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UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA CURSO DE MESTRADO EM HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA RAPHAEL DE SOUSA MACHADO A CULTURA POLÍTICA DO CORONELISMO E SUAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS: ARAGUARI/MG - 1930/1945 UBERLÂNDIA 2016

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLNDIA

    CURSO DE MESTRADO EM HISTRIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA

    RAPHAEL DE SOUSA MACHADO

    A CULTURA POLTICA DO CORONELISMO E SUAS REPRESENTAES

    SOCIAIS:

    ARAGUARI/MG - 1930/1945

    UBERLNDIA

    2016

  • RAPHAEL DE SOUSA MACHADO

    A CULTURA POLTICA DO CORONELISMO E SUAS REPRESENTAES

    SOCIAIS:

    ARAGUARI/M G- 1930/1945

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao em Histria Social da Universidade Federal

    de Uberlndia, como requisito parcial obteno do

    ttulo de mestre em histria, sob a orientao do Prof.

    Dr. Jean Luiz Neves Abreu.

    Linha de pesquisa: Poltica e Imaginrio

    rea de concentrao: Histria Social

    UBERLNDIA

    2016

  • M149c2016

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) Sistema de Bibliotecas da UFU, MG, Brasil.

    Machado, Raphael de Sousa, 1983-A cultura poltica do coronelismo e suas representaes sociais :

    Araguari/MG - 1930/1945 / Raphael de Sousa Machado. - 2016.124 f. : il.

    Orientador: Jean Luiz Neves Abreu.Dissertao (mestrado) - Universidade Federal de Uberlndia,

    Programa de Ps-Graduao em Histria.Inclui bibliografia.

    1. Histria - Teses. 2. Histria social - Teses. 3. Coronelismo - Araguari (MG) - Teses. 4. Araguari (MG) - Histria - 1930-1945 - Teses. I. Abreu, Jean Luiz Neves. II. Universidade Federal de Uberlndia. Programa de Ps-Graduao em Histria. III. Ttulo.

    CDU: 930

  • RAPHAEL DE SOUSA MACHADO

    A CULTURA POLTICA DO CORONELISMO E SUAS REPRESENTAES

    SOCIAIS:

    ARAGUARI/M G- 1930/1945

    BANCA EXAMINADORA:

    Prof. Dr. Jean Luiz Neves Abreu (Orientador) (UFU)

    Prof. Dr. Florisvaldo Paulo Ribeiro Jnior (UFU)

    Prof. Dr. Luiz Carlos do Carmo (UFG)

  • A histria objeto de uma construo, que tem lugar no no tempo vazio e

    homogneo, mas no repleno de atualidade.

    Walter Benjamin

  • A todos os meus professores.

  • AGRADECIMENTOS

    famlia: meu pai, Mario Roberto Machado, por sempre me conscientizar de

    que os estudos era o melhor caminho, e por me auxiliar, indiretamente, com tantos

    favores pessoais, nesta jornada que o Mestrado. A minha me, por tambm sempre

    estimular e criar as devidas condies de estudo, sobretudo por estar sempre

    disposio para ajudar de alguma forma. Aos meus irmos, Ana Carolina de Sousa

    Machado, Murilo de Sousa Machado e Roberta de Sousa Machado, por sempre me

    ouvirem e apoiarem em todas as decises. Aos meus familiares em geral, que de alguma

    maneira deram as suas contribuies. E a todos os amigos, obrigado por entenderem, s

    vezes, as inmeras ausncias nas festividades, em breve compensarei.

    A minha esposa Juliana Ribeiro Silva, por sempre me apoiar e ter a pacincia

    para ouvir e dar suas opinies sobre a pesquisa, mesmo que a custa de muita briga

    intelectual. A minha sogra, Lia de Ftima Ribeiro e a minha cunhada Liana Ribeiro

    Silva pelos favores pessoais que possibilitaram me dedicar aos estudos.

    Aos meus professores em geral da graduao que me proporcionaram uma base

    intelectual de muita qualidade, em especial a professora Christina Roquette Lopreato,

    minha orientadora na graduao. Aos meus professores do Mestrado, Jean Neves Abreu,

    Leandro, Jacy Seixas, e em especial o professor Antnio de Almeida, orientador que me

    ofereceu os devidos caminhos.

    As servidoras do Arquivo Pblico Municipal Dr. Calil Porto, obrigado pela

    disponibilidade, e com grande carinho Cida, amiga e arquivista que me auxiliou

    sempre com os materiais necessrios e boas conversas.

  • RESUMO

    Este estudo tem como escopo apresentar as relaes polticas no mbito do

    fenmeno social denominado como coronelismo, a partir de suas disputas internas

    pelo poder, na cidade de Araguari-MG, entre 1930-1945, buscando explicitar as

    rupturas e as continuidades dessas relaes, posteriormente, ao fim da chamada

    Repblica Velha. A hiptese central perpassa pela ideia de que as mudanas ocorridas

    aps a Revoluo de 1930, como o crescimento demogrfico, a urbanizao e a

    industrializao, no desmontaram abruptamente o sistema coronelista, pois suas

    prticas permaneceram fincadas em bases muito slidas, sobretudo na estrutura agrria

    existente no Brasil. Para tal entendimento ser analisado o conceito de coronelismo na

    historiografia brasileira, e, tambm, conceitos correlatos a esse fenmeno social como o

    mandonismo, a cultura poltica, e o prprio conceito de poltica na historiografia, entre

    outros.

    Palavras-chaves: histria poltica; coronelismo; cultura poltica; Araguari.

  • ABSTRACT

    This study aims to present the political relations within the ambit of the social

    phenomenon titled as coronelismo, from its inner disputes for power, in the city of

    Araguari-MG, between 1930-1945, seeking to point out the ruptures and the continuities

    of such relations, eventually, to the end of what it was called Old Republic . The core

    hypothesis crosses over the idea that the changes that took place after the Revolution o f

    1930, such as the demographic rise, the urbanization and industrialization, do not

    demonstrate abruptly the coronelismo system, once its practices linger embedded in

    very solid bases, however, within the agrarian structure in Brazil. For such

    understanding, the term coronelismo will be analyzed in the Brazilian historiography,

    additionally, correlative concepts to this social phenomenon such as mandonismo, the

    political culture and the own concept of politics in its historiography, among other

    things.

    Keywords: political history; coronelismo; political culture; Araguari.

  • SUMRIO

    Introduo

    Da contemporaneidade poltica...............................................................................................11

    Captulo I

    O coronelismo numa abordagem historiogrfica..................................................................26

    1.1 - Conceituaes do coronelismo na historiografia brasileira.......................................32

    1.2 - A cultura poltica do poder personalista.....................................................................43

    Captulo II

    Cultura poltica e disputa pelo poder em Araguari: o papel da imprensa......................... 54

    2.1 - A famlia Santos na busca pelo poder.........................................................................55

    2.2 - A desconstruo do adversrio poltico......................................................................64

    2.3 - As bases de construo e manuteno do poder local...............................................82

    Captulo III

    Teia de poderes - ou bem se manda ou bem se pede.......................................................88

    3.1 - Da fragilidade do Municpio..................................................................................... 93

    3.2 - O cl Santos: os donos do poder - de coronel a doutor...................................... 109

    Consideraes finais.............................................................................................................114

    Referncias bibliogrficas...................................................................................................118

    Anexos 123

  • INTRODUO

    DA CONTEMPORANEIDADE POLTICA

    A histria de fato no vive fora do tempo em que escrita, ainda mais quando se trata da histria poltica: suas variaes so resultado tanto das mudanas que afetam o poltico como das que dizem respeito ao olhar que o historiador dirige ao poltico.

    Ren Rmond 11

  • Como bem disse Certeau, ns sempre escrevemos sobre algo j escrito. Portanto,

    nesta pesquisa, o que mais ser almejado, como na caa ao javali Emiranto por

    Hrcules, ser o entendimento de uma sociedade complexa, cheia de clivagens sociais,

    polticas e culturais. E que ao final, possamos concluir que foi uma sociedade que viveu

    e produziu uma histria a contragosto do que um historiador positivista do sculo XIX

    desejaria aceitar, essencialmente contraditria. Malgrado o quiproqu que,

    aparentemente, as palavras anteriores possam parecer, a pesquisa em si, no pretende

    ser incoerente e observar o rigor acadmico necessrio. O que se coloca como

    contraditrio podera ser entendido como uma histria em espiral, em detrimento de

    uma histria linear. Os fatos por si mesmos no possuem um encaixe lgico como num

    quebra-cabea da Histria.

    Este trabalho tem como condio sine qua non o estudo da Poltica. Mas qual

    poltica? A poltica da primeira metade do sculo XX? A poltica atual? A poltica dos

    coronis? A poltica local araguarina? Para cada pergunta havera diversas

    possibilidades de respostas, assim, num vis acadmico, a resposta mais contundente

    de que esse estudo tentar responder, a cada uma delas, no necessariamente separadas

    mas diludas entre si, de acordo com as nossas possibilidades como pesquisador.

    Outro fator determinante para o desenrolar dessa empreitada so os dados atuais

    sobre a participao popular na poltica nacional. Enquanto do incio do sculo passado

    at o final da sua primeira metade, havia uma participao nfima da populao no

    cenrio poltico, hoje, os dados so surpreendentemente superiores a tal perodo. O que

    nos leva a concluir, de forma simplria que, se a participao poltica aumentou

    vertiginosamente, teramos que ter um cenrio poltico bem distinto daquele da primeira

    metade do sculo XX1, perodo em que a participao popular era muito baixa.

    Entretanto, o que se nota que a populao apesar de ter ampliado o seu

    protagonismo, como detentora de uma condio de escolha muito maior do que antes,

    isso no foi suficiente para dizer que a nossa Repblica Democrtica atingiu um grau

    de maturidade que satisfizesse a populao brasileira. Pelo contrrio, o que se pode

    constatar que a confiana da nossa sociedade civil nos nossos polticos gerou uma

    1 Segundo o IBGE, em 1910, o corpo eleitoral total era de 1.155.146. Disponvel em Acessado em: 10/10/2015. J na ltima eleio presidencial, realizada em 2014, segundo o TSE tivemos um corpo eleitoral apto a votar de 142.822.046 eleitores. Disponvel em: Acesso em: 10/10/2015

    12

    http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/29092003estatisticasecxxhtml.shtmhttp://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2014/Dezembro/plenario-do-tse-proclama-resultado-definitivo-do-segundo-tumo-da-eleicao-presidencialhttp://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2014/Dezembro/plenario-do-tse-proclama-resultado-definitivo-do-segundo-tumo-da-eleicao-presidencialhttp://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2014/Dezembro/plenario-do-tse-proclama-resultado-definitivo-do-segundo-tumo-da-eleicao-presidencial
  • substancial repugnncia daquela sobre o interesse pela poltica, ou seja, as pessoas

    sabem que a poltica determinante em suas vidas, mas no se interessam em entend-

    la ou discuti-la em virtude dos polticos que a conduzem. Como bem apontou Amorim:

    a coexistncia de valores democrticos com prticas polticas tradicionais, que tm

    contribudo para o descrdito dos cidados em relao poltica2.

