raquel cardonha piacenti - unicamp€¦ · 2.2.2 – mafalda e a classe média argentina p. 65...

151
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO RAQUEL CARDONHA PIACENTI TIRAS QUE PRODUZEM HISTÓRIA: MAFALDA E A EDUCAÇÃO ARGENTINA (1964- 1973) CAMPINAS 2018

Upload: others

Post on 21-Aug-2020

0 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

RAQUEL CARDONHA PIACENTI

TIRAS QUE PRODUZEM HISTÓRIA: MAFALDA E A EDUCAÇÃO

ARGENTINA (1964- 1973)

CAMPINAS

2018

Page 2: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

RAQUEL CARDONHA PIACENTI

TIRAS QUE PRODUZEM HISTÓRIA: MAFALDA E A EDUCAÇÃO

ARGENTINA (1964- 1973)

Dissertação de Mestrado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em Educação da

Faculdade de Educação da Universidade

Estadual de Campinas para obtenção do título

de Mestra em Educação, na área de

concentração de Educação.

Supervisor/Orientador: Professora Doutora Maria do Carmo Martins

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À

VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO

DEFENDIDA PELA ALUNA RAQUEL

CARDONHA PIACENTI E ORIENTADA

PELA PROFA. DRA. MARIA DO CARMO

MARTINS

CAMPINAS

2018

Page 3: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): CAPES, 1600715

Ficha catalográfica

Universidade Estadual de Campinas Biblioteca da Faculdade de Educação

Rosemary Passos - CRB 8/5751

Piacenti, Raquel Cardonha, 1990-

P57t Tiras que produzem história : Mafalda e a educação argentina (1964-1973) /

Raquel Cardonha Piacenti. – Campinas, SP : [s.n.], 2018.

Orientador: Maria do Carmo Martins.

Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade

de Educação.

1. História da Educação. 2. Cultura Visual. 3. História em quadrinhos. I.

Martins, Maria do Carmo, 1964-. II. Universidade Estadual de Campinas.

Faculdade de Educação. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Comic strips that produce history : Mafalda and the argentine

education

Palavras-chave em inglês:

History of Education

Visual Culture

Comics

Área de concentração: Educação

Titulação: Mestra em Educação

Banca examinadora:

Maria do Carmo Martins [Orientador]

Arnaldo Pinto Júnior

Giovana Scareli Data de defesa: 06-03-2018

Programa de Pós-Graduação: Educação

Page 4: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

TIRAS QUE PRODUZEM HISTÓRIA: MAFALDA E A

EDUCAÇÃO ARGENTINA (1964- 1973)

Autor: Raquel Cardonha Piacenti

COMISSÃO JULGADORA:

Profa. Dra. Maria do Carmo Martins

Prof. Dr. Arnaldo Pinto Júnior

Profa. Dra. Giovana Scareli

A Ata da Defesa assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica do aluno.

2018

Page 5: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

Dedico esta dissertação ao meu noivo Caio e aos meus pais Célia e Carlos, pelo apoio

incondicional.

Page 6: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

Agradecimentos

Ao final de um trabalho como este, é imprescindível que algumas pessoas

recebam meus sinceros agradecimentos, seja pela efetiva colaboração com a minha pesquisa

ou pela constante amizade e presença em minha vida. Em primeiro lugar, gostaria de

agradecer a professora Maria do Carmo Martins, que acreditou em meu projeto de pesquisa e,

além de ser excelente professora e orientadora, foi uma grande amiga, sempre me auxiliando

nas inúmeras dúvidas que surgiram durante o período de mestrado. As leituras e

interpretações realizadas só foram possíveis graças ao seu direcionamento.

Agradeço também aos professores Arnaldo Pinto Júnior e Giovana Scareli, que

além de participarem de minha banca de Qualificação do Mestrado, foram essenciais para

refletirmos sobre o trabalho, me auxiliando nas correções, análises de tiras e fundamentação

bibliográfica. Além deles, agradeço a CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal

de Nível Superior) pela concessão da bolsa durante todo o período de realização deste

trabalho.

Agradeço a todos da minha família que, de alguma forma, me incentivaram na

busca pelo conhecimento e aprimoramento. Em especial ao meu pai Carlos, meu grande herói,

pelos conselhos, incentivos e constantes releituras dos meus textos; e à minha mãe Célia, cujo

amor e dedicação foram fundamentais para minha formação acadêmica e pessoal. Agradeço

também à minha irmã Gabriela, que esteve sempre ao meu lado nos momentos de alegria e de

frustrações.

Ao Caio, meu noivo e grande amor, palavras não são suficientes para expressar

minha gratidão. Se hoje estou aqui finalizando mais uma etapa é, também, graças a ele, que

mais do que incentivar, me fez acreditar em minha capacidade como pesquisadora. Agradeço

ao companheirismo, momentos de risadas, embaraços, confidências; e, claro, ao seu grande

auxilio nesse trabalho, lendo meus textos a fim dar suas opiniões e revisar a gramática. E sim,

foram muitos os erros!

Agradeço também aos meus queridos sogros Silvana e Miguel, que além do

estímulo, me permitiram entrar em sua casa e ali, na tranquilidade, ler, fichar textos e escrever

muitas das páginas desse trabalho. O carinho deles foi fundamental para que tudo isso fosse

possível.

Sou grata também por todos os meus amigos, da graduação e do grupo de

pesquisa, com quem compartilhei momentos de crises existenciais e reuniões de orientação.

Os textos lidos e discutidos colaboraram para uma maior compreensão do meu tema de

Page 7: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

pesquisa e me permitiram ir muito além do que um dia imaginei. Agradeço, em particular, a

minha amiga-irmã Dietrich, sem a qual esses 18 anos não teriam graça, por me compreender e

me apoiar, nos mais malucos sonhos.

Finalmente, agradeço aos meus alunos – todos eles –, que me permitiram

descobrir um prazer inestimável em preparar e dar aulas. Com eles pude perceber que é

possível conciliar a vida acadêmica com a pedagógica, e se tudo caminhar bem, assim

persistirei fazendo.

A todos, muitíssimo obrigada.

Page 8: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

Resumo

Ainda que, na atualidade, a história em quadrinho seja reconhecida tanto pelo seu

alcance quanto por ser veiculadora de ideologias e conflitos, as HQs são uma fonte ainda

pouco explorada pelos pesquisadores de um modo geral. Somente nos anos 1970 surgiram

trabalhos que questionaram a ausência dos quadrinhos nos discursos acadêmicos e sua

classificação como gênero menor. Esta dissertação entende os quadrinhos como uma

importante forma de manifestação cultural e de representação de uma determinada época e

contexto. Nesse cenário, analisa o impacto visual e constrói relações entre Mafalda – ícone

das historietas – e o cenário educacional argentino da época em que a personagem foi

produzida. Além das representações do ambiente escolar, o diálogo com essa fonte

documental se faz articulando estudos históricos e estudos sobre a cultura visual,

reconhecendo as especificidades da fonte em suas características estéticas e como produção

cultural e artística, para propor leituras e interpretações.

Palavras-chave: História da Educação. Cultura visual. História em quadrinhos.

Page 9: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

Abstract

Although comic book stories have been recognized by both its scope and the

ability to communicate ideologies and conflicts, they have still been little explored as a source

by researchers in general. Only in the 1970s studies started questioning the absence of comics

of academic fields and its classification as gender less. This dissertation considers the comics

as an important cultural manifestation that represents a certain time and context. In this

scenario, we have analyzed their visual impact and we have related Mafalda – the icon of

historietas - and the Argentinian education at the time that was produced. In addition to the

representations of the school environment, the dialogue with this source is presented by

articulating historical studies and the studies on visual culture, recognizing the specificities of

the source in its aesthetic characteristics and as cultural and artistic production in order to

propose readings and interpretations.

Keywords: History of Education. Visual culture. Comics.

Page 10: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

Lista de Figuras

Figura 1: Tira A. Mutt, de Bud Fisher, publicada no jornal Chronicle p. 22

Figura 2: Homenagem ao personagem de Caloi, Clemente em Buenos Aires p. 33

Figura 3: Estátua de Mafalda, Susanita e Manolito no bairro San Telmo p. 33

Figura 4: Desenho de Sempé p. 36

Figura 5: Desenho assinado como Quino Tejón, publicado por Esto Es em 1955 p. 40

Figura 6: Desenho publicado por Esto Es, nº 63, fevereiro de 1955 p. 40

Figura 7: Chicas de Divito na Capa. Rico Tipo ano I nº4 p. 41

Figura 8: Desenhos de Quino, Flax, Miguel Brascó, Siulnas e Politesse p. 42

Figura 9: Tira da Mafalda publicada por El Mundo, dezembro de 1965 p.43

Figura 10: Tira de Landrú. Tía Vicenta ano IX nº 339 p. 44

Figura 11: Desenho de Quino publicado por Clarín p. 46

Figura 12: Desenho de Quino p. 49

Figura 13: Roberval p. 52

Figura 14: Tira de Mafalda publicada por Primera Plana p.54

Figura 15: Snoopy. Tira de Schulz, publicada em 27 de maio de 1957 p. 59

Figura 16: Pepita y Lorenzo. Tira de Chic Young p. 59

Figura 17: Tira de Quino publicada por Leoplán p. 59

Figura 18: Tira publicada por Primera Plana em tira em 9 de março de 1965 p. 61

Figura 19: vinheta publicada por Siete Días Ilustrados em 23 de agosto de 1971 p. 64

Figura 20: vinheta publicada por Siete Días Ilustrados em 20 de maio de 1973 p. 64

Figura 21: vinheta publicada por Siete Días Ilustrados em 4 de junho de 1973 p. 65

Figura 22: Tira publicada por Primera Plana em 1 de dezembro de 1964 p. 68

Figura 23: Tira publicada por Primera Plana em 8 de dezembro de 1964 p. 68

Figura 24: Tira publicada por El Mundo em 21 de maio de 1965 p. 70

Figura 25: Tira publicada por Siete Días (1970) p. 70

Figura 26: Tira publicada pelo jornal El Mundo p. 71

Figura 27: Tira publicada por Primera Plana em 10 de novembro de 1964 p. 72

Figura 28: Tira publicada por El Mundo p. 74

Figura 29: tira publicada pelo jornal El Mundo p. 76

Figura 30: tira publicada pelo jornal El Mundo p. 77

Figura 31: tira publicada pelo jornal El Mundo p. 78

Page 11: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

Figura 32: tira publicada pelo jornal El Mundo p. 79

Figura 33: tira publicada pelo jornal El Mundo p. 80

Figura 34: tira publicada pelo Siete Días p. 81

Figura 35: tira publicada pelo Siete Días p. 92

Figura 36: tira publicada pelo Siete Días p. 93

Figura 37: Tira publicada por El Mundo em 15 de março de 1965 p. 101

Figura 38: Tira de Mafalda p.103

Figura 39: Tira de Mafalda p.105

Figura 40: Tira de Mafalda p.106

Figura 41: Tira de Mafalda p.107

Figura 42: Tira de Mafalda publicada por El Mundo em 12 de março de 1966 p. 108

Figura 43: Tira de Mafalda publicada por El Mundo em 12 de março de 1966 p. 109

Figura 44: Tira de Mafalda publicada por El Mundo p. 121

Figura 45: Tira de Mafalda publicada por El Mundo em 28 de junho de 1966 p. 123

Figura 46: Tira de Mafalda publicada por El Mundo p. 124

Figura 47: Tira de Mafalda publicada por El Mundo p. 125

Figura 48: Tira de Mafalda publicada por El Mundo p. 127

Figura 49: Tira de Mafalda publicada por El Mundo p. 128

Figura 50: Tira de Mafalda publicada por El Mundo p.130

Figura 51: Tira de Mafalda publicada por El Mundo p. 131

Figura 52: Tira de Mafalda publicada por El Mundo p. 133

Figura 53: Tira de Mafalda publicada por El Mundo p. 134

Figura 54: Tira de Mafalda publicada por El Mundo p.135

Figura 55: Tira de Mafalda publicada por El Mundo p. 137

Figura 56: Tira de Mafalda publicada por El Mundo p. 138

Figura 57: Tira de Mafalda publicada por El Mundo p. 139

Figura 58: Tira de Laerte em homenagem aos 50 anos de Mafalda p. 143

Page 12: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

Sumário

Introdução p. 13

Capítulo1: Cultura Visual e Histórias em Quadrinhos p. 19

1.1 – Da marginalização à fonte de pesquisa p. 21

1.2 – As histórias em quadrinho p. 24

1.3 – Historietas: As Histórias em quadrinhos na Argentina p. 28

Capítulo 2: O autor e sua obra p. 34

2.1 – Quino p. 35

2.1.1 – A trajetória p. 38

2.1.2 – Humor e Humor em Quino p. 50

2.2 – Mafalda p. 56

2.2.1 – A trajetória p. 58

2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65

2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69

Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina p. 82

3.1 – Educação na Argentina: um panorama p. 84

3.2 – 1940 e 50: Quino vai à escola p. 89

3.3 – Os anos 1960 e 70: Mafalda vai à escola p. 96

3.3.1 – Representação, memória e Mafalda p. 99

3.3.2 - A escola nas tiras de Mafalda p. 101

Capítulo 4: 1960 – Mafalda e escola em transformação p. 112

4.1 – As revistas pedagógicas: propostas e discursos educacionais p. 115

4.2 – As tiras: a educação pela Mafalda p. 120

Considerações finais p. 141

Referências Bibliográficas p. 144

Page 13: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

13

Introdução

A pluralidade de temas e abordagens em relação à História da Educação permite

que nos embasemos no aporte teórico-metodológico da História Cultural para compreender os

diversos aspectos das práticas educativas, bem como as dimensões entre educação e sociedade

antes pouco exploradas. Através da ampliação dos objetos de pesquisa, das abordagens, e das

fontes a serem consultadas pelos pesquisadores, oferece também possiblidades de múltiplos

olhares para o objeto. Nesse sentido, esse trabalho parte de uma fonte pouco tradicional – as

histórias em quadrinhos – acreditando na possibilidade de articular as questões políticas,

sociais e econômicas às produções culturais.

O riso é fundamental e, talvez seja pelo lado humorístico que a maioria dos

quadrinhos se sobressai. Nas últimas décadas o humor passou a ser considerado pelos

historiadores, como uma via para compreender as sociedades, uma vez que apresenta motivos

e efeitos sociais e políticos, sendo usado para mobilizar simpatias e apoios, construir

identidades e intervir em lutas e conflitos (COSSE, 2014, p.24). Dessa maneira, as HQs,

responsáveis por inúmeras reflexões e gargalhadas, são também uma importante forma de

manifestação cultural, cuja função fundamental é comunicar ideias e histórias. Por essa,

dentre outras razões, as histórias em quadrinhos devem ser interpretadas como importantes

fontes produtoras de conceitos e, ao mesmo tempo, representações de determinada época e

contexto.

As histórias em quadrinhos – compostas por imagens e, na maioria das vezes,

textos associados a elas – pressupõem práticas de produção, circulação e apropriação por

parte de quem as lê, discute e usa. Nos anos 1960, surge na Argentina uma nova geração de

desenhistas, que reformularam os espaços destinados ao humor e criaram revistas e jornais

destinados a isso, exemplo disso é a revista Tía Vicenta, que através do humor, de tiras e

caricaturas, questionou a sociedade argentina, denunciou os problemas nacionais e criticou os

governos da época. Quino foi parte dessa renovação: criou Mafalda, uma personagem capaz

de impactar adultos, jovens e crianças, e de mobilizar diversos setores, sendo utilizada nas

mais diversas lutas sociais.

Nesse cenário, parte-se de algumas potencialidades de Mafalda como

transmissora de ideias e representante de um determinado contexto sócio-histórico argentino,

acreditando que a riqueza temática apresentada pela personagem torna esse quadrinho um

objeto de análise expressivo, de forte cunho de crítica político e social. Após o nascimento da

pequena menina contestadora em 1963, seu humor e crítica transcenderam as fronteiras

Page 14: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

14

geográficas, consolidando seu alcance universal e o sucesso de suas tiras. Como aponta

Umberto Eco (2003), o universo de Mafalda não é apenas o da América Latina, mas de todo o

planeta (p. XVI). Além dele, Pablo Pineau (2005) a denomina como um dos ícones culturais

argentinos dos anos 1960 e a adjetiva como uma genial historieta, reflexo das classes médias

em expansão e com um excelente frescor de trabalho educativo.

Neste trabalho de pesquisa, esta obra se tornou uma fonte documental com a qual

buscamos analisar e construir representações sobre a educação, em especial, a educação

argentina, também considerando que a universalidade da obra é indicativa de uma

potencialidade analítica sobre o sistema educacional. Ainda, parte-se da ideia de que por ser

icônica, amplamente lida nacional e internacionalmente, na medida em que representa

aspectos marcantes da cultura argentina, Mafalda passa a integrar e ser também uma

característica desta cultura. Tendo essa premissa como norteadora, nos propusemos a refletir

historicamente questões sobre a forma e a cultura escolar, analisando alguns dos elementos

estéticos presentes nos quadrinhos como significativos e expressivos do sistema educacional

argentino das décadas de 1960 e 1970; buscando compreender as representações e produções

acerca da educação argentina na obra.

O desenvolvimento dessas e outras indagações estão presentes nos capítulos desse

trabalho, sendo que o primeiro é voltado para a compreensão do quadrinho em si, além da

apresentação de um breve discorrido sobre a história das historietas (histórias em quadrinho

argentinas). A partir da análise de seus elementos, capacidades de reprodução e produção de

bens culturais, bem como sua atuação social, se compreende, pelos referencias da Cultura

Visual, que as histórias em quadrinho são uma forma de linguagem, e como tal, possuem suas

regras, características, tendo como função a garantia da comunicação entre os autores e os

leitores. Dessa maneira a partir de autores como Fernando Hernandez (2000; 2001), Karry

Freddman (2002), Ulpiano Meneses (2003), Maria Emília Sardelich (2006), Will Eisner

(2010), Paulo Ramos (2007), Giovana Scareli (2002), e Nobu Chinen (2011), se assinala a

importância do quadrinho como veículo de comunicação, e a necessidade de aprendermos a

ler os dados visuais, uma vez que a linguagem visual é também considerada uma

manifestação cultural de determinada sociedade. Assim sendo, através do estudo da estética e

das formas, a imagem passa a ser compreendida como uma experiência de produção e

recepção, que transforma as informações geradas e as recebidas, alterando também, a própria

percepção e modos de se visualizar.

Page 15: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

15

O segundo capítulo se destina à obra e ao seu autor, apontando as trajetórias e

influências de ambos nacional e internacionalmente. Quino começa a publicar suas páginas de

humor gráfico aos 22 anos e, desde então, suas produções circulam por todo o planeta.

Compreendido aqui como um intelectual e ator social, ao passo em que é reconhecido

mundialmente como personalidade crítica e produtor de obras que questionam e revelam

vários aspectos da sociedade argentina e da humanidade como um todo, o quadrinista se torna

um intérprete para a compreensão e leitura do processo histórico argentino. Dessa forma,

analisamos as publicações das revistas e jornais em que trabalhou, procurando também

comparar, dentro de um mesmo período, os desenhos de Quino com os de outros desenhistas,

na medida em que se aproximam e se distanciam quanto aos temas, traços e tipos de humor.

Quino já era um humorista reconhecido pelos portenhos, mas a partir de Mafalda

atingiu o auge de seu sucesso. Seus leitores passaram a recortar as tiras do jornal e colar em

seus cadernos, paredes e lojas. Em 1968, era lida por mais de dois milhões de pessoas. A

partir de 1969, sua obra transcendeu as fronteiras, foi traduzida e publicada para muitos

países, como Itália, Espanha, Alemanha, França, Finlândia e Portugal. Além disso, atualmente

é traduzida para mais de 20 idiomas, alcançando países como Coréia e Indonésia. Dessa

maneira, o capítulo ainda se dedica à sua principal criação. Mafalda, produzida entre 1964 e

1973, apresenta, através do humor e da ironia, um conjunto de temas polêmicos como

autoritarismo, educação, cultura, censura, política internacional, moralismo, questões de

gênero e geracionais. Dessa forma, a partir de uma leitura mais aprofundada das tirinhas, o

trabalho se propôs a analisar como a história em quadrinhos Mafalda representa diversas

temáticas da sociedade argentina e dialoga com a mesma no período. A trajetória e evolução

da tira, dos personagens e componentes gráficos também foram preocupações desse capítulo.

Devido ao sucesso da obra, Mafalda é tema de muitas reportagens, artigos e

trabalhos acadêmicos. A maioria das pesquisas se dedicou às questões políticas e econômicas

abordadas pela tira – tais como as ditaturas latino-americanas, a Guerra no Vietnã, a Guerra

Fria, entre outros. Sobre essas questões destacamos os trabalhos de Graciene de Ávila (2009);

Ana Maria Peppino Barale (2009); Karina Rossi e Ananda Gomens Heen (2015). O texto de

Umberto Eco (2003) e o trabalho de Isabela Cosse (2014) são extremamente relevantes, uma

vez que apontam para a importância da personagem, sua trajetória e impactos na sociedade

argentina, em especial a classe média daquele país. Autores como Waldomiro Vergueiro

(2006; 2009) e Paulo Ramos (2010) se utilizam dos quadrinhos de Mafalda para discutir o uso

de HQs na escola, principalmente no ensino de linguagens; e outros trabalhos como o de

Page 16: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

16

Márcia Sipavicius Seide (2006) e Carlos Eduardo Rebuá Oliveira (2011), abordam seu uso em

sala de aula nas práticas de ensino de disciplinas como Língua Portuguesa e História,

respectivamente. Ademais, outros trabalhos, como o de Cristiane Magalhães Bissaco (2014),

analisam a obra a partir das questões linguísticas da tira. Quando nos voltamos à relação entre

as tiras de Mafalda e a educação argentina, poucos são os trabalhos que procuraram investigar

as formas de representação e interlocução entre a obra e o sistema educacional daquele país,

destacando-se, então, os trabalhos de Pablo Pineau (2005) e Maria Laura Suarez (2011).

O conceito de representação refere-se ao conjunto de práticas, imagens e

símbolos criados pelos sujeitos para expressar seus valores, modo de agir e interpretar a

sociedade em que vivem. Como afirma Chartier (1991), representação é uma presença que

marca a ausência daquilo que é representado, sendo elaborada por indivíduos que descrevem a

sociedade como pensam que ela é, ou como gostariam que ela fosse (Idem, 2002, p.19).

Assim sendo, a partir das elaborações sobre representação e apropriação promovidas também

por Robert Darnton (1986) e Peter Burke (2008), pretendeu-se desenvolver no terceiro

capítulo uma discussão sobre a educação na Argentina, as noções de representação e

memória, visando demonstrar como o formato escolar era visto, lembrado e representado por

Quino, e como era lido e interpretado pelos argentinos, que se identificavam com os

momentos escolares de Mafalda. Esta é compreendida, então, como uma representação,

produzida e materializada em práticas e objetos que a converteram em um fenômeno social e

cultural, e acompanhada de humor e ironia, permitiram retratar visões da sociedade argentina,

e ao mesmo tempo, operar sobre ela.

Adriana Puiggrós (1997), Adrián Ascolani (1999) e Héctor Rubén Cucuzza

(2004), nos permitiram melhor visualizar o percurso histórico da educação na argentina,

discorrendo sobre as transformações, objetivos e propostas dos diversos setores sociais e

políticos em torno da escola e das políticas educacionais. Ademais, outros autores como

Sandra Carli (2002), Nicolás Arata (2013), Pablo Pineau (2013) foram fundamentais para a

discussão promovida nesse capítulo, uma vez que nos permitiram questionar e ampliar o

debate sobre a história da educação argentina, partindo de uma perspectiva mais cultural e

subjetiva das relações estabelecidas entre governo, escola e sociedade. Tendo isso em vista, a

hipótese desse trabalho parte da premissa de que Quino, ao abordar temáticas relativas ao

plano educacional – ideias e discussões pedagógicas então em andamento –, dialoga

diretamente com os acontecimentos das décadas de 1960 e 70, apresentando suas críticas e

concordâncias. Todavia, quando o autor representa Mafalda e os outros personagens dentro da

Page 17: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

17

sala de aula, acaba por se remeter ao modelo escolar tradicional, tanto por partir de memórias

individuais e coletivas quanto por não conhecer, de fato, o que realmente se passava dentro de

uma sala de aula no período em que produzia a tira.

Desse modo, o quarto capítulo aborda as práticas e políticas educacionais

contemporâneas à produção de Mafalda, além de partir do referencial da Cultura Visual para

analisar os projetos e ideias de educação propostos pela tira e seu autor. Enquanto o terceiro

capítulo se dedica às representações marcadas pelo tradicionalismo, o último, a despeito do

formato escolar representado, se destinará às elaborações de educação presentes nos

elementos visuais e discursivos da obra, perceptíveis pelas expressões, posturas, críticas e

ironias dos personagens. Nos estudos mais recentes propostos pela Cultura Visual, discute-se

o potencial cognitivo das imagens, e o que se defende é o abandono da antiga postura de

utilizá-las apenas como fontes, para um tratamento mais abrangente da visualidade. A

imagem passa então a ser compreendida como uma representação social, forma de produção

e/ou reprodução cultural capaz de criar símbolos de uma realidade comum.

Além disso, acreditando-se na necessidade de dialogar a obra com outras fontes

primárias que pudessem colaborar com a análise proposta, foram lidas revistas educacionais

que apresentavam as correntes, discussões e propostas pedagógicas do período (década de

1960). Conforme assinala Finocchio (2009), a partir da segunda metade do século XIX, o

Estado, visava à consolidação da escola na sociedade argentina e se utilizava, dentre outros

recursos, dos meios de comunicação para dialogar com os pais, alunos e docentes; e, nesse

cenário, a imprensa voltada à educação serviu como instrumento para difundir as ações e

objetivos do governo. Dessa maneira, nesse capítulo se analisou a publicação mensal El

Monitor de la Educación Común, que além de ser o periódico oficial do Consejo Nacional de

Educación, trazia muitos textos sobre o docente, o aluno, as escolas urbanas e rurais, os

projetos governamentais, e as divergentes correntes pedagógicas, permitindo que se

verificasse em que medida os discursos oficiais e os debates sobre educação estavam

presentes e atuais nas tiras de Quino, em quais pontos existiam convergências e em quais os

temas se contradiziam. Dessa maneira, estabelecendo um diálogo entre o discurso oficial do

Estado e as tiras, procurou-se analisar as propostas, críticas e visões de educação de Mafalda.

Tendo isso em vista, a partir desses quatro momentos de análise, o trabalho se

propõe a apresentar Mafalda e Quino como importantes agentes socais, capazes de representar

e atuar na sociedade argentina; a entender os processos educativos e o modo pelo qual o

formato escolar tradicional se consolidou no solo argentino, sendo representado e reconhecido

Page 18: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

18

por Quino e seus leitores; e por fim, se propõe a analisar as histórias em quadrinhos,

buscando a compreensão acerca do que a imagem nos informa e como ela o faz, fugindo de

qualquer tentativa de utilizá-la apenas para ilustrar algo já concebido. Nesse sentido, a

pesquisa proposta investiga o impacto visual e constrói relações entre Mafalda e o cenário

educacional argentino da época em que a personagem foi produzida. Além das representações

do ambiente escolar, o diálogo com essa fonte documental se faz articulando estudos

históricos e estudos sobre a cultura visual, reconhecendo as especificidades da fonte em suas

características estéticas e como produção cultural e artística, para propor leituras e

interpretações.

Por fim, cabe ressaltar que a pesquisa sobre Mafalda e histórias em quadrinhos se

iniciou em 2012. Para sua realização, após diferentes leituras e análises das fontes primárias e

secundárias, foram essenciais algumas viagens à Argentina afim de melhor conhecer seu local

de nascimento e adentrar na hemeroteca da Biblioteca Nacional – onde se encontravam as

páginas de jornais e revistas repletas de desenhos de Quino e tiras de Mafalda. O livro Toda

Mafalda, facilmente encontrado no Brasil, não possui tiras datadas e organizadas

cronologicamente; e assim, foi imprescindível que a pesquisa se realizasse também naquele

arquivo, para a datação do material e o estabelecimento de relações entre a produção de Quino

e outras histórias em quadrinhos do momento.

Page 19: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

19

Capítulo1: Cultura Visual e Histórias em Quadrinhos

Page 20: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

20

A sociedade contemporânea está imersa numa profusão de transformações

proporcionadas, principalmente, pelos desenvolvimentos técnicos, de informação e

comunicação, que, entre outras coisas, é responsável pelo uso incessante de mídias,

construções de imagens de pessoas e realidades. Essas novas tecnologias redefiniram noções

fundamentais como tempo e espaço, obrigando-nos a transformar nossas memórias, formas de

produzir cultura, e modo de pensarmos e enxergarmos o mundo. Nesse contexto, diferentes

teóricos, passaram a demonstrar a necessidade de uma alfabetização visual, pautada na leitura

de imagens e na Cultura Visual.

Num primeiro momento, visou-se aperfeiçoar a leitura de imagens, a partir da

proposta de ensinar a ver e ler os dados visuais, já que a linguagem visual é considerada mais

que uma forma de facilitar a comunicação, sendo também uma manifestação cultural de

determinada sociedade (SARDELICH, 2006, p. 455). A imagem passou a ser compreendida

como uma experiência de produção e recepção, que transforma as informações geradas e as

recebidas, alterando a própria percepção e modos de visualização. Ao passo que a proposta de

fortalecer a leitura de imagens se apresentava como caminho educativo, pesquisadores de

diversas áreas também começaram a indagar sobre a noção de visualidade. De acordo com

Meneses (2003, p. 15), desde os anos 1960 a antropologia reconhece o potencial informativo

das fontes visuais; e a partir de então, surgiram novas propostas que compreendem a imagem

como objeto e produto cultural, que participam das relações e tem capacidade de agência na

sociedade.

As aproximações com o campo visual se restringiam à imagem, transformada em

informação ou em demonstração visual de algo que outro documento já havia enunciado.

Entretanto, nos estudos mais recentes propostos pela Cultura Visual, discute-se o potencial

cognitivo das imagens, e o que se defende é o abandono da antiga postura de utilizá-las

apenas como fontes, para um tratamento mais abrangente da visualidade, compreendida como

“(...) dimensão importante da vida social e dos processos sociais” (Ibidem, p. 2). Dessa forma,

o que se sugere é uma inversão no trato das imagens, sendo que ao invés de iluminar as

imagens com informações externas a elas, visa-se produzir conhecimento novo a partir dessas

imagens. Conforme discorre Hernandez (2001, p.5) a Cultura Visual é um campo que emerge

de diversas áreas e se constitui das inúmeras formas culturais vinculadas ao olhar, às práticas

de visualidade, e ao estudo de um dos artefatos visuais para além das Artes Plásticas.

Destarte, para o efetivo estudo das manifestações do visual, é necessário que articulemos os

métodos e conhecimentos da História da Arte, da estética, e semiótica, com campos, como

Page 21: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

21

teoria crítica, estudos culturais, psicanálise, e linguística – a fim de explorar a “dimensão

social do olhar” (Idem, 2000, p. 24).

Assim, a imagem passa a ser vista como uma representação social, como uma

forma de produção e/ou reprodução cultural capaz de criar símbolos de uma realidade comum

(GRALIK, 2007). Não existem leitores nem meros receptores, mas sim construtores e

intérpretes, visto que a aproximação com a obra não é passiva, ao contrário, é interativa e

condizente com as experiências que cada sujeito vive no seu cotidiano. A Cultura Visual

seria, então, a interação entre o espectador e o que ele olha e observa, já que entende o visual

como o local em que se criam e discutem os significados. Desse modo, essa abordagem

abarca desde a pintura a óleo, a televisão, os jornais, até a internet.

Em relação às histórias em quadrinho, Freedman (2002), torna-se uma referência

importante, por enfatizar que a cultura visual dá forma ao mundo em que vivemos ao passo

em que se torna também a nossa forma de olhar para ele. Nessa perspectiva, para a autora,

trabalhar com HQs não significa tratar somente das imagens e dos personagens, mas sim de

visualizar, “a partir da narrativa dessas produções uma outra sociedade que também enfrenta

conflitos, e propor soluções para eles”. (FREEDMAN apud SARDELICH , 2006, p. 462).

A literatura sobre o tema discorre sobre a dificuldade de se estabelecer um

consenso para definir o que seriam as histórias em quadrinhos, visto que apesar de serem

muitos os elementos que as constituem – tais como quadro, balão, recordatório, onomatopeia,

metáforas visuais, e figuras cinéticas -, “nenhum de seus elementos é obrigatório, ou seja,

podem existir HQs sem balões, sem textos e mesmo sem quadrinhos” (CHINEN, 2011, p.7).

Dessa maneira, Ao tomarmos as histórias em quadrinho como fonte de pesquisa, torna-se

necessário compreender o que são os quadrinhos, como eles são constituídos, como podem

ser utilizados nesses estudos, e principalmente, qual a importância deles para a sociedade em

que se formulam.

1.1 – Da marginalização à fonte de pesquisa

O processo de formação do campo dos quadrinhos teve início na segunda metade

o século XIX, quando os avanços nos sistemas de impressão possibilitaram a redução dos

custos e, portanto, o aumento do número de leitores. Além disso, as ilustrações com textos

curtos facilitavam a compreensão e permitiam, desse modo, que grande parte da população,

que não possuía alta instrução e conhecimento da linguagem culta, tivesse acesso às histórias

Page 22: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

22

em quadrinhos. As primeiras histórias ilustradas datam de 1860, e eram publicadas em

painéis, ocupando uma ou meia página de um jornal (CHINEN, 2011). Em 1903, no entanto,

foi adotada a forma de tira, e em 1907 surge A. Mutt, de Bud Fisher, a primeira tira publicada

diariamente, que estabeleceu o formato horizontal, preto e branco e que, além da piada,

apresentava uma continuidade1. A partir desse momento, os quadrinhos tornam-se mais

frequentes e passam a ser uma linguagem mundialmente conhecida, apesar de ainda serem

marginalizados, publicados nas áreas menos nobres dos jornais.

Figura 1: Tira A. Mutt, de Bud Fisher, publicada no jornal Chronicle. 2

Fonte: Disponível em: < http://commons.wikimedia.org >. Data de acesso: 24/ago/2017.

Como assinala Junior (2003), na década de 1950 os debates acerca dos malefícios

das histórias em quadrinhos se intensificaram, e propostas de censura vieram à tona em todo o

mundo. Quadrinhos foram queimados em praças públicas, e ainda, se produziram manifestos

de repúdio a fim de denunciarem o “(...) posicionamento de empresas jornalísticas e editoras

inescrupulosas que amealham lucros à custa das publicações que empeçonham a alma de

nossa infância e de nossa adolescência” (p. 398). Um dos marcos de repúdio aos quadrinhos

no Brasil se deu em 1951, a partir da matéria “O que lêem as crianças no Brasil?” publicada

1 Harry Conway "Bud" Fisher (1885 – 1954) nasceu em Chicago, Illinois. Fisher publicou a tira A. Mutt por um

ano. As piadas são variações das histórias de vagabundos dos cartuns da época. No entanto, o autor inova

aproximando as tiras da realidade: os cavalos em que o personagem Mutt montava eram cavalos reais, e tanto os

leitores quanto o próprio Fisher tinham que esperar o dia seguinte para saber o resultado das apostas do

personagem. 2 Nesse trabalho decidiu-se pela não tradução dos diálogos presentes das imagens, e das citações, buscando

assegurar significados e sentidos das obras. Desta forma, optamos por contextualizar elementos ou passagens

escritas quando se fizer necessário para o pleno entendimento dos quadrinhos e do texto.

Page 23: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

23

pelo jornal Tribuna da Imprensa, cujo conteúdo criticava as histórias em quadrinhos

protagonizadas por monstros sanguinários, entre outros do tipo.

O preconceito em relação aos quadrinhos atingiu seu auge quando o livro The

Seduction of the Innocent, escrito pelo psiquiatra alemão Dr. Frederic Wertham, foi publicado

e traduzido para muitas línguas, inclusive o português. Segundo o autor, os quadrinhos seriam

os principais responsáveis pelas crianças abandonarem os estudos, agirem de forma agressiva

e se tornarem homossexuais (RODRIGUES, 2011, p.20). Além disso, Wertham, dentro do

contexto da Guerra Fria, acusava as histórias em quadrinhos de promoverem o comunismo, o

que consequentemente, energizou a investigação da possibilidade de incentivo ao comunismo

em quase todas as HQs publicadas na sociedade norte-americana. Contudo, as pesquisas de

Wertham foram posteriormente desacreditadas, uma vez comprovado que o psiquiatra forjara

os seus dados a fim de incriminar os quadrinhos pelos considerados danos sociais3.

Mesmo após este episódio e, até trabalhos mais recentes, costumava-se dizer que

os quadrinhos eram leitura de gente preguiçosa, uma vez que diferentemente da literatura, não

exigiam tanto da imaginação e criatividade do leitor na hora de criar os rostos dos

personagens ou alguma paisagem, o que nos permite perceber que no âmbito dos estudos

sobre a função social da leitura, o preconceito quanto aos quadrinhos persistiu. Entretanto, o

estudo mais detalhado acerca dos recursos de construção narrativa do quadrinho nos permite

compreender a complexidade desse processo criativo e diminui o espaço para tal abordagem

sendo que

(...) esse tipo de crítica era equivocada, pois uma das riquezas dos gibis é

justamente permitir que, entre um quadrinho e outro, a imaginação voe. Se

numa vinheta vemos o mocinho sair a galope e, na sequencia, um outro

quadrinho o mostra prestes a desmontar do cavalo, todo o percurso, a

paisagem ensolarada, o ruído dos cascos do animal batendo no solo é criado

pela mente do leitor. (CHINEN, 2011, p.40-1)

Os anos 1960 marcaram uma ruptura no processo de produção de quadrinhos.

As transformações que ocorriam na Europa desencadearam a mudança do público alvo das

HQs europeias e latinas. Na Itália, por exemplo, se inicia um processo de classificação do

gênero, até então pouco avaliado. Umberto Eco (2001) estuda a cultura de massa,

desmistificando parte dos preconceitos existentes sobre o uso da televisão, música pop e

quadrinhos como fontes de pesquisa. A partir da apresentação do debate entre os apocalípticos

3 Sobre a relação entre as HQs, o comunismo e o anticomunismo ver WRIGHT, Bradford W. Reds, Romance

and Renegades – Comic Books and the Culture of the Cold War, 1947-1954. In: Comic book nation: the

transformation of youth culture in America. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2001.

