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APOSTILA DE INTRODUÇÃO AO ESTUDO DE DIREITO PARA TURMAS DE DEPENDÊNCIA – 2003 Profa. Tânia Mara F. Mendes Afonso INTRODUCÃO AO DIREITO Sumários de aula 1 Esta disciplina, de caráter enciclopédico, visa introduzir o aluno no universo do conhecimento jurídico; em razão disso, situa-se principalmente entre os campos da Filosofia e da Teoria do Direito. Em sua temática, busca basicamente refletir questões em torno do «quê» seja o direito e dos seus respectivos conceitos. Ao término desta disciplina, deverá o aluno ser capaz de: a) situar o Direito no universo do conhecimento e estabelecer uma relação entre ele e as ciências afins, refletindo criticamente esses conhecimentos; b) ter percebido a grandeza e a importância dos estudos jurídicos, e consciente de sua beleza, encará-los com diretrizes e com gosto; c) ter noções da evolução da temática do direito e conhecer sua estrutura organizacional básica; d) numa perspectiva crítica, conhecer do caráter polêmico que é a definição da origem, dos conceitos, objetivos e métodos do direito, situando-se na realidade atual e suas exigências ético-jurídicas. Capítulo I: A QUESTÃO DO DIREITO 1. O DIREITO E A CIÊNCIA 1.1) Vencida a fase mítica (aqui falamos de vencer num sentido institucional, já que na realidade os mitos continuam a fazer parte de nossas vidas), o homem necessitou de encontrar uma explicação coerente para as coisas. Essa busca de fundamentos lógicos possibilitou também o avanço técnico, forçando o homem a lançar mão da ciência para modificar a natureza e torná-la mais útil, mais justa, mais bela etc. Aqui se põe a grande diferença entre natureza e cultura. 1.2) Invocar o verbo conhecer pressupõe alguém que conhece (o sujeito do conhecimento); assim também, conhecer é conhecer algo (o objeto do conhecimento). Qualquer conhecimento está vinculado a esses dois elementos. De outra forma, fala-se ainda em tipos de conhecimento ou graus de conhecimento. Ao falarmos de conhecimento vulgar (por alguns também dito conhecimento empírico), consideramos aquele conhecimento mais comum em nosso dia-a-dia, espelhado na simples observação dos fatos isoladamente considerados e por isso mesmo carecedores de comprovação; ao falarmos de conhecimento científico estamos ultrapassando os limites dos casos isolados para 1 Estes sumários têm o fito exclusivo de dirigir as aulas de Introdução ao Estudo de Direito da Faculdade RADIAL, ministradas pelo Profa. Tânia Mara Fonseca Mendes Afonso para turmas de Dependência em 2003, bem como orientar os alunos quanto à escolha da bibliografia adequada ao desenvolvimento desta temática, conforme Programa de Curso previamente distribuído; estão, portanto, sujeitos a emendas que serão feitas no curso das aulas. Sugestões e dúvidas poderão ser feitas diretamente a autora pelo correio eletrônico [email protected]

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APOSTILA DE INTRODUÇÃO AO ESTUDO DE DIREITO PARA TURMAS DE DEPENDÊNCIA – 2003

Profa. Tânia Mara F. Mendes Afonso

INTRODUCÃO AO DIREITO Sumários de aula 1

Esta disciplina, de caráter enciclopédico, visa introduzir o aluno no universo do conhecimento jurídico; em razão disso, situa-se principalmente entre os campos da Filosofia e da Teoria do Direito. Em sua temática, busca basicamente refletir questões em torno do «quê» seja o direito e dos seus respectivos conceitos. Ao término desta disciplina, deverá o aluno ser capaz de: a) situar o Direito no universo do conhecimento e estabelecer uma relação entre ele e as ciências afins, refletindo criticamente esses conhecimentos; b) ter percebido a grandeza e a importância dos estudos jurídicos, e consciente de sua beleza, encará-los com diretrizes e com gosto; c) ter noções da evolução da temática do direito e conhecer sua estrutura organizacional básica; d) numa perspectiva crítica, conhecer do caráter polêmico que é a definição da origem, dos conceitos, objetivos e métodos do direito, situando-se na realidade atual e suas exigências ético-jurídicas.

Capítulo I: A QUESTÃO DO DIREITO 1. O DIREITO E A CIÊNCIA 1.1) Vencida a fase mítica (aqui falamos de vencer num sentido institucional, já que na realidade os mitos continuam a fazer parte de nossas vidas), o homem necessitou de encontrar uma explicação coerente para as coisas. Essa busca de fundamentos lógicos possibilitou também o avanço técnico, forçando o homem a lançar mão da ciência para modificar a natureza e torná-la mais útil, mais justa, mais bela etc. Aqui se põe a grande diferença entre natureza e cultura. 1.2) Invocar o verbo conhecer pressupõe alguém que conhece (o sujeito do conhecimento); assim também, conhecer é conhecer algo (o objeto do conhecimento). Qualquer conhecimento está vinculado a esses dois elementos. De outra forma, fala-se ainda em tipos de conhecimento ou graus de conhecimento. Ao falarmos de conhecimento vulgar (por alguns também dito conhecimento empírico), consideramos aquele conhecimento mais comum em nosso dia-a-dia, espelhado na simples observação dos fatos isoladamente considerados e por isso mesmo carecedores de comprovação; ao falarmos de conhecimento científico estamos ultrapassando os limites dos casos isolados para