    Marcello Baquero, no seu artigo Cultura poltica participativa e

    desconsolidao democrtica: reflexes sobre o Brasil contemporneo, assim como

    Amorim, adverte para a descrena ou a falta de interesse do brasileiro pela poltica

    como resultado de um processo histrico mais amplo do que os problemas do presente,

    dessa forma, conclui o cientista poltico, na essncia, os brasileiros continuam a

    desacreditar nas instituies que constituem o pilar da democracia representativa3.

    Nesse mesmo caminho, quando se observa a presena de polticos como

    proprietrios de meios de comunicao, ou de lideranas religiosas ligadas poltica e

    aos meios de comunicao com formaes de oligoplios miditicos, no possvel

    concluir que o cenrio poltico brasileiro avanou muito em relao as suas prticas do

    incio do sculo passado at os dias atuais. Haja vista os diversos artigos e pesquisas

    que tratam do coronelismo eletrnico ou do coronelismo religioso4.

    Neste trabalho uma das propostas trazer tona algumas questes sobre a

    poltica praticada no municpio de Araguari-MG, no perodo de 1930-1945, buscando

    aproximar as racionalidades e sentimentos que se imbricaram nesse espao e tempo. O

    desafio procurar compreender esse perodo de transio na poltica brasileira no

    mbito deste municpio, que tem como um dos seus traos marcantes a chamada

    Revoluo de 1930, que acarretou mudanas na poltica local, iniciando um processo de

    disputas nas relaes de poder entre os grupos dominantes existentes no municpio.

    Tomando como ponto de partida esta disputa pelo poder, procuraremos

    apreender quais foram os movimentos ou aes realizados por esses grupos para se

    sobressarem uns sobre os outros, em busca do controle poltico. Ao longo desses 15

    anos analisados mapeamos como se produziu e reproduziu a cultura poltica

    2 AMORIM, Maria Salete Souza de. Cultura poltica e estudos de poder local. In: Revista Debates. Porto Alegre: v.l, nl, jul.-dez. 2007, p.99.3 BAQUERO, Marcello. Cultura poltica participativa e desconsolidao democrtica: reflexes sobre o Brasil contemporneo. In: So Paulo em perspectiva, 15 (4) 2001, p.98.4 Cf. FIGUEREDO FILHO, Valdemar. Coronelismo eletrnico evanglico. Ia ed. So Paulo: Publit, 2010, 236p. Cf. LIMA, Vencio A. de. O coronelismo eletrnico evanglico. Observatrio da Imprensa. 26 ago. 2008, ed. 500. Disponvel em: Acesso em: 15/09/2015

    13

    http://observatoriodaimprensa.com.br/jomal-de-debates/o-coronelismo-eletronico-evangelico-13102/http://observatoriodaimprensa.com.br/jomal-de-debates/o-coronelismo-eletronico-evangelico-13102/
  • caracterizada por um mandonismo desmedido, pelo uso da fora e da coero, pelos

    coronis da regio, algo que era usual e comum ao restante do Brasil. Entretanto, mais

    do que isso, a nossa hiptese a de que, embora o mando tenha se estabelecido em

    determinados momentos da histria poltica araguarina na base da violncia, na sua

    longa permanncia na estrutura de Estado ele sofreu mutaes, adotando, tambm,

    outras prticas, menos coercitivas e, portanto, mais complexas. Prticas essas que

    podem ser entendidas a partir do conceito de cultura poltica, que tem como definio

    inicial o conjunto de atitudes, crenas e sentimentos que do ordem e significado a um

    processo poltico, pondo em evidncia as regras e pressupostos nos quais se baseia o

    comportamento dos seus atores5.

    Uma questo que esteve presente durante todo o desenvolvimento desta pesquisa

    est associada indagao se ainda existe pertinncia historiogrfica eleger o

    coronelismo como objeto de estudo. Em uma das inmeras leituras realizadas ao longo

    do nosso percurso investigativo nos deparamos com o artigo intitulado O coronelismo

    ainda uma questo historiogrfica?6, de Maria de Lourdes M. Janotti. Embora esse

    artigo no tenha sido fator motivador para a escolha dessa temtica, uma vez que

    somente o encontramos na fase final da escrita, ainda assim, a sua leitura e as diversas

    reflexes desenvolvidas a partir das anlises das fontes, foram fatores determinantes

    para respondermos positivamente a tal questionamento.

    Acreditamos que pertinente pensar no somente o coronelismo, mas at

    mesmo o campo do poltico de forma mais ampla, no mbito da longa durao,

    procurando identificar as mudanas, e, sobretudo, as continuidades que geraram o

    estgio atual da poltica brasileira. As anlises de Janotti, embora desenvolvidas em fins

    dos anos de 1990, nos parecem plenamente atuais, porque alm da interrogao

    levantada anteriormente, a autora apresenta, em poucas pginas, diversas outras

    interrogaes sobre o campo do poltico, tendo sempre como ponto central a pertinncia

    historiogrfica do coronelismo como continuidade no processo histrico brasileiro, e

    no como algo que foi fruto de um passado que j chegou ao seu final. Pensamento que

    compartilhamos plenamente a partir das observaes da poltica local.

    5 CARNEIRO, Leandro Piquet; KUSCHNIR, Karina. As dimenses subjetivas da poltica: cultura poltica e antropologia da poltica. In: Estudos histricos. Rio de Janeiro: vol.13, 1999, p.227.6 JANOTTI, Maria de Lourdes Monaco. O coronelismo ainda uma questo historiogrfica? In: Anais do XIXSimpsio Nacional de Histria -ANPUH. Belo Horizonte: junho de 2007.

    14

  • Parte-se, inicialmente, da compreenso de que, aps os anos de 1930, h um

    aumento da participao da cidadania no pas com a ampliao de direitos eleitorais7,

    gerando entre os coronis modificaes nas suas prticas polticas, acompanhando,

    ainda que em parte, as alteraes em curso para que no ficassem fora do jogo poltico.

    Dessa maneira, j no era mais possvel que as classes dirigentes (dominantes8)

    utilizassem somente mtodos patrimonialistas9 herdados do perodo colonial para

    fazerem poltica, pois passou a ser necessrio, no ps-1930, novas bases para a

    manuteno do poder local, gerando assim, uma sofisticao no novo perfil do coronel.

    Porm, nesse momento, se faz necessrio uma ressalva que vamos analisar ao

    longo do texto. E claro na historiografia do mandonismo que o fim da chamada

    Repblica Velha (1889-1930) no foi o fim abrupto do coronelismo e suas prticas

    como forma de mando. Percorrendo os autores clssicos que se debruaram sobre o

    assunto a partir da dcada de 1940, evidente que a estrutura de poder muda e

    consequentemente as relaes polticas tiveram que acompanhar essa mudana.

    Todavia, ela no se processou da noite para o dia, repentinamente, mas sim,

    paulatinamente, acompanhando as mudanas estruturais, como bem apontou a sociloga

    Maria Isaura Pereira de Queiroz:

    Estes caracteres resultavam da organizao social apoiada no latifndio e no paternalismo (em que se transformara o anterior patriarcalismo); a Revoluo de Outubro no fora produto de nenhuma mudana na estrutura social e econmica e sim de uma evoluo; como evoluo, guardava no seu seio, coexistentes,

    7 Nas eleies presidenciais de 1930 houve uma participao de 5,7% da populao total. Como se realizou um censo no ano de 1930, o nmero total da populao fica entre os 30.700.000 do censo de 1920, e 41.100.000 do censo de 1940. A baixa participao popular nas eleies de 1930 se deveu em virtude dos critrios eleitorais que vigoravam naquele tempo como idade de 21 anos, homem, alfabetizado, etc., ainda assim era um ndice alto comparado a perodos anteriores. Cf. Disponvel em: < http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/29092003estatisticasecxxhtml.shtm> Acesso em: 10/11/2015.8 O conceito de dominante, aqui, segue as linhas de Bourdieu, em que este utiliza o conceito de campo social, e que nesse campo social h dominantes, detentores de capitais, que disputam o poder dentro do campo poltico, e dominados, agentes que esto fora dessa disputa pelo poder, porm fazem parte e compe o campo poltico.9 Na definio de Faoro: O sistema patrimonial, ao contrrio dos direitos, privilgios e obrigaes fixamente determinados do feudalismo, prende os servidores numa rede patriarcal, na qual eles representam a extenso da casa do soberano. Mais um passo, e a categoria dos auxiliares do prncipe compor uma nobreza prpria, ao lado e, muitas vezes, superior nobreza territorial. Outro passo ainda e os legistas, doutores e letrados, conservando os fumos aristocrticos, sero sepultados na vala comum dos funcionrios, onde a vontade do soberano os ressuscita para as grandezas ou lhes vota o esquecimento aniquilador. A economia e a administrao se conjugam para a conservao da estrutura, velando contra as foras desagregadoras, situadas na propriedade territorial, ansiosas de se emanciparem das rdeas tirnicas que lhes impedem a marcha desenvolta. FAORO, Raymundo. Os donos do poder: Formao do patronato poltico brasileiro. 5a ed. So Paulo: Globo, 2012, p.38.

    15

    http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/29092003estatisticasecxxhtml.shtmhttp://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/29092003estatisticasecxxhtml.shtm
  • tendncias sobreviventes da Colnia. Assim, a passagem da solidariedade familial solidariedade de dependncia, de elaborao mtua, no foi brusca e no acabou com o coronel, mas se processou graas gradual adaptao deste a novas condies de vida10.

    Em Araguari, por exemplo, a alcunha do termo coronel ainda perdurou por

    muito tempo nos jornais e no imaginrio popular aps a Revoluo de Outubro liderada

    por Getlio Vargas e seus aliados. Diante disso, algumas prticas coronelistas

    permaneceram idnticas ao perodo anterior, e outras novas surgiram dentro do novo

    sistema poltico. Em anlise mais recente o historiador Jos Murilo de Carvalho, em

    estudos desenvolvidos em meados dos anos 90, procurou renovar o debate conceituai

    em torno do que havia at ento sobre os termos polticos ligados ao poder local e o

    poder nacional. Para Carvalho, (...) H momentos (...) em que o acmulo de pesquisas

    passa a ter rendimento decrescente porque as ideias comeam a girar em roda, sem

    conseguir avanar devido a confuses ou imprecises conceituais11. Mesmo que haja a

    divergncias em algumas conceituaes em relao Carvalho, sobretudo na definio

    de coronelismo que ser exposta mais adiante, no Captulo I, a crtica apontada por

    ele tem muita relevncia quando se percebe que no h inovaes e avanos em dcadas

    de pesquisa sobre a temtica em questo. Isso talvez seja por conta das imprecises

    conceituais assinaladas pelo autor.

    Uma das propostas do nosso trabalho, seguindo essa linha argumentativa de

    Carvalho, mesmo que discordando de algumas abordagens do autor, parte da premissa

    de que h que se ter uma releitura desses pressupostos tericos, conjugada a uma

    pesquisa emprica de lastro, desdobrando-se a partir de uma relao de construo

    terica e emprica num trabalho que seja inovador de alguma forma. Em outras

    palavras, nos preocuparemos para que esse trabalho no seja um encaixe de conceitos

    em relao pesquisa local, e que ela possa trazer tona o que Araguari tinha de

    comum em relao aos conceitos gerais apresentados, e que por outro lado, fiquem

    claramente expostas suas especificidades locais.