Page 24: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

24

– grupo de teóricos que antagonizam a cultura de massa, vista como uma “anticultura” – e os

integrados – que encaram positivamente as produções da massa como um alargamento

cultural, que outrora era restrito –, o autor analisa as histórias em quadrinhos de Charlie

Brown, impulsionando a consolidação do gênero como objeto de estudo4. Segundo o autor,

desde então os quadrinhos ganham espaço na cultura da sociedade, realizando-se na Itália, em

1966, o Congresso Internacional de Lucca, no qual foi oferecido, pela primeira vez, o prêmio

Yellow Kid, reconhecido como mais importante relativo às histórias em quadrinhos.

As histórias em quadrinhos sejam de cunho fantástico ou não, possuem inúmeras

referências às conjunturas politicas e sociais do seu tempo, possibilitando aos pesquisadores,

uma maior percepção de uma sociedade em um determinado tempo e espaço. Conforme

Vergueiro (2006), uma das formas de trabalhar com as tiras seria, por exemplo, por meio de

estudos quanto à relação da produção em um determinado período histórico, partindo de um

estudo do local e tempo em que o quadrinho se insere, acreditando que através da leitura

aprofundada das tiras, é possível realizar uma “análise do contexto sociocultural de uma

nação pela perspectiva dos quadrinhos” (p. 8). Dessa forma, mesmo se os quadrinhos fossem

apenas entretenimento, ainda seriam extremamente úteis aos pesquisadores, visto que eles

apresentam a fusão das aspirações do autor, das inclinações e direção dos produtores e

editores, bem como os meios de produção e a produção em si. De acordo com Cirne (1982)

“(...) não existem quadrinhos inocentes, assim como não existem leitura inocente e livros

inocentes” (p.11).

1.2 – As histórias em quadrinho

A história em quadrinho é uma forma artística e literária que lida com a

disposição de imagens e palavras, narra uma história ou dramatiza uma ideia (EISNER, 2010,

p. IX). Compreendidos como construções comunicativas, nas quais simultaneamente

encontramos uma criação conceitual ou verbal e uma criação gráfica ou desenhada, os

quadrinhos seriam obras desenhadas e impressas para sua difusão em múltiplas cópias, que

4 Charlie Brown, Peanuts (no Brasil também conhecido como Minduim) foi uma tira de jornal escrita e

desenhada pelo cartunista estadunidense Charles Schulz, publicada em outubro de 1950 em um jornal local.

Rapidamente a tira se popularizou, aparecendo em mais de 2600 jornais, com um número de leitores estimado

em 355 milhões em 75 países, e foi traduzido para 40 línguas. Diante disso, Umberto Eco (2001), em seu

propósito de estudar a cultura de massa, encara a turma de crianças de Peanuts como um microcosmo, através do

qual se torna possível compreender o mundo. Charlie Brown, Snoopy, entre outros seriam então, personagens

inocentes que com seus discursos livres de impurezas, retratam e questionam os costumes e obscuridades do

mundo dos adultos.

Page 25: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

25

contém elementos verbais e icônicos articulados entre si, com o propósito de emitir um relato

humorístico ou não (BARREIRO, 2011).

Dessa maneira, as tiras podem ser analisadas como uma arte de comunicação,

uma vez que seus elementos e a disposição dos mesmos a transformam em uma forma de

linguagem própria, que – diferente de outros meios, como a literatura – se valem da

experiência visual comum ao criador e ao público, porquanto “empregam uma série de

imagens repetitivas e símbolos reconhecíveis”, criando a “gramática da arte sequencial”

(EISNER, 2010, p.2). Ou seja, para que a mensagem da tira seja entendida, o artista deve

compreender a experiência de vida do leitor e proporcionar a interação e evocação das

imagens armazenadas na mente de ambas as partes; permitindo ao leitor reconhecer e ser

impactado emocionalmente pela produção.

Semelhante à crítica apresentada por Cirne (2011), Eisner (2010), também pontua

o esforço intelectual que a leitura do quadrinho exige, já que a sobreposição de imagens e

palavras força o leitor a exercer suas habilidades interpretativas visuais – como, por exemplo,

a perspectiva, a simetria, os traços – e as verbais – como a gramática, enredo, e sintaxe.

Dentro dessa perspectiva, Scareli (2002) ressalta as duas formas de linguagem (imagem e

escrita) como ponto de análise dos quadrinhos, discorrendo que o desenho é o marco das

histórias em quadrinho e sua elaboração ultrapassa o enredo da história, revelando-nos,

também, a intencionalidade do desenhista, que através de sua criação consegue transmitir uma

mensagem icônica. Concomitante, a linguagem escrita, presente na maior parte dos

quadrinhos, complementa a imagem e direciona o leitor segundo o interesse do autor.

O processo de construção das histórias em quadrinhos é complexo e quando é

bem realizado, explora não apenas a sequência entre um quadro e outro, mas a de ações

dentro de um mesmo quadrinho. Essa seria uma das grandes diferenças entre a fotografia e a

tira, visto que “(...) enquanto na primeira a cena é congelada no instante em que acontece, os

quadrinhos sintetizam vários instantes em um só quadro.” (CHINEN, 2011, p. 34). O que

torna isso possível é o estabelecimento de uma hierarquia, uma ordem segundo a qual nossos

olhos percorrem os quadros em busca das informações. Além disso, como pontua Eco (2001),

as histórias em quadrinhos também podem ser comparadas à Sétima Arte, sendo que o autor

do quadrinho, assim como um diretor de cinema, se utiliza de recursos como enquadramento e

ângulo para atingir seus objetivos de narração, podendo assim escolher um distanciamento

conforme queria mostrar uma paisagem, os personagens ou apenas um detalhe ou algum

objeto.

Page 26: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

26

Os elementos que compõem os quadrinhos são diversificados e permitem a

manipulação e criação de tiras conforme as sensações e ideias que pretendem incidir no leitor.

Dessa maneira, o próprio texto se torna uma imagem, sendo as letras, através da estilização,

utilizadas para compor as emoções e expressões corporais dos personagens. Ainda, elas

podem corroborar para a sensação de frio, chuva, medo, sendo usadas, também, para

acrescentar sons, como observado pelas onomatopeias.

O enquadramento da fala, por sua vez, é um recurso empregado para tornar visível

o som. Os balões, sua disposição e contornos permitem que o leitor perceba se na cena

acontece um diálogo comum, um pensamento ou grito. Além disso, por precisarem ser lidos

em uma sequência determinada, colaboram para a marcação do tempo da tira. Nesse sentido,

além do autor, o leitor é fundamental na elaboração do quadrinho, uma vez que ele não é

passivo à obra produzida. As diversas produções culturais, tais como cinema, textos e

pinturas, pressupõem formas particulares de leituras e interpretações. No caso da história em

quadrinho, semelhante ao que acontece no cinema, o leitor (ou espectador) constrói narrativas

e conclusões a partir de uma sequência de imagens; entretanto, o leitor do quadrinho tem um

papel bem mais ativo, visto que ele possui certo controle sobre o ritmo e entendimento da

história, é ele que determina o tempo e a quantidade de vezes que olhará para determinada

imagem. Destarte, cabe ao leitor imaginar o que ocorre entre um quadro e outro, completar as

imagens e os sentidos; e assim, acaba se tornando “(...) cúmplice do desenhista, como é o

leitor quem conclui, de certa forma, também é ele quem age”. (SCARELI, 2002, p. 54).

Outro elemento fundamental no processo de elaboração de uma história em

quadrinho é o tempo. O tempo dos quadrinhos é marcado pelo tamanho dos quadros e das

sarjetas, visto que o perímetro da cena estabelece a posição do leitor e indica a duração do

evento. O número dos quadros também contribui para marcar o ritmo da história, aumentando

e segmentado a ação conforme a necessidade de compressão do conteúdo. Dessa maneira,

(...) a criação do quadrinho começa com a seleção dos elementos necessários

à narração, a escolha da perspectiva a partir da qual se permitirá que o leitor

os veja e a definição da porção de cada símbolo ou elemento a ser incluído.

Assim, a execução de cada quadrinho implica o desenho, a composição,

além de seu alcance narrativo. (EISNER, 2010, p. 42).

A narrativa, nesse cenário, também se torna um conceito fundamental para a

análise dos quadrinhos, visto que possui a capacidade de articular as experiências vividas ao

longo do tempo; tornando-as compreensíveis para homem, justamente porque pensa os

acontecimentos de modo narrativo e de fácil acesso. As diversas formas de narrativas

Page 27: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

27

permitem representações e percepções de determinado tempo histórico, já que a narrativa

histórica é marcada pelo modo como as sociedades apreendem os momentos ou

acontecimentos. Assim, como pontua Oliveira (2006) toda produção historiográfica, seja ela

tradicional ou não, é regulada pelos princípios narrativos, já que “(...) os elementos com os

quais o historiador trabalha – mentalidades, sociedade, memória coletiva ou eventos pontuais

– são como personagens de um enredo” (p. 2). Dessa maneira, a história, mesmo quando se

afasta do modelo escrito, é uma narrativa na medida em que permite a uma sociedade se situar

e se expressar no tempo e no espaço.

Chartier (1994) ressalta que a narrativa histórica não visa necessariamente ao

relato completo e ordenado de fatos. Em muitos casos o próprio acontecimento histórico é

produto do processo de construção e representação de memórias e experiências da população.

Nesse contexto, as histórias em quadrinhos são narrativas, que compreendidas em sua

historicidade, e contando com tais aspectos iconográficos, já abordados, nos permitem

conhecer tais percepções e representações de determinadas sociedades. E assim, como

proposto pela Cultura Visual, o ideal seria buscar a compreensão acerca do que a imagem nos

informa e como ela o faz, fugindo de qualquer tentativa de utilizá-la apenas para ilustrar algo

já concebido.

Conforme Cagnin (2014) os quadrinhos são histórias em imagens, que podem ser

analisados por diferentes perspectivas, tais como a literária, histórica, psicológica,

sociológica, didática, e publicitária. A despeito de sua variedade de leitura e circulação, as

imagens desenhadas nos quadrinhos são um signo analógico, uma vez que possuem “íntima

relação de semelhança com o objeto representado, dando a impressão de uma quase

realidade” (p. 30). O quadrinho, politizado ou não, ficcional ou não, pode, então, servir como

objeto para o pesquisador, visto que, até mesmo as narrativas compostas por personagens

fantásticos e poderosos, expressam uma realidade alternativa na qual são questionados e

problematizados medos, anseios e valores da sociedade em que são produzidos. Segundo

Meneses (2003) ao se aproximar do campo visual, o pesquisador deve indagar sobre

percepção do potencial cognitivo da imagem, compreender como ela pode ser melhor

explorada, implicando também na percepção de quem a produziu e editou, e ainda, das

apropriações e receptividade do público leitor.

Page 28: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

28

1.3 - Historietas: As Histórias em quadrinhos na Argentina

Ao passo que as histórias em quadrinhos se aperfeiçoavam nos Estados Unidos,

no início do século XX, na Argentina se desenvolvia um espaço propício para receber todo o

tipo de publicação gráfica. Sendo assim, o leitor argentino esbarrava em diversas revistas

como Jungle Jim (Jim de la Selva, de Alex Raymond), em que os negros, ignorantes e inábeis,

são liderados por Jim, capaz de protegê-los; Barney Google (na versão local, O Vinagreta),

com enredo distante dos argentinos, devido as suas tramas localistas; ou Little Orphan Annie

(Annie la Huerfanita), na qual os ricos são generosos e o pobres agradecidos. Nesse

momento, como assinalam Bróccolli e Trillo (1971), é possível verificar uma série de

quadrinhos que, além de não se aproximarem da realidade argentina, evidenciavam a

supremacia do homem ocidental, branco e norte-americano.

As primeiras histórias em quadrinho argentinas (historietas) apareceram no início

do século XX, em Caras y Caretas. Surgiram em forma de quadros unitários, sem

continuidade de personagens. Se destacavam, nesse momento, os caricaturistas que produziam

algumas sequências políticas. Entretanto, em 1912 surge a primeira historieta propriamente

dita: Las Aventuras de Viruta y Chicharrón, de Manuel Redondo. Um ano depois, o mesmo

autor desenvolve para Caras y Caretas, uma segunda historieta, Sarrasqueta, que também era

composta por seis quadros, mas diferente da primeira, apresentava tiras de crítica social.

Somente em 1924 é que apareceu uma historieta mais completa: La família de Don Sofanor,

de Arístides Rechain, publicada pela revista La Novela Semanal. Seu autor se destaca por

conseguir observar acuradamente a sociedade de Buenos Aires, apresentando todos os tipos

de pessoas, como de ladrões, políticos corruptos e policiais; e assim, produzir humor na

construção da linguagem e modos portenhos.

A excelente receptividade do público argentino para com as histórias em

quadrinhos permitiu que o gênero se consolidasse já na década de 1920, quando surgem as

revistas dedicadas exclusivamente ao humor gráfico e historietas (GOCIOL, 2003, p. 22). A

primeira delas, Páginas de Columba, batizada com o sobrenome do seu criador Rámon

Columba, passou a utilizar as historietas nas propagandas publicitárias, o que conferiu maior

sucesso às tiras e foi, em grande medida, responsável pela difusão dos quadrinhos no

ambiente argentino. Na mesma época, a revista El Titbits, dirigida por Manuel de Puga, passa

a publicar Los sobrinhos del capitán e La mula de Maud, intercalando historietas entre as

Page 29: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

29

notícias diárias. Em 1926, Dante Quintenero5 produz Las andanzas de Manolo Quaranta em

La Novela Semanal, e em 1929 também cria Julián de Montepio, que logo se tornaria Isidoro,

um dos companheiros do índio Patoruzú, personagem de destaque entre os argentinos.

Nesse contexto de expansão, nos últimos anos da década de 1920, aparecem os

primeiros quadrinhos sem intenções humorísticas, relacionados a obras literárias, na maioria

das vezes. Em 1928, Raúl Roux6 publica El Tony, que em pouco tempo passou a vender cerca

de 300 mil exemplares semanais; o que, de certa forma, é indicativo do consumo e inserção

dos quadrinhos no hábito de leitura dos argentinos. As historietas, então, se converteram em

um sistema de promoção das próprias revistas. Algumas, até mesmo, convocavam seus

leitores a participar ativamente das narrativas escolhendo quando os personagens deveriam

morrer, o que deveriam fazer, e “(...) en algún caso, se publicaban tiras con el remate en

blanco para que los concursantes lo completaran y mandaran por correo.” (GOCIOL, 2003,

p.22)

Em 1930, a revista Crítica, que antes publicava os quadrinhos norte-americanos,

decide publicar historietas noticia, desenhadas por Pedro de Rojas, inovando a maneira de

levar ao quadrinho os temas da atualidade, e “de suplir, com dibujos, la falta de fotos sobre

los hechos de último momento” (BRÓCCOLLI; TRILLO, 1971, p. 26). Em 1931 a revista La

Razón publica Patoruzú, que rapidamente se transforma em um sucesso popular.

Concomitantemente, Caras y Caretas inicia a publicação de Las desventuras de Maneco, de

Eduardo Linage, tira semanal popularizadora da frase “Sonaste Maneco”, que se difundiu na

cidade de Buenos Aires, tornando-se um jargão muito utilizado. Dessa maneira, a partir da

década de 1930 “(…) ya se podia decir que la historieta argentina tenía una personalidad

propia y definida. Ya estaban los gauchos perseguidos por la partida, ya estaban los porteños

y los marginados.” (Ibidem, p.24).

Na década de 1940, outras transformações se mostraram fundamentais para o

processo de difusão das historietas argentinas. A Editora Abril se instalou em Buenos Aires

com a missão de intensificar a inserção, no território portenho, dos personagens famosos de

Walt Disney como Mickey e Pato Donald. Entretanto, diante das produções nacionais, decidiu

também criar o primeiro sindicato argentino de historietas, o Surameris, cuja principal missão

5 Dante Quintenero, desenhista muito conceituado no solo argentino, foi colaborador de Páginas de Columba,

revista de cunho político e social antes de iniciar suas publicações para La Novela Semanal. 6 Raúl Roux é considerado o iniciador das “historietas sérias”, trabalhou com histórias literárias, produzindo

quadrinhos como Hansel y Gretel, Robinson Crusoe, La islã del tesoro, Simbad el marino e Buffalo Bill. Roux

também foi precursor da temática gauchesca e das historietas de ficção científica.

Page 30: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

30

era publicar histórias em quadrinhos argentinas – como Misterix e Cinemisterio – e organizar

sua distribuição pelo mundo.

Dessa maneira, com o passar do tempo outras historietas, personagens e autores

foram aparecendo no solo argentino e mundial. São inúmeros os títulos que passam a ser

publicados, principalmente por Rico Tipo e Patoruzú, responsáveis, na década de 1950, por

mais de metade da circulação total das revistas argentinas. Entretanto, grande parte das

revistas ainda contava com a presença das criações norte-americanas, uma vez que seus

editores estavam convencidos de que o público se interessava mais pelas histórias em

quadrinhos estrangeiras; e assim, apenas algumas editoras apostavam na publicação exclusiva

dos materiais nacionais, como Poncho Negro, Rayo Rojo, Fantasia e Frontera.

É nesse momento, contudo, que um roteirista argentino escreve Bull Rocket para a

revista Campani e revoluciona a maneira de encarar as histórias em quadrinho, diferenciando,

definitivamente, a historieta argentina da do resto do mundo. Seu nome: Héctor Germán

Oesterheld. Fundador das revistas Hora Cero e Frontera, Oesterheld redefiniu a forma de

elaborar os quadrinhos na medida em que humanizava seus personagens, criando narrativas

nas quais não existiam mocinhos completamente bons, nem vilões inteiramente ruins. Criou

histórias renomadas mundialmente como El Eternauta, Ernie Pike e Sargento Kirk. Ademais,

publicada em 1962, sua obra Mort Cinder, passou a ser considerada por muitos a melhor

história em quadrinhos da Argentina. Produção de ficção científica, narra a história de Cinder,

um homem enigmático que volta do túmulo a cada vez que morre: vive desde a Antiguidade,

e participa de famosos episódios, como a construção da Torre de Babel e a Primeira Guerra

Mundial. Dessa forma, conforme ressalta Gociol (2003), o autor se caracterizava por permitir

que seus personagens tivessem alguma chance redentora, através dos ideais de lealdade,

coragem, amor e amizade.

No início da década de 1970, inicia-se com o jornal Clarín um processo de

nacionalização da publicação de historias em quadrinhos nos jornais portenhos. Uma nova

seção destinada às historietas foi criada, e novos autores como Crist, Fontanarrosa, Bróccolli

e Caloi, passaram a publicar tiras e cartuns que, de certa forma, lidavam com as experiências e

problemas nacionais. Como assinala Ramos (2010), essa mudança editorial marcou, em pelo

menos dois aspectos, a produção de historietas, visto que além de ser um sinal concreto da

valorização das histórias em quadrinho na Argentina, possibilitou que os problemas sociais do

país aparecessem nas pautas dessa nova seção. A obra de Broccólli, Pérez-Man, por exemplo,

Page 31: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

31

apresentava ao leitor um super-herói que tinha como desafio resolver os problemas

financeiros e sociais vividos no país.

Clemente, de Caloi foi outra grande obra nacional que, não só retratou, como

influenciou a sociedade argentina. Uma espécie de pássaro listrado que, ao lado do condutor

de bonde Bartolo, viveu muitas aventuras e conquistou grande popularidade. Clemente é um

tipo portenho, “fissurado por azeitonas, fanático por futebol e pelo Boca Juniors” (RAMOS,

2010, p.39), que entrou na vida dos argentinos e é um exemplo claro da importância da

historieta para essa sociedade:

Um dos costumes da torcida nos estádios de futebol é fazer uma chuva de

papel picado durante as partidas. Tradição que os militares quiseram coibir

durante a Copa Mundial de 1978. (...) Os militares promoveram uma

campanha oficial que procurava conscientizar a população a causar uma boa

impressão durante o mundial de futebol.(...) Foi onde Caloi achou uma

brecha para dar uma resposta. Pôs as palavras na boca de Clemente: ‘Como

não vamos atirar papéis se nós, argentinos, atiramos papéis?’. Iniciou, assim,

a guerra de los papelitos. (Ibidem, p. 40)

Destarte, o que acontecia com os personagens saía das páginas do jornal e caía na

boca das pessoas, em maior ou menor grau. Clemente foi selecionado para aparecer no placar

dos estádios de futebol, chegou a protagonizar um programa de TV, e em 2001, extrapolou

mais uma vez as tiras, sendo escolhido como voto de protesto dos argentinos na eleição

daquele ano: as cédulas mostravam o personagem com o indicado para uma das cadeiras do

Senado.

Mafalda, obra mais conhecida e publicada de Quino, é também um dos cartões de

visita da cultura argentina apresentado aos turistas que visitam Buenos Aires. Considerada

ídolo popular, possui sua imagem no interior da Casa Rosada, e foi homenageada com uma

estátua em San Telmo, na esquina da rua Defensa com a rua Chile. Na capital argentina, a

menina graciosa e questionadora é vendida em forma de canecas, bonecas, chaveiros,

camisetas, bolsas, calendários, entre outros.

Nesse cenário, Gociol e Rosemberg (2003) questionam a existência de uma

historieta nacional. Qual a importância dos quadrinhos argentinos? Quais são quadrinhos

argentinos? Sobre essas questões Alberto Breccia afirma que “Si definimos como argentina a

toda historieta realizada en el país llegaremos seguramente a la conclusión de que no sólo

existe una historieta nacional sino que ella es una de las que han dejado su huella con más

fuerza en el mundo” (Ibidem, p. 15). Sendo assim, quando o assunto é histórias em quadrinho,

a Argentina se destaca, não somente pela quantidade e qualidade de produções e autores que

fizeram sucesso, mas também, e principalmente, pela valorização social das produções

Page 32: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

32

nacionais. Tendo em vista a capacidade dos quadrinhos de educar os sentidos e comunicar

ideias, as historietas adquirem importância na medida em que também contribuem para a

formação do próprio leitor argentino.

Figura 2: Homenagem ao personagem de Caloi, Clemente em Buenos Aires

7

Fonte: Foto tirada pela mestranda. Bairro San Telmo.

7 Homenagem ao personagem de Caloi, pertencente ao Paseo por la Historieta, iniciativa do Governo de

Buenos Aires para homenagear “al humor, la creatividad y la autocrítica que distinguen a nuestros artistas en

todo el mundo”. São homenageados dez personagens: Mafalda, Isidoro Cañones, Larguirucho, Matías, El Loco

Chávez, Clemente, Chicas Divito, Don Fulgencio, Patoruzú e Gaturro.

Page 33: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

33

Figura 3: Estátua de Mafalda, Susanita e Manolito no bairro San Telmo

Fonte: Imagem disponível em: < https://www.dedmundoafora.com.br/2017/04/buenos-aires-estatua-mafalda-

argentina.html>. Data de acesso: 22/jan/2018

Page 34: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

34

Capítulo 2: O autor e sua obra

Page 35: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

35

2.1 – Quino

(...) Hay días que me considero un dibujante cuando me quedo contento con mi trabajo... Pero más

que un dibujante, soy un comunicador de ideas. O un periodista, si se quiere. Mi tarea es más de

hacerle notar a la gente algo que sin uno no hubieran notado. Aunque sean tonterías o pequeñas

cosas

Quino8.

Do tio herdou o nome e o gosto pelas artes. Dos pais, o apelido com o qual ficaria

conhecido em todo o mundo. Filho de imigrantes espanhóis da Andaluzia, Joaquim Salvador

Lavado, o autor de Mafalda, nasceu em 17 de julho de 1932, na cidade de Mendoza,

Argentina. O apelido – Joaquinito; Quinito; Quino – foi criado para diferenciá-lo de Joaquim

Tejón, seu tio, desenhista publicitário, com quem descobriu o mundo das artes.

Walter Benjamin (1994), ao comentar sobre o papel do narrador dentro da

discussão das práticas culturais, aponta que na contemporaneidade o autor sofre com o

problema da sua autonomia, da liberdade de escrever o que quiser, já que precisa se adequar

ao meio editorial no qual se encontra, e à situação social do momento, que o força a decidir a

favor de que causa se colocará. Partindo da premissa de que “(...) a missão do autor não é

relatar, mas combater, não ser espectador, mas participante ativo” (p.123); torna-se necessário

conhecer quem são esses autores e os locais onde eles estão inseridos. É, portanto, essencial

que nos atentemos à função exercida pela obra no interior das relações com as demais

produções de sua época, observando-se a necessidade de também se conhecer os materiais, as

possiblidades e as técnicas de produção dos humoristas gráficos, visto que, como assinala

Barreiro (2011) “(...) toda imagem humorística é gerada condicionada ao contexto no qual vai

se difundir e ao suporte no qual se publica” (p. 13-4).

Nesse sentido, embora exista vasta informação sobre Quino e suas obras – que

pode ser facilmente acessada através da internet, nos mais variados blogs e sites destinados à

Mafalda e seu autor –, há uma menor quantidade de trabalhos que articulam o desenhista com

outros nomes e produções desenvolvidas dentro do contexto histórico em que foram

publicados. E dessa forma, através de um breve estudo sobre sua carreira, mestres, trajetória

profissional e obras produzidas, é possível melhor compreender o autor, narrador, desenhista e

8 “Quino 50 años”. 2005. Disponível em: <http://www.losandes.com.ar/noticia/sociedad-161334>. Data de

acesso: 10/05/2017.

Page 36: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

36

ator social, que através dos seus desenhos, não só reflete os questionamentos da sociedade em

que vive, como suas próprias indagações.

Quando questionado sobre suas inspirações e influências, Quino explica que o

desenhista de humor deve escolher que mestre seguir e que estilo adotar, até mesmo para

conseguir encontrar o seu próprio (QUINO, s.d. Data de acesso: dez/2016)9. Seu tio foi

responsável em grande parte por proporcionar o contato do sobrinho com as revistas

argentinas e estrangeiras que comprava, como Paris Match; na qual publicavam Bosc e

Chaval, desenhistas responsáveis por revelar o tipo de humor que a Quino interessava: “(...)

sintético, sem texto, direto, com uma grande doses de surrealismo mas, sobretudo,

completamente afastado do humor tradicional”(Idem). Além destes, muitos outros desenhistas

foram essenciais para seu aprendizado e descoberta de estilo e postura profissional. De acordo

com Quino, com Lin Palacio, por exemplo, se atentou ao traço da linha, à harmonia na

proporção dos personagens e à temática mais ampla e universal. Ademais, com o desenhista

francês Sempé (figura 4) – a quem se proclama irmão de tinta – compartilha o estilo de

humor, que “(...) não produz gargalhada imediata, mas deve ser observado com muita atenção,

inclusive pensado”10

.

Figura 4: Desenho de Sempé

Fonte: Disponível em: <http://ddotb.wordpress.com>. Data de acesso: 27/nov/2013

9 Alguns dos relatos de Quino não estão datados, mas estão disponíveis em seu site oficial:

<http://www.quino.com.ar>. 10

Idem. Conforme ressalta, nosso desenhista acredita ser um dos últimos expoentes de um tipo de humor em

extinção, o humor humanista, não contaminado pela sátira exclusivamente política do momento Além disso,

sobre o tipo de humor “mudo” e universal, Quino afirma ter se inspirado também no cinema, inclusive nos

filmes de Charles Chaplin, que por não possuírem diálogos, enfatizavam as expressões faciais e detalhes de

cenário.

Page 37: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

37

Com Oski, Quino aprendeu a observar e extrair algo do que se observa, seja um

objeto ou uma pessoa; além de entender a necessidade de se ter disciplina e se documentar

seriamente antes de desenhar aquilo que foi observado. Quando já produzia Mafalda, visando

a verossimilhança de sua produção com o que notava da realidade, Quino até mesmo entrava

em lojas de roupas infantis, olhava as vitrines à procura de vestidos e sapatos que coubessem

na personagem (COSSE, 2014, p. 85). Dessa forma, conforme produzia suas tiras, os

personagens passaram a transcender o papel e dialogar com os leitores, o que – como melhor

abordaremos nesse trabalho – foi também responsável pelo sucesso de sua obra.

Ademais, pensando sobre seus grandes mestres, Quino afirma que é a Divito

quem atribui maior impacto sobre seu trabalho11

:

Cuando yo trabajaba en "Rico Tipo" le llevaba mis dibujos en lápiz, él me

los corregía y me decía «Esto estaría mejor de tal manera, aquí sobra este

árbol o esta nube, etc.», luego yo los pasaba a tinta y recién entonces, si le

parecía que estaban bien, me los publicaba. Aprendí de él una conducta

profesional, jamás copiar ideas o, descaradamente, la línea de otros

dibujantes (QUINO, s.d. Data de acesso: mar/2017).

Para a jornalista espanhola Maruja Torres, o desenhista tem algo de personagem

de desenho animado, com pernas magras, compridas e muito juntas, com pés grandes e

separados, e com o cabelo comprido desgrenhando-se onde a calvície permite (QUINO, 2003,

p. VI). À jornalista, ele revela que desde pequeno nunca desejou trabalhar com outra coisa.

Sua família estava constantemente exposta à arte, seja pela música cantada pela mãe e tocada

pelo violão dos irmãos ou pelos desenhos que todos faziam sobre a mesa de jantar. Além

disso, o fato de sua avó ser comunista e seus pais tenderem ao pensamento socialista fez com

que Quino crescesse em um ambiente extremamente politizado, republicano e anticlerical:

quando pequeno seu avô lhe ensinara que uma missa “(...) é uma congregação de ignorantes,

adorando a bunda de um velhaco” (QUINO, 2013). Hoje, quando questionado sobre sua

postura política, o autor diz ser “prescindista”, uma vez que para ele o problema não está nos

regimes políticos, e sim no ser humano.

No decorrer de sua juventude, muitos foram essenciais na formação de Quino

como profissional. Todavia, conforme entrevista concedida à Revista Samuel (2013), somente

depois de algumas aulas com Demetrio Urruchúa, pintor argentino, conseguiu definir um

estilo próprio, o formato dos narizes, o tamanhos dos pés, entre outros detalhes de seus

11

José Antonio Guillermo Divito, conhecido simplesmente como Divito, era desenhista, humorista e editor. Seus

principais trabalhos são das décadas de 1940 a 1960, quando fundou e dirigiu uma das mais famosas revistas

argentinas, Rico Tipo.

Page 38: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

38

personagens, isso já em 1965. Desde que iniciou sua carreira na produção de humor gráfico,

alguns foram os procedimentos por ele adotados. Atualmente, quando discorre sobre o

processo de elaboração do desenho, afirma que primeiro elabora um esboço com lápis para

depois desenhar com tinta nanquim. Quando não consegue ter ideias – o que de acordo com

ele acontece com relativa frequência –, elabora muitos esboços em blocos de nota e os guarda

num arquivo, recorrendo a ele sempre que necessário. Ademais, sempre manteve um caderno

ao lado da cama para anotar as ideias sobre as quais refletia antes de dormir. Atualmente, com

oitenta e cinco anos, e sofrendo de glaucoma, Quino afirma: “já não mais anoto. Agora as

guardo para mim”12

.

2.1.1 - A trajetória

Quino nasceu no início da década de 1930 em uma família de imigrantes

espanhóis, pertencentes à classe média argentina. Em 1939 iniciou a escola primária, onde

sofreu com sua timidez e dificuldades de aprendizado13

. Após terminar o colégio, Quino

entrou para a Escola de Belas Artes de Mendoza, mas as aulas não o empolgaram e ele as

abandonou por estar “cansado de desenhar ânforas e gessos” (QUINO, s.d. Data de acesso:

mar/2017). Seu objetivo já estava definido: era ser desenhista de histórias em quadrinhos de

humor, de preferência na revista portenha Rico Tipo, de Divito, com quem sonhara trabalhar

desde a infância. Todavia, enquanto isso não acontecia, ele tentava vender sua primeira

historieta.

Na tentativa de conseguir mais oportunidades de trabalho, em 1951, Quino viajou

para Buenos Aires, onde percorreu várias redações de revistas e jornais. No entanto, após três

semanas voltou à Mendonza sem qualquer oferta de trabalho. Em 1953, para o aumento de

sua angústia, se viu obrigado a servir ao Exército, o que de certo modo alterou sua percepção

do mundo e seus próprios desenhos, visto que compartilhar sua “vida com rapazes de origem

social diferente... Foi uma grande ruptura, um enriquecimento, que permitiu desenhar algo

diferente” (Idem). No ano seguinte se instalou em Buenos Aires e continuou a percorrer as

redações na procura de um emprego. Conforme observou, esse foi um período muito sofrido,

12

Idem. Sobre sua condição atual ver também a entrevista concedida para El País. Disponível em:

<http://brasil.elpais.com/brasil/2014/10/17/sociedad/1413566259_284551.html>. Data de acesso: 13/02/2017. 13

Sua relação com a escola, como veremos no próximo capítulo, foi fundamental para a representação da escola

de Mafalda e a construção dos personagens enquanto estudantes. Felipe, por exemplo, é o personagem a quem

Quino revela mais se identificar, e ele, como seu criador, é extremamente tímido, com dificuldades de

aprendizado e medo da professora.

Page 39: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

39

suas condições de vida eram muito precárias e para conseguir se sustentar na capital teve de

conviver com mais três ou quatro pessoas no mesmo quarto de pensão.

Finalmente, para a felicidade do autor, em 1954, o semanário portenho Esto Es

publicou sua primeira página de humor gráfico, alternando as publicações de Quino com as de

outros desenhistas (figura 5 e 6). A partir daquele ano, passou a publicar em diversos meios,

como Vea y Lea, Leoplán, Damas y Damitas, TV Guía, Usted, Che, Panorama Atlántida,

Adán, Democracia, entre outros. Desde então, seus desenhos de humor têm sido publicados

ininterruptamente em diversos jornais e revistas da América Latina e da Europa.

Em 1957, Quino concretiza seu maior desejo e começa a trabalhar com Divito,

publicando regularmente em Rico Tipo. A revista, criada por José Antonio Guillermo Divito,

em novembro de 1944, ficou famosa pela produção das Chicas de Divito (figura 7), mulheres

sensuais que, de tão populares que se tornaram, passaram a ditar moda em Buenos Aires na

década de 1950. Além das Chicas, Divito criou uma série de personagens que retratavam

diferentes aspectos de um cidadão comum: Pochita Morfoni, por exemplo, era uma mulher

obesa que só pensava em comida; Fallutelli, um típico empregado bajulador que traía seus

colegas para agradar ao chefe; Fúlmine, um homem feio que aonde ia levava consigo azar e

desgraças; El abuelo, um velhinho inofensivo e apaixonado pelas jovens; e Gracielita, uma

menina muito moderna e inteligente.

Page 40: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

40

Figura 5: Desenho assinado como Quino Tejón, publicado por Esto Es em 1955.

Fonte: Imagem disponível em: < http://quinohumor.blogspot.com.br/> Data de acesso: 13/jun/2016

Figura 6: Desenho publicado por Esto Es, nº 63, fevereiro de 1955.

Fonte: Imagem disponível em: < http://quinohumor.blogspot.com.br/> Data de acesso: 13/jun/2016

Page 41: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

41

Figura 7: Chicas de Divito na Capa. Rico Tipo ano I nº4

Fonte: Imagem disponível em: <hhtp://www.retratoenlinea.com>. Data de acesso: 27/nov/2016

Além disso, ganha espaço em Dr. Merengue e Tía Vicenta, revista extremamente

politizada. Nesta última, Quino trabalhou com desenhistas como Landrú, Vilar, Nowens e

Siulnas, com quem compartilhou temáticas, formas de abordagem e de sátira humorística. Tía

Vicenta foi criada em 20 de agosto de 1957 por Juan Carlos Colombres, Landrú, juntamente

com Oscar Conti, Oski. A personagem central fora inspiração de Landrú, baseada em sua tia

Cora, quem acreditava tudo saber mesmo não tendo ideia do que estava dizendo. Revista de

oposição, dedicou-se a temas políticos e sociais como a censura, a proibição do peronismo e a

alta inflação sofrida pela sociedade argentina. Tía Vicenta era famosa pela sua satirização dos

políticos argentinos através de caricaturas e associações com animais. Por exemplo, o general

Juan Carlos Onganía – que em 1966 instauraria a ditadura militar na Argentina – era

desenhado como uma morsa com bigodes. Dentre outras razões, esses desenhos foram

responsáveis pelo fechamento da revista em julho de 1966.

Na análise dos trabalhos dos desenhistas argentinos que publicavam na mesma

época ou, até mesmo, nas mesmas redações que Quino, foi possível observar como os autores

se parecem nas abordagens realizadas e tópicos propostos. Em Tía Vicenta, por exemplo,

Page 42: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

42

encontramos páginas exclusivamente destinadas aos colaboradores desenhistas, o que nos

permite visualizar as diferentes produções que aparecem em uma mesma publicação:

Figura 8: Desenhos de Quino, Flax, Miguel Brascó, Siulnas e Politesse, 7 de maio de 1962.

Fonte: Hemeroteca Biblioteca Nacional da Argentina. Tía Vicenta, ano VI, n 209.

Na página em questão, todos os desenhistas produziram sátiras ou desenhos

contestatórios da sociedade da época. Apesar das diferentes abordagens, traços, tamanhos de

corpos, e composições de cena, é possível verificar uma mesma tendência – ou desejo – de

Page 43: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

43

expressar as críticas ao comportamento humano face aos problemas do cotidiano ou aos

acontecimentos políticos argentinos. É o que vemos no desenho de Quino, que mostra o ser

humano preso ao consumismo, expressado pela garrafa de Coca-Cola (símbolo do capitalismo

e da supremacia estadunidense), a qual acredita ser uma excelente bebida; e o desenho de

Pesadilla, que remete ao ex-presidente Perón e aos grupos atrelados ao peronismo que

tentavam retomar o poder na Argentina.

Dessa forma, ao passo que as publicações foram analisadas, encontraram-se

muitos quadros humorísticos sobre o mesmo tema produzidos por diferentes autores. Além

disso, por muitos anos, enquanto Quino elaborava tiras para Tía Vicenta e Rico Tipo, já

publicava Mafalda no diário El Mundo, o que também possibilita comparações entre as

diversas produções humorísticas e a tira. Sobre o tema da passagem de ano, por exemplo,

encontramos as seguintes figuras:

Figura 9: Tira da Mafalda publicada por El Mundo, dezembro de 1965.

Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de la Flor, 1993, p 195.

Page 44: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

44

Figura 10: Tira de Landrú publicada em 19 dezembro 1965. Tía Vicenta ano IX nº 339

Fonte: Hemeroteca Biblioteca Nacional da Argentina.