1 Estes sumários têm o fito exclusivo de dirigir as aulas de Introdução ao Estudo de Direito da Faculdade RADIAL, ministradas pelo Profa. Tânia Mara Fonseca Mendes Afonso para turmas de Dependência em 2003, bem como orientar os alunos quanto à escolha da bibliografia adequada ao desenvolvimento desta temática, conforme Programa de Curso previamente distribuído; estão, portanto, sujeitos a emendas que serão feitas no curso das aulas. Sugestões e dúvidas poderão ser feitas diretamente a autora pelo correio eletrônico [email protected]

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deles extrairmos uma uniformidade, e para isso utiliza-se métodos específicos de comprovação. 1.3) Para fins didáticos, costuma-se classificar as ciências de diversas formas. Aristóteles, parece ter sido o primeiro a nos oferecer uma classificação consistente: para ele há três grupos de ciências: teoréticas (destinadas à contemplação), práticas (para orientar as ações, onde se incluiria o Direito) e poiéticas (voltadas para a construção de coisas). Comte também classificou as ciências hierarquicamente onde a sociologia ocupa o lugar de destaque, estando ali incluído o Direito. Igualmente Kelsen se preocupou com a questão, dividindo-as em explicativas (ciências do ser) e normativas (ciências do dever ser, onde incluiu o Direito). Cossio tratou-as como ciências formais (relativas aos objetos ideais e cujo conhecimento se dava por ação do intelecto), naturais (quanto aos objetos naturais e que poderiam ser explicados) e culturais (pertencentes aos objetos da cultura e acessíveis pela compreensão). Na última classificação se incluiria o Direito. Franco Montoro, seguindo Aristóteles, oferece duas classificações: ciências teoréticas, especulativas ou práticas e ciências práticas, normativas ou aplicadas. Para esse jurista filósofo, o Direito estaria dentre as últimas. 1.4) Sabe-se também que o direito nem sempre foi pensado como uma ciência no sentido moderno da palavra, e até hoje há quem lhe negue esse estatuto. Assim é que entre os povos antigos era visto como uma manifestação da vontade dos deuses (neste caso por exemplo ver a fantástica narrativa de Sófocles [496-405 a . C] no episódio de Antígona quando esta, ignorando o édito de Creonte, exigiu sepultura para seu irmão), como uma exigência da natureza (Heráclito - 535 a 470 a . C) ou como uma virtude de se viver bem na polis (Platão e Aristóteles, 497-347 a. C e 384-322 a . C, respectivmaente), e aqui se confundia com outras regras de conduta (morais e espirituais). 1.5) Mas já na idade clássica se preocupou com o estudo do direito (sobretudo com os juristas romanos nos séculos I a III d. C como Paulo, Gaio, Ulpiano e Papiniano) . Não obstante, parece mesmo ter sido a recuperação dos textos romanos pelo Imperador Justiniano o grande impulsionador desses estudos, pelo que surgiu a afamada escola dos glosadores e depois a escola dos comentadores no século XIII, estudos esses que passaram a se dar em torno da interpretação dos do Corpus Iuris Civilis e do Corpus Iuris Canonicis e que foram uma marca do ensino escolástico. Após período de crise desses estudos (crise essa que trouxe inovações, é claro), veio o movimento cientificista do século XIX que buscou elevar o Direito à condição de verdadeira ciência. Principalmente em Kelsen (início do século XX) se reivindica o direito de ser uma ciência pura, ou seja, sem as exigências ético-valorativas da Filosofia, bem como sem as recriminações da Sociologia ou da Política, privilegiando a formalidade à matéria.

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1.6) Admitida então a qualidade de ciência para o direito, aponta-se o fenômeno jurídico como o seu objeto específico de estudo 2, vale dizer, como em um determinado tempo e lugar o direito se manifesta. Importa assim distinguir seu campo de atuação com o da Sociologia (os fatos sociais de uma maneira geral), da Filosofia (a busca de fundamento para as coisas, para o agir, para conhecer etc), da Economia (as condições materiais reclamadas pela existência do homem), da Política (da tecnologia do poder), da História (os fatos historicamente situados) etc. Não se nega, no entanto, os pontos em comum entre essas disciplinas e que são tratados nas respectivas disciplinas (Filosofia do Direito, Sociologia do Direito, Psicologia Forense, Medicina Legal, História do Direito etc). De uma maneira geral, tem sido estudado como ciência puramente teórica (busca do saber) ou prática (busca de um fim, como por exemplo o agir com justiça, com eficiência, com arte etc) e ainda como ciência natural (com o rigor matemático dessas ciências) ou como ciência cultural (por lidar com os fenômenos do espírito e que se manifestam diferentemente dos naturais ou físicos). Hodiernamente tem-se estudado o direito como um conjunto de normas que visam regular as relações entre as pessoas, em um determinado tempo e espaço, embora haja divergência quanto ao «porquê», aos objetivos e aos meios de se efetuar essa regulação. Encarado numa perspectiva positivista, o direito será estudado em sua classificação em Direito Público (Constitucional, Administrativo, Tributário, Penal, Processual, Internacional Público etc) e Privado (Civil, Comercial, Trabalhista, Agrário, Minerário, Consumerista, Internacional Privado etc). Cada um destes ramos se preocupa com uma matéria específica na regulação da conduta e das relações entre os indivíduos, ou entre estes e o Estado. Não se pode olvidar, no entanto, que a idéia de uma racionalidade para o direito vem sendo colocada em discussão pelas correntes críticas. Aqui, além de se negar a cientificidade e a imparcialidade para o direito, prefere-se que ele seja, acima de tudo, eficiente, não importando, inclusive, se tenha ou não um campo de atuação diferenciado das outras ciências. 2. A BUSCA DA ORIGEM E DO SENTIDO DO DIREITO Importa não ignorarmos, desde já, os esforços da Filosofia Jurídica no sentido de encontrar um sentido para o direito, pensando a sua origem, conceito, fundamentos e método do direito. Em nossa disciplina, acreditamos ser apenas possível apenas noticiar as principais divergências doutrinárias acerca dessas questões.

