatro urbano, protege sua individualidade por trás da máscara de uma aparência que ele tenta tornar indecifrável. Ele alimenta o gosto da ilusão e do disfarce, tem um agudo senso dos detalhes e dos acessórios [...]. Um dândi é 'um homem que usa roupas [...]. Ele vive para se vestir.' (Carlyle) [...] O dandismo é uma ética, uma concepção da vida que eleva o celibato e a vagabundagem ao nível de uma resistência consciente." 19

Haveria muito a explorar na sobreposição de Ravel a este retrato. Indecifrável, a existência pessoal de Ravel era em muito desconhecida até pelos mais próximos. O senso dos detalhes foi transformado em força produtiva no seu compor 20. O cuidado, e mesmo obsessão de Ravel com as roupas despertava a atenção dos amigos. E, melhor que "vagabundagem", é a idéia de "ociosidade" que também se torna força produtiva em Ravel, como se verá logo mais. E o colecionador, 17 G. Simmel, "Die Großstädte und das Geistesleben" in Das Individuum und die Freiheit. Frankfurt/M, Fischer, 1993, p. 202. 18 Registros estes que serão retomados por Walter Benjamin como configurações do flaneur. Por conta disto, todo o amplo complexo benjaminiano em torno de Baudelaire e das passagens de Paris fornece amplos materiais para se pensar Ravel. 19 M. Perrot, "Os atores", op. cit., pp. 296-298. Ver tb. W. Benjamin, Gesammelte Schriften, op. cit., vol. I.2, pp. 599-600.

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20 A atenção para os menores detalhes; a precisão no tratamento orquestral (embora não queira, aqui, repetir a fórmula de Stravinsky, aquela do "relojoeiro suíço"); a sensibilidade das mínimas passagens e das mais delicadas transições; o tratamento vocal magistral nas diferentes partes; tudo isto converge no que uma das biógrafas de Ravel, Madeleine Gross, escreveu: "Ravel was accurate in every detail. Small in frame and stature, he always dressed his slender body in the latest and most fashionable mode. No effort was too much for him to make to produce the effect he wanted, wether in working out an awkward detail in a composition, or accomplishing a harmony between his cravat, his soks, his handkerchief and the pattern of a suit of clothes he was wearing." Apud H.H. Stuckenschmidt, Maurice Ravel, op. cit., p. 223. Ademais, seria naturalmente possível relacionar moda e moderno também em Ravel.

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excêntrico, não seria também uma das faces deste tipo social? É precisamente no colecionar que se increve a aproximação com as crianças, que são as maiores colecionadoras que há. Colecionar é uma persistência da infância e, colecionando, Ravel continuou criança 21. Ele parece ter compreendido como ninguém a idéia de que "o que realizamos na vida é pouco mais que a tentativa de recuperar a infância." 22 Seu modo muito próprio de fazê-lo foi não deixar esgarçar jamais os laços da vida adulta com a infância, e é disto que nasce alguma música sua.

Resta falar algo do jardim. Ele é a contraparte do interior da moradia. Também ele é decorado cuidadosamente, também ele é um espaço de tranqüilidade e beleza. Mas o jardim também é ambíguo, pois já representa um passo em direção ao exterior. Não é o jardim, em L'Enfant et les Sortilèges, habitado por seres estranhos e amedrontadores? Naturalmente, o jardim está conformado no hábito da interioridade burguesa; "nos meados do século XIX, o jardim se tornou um elemento fundamental da vida burguesa. A natureza domesticada, cercada por árvores e sebes, assegurava a tranqüilidade da vida privada e proporcionava um quadro ideal para a vida em família." 23 O que não significava que ele fosse um espaço completamente livre de perigos; é justamente isto que Ravel vai explorar na operazinha. Seu final, contudo, mostra que mesmo o jardim é um espaço no qual se pode confiar.