A tira de Quino (figura 9) apresenta as personagens Mafalda e Susanita

caminhando pela calçada do bairro. As duas iniciam um diálogo sobre o ano que se acaba,

com uma expressão amena no rosto. O fato de as duas personagens estarem caminhando uma

frente a outra, corrobora para a produção da ideia de continuidade do tempo. No segundo

quadro, entretanto, a caminhada se interrompe com a indagação de Susanita sobre o ano que

está por vir. Mafalda adota uma expressão de dúvida e, como se refletisse sobre o fato,

afirma, no último quadro, que o próximo ano será muito valente visto que “como anda la cosa,

animarse a venir!...”. Susanita perde sua expressão leve e Mafalda se mostra desesperada. Seu

corpo voltado para a amiga e o movimento das mãos, revelam sua alteração. O humor da tira

se mostra no fato de Susanita estar esperando uma resposta positiva sobre o novo ano e

receber em troca um desabafo sobre a situação atual do país. Também, a graça se faz pela

protagonista compreender que o ano vem caminhando (no sentido literal), e que possui muita

coragem por decidir continuar seu curso.

Page 45: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

45

Já o desenho de Landrú (figura 10), que, diferente de Quino, acontece em um só

quadro, também representa o final de ano 1965, nos mostra uma família reunida à mesa,

composta por uma mulher, um homem, uma criança e um senhor idoso. Percebe-se que se

trata de uma celebração da passagem de ano, visto que todos estão com um vestuário mais

formal, com ternos e vestido, e que seguram nas mãos taças de alguma bebida espumante,

utilizada em brindes e festas. A legenda nos ratifica essa ideia: “viva el 66!”. Nesse cenário de

possível festa, ainda vemos que um dos homens, com uma expressão de seriedade, discursa

sobre a passagem do ano, desejando saúde e dinheiro a todos. O humor e crítica aparecem

quando ele completa seu raciocínio, anunciando que devido ao cenário atual, já estariam no

lucro se “lleguemos al año que viene!”. Para também apresentar a ironia, toalha remendada, as

vestimentas surradas, e a pouca comida sobre a mesa servem de indicativos da dificuldade

econômica vivida pela família em questão. Apesar de se distanciarem quanto aos elementos

gráficos, os desenhos se aproximam na medida em que apresentam o mesmo tom pessimista

sobre a possibilidade de alteração da situação sócio-política do país

Em 1960 Quino se casa com Alicia Colombo e viaja ao Rio de Janeiro,

aproveitando também para relacionar-se com colegas e editoras estrangeiras. Sua primeira

exposição ocorre em 1962, em uma livraria de Buenos Aires, e no ano seguinte é publicado

seu primeiro livro, Mundo Quino, uma compilação dos desenhos de humor gráfico sem texto,

com prólogo escrito por seu grande amigo, Miguel Brascó. Nesse mesmo ano, Quino é

contratado para elaborar tiras que divulgassem os produtos eletrodomésticos Mansfield:

Mafalda é criada. Sua mais famosa obra, a enfant terrible, é lançada em 1964 pelo

suplemento humorístico da revista Leoplán, e em 29 de setembro passa a ser publicada

semanalmente em Primera Plana, passando depois para o diário El Mundo e a revista Siete

Días Ilustrados14

.

Na década de 1970 as outras produções de humor gráfico de Quino também se

expandiriam para o resto do mundo; e em 1978, o Salão Internacional do Humorismo de

Bridigher confere-lhe o Troféu Palma de Ouro, sua mais alta distinção. Em 1980, Quino, não

mais produzindo Mafalda, passa a publicar suas páginas de humor na revista dominical do

jornal Clarín (figura 11).

14

A trajetória de Mafalda será mais bem desenvolvida ainda nesse capítulo.

Page 46: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

46

Figura 11: Desenho de Quino publicado por Clarín

Fonte: Imagem disponível em: <http://www.tierra21.com.ar> Data de acesso: 20/nov/2016

Além dessas produções, suas contínuas publicações, tanto na Argentina como em

todo o planeta, lhe conferem o título de Desenhista do Ano, em 1982; e, devido a isso, o autor

passa a presidir o júri do Salão Internacional de Humorismo de Montreal, no Canadá. Nesse

mesmo ano, Quino também recebe o prêmio Konez de Platina de Artes Visuais e Humos

Gráfico.

Nesse desenho, em questão, observamos um pai ensinando aos filhos os valores

da vida moderna. Semelhante ao que se espera de uma boa educação familiar, o pai aponta e

procura mostrar ao filho como se anda, se pensa, o que se ama, o que se venera, e onde se

encontram os valores morais da sociedade. Contudo, o humor se faz na mistura de crítica e

denúncia apresentadas de forma clara e irônica.

Page 47: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

47

A despeito de ter interrompido a produção de Mafalda em 1973, as obras de

Quino ultrapassam a sua mais famosa personagem, transformando-o em um nome conhecido

em diversos países. Em 1984, o desenhista é convidado para integrar o júri do festival de

Cinema Latino-Americano de Havana, onde inicia sua amizade com o diretor de cinema de

animação Juan Padrón, assinando um contrato com o ICAC para a realização de curtas-

metragens com suas páginas de humor, os Quinoscopios. De volta à Argentina, a Fundación

San Telmo organiza uma exposição retrospectiva de Quino em Buenos Aires, e, no final de

novembro do mesmo ano, outra exposição é organizada na sua cidade natal, Mendoza; onde,

em 1988, é outorgado com o título de Cidadão Ilustre, recebendo a chave da cidade.

Sua obra Mafalda, ainda publicada em diversas línguas e formatos é, também em

1988, condecorada com o grande prêmio internacional Max und Moritz, em Erlangen, na

Alemanha, durante o Terceiro Salão Internacional da História em Quadrinhos. Em 1992, a

Sociedade Estatal Quinto Centenário organiza, em Madri, uma grande mostra intitulada “El

Mundo de Mafalda”, durante a qual também é exibido um curta-metragem dirigido por Juan

Padrón. Enfim, muitos foram os títulos, prêmios e homenagens prestadas a Quino e suas

obras. O desenhista torna-se, até mesmo, a segunda pessoa do mundo a receber o prêmio

Quevedos de Humor Gráfico, em 15 de outubro de 2001. Suas obras, são expostas até hoje em

países como França, Cuba, Espanha, Bolívia, Itália, Holanda e Marrocos. Em 7 de setembro

de 2005, dia do professor na Argentina, a Confederación de Trabajadores de la educación de

la República Argentina (CTERA) entrega a distinção “Maestro de Vida” a Quino, em

reconhecimento a sua memorável trajetória15

.

Quino publicou ao longo de duas décadas em diversas páginas de humor e

atualidade. E ao adaptar-se às diversas linhas editoriais, explorou várias formas de humor, de

desenho, de temáticas. Destarte, estudar sua trajetória é imprescindível para a maior

compreensão acerca do autor, de sua obra e do seu papel como agente social. Ao passar dos

anos as demais produções além de Mafalda, também se tornaram livros, e, em 2001, a editora

15

No Dia dos Professores, a Ctera se reuniu em um teatro portenho para homenagear “aquellas personalidades

que con su testimonio de vida o con su ejemplo de entrega van iluminando el contorno de una sociedad más

justa” (PAGINA/12). Nesse evento foi entregue uma distinção de “Maestros de vida” à presidenta das Avós da

Praça de Maio, Estela Carlotto, a Eduardo Galeano, Quino, Alfredo Alcón, Joan Manuel Serrat, entre outros.

Quino, através de suas tiras contribuiu para a formação do argentino, seja pela crítica ou consolidação de ideias e

elementos culturais da sociedade. Sua produção era lida por alunos e professores, e, dessa maneira, conforme

expandia suas publicações, se tornava um sujeito distinto, compreendido como “maestro” da vida, pela

Confederación de Trabajadores de la educación de la República Argentina.

Page 48: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

48

Ediciones de la Flor as compila no livro Esto no es todo16

. Observando seus trabalhos

anteriores, os desenhos de Mafalda e os mais recentes, é perceptível a mudança do traço, o

aumento dos detalhes e a complexidade dos desenhos.

A imagem abaixo, por exemplo, apresenta uma narrativa sobre ao amor

malsucedido, que “no pudo ser”, a partir do encontro de dois personagens que se conhecem

em uma galeria de arte, rica em detalhes, e terminam o possível relacionamento em cafés

diferentes na mesma cidade. Os personagens possuem cabelos, formato de mãos e narizes que

passam a ser característicos dos desenhos mais recentes de Quino. Ainda, o modo como a rua,

os demais personagens, a senhora observando as frutas em frente ao mercado, o cachorro, o

lixo na calçada, e os carros se dispõem na cena, além de enriquecerem o cartoon, produzem

um efeito de causalidade, até mesmo, normalidade, no desencontro dos apaixonados, como se

a cidade presenciasse tais cenas cotidianamente.

16

As outras obras de Quino viraram livros: ¿Quién anda ahí?, Déjenme inventar, Quinoterapia, Gente en su

sitio, Si, cariño, Potentes, prepotentes e impotentes, A la buena mesa, Ni arte ni parte, La aventura de comer,

¡Cuánta bondad!, ¡A mí no me grite!, ¡Qué presente impresentable!, Bien, gracias. ¿Y usted?, Humano se nace,

Yo no fui, Cuentecillos, ¡Qué mala es la gente!.

Page 49: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

49

Figura 12: Desenho de Quino

Fonte: QUINO. ¡Que Mala es la gente!. Buenos Aires: Ediciones de la Flor, 2013, p 82.

Page 50: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

50

2.1.2 – Humor e Humor em Quino

O humor é complexo e de difícil análise. Como aponta Saliba (2016), realizar um

estudo histórico das teorias a respeito do riso e do humor seria quase impossível de se fazer de

forma completa, visto que “trata-se de uma experiência humana tão variável e imprecisa que

resiste a qualquer tentativa de categorização” (p.3). A partir dos anos 1970 começaram a

aparecer alguns trabalhos destinados ao estudo do humor na perspectiva da História Cultural,

marcados pela grande variedade de temas, abordagens e documentos utilizados, tais como:

manuais de trotes e de civilidade, escritos apócrifos, livros de piadas, periódicos humorísticos,

coleções de anedotas, registros cinematográficos, biografias de humoristas obscuros, e

histórias em quadrinhos. Nesse contexto, a partir do variado espectro de fontes, se objetivava

compreender o quanto, nas sociedades ocidentais, o humor “incentivou laços de sociabilidade,

sublimou agressões ou ressentimentos, administrou o cinismo ou estilizou a violência”

(Ibidem, p. 1). Desse modo, o humor passou a ser visto pelo meio acadêmico como

importante fonte para entender o funcionamento das sociedades, uma vez que também é

relevante nos processos de construção política, social e cultural em diferentes épocas e locais.

Dentre as manifestações culturais do humor destacam-se as histórias em

quadrinhos, mais precisamente, as tiras humorísticas. Estas, publicadas, na

contemporaneidade, em jornais e revistas, são estruturadas em três momentos, segundo

Ramos (2005, p. 1160): o de “normalização da cena”, mediante a apresentação dos

personagens; o de “locução de deflagração”, responsável por apresentar o problema a ser

resolvido; e o de “interlocução de distinção”, encarregado de transitar a narrativa para o modo

cômico. Essa estrutura, semelhante a uma piada, promove mudanças de curso nas histórias

reproduzidas, e surpreendem os leitores, provocando desfechos “inesperados”, que tendem a

se tornar as fontes de risos do leitor.

Ao discorrer sobre a produção das tiras humorísticas, muitos teóricos a tratam

como uma piada, assinalando que cada tira possui um texto completo com início,

desenvolvimento e desfecho, e assim, cada uma delas “apresenta uma piada (gag) que precisa

ser contada em algumas vinhetas” (SANTOS, 2004, p. 47). Além dele, Marcelino (2003),

Vergueiro (2005) e Cagnin (1975) apontam que as histórias em quadrinhos curtas possibilitam

suprimir facilmente os textos e, utilizando dos recursos gráficos e linguísticos, conseguem

apresentar a piada em três ou quatro quadros. Dessa maneira, apesar dos variados recursos e

elementos das tiras, os autores são consonantes quanto à estrutura cômica, defendendo que a

Page 51: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

51

grande diferença entre a piada e a tira consiste na apresentação do elemento visual e na

tendência de repetição temática.

Dentro dessa perspectiva, a figura abaixo (figura 13), obra de Mário Latino,

apresenta Roberval, um personagem que também é cartunista, e conversa com o filho sobre o

momento de produção das tiras cômicas17

. De acordo com ele, antes de desenhar a tira, é

necessária a elaboração da ideia, dos diálogos e do ambiente para que se possa averiguar o

sucesso da “gag”. E então, corroborando com a ideia de compreender a tira como uma piada,

Roberval explica os três momentos apresentados por Ramos (2005; 2007): um primeiro

quadrinho que cria a situação, o segundo que funciona como ponte entre o primeiro e o

último, e a vinheta final, na qual “tudo descamba”, ou seja, surge o inesperado, a piada.

Eisner (2005, p. 106) também parte do princípio da incongruência – do final

inesperado –, para explicar o efeito de humor das tiras. De acordo com o autor, a história em

quadrinho não é, mas contém uma piada, visto que estruturalmente ela é a dramatização do

texto cômico e surpreendente. Contudo, a comicidade não é produto exclusivo do artista, visto

que também conta com a colaboração constante do leitor na medida em que depende do

segundo a compreensão dos discursos e elementos visuais. Nesse sentido, a ironia também é

apresentada como característica da produção de humor, visto que além da quebra do

raciocínio linear, requer uma cumplicidade ativa com os sujeitos, exigindo que os leitores

completem o raciocínio proposto pela tira e descubram a crítica apontada ironicamente pelos

personagens.

Ainda sobre o tema, Marcelino (2003), articula uma teoria que classifica o humor

das tiras em três níveis: o “diegético”, no qual o elemento cômico está no personagem, que

age de forma ridícula ou engraçada propositadamente; no “extradiegético”, que delega ao

narrador a articulação do cômico; e o “extratextual”, no qual o leitor enxerga uma situação

cômica na atitude do personagem ou no enredo da cena, sem que o personagem em si tenha

ciência da situação humorística em questão.

17

Mário Latino é um cartunista nicaraguense radicado no Brasil. Dentre outras obras, no final de 1996, criou

Roberval, seu personagem mais popular. O personagem é uma mistura de "cartunista e escritor", como bem diz o

próprio autor no texto de abertura da revista. É casado e tem um filho muito criativo. Sua esposa Regina,

caracterizada como contraponto aos devaneios de Roberval, é uma mulher pragmática, e assim, os conflitos

familiares e cotidianos são os temas principais da obra.

Page 52: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

52

Figura 13: Roberval

Fonte: RAMOS, Paulo. Tiras cômicas e piadas: duas leituras, um efeito de humor, 2007. Disponível em:

<http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8142/tde-04092007-141941/pt-br.php>. Data de acesso: jan/2018.

Page 53: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

53

Considerando tais elementos sobre o humor, produção e caraterização das tiras

humorísticas, a análise dos quadrinhos de Mafalda neste trabalho, parte do pressuporto que é

possível apreender não somente as informações presentes nos elementos gráficos e textuais,

mas também o processo de produção humorística, sua recepção e compreensão por parte dos

leitores, bem como a cultura do humor na sociedade argentina. Mafalda se encontra em uma

zona entre o amadurecimento biológico e a maturidade intelectual. Tem raciocínio e interesses

de adulto apesar de ter somente seis anos. Essa incongruência gerava riso. O pensamento

adulto vindo de uma inocente criança gera o humor, e isso adquiria ainda mais força porque

dialogava com as concepções da época sobre infância e criação dos filhos18

. Dessa maneira,

como assinala Cosse (2014), ao passo que Quino incorporava debates e conflitos vivenciados

pelos leitores de suas tiras, ele consolidava seu espaço com o público e garantia a produção de

um humor pautado na identificação e reflexão que Mafalda exigia de seus leitores.

Ademais, Quino utiliza da ironia constantemente como ferramenta humorística.

Na tira abaixo vemos uma cena em que Mafalda interroga Pelicarpo sobre ser um bom pai, o

que já traz o elemento surpreendente, visto que invertia a situação habitual, na qual são os

adultos que questionam as atitudes infantis e perguntam às crianças se elas eram ou não

bondosas. Uma das primeiras tiras de Quino publicada na Primera Plana em 24 de setembro

de 1964, apresenta pouco detalhamento dos corpos e cenário. Os traços e definições corporais

que assumiriam os personagens ainda estavam em construção. No primeiro quadro vemos a

menina em pé, indagar ao pai que se encontrava sentado, com as pernas cruzadas, lendo um

livro. Ele abre um leve sorriso e responde que “sí”. No entanto, no quadro seguinte, a menina

ainda insatisfeita com a resposta, assume uma expressão de felicidade, abre os lábios em um

grande sorriso, ergue os braços como que enaltecendo enquanto o questiona sobre ser “más

bueno de todos los papas del mundo”.

18

Na metade do século XX ocorre uma transformação da noção de infância, que deixa de ver a criança como

depositório de sentimentos puros e inocentes, e passa a enxergá-la com símbolo de progresso e bem estar para as

famílias, para a nação e para a humanidade. Na medida e que Quino produz Mafalda, ele dialoga com essas

transformações, e mais do que isso, colabora para a entronização da infância, para a ideia de que a criança

deveria ser preocupação da família e do Estado (COSSE, 2014, p. 45)

Page 54: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

54

Figura 14: Tira de Mafalda publicada por Primera Plana

Fonte: QUINO. Mafalda Inédita. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1988, p.567.

Enquanto Mafalda o questiona ele coloca a mão sobre a boca e a observa

atentamente, refletindo sobre a pergunta, e logo responde: não era o melhor, mas era um bom

pai. Seus braços se abrem como que num abraço, e o sorriso em seus lábios nos permitem

inferir que ele acreditava ser essa uma resposta satisfatória. Contudo, Mafalda permanece ao

seu lado com os braços paralelos ao corpo, e contrariando o pensamento do pai, vira de costas

e o abandona, indignada com a resposta recebida. Percebemos sua revolta não pela fala, mas

pela sua expressão fácil e corporal, uma vez que sua boca está aberta e seus olhos se contraem

ao mesmo tempo em que seu corpo anda curvado e suas mãos, numa espécie de “murro”,

acompanham o andar pesado. O pai, assim como o leitor, é pego pela surpresa da reação da

filha, seus olhos se arregalam e ele fica sem compreender.

A resposta do pai no terceiro quadro permite que o elemento disjuntor atue na

cena, e rompa com a linearidade do pensamento, promovendo incongruência e humor. O pai,

diferente do que se esperava, desloca sua própria autoridade e duvida de sua capacidade

enquanto melhor pai do mundo, permitindo que sua filha também assim questionasse. Suas

suspeitas foram confirmadas e sua reação irônica nos mostra isso. Dessa maneira, o humor é

gerado pela inversão de papeis, pela ironia da personagem, bem como pelo reconhecimento

do diálogo por parte dos leitores. O riso é provocado, assim, não só pelas situações

apresentadas, mas pelo modo como elas se desenvolvem na sucessão de quadros da tira.

Desse modo, uma vez analisada a totalidade das tiras de Mafalda, pode-se inferir

que – conforme a teoria apresentada por Marcelino (2003) –, o humor presente nas tiras é, na

sua maioria, extratextual, visto que os personagens vivenciam situações cotidianas, e somos

nós leitores que percebemos a comicidade na ironia, na incongruência, e nos elementos

estruturais da tira. Ademais, o recurso humorístico utilizado por Quino requere, por parte do

Page 55: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

55

leitor, a capacidade de estabelecer empatia e reconhecimento com a situação exposta pela tira;

além de exigir reflexão sobre a realidade, e modos de pensar e agir, muitas vezes denunciados

e criticados pela obra.

Page 56: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

56

2.2– Mafalda

“No tiene importancia lo que yo pienso de Mafalda. Lo importante es lo que

Mafalda piensa de mí”

Julio Cortázar

La enfant terrible

Mafalda surgiu na década de 1960 num cenário de organização dos jovens

latino-americanos e europeus, que se manifestavam em prol de maior participação política, da

consolidação de direitos sociais e pelo fim da arbitrariedade de alguns governos latino-

americanos. As gerações pós-guerra se distanciavam dos mais velhos na medida em que

viviam tempos de crescimento econômico e expansão dos direitos sociais, e por isso,

protagonizaram revoltas políticas e culturais, que bradavam por uma nova ordem mundial.

Nos anos 1960 e 70, a Argentina, especificamente, se encontrou num período de

grande conturbação política e social. Após dois mandatos presidenciais de Juan Domingo

Perón, o país se deparou com uma instabilidade política já que, durante anos, o poder oscilou

nas mãos de militares e civis como Arturo Frondizi19

e Umberto Illia. Este, governou o país

de 1963 a 1966, período no qual os militares como o General Juan Carlos Organía cultivavam

a imagem de sucessores mais moderados de Perón. A despeito das tentativas de

redemocratização de Illia – permitindo, até mesmo, que os peronistas apresentassem

candidatura nas próximas eleições –, em 28 de junho de 1966, Onganía depõe o presidente

através de um golpe militar20

. Nesse momento as manifestações sociais e culturais se

intensificaram, e enquanto os militares governaram, o peronismo continuou a crescer na

Argentina, corroborando para as crises internas que acompanharam o governo ditatorial, até

que, em 1973, a crise desembocou em uma eleição que contou com 50% dos votos para o

peronismo21

.

19

Arturo Frondizi foi presidente da Argentina de 1958 a 1962. Durante o processo eleitoral que o elegeu, o

peronismo estava proibido no país. No entanto, Frondizi, se comprometeu a anular as leis de proibição do partido

de Juan Perón, em troca dos votos de seus seguidores. Durante seu governo, promoveu a lei de anistia para os

presos políticos, e impulsionou o desenvolvimentismo, propondo o investimento em indústrias de base. 20

Umberto Illia, ao assegurar o direito dos peronistas de apresentar candidatura às eleições, determinou, porém,

algumas condições, dentro das quais a principal era a de que Perón nunca poderia ser candidato a nada. Perón,

colocando à prova essa decisão tenta, em dezembro de 1964, retornar a Argentina, mas é interceptado pelas

autoridades do Rio de Janeiro, a pedido das autoridades argentinas. 21

Onganía, comandante do Exército argentino, dirigiu o golpe e assumiu a presidência do país em 30 de junho

de 1966. Pouco tempo depois, decretou a intervenção policial nas universidades, o que gerou protestos de

docentes e estudantes. Suas manifestações foram duramente reprimidas na chamada “noche de los bastones

largos”, que além de violenta foi responsável pela demissão e exílio de muitos professores universitários. Tanto

Page 57: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

57

Assim, naquele ano, o novo governo, que também contava com o apoio de outros

setores como o frondizismo, os democratas cristãos e socialistas – unidos no intento de vencer

as eleições contra Lanusse – trouxe Perón novamente para o solo argentino, uma vez que ele

era considerado o líder capaz de controlar e moderar a população22

. Perón soube conciliar e

fazer dialogar os lados mais extremistas da direita e da esquerda, propiciando que muitos se

aproximassem do governo. Entretanto, em julho de 1974 Perón sofre um infarto e falece,

ascendendo ao poder sua esposa María Estela Martínez, conhecida como Isabelita Perón.

Somado ao contexto propício a um golpe militar, já apresentada por Onganía, Isabelita e seu

ministro José López Rega, adotaram práticas e ações políticas impopulares que

desencadearam novas manifestações e insatisfações em diversos setores sociais. Ademais, as

Forças Armadas encontravam-se cada vez mais autônomas e presentes no governo argentino,

o que resultou em março de 1976 num outro golpe militar que designou a Presidência a Jorge

Rafael Videla.

Este trabalho percorre esse período da história argentina, seguindo os rastros de

Mafalda – a obra –, partindo da premissa de que a personagem possui significação social e

política, que a converteram em uma riquíssima fonte para compreender as comoções culturais

e sociais do período. Como afirma Cosse (2014), essa produção encarnou as novas gerações

contestatárias e a história foi lida, discutida e usada como uma representação emblemática da

sociedade argentina. Sua capacidade de suscitar identificação em uma forma global, lhe deu

uma popularidade que “sobrepasó Argentina, Mafalda trascendió su origen clasemediero y el

humor de Quino iluminó la condición humana” (p. 19).

A historieta nasceu atrelada aos processos culturais, sociais e econômicos próprios

da metade dos anos 60, e, dessa maneira, encarna as tensões e trabalha sobre as contradições,

impossibilidades e frustrações que acometiam a sociedade argentina. Mafalda, além de

dialogar com o mundo em que surgiu, foi capaz de operar sobre essa realidade, na medida em

que produziu e circulou uma representação e forma de humor que corroboraram para afirmar,

pensar e discutir a identidade da classe média e discuti-la em um contexto cada vez mais

polarizado.

os acontecimentos políticos, como os sociais e culturais foram fundamentais no diólogo que Mafalda estebeleu

com seus leitores, tendo em vista suas posturas antiditatoriais e antiautoritárias. 22

O frondizismo era um movimento criado pelos seguidores de Arturo Frondizi e adeptos ao peronismo, que

após o pacto firmado pelos dois presidentes, se uniram e contribuíram para o retorno de Juan Perón ao país.

Page 58: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

58

2.2.1 - A trajetória

A trajetória de Mafalda abarca o período compreendido entre os anos 1964 e

1973, em três diferentes publicações: a revista semanal Primeira Plana, o jornal diário El

Mundo e a revista semanal Siete Días Ilustrados. O humorista e escritor Miguel Brascó,

amigo pessoal de Quino, define o nascimento de Mafalda como “una historia curiosa”:

Quino me había comentado que tenía ganas de dibujar una tira con chicos.

Un día llaman de Agens Publicidad y me piden un dibujante capaz de urdir

una tira cómica que habria de publicarse de manera encubierta en algún

médio, para promocionar los electrodomésticos Mansfield producidos por

Siam Di Tella. (QUINO, 1988).

Brascó automaticamente pensa em Quino e o indica para o trabalho, sugerindo

que ele imaginasse uma historieta que combinasse os estilos de Peanuts - em espanhol

Snoopy ou Charlie Browm - e Blondie, conhecida também como Dagwood ou Pepita y

Lorenzo (figura 15 e 16)23

. O autor cria, então, uma família típica de classe média,

respeitando também uma das regras da agência: os nome dos personagens deveriam começar

com as letras M e A. Dessa forma, em homenagem a personagem da novela de David Vinas,

Dar la cara, Quino pensa ser Mafalda um nome alegre e ideal para sua protagonista. Após a

realização das oito primeiras tiras, a agência resolve entrega-las ao diário Clarín, que não

cobraria pelo espaço no jornal. No entanto, o diário percebe a publicidade disfarçada nas tiras

e o acordo se rompe; a campanha não acontece, e Quino leva suas tiras a Gregório, o

suplemento de humor da revista Leoplán, criado e dirigido pelo próprio Brascó, no qual

publica três tiras (figura 17).

23

Peanuts, desenhada pelo estadunidense Charles Schulz, surge na década de 1950, e se torna extremamente

popular, sendo publicada em mais 2600 jornais, e traduzida para 40 idiomas. Sua importância está, também, na

consolidação de um padrão de tiras que se estabelece nos Estados Unidos e em muitos locais do mundo:

sequência de quatro quadrinhos retangulares. Blondie, por sua vez, também é uma tira norte-americana, criada

por Chic Young, criada na década de 1930, baseada em uma família de classe média. A tira foi bem sucedida e

teve adaptações para filmes e programas de rádio.

Page 59: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

59

Figura 15: Snoopy. Tira de Schulz, publicada em 27 de maio de 1957

Fonte: Imagem disponível em: <https://jennthebenn.wordpress.com/category/greatest-peanuts-strips/>. Último

acesso: 25 de março de 2017.

Figura 16: Pepita y Lorenzo. Tira de Chic Young.

Fonte: Imagem disponível em: <www.taringa.net>. Último acesso: 25 de março de 2017.

Figura 17: Tira de Quino publicada por Leoplán

Fonte: QUINO. Mafalda Inédita. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1988, p.7.

Felizmente, o fracasso da campanha Mansfield não impediu que Mafalda se

formalizasse como tira, uma vez que outro grande amigo de Quino, Julián Delgado, redator

chefe da revista Primera Plana convida o desenhista para incorporar-se à revista. Assim, no

dia 29 de setembro de 1964 Mafalda aparece, juntamente com uma homenagem a Quino, na

sessão Cartas ao Leitor, escrita pelo diretor Victorio Dalle Nogare:

Ya antes de aparecer PRIMERA PLANA, el humorista Quino fue invitado a

colaborar en estas columnas. Poco menos de dos años le costó decidirse, y la

aceptación llegó una vez que tuvo la seguridad de entregar algo distinto de

Page 60: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

60

sus trabajos habituales: una historieta casi de la vida real, por la que desfilan

una intelectualizada niña, Mafalda, y su peculiar mundo de familiares y de

amigos. Quino, quien a los 32 años es, sin duda, el humorista más brillante

de su geración, se introcude en la revista con Mafalda. (PRIMERA PLANA, Ano II, n. 99, 29 setembro de 1964, p.1.)

A revista Primera Plana, criada em 1962, e dirigida por Jacob Timerman, tinha

como público-alvo homens de classe média, que se preocupavam em se diferenciar

socialmente, e que se satisfaziam com a ilusão de pertencer a um círculo elitista, crítico e

leitor. De acordo com Cosse (2014, p. 37), a linha editorial era contraditória na medida em

que no plano econômico defendia o desenvolvimentismo, na cultura impulsionava a

modernização social e as vanguardas literárias, mas na política assumia-se em favor da

intervenção das Forças Armadas. Nesse sentido, os elogios à Mafalda e Quino proferidos na

Carta ao Leitor, também eram parte da estratégia para construir um perfil de leitores e afirmar

o prestígio da revista. De qualquer forma, durante a década de 1960, estima-se que a revista

atendia aproximadamente 250 mil leitores, majoritariamente empresários, universitários e

trabalhadores com alto nível de formação.

Após dezesseis semanas elaborando histórias típicas de Mafalda e seus pais, o

autor introduz Felipe, apresentando-o como vizinho de Mafalda, sendo os dois, moradores do

mesmo condomínio de apartamentos do bairro San Telmo em Buenos Aires. Logo ambos se

tornariam grandes amigos. A historieta parecia, então, estar definitivamente instalada em

Primera Plana, até que em março de 1965 um diário do interior da Argentina se interessou

em também publicar a tira e Quino, ao tentar retirar os originais do arquivo para enviá-los,

descobriu que o semanário se considerava proprietário das tiras publicadas. Quino rompe sua

relação com Primera Plana, publicando pela última vez em 9 de março de 1965 (figura 18).

Em Primera Plana, Quino publicou 48 tiras.

Page 61: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

61

Figura 18: Tira publicada por Primera Plana em tira em 9 de março de 1965

Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p 550.

Sobre o fim de suas relações com seu amigo Julián Delgado Quino declara:

Seis meses depois de começar a publicar a tira no Primera Plana, um jornal

de Bahía Blanca veio me pedi-la. Então fui falar com Julián, que era o

secretário de redação, e ele me disse que os originais eram da revista, não

meus. Meu amigo de toda a vida me disse isso! Foi uma dor enorme. Então

fui ao arquivo, perguntei ao estagiário se tinha meus originais, e ele me

deu... E por isso esses cuzões o demitiram! Foi então que deixei o Primera

Plana (QUINO, 2013).

Após o rompimento, Brascó mais uma vez vem ao socorro do amigo,

recomendando Mafalda ao diretor do jornal diário El Mundo, Carlos Infante. O diário El

Mundo, fundado em 1928 pela editorial Haynes, era dirigido por Alberto Gernuchoff e se

posicionava como um matutino “moderno, cómodo, sintético, serio, noticioso”

(ULANOVSKY, 1996, p. 40-7). Destinado às camadas médias e populares da Argentina,

contava sessões dedicadas ao cinema, à mulher, à vida cotidiana, e às crianças. Com grandes

ilustrações e formato de tabloide, era vendido a cinco centavos e rapidamente alcançou

popularidade, visto que já em seus primeiros anos vendia cerca de 127 mil exemplares24

(SARLO, 1988, p. 20).

Em 1962, o jornal aparecia em quarto lugar entre as preferências dos entrevistados

portenhos que liam matutinos, sendo que cerca de 70% dos entrevistados declaravam ter

apenas educação primária. Era um público muito diferente do de Primera Plana, que exigia

leitores antenados e dispostos a gastar cinco vezes mais por um exemplar. Em seus últimos

anos, época em que Quino incorpora-se ao diário, sua linha editorial havia se modificado

24

Ainda sobre El Mundo, Sarlo (1988) diz: “El Mundo quiere diferenciarse de los diarios de ‘señores’, los

órganos escritos y leídos por la clase política y los sectores ilustrados. Proporciona un material configurado sobre

la base de artículos breves, que pueden ser consumidos por entero durante los viajes al trabajo (...) El diario, por

su formato tabloid, no exige la comodidad de la casa o del bufete.” p.20.

Page 62: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

62

bastante, e assumia um perfil mais progressista, se opondo às ideias de golpe de Estado e às

posturas antidemocráticas. Um de seus diretores era Landrú, quem publicava ilustrações na

página principal e abriu espaços para diversas historietas, como Patoruzú de Dante

Quintenero, e Periquita de Ernie Bushmiller.25

Desse modo, a partir de 15 de março de 1965, a tira passa a ser acolhida pelo

diário, publicada sozinha na página do Editorial. Sua entrada em El Mundo produziu grandes

transformações na tira em termos de produção, visto que a frequência diária obrigou um ritmo

de produção bem mais acelerado e consonante com os acontecimentos apresentados pela

imprensa em que estava agora inserida. Por conseguinte, essas novas exigências e

possibilidades colaboraram para a complexificação da tira, expressada nas narrativas

(diálogos), mas também na incorporação de novos personagens e cenários mais urbanos.

Nesse momento, então, a tira altera sua estrutura, abordando temas mais sociais e políticos,

Quino cria diversos protótipos sociais, com os quais construiu uma visão de classe média

marcada pela heterogeneidade. Mafalda gera um ambiente que, na medida em que articulava

o político e o cultural com as questões familiares e sociais, se enquadrava cada vez mais na

linha editorial do jornal, remetendo-se à classe média intelectual e progressista.

Entretanto, em 22 de dezembro de 1967, Mafalda novamente se encontra na busca

por um novo lar, uma vez que o jornal El Mundo é fechado pelo governo, devido ao golpe e

ao início da ditadura de Onganía. Um mês depois, Quino recebe uma carta de Jorge B., um

leitor que lhe contava:

El domingo estábamos aqui, en mi casa, con Silvia, mi amiga, y queríamos ir

hasta su casa. Después no fuimos porque nos dio vergüenza. [...] Queriamos

perguntale. Ahora que El Mundo no está saliendo, ¿no irá nacer el hermanito

de Mafalda? ¿O sí? Bueno, chau, saludos a Mafalda y a los demás chicos

(COSSE, 2014, p. 85).

A carta recebida pode ser interpretada como um exemplo da íntima relação que

Mafalda estabelecia com seus leitores, a ponto de eles se questionarem sobre problemas e a

continuidade de sua história. Ademais, o elemento da verossimilhança muito bem construído

pelo desenhista, permitia que esse efeito de realidade tirasse a personagem do papel e lhe

desse vida. Felizmente, apesar da preocupação dos leitores, em 2 de junho de 1968, o

semanário Siete Días Ilustrados começa a publicar as tiras de Quino. Para sua primeira

25

Muito se discute sobre as semelhanças físicas entre Mafalda e Periquita. Quanto a isso, Quino assume o fato e

diz ter sido obra de seu subconsciente. Mais tarde, o desenhista ainda produz uma tira ironizando a situação e

mostrando a real semelhança entre as duas personagens. A tira referida a Periqueita se encontra em El Mundo, 15

de março de 1965.

Page 63: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

63

aparição a personagem redige uma carta destinada ao diretor da revista, Sergio Morero, na

qual apresenta sua família e amigos:

Señor Director de Siete Días:

Un amigo mío, el dibujante Quino (se llama así pero cuando firma los

cheques pone Joaquín Lavado), me dijo que tenías mucho interés en

contratarnos a mí y a mi amiguitos Susanita, Felipito, Manolito y Miguelito,

para que juntos trabajemos todas las semanas en tu revista. (...) Como me

parece que vos y los lectores de la revista querrán conocerme un poco mejor

antes de firmar el contrato, te envió mi curriculum (¿así se escribe?) más o

menos completo, porque algunas cosas ya no me acuerdo. ¡Ah!, también te

mando algunas fotos de mi álbum familiar que me sacó papá, ¡pero

devolvémelas! (QUINO, 1988, p. 76).

Diante do contexto ditatorial que enfrentava o país, a Editora Abril,

responsável por inúmeras revistas locais, com medo de também precisar fechar as portas

como acontecera com El Mundo, cria Siete Días, inspirada na revista Life, destinada às

futilidades, com diagramação atrativa, moderna, e temáticas da vida cotidiana. Uma revista

semanal de atualidades, havia começado a ser publicada há apenas um ano e possuía uma

tiragem de 125 a 160 mil exemplares por semana, sendo que cada exemplar custava cerca de

100 pesos. Dirigia-se a um público masculino, mas diferente de Primera Plana, objetivava

uma maior amplitude, não apresentando-se como parte da elite econômica e cultural da época.

Além disso, fugindo das polêmicas políticas, o periódico pregava imparcialidade de seus

leitores diante dos acontecimentos nacionais e mundiais. Defendia que o profissionalismo a

impedia de se manifestar pró ou contra o governo ditatorial – o que era muito exigido por

parte do grupo de intelectuais argentinos do período.

A despeito da postura adotada pela linha editorial, quando Quino passa a

integrar a revista, ao contrário do que se esperava, não fez nenhuma adequação de conteúdo e

forma das tiras de Mafalda; trazendo para os debates com os leitores, os mesmos temas e

denúncias acerca do governo autoritário. Entretanto, a frequência de publicação da revista o

impedia de se manter atualizado como em El Mundo, visto que para publicar no semanário as

tiras deveriam ser entregues com quinze dias de antecedência, lhe prendendo muitas vezes aos

temas específicos da personagem e seus amigos. Para solucionar esse problema, o desenhista

inova, incorporando à tira uma vinheta, pequena posta sobreimpressa na margem superior da

página destinada aos quadrinhos de Quino, que a entregava no último dia antes de cada

impressão26

. Essa vinheta ainda contribuiu para a autonomia e criatividade do autor, que

26

Como Quino precisava entregar suas tiras com duas semanas de antecedência e o pouco diálogo com os

acontecimentos diários lhe incomodava, o desenhista criava vinhetas curtas sobre os temas atuais e entregava na

hora da impressão, sobrepondo esse desenho na margem superior da página já editada.