    Um dos problemas iniciais o prprio uso conceituai do termo coronelismo,

    que pelo seu uso corrente em diversos estudos e presente tambm no imaginrio social,

    10 QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O coronelismo numa interpretao sociolgica. In: FAUSTO, Boris. Histria Geral da Civilizao Brasileira. Tomo III. O Brasil Republicano. Estrutura de Poder e Economia - 1889-1930. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.11 CARVALHO, Jos Murilo de. Mandonismo, Coronelismo, Clientelismo: Uma discusso conceituai. In:Pontos e Bordados: escritos de histria e poltica. Belo Horizonte: UFMG, 1999, s/p.

    16

  • j apresenta por si s algumas denotaes mais gerais e comuns. Buscaremos ampliar,

    com a ajuda de diversos autores, essa noo mais trivial desse conceito. Iniciando essa

    conceituao com um autor contemporneo, Francisco Pereira de Farias, o qual afirma

    que:

    O coronelismo , na realidade, um fenmeno hbrido: em parte pr- burgus (manifestao, no plano poltico, dos laos de servilismo do produtor com o dono dos meios de produo), em parte burgus (pressupe a extenso do direito poltico a todos os membros da coletividade).12

    Est uma definio sofisticada e contempornea do coronelismo na sua face

    mais econmica. Essa passagem, todavia, no abarca por completo a extenso que tal

    conceito alcana, mas por outro lado, abre caminho para o incio da discusso a qual o

    texto se prope, pois o termo coronelismo e suas implicaes ser melhor analisado no

    Captulo I.

    Na contemporaneidade, seja na conjuntura nacional ou internacional, la

    Politique, na sua forma tradicional, carece de prestgio e sabemos que isso no um

    enigma indecifrvel. No entanto, na perspectiva historiogrfica, o campo da poltica est

    ganhando novo flego. A partir de meados da dcada de 80 do sculo XX, a

    historiografia poltica vem superando o embuste da histria dos tronos e das

    dominaes empregado pela escola Positivista desde o sculo XIX.

    Depois de um longo perodo de desapego e distanciamento da histria poltica,

    por parte de alguns historiadores, ela foi recuperada, ampliando e diversificando objetos

    e fontes a serem estudados, resultando, dessa forma, numa renovao e em novos

    olhares sobre ela. Todavia, embora o poltico nunca tenha deixado de estar presente em

    todos os mbitos sociais, por um perodo se tornou secundrio ou at mesmo

    dispensvel para algumas correntes historiogrficas, com a predominncia de estudos

    voltados para o social, o cultural e o econmico13.

    Esse suposto secundarismo pelo qual a poltica foi relegada, talvez seja fruto das

    preocupaes dos historiadores que se viram impelidos pela conjuntura em que viviam,

    como foi o caso da Escola dos Annales que combateu, de certa maneira, a historiografia

    12 FARIAS, Francisco Pereira de. Clientelismo e democracia capitalista: elementos para uma abordagem alternativa. In: Revista de Sociologia e Poltica. Curitiba: nov. 2000, n15, p.51.13 REMOND, Ren. Uma histria presente. In: REMOND, Rne (org). Por uma histria poltica. 2a ed. Traduo Dora Rocha. Rio de Janeiro: FGV, 2003.

    17

  • poltica que estava sendo feita, propondo uma antropologia poltica histrica14. Desse

    modo, a mudana para a retomada dos objetos polticos por diversos meios, por

    exemplo, a opinio pblica15, discursos16 (televisivos, impressos, panfletrios,

    literrios...), documentos religiosos, processos eleitorais, etc., cada vez mais amplia e

    fundamenta uma nova historiografia poltica.

    A pretenso aqui no a de reivindicar a supremacia do poltico em relao aos

    demais domnios, mas de apontar a presena do poltico nesses diversos setores, que se

    relacionam e se constituem mutuamente. Dito de outra forma, neste trabalho a poltica

    ser visualizada dentro de uma correlao de foras de indivduos que so conduzidos

    por vises de mundo diferentes e com interesses divergentes, e que essas relaes na

    maioria do tempo so relaes desiguais no nvel da troca, neste caso os coronis em

    relao sua parentela.

    Esse novo olhar da historiografia poltica, que vem sendo desenvolvido desde

    1990, cunhado de cultura poltica. Termo que busca entender o poltico em bases

    amplas, levando em conta os conceitos tradicionais, de acordo com o estudo especfico,

    porm, almejando avanar sobre esses conceitos com novos olhares sobre o poltico.

    Dessa forma, a historiografia poltica ao se apropriar do conceito de cultura poltica,

    procura dialogar fortemente com a sociologia, a psicologia, a antropologia, a lingustica

    etc. Sendo assim, uma abertura do espectro de possibilidades, que deve ser bem

    estruturado para que no se perca o controle, mas que uma renovao necessria, haja

    vista as mudanas que a sociedade vem desenvolvendo nas ltimas dcadas e que a

    historiografia poltica deve acompanhar.

    A partir da temtica do mandonismo no perodo exposto (1930-1945), temos

    como objetivo geral deste estudo entender a relao poltica, econmica e social do

    universo araguarino com seus grupos dominantes e quais as consequncias das disputas

    pelo poder local na vida da sociedade araguarina, perguntando como a sociedade

    araguarina reagiu s disputas e aos desmandos em vrios momentos. Disputas essas que

    tm como centro os grupos dominantes economicamente, mas que se movimentavam e

    se relacionavam em todos os outros domnios sociais, seja na imprensa, na Igreja

    14 Esta uma expresso que foi denominada por Jacques Le Gof no prefcio de seu livro A Histria Nova. Cf: LE GOFF, Jacques. A Histria Nova. So Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 8.15 Cf: BECKER, Jean-Noel. A Opinio Pblica. In: Por Uma Histria Poltica (Org: Ren Rmond). Rio de Janeiro: Fundao Getlio Vargas, 1996.16 Cf: PROST, Antoine. As palavras. In: Por Uma Histria Poltica (Org: Ren Rmond). Rio de Janeiro: Fundao Getlio Vargas, 1996.

    18

  • Catlica, nas disputas comerciais ou nas relaes pessoais (casamentos, divrcios,

    brigas pessoais).

    Dessa forma, fica claro que no perodo da Era Vargas (1930-1945), em herana

    da Primeira Repblica (1889-1930), o domnio do poltico era um terreno de grandes

    interesses particulares, ou, na maioria das vezes, o Poder Pblico, em especfico as

    Prefeituras, sobretudo no interior, era visto como um terreno de realizaes de interesses

    privados. Isso s foi possvel por conta de uma estrutura, de um sistema poltico

    montado em dcadas anteriores a esse perodo, que foi moldado em mbito nacional,

    estadual e municipal, pois um no conseguiria se perpetuar no poder por muito tempo

    sem o apoio do outro e vice-versa.

    E nessas disputas econmicas e polticas que observamos como se d a

    interferncia e a interveno de um campo sobre o outro (campos poltico e econmico).

    Caracterstica que perdura ainda nesse incio do sculo XXI, quer dizer, grupos

    dominantes com um poderio econmico que almejam o poder poltico para manter ou

    aumentar interesses econmicos17. Dessa forma, o exerccio da poltica para a maioria

    dos grupos pesquisados, no a realizao dos interesses do bem comum, da

    coletividade, mas sim, garantias de interesses pessoais ou das alianas. Como nas

    prticas polticas observadas entre os grupos dominantes da cidade de Araguari, uma

    cultura poltica antiaristotlica, termo empregado no sentido em que Aristteles aponta

    a poltica como uma forma de se atingir o bem comum.

    Uma das nossas variadas questes sobre o perodo era como o sistema

    coronelista, e no somente o coronel, s vezes interpretado como epifenmeno da

    estrutura, sustentava-se e adaptava-se s mudanas que visavam abalar suas estruturas

    em nome da modernizao e do progresso. Diante disso, entendemos que uma parte

    importante foi o estabelecimento de uma cultura poltica, criada dcada aps dcada,

    desde o sculo XIX, que se manteve arraigada na sociedade brasileira, e em Araguari

    especialmente, por muito tempo nas suas diversas variaes e adaptaes, inclusive com

    caractersticas que permanecem at o sculo XXL

    17 No caso araguarino tem-se o exemplo, em momento especfico, de uma disputa entre os jornais pesquisados o Araguary e O Tringulo, para ver qual dos jornais seria utilizado como veculo oficial de publicidade da prefeitura. Sendo que esses jornais eram de propriedade de alguns envolvidos com a poltica local. Em 1933, por exemplo, O Tringulo, acionou o presidente do Estado de Minas Gerais para intervir porque eles haviam perdido a hasta pblica (licitao), alegando ilegalidade pelo fato de terem oferecido um preo menor pela prestao do servio e ainda assim no terem sido escolhidos pelo prefeito.

    19

  • Desse modo, existia uma cultura poltica do coronelismo introjetada socialmente

    pelos agentes sociais dominantes, como apontou Bourdieu no seu conceito de doxan , e

    no naturalmente como entende o senso comum. Ocorre, portanto, uma construo por

    diversos meios, no caso coronelista, dessa naturalizao de que alguns fazem parte de

    uma elite poltica dominante e outros no, portanto o que resta se alimentar, como

    dominado, dessa estrutura natural, que para o socilogo francs no natural e sim

    social. O objetivo demonstrar como isso edificado ao longo da estrutura coronelista,

    com suas prticas de servilismo, clientelismo e mandonismo.

    Entretanto, na busca por trilhar o caminho proposto acima, nos deparamos com a

    dificuldade de interpretar como se deu a construo da conscincia poltica da sociedade

    araguarina, nos anos de 1930, sobretudo em funo da falta de sua fala nos veculos

    dominantes da poca. Por isso, o caminho escolhido para entender essa conscincia

    poltica foi o da leitura a contrapelo, metodologia que ajuda a fazer a anlise a partir da

    linguagem dominante. Assim, o conceito de cultura poltica toma-se essencial para o

    entendimento do papel dos diversos grupos que jogam o jogo no campo poltico. Para

    Baquero, por exemplo,

    (...) o que importa destacar que a cultura poltica ocupa um lugar central no cotidiano dos indivduos, podendo servir tanto para regular a transmisso de valores polticos, quanto para legitimar o funcionamento das instituies polticas. A forma como se constri e se difunde essa cultura est diretamente relacionada a como se reproduzem os comportamentos, as normas e os valores polticos de determinada comunidade18 19.