2 1 REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 16ª ed. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 16.

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2.1) O primeiro ponto que se coloca é o de se ter claro que em um período da humanidade em que tudo era explicado pelos mitos (é bom ter em conta que muitos mitos permanecem encarnados na vida do povo e que outros foram criados ou reinventados!). Assim é que segundo o poeta Homero, Témis, uma das esposas de Zeus e deusa da justiça, é a personificação da ordem estabelecida; sendo respeitada por todos do Olimpo, assiste todas as deliberações dos deuses e dos homens, preservando sempre a equidade das decisões. Assim também é que Hermes, filho de Zeus e embaixador do Olimpo, tinha a autoridade de revelar aos humanos a vontade dos deuses. 2.2) Já no período germinativo da Filosofia, começaram as primeiras especulações acerca da origem e do fundamento do direito. Nesse período abre-se uma fase importante do jusnaturalismo 3. 2.2.2. Enquanto os sofistas 4 defendiam a tese de uma moral temporal, Sócrates (439-499 a . C) defendeu a existência de normas de conduta de valor absoluto, e que se conhecidas, evitariam a prática de qualquer ação injusta (intelectualismo socrático). 2.2.3. Nesta perspectiva Platão, principalmente em três dos seus diálogos (A República, O Político e Leis), insiste na defesa de uma verdade política válida para todos os povos e em todos os tempos, capazes assim de construir uma cidade feliz. Em A República explica que essa lei eterna e imutável é fruto da vontade de Deus e reside no mundo das idéias, e representando um ideal a ser alcançado, é a matriz das nossas falsas idéias de justiça. 2.2.4. Já Aristóteles defendeu a origem de uma lei resultante da vontade dos deuses, independente das convenções humanas e eternamente válidas (um justo por natureza), não negando, porém, a existência de uma outra em sentido contrário e inferir àquela, tudo no sentido de viabilizar a vida na polis. 2.2.5. Diferente não foi com Cícero (106-43 a . C) a quem devemos grande parte da transposição da filosofia grega para nossa cultura, o qual fundamentou o direito em verdades supra legais e por isso indeléveis pelo senado de sua Roma; também não foi diferente com o apóstolo Paulo, que em Rom 13, 1-6 defendeu o direito como a vontade de Deus, gravada no coração dos homens e com vistas à justiça; assim também foi com os juristas romanos da época clássica, cujos pareceres fundamentavam em princípios de direito, dentre eles de direito natural (ius naturale) e com Santo Agostinho, que retomando a idéia platônica, coloca-a na mente divina ou lex aeterna, esta que manda «respeitar a ordem natural e proíbe perturbá-la». Cabe frisar aqui a importância que tem o pensamento cristão em nosso edifício jurídico: Antes não se distinguia muito os interesses da pessoa com os do Estado, 3 Doutrina jurídica que prega a existência de um direito supra legal e eterno. 4 Professores que na época atuavam nas cidades gregas ensinando, dentre outras coisas, a arte retórica para que seus alunos saíssem bem nas discussões da polis.

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e já por isso o direito era pensado quase sempre como uma força misteriosa que buscava a harmonia desse Estado, e para isso os interesses individuais estavam em segundo plano. A idéia de homem como imagem e semelhança de Deus o elevou a outro patamar de dignidade ainda não conhecido, abrindo caminhos para o Humanismo e futuramente para o Iluminismo jurídicos. 2.3) Assistida a queda da civilização romana, a ascensão da barbárie, a desagregação do Estado e a posterior derrocada do Feudalismo, começa novo período de florescimento da cultura e da política. Esse é um período em que tem muita importância o pensamento de Santo Tomás de Aquino (1225 a 1274), um compilador do pensamento anterior e anunciador de uma nova era. No Direito, coube ao doutor angélico cristianizar Aristóteles, fundindo sua doutrina com a da igreja. Em síntese, sua doutrina jurídica está centrada na idéia de bem comum a ser buscada pela lei, que antes de ser humana, é originária de Deus e revelada ao homem pela inteligência. O direito aqui é um pedagogo que orienta o homem no cumprimento seu papel na terra e o prepara para retornar ao criador. 2.4) Sendo Santo Tomás o principal expoente do jusnaturalismo no período medieval, sua morte foi sucedida por uma mudança de postura dessa corrente. Com Grócio (1583-1645), tenta-se outra forma de justificar o direito, haja vista a explosão das guerras religiosas que testemunhara: o direito natural consiste naquilo em que a reta razão demonstra ser conforme à natureza social do homem, e “o direito natural existiria mesmo que Deus não existisse”. Mais radical ainda é a mudança implementada por Hobbes (1588 – 1679): O direito que antes dele era explicado por uma força misteriosa, agora passa a ter conteúdo estritamente racional. Para o autor do Leviatã os homens, maus por natureza e em luta constante uns com os outros, fizeram um pacto e renunciaram ao poder individual em favor do Estado a fim de que esse mantivesse a paz. Essa doutrina absolutista foi amenizada por autores como Locke (1632 – 1704) que afirmou não ter o homem renunciado a todos os direitos e por Rousseau (1712 – 1778), este que afirmando ser o homem bom em seu estado de natureza, viria a considerar como digna de respeito apenas as leis que possibilitassem ao homem essa felicidade. Essa fundamentação racional para o direito ganharia dimensão nunca vista com Kant (1724 – 1804), para quem os princípios de direito natural fundavam-se na autonomia da razão; face a isso, a liberdade era o único direito natural existente e então capaz de permitir ao homem agir moralmente (por puro dever). Isso levaria a uma conceituação de direito como “o conjunto das condições nas quais o arbítrio de cada um pudesse conciliar-se com o arbítrio dos outros segundo uma lei universal de liberdade”. 2.5) Esses autores do jusnaturalismo racionalista influenciaram a positivação do direito, a qual começou a ser implementada após a Revolução Francesa sob a promessa de uma maior segurança jurídica. As sucessivas críticas dirigidas contra o Código de Napoleão e outras experiências codificadoras levaram ao ressurgimento do Direito Natural, embora sob novas orientações. Uma dessas é a idéia de “Direito Natural de conteúdo variável” de Stammler (1856 – 1938), vale