Page 64: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

64

passou a abordar diversas temáticas, letras, e até mesmo forma de assinatura. Como vemos na

imagem, os personagens da vinheta não se prendiam ao quadro, conversavam diretamente

com os leitores; o que, por sua vez, ampliou a sensação de realidade, identificação e ligação

da personagem com seus assíduos fãs (figura 19).

Figura 19: vinheta publicada por Siete Días Ilustrados em 23 de agosto de 197127

Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p. 575.

Para a decepção dos assíduos leitores da menina contestadora, em maio de 1973,

Quino anuncia que já não consegue produzir tiras inéditas e originais como antes, e faz com

que seus personagens comecem a se despedir dos leitores nas vinhetas que acompanham as

tiras de 28 de maio, 4,11, 18 e 25 de junho. De acordo com o próprio autor muitas são razões

pra o seu fim, e dentre elas está o fato de que “(...) a los diez años de publicar Mafalda, yo

estaba harto de denunciar el desastre de las guerras y los males del capitalismo.” (RAMOS,

2010, p. 13).

Figura 20: vinheta publicada por Siete Días Ilustrados em 20 de maio de 1973

Fonte: QUINO. Mafalda Inédita. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1988, p. 104

27

Vinheta alude à desvalorização monetária de 20%, que gerou crises e aumento da inflação na Argentina nos

primeiros anos da década de 1970, registrando-se uma hiperinflação de 50% em 1975.

Page 65: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

65

Figura 21: vinheta publicada por Siete Días Ilustrados em 4 de junho de 1973

Fonte: QUINO. Mafalda Inédita. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1988, p. 104

2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina

O que era a classe média argentina na década de 1960? Quais elementos

corroboram para sua identidade de classe? Como ela surgiu e se consolidou? Muitos desses

questionamentos foram discutidos pelos intelectuais da época e pelos pesquisadores

argentinos na atualidade, mas pouco se consente sobre sua caracterização e formas de ação.

Estudos sociológicos da primeira metade do século XX apontavam para a importância do

processo de imigração europeia na concepção da identidade nacional argentina, visto que

tornou necessário o estabelecimento de uma cultura, educação, e conduta social unificada,

para não dizer homogênea. Nesse contexto, formou-se, também, um setor urbano, imerso no

processo de modernização iniciado no final do século XIX. Entretanto, algumas interpretações

mais recentes, como a de Ezequiel Adamovsky na obra Historia de la clase media argentina

(2009), defendem a ideia de que a classe média se consolidou somente no século XX, como

uma reação ao crescimento da classe trabalhadora na cena política.

Essa discussão se tornou cada vez mais controversa no solo argentino, justamente

porque questiona as ideias tradicionais defendidas pelas ciências sociais. Contudo, nesse

trabalho, o objetivo não é nos atermos ao debate sobre como surgiu e se consolidou a classe

média, mas sim às formas e características que ela assumiu na década de 1960 e 70, e como

ela é tratada por Mafalda. Parte-se do pressuposto de que essa classe é heterogênea, e que ao

mesmo tempo em que atinge o seu apogeu, possui uma identidade contraditória, participando

e influindo sobre os processos de legitimação dos golpes de Estado, da defesa do moralismo,

da radicalização dos jovens, e até mesmo, das redefinições dos valores familiares.

Como aponta Raymond Williams (1981, p. 23), muitos fenômenos sociais são

cristalizados por imagens e formas artísticas diretas, tornando-se capazes de iluminar as

Page 66: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

66

condições básicas (sociais e psicológicas) de uma sociedade, além de atuar diretamente sobre

ela. Dessa forma, existem imagens com capacidade para moldar o social e que são

insubstituíveis para compreendê-lo. Mafalda pertence à classe média, foi lida, discutida e

consumida principalmente por esse setor social; e assim como propõe o autor, operou sobre a

sociedade argentina, na medida em que “cristalizou” uma identidade de classe média (seja

pelo cenário, diálogos, vestimentas, comportamentos e ações dos personagens), que dialogava

e produzia práticas concretas que operaram em termos sociais, culturais e políticos. Quino,

enquanto integrante dessa classe média argentina, produziu e reproduziu elementos que

configuram a classe, colaborando, até mesmo de forma educativa, para a consolidação dessas

imagens, das noções de família, homem, mulher, infância, trabalho, economia e gostos, que

distinguiam a classe média das demais. E assim sendo, as discussões e significações sociais

que produziram a historieta, a converteram em uma excelente fonte para a compreensão de

como essa classe se via e era vista.

O cenário humorístico que acompanha o nascimento de Mafalda era denso e

permitiu que Quino encontrasse espaço para desenvolver sua capacidade intelectual e

artística. Desde 1957, sobre a direção de Landrú, Tía Vicenta publicava seus desenhos ao lado

de Oski, César Bruto, Copi e Caloi. Com imprensa de papel barato, esse tipo de humor crítico

e inovador passou a circular pelo país. Nesse contexto, era esperado que Quino, com Mafalda,

rapidamente se destacasse e passasse a dialogar com seu público e com a realidade que

atravessava a sociedade argentina, especialmente a classe média.

Quando surge Mafalda os periódicos eram cônscios da importância da classe

média enquanto público consumidor, leitor e propagador das informações e debates. Esse

setor já representava cerca de 30% da população argentina ainda em 1947. De acordo com

Susana Torrado (1992, p. 187-202), esse número havia crescido nas décadas seguintes junto

ao aumento de comerciantes, empregados administrativos, profissionais em nível técnico e

superior. Nos anos 1960, chegavam à fase adulta e ocupavam o mercado de trabalho os jovens

que haviam vivenciado a expansão do ensino secundário durante o governo peronista e, por

conseguinte, o aumento do ensino universitário nas décadas seguintes. Segundo dados do

Ministerio de Educación y Justicia Argentina, entre as décadas de 1950 e 60, o número de

estudantes inscritos em todos os níveis de ensino haviam duplicado em todo o país; e em

1961, um em cada dez jovens de 20 e 24 anos cursava estudos universitários ou superiores, e

em uma década depois essa proporção se duplicaria novamente. (COSSE, 2014, p. 40).

Page 67: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

67

Concomitantemente, cresceu o número de pessoas que trabalhavam em

comércios, escritórios, serviços públicos ou terceirizados. O desenvolvimentismo impulsiona

o fortalecimento da classe de homens e mulheres trabalhadores, que estavam condicionados a

um novo padrão de consumo, marcado pelo estilo de vida moderno, caracterizado pelos

produtos inovadores e campanhas publicitárias. É justamente para atingir essa classe média

que Quino fora contratado para produzir tiras que fizessem publicidade da companhia de

eletrodomésticos Mansfield; e assim, Mafalda esteve situada, desde sua origem, entre o meio

cultural, as estratégias de mercado, e a realidade social sobre a qual atuava.

Após o fracasso da campanha publicitária, a tira passou por uma série de

modificações, justamente para que houvesse adequação com a linha editorial e com o público

que Quino procurava atingir. Quando entra em Primera Plana, Quino alterou alguns detalhes

que deixaram sua composição mais moderna, como o desenho da casa e a mobília. Além

disso, o pai se estilizou, se tornou mais bondoso e moderno, e a família, que era composta por

dois filhos (um menino e uma menina), fica somente com a menina, único personagem que

teve poucas alterações em seus traços fisionômicos.

Quino, ao estabelecer seus personagens como integrantes da classe média,

assumiu o viés ideológico que conduziria os debates dos problemas abordados pela tira; mas

também se propôs a problematizar a própria identidade de classe, apresentando os problemas

que acompanham sua definição e consolidação enquanto classe social. Logo no início de sua

trajetória encontramos Mafalda imersa nesse debate, se descobrindo classe média, na medida

em que se compara e se enxerga na relação com os outros (figura 22). Num quadro sem

cenário vemos a personagem perguntar ao pai se eram ricos ou pobres, e ele lhe responde que

não eram nem um nem outro: “nosotros venimos a ser clase media”. Nesse momento, a

expressão facial da menina mostra seu desgosto, olhos arregalados e bocas que tremem

indicam um certo temor. Mas, após refletir sobre a resposta lhe dada, Mafalda se recompõe e

então lhe contesta: “Y decime... para ser clase media ¿vale la pena venir?”. Nesse momento, é

o pai quem assume a expressão de espanto enquanto termina de dar o nó na gravata e se

arrumar para o trabalho.

Page 68: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

68

Figura 22: Tira publicada por Primera Plana em 1 de dezembro de 1964.

Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de la Flor, 1993, p 543.

Figura 23: Tira publicada por Primera Plana em 8 de dezembro de 1964.

Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de la Flor, 1993, p 544.

Na tira acima (figura 23), publicada na mesma data, Mafalda aparece

inconformada com sua posição social. Era a primeira tira ambientada em um espaço urbano:

Mafalda e sua mãe andam pela calçada, na qual pode-se ver automóveis estacionados na rua.

Os traços do primeiro quadro, retos, simples e sem muitos detalhes, sugerem uma cidade

indistinta e uma sociedade massificada, visto que ninguém possui traços e rostos marcantes. A

menina, observando o cenário, pergunta por que não possuíam um automóvel, e sua mãe

responde que isso se devia ao fato de serem classe média; ou seja, evidencia ao leitor, a

impossibilidade de a classe média ascender economicamente, ao mesmo tempo em que era

marcada pelo desejo de atender aos padrões de consumo impostos pelas classes mais altas da

sociedade. Conforme os quadros avançam, Quino utiliza dos recursos de desenho para

dialogar e enfatizar essa ideia, afinal, ao passo que se evidencia a ideia de que a classe média

não pode alcançar e comprar o que deseja, os objetos e personagens ficam cada vez mais

distantes e irreconhecíveis. As partes dos rostos dos personagens, que aparecem no segundo e

Page 69: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

69

último quadros, indicam a movimentação da cena e nos faz sentir a presença de uma câmera

que conforme segue as protagonistas, passam pelas demais pessoas que caminham pela

calçada. Ainda, o fato de as pessoas não possuírem rostos permite a sensação de

reconhecimento e identificação com a situação por parte do leitor.

Quino se inspira em San Telmo, bairro onde mora, para representar o local

onde viviam Mafalda e seus amigos. As praças, ruas e escola que foram incorporados nas tiras

serviam para fundamentar a representação da classe média, bem como de sua identidade de

classe perante os outros setores sociais. Conforme discorre o autor, Mafalda se inseria no

meio aburguesado, progressista – que defende ideais como liberdade, melhoria do ensino

público, modernização e democracia –, o que lhe confere ainda mais popularidade na medida

em que as tiras compartilham pautas com os movimentos sociais e a ideologia dominante da

classe média argentina.

Ao longo do tempo em que publica a historieta, Quino foi inúmeras vezes

questionado, elogiado e arduamente criticado por adotar essa visão “clasemedeira” da

sociedade e a propagar através da tira. Moacy Cirne (1982), por exemplo, recrimina o

posicionamento de Quino, afirmando que Mafalda é uma tira progressista, na medida em que

ser progressista é próprio de uma pequena-burguesia que se quer esquerdista, que se enxerga

humanista e assimila mal o marxismo. Diante das críticas, Quino assegura que a voz de sua

personagem não deve ser confundida com a sua, visto que Mafalda é somente uma criação; e

ainda observa:

Eu venho de uma família estritamente de classe média, e essa experiência me

foi útil. Tem gente que critica a Mafalda e diz que ela é aburguesada. Mas eu

sou da opinião de que se deve descrever só o que se conhece. Não posso

transformar a Mafalda em proletária, porque é uma classe à qual não

pertenço. (QUINO, 2003, p. VII).

2.2.3 - Mafalda e Personagens

No decorrer dos anos a obra de Quino ultrapassou os olhares de Mafalda, nos

apresentando a heterogeneidade como marco da classe média argentina, com valores e

ideologias contraditórios. Novos personagens foram inseridos na historieta, contribuindo para

o enriquecimento da temática, dos diálogos e da própria complexidade da história. Ademais,

ao passo que novos personagens adentravam nas tiras, o desenho de Quino também se

aprimorou. Se tomarmos como base as primeiras tiras de Mafalda (figura 24) e as

Page 70: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

70

compararmos com as produzidas já na revista Siete Días (figura 25), fica evidente que o autor

desenvolveu desenhos mais precisos, com mais detalhes de fundo, noções de profundidade e

até mesmo enquadramento das cenas. Os novos quadros consideravam alturas dos

personagens, bem como os ângulos de visões. Até mesmo o cenário das ruas ganharam mais

precisão, aparecendo sinaleiros de trânsito, sombras de edifícios, e outros personagens que

incorporavam a cena, como trabalhadores andando pela rua e idosos sentados na praça. 28

Figura 24: Tira publicada por El Mundo em 21 de maio de 1965

Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p. 559

Figura 25: Tira publicada por Siete Días (1970)

Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p. 385.

Tendo isso em vista, para melhor compreendermos as relações dos personagens

dentro da tira e o modo como proporcionaram a complexificação da mesma, é fundamental a

apresentação individual dos amigos e familiares de Mafalda:

28

Sobre mais detalhes acerca da aprimoração de desenho de Quino, consultar: COSSE, Isabella. Mafalda:

historia social y política. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2014.

Page 71: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

71

A. MAFALDA

Conforme apontado anteriormente, sua primeira aparição foi em 29 de setembro

de 1964. Seu sobrenome nunca fora mencionado. Seus pensamentos e inconformismos

refletem as preocupações sociais e políticas dos anos 60. Ela é filha de uma típica família de

classe média argentina, composta pelo pai, a mãe e o irmão Guille; além disso, sabemos que

possui pelo menos uma avó, a quem envia um cartão de natal.

Mafalda dialoga com a juventude da época também em termos gráficos: o

desenho de seu corpo era desproporcional, não sendo nem de criança nem de adulto; sua

cabeça arredondada e grande, fazia alusão à capacidade intelectual da personagem. Ademais,

nossa protagonista possuía características andrógenas, visto que seu contorno, expressões de

desgosto e ironias remetiam às características consideradas masculinas na época, contrariando

a forma suave e doce como as mulheres representadas.

As grandes admirações de Mafalda são The Beatles, a paz, os Direitos Humanos e

a democracia. Constantemente se preocupa com a situação mundial e está frequentemente se

atualizando através do rádio, como vemos na tira abaixo.

Figura 26: Tira publicada pelo jornal El Mundo

Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p. 145.

Na imagem acima nos deparamos com a personagem e posicionando para matar

um mosquito que pousa na parede de sua casa. Ela coloca um rádio perto do inseto e com a

outra mão segura uma lata com veneno em spray. No segundo quadro, com o rádio ligado,

ouvimos o noticiário sobre o aumento da reserva de armas nucleares, e outros problemas

sociais como a fome e a violência. Após as notícias trágicas, a menina mata o inseto,

acreditando que a mosca não se lamentará de morrer e deixar um mundo tão ruim. A tira, ao

mesmo tempo em que denuncia os problemas mundiais e traz uma criança se preocupando

com eles a ponto de acreditar serem suficientes para amenizar uma morte, apresenta o lado

Page 72: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

72

doce e inocente da menina, que não quis simplesmente matar a mosca, mas minimizar seu

sofrimento.

B – RAQUEL

Dona de casa, mãe e esposa em tempo integral, Raquel representa o ideal de

mulher doméstica e maternal, construído desde as primeiras décadas do século XX, pelas

políticas e discursos da elite intelectual, do Estado e da Igreja. (COSSE, 2014, p. 48)

Contudo, esse modelo que por décadas havia sido símbolo de prosperidade familiar, agora

encontrava-se em cheque e em acelerada alteração. De acordo com o Censo Nacional

argentino de 1970, o trabalho feminino cresceu cerca de oito por cento a partir da metade do

século. A mudança na posição da mulher também se refletia em sua presença no sistema

educativo, uma vez que mais de dois terços das jovens de 20 a 24 anos haviam alcançado a

educação secundária e quase metade o nível universitário ou superior (Ibidem). Diante das

transformações, passou-se a valorizar a mulher moderna, independente, que, associada às

novas gerações, possuía prestigio social e cultural. Exemplo disso, vemos em revistas como

Primeira Plana, que exaltavam as imagens de mulheres jovens batalhando por melhores

posições na sociedade e participação na política do país.

Quino, ao caracterizar Raquel com os elementos do modelo feminino

anteriormente consolidado, incorpora na trama da tira as tensões geracionais existentes, bem

como as questões de gênero debatidas nas décadas de 1960 e 70. A mãe da “menina

intelectualizada” era constante alvo de crítica da filha, e se encontrava desamparada diante

dos comentários e desafios de Mafalda. Na tira abaixo, por exemplo, vemos a protagonista

descobrindo que a mãe havia abandonado o estudo, principalmente porque se casara e passara

a se dedicar à vida doméstica.

Figura 27: Tira publicada por Primera Plana em 10 de novembro de 1964.

Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p. 542.

Page 73: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

73

No primeiro quadro, enquanto a menina questiona a mãe sobre sua escolha de

largar a faculdade, Raquel se encontra sentada em um banco, levemente inclinada para frente

costurando, com os óculos sobre o nariz, olha concentrada para o bordado, enquanto apresenta

um leve sorriso nos lábios. Nos próximos quadros Mafalda ganha feições de felicidade e até

mesmo se exalta enquanto conclui que se a mãe não tivesse se casado, teria uma carreira, teria

um título, “serias ALGUIEN”. Os lábios de Raquel somem, ela assume uma posição mais

ereta e rígida, levando a cabeça para cima. Por fim, no último quadro, seus lábios se abrem e

sua cabeça inclinada é cercada por gotas que saem de seus olhos, que somadas a onomatopeia

“Uuaa” nos permitem inferir seu choro. Dessa maneira, ao se deparar com a perspectiva de

futuro exibida pela filha, a mãe se desespera e começa a chorar, deixando Mafalda com cara

de espanto ao perceber que sua inconformidade diante da situação da mãe, também era algo

que a acometia.

C. PELICARPO

Enquanto sua mulher cuidava da casa e dos filhos, o pai de Mafalda representava

o provedor moderno, um funcionário de escritório, caseiro, que cuidava de plantas nas horas

livres. Trabalhava em um escritório, no qual se ocupava com livros de contabilidade. Ganhava

um salário suficiente para cobrir as despesas da família, mas constantemente se encontrava

desesperado com as contas a pagar. Pelicarpo, além de profissional padrão, serviu para que

Quino trouxesse para a tira os debates acerca da infância e paternidade que estavam em pauta

nas grandes discussões, meios de comunicação e literatura do momento.

Conforme aponta Cosse (2014, p. 52), na década de 1960 o modelo de pai

desejado conflitava com o executivo glamouroso, dedicado exclusivamente ao trabalho, sem

tempo para sua família; e Pelicarpo representa essa contradição, a distância entre os homens

“bem sucedidos” e os pais modernos, voltados para as necessidades de seus filhos. O humor

de Quino supunha uma relação de empatia, na medida em que o leitor reconhecia em

Pelicarpo as dificuldades de lidar com a nova geração de crianças, com os problemas

financeiros e com a subordinação no trabalho. Enfim, os homens argentinos de classe média

se encontravam em uma mesma posição social e cultural que o pai de Mafalda. Dessa forma,

adequando-se às novas tendências, Pelicarpo sofreu algumas alterações desde o início de sua

produção. Seus momentos de raiva e indignação se transformaram em medos e embaraços.

Diante dos posicionamentos de Mafalda, ele ficava mudo e desconcertado, não sendo capaz

de respondê-la quando esta lhe fazia perguntas ou comentários sobre os problemas do mundo.

Page 74: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

74

De acordo com Andrew Graham-Yooll (1967, p. 8) a historieta continha uma

representação verossímil de uma família “tipo”, que operava sobre a hegemonia normativa da

família doméstica, nuclear, afetiva, reduzida, e com a divisão entre o pai provedor e a mãe

dona de casa. No entanto, diferentemente de outras representações familiares do momento, a

tira problematizou esse modelo desde o princípio, apontando, por exemplo a frustração de

ambos os pais com suas funções sociais e a condição de vida; além de refletir acerca do papel

das mulheres e homens, pais e mães a partir dos diálogos que Mafalda estabelece. Em muitas

tiras, por exemplo, observamos Pelicarpo frustrado com o seu trabalho, ao passo que vemos

Raquel infeliz com as tarefas domésticas, cansada e sem o devido reconhecimento da

importância de sua função de dona de casa. Abaixo temos uma tira que exemplifica essa

situação.

Figura 28: Tira publicada por El Mundo

Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p. 57.

No primeiro quadro vemos um fundo distorcido, de pessoas sem muita forma,

dando um foco para Pelicarpo, que caminha de volta para casa após um dia de trabalho. Ele

anda curvado e com passos pesados, evidenciando o seu cansaço e insatisfação. Para reforçar

o que a imagem já nos informa, o personagem desabafa sobre seu dia ter sido “maldito! Con

el malhumor del jefe y ese condenado balance”. Mas, ao chegar ao destino, no segundo

quadro, ele se anima. Sua postura já ereta, com menos cansaço em sua face agradece por estar

finalmente em casa, onde se “olvida del mundo!”. Sua filha, contudo, representando todas as

exigências do mundo moderno, lhe revela que passara o dia a espera-lo para questionar sobre

a Guerra do Vietnã. Sua mulher, como se espera de uma boa esposa, o recebe com beijos e

abraços, mas não é suficiente para retirar a expressão de desespero de seu rosto exausto.

No último quadro, enfim, aparece um elemento surpresa, provocador das

gargalhadas: o pai não aguentou diante de tantas obrigações, e sua esposa precisou ir a

Page 75: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

75

farmácia comprar um “Nervo Calm” para poder tranquilizar o marido. O cenário da farmácia,

a placa da propaganda do remédio, bem com a expressão tranquila no rosto do farmacêutico,

ainda podem nos contar que os picos de estresse se tornavam cada vez mais comuns naquela

sociedade.

Destarte, as relações de Mafalda com seus pais eram marcadas pelo conflito das

novas gerações que contestavam o mundo político e cultural dos adultos. A tira oferecia ao

leitor uma representação dos anseios e contradições geradas pela modernização como

programa e processo histórico, que afetavam principalmente a classe média argentina. Diante

desse contexto,

Quino trabajó sobre las contradicciones abiertas por esas mutaciones

socioculturales que habían forjado a la clase media y que, al mismo tiempo,

la estaban atravesando. Lo central es que, en vez de una visión ascendente y

exitosa, Mafalda – la niña/joven – desenmascaraba as frustraciones, las

dificultades – cuando no directmente las imposibilidades – que ese proceso

de modernización sociocultural imponía a los varones e mujeres de clase

media: las limitaciones de los provedores, las frustaciones de las madres y

amas de casa, las impugnaciones de las nuevas geraciones al orden familiar.

(COSSE, 2014, p. 52-3).

D. FELIPE

A primeira aparição de Felipe aconteceu em 19 de janeiro de 1965 quando já tinha

8 anos, sendo dois anos mais velhos do que Mafalda. De acordo com o próprio desenhista, a

fisionomia do personagem era inspirada em seu amigo Jorge Timossi. Vizinho de Mafalda,

Felipe é um menino sonhador, tímido e preguiçoso. Adora historias em quadrinhos e seu herói

favorito é o Cavaleiro Solitário. Odeia a escola e o fato de ter de fazer tarefas de casa. É muito

parecido com sua mãe, mas seu pai nunca apareceu nas tiras. É o personagem do qual se

conhece menos detalhes. Quando entrevistado por Jorge Coscia, no programa Puerto Cultura,

Quino revela que de todos os personagens, é com Felipe que mais se identifica:

Jorge Coscia: ¿Hay muchas cosas de Mafalda que vienes de vós? ¿Algún de

los personajes varones, por ejemplo?

- Quino: Sí, Felipe sí. La timidez y las dificultades en colegio. El tener

miedo de no responder a maestra como se debe. Todo esto es autobiográfico.

Jorge Coscia: ¿Y de Mafalda hay algo?

- Quino: No. Mafalda en realidad es la personaje más fabricada de todos

porque yo no pensaba ser una historieta. Fue un encargo de una campaña de

publicidad. (PUERTO CULTURA, 2012)29

29

Vídeo de entrevista realizada no programa Puerto Cultura. O programa é um ciclo semanal de entrevistas

conduzidas por Jorge Coscia, com a participação de referências da cultura, do pensamento, das artes, dos direitos

humanos, da ciência, entre outros. Vídeo disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=O7Fh65hW0tY>.

Page 76: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

76

Na tira abaixo vemos Felipe meio sentado-meio deitado em uma cadeira. Com

postura solta e os olhos fechados ele reflete sobre precisar fazer a tarefa de casa. O fato de

Quino ter utilizado um balão de pensamento ao invés de um de fala - somado à sua expressão

de sonolência - corrobora para a construção do personagem como alguém preguiçoso, uma

vez que ele não se move nem para dizer o que pensa ou travar uma espécie de conversa com o

leitor - o que aconteceria se fosse Mafalda quem estivesse tendo algum tipo de reflexão. Por

fim, após muitos quadros repetidos, que enfatizam a sua pouca vontade de realizar as tarefas,

ele decide ceder à sua vontade e permanece em posição de descanso.

Figura 29: tira publicada pelo jornal El Mundo

Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p. 485

E. MANOLITO

Manuel Goreiro aparece em 29 de março de 1965. Como Mafalda possui seis

anos de idade, e pode ser caracterizado como ambicioso e materialista, representando o

espírito capitalista do pequeno comerciante. O personagem foi inspirado no pai de Julián

Delgado, proprietário de uma padaria situada na esquina da rua Cochabamba com a rua

Defensa, em San Telmo. É um admirador de Rockfeller, odeia hippies e The Beatles. O pai é

dono de um armazém, no qual o menino trabalha, e do qual faz enorme propaganda. A família

é completada pelo seu irmão que aparece uma única vez quando termina seu serviço militar e

volta para casa.

Manolito retomava a figura do “galego bruto”, ao qual se atribuíam os

estereótipos denegratórios e os temores sociais devido ao contingente de imigrantes que

chegaram em Buenos Aires e contribuíram para a transformação da sociedade argentina. O

personagem estava caracterizado com os objetos e pensamentos do mundo empresarial, seja

pela calculadora e campanhas publicitárias que realizava pelo bairro. Como descreve a revista

Page 77: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

77

Dinamis em 1969, “(...) el personaje era el tenaz hijo del almacenero del barrio negado a todo

lo que no sea un éxito comercial, que sueña com una gran cadena de supermercados” (p. 63).

Figura 30: tira publicada pelo jornal El Mundo

Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p. 85.

Na tira acima encontramos Manolito oferecendo uma bala de caramelo para

Mafalda. Ela aceita e agradece. Os dois se encontram na calçada, provavelmente andavam ou

brincavam perto de suas casas. No segundo quadro, Mafalda aprecia a bala, com expressões e

onomatopeias de prazer, mas Manolito revela sua real intenção: a bala é uma “atención del

almacén de mi papa”, uma forma de fazer propaganda de seus produtos. No terceiro quadro,

ao escutar o amigo, a menina se enfurece, cospe a bala no chão e o acusa de ser interesseiro.

As letras do balão aumentam e ganham destaque de cor, o que, somado a sua postura rígida e

expressão de raiva, fortalece a acusação feita pelo discurso. Por fim, Manolito, já sozinho em

cena (fica subentendido que a amiga o abandona diante da situação) anuncia que o “interés”

que Mafalda acusa é na verdade uma tática comercial, utilizada pelas relações públicas de

uma empresa. Sua postura de mão impositiva e boca aberta revelam que além de estar

gritando para ela, está na defesa de suas ideias voltadas para o negócio.

F. SUSANITA

Susana Beatriz Chirusi aparece pela primeira vez em 6 de junho de 1965. Tem a

mesma idade de Mafalda, mas é o oposto da amiga. É famosa por ser fofoqueira e briguenta,

uma vez que implica com Manolito, ofendendo-o sempre que o encontra. É extremamente

egoísta e possui visão de mundo baseada no individualismo que representa tudo aquilo que

Mafalda questiona no comportamento humano. Seu sonho é ser mãe e dona de casa, e assim,

a personagem representa a geração de mulheres que reproduzem e vivem a lógica

conservadora da sociedade.

Page 78: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

78

Além das diferenças de interesses, valores e ideologia, Susanita também se difere

na composição fisionômica do desenho. Ela é menos quadrada, com ares femininos, com

penteados mais elaborados e brincos, sempre com uma boneca nos braços, diferenciando-se

de Mafalda. Sobre a personagem, a revista Dinamis também a descreve como doméstica,

“envidiosa, amante de la chismografia, cuya única ambición es ‘casarse y tener hijitos’,

reaccionaria vocacional, su aspiración mayor representa arribar a la más absoluta

mediocridad.” (DINAMIS, 1969, p. 69).

Na tira abaixo podemos visualizar um dos grandes confrontos de ideais entre as

duas personagens.

Figura 31: tira publicada pelo jornal El Mundo

Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p. 151

No primeiro quadro, as meninas caminham pela calçada e se deparam com um

homem cujas vestes sujas, rasgadas e a sacola ao lado no chão, nos fazem inferir que é um

morador de rua. Ao ver a cena, Mafalda se entristece, curva a postura, olha para o chão, como

que envergonhada pela situação de seu país, e desabafa que lhe parte a alma ver gente pobre.

No mesmo quadro, Susanita não demostra as preocupações da amiga, sua postura se mantem

ereta e ela caminha na frente. Mafalda, ainda em seu momento de reflexão, levanta o corpo e

o dedo indicador para compartilhar sua ideia de como proteger e garantir o bem estar dos

pobres. Susanita, por sua vez, para de caminhar diante da solução apontada por Mafalda, e,

com uma expressão confusa, não entende porque o plano de Mafalda é tão elaborado e

trabalhoso, se “bastarias con esconderlos”. Essa tira reflete a postura de um setor conservador

da classe média criticada por ser indiferente diante das desigualdades sociais.

Page 79: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

79

G. MIGUELITO

Miguel Pitti aparece pela primeira vez no primeiros meses de 1966. É mais novo

que os personagens anteriores e pode ser caracterizado como um sonhador. É muito inocente e

está constantemente refletindo sobre questões consideradas abstratas e, muitas vezes, confusas

pelos outros personagens da tira. O avô é fascista, defensor de Mussolini, seus pais não

aparecem, mas sabemos de suas existências pelas vozes autoritárias em alguns quadrinhos.

Ele mantém uma relação harmônica com os demais personagens.

Em muitas tiras aparece refletindo sobre questões existenciais, sobre para onde

vamos quando morremos, como nascemos, entre outras dúvidas que acometem as crianças

acerca da vida adulta:

Figura 32: tira publicada pelo jornal El Mundo

Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p. 488

Na tirinha acima o vemos pensando, sentado na calçada encolhido, enquanto

Mafalda lê o jornal. No segundo quadro, expõe para o leitor sua linha de pensamento. Suas

mãos caem ao lado do corpo e seu rosto assume um misto de certeza e confusão: ele sabe que

as pessoas trabalham para ganhar a vida, mas no fundo não compreende o sentido disso, sendo

que enquanto trabalham, na verdade, elas desperdiçam suas vidas. No terceiro quadro ele, por

fim, questiona a amiga sobre o assunto. Mafalda dobra o jornal, e com olhos pensativos e

expressão séria no rosto, também reflete a situação.

H. GUILLE

Irmão de Mafalda, inspirado no sobrinho de Quino, aparece pela primeira vez em

2 de junho de 1968. Nas últimas tiras em El Mundo, Raquel estava grávida, e ao chegar em

Siete Días, Quino apresenta o personagem. Enquanto sua irmã representava a juventude

contestatória da década de 1960, Guille encarnou a nova geração dos anos 1970, ainda mais

radicalizada, impulsionada pelos movimentos de 1968 que aconteciam ao redor do mundo.

Page 80: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

80

A tira abaixo, diferente do costume, se apresenta em um quadro só. Com cenário

estilizado, nos mostra o interior da casa de Mafalda, com as paredes todas rabiscadas com os

desenhos produzidos por Guille. Nosso olhar se inicia no canto esquerdo do quadro e

conforme visualizamos os desenhos, nos deparamos com Raquel, embasbacada, paralisada

diante da cena. Os olhos arregalados e as mãos paradas junto ao corpo nos passam a sensação

de impotência e incredulidade diante do filho e do fato. O menino, fingindo uma inocência

que não lhe corresponde, tenta minimizar a situação dizendo ser incrível tudo o que tem

dentro de um lápis, como se este instrumento de desenho fosse o culpado pelos rabiscos na

parede e chão da casa.

Figura 33: tira publicada pelo jornal El Mundo

Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p. 477

I. LIBERTAD

Em 16 de fevereiro de 1970, aparece Libertad, com idade e sobrenome

desconhecidos. Muitos a encaram como uma Mafalda em miniatura, visto que ela também é

contestadora; porém, muito menos tolerante. Possui um posicionamento político de esquerda,

valorizando a cultura, as lutas sociais e as revoluções. A menina tinha uma estatura muito

pequena, o que aludia ao tamanho da liberdade vivida pelos argentinos num momento

ditatorial, podendo representar, inclusive os ideais de prisioneiros políticos e movimentos de

oposição.

Sua mãe, muito jovem representava o grupo de mulheres universitárias e

intelectuais. Diferente da mãe de Mafalda e Susanita, ela trabalhava e traduzia Sartre. O pai

de Libertad nunca apareceu, mas sabe-se que é socialista sem filiação partidária. Nesse

contexto familiar, era de se esperar que a menina adotasse uma postura mais radical diante

dos conflitos políticos argentinos e mundiais. Na tira abaixo vemos Mafalda na casa de

Libertad, que avisa a mãe sobre o fato de a amiga ter vindo brincar com ela.

Page 81: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

81

Figura 34: tira publicada pelo Siete Días

Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p. 383

O cenário é bem detalhado, com muitos livros em estantes, almofadas e móveis

que sugerem um ambiente alternativo. A despeito de seu tamanho, ao falar com a mãe,

Libertad grita com letras grandes e em negrito, o que nos faz imaginar que sua mãe estava em

algum cômodo longe das meninas. O segundo quadro nos mostra a resposta da mãe, que é

escrita com letras repetidas e pequenas, aumentando a sensação de distância entre as

personagens. No entanto, no último quadro, descobrimos que a mãe está no mesmo ambiente,

atrás de um armário, fumando e trabalhando em sua máquina de escrever. Em cima de sua

cama se encontram livros e papéis que ela utiliza em seu trabalho como tradutora. O humor da

tira se faz na identificação do leitor com a moradia pequena, e na contradição entre o modo de

falar da mãe e filha, e o tamanho do apartamento.

Dessa maneira, a partir da análise do tipo de humor, contexto de produção e

criação das tiras, e da composição heterogênea dos personagens, é possível melhor

compreender as representações em Mafalda. Para além da classe média, sua capacidade de

atuar na sociedade argentina a torna uma fonte para refletirmos sobre outros temas daquele

país. A educação é um desses temas, bem como o processo de consolidação das escolas, da

estética e das perspectivas e interpretações que a cercam.

Page 82: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

82

Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

Page 83: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

83

A personagem Mafalda nos permite apresentar, através do humor e da criticidade,

um conjunto de temas polêmicos que fez parte do cotidiano dos argentinos nos anos 1960 e

70. O período que abarca sua produção também representa um momento de transição na

sociedade e, por consequência, na História da Educação argentina, no qual intelectuais e

pesquisadores se debruçaram sobre o tema e consolidaram a área como campo científico,

ampliando problemáticas e formas de abordagem, intensificando os “(...) estudios de historia

de las ideias pedagógicas y de las relaciones en el interior de las instituiciones educativas”.

(ASCOLANI, 1999, p. 18).

A História da Educação argentina surge, fundamentalmente, no início do século

XX, ligada aos meios acadêmicos. De acordo com Ascolani (2001, p. 208), desde sua

formação, o campo tem se constituído em um corpo de saberes associado à formação do

magistério e à criação das instituições de ensino. Contudo, desde a década de 1960, novas

configurações vêm se delimitando e demarcando seu espaço tanto na sociedade comum

quanto nas universidades, haja visto o aumento dos debates e demandas acerca dos contextos

político, social e econômico, e a relação da educação com os mesmos. Nessa direção, muitos

autores se debruçaram diante da temática e diversas obras foram produzidas no intuito de

problematizar a educação argentina, mas também de explanar e sistematizar seu

desenvolvimento. Até os anos 1970, a História da Educação tinha com objeto as ideias

pedagógicas, as instituições e legislação educativas; todavia, nas últimas décadas, as

pesquisas sobre o tema voltam-se à história da educação numa perspectiva ampliada acerca de

seus objetos e produtos.

Em sua obra, Quino representa a educação argentina de inúmeras formas, nos

possibilitando compreender como eram as práticas pedagógicas, o processo de alfabetização e

os objetivos do sistema educacional. A personagem Mafalda é uma menina de seis anos, que

frequenta o Jardim de Infância e depois o Ensino Fundamental, e por ser contestadora e

atrevida, dotada de opiniões e questionamentos desconcertantes sobre o que a cerca, indaga

sobre o formato da educação na Argentina, sobre a forma como a professora se porta em sala,

e até mesmo sobre a finalidade do conteúdo ensinado. Nesse sentido, esse capítulo pretende

discutir sobre as percepções acerca do sistema educacional na Argentina, até a década de

1970, quando Mafalda deixa de ser produzida, visto que transcorrer sobre alguns aspectos da

educação do país colabora para uma melhor compreensão das referências que os personagens

realizam à respeito da escola.

Page 84: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

84

3.1 – Educação na Argentina: um panorama

A história da educação é tema de debates e produções científicas desde o final

do século XIX, quando se consolidou o sistema escolar moderno. Através de livros, folhetos,

revistas e manuais escolares, muitos autores se debruçaram sobre a tarefa de contar e recontar

o processo de construção da educação argentina. Entretanto, como aponta Pineau (2010), em

sua maioria, esses trabalhos foram escritos por intelectuais que se afeiçoavam às decisões

estatais e se consideravam parte do projeto civilizador, não discutindo e apresentando críticas

às propostas escolares impulsionadas pelo Estado; frisando assim, a importância da escola e

escrevendo sua história por uma perspectiva evolutiva, como agente e produto do progresso.

Destarte, foram elaboradas versões da história da educação “(...) acontecimental y descriptiva,

limitada a lo político-institucional, que presentaba un relato laudatorio de los desarrollos en

forma acumulativa” (p. 11).