    Nesse sentido, quando se tem uma cultura poltica dirigida por uma elite de

    coronis e seus agregados, e mesmo que seja possvel as formas de resistncia a esse

    sistema, nota-se um arcabouo de elementos que contribuam para a permanncia do

    coronelismo no cotidiano da sociedade araguarina, no sentido de difundir esses

    elementos culturais dominantes, tornando-os aparentemente naturais, quando na verdade

    18 A doxa aquilo sobre o que todos os agentes esto de acordo. Bourdieu adota o conceito tanto na forma platnica - o oposto ao cientificamente estabelecido como na forma de Husserl (1950) de crena (que inclui a suposio, a conjectura e a certeza). A doxa contempla tudo aquilo que admitido com sendo assim mesmo: os sistemas de classificao, o que interessante ou no, o que demandado ou no. THIRY-CHERQUES, Hermano Roberto. Pierre Boudieu: a teoria na prtica. In: RAP. Rio de Janeiro: 40 (1), 27-55, jan.-fev. 2006, p.35.19 BAQUERO, Marcello. Cultura poltica participativa e desconsolidao democrtica. Reflexes sobre o Brasil contemporneo. So Paulo em Perspectiva. So Paulo: Oct./Dec. 2001. vol.15 n4, p.102.

    20

  • eles eram construdos a fim de manter a cultura poltica dos primeiros 30 anos da

    Repblica Velha. Isso era possvel devido ao controle estabelecido pelos grupos

    dominantes em diversos setores, sobretudo o controle da imprensa; o apoio e da Igreja

    Catlica, que tinha o papel de transmitir os valores da verdadeira famlia em matrias

    veiculadas nos jornais ao lado de reportagens das famlias dos coronis; a adeso aos

    partidos tradicionais da velha Repblica, como o Partido Republicano (PR); o

    clientelismo desenvolvido com servios mdicos, jurdicos, polticos e financeiros, haja

    vista que a famlia Santos, que um dos grupos dominantes na pesquisa, possua o

    coronel Marciano Santos, banqueiro, comerciante e fazendeiro, seus filhos, Jos Jeovah

    Santos, mdico e fazendeiro, e Celso Santos, advogado e proprietrio de jornal. Assim,

    a capacidade dessa famlia de realizar a tradicional poltica do favor era imensa.

    Dessa forma, os valores polticos desse grupo eram difundidos por diversos

    canais e tornava-se o sustentculo da cultura poltica coronelista que perdurou por um

    bom tempo na sociedade araguarina. Isso corrobora com as reflexes desenvolvidas por

    Motta (2009), quando afirma que,

    Pode-se dizer que muitas das culturas polticas consistentes possuem ideologia, entendida como um sistema de ideias que constitui o seu ceme. Mas importante no resumir uma coisa outra, e perceber que a cultura poltica transcende e vai alm da ideologia, ao mobilizar sentimentos (paixes, esperanas, medos), valores (moral, honra, solidariedade), representaes (mitos, heris) e ao evocar a fidelidade a tradies (famlia, nao, lderes)20.

    Todos esses elementos expostos na conceituao de Motta esto presentes no

    sistema coronelista, nos discursos analisados ao longo da pesquisa, assentados nos

    jornais, em panfletos e at processos criminais. E notvel a mobilizao dos sentimentos

    para construir e desconstruir o adversrio poltico, no caso da disputa pelo poder entre

    os dois grupos dominantes. E explcita a busca pela difuso dos valores misturados s

    questes sentimentais, como o caso do processo de injria movido ao final do mandato

    de Jos Jeovah Santos sobre aqueles que o acusavam de vrios crimes, em que ele se

    utiliza da moral e da honra para se defender de tais acusaes21.

    A fidelidade s tradies um dos elementos mais explorados pelo sistema

    coronelista, pois por meio dela se constri a figura dos lderes, transforma-se o poder

    20 MOTTA, Rodrigo Patto S (Org.). Culturas polticas na histria: novos estudos. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2009, p.2721 Tal processo ser analisado no primeiro captulo, nesse momento uma abordagem exemplificativa.

    21

  • econmico e poltico em liderana natural, aquele que sempre luta pela

    municipalidade, quer o bem comum para o municpio, ou o que Teresa Sales

    denominou de cidadania concedida, em que:

    Os direitos bsicos vida, liberdade individual, justia, propriedade, ao trabalho; todos direitos civis, enfim, para o nosso homem livre e pobre que vivia na rbita do domnio territorial, eram direitos que lhe chegavam como uma ddiva do senhor de terras.22

    E, por fim, a famlia como elemento aglutinador e na qual se assenta a

    transmisso e manuteno do poder na estrutura coronelista.

    No que diz respeito ao uso das fontes de pesquisa, como utilizaremos os jornais

    como principal elemento de consulta, consideramos essencial explicitar aqui o

    tratamento dispensado aos mesmos. Nesse aspecto, partimos da compreenso de que a

    imprensa significa uma fora social ativa, nas palavras de Cruz e Peixoto23, e,

    portanto, no caso do objeto em destaque, tornou-se parte integrante para se estudar o

    fenmeno do coronelismo, entendendo-a como elemento fundamental para a difuso

    dos seus valores (no caso de apoiarem tal sistema), e, tambm, como meio de resistncia

    (no caso de ser oposio ao coronelismo). Pois, para essas autoras

    importante problematizar e superar pela anlise a ideologia da objetividade e da neutralidade da imprensa que, construda historicamente, se nos confronta como um dado de realidade: a imprensa no se situa acima do mundo ao falar dele. Tambm no se trata de ir atrs de uma representao do mundo que se articula fora do veculo e a se clarifica, ou mesmo, de buscar uma ideologia construda pela classe dominante e que a ganha visibilidade24, (grifo nosso)

    Diante desse trecho citado, compartilhamos a ideia de que a imprensa carrega

    uma srie de pressupostos para alm de ser apenas a fonte de uma realidade

    verdadeira - como num lampejo positivista - , pelo contrrio, ela carrega em si a viso

    de mundo de quem a faz, dessa forma ela produtora e produto daqueles que a cercam.

    Ela no mera transposio ideolgica de um grupo, ela tambm isso, e mais,

    funciona como uma ferramenta de construo de uma representao do mundo social

    22 SALES, Teresa. Razes da desigualdade social na cultura poltica brasileira. Disponvel em: http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_25/rbcs25_02.htmAcesso em: 05/02/2015 s/p.23 CRUZ, Heloisa de Faria; PEIXOTO, Maria do R. da Cunha. Na oficina do historiador: Conversas sobre histria e imprensa. Projeto Histria, So Paulo, n.35, p. 253-270, dez. 2007, p.253.24 Ibid., p.258.

    22

    http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_25/rbcs25_02.htmAcesso
  • a qual est inserida e no dissociada. A imprensa parte importante na construo da

    memria, e na produo de sentidos para o presente25. So essas definies que sero

    levadas em considerao no trato com a imprensa ao longo deste trabalho.

    Deste modo, se as fontes utilizadas aqui so basicamente construes de grupos

    dominantes em disputa pelo poder, temos que ter a acuidade de buscar os sentidos e as

    representaes que eles queriam empregar. A imprensa ser tratada como fonte e objeto

    ao mesmo tempo, dessa forma, ela no ser meramente fonte subsidiria e secundria da

    construo do passado. Nessa perspectiva, Cruz e Peixoto destacaram muito bem o

    papel da imprensa no ofcio do historiador.

    (...) entre ns, j vai longe o tempo em que uma compreenso positivista das evidncias descartava a imprensa como fonte fidedigna e a olhava com desconfiana questionando sobre sua parcialidade e engajamento. De h muito, acertamos que o passado no nos lega testemunhos neutros e objetivos e que todo documento suporte de prtica social, e por isso, fala de um lugar social e de um determinado tempo, sendo articulado pela/na intencionalidade histrica que o constitui26, (grifo nosso)

    Compactuamos com o pensamento das autoras, sobretudo com as expresses em

    destaque no trecho acima, no entanto, essas premissas apresentadas no so de uma

    singularidade notvel hoje para ns historiadores, talvez para o grande pblico essa

    dualidade da objetividade e da subjetividade ainda seja arraigada de alguma verdade.

    Destarte, a narrativa ser construda tendo o devido cuidado de trabalhar os dois jornais,

    escolhidos pelo historiador, para esta pesquisa, respeitando todas as premissas expostas

    acima. Entendendo, sobretudo, o papel da imprensa como lugar de memria e lugar de

    produo de sentido.

    Sobre a imprensa como agente ativo na sociedade araguarina, em uma de suas

    reportagens o jornal O Tringulo manifesta claramente esse posicionamento nada

    imparcial, mesmo que em alguns momentos ele se proponha s-lo, e que de acordo com

    a citao anterior de Maciel no deveria propor. Na reportagem com o ttulo de A

    imprensa e a revoluo, o jornal tem a seguinte posio:

    25 MACIEL, Laura Antunes. O popular na imprensa: linguagens e memrias. In: Anais do XIX Encontro Regional de Histria: Poder, Violncia e Excluso. Anpuh-SP. So Paulo: 08 a 12 de setembro de 2008, p.l.26 CRUZ, Heloisa de Faria; PEIXOTO, Maria do R. da Cunha. Na oficina do historiador: Conversas sobre histria e imprensa. Projeto Histria, So Paulo, n.35, p. 253-270, dez. 2007, p.258.

    23

  • A maior victima da revoluo victoriosa, no Brasil, tem sido, sem duvida, a imprensa independente. O attentado praticado contra o Dirio Carioca, no Rio, o Dirio da Bahia, em S. Salvador e muitos outros jomaes, cujos nomes no nos ocorrem no momento, attesta eloquentemento o esprito liberal dos heroes de outubro, guindados ao poder.27 [sic]

    Tendo como referncia os pressupostos anteriormente anunciados, o trabalho

    est organizado da seguinte forma: o Captulo I tem como objetivo responder a duas

    questes centrais: primeira, como foi possvel a construo e a manuteno da estrutura

    de mando no mbito do poder local?; e a segunda, como a populao, aparentemente,

    assistia ao jogo desse tipo de fazer poltica? Assim, essas duas interrogaes

    permeiam no somente este captulo mas toda a pesquisa. No entanto, a proposta para

    essa parte da dissertao faz transparecer uma necessidade de respond-las, o que ser

    objetivado ao longo do captulo. Um dos conceitos utilizados para dar algumas

    respostas a esses questionamentos o de cultura poltica, conceito esse escolhido por

    conta da sua abrangncia e flexibilidade, como bem caracterizou Berstein, segundo ele:

    E se a cultura poltica responde melhor sua expectativa porque ela , precisamente, no uma chave universal que abre todas as portas, mas um fenmeno de mltiplos parmetros, que no leva a uma explicao unvoca, mas permite adaptar-se complexidade dos comportamentos humanos28.

    Alm do conceito de cultura poltica, ser abordado como suporte a toda a

    pesquisa algumas definies do termo coronelismo, desde as clssicas como de Victor

    Nunes Leal e Maria Isaura Pereira de Queiroz, at os autores atuais que puderam fazer

    suas anlises bebendo nos estudos clssicos como os citados, e dando suas

    contribuies para as possveis renovaes e atualizaes do termo.