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dizer, a doutrina de um ideal de justiça que eternamente acompanha homem, mas que pode ser implementada com conteúdo diverso nos diversos períodos da história. De outra forma, a retomada da perspectiva jusnaturalista é retratada na filosofia material dos valores de Scheler (1874 – 1928), no direito natural absoluto de Del Vechio e em diversos documentos da Igreja Católica. 2.6) Posta assim a perspectiva jusnaturalista do direito, importa observar que não há com sua principal opositora (a positivista) nenhuma delimitação histórica, embora esta seja uma realidade palpável no período pós-iluminista. 2.6.1. Já vimos como os sofistas apontavam a relativização da moral. Também a mostramos a observação de Aristóteles quanto à existência de uma lei positiva, e em outro momento a codificação jusitiniana. No seu Tratado da Lei Santo Tomás também desenvolve a sua teoria acerca da que chamou lei humana em oposição à lei divina e à lei natural. Este autor é considerado um daqueles que começaram a pensar a autonomia da lei positiva. 2.6.2. Os motivos políticos que levaram ao triunfo já do Parlamentarismo Inglês, bem como das revoluções Francesa (a luta contra o absolutismo monárquico) e Americana (contra os abusos da Corôa Inglesa): a limitação dos poderes do Estado contra o homem. É nesse espírito que começam a ser realizadas as codificações. 2.6.3. Com efeito, o homem agora pensado sob o prisma da racionalidade poderia com sua própria inteligência escolher e divulgar as leis adequadas a uma sociedade melhor: a sociedade liberal. Nesse compasso, importantes é a ação de autores como Montesquieu (O Espírito das Leis) e Beccaria (Dos Delitos e das Penas), onde não somente se denota os princípios norteadores dos novos direitos universais proclamados, mas a própria preocupação com o respeito de tais direitos reclamava que os mesmos estivessem escritos.

2.6.4. A primeira obra-prima de cunho universal com essa ideologia é o Código de Napoleão (1804), o qual plantou a idéia de um código que servisse de segurança para todos. A justiça estava na lei, e Bounet dá a nota do tempo: "Eu não conheço o direito civil; ensino o Código de Napoleão". Não obstante, ali mesmo surgiram as primeiras desconfianças acerca desse "absolutismo da lei" com as sucessivas escolas da livre investigação do direito, do direito livre etc. 2.6.5. Se aquela foi a opção da França, a Alemanha a retardaria por quase um século graças à oposição sitemática da Escola Histórica, sobretudo com Savigni (1779-1861) e Puchta (1798-1846). Para Savigni, a idéia defendida por Thibaut (1814) de um código para o povo germânico era prejudicial ao direito, já que qualquer codificação impediria sua livre evolução, eis que estava presente nos costumes, formando a "consciência jurídica do povo", o "espírito nacional", não podendo, portanto, restringir ao capricho do legislador. Não se esquece, porém, a ação de Jhering (1818-1892) na codificação alemã, que embora superando o positivismo tradicional quando se interessa pelo conteúdo do direito, também o vê como uma criação do Estado. 2.6.6. Numa perspectiva um pouco diferente está Marx (1818-1883), cuja doutrina, não se ignora, funda-se na concepção materialista da história (doutrina que vê a questão econômica como a determinante das demais, vale dizer, não são

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as idéias que definem a vida social, mas esta que define as idéias. Para esta escola, o Direito, a Religião, a educação etc, constituem a super-estrutura do sociedade, que se define de acordo com os interesses econômicos tramados). Embora o direito para essa escola acaba por ser mesmo o direito positivo e sendo os fatores econômicos os seus determinantes, estaria ele fadado ao desaparecimento quando da plena realização econômica, já que o Estado desapareceria no reino do comunismo. 2.6.7. Parece ser pela empresa de Hans Kelsen (nascido no final do século XIX e vivenciado as experiências jurídicas desastrosas do século XX) que o positivismo jurídico alcança seu apogeu (fala-se aqui em normativismo jurídico no que lhe deu o autor uma marca especial). Já Austin (1790 - 1859) defendera e teve muito eco em seu pós-morte a idéia de um direito positivo desvinculado de critérios morais e constituído de simples mandato imperativo. A teoria pura do direito de Kelsen significou o retorno ao formalismo de Austin, resumindo o direito ao simples conhecimento das normas. Seu direito é uma pirâmide de normas cuja unidade se deve ao fato de todas elas, numa escala hierárquica, se subordinarem uma norma superior (a Constituição!) e auto-subsistente. Já as normas, têm caráter hipotético, i.é, vincula a determinados atos determinadas consequências impostas pelo Estado. Desta forma, não há que se falar em "direito justo", mas em "direito válido" de acordo com os critérios valorativos que ele mesmo (o Direito) estabelece, valores esses, frisa-se, que não têm necessariamente que serem os do justo. 2.7) Importa agora meditarmos acerca das correntes que se põem hoje no sentido de superar (ou de recuperar) os dois grandes horizontes iniciais, ou seja, a visões naturalista e positivista do direito, uma vez que como vimos no ponto "2.5", última parte, os exageros positivistas levaram a uma situação de insustentabilidade da doutrina e a um consequente retorno ao direito natural. Atualmente, três vozes principais se escutam: há aqueles que se mantém fiéis ao culto da lei, nem que para isso se ofereça em holocausto a própria justiça; os que pregam o retorno ao direito natural; e aqueles que buscam uma alternativa ao dualismo positivismo/jusnaturalismo, sem contar que dentre eles há os que consideram não fazer mais sentido perguntar sobre "o que" seja o direito, mas apenas "para que" serve o direito ou "como" se apreende esse direito. 2.7.1. Em poucas palavras se diz que a visão normativista do direito demanda hoje alto grau de "insulina" para se sustentar, já que as próprias circunstâncias históricas lhes são muito desfavoráveis, malgrado seja igualmente difícil encontrar uma alternativa para ela. A visão reducionista do direito ao direito Estatal teve e terá consequências nefastas, já que qualquer direito que cumpra as formalidades exigidas seria legítimo (o nazismo, o fascismo, o stalinismo, o getulismo etc), além do que, desconfia-se, da possibilidade de o direito ser assim, imparcial. Por outro lado, a dinâmica das relações sociais e jurídicas não é acompanhada pelo legislador. 2.7.2. Em meio a estes desafios erguem-se propostas no sentido de superar a retórica normativa sem no entanto retornar às especulações metafísicas