Dessa maneira, as versões mais tradicionais sobre a história da educação

argentina, partem do período colonial apresentando a escolarização como algo natural e

intrínseco nas sociedades. De acordo com autores como Rúben Cucuzza (2004), durante o

período colonial as missões jesuíticas espanholas já defendiam a necessidade de educar os

indígenas locais, uma vez que – além do angariamento de fiéis – os índios eram vistos como

almas ignorantes, seres que necessitavam de uma educação civilizatória. Além da educação

dos nativos, os espanhóis também se preocupavam com a formação dos europeus povoadores

do Novo Mundo e, a partir de 1503, iniciam a elaboração de projetos educacionais na colônia,

garantindo a criação de casas de ensino, dirigidas por sacerdotes, destinadas à instrução da

leitura e escrita, bem como da doutrina cristã. Ainda, segundo o autor, essa aprendizagem era

limitada às elites brancas, e estava estreitamente vinculada à catequização e memorização.

Assim, conforme a sociedade colonial se desenvolve, surgem as escolas e consolida-se a

proposta educacional idealizada pela Igreja Católica e voltada para a classe dominante30

.

A autora Adriana Puiggrós (1997), também ressalta a importância das escolas na

história nacional, apontando que no século XVIII, a inspiração dos pensadores iluministas

passou a influenciar e atemorizar os colégios da colônia. Nesse momento a educação era

sustentada pela Igreja e pela família, encarregados de transmitir os saberes para os mais

jovens, visto que a escola era inacessível à maior parte da população. Contudo, na disputa

30

Conforme discorre Adriana Puigrrós (1997, p. 34), nas últimas décadas do século XVII, aconteceram reformas

educativas e se multiplicaram os estabelecimentos de ensino, formando-se diferentes tipos de escolas: Escuelas

pias, Escuelas de los conventos, Escuelas de los ayuntamientos, Escuelas del rey, e Escuelas particulares.

Page 85: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

85

pela manutenção da hegemonia, algumas reformas se estabeleceram no campo educacional,

cujas medidas decorreram no aumento dos estabelecimentos de ensino, na proposição de

ensino público e das instituições voltadas à preparação para o trabalho, na diversificação dos

conteúdos ministrados pelas escolas e universidades latino-americanas, que passaram a

incorporar cursos de Economia, Ciências Exatas, Físicas e Naturais, Desenho, e Línguas (p.

36).

Nos argumentos desta autora, apesar dos esforços de conter os avanços do

liberalismo e do capitalismo, a sociedade colonial rechaçava sua condição de dependência e

submissão aos interesses metropolitanos. As ideias ilustradas se difundiram na América e no

século XIX, ao passo que a Independência nacional era conquistada, a burguesia se

consolidava como classe dominante, preocupando-se com a implantação de sua concepção

cultural, social, política e econômica em toda a sociedade argentina. Mais uma vez a educação

era vista como forma de controlar e promover a incorporação dos valores e modos de vida,

agora burgueses. Para a consolidação desse projeto, inúmeras correntes pedagógicas europeias

foram importadas e combinadas às instituições educativas coloniais já existentes no país. As

grandes províncias do período – Córdoba, Corrientes, Mendoza, San Juan, Tucumán e Salta –

criaram escolas elementares; e na capital, surge também, a Universidad de Buenos Aires, em

1820.

Ainda, o cenário nacional se mostrava conturbado e somado a ele existia uma

grande quantidade de imigrantes que foram para o país em busca de emprego e melhores

condições de vida. Esse novo setor social também precisava ser incorporado à sociedade, e

assim, em 1884 criou-se a Lei de Educação Comum nº 1420, que garantia a educação

obrigatória, laica e gratuita; e cujo principal objetivo era consolidar a unidade nacional a partir

da homogeneização dos estudantes. Nesse momento a educação deixa de pertencer à Igreja e

às famílias, se tornando uma tarefa do Estado, e parte de um projeto nacional. Ao passo que a

obrigatoriedade do ensino visava à integração da maior parte dos habitantes no sistema

educacional argentino, a escola se institucionalizava como espaço físico educativo, e o modo

de transmissão dos conhecimentos também se adequava ao propósito do Estado. Contando

com conhecimentos fragmentados e descontextualizados, a escola ensinava História como um

relato épico da consolidação da Nação, e Geografia a partir da imagem de um território

nacional unificado, delimitado naturalmente (PUIGGRÓS, 1997, p.31).

Nas últimas décadas, iniciou-se então o processo de revisão dessa historiografia, e

os novos trabalhos questionaram as leituras teleológicas, marcadas pela explicitação do

Page 86: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

86

processo educacional, assinalando os limites dessas concepções e propondo fortalecer os

estudos sobre educação através do “(...) diálogo con otras ciencias y teorías sociales como la

economía, la sociología, la planificación social y la teoría del desarrollo.” (PINEAU, 2010,

p.20). Dessa forma, os novos olhares para a escola e as práticas escolares se voltam para a

(...) “desnaturalización” de las condiciones en las que se desenvuelve el

fenómeno educativo, eliminando de nuestro vocabulario y análisis términos

como “obvio”, “esperable”, “lógico”, “natural”, “única posibilidad”,

“siempre fue así”. Por el contrario, advierten sobre la necesidad de

comprender las temáticas sociales y educativas no como situaciones

inevitables de origen espontáneo, sino como procesos enmarcados en

temporalidades que den cuenta de su artifi cialidad, contingencia y

arbitrariedad. Esto es, se precisa pensarlos “historicamente”, entender cómo

han ido variando a lo largo del tiempo y se han ido modificando, analizar sus

diacronías y sincronías, y establecer comparaciones entre ellos. (PINEAU,

2010, p. 23)

Dentro dessa perspectiva, Sandra Carli (2006) também adverte sobre a “mirada

homogeneizante” da historiografia argentina, apontado para a necessidade de se pensar as

práticas pedagógicas e a infância pelo prisma das mutações e diversificações das experiências

das crianças dentro e fora da escola. A partir dos anos 1960 – mesma época de Mafalda – o

estudo da infância adquiriu uma conotação mais ampla, que a despeito do tradicional olhar

para a criança como um ser passivo e inacabado, volta-se à singularidade da criança,

analisando suas articulações com contexto histórico-cultural, a fim de produzir um debate

crítico e confrontar o caráter supostamente natural e inerente da infância. E desse modo, as

novas propostas pensam a infância como “el resultado de un entramado de discursos,

prácticas, imágenes. (...) exploran distintos caminos, objetos y momentos históricos. Esa

historización pone en juego a los niños como invención, como experiencia y como memoria.”

(Ibidem, p.2).

Mafalda se insere nesse contexto de efervescência e transformação das práticas e

modos de pensar a educação. Suas representações acerca do ambiente e formato escolar

tendem a apresentar uma articulação entre as novas propostas acerca da infância e a

tradicional estética dominante da relação entre alunos e professores. De todo modo, na medida

em que aborda às temáticas contemporâneas, Quino corrobora para a construção de uma

infância que se distancia das gerações anteriores, mas que valoriza e entende como necessária

a escola. Assim, Mafalda enquanto criança é portadora das expectativas dos argentinos e de

suas construções acerca do processo de ensino, e nesse contexto, a representação escolar na

tira remete ao fato de que a ideia de infância na Argentina está atrelada à escola, sendo

esperado que as crianças da década de 1960 estivessem nesse espaço; e Quino, por sua vez, ao

Page 87: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

87

optar por esse discurso narrativo, na medida em que demonstra a sua preocupação com a

verossimilhança, sustenta a construção da escola como espaço infantil.

Pablo Pineau (2012), em seu texto ¿Por qué triunfó la escuela?, parte desse

panorama histórico – que discorre sobre e fortalecimento das instituições e práticas de ensino

como naturais e desejáveis para o progresso e a civilização – para questionar a ideia da escola

como espaço educativo único e genuíno; e ao discorrer sobre a consolidação da escola

moderna no século XIX, critica o modelo mostrando os aspectos coercitivos e estatizantes por

muito tempo defendido e propagado pelo Estado. A escola tradicional era marcada

principalmente pela uniformização dos alunos, a assimetria das relações professor-aluno, o

uso de mecanismos disciplinares, e métodos avaliativos. Se exigia silêncio, formação de filas,

além do controle dos corpos.

O espaço educativo se transformava em um meio de se garantir a igualdade e a

inclusão da população argentina. A fim de promover uma identidade comum que garantisse a

liberdade e a prosperidade geral, se buscava equiparar, nivelar todos os cidadãos, através de

uma mesma linguagem, mesmos ensinamentos e imersões culturais. Entretanto, essa pretensão

igualadora adotada pelo governo e imposta pela escola, também foi responsável pela exclusão

de tudo e todos que estivessem fora do processo de homogeneização; e assim, a escola

argentina, visando a igualação dos seus alunos “a la vez que generaba corrimentos para

igualar – construía parámetros acerca de lo deseable y lo correcto” (SOUTHEWELL, 2004,

s/p.) .

As preocupações pedagógicas do momento abarcavam a profissionalização

docente e a criação de um sistema de ensino próprio, com regulamentações voltadas ao

estabelecimento de horários, atividades diárias, higiene e cultura material das escolas. O

espaço escolar deveria ser arejado, e o mobiliário escolar composto por bancos e cadernos que

condissessem com o bem estar dos alunos, com sua saúde e postura. Além disso, a disciplina

foi um elemento central dentro dessa concepção educativa. Os professores deveriam criar

estratégias de ensino e manutenção da ordem, garantindo a internalização das normas e

valores da nação (ARATA, 2013, p.108).

Nos primeiros anos do século XX, ocorre a difusão da escolarização, que além

de contribuir para a efetivação do projeto nacional, consolidou a “escuela tradicional” que,

como discorre Pineau (2013, p. 22), era uma aposta política e cultural, criada para ser uma

“máquina de educar”, capaz de moldar e aculturar as grandes massas da população. Ainda, de

acordo com o autor:

Page 88: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

88

La escuela es un dispositivo de geración de ciudadanos (...). La escuela es a

la vez una conquista social y un aparato de inculcación ideológica de las

clases dominantes que implico tanto la dependencia como la alfaetización

masiva, la expansión de los derechos y la entronización de la meritocracia, la

construcción de las naciones, la imposición de la cultura occidental y la

formación de movimientos de libertación, entre otros efectos (Ibidem, p.28).

Contudo, esse cenário começaria a mudar após a Primeira Guerra Mundial, devido

principalmente às crises econômicas e políticas que assolavam a Europa – que, até então, era

o exemplo seguido pelos países latino-americanos. Concomitante à ideia de crise, anti-

imperialismo e emancipação, surgiam propostas de renovação e políticas voltadas à

transformação social. Nesse momento aconteceram importantes reformas no sistema

educacional argentino, como a Reforma Saavedra Lamas, que retomava a ideia de introduzir

orientações técnicas, e afirmava uma educação menos doutrinária e mais produtiva. Como

aponta Arata (2013) essa proposta de escola buscava solucionar dois problemas centrais da

educação: “la ausencia de un currículo orientado a la enseñanza de saberes prácticos – que

eran requeridos por el resurgimiento de la industria nacional en el contexto internacional de la

primera Guerra Mundial – y las dificultades para contener y disciplinar los instintos juvenis”

(p. 175).

Ainda nesse período se produziu uma multiplicidade de noções, imagens e

sentidos sobre as características que deveria assumir a educação formal na Argentina. Somado

às noções de modernização e nação, estavam as ideias de vitalismo, espiritualismo,

sensibilidade, misticismo e estética (ARATA; SOUTHWELL, 2011, p. 269). Dessa forma, a

primeira metade do século XX foi marcada pela crise de antigas convicções, e surgimento de

novos caminhos para a educação, voltados para a reflexão sobre cultura e sociedade, bem

como a criação de “interpretaciones y lecturas en torno de la Nación, entidad de sentido

conformada desde múltiples visiones y ambivalentes significados al calor de una discusión

que atravesaba tanto el plano filosóficocultural como el político” (Ibidem p.270).

Enquanto se formulavam críticas ao modelo da escola tradicional, algumas

propostas e projetos educacionais se articularam, destacando-se os difusores da Escola Nova.

Conforme Marcelo Caruso (2013, p. 96), as raízes do movimento partem das ideias

pedagógicas de Rousseau que, em sua obra Emílio, discute uma educação embasada na

relação do homem com a natureza, e no contrato socialmente estabelecido. Assim, o

pensamento escolanovista criticava o silêncio, a uniformidade, o excesso de conteúdo e

monotonia das aulas; propondo que o ensino pela memorização e a forte disciplinarização,

dessem lugar a um novo contrato pedagógico, pautado na centralização da criança no

Page 89: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

89

processo de aprendizagem, na participação da comunidade educativa na gestão escolar e no

fortalecimento da relação entre escola e natureza.

Entretanto, na Argentina, o movimento escolanovista não se transformou em um

projeto político-pedagógico, mas sim em uma corrente de ideias que propiciou reformas

parciais no sistema educacional. Nesse sentido, Sandra Carli (2002) aponta que a Escola Nova

argentina se articulou a outros movimentos políticos e culturais de mais amplo alcance, sendo

representada por um grupo de professores da elite urbana, capazes de propor algumas

inovações das práticas escolares. Dessa forma, “las ideas de la escuela nueva eran usadas

retóricamente en los discursos políticos, y habían penetrado en las aulas a partir del

consensuado y, a la vez, parcial reclamo de renovación de contenidos y metodos”. (p. 5)

A despeito das tentativas de modernização, a quebra da Bolsa de Nova York, em

1929, afetou a economia de muitos países, inclusive da Argentina – que se firmara

mundialmente como nação agroexportadora. A crise econômica, e o consequente aumento da

inflação, seguido da diminuição do poder aquisitivo da população, inflamaram os conflitos

sociais e os movimentos de oposição ao governo do presidente Hipólito Ygrioyen. A grande

tensão mundial somada aos problemas internos do país geraram condições para que, em

setembro de 1930, um golpe de Estado liderado pelo general José Félix Uriburu, depusesse o

presidente e implantasse uma ditadura militar. Nesse contexto, dialogando com o discurso

nacionalista do governo, a educação retrocede, se posiciona contrária às modificações sociais,

e é implantada a Reforma Fresco-Nobre, que atendia às demandas do conservadorismo,

inserindo práticas militaristas dentro da escola, além da obrigatoriedade do ensino religioso. O

governo “presentaba a la Argentina, ante el mundo, como un modelo de nación católica”

(ARATA, 2013, p. 180).

Quino nasce em 17 de julho de 1932. Sua família defendia a república, a

democracia e se posicionava contra o governo ditatorial. Imerso nesse cenário de acirramentos

políticos, sociais e culturais, nosso autor vai à escola e anos mais tarde, nos permite conhecer

suas memórias, interpretações, representações escolares.

3.2 - 1940 e 50: Quino vai à escola

Com a instauração do governo ditatorial, houve a derrocada das reformas

educacionais e propostas transformadoras – como Saavedra Lama e o movimento

escolanovista, respectivamente – reestabelecendo-se a estrutura tradicional das instituições

Page 90: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

90

escolares: o currículo enciclopedista fora retomado, enquanto as orientações voltadas para a

prática e as relações pedagógicas entre escola e trabalho foram eliminadas. A escola assumiu

um papel estratégico na construção de um sentido comum aos argentinos do período, visto

que estava encarregada de “(...) fortalecer la identidade nacional y afianzar la soberania de la

Nación” (ROMERO, 2007, p.20). Ademais, foram renovados os intentos de valorizar os

rituais e símbolos nacionais, que construíam a identidade das escolas públicas. Professores e

alunos participavam ativamente das cerimônias, dos desfiles escolares de 9 de Julho, e das

marchas militares que aconteciam regularmente dentro das escolas.

Durante o governo de José Félix Uriburu, o Ministério da Educação passou por

algumas modificações e trocas de titulares. Juan B. Terán – que assumiu interinamente o

cargo de presidente do Consejo Nacional de Educación – se tornou um dos maiores

representantes dos intentos do governo e do clima cultural da época. Seu discurso defendia

uma educação moral, e repudiava o reformismo universitário e a escola ativa31

Para ele, a

figura do professor – semelhante ao que acontecia no século XIX – deveria se associar ao do

apóstolo, cuja missão era expurgar os pecados e o hedonismo da sociedade e combater o

comunismo entre os estudantes.

No governo de Augustín Pedro Justo, Ramón J. Cácarno passa a comandar o

Consejo Nacional de Educación, recrudescendo as afirmações de seu antecessor, o governo

passa a suprimir os centros estudantis dos colégios secundários e a perseguir e exonerar os

docentes considerados radicais, lacistas e escolanovistas. (PUIGRRÓS, 1997, p. 93). Em

1937, é aprovado o Digesto de Educación Primária, instrumento jurídico destinado a regular

o funcionamento das escolas primárias, que funcionou como um código de disciplina e ética,

que regeu a conduta das escolas argentinas durante as décadas seguintes. Nesse documento, se

tornava obrigatório que os professores de escolas públicas seguissem as leis estaduais

referentes à educação, que controlassem diariamente o asseio dos seus estudantes, e que não

exercessem dentro e fora da escola qualquer ofício que prejudicasse suas funções no

magistério. Além disso, os professores deviam se manter atentos e nunca realizar propaganda

a favor ou contra as crenças religiosas e opiniões políticas, entre outras determinações

(RAMALLO, 2017, p. 8).

Durante a presidência de Roberto Marcelino Ortiz, em 1939 – quando Quino

inicia seu curso no ensino primário –, se elaborou um novo projeto de reforma do sistema 31

A escola ativa, inspirada pelo estadunidense Ovidio Decroly, se fortaleceu no solo argentino através de José

Rezzano, de sua esposa Clotilde Guillen, e de Juan Mantovani. O movimento defendia que o a educação deveria

ser voltada para “la conquista de un magnífico equilíbrio entre espíritu e instinto, idea y sentimiento, disciplina y

libertad, capacidad contemplativa y capacidad de acción” (BALLASTEROS 1979, p. 29).

Page 91: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

91

educacional, pautado das observações e anseios dos governos anteriores. Uma comissão

especial presidida pelo ministro da Justiça, Jorge Eduardo Coll, estabeleceu que a instrução

primária e média deveriam se reestruturar da seguinte maneira:

a) Educación primaria, dividida en dos ciclos: infantil y elemental, impartida

en escuelas urbanas y rurales, b) Instrucción complementaria y

especializada, c)Instrucción media, dividida en dos ciclos, d) Instrucción

especial para deficientes mentales o de los sentidos. (...) La escuela, además

de su función principal de educar e instruir al niño, constituirá un centro de

extensión de cultura al medio social; vinculará a los padres y vecinos a su

acción educativa (...)

En cuanto a la educación media, se prescribía que el ingreso en los colégios

e institutos oficiales se efectuaría mediante un examen escrito de selección.

El primer ciclo del liceo comprendería cuatro años de estudios

teóricoprácticos. El bachillerato se obtendría mediante un segundo ciclo de

dos años de estúdios generales intensivos. Los estudios del magisterio

también requerían un segundo ciclo de estudios de dos años de duración

(Ibidem p. 9).

Ademais, em 1940, o Consejo Nacional de Educación aprova um parecer da

Comissão de Didática, que expressava a necessidade de reforçar o patriotismo dentro das

escolas, e instruía os docentes acerca do uso dos livros e cartilhas patrióticas. Ao referir-se ao

seu tempo escolar, Quino o relembra com certo desgosto. Preferia desenhar a estudar e tinha

muita dificuldade em gramática e ortografia32

. O desenhista confessa que por se identificar

muito com o personagem Felipe – que também é tímido e sonhador – Quino representou em

suas tiras muito de suas angustias e medos relativos à escola: valorização da pátria,

autoritarismo dos funcionários do colégio, professoras malvadas, notas baixas, pavor quando

era obrigado a falar em público, entre outros. Nas tiras abaixo podemos visualizar essa relação

entre o autor, o personagem e a escola representada.

32

Sobre isso Quino, em entrevista para Daniel Samper Pizano, conta que quando começou a desenhar Mafalda

precisou fazer um curso de redação para corrigir seus erros gramaticais. Além disso, em mais de um momento o

autor afirma que se projetou muito em Felipe, assegurando as semelhanças entre os dois quanto a postura,

medos, formas de pensar, distração, timidez, entre outros. Entrevista encontrada em QUINO (1993, p. 13).

Page 92: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

92

Figura 35: tira publicada pelo Siete Días

Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p. 423.

Logo no primeiro quadro da tira acima percebemos que Felipe se encontra em

uma sala de aula, devido ao uniforme típico das escolas argentinas, o guardapolvo branco.

Além disso, ele está sentado em uma cadeira e apoia o corpo sobre uma carteira escolar, onde

se encontram seu caderno e lápis. Corroborando para nossa primeira impressão, a narrativa do

quadro traz o menino pensando sobre como precisa se manter atento à explicação da

professora. Seus olhos arregalados demonstram sua preocupação em não “perder detalle y

poner todos mis sentidos en no distrairme”. Nesse momento, na medida em que o menino

arregala cada vez mais os olhos e se cobra para manter o foco na aula, sua preocupação pode

demostrar a rigidez escolar vivida por Quino em seu tempo de escola, na qual se exigia do

aluno total atenção e obediência aos professores.

No quarto quadro, entretanto, a professora pergunta aos demais alunos se eles

entenderam o que ela estava explicando, enquanto Felipe devaneava sobre precisar estar

atento. Por fim, o último produz o efeito humorístico no leitor que vê Felipe, com uma

expressão de desespero em seu rosto, se dar conta de que, mais uma vez, havia se distraído e

perdera a explicação da matéria. Além da sua expressão assustada, sua mente projeta um

ponto de interrogação, apresentado no balão de pensamento, ratificando sua confusão e

dúvida diante das aulas dadas. Como discorre Quino, essa distração e falta de interesse nas

aulas eram comum nas suas experiências em sala de aula. Além disso, podemos observar que

a tira toda foca exclusivamente no personagem, não apresentando composição de cenário ou

algum outro colega de turma. Essa escolha artística realizada pelo autor possibilita que o leitor

se conecte com a angústia do personagem, uma vez que além de ler seus pensamentos, não

sofre interferência ou distanciamento causado por outras possíveis sensações.

A próxima tira também apresenta a percepção de escola produzida por Quino,

que a enxergava como um local desinteressante e opressor.

Page 93: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

93

Figura 36: tira publicada pelo Siete Días

Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p. 389.

No primeiro quadro vemos Felipe caminhando pela calçada. Por estar vestido com

o guardapolvo e carregar em suas mãos a “maleta” escolar, descobrimos que ele caminha para

a escola. O balão de pensamento nos informa que o personagem está atrasado, porque nos

mostra a professora o acusando de chegar quarenta e cinco minutos depois do início da aula.

No entanto, o que chama a atenção do leitor é o fato de a professora estar vestida com um

uniforme militar que possui uma suástica nazista no braço, e falar agressivamente e com

sotaque alemão. Ao lado da professora vemos que na parede da sala de aula está um quadro

de Hitler e sobre a mesa o seu livro Mein Kampf, que corroboram para o entendimento da

cena. Ainda, no mesmo cenário observamos Felipe com cabelos raspados, vestindo o

uniforme listrado que era comum nos campos de concentração nazistas. Outros elementos

gráficos também nos mostram que a professora assume uma postura de inquisidora, como as

suas mãos apoiadas no cinto e a boca aberta como indício de que estava gritando. O quepe

tampa seu rosto, o que proporciona ao leitor a sensação de frieza e distanciamento nas

relações estabelecidas dentro e fora do desenho. Somente esse quadro já nos proporciona

algumas impressões acerca da escola argentina representada, da escola de Quino e da escola

de Felipe: uma escola rígida, na qual a professora pode ser comparada a uma alemã nazista; e

onde o aluno se sentia tão oprimido e preso como um judeu em um campo de concentração.

No segundo quadro observamos o personagem entrando na escola, cabisbaixo,

com ombros caídos, triste tanto por estar ali, quanto pelo medo da bronca que iria levar pelo

atraso. Ele se imagina um pequeno judeu perseguido, pronunciando um alemão estilizado pelo

humor e entregando, à professora nazista, o bilhete de justificativa do atraso escrito por sua

mãe. O terceiro quadro, contudo, gera uma inversão nos fatos e o retorno à realidade: num

cenário muito similar ao do primeiro quadro, vemos a professora posicionada no mesmo local,

mas agora vestida com o seu próprio uniforme; na parede um quadro mostra uma vaca e os

Page 94: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

94

produtos derivados do leite, e na mesa ao lado está um livro de matemática. Para o

estranhamento e felicidade do personagem, ao invés de ficar brava e se alterar, a professora

pega seu bilhete, com carinho passa a mão pelo cabelo do aluno e docilmente o manda se

sentar. Constrangido tanto pelo cuidado recebido quanto pelo estranhamento gerado pela sua

imaginação frente ao acontecido, Felipe caminha pela sala até sua carteira, encabulado e

contente por seu temor não ter se concretizado. Nessa tira, o humor é proporcionado

justamente pela contradição e imaginação fértil do aluno. Contudo, ela permite ao leitor

refletir sobre a postura autoritária e disciplinadora das escolas, bem como sobre o momento

escolar de Quino, marcado pelo fascismo na Europa e o autoritarismo da ditadura argentina.

Mais uma vez, averiguamos a presença dos elementos escolares do autor, e de suas memórias

sobre os mesmos, nas elaborações de suas tiras.

De todo modo, o cenário político e educacional continuaria a se modificar nas

décadas seguintes. Diante de tantas conturbações políticas, sociais e pedagógicas, um novo

golpe de Estado se articulava na Argentina. Um grupo de militares dissidentes do movimento

anterior aproveita do desgaste e perda de legitimidade do sistema político instaurado, e

discursando pela defesa da nação, promove um novo golpe, que acaba por colocar Juan

Domingo Perón na presidência do país, em 1943. O novo governo pensava a sociedade em

termos organicistas, no qual, assim como um organismo biológico, ela era a soma de todas as

partes; e cabia ao Estado garantir a articulação dessas, bem como de suas demandas,

promovendo um desenvolvimento harmonioso da sociedade em sua totalidade (ROMERO,

2004). Assim, visando à regulação das relações sociais e políticas, Perón apresenta um projeto

de preparação moral que orientaria a vida dos argentinos, e para tanto, defendia a educação

como caminho para atingir seus objetivos.

O peronismo herdou o ultranacionalismo do regime ditatorial anterior, que

desejava imprimir na escola o caráter de um regimento, opondo-se às perspectivas mais

liberais. Ao longo do seu governo, o presidente contou com alguns ministros da Educação,

que a despeito de suas particularidades, consonavam quanto a preferência pelo método global

de ensino, na medida em que “(...) rechazaba la organización liberal de las escuelas nuevas;

sostenía que la función del maestro es transmitir un orden y una moral” (PUIGRRÓS, 1997,

p. 99). Sendo assim, em resposta às transformações que vivenciava a Argentina, o projeto

educacional do governo peronista procurou consolidar a massificação do ensino, ampliando o

acesso da população a todos os níveis educacionais. Ainda, o Estado incluiu novas

Page 95: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

95

modalidades educativas cujo objetivo era a intervenção político-cultural, capaz de influenciar

na formação da nova identidade argentina proposta pelo governo.

Ao passo que Perón propunha a formação de um novo país, uma Nueva

Argentina, sua estratégia pedagógica se centrava nas massas, remetendo a um modelo

enciclopedista, de formação integral do argentino – nos aspectos intelectual, físico e moral –

principalmente no que concerne ao ensino profissionalizante, tanto instigado pelo governo

que almejava expandir o setor industrial e doutrinar a classe operária. O novo plano

educacional propunha o ensino primário formado por um primeiro ciclo optativo pré-escolar

(para crianças de 4 e 5 anos); um segundo ciclo obrigatório de cinco anos (para alunos de 6 a

11 anos); um terceiro ciclo obrigatório de dois anos (para alunos de 12 a 14 anos). Este último

ciclo era composto por cursos voltados para a formação de operários de todas as

especialidades, incluindo manejo com ferramentas, práticas de hortas e granjas, manufatura e

comércio.

Além disso, foram criadas inúmeras escolas técnicas, destinadas à formação de

mão-de-obra qualificada; e o ensino normal, que em 1943 contava com 55.238 alunos e

passou a contar com 97.306 alunos em 1955 (Ibidem, p. 106). A infância era, então, vista

como uma nova geração de argentinos que precisava ser moldada, e cabia ao Estado intervir e

construir sua identidade. Como salienta Carli (2002, p. 5), nesse momento a perspectiva da

Escola Nova perde sentido e espaço político, uma vez que o protagonismo da criança e a

autonomia infantil não eram promovidas pelo governo peronista.

Entretanto, em 1955, os grupos contrários ao governo autoritário se articulam e

Perón é deposto por uma aliança civil-militar que, num discurso a favor da liberdade –

entendida como anti-peronismo –, proclamara o golpe de “Revolución Libertadora”, e

novamente instaurara no país um período de grande instabilidade política e econômica, que

acabou por intensificar os conflitos entre os setores sociais nas décadas seguintes. A educação

do período também se encontrava imersa nesses conflitos que experimentava a sociedade

argentina, influenciada pelas transformações de um mundo em mudança, provocadas,

sobretudo, pelo recrudescimento da Guerra Fria, pelas constantes lutas pela independência e

pela negação do imperialismo, fatos que ressonavam em todo o mundo, e afetavam direta ou

indiretamente os contextos político, econômico, social e cultural locais. Dessa forma,

conforme Arata (2013), o sistema educacional, não alheio aos acontecimentos do período, se

apresentou como um espaço de experimentações, “(...) de cruces y chispazos entre tendenciais

Page 96: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

96

educativas opuestas, pero también de articulación y de creación de nuevos imaginários

pedagógicos” (p. 219).

Nesse momento, Quino com seus 23 anos, já começara a publicar suas criações, e

sua formação escolar – marcada pelo nacionalismo, conservadorismo, valorização da ordem,

disciplina, e do ensino enciclopedista – será fundamental para sua percepção do sistema

educacional argentino. Suas relações familiares e relações dentro e fora dos espaços escolares

são somadas às memórias e experiências dos alunos das décadas de 1940 e 50; e assim,

fomentaram as representações elaboradas pelo desenhista. Em 1962 nasce Mafalda e, a

despeito do momento histórico em que é criada, nas tiras de Quino observamos muitos dos

elementos de um modelo escolar tradicional, conhecido pelo autor.

3.3 – Os anos 1960 e 70: Mafalda vai à escola.

Pedro Eugenio Aramburu assumiu a presidência do país em 13 de outubro de

1955, determinado a limpar o país do peronismo e eliminando sua simbologia, alteraram-se os

textos e planos de estudos, e até mesmo, a vida cotidiana escolar. Conforme discorre Puiggrós

(1997), na prática, “(...) no fue necessário cambiar mucho más porque a través de casi una

década de nacionalismo popular, en la escuela persistia casi intacto el viejo discurso

normalista mechado con enunciados católicos” (p.111). As antigas escolas se mantiveram

conservadas, com retratos de Sarmiento convivendo ao lado das imagens de santos e de

Virgem Maria; e desse modo, as novas diretrizes educacionais, voltadas ao anti-peronismo, se

preocuparam em retirar dos ambientes escolares quaisquer alusões ao ex-presidente, ao

nacionalismo exacerbado e suas práticas pedagógicas.

Além disso, durante os anos 1960, no contexto do confronto entre o capitalismo

norte-americano e o socialismo soviético, a modernização econômica dos países latino-

americanos entrou na pauta de organismos internacionais como a Comissão Econômica para a

América Latina e o Caribe (CEPAL), que visavam avaliar a situação dos países envolvidos a

fim de promover a industrialização dos mesmos (MELLO, 1986). Concomitantemente, na

Argentina se difundiu a ideia de que as economias latino-americanas precisavam recorrer às

intervenções estrangeiras para intensificar o progresso, visto nesse momento como sinônimo

de ampla industrialização. De acordo com Ianni (1970, p.8), a partir de recursos doutrinários –

como a “Corporación Continental”, Beuna Venindad” e “Alianza para el Progreso”, que

procuravam tornar os países latino-americanos dependentes da política exterior dos Estados

Page 97: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

97

Unidos – tal intervenção extrapolaria o setor econômico e político, abrangendo a educação,

agora compreendida como uma ferramenta essencial desse processo modernizante. Ainda

sobre essa relação, Arata (2013) discorre que:

el desarrollismo producía un giro novedoso al promover una articulación

entre economía y educación, colocando el énfasis en la generación de

recursos humanos (...). El optimismo pedagógico que se extendió por y para

América Latina formó parte de una estrategia geopolítica y de control

ideológico más amplia encabezaba por los Estados Unidos (p.222).

Além das questões políticas, que se mantinham instáveis, a Argentina – como boa

parte das nações americanas e europeias – enfrentou um amplo processo de modernização

social e cultural, visto que as classes médias impulsionaram a homogeneização do consumo

através da produção em massa, das propagandas e do marketing. Surgiram novas pautas nas

relações sociais e de trabalho, e modificaram-se as concepções de infância, paternidade, e de

gênero. O sistema educacional, dentro da nova realidade que se construía, acompanhava essas

transformações, propondo à sociedade argentina um novo modelo capaz de unir as influências

internacionais, o desejo de modernização, a economia e a educação. Assim, diante da aparição

e massificação das novas temáticas e tecnologias, “la escuela dejó de ser el único espacio que

proveía conocimientos” (SUAREZ, 2011, p.30).

A hegemonia do sistema educacional moderno entra em crise. Passam a ser

questionados os conhecimentos escolares descontextualizados e sem relação com as

experiências sociais dos alunos. A educação conteudista e fragmentada, antes vista como uma

ferramenta para a formação do cidadão integral, global e disciplinado, agora era criticada, e se

concebia um ensino mais utilitário, voltado para a prática, capaz de garantir o acesso ao

mercado de trabalho. A educação se tornava, então, uma alavanca para o desenvolvimento

social e econômico. Dessa maneira, durante esse período observou-se a criação de mais de

quatro mil estabelecimentos educacionais e órgãos destinados ao planejamento da educação e

produção de trabalhos de investigação educativa para compreender o perfil dos estudantes,

dos docentes e reestruturar o projeto educacional para esse público que visavam formar

(ARATA, 2013, p. 202).

Durante a presidência de Arturo Illia, a relação entre os docentes e o governo se

aproximou e permitiu que houvesse maiores aberturas e inovações no campo educacional,

estimulando experiências pedagógicas mais democráticas. Em 1965 se inicia o Programa

Intensivo de Alfabetización y Educación de Adultos. Instigado pela proposta da UNESCO de

Page 98: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

98

erradicar a alfabetização em todo o mundo, o governo argentino criou centros educativos em

todo o país, destinado não só à alfabetização de jovens e adultos, como também à renovação

e atualização de conteúdos, e à integração de adultos dentro da comunidade e da nação.

Alguns anos mais tarde, na elaboração do plano de Reconstrucción y Liberación Nacional

1974/1977, a escolarização de adultos é retomada e a educação como direito social recupera

sua centralidade no discurso estatal. A escola, vista como núcleo fundamental de ensino,

juntamente como Estado, assume como prioridade:

la erradicación del analfabetismo, la disminución del semianalfabetismo, la

expansión gradual de jardines maternales y infantes, la educación

permanente, la capacitación técnica, la educación agrícola, la universitária y

la orientada a las investigaciones de la ciencia pura y aplicada que

contribuyeran con el proceso de liberación nacional. (ARATA, 2013, p.

234).

É nesse contexto que a concepção de infância também começava a se modificar.

As crianças passaram a serem vistas como sujeitos de direitos. Internacionalmente elas

ganharam destaque no processo de aprendizagem e preocupação dos órgãos governamentais.

Na década de 1970 a UNICEF declara os Direitos Internacionais da Criança, com caráter

jurídico supranacional. Nesse cenários, as escolas tiveram que reavaliar a forma como o aluno

era concebido, uma vez que o aluno “ (...) dejó de ser entendido como una tabula rasa donde

se imprimia el conocimento, para passar a otorgarle un rol activo en el proceso de

aprendizaje” (SUAREZ, 2011, p. 31). Concomitantemente à transformação do ideário de

aluno, a concepção de professor também foi alterada. Este, deixou de ser o único capaz de

transmitir os saberes legítimos nas mentes infantis, para se tornar um orientador no processo

de aprendizagem, que já não mais acontecia de forma unilateral e assimétrica.

A somatória dessas transformações que ocorreram nas décadas de 1960 e 70

colaborou pra que o sistema educacional moderno, como fora concebido no século XIX e

propagado no século XX, entrasse em decadência. A personagem Mafalda e seus amigos são

crianças, e enquanto alunos vivenciam essas mudanças que começavam a circular na

sociedade argentina da época. Contudo, a despeito do período em que Mafalda é produzida, a

partir da análise das tirinhas é possível verificar que Quino, ao mesmo tempo em que dialoga

com tais mudanças, acaba por representar o formato escolar anteriormente abordado e por ele

experimentado. Como anteriormente destacado pela hipótese de interpretação desse trabalho,

Quino se encontra imerso nesse momento de transformações, expressa suas indagações e

Page 99: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

99

críticas ao sistema educacional da época, porém através de desenhos com cenários e estruturas

marcados pela escola tradicional.

3.3.1 – Representação, memória e Mafalda.

O conceito de representação foi alvo de muito debate dentro da História e do

campo da História Cultural a partir das propostas da Escola dos Annales, visto que práticas,

metodologias e fontes de pesquisa se ampliaram, passando a abarcar objetos de estudo nunca

antes imaginados. O projeto de História global – capaz de articular os mais diferentes

aspectos, organizar e coletar elementos que produzissem certezas e totalidades – é criticado,

deixando o campo livre para a pluralidade de abordagens e compreensões (CHARTIER, 1991,

p.176). Ao renunciar à descrição da totalidade social, os historiadores se propuseram a

decifrar as sociedades de outras maneiras, partindo de elementos políticos, econômicos e

culturais. Nesse sentido, a noção de representação se torna essencial, visto que como prática e

metodologia, permite a análise cultural e entendimento das sociedades estudadas.

A representação é entendida como “(...) algo que esta en lugar de otra cosa: un

objeto, una idea, una persona” (ARFUCH, 2002, p. 206). Como afirma Chartier (1991),

representação é uma presença que marca a ausência daquilo que é representado, sendo o

“instrumento de um conhecimento mediato que faz ver um objeto ausente substituindo-lhe

uma ‘imagem’ capaz de repô-lo em memória e de ‘pintá-lo’ tal como é” (p. 184). Para que

essa relação seja inteligível, é também fundamental que se conheça os signos, e o modo como

os mesmos são convencionalmente utilizados. Enquanto discurso e prática, o autor ainda

comenta que, as representações são elaboradas por indivíduos que descrevem a sociedade

como pensam que ela é, ou como gostariam que ela fosse (Idem, 2002, p.19). Assim sendo, o

conceito de representação se constitui como a forma pela qual os sujeitos organizam a

realidade em suas mentes, expressando-se em comportamentos e práticas sociais,

condicionadas por um conjunto de símbolos compartilhados, um “idioma geral” fornecido

pela cultura, como também aponta Robert Darnton (1986, p. XVII-XVIII).