    No Captulo II, a proposta apresentar a famlia Santos como um dos grupos

    centrais do estudo, pois observando as fontes identificamos nela os elementos do

    conceito de coronelismo a que a dissertao se assenta. Apresentamos, tambm, as

    trajetrias individuais do pai, Marciano Santos, e do filho Jos Jeovah Santos, como

    personagens importantes para a pesquisa. A partir da passamos a tratar da ruptura

    revolucionria em 1930, que leva a mudana do cenrio poltico em Araguari na

    27 O Tringulo. A imprensa e a revoluo. Araguari, mai. 1932, n127.28 BERSTEIN, Serge. A cultura poltica. In: RIOUX, Jean-Pierre; SIRINELLI, Jean-Franois. Para uma histria cultural. Lisboa: Editorial Estampa, 1998, p.350.

    24

  • primeira metade desse decnio. Daremos destaque, sobretudo, para as disputas que so

    desencadeadas com as mudanas dos chefes locais em virtude do processo

    revolucionrio. Nesse momento, construmos, teoricamente, que no cotidiano local se

    verificava, uma diviso de grupos que iro travar diversos embates pelo poder na

    cidade, essas divergncias sero expostas em dois jornais que utilizamos como base do

    nosso estudo, O Tringulo e o Araguary, em que, claramente, o primeiro era aliado da

    famlia Santos, e o segundo ao grupo que vamos denominar de memorialistas .

    Como estamos dando nfase famlia Santos no nosso trabalho, neste segundo

    captulo buscaremos entender a projeo dessa famlia no cenrio araguarino, da

    chegada do patriarca cel. Marciano Santos e seu irmo Samuel Santos, que tambm

    receber a alcunha de coronel nos jornais locais, at a consolidao de sua rede de

    poderes, e sobretudo suas formas de ampliao e manuteno desses poderes nas figuras

    dos seus filhos Jos Jeovah Santos, Celso Santos e Olavo Santos.

    Ainda neste captulo, iremos desenvolver anlises a partir de pesquisas

    realizadas junto s fontes jornalsticas locais entre 1930-1934, com destaque para os

    ataques ao prefeito, Mario da S. Pereira, desferidos no jornal O Tringulo, e, por outro

    lado, a sua defesa, veiculada pelo jornal Araguary. Tentaremos, a partir desse duelo

    ideolgico e miditico, traar um panorama poltico de Araguari nos primeiros anos da

    dcada de 1930, procurando detectar o que havia de permanente e duradouro na

    estrutura coronelista, supostamente desarticulada com a Revoluo, e, tambm, se havia

    sinais que j apontavam para sua derrocada.

    No Captulo III, temos como caminho principal apontar algumas ideias de como

    foi possvel o coronelismo se instalar no Brasil historicamente, e, principalmente,

    identificar como que as mudanas polticas e econmicas empreendidas por setores que

    queriam desmantelar a estrutura coronelista nos anos de 1930 no surtiram um efeito

    imediato, sendo necessrio um tempo maior do que aquele defendido por alguns

    autores, que estabeleceram como marcos o fim da Primeira Repblica e o incio do

    governo Vargas. Contudo para falarmos no fim dessa estrutura necessrio discutir se,

    atualmente, ainda permanece algo desse passado recente na poltica brasileira. Para tal

    jornada, iremos relacionar a funo do municpio dentro do sistema republicano no

    perodo histrico proposto.

    25

  • CAPTULO I

    O CORONELISMO NUMA ABORDAGEM HISTORIOGRFICA

    H uma busca de novas solues mas os polticos continuam a no ter plena conscincia de que, dada a variedade de situaes, as mesmas solues no servem para todos: os interesses locais ou os interesses privados continuam desempenhando o papel de funestos antolhos.

    Maria Isaura Pereira de Queiroz

    26

  • O estudo da poltica, na perspectiva historiogrfica, passou por um processo de

    mudanas nas ltimas dcadas. Entre os fatores que estimularam essa necessidade de

    renovao, cabe destacar as duras crticas sofridas na primeira metade do sculo

    passado e o progressivo distanciamento dos historiadores desse tipo de narrativa,

    transformando-a quase num sub-objeto da Histria. A escola positivista, que teve na

    figura de Charles Seignobos um dos seus principais representantes, tornou-se alvo

    preferencial da Nova Histria francesa, cujos iniciadores March Bloch e Lucien

    Febvre29, no pouparam crticas chamada histria vnementielle, ou histria

    factual30.

    Com a renovao historiogrfica empreendida a partir da dcada de 1980, j com

    as crticas devidamente absorvidas por grande parte dos historiadores, os fenmenos

    polticos passaram a ser revalorizados como objeto de estudo da histria. Esta

    reestruturao talvez tenha sido vivel em razo do entendimento, por parte dos

    pesquisadores desse campo de estudos, de que a poltica est presente em diversas

    dimenses do real, e no restrita em si. Embora no seja onipresente, como querem

    alguns, em maior ou menor grau se manifesta em diversos mbitos. Para Rmond31, a

    histria poltica:

    (...) aprendeu que se o poltico tem caractersticas prprias que tomam inoperante toda anlise reducionista, ele tambm tem relaes com os outros domnios: liga-se por mil vnculos, por toda espcie de laos, a todos os outros aspectos da vida coletiva. O poltico no constitui um setor separado: uma modalidade da prtica social32.

    29 A histria historizante exige pouco. Muito pouco. Demasiadamente pouco a meu ver, e na opinio de muitos outros alm de mim. a nossa queixa, mas uma queixa slida. a queixa daqueles para quem as ideias so uma necessidade. Cf. FEBVRE, Lucien. Combates pela histria. Lisboa: Editorial Presena, Lda. 1989, p. 118.30 Em Rne Rmond, no ensaio intitulado Uma histria presente, publicado no livro Por uma histria poltica, organizado por ele e com artigos de outros historiadores franceses, o autor faz um balano historiogrfico da histria poltica francesa, procurando analisar como que o objeto poltico passou de um siaiiis dominante no final do sculo XIX e incio do XX (pela corrente positivista), para o atraso acadmico ao qual foi relegado pelos Annales. E como a partir da passagem da onda econmica e social, a poltica volta a ser objeto de interesse dos historiadores, com novas abordagens tericas e metodolgicas, fruto da relao com outros campos do conhecimento como a lingustica, a sociologia, a matemtica, a psicologia etc. Cf. RMOND, Ren. Uma histria presente. In: RMOND, Rne (org). Por uma histria poltica. 2a ed. Traduo Dora Rocha. Rio de Janeiro: FGV, 2003, p. 13-36.31 O grande destaque ao pensamento de Rmond se deve pela sua referncia mundial na renovao da historiografia poltica nas ltimas dcadas, sobretudo pelas contribuies na organizao do livro Por uma histria poltica. 2a ed. Traduo Dora Rocha. Rio de Janeiro: FGV, 2003.32 RMOND, Ren. Uma histria presente. In: RMOND, Rne (org). Por uma histria poltica. 2a ed. Traduo Dora Rocha. Rio de Janeiro: FGV, 2003, p.35-36.

    27

  • Partindo dessa compreenso, mesmo que o campo do poltico possa ser

    considerado uma construo abstrata, nas palavras de Rmond, ele no pode ser

    reduzido esfera exclusiva da poltica. E intercambivel e est presente, em maior ou

    menor escala nos diversos domnios do real compondo a prtica social . Ou, como

    defendeu o historiador francs, (...) o campo do poltico no tem fronteiras fixas, e as

    tentativas de fech-lo dentro de limites traados para todo o sempre so inteis33.

    Nesses termos, no caso deste trabalho, ao optarmos por pesquisar o coronelismo

    as problemticas levantadas foram alm dos seus aspectos polticos. O olhar sobre esse

    objeto buscou enxergar outras dimenses desse fenmeno social, como o econmico, o

    social e o cultural. Fugindo de alguns lugares comuns, presentes em determinados

    estudos sobre o coronelismo, entre os desafios colocados para esta pesquisa conta o de

    aplicar ao objeto em anlise o que o historiador francs Jacques Julliard apontou sobre

    as novas possibilidades de estudos da poltica:

    Em primeiro lugar, porque no se ganharia nada em continuar a confundir as insuficincias de um mtodo com os objetos a que se aplica. Ou bem existe, com efeito, uma natureza prprio dos fenmenos polticos, que os limita categoria dos fatos - simples espuma das coisas, espuma que se pode deixar de lado sem prejuzo ou bem, ao contrrio, o poltico, como o econmico, o social, o cultural, o religioso, acomoda-se aos mtodos mais diversos, inclusive os mais modernos e, nesse caso, tempo de aplic-los ao poltico.34 (grifos nossos)

    Seguindo essas pistas apontadas por Julliard, e considerando o coronelismo um

    fenmeno essencialmente poltico, toma-se imperativo avanar nos seus estudos,

    incorporando, com os devidos cuidados, os novos suportes tericos de outras reas do

    conhecimento, como a cincia poltica e a antropologia poltica, desenvolvendo novas

    problemticas e trilhando novos caminhos, em busca de revelar facetas desse fenmeno

    ainda pouco exploradas. Segundo o historiador citado, o problema no est no objeto do

    poltico, que provavelmente nunca deixar de ser relevante, e jamais ser uma simples

    espuma35. Portanto, o problema est fora do objeto da poltica, est na verdade em

    33 Ibidem, p.44334 JULLIARD, Jacques. A poltica. In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre. Histria - novas abordagens. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988, p. 181-182.35 Sobre essa ideia da superficialidade, Marieta de Moraes Ferreira tem um excelente apontamento, segundo ela, ( ) o importante no aquilo que manifesto, aquilo que se v, mas o que est por trs do manifesto. Tudo o que manifesto ao mesmo tempo mais superficial. Cf. FERREIRA, Marieta de

    28

  • como estud-lo de forma consistente e adequada s questes atuais, bem diferente da

    postura adotada tempos atrs por alguns pesquisadores que procuraram elimin-lo do

    cardpio da historiografia.

    Sobre essa relao interdisciplinar, necessria dinamizao do campo poltico,

    Julliard afirma que:

    (...) a renovao da histria poltica ser feita - est sendo feita - em contato com a cincia poltica, disciplina ainda jovem e em estado experimental, mas em plena expanso, e cujas pesquisas o historiador no pode ignorar, assim como no se pode desinteressar das conquistas da economia poltica, da demografia, da lingustica ou da psicanlise.36 37

    No Brasil, uma autora que fez um apanhado dos estudos polticos no pas

    Angela de Castro Gomes. No artigo intitulado Poltica: Histria, Cincia e Cultura1'1,

    ela analisa como o objeto poltico foi tratado pela historiografia brasileira na primeira

    metade do sculo XX, apontando a abordagem dos autores clssicos como Srgio

    Buarque de Holanda e Caio Prado Jnior, o impacto dos Annales na nossa

    historiografia, e por fim, analisando como se deu a renovao desses estudos da

    histria poltica a partir da segunda metade do sculo, aps a crise de paradigma sofrida

    em dcadas anteriores. Sobre essas mudanas estruturais na historiografia poltica,

    Gomes aponta que:

    A revitalizao dos estudos de histria poltica, ou o que tem sido chamado de o retorno da histria poltica, guarda relaes profundas com as mudanas de orientaes tericas que atingiram as cincias sociais de forma geral. Inmeros autores situam o fenmeno como uma crise dos paradigmas estruturalistas ento vigentes: o marxista, o funcionalista e tambm o de uma vertente da escola dos Annales. Esta crise, traduzida pela recusa de explicaes determinsticas, metodologicamente quantitativistas e marcadas pela presena de atores coletivos abstratos, no localizveis no tempo e no espao, teria impactado o campo das cincias humanas forando-as a rever suas ambies totalizadoras e suas explicaes racionalistas/materialistas38.