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do jusnaturalismo. Uma importante corrente neste sentido é a do jurisprudencialismo 5. Para esta escola, a norma tem sim o seu valor, não sendo, porém, imutáveis como querem os jusnaturalistas nem racional-legalista como querem os normativistas, estando, pois, sujeitas à revisão pelo homem histórico. De outro modo, tem projeção internacional a escola culturalista de Miguel Reale, cujas bases fundam-se na idéia de tridimensionalidade para o direito (teoria tridimensional do direito), com herança na teoria vitalista do direito de Recaséns Siches e teoria egológica do direito de Carlos Cossio. Para essa corrente, o direito é um dado da cultura, construído pelo homem na história e carregado de sentidos. Outro não menos importante agrupamento é o daqueles que se convencionou chamar escola crítica do direito, para quem o direito não dispõe do caráter científico apregoado pelo movimento liberal-iluminista, sendo mesmo um arsenal ideológico de que se servem aqueles que estão no poder para fazer valer seus interesses. Cabe ressaltar que aqui não se está tão preocupado com o conceito ou com a origem do direito, mas sim com a sua finalidade.

2.7.3. Entrincheirados assim pelos desafios que se nos impõe a atualidade, cremos ser angustiante a batalha do jurista no sentido de realizar o direito. Será difícil tomar partido sem uma reflexão amadurecida da historicidade do jurídico e sem uma primeira opção por um sentido para o direito, vale dizer, se o queremos apenas para "estabilizar" as relações sociais, para renovar no tempo as tramas do poder ou se para colaborar na realização da dignidade de todos os humanos.

Capítulo II: A MANIFESTAÇÃO DO DIREITO 1. A ORDEM JURÍDICA 1.1) A ação humana é, via de regra, orientada por normas. Quando temos um objetivo a alcançar, seguimos certas prescrições para sermos bem sucedidos; é o que ocorre, por exemplo, com as normas técnicas, como por exemplo as normas da ABNT e que regem a elaboração de trabalhos científicos. 1.2) A convivência social também pressupõe uma certa ordem, que entre os humanos pode ter muitas dimensões, como dimensão moral (do grego ethos = costume, origina da consciência que regulamenta a conduta humana), social (costumes sociais e etiquetas), religiosa (convição espiritual) ou jurídica. Nem todos aceitam que haja uma base objetiva para a conduta humana, como se pode ver dos céticos, dos relativistas, positivistas, utilitaristas, marxistas etc. As frustrações políticas da atualidade, no entanto, reclamam a busca de uma ética

5 Jurisprudencialismo aqui nada tem com a jurisprudência no sentido em que o termo é tratado pela teoria do direito; é antes, sim, uma corrente doutrinária com o entendimento que lhe é próprio.

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mínima capaz de assegurar a própria existência do planeta, sendo reclamado inclusive, por alguns autores, o retorno à literatura clássica 6

1.1.1. As normas religiosas dizem respeito, principalmente, à relação do homem para com Deus (ou outra designação que se possa dar a uma entidade espiritualmente superior ao homem), como por exemplo o dever de amar a Deus sobre todas as coisas; mas também pode se referir ao compromisso do homem para com o seu semelhante (o dever de amar o próximo como a nós mesmos). Além do mais, também diz respeito às relações entre os membros de uma comunidade religiosa ou entre esses membros e a igreja.

1.1.2. Quanto às normas sociais, prescrevem condutas consideradas recomendadas para a boa convivência das pessoas, por alguns também chamadas de regras de etiqueta.