Dessa maneira, se evidencia que a representação nunca corresponde à realidade, e

sim a uma produção e interpretação da mesma; o que torna necessário que se selecione alguns

aspectos do objeto real em detrimento de outros que serão omitidos. Ademais, uma vez que

essa seleção corresponde aos valores e interesses específicos de cada caso,

as representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à

universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre

Page 100: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

100

determinadas pelos interesses de grupo que as forjam. Daí, para cada caso, o

necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem

os utiliza. (...) As percepções do social não são de forma alguma discursos

neutros: produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que

tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por elas menosprezados, a

legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos,

as suas escolhas e condutas. Por isso esta investigação sobre as

representações supõe-nas como estando sempre colocadas num campo de

concorrências e de competições cujos desafios se enunciam em termos de

poder e dominação (CHARTIER, 2002, p. 17).

Concomitantemente aos debates acerca da representação também foram

impulsionados os estudos sobre memória, produzindo modificações conceituais no século

XX. Em uma perspectiva renovada, ao entender a memória como uma construção social, os

historiadores passaram a ponderar que os indivíduos recordam daquilo que consideram

importante, sendo que tais “lembranças são sempre coletivas, pois, mesmo que em

determinadas circunstâncias se esteja materialmente só, o indivíduo recorda tendo como

referenciais estruturas simbólicas e culturais de um grupo social” (SOUZA, 2008, p.02).

Dessa maneira, ao tentar retomar a memória coletiva e transformá-la em narrativa, a História

constrói uma interpretação, um relato aproximado do que de fato ocorreu.

Escolano Benito (2010), ao abordar o tema da memória escolar, se propõe a

trabalhar com a memória a partir da subjetividade de alguns entrevistados acerca das

lembranças e imagens de seus tempos escolares. A escola é parte fundamental da vida das

crianças e jovens, sendo ali o local onde suas experiências e memórias se constroem; e nesse

sentido, não é inocente, porque escolhe e age como produtora de signos, e de representações

que acabam por moldar a própria memória escolar daqueles que por ali passaram. A despeito

das experiências individuais de cada aluno, quando questionados sobre suas lembranças, as

memórias de sala de aula, dos professores e dos conteúdos aprendidos, se apresentam

similares, permitindo que qualquer um que olhe uma fotografia, ou uma historia em

quadrinho, reconheça a cena representada.

Assim, partindo de memórias e representações construídas pelos sujeitos, os

historiadores, por sua vez, na análise, manipulação e interpretação das fontes, se propõem a

construir narrativas históricas. Destarte, ao tomarmos por base as tiras de Mafalda acerca da

educação argentina, é imprescindível que ponderemos sobre as influencias dos discursos e

memórias produzidas sobre o tema. Cada época e sociedade fabrica seu universo de símbolos

e significados, produzindo a sua representação do tempo histórico vivido. Quino, não alheio à

sua época e aos acontecimentos nacionais e mundiais, introduzirá em suas produções gráficas

Page 101: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

101

símbolos que muitas vezes dialogam com a memória coletiva dos argentinos, com o modo

como eles enxergam o formato escolar, corroborando para a identificação e propagação dessas

representações.

3.3.2 - A escola nas tiras de Mafalda

A primeira tira de Mafalda no jornal El Mundo trazia a personagem discutindo

sobre o jardim de infância e suas perspectivas educacionais. A partir desse momento, muitas

tiras abordarão a temática e mostrarão cenas dos personagens nas salas de aula realizando

tarefas de casa, ou conversando sobre suas experiências escolares.

Figura 37: Tira publicada por El Mundo em 15 de março de 1965.

Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p 603.

No primeiro quadro da tira abaixo vemos Raquel segurando o uniforme escolar

de Mafalda, que ela possivelmente estava costurando ou consertando, devido à forma como

segura e analisa os detalhes da roupa, e ao material de costura que se encontra no chão, ao

lado de sua cadeira. Ao mesmo tempo, Mafalda a observa com olhos entristecidos. Sua face

está contorcida numa mistura de compaixão e preocupação. Pelo diálogo, a protagonista nos

revela que, de fato, está preocupada com o fato de sua mãe estar insegura com o início do

jardim de infância da sua filha, já que “tiene miedo que no me guste”. No segundo quadro a

personagem se anima: decide tranquilizar sua mãe, garantir que ela deseja se dedicar ao

estudo, indo à escola, ao colégio e à universidade. Nesse momento, observamos que seus

olhos se abrem e suas mãos se posicionam sobre sua face, indicando que Mafalda reflete

sobre a ideia. Sem mais delongas, a menina vai feliz dizer à mãe o que havia pensado, e com

um sorriso no rosto assegura sua vontade de iniciar a vida escolar, e o seu desejo de estudar

muito para não ser “una mujer frustrada y medíocre como vos!”.

Page 102: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

102

O humor aparece tanto pela crítica realizada às mulheres que deixaram de estudar

e foram se dedicar à família e aos filhos, quanto pela ingenuidade da menina, que com olhar

doce não percebe que suas palavras, ao invés de acalmarem sua mãe a deixaram entristecida.

Essa inocência é mais uma vez ressaltada no último quadro, no qual observamos Raquel

cabisbaixa, com o rosto apoiado nas mãos, com olhos tristes voltados ao chão; enquanto

Mafalda caminha alegremente, se felicitando por ter reconfortado sua mãe. A composição

das personagens e dos cenários nos permite averiguar que Quino ainda estava no início de sua

produção, porquanto seus traços são mais simples e os quadros possuem menos detalhes e

recursos, comparados aos trabalhos finais.

Quando partimos da discussão sobre a escola moderna, muitos serão os autores

que nos apresentarão a instituição escolar como produtora e reprodutora dos conceitos,

valores e anseios dominantes da sociedade em que se inserem, corroborando para a

construção e dominação dos indivíduos. De acordo com Foucault (1995, s/p), poder e governo

não estão atrelados somente ao Estado, como se pensava em séculos anteriores. Uma vez que

o poder consiste em dirigir condutas, governar seria organizar e controlar as diversas formas

de ações do outro, a partir de grupos e instituições diferentes. Partindo dessa reflexão, Pineau

(1996, p. 230) também argumenta que a escola moderna era também responsável pelo

governo da sociedade, embasando-se na ordem e na crença de que somente a adequação de

todos os indivíduos ao sistema social, econômico e político proposto, levariam o país ao

progresso almejado. Era exigido silêncio, formação de filas, e obediência aos adultos; além de

castigarem e disciplinarem os comportamentos considerados inadequados.

Além dos comportamentos, o corpo da criança se evidencia como organismo a ser

controlado e doutrinado. Visto que o corpo não existe em “estado natural”, todos os

movimentos, posturas, gestos, olhares e sensações estão atreladas às lógicas sociais e

culturais, que modelam o corpo e decidem o que é ou não permitido, definem dentre outras

coisas as “(...) expresiones de sentimientos y emociones, ritos de interacción corporal,

técnicas corporales, universos morales específicos, reglas de etiqueta y vestido, técnicas de

mantenimiento del cuerpo, usos corporales” (SCHARAGRODSKY , 2011, p. 02). Esse

processo de educação corporal era preocupação das instituições modernas, dentre elas a

escola, que em seu interior e conjunto de práticas participou da fabricação da cultura e dos

corpos infantis. Na tira abaixo podemos observar o formato escolar marcado por esses

elementos.

Page 103: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

103

Figura 38: Tira de Mafalda

Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p 178.

Representando a relação assimétrica dos professores com os alunos a mesa da

professora, que está em uma espécie de púlpito, num nível mais alto do que o resto da sala, o

que lhe permite ter uma visão privilegiada de todos os alunos e garantir que todos prestem

atenção aos seus ensinamentos. A professora se encontra sentada em sua cadeira, com o corpo

rijo, e o dedo apontado para cima – símbolo muito utilizado em discursos impositivos – nos

dá impressão de ela está, ao mesmo tempo, explicando o conteúdo e garantindo a importância

do que este sendo dito. Sobre sua mesa está um globo terrestre, objeto presente na maioria das

tiras que remetem à estética escolar. Os alunos por sua vez, se encontram sentados,

enfileirados, todos em uma mesma posição, voltados à professora. Suas mãos e pés estão

parados de uma mesma maneira, corroboram para a sensação de controle e obediência dos

corpos. As carteiras representadas na tira eram presas ao chão, equidistantes uma das outras, e

assim, além de não respeitarem os tamanhos das crianças, impediam a mobilidade dos alunos

e forçavam um aprendizado individual, uma vez que dificultava o trabalho em grupo.

Contudo, esse cenário sofre uma interferência – o que produzirá o efeito de humor

– Manolito, o aluno “bruto”, interage com o ensinamento da professora, dizendo que

Colombo era burro por pensar que a terra era redonda. A falta de conhecimento do aluno e sua

ingênua participação na aula gera o riso no leitor; contudo, as expressões e movimento dos

corpos dos alunos nos mostram que a despeito da indignação pelo comentário do colega de

classe, a interrupção da explicação da professora e da ordem da aula não era bem vinda.

Ademais, o fato de Quino não ter dividido a cena em quadros, além de nos permitir ter uma

visão mais ampla da sala de aula de Mafalda, produz uma sensação de continuidade nos

acontecimentos da tira.

A disciplina não era exigida somente por questões pedagógicas. Sua implantação

era coerente com o objetivo primordial da escola nacional: formação de cidadãos. Desse

Page 104: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

104

modo, através da ordem e do controle dos corpos infantis, se introduziam nos alunos os

valores considerados corretos, e ensinavam-nos a obedecer a regras e normas sociais. A

docilidade e submissão valorizadas por essa educação era também uma garantia de que,

futuramente, não perturbariam a ordem social estabelecida; e assim, se entendia que o papel

da escola implicava na intervenção estatal e na formação dos docentes, que deveriam ser

exemplos de moralidade para seus alunos. A infância, nesse contexto tradicional, era

compreendida como uma etapa inferior na vida do ser humano, sendo as crianças seres

incompletos e necessitados de conhecimentos garantidos pelos adultos, no caso, seus

professores. E, dessa maneira, estes se tornam os detentores de saberes e virtudes que seriam

depositados nos alunos. Nesse sentindo,

los docentes debían enseñar los valores y las conductas morales desde su

propio ejemplo, tanto dentro como fuera de la escuela. Por eso, se le exigía

no sólo los conocimientos necesarios para transmitirlos, sino el

cumplimiento de una serie de hábitos y la prohibición de otros, como por

ejemplo: no salir de su casa de noche, no pasear por las heladerías, no andar

acompañada de un hombre (excepto su padre o hermano), no fumar ni beber

alcohol, no maquillarse, etc.33

A tira abaixo também nos permite visualizar essa relação entre professores e

alunos, bem como a noção do professor enquanto único capaz e responsável pela instrução

dos alunos.

Figura 39: Tira de Mafalda

Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p 289.

No primeiro quadro observamos duas professoras conversando enquanto

observam as crianças que brincam pelo pátio do colégio. Sabemos que não se trata de uma

sala de aula, pelo fato de as crianças não estarem uniformes e sentadas em suas carteiras.

Algumas correm, outras se mostram sorrindo, felizes – o que também é característico das

33

Trecho faz parte do Contrato de las maestras con el Consejo Nacional de Educación, presente em La Revista

del Consejo Nacional de la Mujer, Año 4, n° 12, Buenos Aires, março de 1999 apud SUAREZ, Maria Laura,

2011, p. 48.

Page 105: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

105

representações dos recreios. Contudo, enquanto as demais crianças se divertem, Mafalda

revela à colega que na noite anterior pediu ao seu pai que lhe explicasse algumas divisões. A

professora espanta-se com o que ouvira, seus olhos se arregalam, e ela caminha até Mafalda,

questionando a atitude da menina que perguntara ao pai sobre o conteúdo escolar, quando é

papel da docente lhe explicar sobre as divisões. Além de sua fala dura, a professora se

permanece altiva e ao se aproximar da personagem, mantém certo distanciamento, aponta o

dedo impositivo, que, juntamente com sua fala, recrimina a atitude da aluna.

Nos próximos quadros Mafalda interrompida pela bronca da professora, para,

volta o corpo para ela, e observa sua distancia e atitude desproporcional diante do ocorrido.

Seus olhos se levantam, ela analisa a professora, e com certo desdém, retoma seu diálogo com

a colega. A professora se mantém firme ao seu lado, como que esperando um pedido de

desculpas ou alguma forma de reparação pelo erro cometido. Entretanto, o último quadro vem

nos mostrar que Mafalda não só não pediria desculpas, como a errada na cena era a

professora, “detentora” do conhecimento. A protagonista explica que estava perguntando

sobre as divisões sociais, culturais e raciais, e a professora adquire uma expressão de surpresa

e indignação, olhando para o leitor num pedido de ajuda diante de uma aluna tão diferenciada

e da situação embaraçosa. Além da representação das funções e relações dos atores escolares,

a tira produz humor pela surpresa gerada no leitor, que assim como a colega e a professora,

pensou que Mafalda conversava sobre as divisões matemáticas, tanto pelo fato de a

personagem ser uma criança – teoricamente inocente – que indaga sobre os problemas

mundiais e nacionais, que acometem o mundo dos adultos.

Além disso, era importante às professoras conservarem uma fisionomia discreta,

sem exuberâncias, uma postura rígida, porém com um tom de voz cálido, que inspirasse

respeito e ternura. A “maestra” se transformava em uma “segunda madre”, que instruía os

alunos quanto aos conteúdos escolares e às condutas sociais desejadas. Este modelo docente

tem sua raiz na matriz eclesiástica da escola tradicional, nos quais, como visto anteriormente,

os professores herdaram a hierarquização das relações e as obrigações apostólicas e morais

dos sacerdotes, antigos encarregados do processo de ensino. Na tira abaixo podemos

visualizar as duas representações mais tradicionais a respeito da instituição de ensino e dos

docentes: a escola vista como local sagrado, “templo del saber”, e como um local onde os

professores e alunos estabelecem uma relação similar a dos pais com seus filhos (SUAREZ,

2011, p. 49).

Page 106: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

106

Figura 40: Tira de Mafalda

Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p 127.

No primeiro quadro, presenciamos o primeiro dia de Mafalda na escola. Os alunos

se encontram no pátio, enfileirados, ordenados e quietos, enquanto os professores estão em

um palco para dar as “boas vindas”. A arquitetura escolar do desenho é retilínea, e a opção

gráfica de Quino nos gera a sensação de disciplina, na medida em que as janelas, portas e

pisos quadrados ou retangulares, se alinham com a postura ereta dos professores e dos alunos.

O segundo quadro fecha na professora/diretora da escola, uma senhora gorda, símbolo do

modelo de professora argentina, com seu uniforme, óculos e penteado. Enquanto ela

movimenta as mãos e sorri docemente, expõe aos novos alunos que estes agora fazem parte

do templo de saber, e que podem se tranquilizar, porque cada professora “brindará aquello

que toda madre oferece a sus hijos: amor”.

Contudo, a nossa protagonista questionadora aparece no último quadro

compartilhando sua alegria ao saber que receberiam amor, e não a sopa, como ela imaginava

que fosse. A sopa, em toda a obra de Quino representa o autoritarismo – que Mafalda se

recusa e sofre ao engolir. Muitas tiras trazem Raquel dando sopa aos filhos, e Mafalda

abordando as temáticas da censura e do abuso de poder –, e assim, a menina denuncia e critica

a escola como um local autoritário, onde por trás de um discurso de amor, existia uma postura

rígida, muitas vezes agressiva, preparada para moldar os alunos de acordo com os interesses

da nação. Somado ao seu discurso, vemos o guarda escolar e os professores olhando para

Mafalda com faces desgostosas, num misto de surpresa e desapontamento diante do

comentário da nova aluna.

Ainda, no que diz respeito às ações disciplinantes, nas tiras de Mafalda os

métodos de ensino também se mostram eficazes como mecanismos de controle dos alunos.

Estes supostos estavam em sintonia com o modelo de educação bancária, voltada para a

instrução dos alunos ao invés da educação dos mesmos, entendendo que eles poderiam

Page 107: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

107

adquirir los conocimientos impartidos siguiendo una programación

establecida a priori y mediante la utilización de estímulos para obtener

determinadas reacciones. De esta manera, ellos prometían un aprendizaje

exitoso en todos los casos, desconociendo la intervención de diferentes

factores, sean individuales o sociales (SUAREZ, 2011, p. 29).

Na maioria das tiras que trazem a sala de aula de Mafalda, podemos observar

colado nas paredes um mapa da Argentina, frisando a importância da incorporação da noção

de Nação pelos alunos, dentro no sistema tradicional de ensino argentino. Ainda, em algumas

tiras as paredes possuem fotografias dos políticos e importantes homens argentinos,

apresentados como heróis nacionais, uma vez que o ensino de História era transmitido a partir

de epopeias, sem articulação entre os acontecimentos. Quino, ao longo de sua obra, colabora

com nosso entendimento sobre a matéria que Mafalda está aprendendo através da composição

de cenário, seja pelo quadros na parede, pelo globo, desenho de animais, plantas, entre outros.

Na tira abaixo presenciamos um momento de avaliação que, segundo Pineau

(1996, p. 234), também correspondia à lógica disciplinadora, tendo em vista que o exame,

além de medir os conhecimentos apreendidos pelos alunos através da memorização e

repetição, servia como castigo para comportamentos inadequados.

Figura 41: Tira de Mafalda

Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p 395.

No primeiro quadro nos deparamos com a professora, em seu estilo inquisidor,

perguntando sobre as principais produções argentinas. No fundo da sala vemos um quadro

com uma vaca e algumas plantas, o que nos remete a uma possível aula de biologia.

Entretanto, Mafalda, a aluna interrogada da vez, responde de forma equivocada, dizendo que

o solo é produtor de pessimistas, fazendo sua crítica à sociedade argentina. Ao responder, a

personagem apresenta uma expressão triste, como que desapontada com o perfil de argentinos

de sua época. O humor gerado nesse quadro se deve ao elemento político-social, num

Page 108: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

108

momento de avaliação escolar. No último quadro visualizamos a personagem chegando a sua

casa, ela abre a porta com uma expressão de desespero e tristeza, e, antes de qualquer coisa,

anuncia a nota ruim na prova: “¡¡cero en sinceridade!!”. Novamente, o elemento humorístico

se constrói no inconformismo de Mafalda, que ao seu ver, a despeito da avaliação escolar,

fora sincera e merecia uma nota maior por isso.

Figura 42: Tira de Mafalda publicada por El Mundo em 12 de março de 1966.

Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p 558.

O primeiro quadro da tira acima mostra Mafalda sorrindo e comemorando que

ganhara um “MB” por toda sua página de seu palotes34

. Podemos ver que os alunos estavam

aprendendo pela repetição a escrita da letra I. Os outros dois quadros mostram colegas de

Mafalda exaltando sua boa nota pelos seus respectivos palotes. Os alunos estão vestidos com

seus uniformes, o que nos permite inferir que estão no colégio e acabaram de receber o

resultado de sua avaliação. No entanto, no último quadro Manolito aparece triste e pensativo,

sem entender o porquê sua nota ruim “MAL” na sua página de palotes. O humor da tira está

na confusão do aluno, que não compreendera o objetivo da tarefa: era necessário reproduzir a

mesma letra por toda a página, e não apenas fazer uma grande letra I que cobrisse a página.

Além disso, o personagem em questão é representa o aluno com dificuldade, e essa tira

dialoga com as demais, já lidas pelo público de Quino, e nas quais o menino não acompanha

os demais colegas de sala.

Contudo, quando Quino publica a tira, ele não tinha conhecimento de que as

escolas argentinas já não mais usavam palotes como mecanismo de alfabetização. E assim,

em março de 1966, ele recebe inúmeras cartas de seus leitores, tanto professores quanto pais

de alunos, que lhe avisam sobre o fato de que os palotes “se habían dejado de usar tiempos

34

Palotes era uma cartilha destinada à alfabetização das crianças, a partir da repetição do formato das letras,

muito utilizada na primeira metade do século XX na Argentina.

Page 109: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

109

atras” (COSSE, 2014, p. 85). Desse modo, além de representar um momento de avaliação

escolar, a tira permite que observemos como Quino estava imerso em suas memórias e antigas

práticas pedagógicas quando produziu sua obra.

A escola moderna tradicional, produtora de conceitos e de uma estética escolar,

também fora responsável pela organização do tempo – horários, recreios, duração das aulas,

entre outros -, elemento fundamental para regular a relação do aluno com o espaço e tempo. O

calendário escolar passa a determinar os horários de convívio entre os familiares, e até mesmo

as datas de viagem da família de Mafalda. Na tira abaixo, nos deparamos com um momento

de controle do tempo dentro do ambiente escolar: a campainha que sinaliza o momento de

dispersão e intervalo das aulas. Mecanismo utilizado até os dias atuais, se estabeleceu há

muito como forma de comandar os corpos dos alunos. No primeiro quadro temos uma

onomatopeia (ring), que como signo de representação é muito conhecido e já avisa o leitor de

que a aula acabara. Num balão unissônico – produtor da sensação de comunhão – as crianças

exaltam o recreio, compondo uma cena feliz junto aos sorrisos que elas apresentam. Saem de

suas carteiras e correm para o pátio, onde poderão se movimentar e brincar.

Figura 43: Tira de Mafalda publicada por El Mundo em 12 de março de 1966.

Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p 332.

Contudo, além de trazer mais um representação do formato escolar, Quino vai

além e aborda outras temáticas, criticando o abandono às instituições de ensino. A despeito da

alegria dos outros alunos, Mafalda se mantém séria desde o primeiro quadro. Quando as

crianças se movimentam ela observa um prego que cai da sua carteira; depois no pátio, ela

repara no teto que se desfaz, no encanamento que está quebrado, e nos muros descascados e

rachados. Por fim, diante de tamanha contradição entre o momento de prazer dentro do

ambiente escolar e a preocupação presente nas expressões da personagem, no último quadro

Mafalda desabafa com Felipe sobre o descaso com a edificação da escola. As demais

Page 110: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

110

crianças, bem como a professora, não apresentam a mesma preocupação, e em nenhum

momento observam a situação do edifício escolar, como se seus olhos já estivessem

acostumados com a precariedade. Os detalhes do desenho nos permitem verificar esse

processo de deterioração da escola, e inferir uma crítica ao abandono da educação por parte

das autoridades políticas. Além disso, a própria personagem interage com as ruinas e a

degradação ao denominar o abandono do edifício como um trabalho dos “decoradores del

ministerio de educación”.

Dessa maneira, ao passo que as tirinhas de Mafalda nos assinalam aspectos da

educação argentina do período, de seus questionamentos e práticas escolares, elas também são

parte da memória escolar do argentino, que através do desenho se remete às imagens, cores,

sensações de sua própria experiência escolar. A escola, então, pode ser compreendida como

um espaço de imposição de determina estética, voltada para padronização dos alunos dentro

do que era estipulado como aceitável e bom para a sociedade. Conforme Pineau (2008), a

estética escolar permite que, partindo de um mesmo molde, unifiquem-se as experiências

escolares, o modo de se portar, o vestuário, o mobiliário, os comportamentos dos alunos e dos

professores. Ademais, a escola vista como produtora de sensibilidades, de noções de beleza,

limpeza, virtudes e valores, não é ingênua na maneira como pensa sua estética, a utiliza

justamente para introduzir tais noções aos alunos que ali se encontram.

A partir do estudo dos elementos da cultura escolar a material, Pablo Pineau e

Susana Di Pietro (2008) traçam a geometria da vida escolar argentina, considerada por eles

como quadrada e asséptica, caracterizada pelos tradicionais jalecos brancos, as maletas, os

bancos e carteiras equidistantes, os mapas-múndi, cadernos, entre outros objetos que fazem

parte dessa vida escolar35

. As tirinhas de Mafalda também nos permitem visualizar essa

estética escolar problematizada e apresentada pelas imagens de Di Pietro.

Mafalda reflete, assim, a realidade vivida naquele momento histórico, baseando

suas preocupações, críticas e ideologia em experiência concretas, visto que muito do que é

produzido se pauta em memórias e vivências do próprio autor. Quino, ao tratar de aspectos

que envolvem o seu contexto imediato, consegue captar de maneira ímpar as questões mais

relevantes do momento em que vive, expondo-as por meio da imprensa gráfica. A

35

No livro Aseo y presentación: un ensayo sobre la estética escolar (2008) , Pineu e Di Pietro refletem sobre a

estética escolar. Di Pietro retratou - a partir de fotografias de escolas públicas e particulares de Buenos Aires da

década de 1970, principalmente -, os ambientes escolares, as práticas, os alunos e funcionários que compunham

as cenas escolares do período. Da mesma forma, quadrinhos que trazem o vestuário dos alunos e os materiais de

sala nos permitem visualizar e questionar o significado desses objetos e espaços que hegemonizam a forma como

a escola é vivida e recordada, ou melhor identificada, pelos leitores.

Page 111: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

111

personagem Mafalda é, desta maneira, um registro histórico e um sujeito histórico. É nesse

sentido que procuramos compreender as HQs não apenas como fontes informativas, mas

também como produção cultural, que possui capacidade de ação na sociedade em que se

insere, e Mafalda, se torna, desse modo, um instrumento para compreender um tempo e uma

linguagem específica.

Page 112: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

112

Capítulo 4: 1960 - Mafalda e escola em transformação

Page 113: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

113

Em março de 1960, aconteceu no México a Terceira Reunião do Comitê

Consultivo Intergovernamental do Projeto Principal de Educação para a América Latina,

destinada a avaliar o andamento, facilidades e dificuldades de realização das propostas

elaboradas pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura. Além

dos dirigentes da UNESCO, se reuniam os delegados de diferentes países, dentre os quais a

Argentina, além dos observadores de países integrantes do CEPAL, dos integrantes do

UNICEF, bem como a Confederação de Educadores Americanos, a União Mundial dos

Professores Católicos, entre outras organizações.

Dentre vários pontos da pauta, a reunião se destinou também a ratificar as

propostas do Projeto Principal Nº 1 da UNESCO, no qual os governos deveriam se

comprometer com o planejamento da educação, a extensão da educação primária, a revisão

dos planos e programas de estudo e, de formação e aperfeiçoamento dos docentes. Propunha-

se, ainda para os anos seguintes (1961 e 1962), o aumento de investimento em educação

primária por ações dos governos dos países latino-americanos, apostando que, a partir dela, os

problemas educacionais da América Latina passariam a diminuir consideravelmente. Além

disso, representados pela Presidenta do Consejo Nacional de Educación, Clotilde Sabattini de

Barón Biza, os argentinos foram parabenizados pelo entusiasmo diante do desenvolvimento

do Projeto durante o período entre 1957 e 1960, destacando-se a adoção do Estatuto del

Docente – que incluía, entre outros, o ingresso profissional por meio de concurso, assegurava

a estabilidade aos professores , previa bonificações e tempo de aposentadoria – e, a “ (...)

asistencia de más de 2.800.000 niños a las escuelas primarias gracias a las medidas tomadas

en favor de la expansión de los servicios educativos” (EL MONITOR DE LA EDUCACIÓN

COMÚN, 1960, núm. 928, p. 57).

Esse episódio demonstrava o compromisso assumido pelo governo argentino para

promover o avanço educacional no país, apostando, também, nos pontos proferidos pela

UNESCO como norteadores para seus próprios projetos e leis de expansão e melhoria dos

seus sistemas de ensino primário, secundário e de formação profissional. Nesse sentido, o

governo de Frondizi, entre 1958 e 1962, fora marcado por muitos acontecimentos

significativos para a educação argentina. Além da sanção do Estatuto del Docente, criou-se o

Consejo Nacional de Educación Técnica (CONET) e foram promovidos inúmeros debates

acerca do ensino laico e livre. Além disso, Frondizi iniciou o processo de transferência das

escolas primárias nacionais para as províncias, desburocratizando o sistema, descentralizando-

o e permitindo maior heterogeneidade nos processos de ensino e aprendizagem.

Page 114: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

114

Durante a presidência de Umberto Illia, a relação entre os docentes e o governo

se afinou e permitiu que houvesse maiores aberturas e inovações no campo educacional.

Muitas experiências pedagógicas democráticas foram desenvolvidas e estimuladas, como o

novo liberalismo laico escolanovista, que, influenciado pela psicanálise e psicologia social, se

desenvolveu em ambientes educativos como jardins de infância, colônias de férias, centros de

recreação e algumas escolas públicas. Essa nova corrente, marcada também pela intervenção

de pensadores e educadores de esquerda, discutia a relação entre educação e tempo livre,

possibilitando a criação de jardins de infância e centros de complementação escolar privados,

que realizavam experiências pedagógicas diferenciadas das escolares tradicionais. Em Buenos

Aires, por exemplo, se destacou Arco Iris, dirigido por Chola Falco e Cory Troianosvsky, na

qual “pasó gran parte de los hijos de los intelectuales y dirigentes progresistas” (PUIGGRÓS,

1997, p. 116), e que se tornou fundamental para a formação de princípios educativos

democráticos, e mais tarde, “contribuyó em buena medida a la gestación de la cultura

pedagógica progresista de la clase media” (Ibidem).

Em 1965, o Consejo Nacional de Educación definiu as orientações para a

expansão dos serviços educacionais do país, tendo como objetivos o planejamento educativo

coordenado juntamente ao planejamento do Ministerio de Educación y Justicia; o

alinhamento com os planos de desenvolvimento do país; planejamento de construção escolar;

assistência integral escolar; e o aperfeiçoamento contínuo do docente (EL MONITOR DE LA

EDUCACIÓN COMÚN, 1965, núm. 939, p. 65). Estes propósitos se relacionavam

principalmente com a educação primária, mas compunham também o objetivo do Consejo

Nacioal de Educación de “recuperar para la vida de la cultura y la capacitación para el

trabajo, 1.000.000 de adultos analfabetos en el término de 4 años, mediante un Programa

Nacional Intensivo de Alfabetización y Educación de Adultos” (Ibidem).

Dessa maneira, durante o ano foram criados cerca de trinta e duas escolas, 301

turmas de ensino fundamental e 172 turmas de jardim de infância. As escolas passaram a

garantir alimentação aos alunos, com a criação dos “comedores” (refeitórios escolares), sendo

que nesse ano, cerca de 282 escolas e 16 mil alunos eram beneficados na capital federal. Além

de alimentação, passou a ser garantida a oferta de melhores serviços médicos-odontológicos,

além de atividades culturais, tais como a recreação para as crianças aos domingos e feriados,

exposições de livros escolares e revistas pedagógicas, e atos em homenagem aos dias das

mães, em escolas e praças.

Page 115: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

115

Os esforços para alavancar a educação nacional foram grandes. Em 1969, um

novo projeto de lei aprovado instituía a educação obrigatória dos seis aos quatorze anos de

idade, garantindo a permanência da criança em todas as etapas escolares. Em um momento

que a modernização, expansão cultural e tecnológica também exigiam um aprimoramento e a

expansão da educação, ao longo da década de 1960, o cenário educacional argentino sofreu

grandes alterações quantitativas e qualitativas. Com o apoio de organizações nacionais e

internacionais foram construídas novas escolas, prédios foram reformados e metodologias e

práticas de ensino revisadas, tal qual ocorria em outros países latino-americanos.

4.1 – As revistas pedagógicas: propostas e discursos educacionais

Ao longo do século XIX, as revistas de grande circulação se inovaram e passaram

por um processo de expansão utilizando cada vez mais imagens e textos curtos, o que, além

de facilitar o acesso do público comum, as transformaram em uma mercadoria atrativa, de

leitura rápida e leve. Assim, a publicação de revistas virou moda em países europeus e se

transformou em uma publicação “emblemática de la vida moderna” (FINOCCHIO, 2009, p. 13),

capaz de apresentar modos de viver, ideias de modernidade, e assim, formar seus leitores.

Conforme destaca Finocchio (Ibidem), na Argentina, principalmente durante as primeiras

décadas do século XX, as revistas se apresentaram como uma fusão do livro com os jornais, e

se afirmaram como produtos culturais que contava com um publico diversificado. Além disso,

se transformaram em um espaço de confluência entre o culto e o popular, sendo lidas por

pessoas de diferentes gêneros, idades, profissões, gostos e expectativas.

A partir da segunda metade do século XIX, as escolas argentinas, que já estavam

processo de construção, contavam com a formulação de um sistema educacional e com a

opinião pública para efetivar sua aceitação enquanto local seguro de ensino, diferente da

anterior educação familiar e religiosa. O Estado, preocupado em garantir a afirmação da

escola na sociedade, utilizava dentre outros recursos, dos meios de comunicação para dialogar

com os pais, alunos e docentes; e, nesse cenário surge a imprensa voltada à educação –

revistas e jornais educativos – que se expande como instrumento adequado para difundir as

ações do governo, uma vez que através dos textos oficiais e da imprensa alternativa eram

apresentados e discutidos práticas e direcionamentos pedagógicos. Dessa maneira,

(...) la prensa educativa fue un espacio que no sólo expresó creencias, gustos

y preferencias sobre materiales y modos de enseñar, sino que hizo a las

relaciones más o menos amables de la cultura escolar con la cultura política,

Page 116: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

116

religiosa, académica, de géneros y popular o masiva. (FINOCCHIO, 2009, p.

19)

Nesse cenário, o sistema educacional apostava na capacidade da imprensa de

contribuir para aperfeiçoamento da imagem dos docentes, uma vez que almejava um professor

leitor assíduo de revistas profissionais, e que se pautasse nos direcionamentos e discussões

pedagógicas propostas. Muitas publicações começaram a circular pelo país. Estas se dividiam

em seis grandes categorias: as revistas sobre o sistema educativo e as instituições escolares;

publicações para docentes; para um tipo particular de educação, como por exemplo, o ensino

religioso, o ensino privado ou o ensino técnico; revistas de educação não formal, destinadas a

recreação e promoção cultural; e as publicações do campo da pedagogia e das ciências da

educação, centradas nos debates de ideais pedagógicas ou teorias educativas. De um modo

geral, eram textos que dialogavam diretamente com os docentes e familiares, capazes de

fomentar os modelos esperados e inspirar modificações desejadas. A maestra (como se chama

a professora da escola primária na Argentina), por exemplo, era constante tema, e sobre ela

deixava-se claro que aquela que não quisesse ser “mal vista” deveria ter uma biblioteca

própria, ser assinante de uma publicação de caráter profissional, ler textos que aumentassem

sua cultura, já que

(...) La maestra que no leer o que perde su tempo en lecturas frívolas o

triviales, pronto olvida lo aprendido y cae en la rutina más desesperante; y

aquella que no está suscripta a una o varias revistas pedagógicas demuestra

su escaso apego a la profesión, porque no desea estar al cabo de los adelantes

y de la evolución que, con el andar del tiempo, van adquiriendo todas as

manifestaciones de la actividad humana, entre as cuales se encuentra

naturalmente la enseñanza. Pobres los niños a quienes les tocan mentores de

esta clase.” (Revista Instrucción Primaria, 1932 apud FINOCCHIO, 2009, p.

18.)

Como aponta Gondra (1997), as revistas pedagógicas, de uma forma geral,

funcionavam como um guia do professor, a quem o Estado desejava fornecer todos os

elementos e auxilio para o perfeito desempenho de sua missão. Dessa maneira, a imprensa

educacional permite identificar tanto as políticas educativas do governo, assim como as

questões e conflitos das próprias instituições, as disciplinas escolares, e as propostas de

formação docente. Além disso, como ressalta Finocchio (2009) a partir da leitura de suas

publicações, é possível conhecer os detalhes da cultura que reina no dia a dia da escola, uma

vez que as revistas remetem “(...) no sólo a la cultura de lo escolar y a los procesos

simbólicos-políticos ligados a la conquista celular de la educación, sino también a la

producción de los propios sujetos del mundo educativo” (p. 28).

Page 117: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

117

Criada em 1881, o El Monitor de la Educación Común era a publicação oficial do

Consejo Nacional de Educación, patrocinada tanto pelo governo nacional quanto pelo

governo da província de Buenos Aires36

. Conforme aponta Quadros (2013), a revista era uma

ferramenta de vital importância para o Estado garantir a homogeneização e unificação da

educação no país. Era entregue gratuitamente nas escolas, e diferentemente de outras revistas

pedagógicas, como os Anales de la Educación Común37

, não foi criada para ser uma revista

destinada ao público geral e sim aos inspetores escolares, uma vez que orientava a vida

escolar, se tornando essencial para a organização de um sistema educativo argentino, visto

que, semelhante ao que ocorrera em outros países, estabeleceu ideias, crenças e sentimentos

sobre a cultura escolar e profissional, como o “ amor à profissão, saber do professor,

preparação moral, formação do caráter”, assim como difundiu “(...) postulados pelos quais se

buscava formar a opinião pública, circunscrever as opções de profissionalização e informar

acerca do domínio de saber e do cumprimento de prescrições dos governos” (p.340).

Ao longo de suas páginas, reproduzia notificações oficiais, e abarcava temas como

a arquitetura e planos de construção de edifícios escolares, os materiais educativos, o sistema

de inspeção e a assistência escolar. Ainda, contava com uma série de artigos nacionais e

internacionais, que discutiam as ideias pedagógicas e suas práticas38

. Durante o século XX, a

revista passou por modificações, acompanhando os interesses e objetivos do governo e as

novas formas de pensar a educação nacional, incentivando práticas que valorizassem ora a

normatização, ora a pátria, os rituais solenes, ora os professores como parte fundamental do

processo educativo. Com estes, a revista passou a dialogar ativamente, através de boletins,

fotografias, mensagens e até mesmo espaços abertos para publicação de diários e experiências

profissionais. Por exemplo, na edição de 1932, a revista publica a seguinte mensagem:

Maestros:

36O Consejo Nacional de Educación era um órgão dependente do Poder Executivo Nacional da Argentina, criado

pelo presidente Julio Argentino Roca, em 1881. Inicialmente sua função era administrar as escolas prímárias

públicas, e sua autoridade se limitava aos estabelecimentos localizados na cidade de Buenos Aires. Depois de

alguns anos seu poder e ação foi estendido às escolas nacionais em todo o país. Sua primeira autoridade foi

Domingo Faustino Sarmiento com o cargo de superintendente geral. 37

Os Anales de la Educación Común passou a ser publicado desde 1858, era dirigida por Sarmiento, chefe do

Departamiento de Escuelas de la Provincia de Buenos Aires. Conforme Quadros (2013), a revista procurava

disseminar o discurso da necessidade e relevância da implantação da instituição escolar, conquistar e convencer

a sociedade da importância de um sistema escolar ou, em outras palavras, produzir uma opinião pública e

difundir os sentidos da escolarização: civilização e progresso social. 38

Existia, no período, uma preocupação do Consejo Nacional de Educación em trazer também publicações

internacionais, garantindo um intercâmbio e o reconhecimento da revista produzida. Em 1890, os artigos de El

Monitor de la Educación Común já eram publicados em revistas de ampla circulação internacional, como o

Journal d’Education Populaire, editado em Paris, e o Education Times, produzido na Inglaterra, entre outros.