    Moraes. A nova velha histria: o retomo da histria poltica. In: Estudos Histricos. Rio de Janeiro, 1992, vol.5, n10, p.265.36 JULLIARD, Jacques. A poltica. In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre. Histria - novas abordagens. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988, p.184.37 Cf. GOMES, Angela de Castro. Poltica: Histria, Cincia, Cultura etc. In: Revista Estudos Histricos. Rio de Janeiro: CPDOC, 1996. v.9, n17, p.59-84.38 Ibidem, p.63

    29

  • A partir da anlise da autora, um dos caminhos que levaram revitalizao dos

    estudos polticos est intimamente ligado aos balanos tericos realizados em meados

    do sculo XX, que ter repercusso direta na pauta da historiografia poltica.

    Para Vavy Pacheco Borges, que se incumbiu, assim como Gomes, de realizar

    uma anlise historiogrfica do poltico em meados dos anos 1990, o debate sobre o que

    se produzia de histria poltica passava antes de tudo pela pergunta essencial: qual o

    espao do poltico em meio historiografia naquele momento? Dessa perspectiva ela

    concluiu que:

    No momento historiogrfico que vivemos, h uma grande aceitao da histria como um conhecimento construdo, como um discurso criador do passado; vivemos presentemente, como tem sido apontado de sobejo, uma crise dos paradigmas, um momento de rupturas historiogrficas; a histria apresentada como que "em migalhas", Mas ser que possvel deixar de haver uma referncia totalidade? E a, qual seria o espao do poltico?39 (grifo nosso)

    E notrio que tanto no artigo citado de Gomes quanto no de Borges, presentes na

    Revista de Estudos Histricos (1996) a preocupao era de entender a historiografia

    brasileira naquele momento, mas tendo como questionamento central o papel do

    poltico no campo historiogrfico40. Isso porque, mesmo havendo, entre os historiadores

    a indagao sobre a importncia da poltica na historiografia, constatou-se que 66,46%41

    da produo geral tinha como campo a histria poltica. Subentende-se ento, a partir

    da constatao de Borges, que a histria poltica no passava por uma crise de

    produo, pois os nmeros mostravam o contrrio. Para ela (...) a discusso conceituai

    do que se entende por histria poltica ou histria do poltico est longe de estar feita e

    bastante necessria, pois leva a uma discusso mais ampla42. Dessa forma, o

    problema maior estava associado conceituao do objeto poltico, e no em relao

    produo (quantidade) voltada para esse campo. O conjunto de questes era de

    definio e de marcas tericas no pensamento poltico e social brasileiro, ratificando o

    que foi proposto por Julliard no processo de renovao da historiografia poltica.

    39 BORGES, Vavy Pacheco. Histria poltica: totalidade e imaginrio. In: Revista Estudos Histricos. Rio de Janeiro: CPDOC, 1996. v.9, n17, p.151-160.40 A ttulo de esclarecimento, o tema da Revista de Estudos Histricos n17 era Historiografia, e dos doze artigos presentes cinco apresentavam a palavra poltica j no ttulo, ratificando o que as autoras se propuseram.41 Dado retirado do artigo de Borges, 1996, p.153.42 BORGES, Vavy Pacheco. Histria poltica: totalidade e imaginrio. In: Revista Estudos Histricos. Rio de Janeiro: CPDOC, 1996. v.9, n17, p.153.

    30

  • Rmond amplia a conceituao do que pode ser tratado como objeto do campo

    poltico para alm das formas tradicionais de estud-lo, como as instituies e os

    grandes personagens. Assim, o historiador francs define que:

    (...) o poltico uma das expresses mais altas da identidade coletiva: um povo se exprime tanto pela sua maneira de conceber, de praticar, de viver a poltica tanto quanto por sua literatura, seu cinema e sua cozinha. Sua relao com a poltica revela-o, da mesma forma que seus outros comportamentos coletivos43.

    Evidente que, controvertido como o campo do poltico, o mesmo comporta

    tambm leituras bastantes divergentes, como as do autor francs, Jacques Julliard, que

    no mesmo perodo que Rmond, levanta a seguinte provocao:

    A histria poltica psicolgica e ignora os condicionamentos; elitista, talvez biogrfica, e ignora a sociedade global e as massas que a compem; qualitativa e ignora as sries; o seu objeto o particular e, portanto, ignora a comparao; narrativa, e ignora a anlise; idealista e ignora o material; ideolgica e no tem conscincia de s- lo; parcial e no o sabe; prende-se ao consciente e ignora o inconsciente; visa os pontos precisos, e ignora o longo prazo; em uma palavra, uma vez que essa palavra tudo resume na linguagem dos historiadores, uma histria fa c tu a l44

    Em tom claro de condenao, Julliard inicia seu artigo analisando todo aquele

    histrico de crticas tecidas poltica na historiografia francesa em boa parte do sculo

    XX, como o fez Rmond no mesmo perodo, denotando-se a preocupao dos

    historiadores do poltico em justificar e explicar na Frana o real lugar da poltica na

    Histria a partir dos anos de 1980. O artigo de Julliard, assim como o de Rmond, no

    entanto, no tm o objetivo de reforar o coro dos Annales, mas sim, o contrrio. Aps

    esse incio de autocondenao, o historiador francs ir discorrer sobre a necessidade de

    mudanas sobre o olhar do objeto poltica, e apontar caminhos possveis para tais

    inovaes, dando nfase interdisciplinaridade, como j apontamos anteriormente em

    dilogo com outros autores. Para ele:

    43 REMOND, Ren. Do poltico. In: REMOND, Rne (org). Por uma histria poltica. 2a ed. Traduo Dora Rocha. Rio de Janeiro: FGV, 2003, p.449-450.44 JULLIARD, Jacques. A poltica. In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre. Histria - novas abordagens. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988, p. 180-181.

    31

  • Ocorre com freqncia aos pases em desenvolvimento tirar partido e fora de seu atraso, seguindo logo para as tcnicas as mais modernas, e deixando de lado as clssicas. O atraso da histria poltica coloca-a em situao anloga e convida-a no somente a queimar etapas, mas a faz-lo com a maior rapidez possvel. Como Balandier, pensamos que a histria poltica poderia representar, hoje, um papel de importncia capital: instruda por uma longa hesitao no caos dos acontecimentos, ela poderia evitar ao conjunto dos historiadores a longa travessia do deserto sistmico, trazendo-lhes, enfim, uma contribuio essencial interpretao global da mudana45.

    Quando se quer dar o destaque para o estudo da poltica, no o mesmo que

    querer sobrepuj-la em relao aos demais comportamentos polticos, como destacou

    Rmond, mas sim, apontar que aquele to significativo quanto os demais para o

    estudo de um povo, uma nao, uma cidade etc. E conseguir compreender esses

    comportamentos, passa pelo entendimento e compreenso da pluralidade desses

    elementos.

    1.1 Conceituaes do coronelismo na historiografia brasileira

    No campo dos estudos polticos o coronelismo um tema que suscita diversos

    debates, e gera diferentes conceituaes. Sobre a temtica existem os autores que

    podemos considerar clssicos, como Maria Isaura Pereira de Queiroz, Victor Nunes

    Leal, Raimundo Faoro, Roberto Cavalcanti Albuquerque e Marcos Vinicios Vilaa,

    Maria de Lourdes Monaco Janotti, entre outros46. Nesses autores aparecem questes

    45 JULLIARD, Jacques. A poltica. In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre. Histria - novas abordagens. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988, p.193.46 Em seu artigo publicado em 1975, O coronelismo numa interpretao sociolgica, Queiroz, faz uma anlise de tal fenmeno interpretando-o sobretudo como uma estrutura ou sistema, e no como um simples elemento poltico e econmico, e isso o que mais chama a ateno levando em conta a data da sua publicao. No seu artigo a autora dialoga bastante com Jean Blondel, autor francs que se dedicou aos estudos do coronelismo nos anos de 1950-1960 na Paraba. Cf. QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O coronelismo numa interpretao sociolgica. In: FAUSTO, Boris. Histria geral da civilizao brasileira. O Brasil republicano. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. t. III, v. 8, p.172-212. Um autor unnime, pioneiro e presena certa nas pesquisas de mesma temtica Victor Nunes Leal, autor do renomado Coronelismo, enxada e voto, publicado pela primeira vez em 1949, a obra h tempos se tomou um cnone na historiografia poltica, nela Leal faz uma interpretao precisa da forma como o coronelismo atuava, mesmo estando to prximo do contexto do seu objeto, dando nfase na relao entre a estrutura econmica brasileira (predominantemente agrria) daquele perodo e suas representaes polticas. Cf. LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o municpio e o regime representativo no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, 3aed. Outro autor essencial para o entendimento da cultura poltica brasileira Raimundo Faoro, escritor da obra clssica Os donos do poder, nela o jurista- historiador analisa a origem da nao brasileira no sua longa durao. Cf. FAORO, Raymundo. Os donos do poder: Formao do patronato poltico brasileiro. 5a ed. So Paulo: Globo, 2012. Numa abordagem histrico-antropolgica, a obra Coronel, coronis, escrita a quatro mos, pelos autores Marcos Vinicios Vilaa e Roberto Cavalcanti de Albuquerque, apresenta num primeiro momento um panorama conceituai

    32

  • conceituais que so de consenso entre a maioria, como por exemplo, a concentrao

    fundiria e a fragilidade do poder municipal predominante no pas, como pilares de

    sustentao da estrutura coronelista. Em contrapartida, so evidentes os

    posicionamentos tericos conflitantes entre os autores citados anteriormente, e entre

    esses e outros autores que buscaram e ainda buscam ampliar a discusso sobre o tema.

    Entretanto, esses posicionamentos conflitantes no so necessariamente formas de

    pensar excludentes.

    Uma das questes centrais que distancia, mas no exclui, alguns autores o

    perodo de atuao do sistema coronelista: para autores como Jos Murilo de Carvalho,

    o coronelismo tem seu fim com o trmino da Primeira Repblica. No entanto, para

    outros autores como Queiroz47 e Leal, h continuidades e adaptaes do coronelismo

    em vrios momentos da histria poltica brasileira.