Fim do excurso

A infância é um tempo em que todas as coisas se antropomorfizam. Todos os bichos, todas

as coisas têm sua forma própria, todos falam uma linguagem própria e, contudo, todos se entendem entre si. A criança fala e brinca com eles; eles realizam a idéia de uma linguagem não só universal, mas de uma linguagem na qual todos realmente se entendem. Talvez isso seja realmente a definição do que é a infância. Entretanto, temos aqui, em mesma medida, o elemento mimético com que se constituem as obras de arte.

"A racionalidade das obras de arte só se torna espírito se ela se afunda no que está no pólo oposto. A divergência do construtivo e do mimético, que não é aplanada por nenhuma obra de arte, por assim dizer o pecado original do espírito estético, tem seu correlato no elemento de infantilidade e tolice [Albernen] e de palhaçada, que mesmo as obras mais importantes trazem consigo [...]. A infantilidade e tolice [Albernheit] é o resíduo mimético na arte, o preço de sua impermeabilidade. [...] Aquele momento, enquanto resíduo de algo impenetrável, bárbaro, que é estranho à forma, torna-se ao mesmo tempo o pior na arte, se ele não é refletido nela enquanto elemento da forma. [...] Não obstante, os momentos de infantilidade e tolice [albernen] das obras de arte são os mais próximos de suas camadas sem intenção e por isso, nas grandes obras, são também o seu segredo. [...] No elemento de palhaçada a arte relembra, consolada, a pré-história no mundo animal pretérito. Os macacos antropomorfos no zoológico realizam em comum o que equivale aos atos do palhaço. A conivência das crianças com os palhaços é a mesma que com o arte --- que os adultos lhes negam ---, não menos do que com os animais. O gênero humano não conseguiu recalcar tão completamente a sua semelhança com os animais, de tal modo que ele não a possa reconhecer subitamente e com isso ser inundado de felicidade; a linguagem das criancinhas e dos animais parece identificar-se." 24

21 Também aqui W. Benjamin fornece amplos materiais de investigação, p. ex. Gesammelte Schriften, op. cit., vol. V.1, pp. 269-280, assim como nos vários escritos sobre a infância. 22 T.W. Adorno, Gesammelte Schriften, op. cit., vol. 10.2, p. 697. 23 C. Hall, "Sweet Home" in M. Perrot (org.), História da via privada IV, op. cit., pp. 69-70.

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24 T.W. Adorno, Ästhetische Theorie. 8a. ed., Frankfurt/M, Suhrkamp, 1986, pp. 181-182. O texto é difícil e ainda aguarda uma versão mais correta.

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E Ravel compartilha com ambos, com as crianças e os animais, essa mesma linguagem que, secreta, é o segredo de sua arte. 25 Este segredo acena também para o jogo, para um estrato lúdico que repousa na obra e que a adensa, e está na maior proximidade com a felicidade; e esse elemento de jogo aponta, também ele, para as crianças e os animais. 26 Todas estas são dimensões, ou estratos, que repousam na operazinha de Ravel, e convergem na expressão da obra de arte.

Ravel gostava de brincar com as crianças e os bichos em mais de um sentido, porque isso migrou para a composição (aqui seria possível explorar a relação com Satie). O gosto pelas brincadeiras passa da vida "real" para a composição. Por que não compor brincando? Por que não fazer da música uma brincadeira? Quem não se lembra da dedicatória das Valses nobles e sentimentales: "le plaisir delicieux et toujours nouveau d'une occupation inutile"? Entretanto, seria um erro pensar que essa famosa dedicatória pudesse ser explicada pela idéia da arte pela arte. Antes, trata-se da recusa em aceitar que o prazer deva estar submetido à utilidade --- o que, note-se en passant, é exatamente o que Benjamin assinalava, tanto a respeito da relação do colecionador com seus objetos, como na caracterização do flaneur como o "ocioso que sonha" 27 (esta mesma é uma caracterização que já remete às crianças e à infância: quem pode desfrutar tanto da ociosidade como as crianças, quem pode sonhar tão livremente?). Na recusa sempre constante da utilidade, Ravel permanece uma criança, brincando pelo prazer de brincar.