(FINOCCHIO, 2009, p. 20).

Page 118: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

118

El Monitor de la Educación Común es de vosotros y para vosotros.

Contribuid a sua obra enviándonos el resultado de vuestro trabajo y estúdios,

y la expresión de vuestros ideales, necesidades y aspiraciones. (...)

Aprovechad el material que lleva, en las clases, en lecturas comentadas con

otros compañeros, reuniones con los padres y en centros obreiros para

sembraren ellos la preocupación por todos los problemas educativos. (EL

MONITOR DE LA EDUCACIÓN COMÚN, 1932, p. 68 apud

FINOCCHIO, 2009, p. 73)

No contexto de mudanças e questionamentos do modelo tradicional escolar e da

criação de novas correntes pedagógicas surge um pequeno grupo de professores que se

opunha à visão de El Monitor de la Educación Común, e cria uma nova revista, La Obra, na

qual publicavam suas ideias e propostas educacionais39

. Diante da vigência do normalismo e

do positivismo, o grupo, de orientação socialista, assumiu os postulados do movimento da

Escola Nova, defendendo que tanto o processo como o sistema educativo deveriam estar

centrados na figura da criança40

. Assim sendo, em suas páginas, ela explicava aos leitores que

“(...) la escuela de leer, escribir y las cuatro operaciones es un resíduo fóssil de las sociedades

medievales como los castigos y los exámesses” (LA OBRA, 1932, p. 4 apud FINOCCHIO,

2009). Ainda, o grupo afirmava que o novo modelo educacional teria como função

demonstrar que as atividades escolares podem ser prazerosas quando aplicadas com afeto: “el

niño debe aprender a trabajar jugando entre caricias y sonrias, entre pájaros y flores”.

(Ibidem)

A partir da segunda metade do século XX, as temáticas de La Obra e El Monitor

de la Educación Común se modificaram diante do quadro internacional e nacional. A saída de

Perón do poder e o intento de “desperonizar” a Argentina desencadearam uma necessidade de

reconstrução dos aparelhos estatais, e, por conseguinte, da educação nacional. Muitas

correntes pedagógicas disputavam o espaço, e as revistas tiveram papel essencial para a

promoção das novas ideias e defesa das antigas. Era comum a existência de múltiplas visões

de mundo e, por conseguinte, os embates entre elas. A imprensa e os manuais de ensino

vieram a balizar a agenda das escolas, dando ênfase a determinadas propostas curriculares e

até mesmo a manifestações públicas de cunho cívico ou religioso. (GATTI; GATTI, 2015).

Nos anos 1940 e 50, ocorreu a massificação do sistema educativo. As revistas

pedagógicas eram cada vez mais lidas, sendo utilizadas pelas professoras fora e dentro da sala

39

La obra nasceu como iniciativa de um grupo de professores que foram da Escola Normal Mariano Acosta. O

grupo era composto por Benito Cometta Manzini, Luis Ciroli, Juan Franchi, Francisco Ramospé e José

Schiappasse. Sobre La Obra, ver FINOCCHIO, 2009. 40

No final do século XIX e início do XX, predominava, na Argentina, a filosofia positivista. Esta se manifestava

no âmbito educacional a partir do normalismo, corrente educativa que valorizava as ciências naturais, o

evolucionismo como explicação para a história da humanidade, e a ordem e o rigor para o alcance do progresso.

Page 119: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

119

de aula. As novas propostas de ensino ofereciam aos docentes formas de transformar suas

aulas para além da pedagogia tradicional. Entretanto, o sistema educativo argentino, que

desde seus primórdios foi alvo de bastante interesse por parte do Estado e da população,

consolidou a escola como marca da cultura e sociedade desse país; e assim, as revistas, por

mais inovadoras que pudessem ser, não se distanciavam dos interesses pátrios. Dessa maneira,

por exemplo, o nacionalismo e os rituais solenes não eram criticados, mas ao invés de

oferecerem biografias e rituais estereotipados, procurava-se promover um conhecimento mais

profundo da realidade do país, através da educação histórica e geográfica.

A partir de 1950, a revista La Obra objetivava uma renovação de ideias

pedagógicas compreendendo o leitor como participante e responsável pela mudança na

educação. Em razão disso, propunha o fortalecimento da cultura empírica dos professores; o

desenvolvimento concreto dos diversos saberes escolares; maior aproximação entre a escola e

a comunidade; o nacionalismo discutido com certo distanciamento; e o laicismo escolar sui

generis (que ainda permitia alguns rituais católicos como Páscoa e Natal). Em contrapartida,

as publicações oficiais, como El Monitor de la Educación Común, assumiram uma função

muito mais informativa do que reflexiva. Nos períodos de maior autoritarismo político,

marcados pelos golpes e ditatura, essa revista divulgava as ideias diretivas, os decretos,

resoluções e alguns artigos científicos que correspondiam ao ideal de educação do Estado,

voltado para a promoção da renovação educativa por meio de decretos.

Ademais, diante das novas tendências, tendo a criança ganhado maior importância

no processo de aprendizagem, cabia agora ao docente se aperfeiçoar novamente: sobre o

professor, recaia a ideia que ele não era mais o detentor de conhecimento, sério e rígido com

seus alunos, mas que, agora, ele deveria ensinar “com la dulzura en el trato de los niños” (LA

OBRA, 1921 apud FINOCCHIO, 2009). Este comportamento docente se propagou nas

revistas e, nas décadas de 1950 e 1960, já não era mais preciso seguir defendendo como

deviam se comportar as professoras. O estereótipo sobre o afeto magistral se estabeleceu na

sociedade, aparecendo, inclusive, juntamente com outras representações culturais sobre a

educação escolar, nas tiras produzidas por Quino.

O desenvolvimento da educação no período, em âmbito internacional, é marcado

pela comum experiência reformista no campo da educação e da administração educacional,

difundida principalmente pelas organizações intergovernamentais de cooperação técnica e

assistência financeira. A despeito dos interesses institucionais – seja de transmissão de

conhecimento, ou de intervenção nos processos internos de decisão política e culturas locais –

Page 120: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

120

organizações como a UNESCO influenciaram o processo de formulação de políticas públicas

e orientaram o desenvolvimento educacional na Argentina e em muitos outros países do globo

(SANDERS, 2008, p. 160). Foram criados muitos programas de cooperação internacional,

como o Projeto Principal, estabelecido em 1959, após um informe da UNESCO, que

apresentava um panorama sobre o cenário educacional da América Latina, afirmando que

metade das crianças em idade escolar não frequentava a escola primária.

Para solucionar o problema, o Projeto defendia a descentralização da gestão

educacional e destacava o docente como fundamental no processo, uma vez que acreditava-se

no cultivo da personalidade do professor, no enriquecimento de sua cultura e no progresso de

sua técnica profissional como ingredientes para saber ensinar e conhecer a quem ensina,

melhorando assim, a educação do país. (UNESCO, 1959, vol. nº7. Julho, 1959 apud ARATA,

2013). Contudo, de acordo com Finocchio (2009), apesar do período ser marcado pelas

mudanças sociais e educacionais, nos anos 1960 e 1970, mesmo com todas as publicações

voltadas à transformação da educação nacional, o que se observava era o atraso e não um

compromisso com a renovação educacional. Em 1961, o editorial de La Obra afirmava que:

La escuela, desde la época sarmientina, ya cumplió una importante etapa

civilizadora. Pero en este momento tiene un atraso de medio siglo. Pareciera

prácticamente paralizada porque, pese a los esfuerzos que desde hace algún

tiempo se realizan, son luces de bengala que nacen y se apagan en las esferas

burocráticas. (LA OBRA, 1961 apud FINOCCHIO, 2009).

É nesse contexto que Mafalda surge. Quino era funcionário de revistas e

jornais do país, se inteirava das mais diversas discussões e, trazia para suas criações, temáticas

complexas que dialogavam diretamente com os acontecimentos nacionais e internacionais. Da

mesma maneira, as diferentes propostas educacionais, suas ideias, metodologias e apelo

social, também se tornam alvos de suas tiras.

4.2 – As tiras: a educação pela Mafalda

Os muitos textos publicados – sobre o docente, o aluno, as escolas urbanas, as

escolas rurais, os projetos governamentais, o combate ao analfabetismo, as divergentes

correntes pedagógicas, entre outros – permitem verificar em que medida os discursos oficiais

e os debates sobre educação estavam presentes e atuais nas tiras de Quino, em quais pontos

existiam convergências e em quais os temas se contradiziam. Na primeira metade do século

XX a imprensa educativa oficial foi uma preocupação do Estado argentino, que a adotou

Page 121: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

121

como instrumento ativo no processo de organização e afirmação do sistema educacional, e

mais tarde se converteu em uma grande difusora “(...) del cambio y la reforma llegando

incluso a convertise en una extradordinaria impulsora de una transformación drástica del

sistema” (FINOCCHIO, 2009, p. 140). Dessa maneira, estabelecendo um diálogo entre o

discurso oficial do Estado, presente em El Monitor de La Educación Comum, e as tiras

produzidas por Quino, procurou-se analisar as propostas, censuras e visões de educação de

Mafalda.

Figura 44: Tira de Mafalda publicada por El Mundo

Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p. 128

A tira acima dialoga com as críticas proferidas ao modelo educacional tradicional,

e as práticas de ensino por ele adotadas, que, ao invés de proporcionar a aprendizagem a partir

da realidade do aluno, se valia de exemplificações, repetições e memorizações de frases,

muitas vezes, desconexas e sem relevância. No primeiro quadro, vemos a professora, vestida

com seu uniforme, parada e apontando para os escritos da lousa enquanto os lê para os alunos.

A leitura acontece com o uso do giz, que sublinha as frases principais. Seus braços são

desenhados duas vezes para produzir a sensação de movimento. Sua expressão corporal é

rígida e ereta, mas sua face apresenta um sorriso, o que pode simbolizar a dualidade vivida

pelos professores que, ao mesmo tempo, deveriam impor disciplina e ser amorosos com os

alunos. As orações ensinadas são simples “mi mamá me mima, mi mamá me ama”, mas

incomodam Mafalda, que se levanta de sua carteira, e caminha até a professora. Além da

composição e detalhamento do cenário (com as carteiras fixas, mesa da professora, mapa da

América e os quadros dos grandes heróis nacionais), a tira apresenta uma sequência de quatro

quadros menores, contribuindo para a marcação do tempo e sensação de simultaneidade da

ação.

Page 122: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

122

No segundo quadro, vemos a professora parada com uma expressão de

incompreensão diante do comportamento da aluna, que, além de interromper a explicação,

não o faz com o usual levantar de mãos, mas anda até ela, se posicionando em sua frente. A

professora, atônita, vê Mafalda pegando sua mão em um cumprimento, lhe felicitando pela

“mamá excelente”, e caminhando novamente para sua carteira. Os outros alunos a

acompanham com os olhos e cabeças, e a observam enquanto, no último quadro, já sentada,

finaliza seu raciocínio: era hora de ensinar algo realmente importante. A professora, nesse

momento, adquire maior inconformidade e assusta diante do pedido da aluna. A sua expressão

marca, também, o desconcerto que os professores vivenciavam diariamente nas aulas, uma

vez que foram formados pelo modelo tradicional escolar, e agora se deparavam com

transformações e solicitações diversas. E assim, ao invés de olhar para Mafalda, vira a cabeça

para o lado, como num pedido de ajuda diante das novas demandas.

Ao professor, a revista El Monitor de la Educación Común de agosto de 1960,

escreveu um decálogo com as normas e regras para se seguir e garantir um bom ensino. Era

necessário cuidar da disciplina, pois “(...) sin disciplina no es posible enseñar”; ter sempre

uma ou duas lições preparadas antecipadamente, para estar preparado em caso de “novedades

cotidianas”; não falar em sala nada alheio ao conteúdo e aos materiais didáticos; não falar mal

de nada ou ninguém para evitar inimizades no ambiente escolar; ser cordial e converter os

alunos em discípulos, mantendo sempre uma “(...) cariñosa distancia entre unos y otros, y

Dios sobre todos”. Ademais, recomendava-se ao professor dissertar pouco, interrogar muito;

garantir que a escola continue sendo um “templo del saber” resguardado; respeitar os

superiores, “(...) las jerarquias y procura no plantear cuestiones personales”; e, por fim, o

professor não deveria assustar seus alunos, ajudando aquele que está sendo avaliado,

perdoando seus erros. (EL MONITOR DE LA EDUCACIÓN COMÚN, 1960, núm. 932, p.

17).

A crise que o modelo tradicional enfrentava na segunda metade do século XX era

notória, tanto nas tiras quanto nos debates presentes pelos jornais diários e pelas revistas

educacionais do período. As novas correntes pedagógicas contribuíram para a transformação

do ideal de educação em um processo mais democrático e compreensível diante do tempo e

dificuldades do aluno. O governo argentino, imerso entre o tradicional e o renovador, passou

também a questionar antigas práticas e a defender uma educação moderna, marcada pela

articulação entre a já conhecida estética escolar (uniformes, material escolar, formato de

prédios, salas e posicionamentos, marcação de tempo e calendário) e as práticas de ensino

Page 123: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

123

consideradas mais humanas, com conteúdos mais próprios e coerentes com a realidade do

aluno. As professoras, antes detentoras de saber, agora deveriam mediar a construção dos

saberes; e estes deveriam ser significativos, ou seja, “realmente importantes”.

A partir da leitura da totalidade de tiras da obra produzida por Quino, podemos

inferir sobre o que era importante para Mafalda. A personagem queria aprender sobre

democracia, sobre a Guerra do Vietnã, o comunismo, a Guerra Fria, e sobre desigualdades

sociais. Destarte, ao passo em que apresentam suas demandas, as tiras fazem referências à

desconexão entre a realidade argentina e mundial e os conteúdos escolares, e trazem à tona a

discussão sobre o papel da escola e o tipo de aluno que se queria formar, um aluno capacitado

para analisar e transformar a sociedade, ou um formado somente para o mercado de trabalho,

com conteúdos memorizados e pouca capacidade crítica. A tira abaixo foi publicada em 29 de

junho de 1966, dia em que, após o golpe, o General Onganía assumiu a presidência do país,

iniciando uma nova ditadura militar no país.

Figura 45: Tira de Mafalda publicada por El Mundo em 28 de junho de 1966.

Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p. 548.

A tira de quadro único mostra a personagem triste. Suas sobrancelhas e boca

estão voltadas para baixo, e seu olhar apresenta um misto de profundidade e confusão. A cena

utiliza como recurso o close-up, enfocando somente no rosto da menina, como que nos

permitindo adentrar em sua intimidade e presenciar um momento de desabafo. Se

soubéssemos do acontecimento do dia, somente a imagem já seria suficiente para

compreender o temor e desgosto pela situação do país. No entanto, Quino trouxe uma fala

para a personagem, que ao mesmo tempo em que dialoga com os fatos nacionais, critica, mais

uma vez, a falta de vinculação entre o que se ensinava na escola e a realidade social e política

do país. Ao mesmo tempo em que na escola se aprendia as noções valores democráticos, amor

à Argentina e grandes marcos da história nacional, na realidade, os argentinos vivenciavam,

mais uma vez, a destruição dos direitos e liberdades civis. Além disso, a expressão de

Page 124: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

124

Mafalda também nos permite deduzir que essa educação descontextualizada provocava

desconcertos no aluno, fazendo-o questionar o sentido da escola.

Figura 46: Tira de Mafalda publicada por El Mundo

Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p. 367

O primeiro quadro da tira acima mostra uma professora vestida com seu uniforme

terminando de escrever o tema da aula preparada para o dia: História Nacional. Ela está ereta,

e diante da lousa num paralelo, prevalecendo, mais uma vez, os traços retilíneos na

composição da cena. A docente tem os cabelos presos num coque perfeito, sem fios soltos, e a

posição de seus braços também dialoga com a rigidez no formato escolar – rigidez vivida por

Quino, e agora, por ele criticada. No segundo quadro, a professora, já de frente para os alunos,

mexe suas mãos na vertical. O recurso de linhas fragmentadas produz a sensação de

movimento, e num ângulo reto, enfatizam a importância do que se estava dizendo aos alunos.

De acordo com ela, a matéria ensinada no ano anterior possibilitou que os alunos

conhecessem os processos de formação da Argentina, e da “esencia misma de nuestra

nacionalidad”. Entretanto, o que vemos no próximo quadro traz a contradição – e,

consequentemente, o humor da tira – os alunos respondem à professora, consonantes,

afirmando a sentença da mesma, de que aprenderam sobre a história argentina e sobre o que

significa ser um argentino. Respondem, contudo, com uma palavra, ou gíria, em inglês

“yeah”. Corpos rijos e idênticos colocam Mafalda ao centro da cena, a única aluna que nada

diz, e observa a cena atônita, com uma expressão contrariada, percebendo a incoerência entre

a valorização da identidade nacional pretendida pela professora, e o uso de expressões

estrangeiras por parte dos alunos.

A tira, apesar de possibilitar uma crítica à própria noção de identidade nacional, e

o “ser argentino”, mostrando as fraquezas do discurso escolar estatal, permite também que

verifiquemos a posição de nossa personagem sobre a educação e sobre a matéria ensinada em

Page 125: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

125

suas aulas. O Ensino de História e Geografia por muitas décadas foi fundamental para a

formação do argentino. A educação fora incumbida de garantir a homogeneização e

desenvolvimento do tipo argentino desejado: aquele que conhece e valoriza a história

nacional, compreende os desenhos geográficos do país, bem como seus grandes nomes e

heróis. Entretanto, a partir das mudanças educacionais que se potencializavam, muito dessa

concepção passou a ser questionada, procurando-se ensinar a história nacional e sua

importância a partir de novas perspectivas. Nesse sentido, Quino, ao produzir a tira, dialoga

com essas novas tendências, criticando e propondo que o ensino da constituição da “esencia”

dos argentinos era ultrapassado e ineficaz na formação do aluno.

Nos muitos textos da revista El Monitor de la Educación Común, procurou-se

refletir sobre os problemas da educação argentina, e as maneiras de melhor solucioná-los. O

discurso oficial defendia que os argentinos deveriam construir o país superando a

improvisação, as velhas desvirtuações e a irresponsabilidade cômoda, que transformaram a

sociedade em algo demasiadamente universalista e superficial, ocultando as raízes e índole

própria do povo argentino. Dessa maneira, se tornava imprescindível o distanciamento do

internacionalismo, pensar em uma educação com sentido nacional, que ao invés de datas,

nomes e símbolos, costumeiramente, apresentados à criança, visava compreender a história do

povo, seu estilo de vida, e a “vocación argentina” (EL MONITOR DE LA EDUCACIÓN

COMÚN, 1960, núm. 929, p. 12). Dialogando com a tira (figura 46), de certa maneira, esse

discurso mostrava um possível fracasso na forma de ensinar história nas escolas, fato,

apresentado de forma irônica por Mafalda.

Da mesma maneira, na tira abaixo observamos o questionamento sobre o ensino

de história nos moldes em que acontecia nas escolas mais tradicionais.

Figura 47: Tira de Mafalda publicada por El Mundo

Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p. 218

Page 126: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

126

No primeiro quadro observamos Mafalda e Miguelito caminhando possivelmente

para a escola, ou voltando da mesma, visto que ambos estão vestidos com o uniforme escolar

e carregam suas “maletas”. Enquanto andam – a mais velha à frente do mais novo –,

Miguelito pronuncia sua insatisfação com a escola, um local em que ele achava que

aprenderia outras coisas, e não velhices. Mafalda está inexpressiva, olhando fixamente para

frente, mas a sobrancelha alta e a boca aberta e caída de Miguelito, demonstram sua

indignação. Diante da colocação, a menina para e se vira para o amigo olhando de forma

confusa e contrariada enquanto ele continuava seu discurso sobre o que aprendera na escola: a

história de Cristovão Colombo, da conquista da América, dos indígenas, e de outras passagens

“del tiempo de ñaupa”41

. Mafalda, então, abre os braços gerando uma conotação de

obviedade, e assegura que não teria como as aulas serem diferentes, porque “así es la

Historia”. Por fim, o último quadro retoma a crítica, a partir do raciocínio progressista do

menino inconformado: as aulas, a escola e a própria História deveriam seguir “adelante”

(adiante). A estilização das letras garrafais transformam o texto em mais um componente da

imagem, que somado à expressão exaltada nos permite deduzir que o menino, enquanto

levanta o dedo de forma enfática, grita sua maior crítica ao modelo tradicional, marcado pela

memorização de grandes datas e nomes, com aulas que não procuravam maiores relações com

a atualidade e cotidiano dos alunos.

Além das ponderações sobre a pouca relevância dos conteúdos escolares

ensinados e dos formatos das aulas, Quino trouxe, através de suas tiras, outras temáticas

relacionadas ao sistema educacional argentino, como a noção de infância, que no período

passara por grandes transformações. Na tira abaixo vemos Mafalda sentada em sua sala,

assistindo ao noticiário televisivo. No primeiro quadro vê-se uma mulher – possível docente

ou integrante do aparelho estatal – que afirma, em rede nacional, a necessidade de se proteger

a criança porque ela é o futuro da nação. O fato de isso aparecer na tira, implica que a cena

seria minimamente reconhecida pelos leitores, o que, por sua vez, nos permite inferir que as

notícias e discussões sobre o tema eram recorrentes nos meios de comunicação de uma forma

geral.

41 Expressão muito antiga e muito popular para indicar que uma coisa ou um evento aconteceu há muito tempo.

A crença popular considera que Ñaupa era uma pessoa muito antiga ou que tinha uma existência incrivelmente

prolongada. A frase é também entendida quando se descobre que a palavra ñaupa vem da palavra quechua

ñawpa, o que significa, exatamente, velho ou antigo.

Page 127: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

127

Figura 48: Tira de Mafalda publicada por El Mundo

Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p. 59

Diante do discurso proferido, Mafalda olha para si. A posição da “câmera”, da

perspectiva enquadrada, se altera, vemos a personagem agora mais voltada para frente, se

olhando e refletindo. Ela estica os pés, se mede e por fim, num cruzar de pernas muito adulto,

com uma expressão de lamento, conclui que “esta frita la pátria con un futuro tan chiquito”. O

humor produzido pela tira vem da inocência de Mafalda ao compreender a fala no sentido

literal e, ao se medir, constatar que é muito pequena para ser o futuro do país. Contudo, sua

fala também nos permite refletir sobre a noção de infância do período. Na década de 1960,

muito se discutia sobre o assunto. A noção de criança como uma tábula rasa, inocente e

desprovida de desejos e conhecimentos já estava ultrapassada, e então o que era ser criança?

Qual a importância e papel dos pais diante das novas gerações que nasciam?

As novas correntes pedagógicas, atreladas aos discursos da psicologia e biologia,

defendiam a infância como uma etapa fundamental para o a formação do homem e, por isso,

um momento que em se deveria permitir e guiar o desenvolvimento de sua personalidade e

criatividade. Dessa maneira, se propunha a “liberación del niño y, a través de sus

articulaciones con el trabajo, la psicología, la comunidade y otros princípios, la liberación del

desarrollo social.” (CARUSO, 2013, p. 129). Ademais, conforme aponta Cosse (2014, p. 45),

nesse momento acontece a entronização da infância, e as crianças passaram a ser vistas não

mais como um depositório, e sim como um símbolo de progresso e bem estar futuro para suas

famílias, para a nação e, inclusive, para a humanidade.

Sobre a preocupação com as crianças, a revista El Monitor de la Educación

Común, publicou diversos artigos sobre a proteção à infância, uma vez que “la proteción al

niño, en todo lo que el niño significa, entró en las consideraciones de protección social” (EL

MONITOR DE LA EDUCACIÓN COMÚN, 1960, núm. 932, p. 65). Ademais, além de

discutir as noções de infância e as determinações governamentais sobre o assunto, a revista

publicava cartas de inspetoras e professoras. Berta Elena Vidal de Battini, inspetora da escola

Page 128: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

128

de Puna, escrevera em uma carta destinada a outra professora da escola, seus posicionamentos

acerca dos problemas relacionados à infância no âmbito nacional. De acordo com ela, o

Estado cumpria seu papel com paternalismo social, cuidando de toda a infância através das

escolas e de outras organizações, e cabia aos docentes compreender esse papel de resguardo

das crianças argentinas (Ibidem, p. 73).

A tira abaixo reflete outra das grandes preocupações nacionais e internacionais da

época: o analfabetismo. No primeiro quadro, vemos que Mafalda se atualiza dos

acontecimentos pela leitura do jornal – o que, mais uma vez, reforça as características adultas

da personagem. O cenário é simples, a personagem se encontra em sua sala de estar, num

ângulo que nos permite somente verificar um vaso de planta como decoração e a poltrona

sobre a qual ela apoia o jornal. Em pé, com um cruzar de braços despreocupado, apoia a

cabeça sobre a mão enquanto lê as reportagens. Seus pés estão cruzados e a tranquilidade de

sua expressão facial e corporal passa a impressão de que sua ação e posição eram costumeiras.

A UNESCO – que, como vimos, era muito influente nos programas educacionais pelo

planeta, principalmente na América Latina – informava que, em todo o planeta, existiam cerca

de 700 milhões de adultos analfabetos.

Figura 49: Tira de Mafalda publicada por El Mundo

Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p. 206

A notícia alarmante interrompe a leitura da menina. Ela levanta a cabeça e fica

ereta, apoiando-se sobre o jornal aberto. Seus lábios se curvam para baixo dando a conotação

de tristeza à sua expressão. Ela, inconformada, desabafa sua angústia em letras garrafais:

“SETECIENTOS millones” são muitas pessoas que, ao contrário dela própria, não sabiam ler

e escrever. Por fim, após refletir, ela vira o corpo de lado, assume uma expressão de angústia

e contrariedade pelo fato de que, apesar dos discursos modernizadores, das novas invenções e

Page 129: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

129

tecnologias, do conjunto de esforços pelo progresso da humanidade, no âmbito educacional

ainda reinava o atraso. A tira nos permite perceber o quanto o tema da educação e das ações

da UNESCO estavam presentes no cotidiano do argentino, e, por consequência, nas tiras de

Mafalda. O humor aqui se pronuncia pelo jogo de palavras construído por Quino que,

paradoxalmente, afirma o progresso estar atrasado. Mais uma vez, observamos o texto como

composição artística da tira, servindo mais para a imagem e humor do quadro, do que para

expressar uma ideia através de sua leitura.

Sobre o analfabetismo, em 1966, a revista El Monitor de la Educación Común,

publicou um artigo afirmando que “el problema más serio e importante que debe afrontar a

América Latina, en el aspecto educativo, es el enormes número de iletrados que integran su

población.” (EL MONITOR DE LA EDUCACIÓN COMÚN, 1966, núm. 946, p. 35). Além

disso, conforme os estudos realizados pela UNESCO, a renda anual por habitante tinha

relação direta com a quantidade de analfabetos que tinha o país, e, dessa maneira, a melhor

maneira de solucionar até mesmo os problemas econômicos da Argentina era a expansão da

escola primária e a alfabetização de adultos ou jovens acima de quatorze anos. O autor do

artigo, Carlos Alberto Compabassi, ainda traz diversos dados estatísticos e comparativos,

procurando evidenciar o quanto os argentinos sempre investiram na educação nacional, mas o

quanto ainda precisam caminhar. O censo nacional do ano 1960 informava que existiam cerca

de 14 milhões de habitantes com mais de quatorze anos, sendo que destes, um milhão era

analfabeto. Assim, em 1960 a taxa de analfabetismo adulto representava 8,6% da população

argentina, enquanto em demais países como o Brasil e a Bolívia, esses números giravam entre

50,5% e 67,9%, respectivamente. Dessa maneira, apesar dos esforços relativos à extinação do

analfabetismo, tanto os meios de comunicação quanto os quadrinhos de Quino apontavam

para a demora e dificuldade do processo.

Ao longo da obra, concomitante com as críticas ao conteúdo, aos discursos e

programas do governo, Quino produz tiras que questionam as práticas escolares e as

metodologias de ensino. Na tira abaixo, vemos Manolito escrevendo repetidas vezes em seu

caderno que deve ser mais cuidadoso com suas tarefas de casa. No primeiro quadro, vemos o

menino sentado e debruçado sobre o seu caderno, com a língua para fora da boca,

demonstrando sua concentração e dificuldade na execução do dever. Mafalda observa o

amigo escrevendo e percebe o seu erro gramatical: o certo é “prolijo” e não “polijro”, como

ele escreve na segunda tentativa.

Page 130: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

130

Figura 50: Tira de Mafalda publicada por El Mundo

Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p. 353

No segundo quadro, o enquadramento se modifica e aproxima o leitor das

crianças, como que nos permitindo participar da cena. Mafalda aponta para o caderno e

mostra onde ele havia escrito errado. É nesse momento, então, que Manolito age de forma

pouco prolija – apesar do que era solicitado pela professora diante dos outras tarefas mal

executadas –, e apaga o erro com a borracha da sola de seu sapato, e não com a borracha

escolar, como era esperado pelos alunos, professores e leitores da tira. A onomatopeia “Yip-

Yip” corrobora para a ideia de que ele está apagando seu erro de escrita. Enquanto ele faz o

serviço, a menina arregala os olhos e o observa assustada. Por fim, o último quadro, produtor

de mais risadas, nos mostra Manolito novamente imerso em sua árdua tarefa, com

naturalidade apesar da atitude anterior, concentrado em tentar ser mais cuidadoso. A amiga

vira o corpo contra ele e faz uma expressão de desaprovação, visto a contradição da cena

apresentada. Os elementos que compõem o cenário são simples, somente as duas crianças e a

mesa na qual Manolito apoia o caderno para escrever. Ele está vestido com o guardapolvo,

seu uniforme escolar, mas Mafalda já veste um de seus vestidos comuns. Ambos estão

sentados em postura de descontraída, com o corpo curvado, o que não acontece nas

representações de ambiente escolar, e desse modo, podemos deduzir que Manolito acabou de

chegar da escola, ou então, não se trocou e foi fazer a tarefa solicitada pela professora. Em

muitas tiras observamos as crianças realizando as tarefas de casa em conjunto, ou ajudando-se

nas realizações das mesmas.

Além do humor gerado, a tira proporciona reflexão sobre o processo de ensino e

as dificuldades de aprendizagem de alguns alunos. Manolito representa as falhas do sistema, o

aluno que não condiz com o esperado e não responde na velocidade desejada pela professora.

Ele é em si uma denúncia e crítica ao modelo tradicional escolar, que não o atinge, não o

interessa, e o obriga a agir e pensar a partir de uma lógica com a qual ele não compactua.

Page 131: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

131

Conforme assinala Pineau (2005), Manolito se encontra sempre à margem da integração

social, e todo o discurso de preservação e valorização da criança, é alheio ao menino. Ao

contrário dos demais personagens que vivem sua infância, Manolito precisa lutar pelo seu

direito de ser incluído e ser criança. Mafalda, por outro lado, apesar dos constantes

questionamentos, é uma “boa aluna”, com facilidade, e apresenta o outro lado, o lado

insatisfeito com a forma como o ensino acontece, muito simplório, sem significados reais.

Nesse sentido, a tira abaixo também nos apresenta uma situação de inadequação

do personagem. No primeiro quadro vemos os dois amigos vestidos com o uniforme escolar e

conversando sobre a forma correta de se escrever a palavra “árbol”. Manolito escrevera com a

letra H, e Mafalda lhe disse que o correto é com a letra A. O fato de Manolito assumir que a

amiga estava correta e se propor a apagar a letra H já nos pontua que Mafalda era uma aluna

considerada exemplar, e que ele, por sua vez, diante dos constantes erros, já duvidava de sua

própria capacidade. Além disso, ele, como aluno mais descuidado, não possui uma “goma de

borrar” e pede emprestada a da amiga.

Figura 51: Tira de Mafalda publicada por El Mundo

Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p. 367

Manolito se abaixa e se senta no chão para apagar a letra H. Ao invés de um,

três quadros se passam com ele apagando, escolha artística para prolongar o tempo da ação e

realçar a emoção. A onomaopéia “Yip-Yip” nos evidencia a continuidade da ação, enquanto

a expressão de Mafalda passa de um sorriso para a indignação. Seus lábios se contorcem e ela

abre os olhos arregalados. No último quadro, enfim, o menino olha para o caderno e devolve a

borracha usada e minúscula para a amiga. O humor vem tanto do exagero da cena promovido

pelo tamanho da borracha devolvida, quanto da constatação do personagem que, após refletir

sobre a cena, percebe que a professora talvez tenha razão ao dizer que sua letra era muito

grande, afinal, fora quase uma borracha inteira para apagar somente uma letra. A despeito da

Page 132: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

132

graça promovida por sua ingenuidade, mais uma vez a tira nos traz o personagem sendo alvo

de críticas ou ponderações de sua professora, mostrando-nos o quanto ele era considerado

inadequado por parte do sistema.

A revista El Monitor de la Educación Común, além dos informativos, boletins,

relatórios e fotografias, publicava textos que discutiam e defendiam práticas didáticas e

correntes pedagógicas. A temática da caligrafia e aulas de ortografia aparecem em diversas

publicações, apresentando as transformações decorrentes do confronto entre as propostas das

novas correntes e a educação moderna defendida pelo governo, marcada pela inserção de

algumas inovações e pela articulação da pedagogia com outras áreas do conhecimento, tais

como filosofia, biologia, e psicologia. Nessa perspectiva, uma das matérias da revista

defendia a caligrafia como psicopedagogia, forma de moldar e desenvolver a personalidade e

caráter das crianças. A escrita deveria ser para a criança um meio natural e rápido de

expressar suas ideias, além de ser um instrumento para aprimorar suas capacidades (EL

MONITOR DE LA EDUCACIÓN COMÚN, 1960, núm 931). De acordo com Marja Van

Woerkom de González Roura, a docente autora do artigo, a disciplina de caligrafia corria

risco de ser extinta do quadro de disciplinas escolares, visto que muitas maestras adeptas das

mais novas correntes pedagógicas não acreditavam no método e utilidade da caligrafia, que

concebiam como produtora de uma escrita rígida e impessoal. Entretanto, não aceitando o

modelo de exclusiva liberdade, nem ratificando uma tradicional prática de ensino, a revista

trazia uma nova proposta grafo-pedagógica, marcada pela reabilitação da caligrafia associada

ao desenvolvimento psicológico do aluno.

Diante disso, Marja Roura, diz que assim como diferentes violonistas aprendem

uma mesma técnica e uma mesma composição, e a interpretam de forma única e marcada por

suas próprias personalidades, a criança submetidas às regras de escrita também apresentam

formas únicas de escrever. Dessa forma, de acordo com a autora, o ideal é a união entre o

tradicional e o moderno: respeitar as crianças, mas ensinar com metodologia; visto que os

professores sofriam com o ensino sem disciplina e método, podendo apenas sugerir

recomendações aos alunos na hora de corrigir suas tarefas, tais como “mejore su letra” ou

“haga sus deberes con más prolijidad” (p. 35). Sendo assim, tanto Quino quanto o discurso

educacional estatal criticavam a forma como alguns ensinamentos se davam no cotidiano

escolar.

Page 133: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

133

Figura 52: Tira de Mafalda publicada por El Mundo

Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p. 231

A tira acima mostra Miguelito conversando com Mafalda sobre a metodologia

utilizada por sua professora para ensinar matemática. De acordo com ele, era um processo que

não promovia a compreensão e sim a memorização de um resultado numérico, a partir da

reiteração do mesmo. Os dois caminham, de volta para casa, vestidos com o uniforme escolar

– a mesma cena já fora vista em sua crítica às aulas de história. Mafalda para diante do

comentário do colega, e o observa inexpressiva, enquanto ele narrava sua aula: primeiro

aprendera que dois mais dois é quatro, depois todos repetiram em voz alta, e depois

“tooooooodos” copiaram em seu caderno. Conforme ele fala, suas mãos acompanham o

raciocínio, seus braços se abrem corroborando para a noção de que todos faziam a mesma

coisa. Mafalda permanece atenta, como que esperando o término da narração. No último

quadro, contudo, a cena se transforma: Miguelito adquire uma expressão triste, com olhos

cabisbaixos e boca torcida para baixo. Sua mão vai ao encontro do peito, num gesto de

lamentação. A amiga se vira para o leitor, e seus olhos somados à inexistência do desenho de

sua boca, evidenciam sua surpresa diante da constatação final: com esse método de ensino

focado na memorização e não na aprendizagem, Miguelito nunca seria como Von Braun42

; ou

seja, a escola não poderia ajudá-lo a se tornar uma pessoa inteligente.

A crítica promovida pelo raciocínio de Miguelito é retomada pela tira abaixo. Na

sala de aula, a professora questiona os alunos porque multiplicar 2x3 é igual a multiplicar 3x2.

Na lousa observamos os números escritos e ela aponta para eles com uma régua de madeira.

Perfeitamente ereta, e com o rosto virado para os alunos, formando ângulos retos, novamente

42

Wernher Von Braun (1912-1977) foi um alemão que dedicou-se às experiências com foguetes e, a partir de

1932, desenvolveu modelos com combustível líquido para o exército. Durante o regime de Adolf Hitler, tornou-

se figura-chave no programa do programa de rearmamento da Alemanha. Após o fim da guerra foi levado aos

Estados Unidos, se nacionalizou estadunidense e passou a desenhar foguetes para a Nasa, como o Saturno V, que

levou o homem à Lua.

Page 134: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

134

constatamos que Quino ao representar os momentos escolares, sempre o faz, visando

expressar rigidez.