    Sobre a querela do fim ou no do coronelismo, o posicionamento terico do

    historiador Jos M. de Carvalho apresenta uma mudana entre duas de suas publicaes

    sobre o tema, o que totalmente natural com o passar do tempo. Em uma primeira

    publicao, com o artigo Mandonismo, coronelismo, clientelismo: uma discusso

    conceituai, publicado em 1995, ele sustenta que o coronelismo tem seu fim com a

    Revoluo de 1930, fundamentando-se sobretudo nos escritos de Victor Nunes Leal,

    autor que em texto posterior a sua obra-prima Coronelismo, enxada e voto, reconhece a

    continuidade do coronelismo na poltica brasileira48. Contudo, num segundo momento,

    com o artigo Metamorfoses do coronel, publicado no Jornal do Brasil em 2001, portanto

    num espao de seis anos, Carvalho, no mais reafirma de forma categrica a posio

    defendida anteriormente, mas, em determinados trechos deixa em suspenso a

    continuidade do sistema coronelista dentro das suas possveis adaptaes. Como

    do coronelismo, e, posteriormente, constri perfis sociolgicos de quatro coronis do nordeste brasileiro. Cf. ALBUQUERQUE, Roberto Cavalcanti de; VILAA, Marcos Vinicios. Coronel, coronis. Apogeu e declnio no Nordeste. 5a ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. Como ponto de partida para o estudo do coronelismo indicaria a autora Maria de Lourdes M. Janotti, com seu artigo O coronelismo ainda uma questo historiogrfica?, publicado em 1997, nele a historiadora faz um balano, a partir do ttulo provocativo, da permanncia da estrutura coronelstica que perdurou, de diferentes formas nas diversas regies do pas, mesmo aps a Revoluo de 1930, e que supostamente foi instaurada para mudar a ordem social e poltica da Primeira Repblica. Cf. JANOTTI, Maria de Lourdes Monaco. O coronelismo ainda uma questo historiogrfica? Anais do XIX Simpsio Nacional de Histria - ANPUH. Belo Horizonte, junho de 2007, p.505-516.47 Para a sociloga, A Revoluo de 1930, que se realizou graas adeso dos velhos coronis e que, depois de instalada, se inaugurou chamando a si o apoio dos que ainda estavam de fora, prova que o coronel no Brasil ainda no se tinha fechado. Cf. QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O mandonismo local na vida poltica brasileira e outros ensaios. So Paulo: Alfa-Qmega, 1976, p.155.48 Essa reformulao de pensamento em Leal encontra-se em um pequeno artigo de revista. Cf. LEAL, Victor Nunes. O coronelismo e o coronelismo de cada um. In: Dados. 1980: vol. 23, n 1, p. 11-14.

    33

  • apontou nessa passagem: (...) surgiu o novo coronel, metamorfose do antigo, que vive

    da sobrevivncia de traos, prticas e valores remanescentes dos velhos tempos49,

    afirmando, ento, a capacidade de se adequar do novo coronel. Esse tipo de anlise no

    se verifica no seu primeiro artigo. O autor j no seu segundo texto avana ainda mais,

    situando um possvel neocoronelismo no sculo XXI, haja vista seus apontamentos em

    relao ao momento da sua escrita, em 2001, no qual reconhece a atualidade do

    coronelismo. Segundo Carvalho:

    O coronel de hoje no vive num sistema coronelista que envolvia os trs nveis de governo, no derruba governadores, no tem seu poder baseado na posse da terra e no controle da populao rural. Mas mantm do antigo coronel a arrogncia e a prepotncia no trato com os adversrios, a inadaptao s regras da convivncia democrtica, a convico de estar acima da lei, a incapacidade de distinguir o pblico do privado, o uso do poder para conseguir empregos, contratos, financiamentos, subsdios e outros favores para enriquecimento prprio e da parentela50, (grifos nossos)

    necessrio que no se cometa o equvoco terico de afirmar, diferentemente do

    que exps Carvalho, que o coronel da Primeira Repblica se manteve posteriormente a

    esse perodo com suas caractersticas originais, pelo contrrio, o que o autor sustenta, e

    compactuamos com ele nesse aspecto, que houve adaptaes para a sobrevivncia do

    coronel. Todavia, o autor mantm a tese de que o sistema coronelista chegara ao seu

    fim com o governo Vargas.

    Trazendo essa reflexo para o objeto em anlise nesta pesquisa, o que se observa

    no municpio de Araguari, nesse perodo, uma manuteno dessa estrutura, talvez com

    formas de atuao na relao entre Municpio, Estado e Unio em outras bases, pelas

    imposies que foram ditadas hierarquicamente com o Governo Provisrio (1930-1934)

    e o Estado Novo (1937-1945), no muito distintas da Primeira Repblica. Entretanto,

    isso no significou o seu fim.

    Sobre a manuteno da relao entre o poder regional (estados) e o poder local

    (municpios), no jornal O Tringulo, em abril de 1933, publicou-se uma reportagem

    intitulada Novos rumos nos destinos de Araguary, dando destaque a viagem do cel.

    49 CARVALHO, Jos Murilo de. As metamorfoses do coronel. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 06 mai. 2001. Disponvel em: Acesso em: 05/07/201550 CARVALHO, Jos Murilo de. As metamorfoses do coronel. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 06 mai. 2001. Disponvel em: Acesso em: 05/07/2015

    34

    HTTP:///v/v/v._ppghis.ircs.urrj.br/incdia/canalho/inctainorroscs_coroncl.pdLHTTP:///v/v/v._ppghis.ircs.urrj.br/incdia/canalho/inctainorroscs_coroncl.pdL
  • Marciano Santos capital Belo Horizonte, sendo que ele nesse momento era oposio

    na cidade, no possua nenhum cargo poltico, alm da sua filiao partidria, ainda sim,

    o que mais chama a ateno como o jornal trabalha no campo discursivo para fazer a

    ligao entre o coronel e os polticos estaduais que chegaram, aparentemente juntos com

    ele de Belo Horizonte, como destacou O Tringulo, no subttulo da matria:

    Chegada do cel. Marciano Santos da Capital Mineira. A extraordinria recepo de que foi alvo. Vinda do Sr. Cel. Osorio Dias Maciel e dr. Antonio de Paula Camara para um acordo na poltica de Araguary. A unificao dos partidos locaes. A benfica e patritica actuao do cel. Osorio Dias Maciel, representante do Sr. Presidente Olegario Dias Maciel51, [sic] (grifos nossos)

    No destaque dado ao subttulo nota-se a relao citada anteriormente entre o

    poder regional e o poder local52, denotando que as relaes de reciprocidade e de

    acordos polticos ainda se mantiveram, pois como consequncia dessa passagem dos

    polticos estaduais cidade ser realizado um acordo poltico de extrema relevncia

    para Araguari, assunto que ser analisado posteriormente com um maior detalhamento.

    Para autores mais recentes como Janotti, Monalisa Lima Torres, Cludio Pereira

    Elmir, Fernando da Rocha Rodrigues, Andr Lus Machado Galvo, dentre outros, a

    permanncia do poder dos coronis em momentos posteriores ao fim da Primeira

    Repblica indiscutvel53. Como bem apontou Janotti:

    O coronelismo demonstra, portanto, ter uma estrutura bastante plstica, adaptando-se a sucessivos momentos histricos. Dessa forma o poder local no se enfraquece com a mesma intensidade em todo o pas. Ele se mantm, sob nova roupagem, ou se extingue nas reas de maior concentrao urbana, persistindo, nos mesmos moldes, em regies de economia tradicional. Nesse sentido, a Revoluo de 30 apenas representa um momento em que se d um novo pacto social, no qual as oligarquias no esto ausentes54.

    Para compreender essas diferentes abordagens necessrio um debate terico

    sobre esses autores. Para Queiroz, tem que se ter o cuidado de no se definir um perfil

    51 Novos ramos nos destinos de Araguary. O Tringulo. Araguary, 30 de abril de 1933. Ano IV, n178.s/p52 A matria na ntegra ser analisada posteriormente no Captulo II.53 A utilizao do termo indiscutvel pelo fato desses autores terem suas pesquisas centradas em perodos posteriores a Primeira Repblica, e apresentarem elementos que sustentem essa prerrogativa de continuidade.54 JANOTTI, Maria de Lourdes Monaco. O coronelismo ainda uma questo historiogrfica? Anais do XIXSimpsio Nacional de Histria -ANPUH. Belo Horizonte, junho de 2007, p.514.

    35

  • nico de coronel dentro de uma estrutura que permite a pecha de tal honraria, pois essa

    mesma terminologia pode apresentar caractersticas distintas se considerarmos situaes

    especficas com natureza igualmente distintas.

    Desse modo, o interior de Minas Gerais nos anos de 1930, provavelmente no

    apresentava as mesmas condies que o interior do Nordeste no mesmo perodo, por

    conseguinte, no se pode afirmar que existia um perfil de coronel nos anos de 1930 no

    pas, ou seja, para cada localidade apresentavam-se coronis com semelhanas e

    diferenas exclusivas de cada lugar. Em Albuquerque e Vilaa tem-se uma definio de

    coronel na qual possvel notar a complexidade ao tentar definir o termo:

    Ora, o coronel, muito mais que mdico, bacharel ou padre enxertados no interior pelas faculdades e seminrios, produto de seu meio e de seu tempo. Ele geralmente capaz de se utilizar, com maestria, de todos os recursos da linguagem e de toda a fora dos valores criados e desenvolvidos pela sociedade matuta. Capaz de express-los at proverbialmente, definindo-lhe a sabedoria. Sagaz; no raro excepcionalmente inteligente e com sensibilidade social desenvolvida; mais amplo de horizontes e de experincias e, ao mesmo tempo, intimamente ligado a seu mundo; acima de tudo, poderoso, natural que a conversa, observaes, interpretaes e desabafos do coronel ecoem ao redor, repitam-se de boca em boca, faam escola.55 (grifos nossos)

    Analisando o trecho de Albuquerque e Vilaa para a definio de coronel,

    algumas questes se sobressaem: no primeiro trecho grifado os autores chamam a

    ateno para a historicizao do agente social56 coronel, dando a ele uma

    periodizao especfica na histria brasileira (no livro Coronel, coronis. Apogeu e

    declnio do coronelismo no Nordeste, os autores trabalham com uma perspectiva mais

    relativista sobre o incio e o fim do coronelismo), e ainda mais, quando utilizam o termo

    coronel como resultado do meio, do a noo, j apontada, de que esse agente social

    varivel no espao, sem perfil e comportamento nico. Dessa forma, a definio desses

    autores ultrapassa muito a linha do senso comum do tradicional perfil do coronel.

    55 ALBUQUERQUE, Roberto Cavalcanti de; VILAA, Marcos Vinicios. Coronel, coronis. Apogeu e declnio no Nordeste. 5a ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006, p.57.56 Os "sujeitos" so, de fato, agentes que atuam e que sabem, dotados de um senso prtico (...), de um sistema adquirido de referncias, de princpios de viso e de diviso (o que comumente chamamos de gosto), de estruturas cognitivas duradouras (que so essencialmente produto da incorporao de estruturas objetivas) e de esquemas de ao que orientam a percepo da situao e a resposta adequada. Cf. BOURDIEU, Pierre. Razes prticas: sobre a teoria da ao. Traduo: Matiza Corra. Campinas/SP: Papirus, 1996, p.42.