1.1.3. As normas morais, por outro lado, referem-se à conduta do agente, não possuindo, no entanto o atributo da coercibilidade estatal, no que difere das normas jurídicas. Entre os gregos, berço da filosofia, não havia ainda uma distinção entre normas jurídicas e normas morais. Os romanos, considerados os criadores do direito, já intuíram essa diferença, como se pode ver da máxima do jurisconsulto Paulo non omne quod licet honestum est. Até mesmo para os medievais, o direito ainda estava subordinado à moral. A partir de Thomasius (1705), tem-se tentado distinguir com clareza os campos da moral e do direito. Para o filósofo alemão, o Direito visa uma ação externa (forum externum), relação do homem para com o seu semelhante, enquanto a moral visa a conduta do homem para consigo, com sua consciência (forum internum). Desta forma, enquanto uma conduta humana só atinge a intimidade, não pode ser cerceada pelo Estado. Além do mais o Direito, diferentemente da moral, seria perfeito porque coercível. Igualmente Kant, sem superar as principais objeções a essa teoria, acrescentou a ela alguns elementos. Para aquele filósofo, conduta moral é aquela onde o indivíduo age pelo simples dever, por amor ao bem, enquanto o Direito não se preocupa com os motivos da ação, mas apenas com seus aspectos exterirores. Ademais, as normas de Direito são heterônomas (valem independentemente da vontade do indivíduo), enquanto as normas morais são autônomas. Para Fichte, ao Direito é permitido coisas que para moral seriam absurdas, como por exemplo o credor deixar o devedor em estado de miséria para receber seu crédito. Bentham e Jellineck formularam a teoria que se chamou de o mínimo ético, vale dizer, o Direito é apenas uma parte da moral necessária à manutenção da sociedade. Diferentemente, Du Pasquier formulou a teoria dos círculos secantes,

6 Vê-se por exemplo Umberto Eco: “o moderno é ler Platão”.

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onde o Direito e a moral têm campo de atuação comum e diferentes, simultaneamente. Para Reale, a diferença básica entre as regras jurídicas e as morais está no fato de que estas são dotadas de bilateralidade atributiva, i. é, a cada direito de um sujeito há o dever do outro em cumpri-lo. 1.2) A ordem jurídica requer e exige regras específicas de conduta e sujeita os atores a uma sanção 7 (imposta pelo Estado), embora nem sempre coativamente, podendo tais regras serem escritas ou consuetudinárias. Além disso, reconhece-se, por vezes, o caráter jurídico de normas não emanadas desse Estado, no que se tem a problemática do chamado pluralismo jurídico 8.

1.2.1. Na nomenclatura clássica, fala-se em ordenamento jurídico tendo em conta uma série de normas legais ou consuetudinárias que possibilitem a convivência das pessoas. É divergente, no entanto, a intenção dessa ordem: honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere (Ulpiano); impor limites aos vícios do homem e educá-lo para o bem-comum (Santo Tomás de Aquino); estabelecer a paz social (as doutrinas contratualistas); diante dos “conflitos” sociais, encontrar a solução mais útil para a maior quantidade de pessoas (Bentham); construir uma sociedade harmônica ao modo cósmico, como é comum nos autores clássicos quando não havia uma separação entre as regras jurídicas, morais e espirituais. 1.2.2. Tem-se tentado identificar o ordenamento jurídico pelo critério da formalidade (existência de um elemento estrutural de conteúdo positivo ou negativo, categórico ou hipotético, abstrato ou concreto), da matéria (o conteúdo da norma), pelo seu sujeito (a quem cabe impor a norma, neste caso o soberano, ou a quem ela se destina, e neste caso ao juiz). Mas ao que parece, o que distingue mesmo o ordenamento jurídico dos demais é a sua tentativa de realização do direito, a coação potencial e a bilateralidade atributiva.

1.2.3. Falar em a ordem jurídica pressupõe a existência de uma pluralidade de normas, reconhecidas a hierarquia, a antinomia e as lacunas.

1.2.4. À norma jurídica se impõem limites de atuação, com consequência direta em seus efeitos: quanto ao tempo, de uma maneira geral regula os fatos posteriores, salvo casos específicos e que trazem a lume o problema do conflito das normas no tempo, além de que os fatos estão sujeitos a constantes mudanças, podendo tornar obsoletas as regras impostas 9; quanto ao espaço,

7 Uma pena ou um prêmio que se obtém em razão do cumprimento de uma determinação ao jurídica. Não se confunde, assim, com aquela sanção prevista na tecnologia legislativa onde, depois de aprovada pelo Legislativo, a lei vai ao Chefe do Executivo para ser sancionada e depois publicada para que tenha vigência. 8 Conforme mais adiante se verá, trata-se do reconhecimento da existência de normas, dentro de uma ordem jurídica estatal, com igual validade jurídica, contrariando, assim ao monismo estatal apregoado por algumas correntes jurídicas. 9 Para tudo isso conferir o art 1º, §1 e art. 2º, §2 da Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro.

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restringe a validade de tais disposições em um território específico, não negada a idêntica possibilidade de conflitos; quanto à matéria, restringe a aplicação apenas aos fatos de natureza pré-determinada.

1.2.5. Quanto às pessoas abrangidas pela norma, diz-se que têm destinatários imediatos, sendo os sujeitos em geral (Art. 171 do CP) ou para alguns em especial (Art. 240 do CP, Lei de Responsabilidade Fiscal, a pessoa física ou jurídica, os órgãos do Estado etc). Têm ainda destinatários mediatos, como os órgãos estatais chamados a garantir a lei.

1.2.6. Caracterizadas pela generalidade (destinada a diversas pessoas) e abstração (não se refere a um caso particular, mas descreve uma conduta típica, como por exemplo, o crime de violação de sepultura descrito no art. 210 do CP), as normas jurídicas compõem-se de preceito e de sanção. Preceito é o mandamento, positivo ou negativo, como por exemplo ao locatário pagar pontualmente o aluguer e os encargos da locação, na disposição do art. 23, I da Lei 8.245/91, ou a obrigação do proprietário de imóvel rural pagar o ITR. Sanção é a retribuição dada àqueles que descumprem ou cumprem o mandamento, como por exemplo a pena de desfazimento da locação por iniciativa do locador (Art. 9º, III da lei anterior) ou o desconto dado ao contribuinte que paga na data premiada com a redução do tributo. Uma sanção pode ser repressiva (prisão pelo não pagamento de pensão alimentícia), preventiva (o internamento de pessoa inimputável), executiva (a penhora de bens para pagamento de débitos), restitutiva (o dever de reparar um dano, como previsto no art. 159 do CC), rescisória (a ação rescisória prevista no art. 485 do CPC) ou extintiva (perda do prazo para intentar queixa-crime ou representação, prevista no art. 103 do CP).