Figura 53: Tira de Mafalda publicada por El Mundo

Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p. 474

No segundo quadro vemos que Manolito levantou a mão e respondeu

assertivamente à pergunta feita pela professora. Os colegas de sala olham para ele assustados,

com olhos arregalados, diante da situação. A professora, por sua vez, fica satisfeita com o fato

de seu “aluno problema” ter acertado a resposta, e diz a todos com um sorriso no rosto, que

ele acertara porque havia estudado. Logo ele, o aluno desajustado, que sempre tirara notas

ruins, participou da aula e contribuiu com a resposta correta. Entretanto, o último quadro

quebra a sequência dos acontecimentos, gera o riso e nos permite refletir sobre o sistema

educacional, por consequência. O aluno não sabia porque tinha estudado, sabia porque “es

vox Populi”. Os conhecimentos adquiridos por ele não eram de fato apreendidos, e, sim,

memorizados. Assim, sabia reproduzir o que era de conhecimento geral, popular, sem

necessariamente aprender tais ensinamentos no ambiente escolar.

Nesse sentido, as novas vertentes pedagógicas, na medida em que estabeleceram

uma estreita relação entre a Pedagogia e outras ciências, como a Biologia, Psicologia,

Filosofia e Sociologia, passaram a questionar desde as mais simples às mais complexas

técnicas de ensino. Foram repensadas as formas de ensinar a ler e escrever, somar e subtrair,

bem como os conteúdos, disciplinas e cargas horárias que deveriam se estabelecer. Nesse

período, por exemplo, o docente Julio Américo Vidal, publica um texto retomando as

discussões recorrentes, e demonstrando sua preocupação em ensinar a leitura a partir do

Método Natural, que, de acordo com ele, se preocupava em respeitar características

“biopsicológicas” dos alunos, colaborando para a formação de sua personalidade. Para uma

boa execução do método, o professor deveria esquecer de horários estipulados, deixando a

Page 135: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

135

criança trabalhar com liberdade para cultivar o cérebro e estimular potências como afetividade

e autonomia (EL MONITOR DE LA EDUCACIÓN COMÚN, 1961, núm. 936).

Além dele, dentro do movimento renovador, as revistas pedagógicas, assim como

o Estado que as financiavam traziam aos professores modelos de aprimoramento das práticas

de ensino. Em 1965, foram expostas algumas experiências realizadas com os alunos de seis e

sete anos de idade para o ensino de gramática. Em uma aula que durou cerca de uma hora e

meia, se ensinou a distinguir o nome, o adjetivo, o verbo, e reconhecer e formular orações. As

crianças foram capazes de dar exemplos e construir orações a partir do que vivenciavam e

conheciam de casa, e das tarefas domésticas de suas mães. As principais frases formuladas

foram “mama lava; mamá buena; buena lava; mamá buena lava” (EL MONITOR DE LA

EDUCACIÓN COMÚN, 1965, núm. 939, p. 46). A partir dessa experiência, a revista criou,

então, um modelo de aula gramatical para as professoras aplicarem aos seus alunos, no qual

era necessário “limitar la realidade”, escolher substantivos e adjetivos “que tienen relación

con el aula”, e apresentar os verbos e compor frases unindo todos os componentes, a partir da

realidade escolhida (Ibidem).

Figura 54: Tira de Mafalda publicada por El Mundo

Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p. 130

A tira acima apresenta Susanita e Mafalda conversando na calçada. Elas se

vestem com vestidos do cotidiano e, assim, sabemos que não estão na escola e sim em um

possível momento de lazer. Entretanto, as duas praticam, através do diálogo, as frases

elaboradas em sala pela professora, como “Mi mamá amasa”. Ao longo dos quadros elas

continuam a conversa sem sentido, uma respondendo à outra com frases que nada dizem de

significativo. O detalhe essencial dessa tira é o uso da letra cursiva dentro dos balões,

enfatizando ainda mais o caráter educacional da conversa travada pelas duas amigas. Aqui a

letra é transformada em imagem, compondo a cena apresentada. O cenário é simples, pois

Page 136: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

136

somente vemos a calçada e alguns detalhes do muro atrás das personagens. Por fim, após

finalizarem a conversa, cada uma segue para um lado, Mafalda sorri levemente e reflete sobre

a utilidade da escola, do ensino da escrita e das letras cursivas: estas permitem “conversar en

un nivel literario”. O humor dessa tira provém justamente da ironia trazida por ela, visto que,

a partir dos novos discursos educacionais, os alunos deveriam aprender, gostar do que

aprendem e sentir proximidade com sua realidade cotidiana. As duas amigas, ao trazerem as

frases escolares para seu cotidiano, dialogam justamente com essa ideia; no entanto, o fato de

as conversas serem desconectadas e despropositadas, nos permitem inferir que não são

relevantes para a vida de Susanita e Mafalda, são somente reproduções.

Ainda sobre esse conflito, em 1965, a revista El Monitor de la Educación Común

publica um artigo, contrastando a pedagogia tradicional e a pedagogia moderna renovada, das

escolas ativas e escola nova. Apresentando ao leitor os desejos, preocupações e visões de

aluno que as duas concepções possuíam, o texto deixa claro seu apelo à corrente moderna. De

acordo com Gustavo Cirigliano, filósofo e pedagogo, professor universitário, e autor do

artigo, a escola tradicional possuía maior vigência no século XIX, mas que agora, no novo

século, diferentes escolas e orientações passaram a disputar o espaço. Partindo da própria

noção de homem, é possível perceber as diferenças, visto que para a primeira, o indivíduo é

entendido como um animal racional, que possui como características a capacidades de pensar,

entender e principalmente de memorizar. Desse modo, aquele que fosse consideração

“inteligente”, teria acesso a uma educação voltada à transmissão e depósito de conhecimentos,

realizado, sobretudo, pelo professor. Contudo, na perspectiva moderna, o homem é entendido

como um organismo inteligente somado ao meio em que está inserido, assim, “el hombre en

una interpretación más moderna, más propia de nuestro tempo” (EL MONITOR DE LA

EDUCACIÓN COMÚN, 1965, núm. 939, p.6), é um ser biológico, que se vale de sua

inteligência para vivenciar situações e problemas gerados pelo meio. Enquanto aluno, inserido

no contexto educacional, ao invés de ter sua inteligência reduzida à capacidade de memorizar,

é visto como um ser que experimenta e, portanto, está em constante atuação. Como pontua

Cirigliano,

En la actividad diária, el único que sabe donde vá (y a veces), es el educador;

el alumno no tiene idea de donde vá, no tiene idea de lo qué le van a enseñar

mañana, ni para que le enseñan lo que le están enseñando hoy. (...) Dentro de

la concepción moderna, hay que coloarlo en uma situación para que le sirva

en este momento, o si no cuando sea el momento en que le vaya a servir,

entonces que lo aprenda; porque si no lo adquiere como un elemento

dissociado de su propia actividad, como una mera ideia. (EL MONITOR DE

LA EDUCACIÓN COMÚN, 1965, núm. 939, p.12).

Page 137: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

137

Dentro desse contexto de debate, as tiras de Quino dialogam com muitas das

ponderações realizadas sobre o sistema e modelo educacional, inclusive acerca das liberdades

e atividades dos alunos diante dos professores. A tira abaixo apresenta Mafalda em um

formato de aula diferente do tradicional, trazendo algumas das mudanças defendidas pelas

correntes pedagógicas mais modernas.

Figura 55: Tira de Mafalda publicada por El Mundo

Fonte:

QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p. 553

Contrastando com os outros momentos escolares dos personagens, no primeiro

quadro vemos Mafalda com outros dois colegas de sala. Os três se sentam diante de uma

mesma mesa grande e possuem um papel em branco e um lápis nas mãos. A disposição da

mesa favorecia o trabalho em grupo, uma vez que os alunos poderiam trocar ideias e se

ajudar. Conforme aponta Suarez (2011), para as novas correntes pedagógicas, o trabalho

individual deveria ser evitado e os trabalhos coletivos, valorizados. Além disso, uma vez

estando em grupos, os sujeitos do processo de aprendizagem também se alteram, porquanto o

professor deixa de ser o único detentor de conhecimento, e os próprios alunos aprendem a

partir dos conhecimentos que possuem, implicando “(...) una horizontalidad del saber que

rompe con la relación asimétrica entre docentes y alunos” e assim, “el aprendizaje pasa a ser

una construcción, en la que los alunos tienen un papel activo” (p.47).

A professora se aproxima e sua mão toca docemente a cabeça de um aluno. Seu

corpo não está ereto e seu cabelo apresenta uma curvatura nas pontas, com, até mesmo, alguns

fios mais bagunçados na franja. Com um sorriso no rosto ela e explica o que devem fazer:

desenhar o que quiserem. Estavam livres para improvisar. Diante disso, ou melhor, diante de

todo o discurso tradicional da escola e da sociedade acerca da escola, Mafalda se assusta e

indaga sobre a falta de planos, orientações, restrições. No terceiro quadro vemos a partir do

balão de pensamento que Mafalda está pensativa, confusa repetindo o que a professora havia

dito, procurando compreender a escola como um espaço para improviso. O resultado de sua

Page 138: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

138

análise não foi tranquilo. No último quadro, produzindo o humor, Mafalda se levanta e aos

gritos indaga a professora sobre o fato de a escola inculcar “defectos nacionales”.

Na tira, a menina faz alusão à inabilidade do governo argentino, que age por

improviso, sem planejamento, e gera os “defeitos nacionais”. Contudo, apesar da conotação

política da cena, a tira também nos permite vislumbrar alguns aspectos que opõe a pedagogia

tradicional à moderna. Além da estética da aula estar alterada, a professora e os alunos se

comportam de forma mais leve e livre. A aula não estava pronta em uma cartilha, não era

fundamentada em algum conteúdo que precisava ser memorizado pelos alunos. Era uma aula

de improviso, sem muitas normas e disciplina. O estranhamento de Mafalda e até mesmo sua

acusação nos permitem inferir o quanto essas novas propostas pedagógicas eram

questionadas, principalmente pelos professores mais antigos ou defensores de um modelo

mais rígido. No entanto, mesmo quando, no último quadro, a aluna questiona a proposta da

professora, ela o faz de forma libertária: sobe na cadeira e grita – atos impensáveis em outras

tiras e no modelo tradicional, no qual a hierarquia e assimetria prevalecia na relação entre

professor e aluno.

Figura 56: Tira de Mafalda publicada por El Mundo

Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p. 120

Na tira acima temos uma referência clara de Quino sobre as reformulações que

aconteceram na escola e no sistema educacional de uma forma geral. No primeiro quadro

vemos Manolito perguntando a Felipe – que é um ano mais velho que os demais, e já estava

no ensino primário – se era verdade que nas escolas os professores castigam os alunos. Sua

expressão é uma mistura de preocupação e tristeza. No entanto, Felipe, para sua felicidade,

responde que não mais, que hoje “las cosas han cambiado mucho”. Manolito então, arregala

os olhos, abre a boca sorrindo e movimenta o braço enfatizando sua alegria, afinal, se as

coisas mudaram, os alunos agora batiam e castigavam os professores?

Page 139: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

139

Contudo, conforme explica o amigo, com uma expressão taciturna, não era

para tanto. Suas sobrancelhas cerradas e sua boca rígida demostram indignação diante da

alegria do amigo. Ele vira as costas, sai caminhando e deixa Manolito sozinho, refletindo

sobre as mudanças na escola, que semelhante ao que ocorria no país “nunca son de fondo”.

Sua fala e expressão amarguradas, podem demonstrar a insatisfação com os novos modelos

escolares, que apesar de muito questionarem e proporem práticas docentes, não realizam

mudanças estruturais de fato. Dessa maneira, o discurso oficial defendia uma educação

moderna, mas mantém vivo métodos e estruturas antigas, presentes até os dias atuais; e assim,

as mudanças, como denunciado, não eram de fato totalizadoras.

Figura 57: Tira de Mafalda publicada por El Mundo

Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p. 367

No primeiro quadro da tira acima vemos Mafalda e outros colegas de sala na aula

de música. Sabemos que cantam porque além da entonação das falas, com letras repetidas,

existem notas musicais desenhadas ao redor da canção proferida. O tema da música era

bastante habitual nas escolas: o amor à pátria. O ensino tradicional, marcado pelo

nacionalismo, incentivava músicas, homenagens às bandeiras e ícones nacionais, e assim

como Quino, Mafalda era ensinada a valorizar as canções e mitos argentinos. No entanto, o

olhar da personagem, seu virar de olhos, nos permite visualizar sua insatisfação. Ela não

aceitava esse patriotismo, não compreendia a real importância de aprender e cantar tais

canções. Essa observação se confirma nos próximos quadros, quando a aluna interrompe a

professora e pergunta porque não cantam outros estilos musicais, como The Beatles – banda

favorita da personagem. No segundo quadro, enquanto Mafalda pede para falar, a professora

se mostra amigável e sorridente; contudo, como vemos no último quadro, o comentário da

aluna fora mal recebido, e a professora solicitou uma reunião individual com a sua mãe.

Page 140: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

140

Além da crítica ao nacionalismo e ao formato tradicional de aula, a tira nos

revela a possibilidade de mudança. Se Mafalda questiona a música ensinada ou o método é

porque era possível ser questionado. Assim, imerso entre as antigas e novas pedagogias,

Quino revela o desprezo por uma escola arcaica, rígida e hierarquizada, através das críticas e

propostas que Mafalda realiza aos professores, pais e sociedade. Ademais, a comicidade da

tira aparece, também, pela ingenuidade da aluna, que não compreendendo a suposta gravidade

de sua colocação, acredita que a professora queira conversar sobre os Beatles com a mãe, e

não sobre o seu mau comportamento durante a aula.

Destarte, tendo em vista que a pedagogia moderna, já agora abordada por Quino,

não fez parte de seu momento escolar, é possível inferir que o autor estava, mesmo que

minimamente, cônscio dos principais debates educacionais do momento de produção da sua

principal criação. Assim sendo, quando pensamos na escola pelos olhos da obra, concluímos

que Mafalda e seus amigos se deslocam entre o tradicional e o moderno. As paisagens,

formatos de aula, vestimentas, objetos utilizados, bem como as posturas em sala dos alunos e

professores, mostram as marcas do tradicionalismo, a memória escolar e a vitória de um

modelo consolidado nacional e internacionalmente. Contudo, os questionamentos, gostos e

desgostos, olhares críticos e intransigentes dos personagens, apontam que apesar de serem

representados nesse formato, eles não compactuam com ele, desejam modificações, melhorias

e novos métodos de ensino.

Quino não se resume à Mafalda, ele é soma de todo o conjunto, de personagens,

cenários, experiências, debates reais, companheiros de trabalho, editoras, entre outros.

Mafalda não é sua porta-voz, mas ela serve para que ao menos algumas de suas questões

sejam escutadas. A educação é uma delas.

Page 141: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

141

Considerações finais

Mafalda desejava aprender. Aprender algo significativo, relacionado ao seu

cotidiano e aos acontecimentos de seu país. Mafalda desejava aprender de forma livre, sem

tantas burocracias e limitações. Apesar de adorar a escola – ou a ideia de escola como

promotora de conhecimento – a personagem desejava um ambiente melhor cuidado, horários

mais flexíveis, métodos de ensino e de avalição diferentes. Mafalda era a favor da inclusão

dos alunos com maiores dificuldades, não aceitava o fato de sempre estar vigiada pelos

professores e funcionários da escola. Por fim, almejava acabar com conflitos, guerras,

desigualdades, transformando o mundo pela educação. Personagens e cenários contribuíam

para a apresentação de suas demandas, ironias e proposições. Ao criticar Susanita ela se

opunha ao conservadorismo da época. Ao ajudar Manolito com as lições de casa, ela

demostrava sua preocupação com a aprendizagem. E ao destacar a interrupção dos estudos de

sua mãe, ela lamentava a desigualdade de acesso ao sistema educacional e, em certa medida

as representações sobre o feminino que tal desigualdade acarretava.

Quino, entretanto, não estudou no modelo escolar explicitado em suas tiras, mas

representou a escola de acordo com várias referências. Sabemos que, ao longo do século XIX

e primeira metade do XX, predominou nas escolas argentinas a concepção mais tradicional da

educação, pautada na relação pedagógica assimétrica, na qual os alunos eram considerados

corpos a serem moldados e mentes vazias a serem preenchidas. Estado e escola estavam

vinculados pelo propósito de unificar e formar o cidadão argentino comprometido com a

nação. Dessa forma, o formato escolar vivenciado por grande parte dos leitores, e pelo seu

próprio autor era muito diferente daquele desejado pelos seus personagens. A escola,

consolidada já no século XIX como instituição detentora de saber, é um grande marco da

cultura argentina e as memórias escolares experimentadas e valorizadas por todos, tornaram

essencial que a obra apresentasse uma infância localizada no ambiente educacional. Tendo

isso em vista, Mafalda e seus amigos vão ao jardim de infância e à escola primária, dialogam

com seus professores, fazem deveres de casa, e trazem os debates escolares para seu

cotidiano, sendo essa escola representada, marcada pela estética tradicional, pela

hierarquização e rigidez. Ângulos retos, condutas, falas e expressões corporais desenhados,

serviram para a comprovação dessa hipótese.

Por meio das novas correntes pedagógicas, que já existiam desde o começo do

século XX, mas melhor se desenvolveram a partir dos anos 1950, esse modelo escolar

Page 142: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

142

representado passou a ser questionado, e promoveu-se, então, outra noção de infância e de

processos educativos. Defendendo uma educação libertária – na qual as crianças seriam

consideradas seres inteligentes, capazes de construir conhecimento relacionado ao meio em

que se inseriam – a escola moderna propunha o ensino de forma prazerosa e funcional,

respeitando os limites e tempos de cada indivíduo. É nesse contexto que, a partir da análise

das tiras, pode-se averiguar que Quino se mostrava perspicaz e atualizado, na medida em que

trazia em suas tiras as mudanças e discussões que rondavam a educação e os principais

acontecimentos nacionais e internacionais. Ao longo da obra, podemos visualizar as

contradições do próprio sistema educacional da época, as tentativas de rupturas de um lado, e

de resguardo dos antigos costumes, de outro. A heterogeneidade dos personagens também

corroborava para isso, porquanto era possível em uma mesma tira presenciarmos o

tradicionalismo de Susanita, o neoliberalismo de Manolito, o conformismo de Felipe, e o

progressismo de Mafalda.

Quando o assunto é educação todos são especialistas. Muito se fala sobre a escola

e seus problemas, seja a falta de material, de infraestrutura, ou a violência escolar e

despreparo dos professores. Tais discursos circulam, por dentro e por fora da escola, e dessa

forma, o que se diz a respeito da escola e da educação interfere no modo como os próprios

atores se enxergam, pensam e agem, sendo base também para se pensar os projetos, os anseios

e decisões que tomam os professores, pais e alunos, no cotidiano escolar. Tendo isso em vista,

sabendo que Mafalda era amplamente lida por adultos, crianças, professores e pais, Quino

como observador e produtor de um material, que discutia e debatia a escola, também interfere

e altera, de certa forma, o cotidiano escolar, seja através do incentivo à crítica, à reflexão do

papel docente, e às novas práticas e propostas pedagógicas.

Nessa perspectiva, Quino apresenta a educação argentina de diferentes maneiras,

nos permitindo analisar as práticas, o processo de alfabetização, de avaliação, bem como as

visões do sistema educacional nacional. As transformações educacionais que aconteciam no

período em toda a América Latina, subsidiadas principalmente pela UNESCO, eram

constantes em sua produção. E assim, as convergências entre as novas correntes pedagógicas

e a proposta de educação de Mafalda são vistas a partir das críticas ao conhecimento vazio e

distante da realidade do aluno, ao ensino fundamentado na memorização, à noção de escola

como único local detentor de conhecimento, ao modelo de avaliação, à tentativa de

homogeneização do aluno, entre outros aspectos trazidos pelos personagens.

Page 143: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

143

Dessa maneira, o trabalho se propôs a apresentar Mafalda e Quino como

importantes agentes socais, investigando seu impacto visual na sociedade argentina, e

construindo relações entre Mafalda e o cenário educacional da década de 1960. O estudo das

histórias em quadrinho e a compreensão de seus elementos constituintes foram fundamentais

para a melhor análise das tiras, uma vez que, partindo da Cultura Visual, a leitura da obra

extrapolou a contextualização e informações textuais, verificando as discussões propostas pela

composição dos quadros, linhas de expressão, estilização de letras, quantidade e tamanho de

quadros, marcação do tempo, detalhamento dos personagens, vestuários e cenários, e sua

adequação com o seu meio de produção, ou seja, o periódico em que seria publicada.

Criatura e criador são responsáveis, até os dias atuais, por milhares de gargalhadas

e reflexões. O modelo educacional e o formato escolar são por eles criticados. Com censuras e

propostas que perpassaram as décadas de 1960 e 70 e ainda fazem sentido em nossa realidade

tão pouco avançada, as tiras desenhadas saíram do papel e ganharam vida, roubaram a cena e

continuam a nos provocar, a nos instigar: é preciso mudar.

Figura 58: Tira de Laerte em homenagem aos 50 anos de Mafalda

Fonte: Imagem disponível em: < http://trabalhosujo.com.br/parabens-brasileiros-aos-50-anos-de-mafalda/>.

Data de acesso: 15/01/2018.

Page 144: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

144

Referências Bibliográficas

ADAMOVSKY, Ezequiel. Historia de la clase media argentina. Buenos Aires: Planeta,

2009.

ARATA, Nicolás. La educación en la Argentina. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Centro

de Publicaciones Educativas y Material Didáctico, 2013.

ARFUCH, Leonor. Representación. In: ALTAMIRANO, Carlos (coord.). Términos críticos

de sociología de la cultura. Buenos Aires: Paidós, 2002.

ASCOLANI, Adrián. La Educación en Argentina. Estudios de Historia. Rosario: Ediciones

del Arca, 1999.

________________. La Historia de la Educación Argentina y la Formación Docente

ediciones y demanda institucional. in Revista Brasileira de História da Educação: SBHE, Nº

1, jan. /jun. 2001.

BALLASTEROS, Juan Carlos. La educación jesuítica en las reducciones de guaraníes.

Paraná, Universidad Nacional de Entre Ríos, 1979.

BARALE, Ana Maria Peppino. Mafalda: el humor gráfico según Quino. Revista Fuentes

Humanísticas: Dossier La historieta gráfica: cómic, tebeo, y similares aspectos técnicos y de

contenido en casos particulares, Ciudad de México, n. 39, p. 27-46, 2009.

BARREIRO, Manuel. Vigência do humor gráfico no século XXI. Modelo para a

compreensão de um meio. Revista USP, número 88, 2011, pp 13-14.

BENITO, Agustín Escolano. Memoria de la escuela e identidad narrativa. Cabás, Polanco,

España, n. 4, 2010, p. 1-18.

BENJAMIN, Walter. “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. In:

Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo:

Brasiliense, 1994.

BRÓCCOLLI, Alberto; TRILLO, Carlos. Las Historietas. Buenos Aires: Centro Editor de

America Latina S.A., 1971.

BURKE, Peter. O que é História Cultural? Trad. Sergio Goes de Paula 2ª ed. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar Editora. 2008.

CAGNIN, Antônio Luiz. Os Quadrinhos. São Paulo: Ática, 1975.

___________________. Os quadrinhos: um estudo abrangente da arte sequencial, linguagem

semiótica. São Paulo: Criativo, 2014.

Page 145: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

145

CARLI, Sandra. Niñez, pedagogía y política Transformaciones de los discursos acerca de la

infancia en la historia de la educación argentina entre 1880 y 1955. Buenos Aires: Mimo y

Dávila. 2002.

CARUSO, Marcelo. ¿Una nave sin puerto definitivo? In: DUSSEL, Inés; CARUSO,

Marcelo; PINEAU, Pablo. La escuela como máquina de educar: tres escritos sobre un

proyecto de la modernidad. Buenos Aires: Paidós, 2013.

CHARTIER, Roger. “A história hoje: dúvidas, desafios, propostas”. In: Estudos Históricos.

Rio de Janeiro, v. 7, nº 13, 1994, In OLIVEIRA de, Carlos Eduardo França. Narratividade e

conhecimento histórico: alguns apontamentos. História. Revista On-line do Arquivo Público

do Estado (São Paulo), v. 15, 2006.

________________. A História Cultural: entre práticas e representações. Portugal: DIFEL,

2002.

_________________. O mundo como representação. 1991, p. 176. Disponível em:

<http://www.scielo.br/pdf/ea/v5n11/v5n11a10.pdf >. Data de acesso: 15/01/2018

CHINEN, Nobu. Linguagem Hq – conceitos básicos. São Paulo: Criativo Mercado Editorial,

2011.

CIRNE, Moacy. Uma Introdução Política aos Quadrinhos. Rio de Janeiro: Achiamé/Angra,

1982.

COSSE, Isabella. Mafalda: historia social y política. Ciudad Autónoma de Buenos Aires:

Fondo de Cultura Económica, 2014.

CUCUZZA, Héctor Rubén. Leer y rezar en la Buenos Aires aldeana. In CUCUZZA, Héctor

Rubén (dir.), PINEAU, Pablo (codir.). Para una historia de la enseñanza de la lectura y

escritura en la Argentina. Del Catecismo colonial a La Razón de mi vida. Buenos Aires:

Miño y Dávila, 2004.

DARNTON, Robert. O grande massacre dos gatos. 2 ed., Rio de Janeiro: Forense-

Universitária, 1986.

ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva, 2001.

____________. Toda Mafalda: da primeira à última tira. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

EISNER, Will. Narrativas Gráficas. São Paulo: Devir, 2005.

__________. Quadrinhos e Arte Sequencial. São Paulo: Martins Fontes, 2015.

FINOCCHIO, Silvia. La escuela en la História Argentina. Buenos Aires: Edhasa, 2009.

FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. 1995. Disponível em:

<http://www.uesb.br/eventos/pensarcomfoucault/leituras/o-sujeito-e-o-poder.pdf>.

Page 146: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

146

FREEDMAN, Kerry. Cultura visual e identidad. Cuadernos de Pedagogía. Barcelona, n.312,

2002.

GATTI Décio Júnio; GATTI, Gisele Cristina do Vale. A história das instituições escolares em

revista: fundamentos conceituais, historiografia e aspectos da investigação recente. 2015.

Disponível em: <http://seer.pucgoias.edu.br/index.php/educativa/article/view/4553>. Data de

acesso: 30/01/2018

GOCIOL, Judith. La historieta argentina: uma historia. Buenos Aires: Ediciones de la Flor,

2003.

GONDRA, José Gonçalves. O Veículo de Circulação da Pedagogia Oficial da República: a

Revista Pedagogica. 1997. Disponível em:

<http://rbep.inep.gov.br/index.php/rbep/article/view/1061/1035>. Data de acesso: 30/01/2018

GRALIK, Thais Paulina. As histórias em quadrinhos no ensino de artes visuais na

perspectiva dos estudos da cultura visual. Florianópolis, SC. 2007. Orientadora: Prof.ª Dr.ª

Teresinha S. Franz Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do

CEART/UDESC.

HERNANDEZ, Fernando. La necesidad de repensar la educación de las artes visuales y su

fundamentación en los estudios de Cultura Visual. Seminário proferido no Congreso Ibérico

de Arte-Educación, Porto, Portugal, nov. 2001. Disponível em: <

https://docs.google.com/document/d/1ofNjHTXbnCiC_HhBpbJt3KhtkzUk4ytjROeY0BLB7

N0/edit>. Acesso em: 30 out. 2016.

________________________________. Cultura Visual, Mudança Educativa e Projeto de Trabalho. São

Paulo: Artes Médicas, 2000.

IANNI, Octavio. Imperialismo y Cultura de la violencia en América Latina. México: Siglo

XXI, 1970,

JÚNIOR, Gonçalo. Biblioteca dos quadrinhos. Ópera Graphica. São Paulo, 2003.

MARCELINO, Marilda. Toda Mafalda: um estudo de estratégias linguístico- discursivas da

comicidade. São Paulo, 2003. Tese (Mestrado em Variedades de Discurso e Língua

Portuguesa) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

MELLO, João Manuel Cardoso de. O capitalismo tardio: contribuição a revisão critica da

formação e do desenvolvimento da economia brasileira. 5. ed. São Paulo, SP: Brasiliense,

1986.

Page 147: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

147

MENESES, Ulpiano T. B. de. Fontes visuais, cultura visual, História visual. Balanço

provisório, propostas cautelares. São Paulo: Revista Brasileira de História,v. 23,n. 45.Julho.

2003.

OLIVEIRA de, Carlos Eduardo França. Narratividade e conhecimento histórico: alguns

apontamentos. História. Revista On-line do Arquivo Público do Estado (São Paulo), v. 15,

2006.

PINEAU, Pablo y DI PIETRO, Susana. Aseo y presentación: un ensayo sobre la estética

escolar. Buenos Aires, Edición de autor, 2008.

PINEAU, Pablo. ¿Por qué triunfó la escuela? In: DUSSEL, Inés; CARUSO, Marcelo;

PINEAU, Pablo. La escuela como máquina de educar: tres escritos sobre un proyecto de la

modernidad. Buenos Aires: Paidós, 2013.

_____________. Historia y política de la educación argentina. Buenos Aires: Ministerio de

Educación de la Nación, 2010.

_____________. La escuela en el paisaje moderno. Consideraciones sobre el proceso de

escolarización. In Cucuzza, Héctor (comp.) Historia de la educación en debate. Buenos

Aires, Miño y Dávila editores, 1996.

_____________. “Otra vez sopa”: Imágenes de la infancia y escuela en Mafalda. Procesos:

Revista Ecuatoriana de Historia. Nº 22, P. 153 – 162, 2005. Disponível em:

http://revistaprocesos.ec/ojs/index.php/ojs/article/view/233/302. Acesso em: 20 out. 2017.

PUIGGRÓS, Adriana. Qué pasó en la educación argentina. Desde la conquista hasta el

menemismo. Buenos Aires, Kapelusz, 1997.

QUADROS, Claudemir de. Revistas para professores na argentina: discursos, conselhos

pedagógicos e sucessos editoriais. Revista História da Educação [en linea], 2013, Disponível

em: <http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=321627379016>. Data de acesso: 30 jan 2018

RAMALLO, Jorge María. Etapas históricas de la educación argentina. Capítulo VII, p.8.

Disponível em: <http://www.argentinahistorica.com.br>.

RAMOS, Paulo. Piadas e tiras em quadrinhos: a oralidade presente nos textos de humor.

Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 1158-1163, 2005. Disponível em: <

http://www.gel.org.br/estudoslinguisticos/edicoesanteriores/4publica-estudos-2005/4publica-

estudos-2005-pdfs/piadas-e-tiras-em-quadrinhos-119.pdf>. Data de acesso: 30 jan 2018.

_____________. Tiras cômicas e piadas: duas leituras, um efeito de humor. 2007. Disponível

em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8142/tde-04092007-141941/pt-br.php>.

Data de acesso: 15 dez 2017.

Page 148: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

148

______________. Bienvenido: um passeio pelos quadrinhos argentinos. Campinas:

Zarabatana Books, 2010.

RODRIGUES, Márcio dos Santos. Representações políticas da Guerra Fria: as histórias em

quadrinhos de Alan Moore na década de 1980. UFMG, 2011, 212f, Dissertação (mestrado) -

Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Filosofia e Ciências. 2011.

ROMERO, José Luis. América Latina: as cidades e as ideias. Rio de Janeiro: Editora UFRJ,

2004.

ROMERO, Luis Alberto. La argentina em la escuela: La idea de Nación en los textos

escolares. Buenos Aires: Siglo XXI Editores Argentina, 2007.

ROSSI, Kassia; HENN, Ananda Gomes. Malfada, a menina que questionou o mundo: arte

sequencial como forma de resistência durante os regimes militares da América do Sul (1964-

1973). 2015. Disponível em: < http://videira.ifc.edu.br/fice/wp-

content/uploads/sites/27/2015/11/MAFALDA-A-MENINA-QUE-QUESTIONOU-O-

MUNDO-arte-sequencial-como-forma-de-resist%C3%AAncia-durante-os-regimes-militares-

da-Am%C3%A9rica-do-Sul-1964-1973.pdf>. Data de acesso: 10/08/2016.

SALIBA, Elias Thomé Saliba. Treze Obras para conhecer a história cultural do humor.

março/2016. In: Faria, João Roberto. (Org.). Guia Bibliográfico da FFLCH-USP. São Paulo:

FFLCH USP, 2016, v. 1, p. 19-SANDERS, 2008, p. 160

SANTOS, Roberto Elísio dos. Para reler os quadrinhos Disney: linguagem, evolução e

análise de HQs. São Paulo: Paulinas, 2004.

SARDELICH, Maria Emília. Leitura de imagens, cultura visual e prática educativa.

Cadernos de Pesquisa, v. 36, n. 128, maio/ago. 2006.

SARLO, Beatriz. Una modernidad periferica: Buenos Aires 1920 y 1930. Buenos Aires:

Ediciones Nueva Vision, 1988.

SCARELI, Giovana. Educação e histórias em quadrinhos: a natureza na produção de

Maurício de Sousa. 2002.

SCHARAGRODSKY, Pablo. El cuerpo en la escuela. In: Revista Explora Las Ciencias En El

Mundo Contemporáneo. 2011, p. 2. Disponível em:

<http://ceip.edu.uy/IFS/documentos/2015/sexual/materiales/pedagogia-

elcuerpoenlaescuela/pedagogia-elcuerpoenlaescuela.pdf>. Data de acesso: 16/03/2017

SOUSA, Bertone de Oliveira. A Memória como Elemento de Construção de uma Identidade

Cultural. p. 2. Disponível em:

Page 149: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

149

<http://www.congressohistoriajatai.org/anais2008/doc%20(10).pdf >. Data de acesso:

20/02/2017

SOUTHWELL, Myriam; ARATA, Nicolás. Saúl Taborda: su presencia en debates sobre la

crisis, la estética y el reformismo (1885-1944). 2011. Disponível em: <

http://revistas.uptc.edu.co/index.php/historia_educacion_latinamerican/article/view/1605/160

2>.

SOUTHWELL, Myriam; DUSSEL, Inés. La escuela y la igualdad: renovar la apuesta. 2004,

s/p. Disponível em: <http://www.me.gov.ar/monitor/nro1/dossier1.html>.

SUAREZ, Maria Laura. La representación de la educación en Mafalda. - 1a ed. - Buenos

Aires : Universidad de Buenos Aires. Facultad de Ciencias Sociales. Carrera de Ciencias de la

Comunicación. , 2011.

TORRADO, Susana. Estrutura social de la Argentina (1945-1983).Buenos Aires: Ediciones

de la Flor, 1992.

ULANOVSKY, Carlos. Paren las rotativas. Historia de los grandes diários, revistas y

periodistas argentinos. Buenos Aires, Espasa, 1996, p. 40-7.

VERGUEIRO, Waldomiro. Histórias em quadrinhos e serviços de informação: um

relacionamento em fase de definição, 2005. Disponível em:

<http://www.brapci.inf.br/index.php/article/view/0000001585/f27caf52f00b14b55cc64d950f2

a6a79/> . Data de acesso: 29 jan. 2018.

VERGUEIRO, Waldomiro; SANTOS, Roberto Elísio dos. A pesquisa sobre as histórias em

quadrinhos na universidade de São Paulo: Análise da produção de 1972 a 2005. São Paulo:

Editora USP, 2006.

VERGUEIRO, Waldomiro; RAMOS, Paulo. Os Quadrinhos (oficialmente) na escola: dos

PCN ao PNBE In: VERGUEIRO, Waldomiro; RAMOS, Paulo. Quadrinhos na educação: da

rejeição à prática. São Paulo: Contexto, 2009.

WILLIAMS, Raymond. Sociologia de la Cultura. Buenos Aires: Editorial Paidós.1981.

WRIGHT, Bradford W. Reds, Romance and Renegades – Comic Books and the Culture of the

Cold War, 1947-1954. In: Comic book nation: the transformation of youth culture in America.

Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2001.

II- Fontes Primárias (Livros, jornais e revistas)

DINAMIS, número 14, novembro de 1969, p. 63.

Page 150: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

150

EL MONITOR DE LA EDUCACIÓN COMÚN, 1932 apud FINOCCHIO, 2009.

EL MONITOR DE LA EDUCACIÓN COMÚN, 1960, núm 928.

EL MONITOR DE LA EDUCACIÓN COMÚN, 1960, núm. 929.

EL MONITOR DE LA EDUCACIÓN COMÚN, 1960, núm. 931.

EL MONITOR DE LA EDUCACIÓN COMÚN, 1960, núm. 932.

EL MONITOR DE LA EDUCACIÓN COMÚN, 1961, núm. 936.

EL MONITOR DE LA EDUCACIÓN COMÚN, 1965, núm. 939.

EL MONITOR DE LA EDUCACIÓN COMÚN, 1966, núm. 946.

GRAHAM-YOOLL, Andrew. Mafalda, the star with no illusions In Buenos Aires Herald, 2

de outubro de 1967.

LA OBRA, 1921 apud FINOCCHIO, 2009.

LA OBRA, 1932 apud FINOCCHIO, 2009.

PÁGINA/12, 2005. Disponível em: <https://www.pagina12.com.ar/diario/elpais/1-56048-

2005-09-04.html>. Data de acesso: 28 dez 2017.

PRIMERA PLANA. Buenos Aires: Editorial Danoti S. R. L. Ano II, n. 99, 29 setembro de

1964, p.1.

QUINO. Mafalda Inédita. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1988.

______. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993

______. Toda Mafalda: da primeira a ultima tira. São Paulo: Martins Fontes, 2003

______. ¡Que Mala es la gente!. Buenos Aires: Ediciones de la Flor, 2013

REVISTA INSTRUCCIÓN PRIMARIA, 1932 apud FINOCCHIO, 2009.

SIETE DÍAS, num. 45, 5 de março de 1968, pp 46-47.

UNESCO, 1959, vol. nº7. Julho, 1959 apud ARATA, 2013.

III – Entrevistas e vídeos

Entrevista concedida para El País. Disponível em:

<http://brasil.elpais.com/brasil/2014/10/17/sociedad/1413566259_284551.html>. Data de

acesso: 13/02/2017.

Entrevista realizada por Maruja Torres In: QUINO. Toda Mafalda: da primeira a ultima tira.

São Paulo: Martins Fontes, 2003, p VI

Entrevista realizada por Miguel Rep, relatada pelo jornalista Enrico Fantoni para a Revista

Samuel. Disponível em: < http://revistasamuel.uol.com.br>.

Entrevista encontrada no site oficial de Quino. Disponível em: <www.quino.com.ar>.

Page 151: RAQUEL CARDONHA PIACENTI - Unicamp€¦ · 2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65 2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69 Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina

151

Vídeo de entrevista concedida a Universidade Federal de Integração Latino-Americana.

Disponível em: < http://www.unila.edu.br>.

Vídeo de entrevista realizada no programa Puerto Cultura. Disponível em:

<www.youtube.com>.