Talvez valesse a pena tentar explorar algo acerca da felicidade. Os animais representam e realizam um calor que os homens perderam. É por essa razão que, quando Ravel fala das crianças e dos animais, ele fala de um mundo perdido, e essa é a exata medida de sua utopia: um mundo onde há calor humano --- um calor que os homens já perderam e ainda é encontradiço nesse mundo de fantasia povoado por bichos, plantas, coisas vivas e crianças. ---, e onde a frieza fica de fora. O enigma dessa música de Ravel é este: que, sendo música burguesa, protesta no seu mais íntimo contra "a frieza, o princípio básico da subjetividade burguesa" 28. Para fazer isso, ele se utiliza dos animais, plantas e objetos, fazendo-os viver uma vida que é por completo diferente daquela vida que não vive. Ou, como disse Carlos Drummond de Andrade com mais propriedade e poesia: 29

Eis meu pobre elefante pronto para sair à procura de amigos num mundo enfastiado que já não crê nos bichos e duvida das coisas. Ei-lo, massa imponente e frágil, que se abana e move lentamente a pele costurada onde há flores de pano e nuvens, alusões a um mundo mais poético

25 "The realm of his imagination remained all his life a specially personal kind of children's nursery, peopled by fairy-tale characters, magicians, strange animals with human ways, and fabulous creatures from Arabia, China, and Africa. It is a world of fantasy where humans can share in the marvels, the delights, and the surprise of the world beyond reality, the realm of wonders, of boundaries that disappear. / Ravel entered and inhabited this world of magic with his eyes wide open and with complete understanding of it. He was able to lay his hands on the objects in it, to model their mythical figures to his own measure, to dress them in gay garments, decorate them with rich ornament, wich he himself had conjured up out of sound and rhythm in music." H.H. Stuckenschmidt, Maurice Ravel, op. cit., p. 10. 26 "O jogo é, no conceito de arte, o momento mediante o qual ela se eleva de modo imediato sobre a imediaticidade da práxis e de seus fins. Mas, ao mesmo tempo, o jogo está represado no que está para trás, na infância e até mesmo na animalidade." Adorno, Ästhetische Theorie, op. cit., p. 469. 27 W. Benjamin, Gesammelte Schriften, op. cit., vol. V.1, p. 525, ver tb. vol V.2, pp. 961-970. 28 T.W. Adorno, Negative Dialektik. 4a. ed., Frankfurt/M, Suhrkamp, 1985, p. 356.

18729 Carlos Drummond de Andrade, "O Elefante" in Nova Reunião. Rio de Janeiro, J. Olympio/INL, 1983, vol. 1, p. 163.

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onde o amor reagrupa as formas naturais.

Por saber conversar com os animais, um dom que é preciso qualificar de mágico, 30 Ravel jamais deixou de ser criança.

Há ainda um outro poema, de Manuel Bandeira, intitulado "Mozart no céu" 31 --- dentre todos os compositores o mais próximo de Ravel ---, que pede para ser aproximado do compositor de L'Enfant et les Sortilèges.

No dia 5 de dezembro de 1791 Wolfgang Amadeus Mozart entrou no céu, como um artista de [circo, fazendo piruetas extraordinárias sobre um mirabolante cavalo branco.

Os anjinhos atônitos diziam: Que foi? Que não foi? Melodias jamais ouvidas voavam nas linhas suplementares superiores da pauta. Um momento se suspendeu a contemplação inefável. A Virgem beijou-o na testa E desde então Wolfgang Amadeus Mozart foi o mais moço dos anjos.

O que vemos abaixo é a imagem de Ravel chegando no céu, escoltado por duas de suas amigas libélulas.

30 "He carried on the conversations he loved: with animals, with doves, and, most of all, with the cats, twelve of wich came to see him off when he made an excursion to Fez." H.H. Stuckenschmidt, Maurice Ravel, op. cit., p. 245. "He had an uncommom gift of mimicry and could reproduce bird calls and animal voices with singular realism. If anyone paid him a compliment, he would cover up his pleasure and his embarrassment by turning aside with a comical bird or animal call." Idem, p. 223.

18831 Manuel Bandeira, Poesias. Rio de Janeiro, J. Olympio, 1955, p. 285.

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