Observa-se que além das atribuições gerais próprias do ordenamento jurídico, atribui-se à norma funções específicas como distributiva (distribuição de direitos, obrigações e funções), defesa social, repressiva, garantia ou tutela de direitos (o direito ao habeas corpus, habeas data, mandado de segurança etc), organizadora (a lei de organização judiciária), arrecadadora (criação de tributos), reparadora (dever do agente poluidor em reparar dano ambiental). Impende também notar, a propósito do que se viu antes acerca das visões jusnaturalista e positivista do direito, o direito “moderno” orienta-se por um mínimo de normas escritas, sob a controvertida alegação da “segurança jurídica” 10. 1.3) Mas não se pode pensar o ordenamento jurídico apenas como um amontoado de normas. Há dois princípios básicos que orientam esse ordenamento: o do entrelaçamento, que diz respeito à necessidade de os elementos que compõem esse ordenamento estarem em coadunação uns com os outros (a Lei 9.394/96 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação, deve contemplar os princípios da educação contemplados pela CF/88, como a democratização do acesso, a

10 A este respeito, ver por exemplo o inciso II do art. 5o da CF/88, art. 37, caput da mesma carta constitucional e o inciso XXXIX do art. 5o da Carta Magna c/c art. 1o , caput do CP.

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liberdade de ensino etc), e o da fundamentação (as normas componentes desse ordenamento, numa escala hierárquica, devem fundamentar umas nas outras). Ademais, além das que compõem esse ordenamento (toma-se lei em seu sentido amplo), há outros elementos igualmente importantes, como os costumes, a jurisprudência, os princípios de direito, a analogia, os tratados internacionais e a doutrina. 1.4) Do ponto de vista das leis, numa escala hierárquica descendente, ficam assim classificadas: a) A Constituição Federal e suas emendas. Há normas ali contidas com mais

força que as demais, como se vê das chamadas cláusulas pétreas, a teor do art. 60, §4o . Quando uma lei fere a CF, diz-se que a mesma é inconstitucional;

b) Leis complementares (definidas no próprio texto constitucional, como a LC n. 95/1998, a propósito do art. 59 da CF/88);

c) Leis ordinárias (elaboradas pelo Legislativo em sua atividade regular, como por exemplo o Código Civil, Lei 9.099/95, Lei dos Crimes Hediondos etc.); leis delegadas (elaboradas pelo Presidente da República ou comissões do parlamento, por delegação do Congresso Nacional); medidas provisórias (um atributo do Presidente da República em caso de urgência e relevância, como descrito no art. 62 da CF/88); decretos legislativos (do Congresso Nacional em matérias de sua competência exclusiva, em face do art. 44 da CF/88); resoluções (dos órgãos do Poder Legislativo, em matéria exclusiva de sua competência);

d) Decretos regulamentares (para dar cumprimento ou eficácia a uma lei); e) Despachos, estatutos, regimentos, portarias; f) Sentenças, contratos, testamentos, convenção coletiva de trabalho etc (em

exceção ao caráter geral e abstrato da lei, dirigem a um fato em particular).

1.4.1. A lei em si pode ter lacuna (deixar de prever alguma coisa), mas o jurista deve preenchê-la usando dos outros elementos, como por exemplo o que dispõe o art. 4o da LICC acerca da obrigatoriedade do juiz de decidir o caso mesmo que haja omissão da lei.

1.4.2. Fala-se em lei material ou substantiva, quando a mesma dispõe sobre direitos ou obrigações (Lei 8.112/90, o Código Civil, a CLT etc) e em lei formal ou adjetiva, quando a mesma dispõe sobre a forma de se exigir tais direitos ou obrigações (o CPC, o CPP, a Lei 9.099/95, a Lei 6.830/80). 1.5) Os costumes são as práticas reiteradas que acabam ganhando qualidade de lei (o cheque pré-datado); a jurisprudência é a prática reiterada de decisões adotadas pelos Tribunais e que passam a criar precedentes (as dos Tribunais de 2ª Instância chamam simplesmente “jurisprudência”, e dos Tribunais Superiores chamam-se “Súmulas”. Lembre-se que entre os romanos tinha significado diferente, ou seja, era a própria Ciência do Direito); os princípios gerais de direito são orientações que acompanham o dia-a-dia do direito, como o princípio do ïn dubio pro reo no Direito Penal, in dubio pro fisco no Direito Tributário, in dubio pro misero no Direito Civil, os da Administração Pública descritas no art. 37

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da CF/88, o de que ninguém pode cobrar o cumprimento de obrigação quando pendente a sua etc); a analogia consiste em tratar casos semelhantes como se fossem iguais (atente-se para o fato de que no Direito Penal só é cabível se for para beneficiar o réu); os tratados internacionais (entre Estados soberanos, ou entre estes e organismos internacionais); doutrina é o ensinamento dos juristas (Curso de Direito Constitucional Positivo, de SILVA, José Afonso da.). 1.6) No caso dos sistemas jurídicos federados, o ordenamento jurídico continua uno. No entanto, como no caso brasileiro, divide atribuições entre a União (CF, Código Penal, STJ, STF etc), os Estados-membros (CE, Lei de Organização Judiciária, Tribunais de Justiça etc) os Municípios (LO, Estatuto dos Servidores Públicos Municipais, Lei de IPTU etc), reservando à primeira a Soberania.