    36

  • No segundo trecho grifado, nota-se o apontamento para a relao do coronel,

    personagem poltico, com seu povo, e a sua capacidade de realizao das ansiedades e

    necessidades desse povo, inerente estrutura de poder no perodo em que o

    coronelismo era predominante57. Com isso, o termo sensibilidade, utilizado pelos

    autores sai do campo da racionalidade e do que pode ser apreendido pela cincia

    histrica de forma emprica, e entra no campo do imaginrio social e poltico,

    denotando que o estudo do coronel tem que ser entendido de uma forma mais

    complexa do que o senso comum aponta, e que os autores chamam de coronel-

    coronel . Este,

    (...) definitivamente o cabra-macho: macho para com as fmeas, mulheres suas - muitas vezes, mais de uma ao mesmo tempo -, que lhe deixam prole de filhos tanto legtima quanto ilegtima; macho tambm pela brabeza: brabeza de matar, de mandar matar, dar surras; valentia para desafiar cangaceiros ou mesmo a polcia. Dessa fama de cabra-macho muitos deles se vangloriavam (...)58.

    Este perfil um dos tipos encontrados no Brasil afora, e que talvez tenha entrado

    em processo de decadncia aps a Revoluo, mais situado no perodo da Primeira

    Repblica e no interior das diversas regies do pas com a predominncia de uma

    estrutura agrria e pr-capitalista, nas palavras de Oliveira Vianna59. Para alm desse

    perfil tradicional existiram outros coronis com outras facetas como o coronel-

    mdico, o coronel-advogado, o coronel-religioso etc.

    No ltimo trecho grifado, os autores Albuquerque e Vilaa demonstram o poder

    que o coronel detinha de transformar aquilo que lhe interessava num pensamento

    dominante, facilitando assim, a sua dominao. Eim dos meios utilizados pelos coronis

    para consolidar essa dominao, especialmente em Araguari, foi a imprensa escrita.

    57 Sobre essa relao entre o coronel-provedor e o povo que busca a satisfao de suas necessidades nesse coronel em substituio ao poder municipal, Teresa Sales desenvolveu excelente artigo sobre a cultura da ddiva, em que a autora aponta que: O pedir, para alm do obedecer, que faz parte do ceme da cultura poltica da ddiva, implica necessariamente um provedor forte. Ao lado do legado escravista, esse provedor forte, a respeito do qual h um consenso entre os vrios autores que se debruaram sobre nossa herana colonial, foi o domnio territorial. Seja ele expresso como sesmaria, como latifndio escravocrata ou como grande propriedade, o aspecto que aqui quero resgatar o de domnio rural ou domnio territorial, ou seja, o que implica a contrapartida do favor, da ddiva, do mando e subservincia. Cf. SALES, Teresa. Razes da desigualdade social na cultura poltica brasileira. Disponvel em: Acessado em: 05/02/2015 s/p58 ALBUQUERQUE, Roberto Cavalcanti de; VILAA, Marcos Vinicios. Coronel, coronis. Apogeu e declnio no Nordeste. 5a ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006, p.59.59 Expresso utilizada por Vianna para analisar o esprito das nossas populaes regionais na primeira metade do sculo XX. Cf. VIANNA, Oliveira. Histria social da economia capitalista no Brasil. Rio de Janeiro/Belo Horizonte: Itatiaia/UFF, 1987.

    37

    http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_25/rbcs25_02.htm
  • Essa plataforma de pensamento detinha um papel primordial para a construo de uma

    cultura poltica coronelista, que apresentava ento o papel de uma imprensa com carter

    ativo, e no simplesmente como fonte de divulgao de informao.

    Desse modo, os jornais devem ser interpretados com dupla atuao: uma em que

    eles so conduzidos por agentes sociais que esto inseridos em um contexto especfico,

    portanto arraigados de suas subjetividades e afetados por estruturas objetivas; e outra

    em que eles so produtores de discursos com objetivos variados, mas que, no entanto,

    no podem ser controladores desses mesmos discursos durante sua circulao e

    recepo, relacionando-os principalmente com a questo da opinio pblica60. Sobre

    essa falta de controle sobre o discurso Certeau aponta que:

    So frases imprevisveis num lugar ordenado pelas tcnicas organizadoras de sistemas. Embora tenham como material os vocabulrios das lnguas recebidas (o vocabulrio da TV, o do jornal, o do supermercado ou das disposies urbansticas), embora fiquem enquadradas por sintaxes prescritas (modos temporais dos horrios, organizaes paradigmticas dos lugares etc.) essas trilhas continuam heterogneas aos sistemas onde se infiltram e onde esboam as astcias de interesses e de desejos diferentes. Elas circulam, vo e vm, saem da linha e derivam num relevo imposto, ondulaes espumantes de um mar que se insinua entre os rochedos e os ddalos de uma ordem estabelecida.61 (grifos nossos)

    Nesse sentido, a imprensa se constitui como elemento essencial para o

    entendimento do funcionamento do coronelismo, tendo em vista o seu papel de

    construir e desconstruir cenrios e ambientes dentro daquela estrutura de relaes de

    poder. Por isso, neste trabalho, analisamos sua atuao, no no sentido puro e simples

    de manipulao da opinio pblica o que at pode ocorrer dentro de situaes

    especficas. Porm, no nesse aspecto que queremos destacar, mas sim, pensando os

    jornais como parte do jogo de poder travado no municpio. Ou seja, entendendo-os no

    como simples veculos de informao, e sim como empresas que possuem diversas

    finalidades que vo alm da sua atividade fim, como chamou ateno Jean-Noel

    Jeanneney.

    60 Sobre o estudo especfico do tema opinio pblica sugerimos o artigo de Jean-Jacques Becker. Cf. BECKER, Jean-Jacques. A opinio pblica. In: REMOND, Rne (org). Por uma histria poltica. 2a ed. Traduo Dora Rocha. Rio de Janeiro: FGV, 2003, p. 185-211.61 CERTEAU, Michel de. A inveno do cotidiano. Artes de fazer. Traduo: Ephraim Ferreira Alves. 3a ed. Petrpolis: Editora Vozes, 1998, p.97.

    38

  • [...] o estudo das relaes de poder, conflitantes ou convergentes, entre os meios de comunicao e o Estado, entre os meios de comunicao e a nao como um todo, no deve se furtar a considerar as instituies de comunicao em si mesmas. A histria poltica sabe hoje melhor que outrora o partido que pode tirar do estudo de pequenas comunidades no polticas: como renunciar ao estudo do poder no interior dessas empresas?62 (grifos do autor)

    Uma das observaes mais claras sobre o poder de criao de consenso por parte

    dos jornais, era a capacidade do coronel de se tornar naturalmente a figura central do

    poder municipal, o que Bourdieu apontaria como construo social. Ningum estava

    acima do coronel63 na cidade, no mximo, os rivais se equiparavam em capacidade de

    liderana. Em Victor Nunes Leal temos uma definio mais ampla do coronel como

    pea importante da estrutura coronelista.

    Qualquer que seja, entretanto, o chefe municipal, o elemento primrio desse tipo de liderana o coronel, que comanda discricionariamente um lote considervel de votos de cabresto. A fora eleitoral empresta-lhe prestgio poltico, natural coroamento de sua privilegiada situao econmica e social de dono de terras. Dentro da esfera prpria de influncia, o coronel como que resume em sua pessoa, sem substitu-las, importantes instituies sociais. Exerce, por exemplo, uma ampla jurisdio sobre seus dependentes, compondo rixas e desavenas e proferindo, s vezes, verdadeiros arbitramentos, que os interessados respeitam. Tambm se enfeixam em suas mos, com ou sem carter oficial, extensas funes policiais, de que frequentemente se desincumbe com a sua ascendncia social, mas que eventualmente pode tomar efetivas com o auxlio de empregados, agregados ou capangas64, (grifo em itlico do autor, em negrito nosso)

    Na citao acima Leal ratifica a origem do poder poltico do coronel que se

    assenta em uma base econmica latifundiria, - ideia que consenso maioria dos

    pesquisadores do coronelismo - e apresenta uma anlise que mais complexa do que a

    anterior, mas to importante quanto a primeira, que diz respeito personalizao de

    algumas instituies na figura do coronel. Esse talvez seja um dos maiores entraves para

    se entender o coronelismo no Brasil, pois, muitas vezes, se faz uma simplificao do

    62 JEANNENEY, Jean-Noel. A mdia. In: RMOND, Rne (org). Por uma histria poltica. 2a ed. Traduo Dora Rocha. Rio de Janeiro: FGV, 2003, p.224.63 Para esclarecimento, em Araguari no se apresentava um nico coronel, havia esta denominao para vrios agentes na cidade, mas escolhemos aqueles que tiveram uma participao mais destacada na poltica local e regional, e suas participaes sero mais aprofundadas nos Captulos II e III.64 LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o municpio e o regime representativo no Brasil. 3a ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p.42.

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  • papel do coronel e da sua manuteno no poder naquele perodo, e leva a concluir que o

    fim desse sistema se deu com o desenvolvimento das instituies citadas por Leal. De

    fato, o processo de amadurecimento dessas instituies contribuiu para a decadncia da

    estrutura coronelstica, entretanto, no foi o nico fator. Em Queiroz essa complexidade

    ressaltada da seguinte forma:

    No foi, pois, um nico fator que desencadeou o processo de decadncia da estrutura coronelstica e sim uma conjugao de vrios fatores, que agiram com maior ou menor intensidade nas diversas regies do pas. Crescimento demogrfico, urbanizao, industrializao constituem processos que se desenvolvem de maneira acelerada ou no, conforme o momento histrico ou conforme a regio em que tm lugar65.

    O processo de decadncia desse sistema ser melhor analisado posteriormente

    no Captulo III. Por ora necessrio explicitar algumas definies do coronelismo de

    carter historiogrfico e sociolgico, entendido de antemo como um sistema ou uma

    estrutura permeada por diversas peas, com funes distintas, para que esta funcione

    adequadamente como numa engrenagem. Esta engrenagem, contudo, no est

    sendo colocada com um funcionamento harmonioso, uma vez que, como exposto

    anteriormente, o campo do poltico (com o coronelismo em especial) se fundamenta

    numa disputa interna de muita tenso, tanto entre quem disputa seu controle, quanto

    entre quem supostamente est fora desse jogo.

    Dessa forma, quando se explicita o coronel com seus inmeros perfis, como

    foi apresentado previamente, o intuito no de definir o conceito de coronel como

    sinnimo de coronelismo, pelo contrrio, o coronel uma das peas para o

    entendimento de uma engrenagem maior que o sistema coronelstico.

    Tem-se tambm como parte integrante desse sistema a imprensa, os partidos, a

    opinio pblica, a estrutura de poder, a estrutura econmica, a cultura poltica etc.,

    portanto, o entendimento da relao entre esses diversos campos possibilitar a

    compreenso maior da complexidade que o estudo do coronelismo. Entendendo,

    sobretudo, que esse sistema, para ser melhor analisado, tem que ser pensado alm de

    uma simples forma de dominao poltica e econmica em que o pas viveu em

    determinado momento. Dessa maneira poder haver uma evoluo conceituai sobre o

    65 QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O coronelismo numa interpretao sociolgica. In: FAUSTO, Boris. Histria Geral da Civilizao Brasileira. Tomo I