1.7) Quanto às normas jurídicas propriamente ditas, costuma-se classificá-las pelo conteúdo, pelo grau de imperatividade, em função da forma e pela natureza da sanção.

a) Em função do conteúdo: em razão da extensão da validade, são de direito comum (aplicada em todo território nacional) ou local; pela amplitude do conteúdo, podem ser gerais, quando aplicadas a todas as pessoas e em todo território nacional (Código Civil), especiais (Código Militar) e excepcionais (o art. 10 do AI nº 5 de 1968 que suspendeu o direito de habeas corpus nos casos de crimes contra a Segurança Nacional); pela força do conteúdo, podem ser constitucionais (CF/1988 e suas respectivas emendas), ordinárias (CC, ECA, Código de Defesa do Consumidor, Lei 8.213/91, Lei 8.009/90 etc) e regulamentares (o Regulamento 3.048/99 da Previdência Social); quanto à aplicabilidade do conteúdo, são auto-aplicáveis (os direitos e garantias individuais descritos no art. 5o da CF/1988) e dependentes de regulamentação (o inciso XI do art. 7o da CF/88); pelo interesse que tutelam, são de Direito Público (Direito Processual Penal), Direito Privado (lei da propriedade industrial) ou de Direito Misto 11 (Direito do Trabalho).

b) Em função do grau de imperatividade: Em relação aos particulares: taxativas (não podem ser derrogadas pelas partes), estas que podem ser “preceptivas” (o art. 156 do CTN, quando obriga o reconhecimento do crédito tributário) ou “proibitivas” (a equiparação salarial no inciso XXXIII do art. 7 da CF/88); dispositivas quando as partes podem alterá-la (os riscos da evicção previstos no art. 1.107 do CC). Em relação ao poder público, são rígidas (os casamentos que são nulos, conforme disposição do art. 207 c.c 183, I a VIII do CC) ou elásticas ( o §4o do art. 47 da Lei 8.069/90 que faculta ao juiz autorizar ou não a emissão de certidão em casos de adoção).

c) Em função da natureza da sanção: Perfeitas, quando decreta a nulidade do ato praticado contrariamente ao determinado (art. 207 do CC); imperfeitas ou

11 Nem todos autores aceitam esta classificação, reduzindo-se às duas primeiras, i. é, Direito Público e Direito Privado.

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sem sanção (a proibição de casamento do art. 183, XIII do CC; menos que perfeita (a possibilidade de anular o casamento em caso de erro de pessoa prevista no art. 218 do CC); mais-que-perfeitas (o dever de restituir a coisa esbulhada com os devidos acréscimos relativos à deterioração, em caso de esbulho, conforme art. 1541 do CC).

d) Em função da forma: Escritas (as leis, os regulamentos etc) e consuetudinárias (os costumes). 1.8) Àqueles que comungam de uma mesma ordem jurídica, pelo menos do ponto de vista da atual juridicidade (considerada civilizada), atribui-se iguais direitos e obrigações, e a isso chamamos de igualdade jurídica 12, como se vê nos casos do art. 5o , caput e 37, caput, ambos da CF/88. Mas não significa que estejamos obrigados a defender tais direitos quando os mesmos são violados. Neste sentido, fala-se em direito objetivo e direito subjetivo.

1.8.1. Fala-se, pois, em Direito Objetivo (norma agendi) quando referimos ao conjunto de regras que determinam como devemos nos portar juridicamente, bem como estabelendo sanções às quais nos sujeitamos quando nos portamos contrariamente. Ex.: CP, CC, os estatutos de um clube, o regimento interno de uma empresa etc.

1.8.2. Falar em Direito subjetivo (facultas agendi), é falar na faculdade que alguém tem de exigir que outro cumpra o que está estabelecido na norma. Ex.: Quando o art. 573 do CC proibe a abertura de janelas a menos de um metro e meio do prédio vizinho, concede ao proprietário prejudicado o direito de buscar a demolição da obra; mas essa é uma faculdade concedida a esse proprietário, que poderá se omitir ou ajuizar ação de nunciação de obra nova (art. 934 do CPC) para assegurar seu direito.

1.8.2.1. Há discussões em torno desta questão de saber de onde vem essa faculdade (faculdade ao invés de obrigação) da pessoa agir: a) para Jhering, isto se dá pelo fato de que o direito protege os interesses (teoria

do interesse). Os críticos desta teoria dizem que seu autor confundiu finalidade do direito subjetivo com a sua origem;

b) para Windscheid, a origem está no poder da vontade do homem que é defendido pela ordem jurídica (teoria da vontade). Uma objeção que se faz a essa teoria é o fato de que nem todo exercício de direito depende da vontade da pessoa, como o no caso dos incapazes (menores, pródigos etc);

c) para Jellinek, a questão está no poder da vontade humana de satisfazer determinado interesse, poder esse defendido pelo Estado (teoria da vontade e do interesse);

12 Foge-se um pouco aos princípios revolucionários da Revolução Francesa, que apregoava todas as igualdades. Do ponto de vista do direito, tem sido pouco mais que simples retórica, já que sem outros tipos de igualdade, fica mesmo difícil Ter efetivamente iguais direitos.

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d) para Paulo Nader a origem deste direito está no dever de cada uma de respeitar o direito alheio, disso concluindo que há o direito daquele que foi violado de reclamar, pelas vias judiciais, o descumprimento (Kelsen já dissera antes que não há distinção entre Direito Objetivo e Direito Subjetivo, mas que este nada é mais que um reflexo daquele. Ex.: Quando o art. 7§ da Lei 8.069/90 – ECA diz que a criança e o adolescente têm o direito a uma efetiva proteção à vida e à saúde, impõe automaticamente o dever do poder público e da comunidade em criar condições reais que assegurem a dignidade dos infantes).

e) há autores que negam a existência deste direito, como Deguit, por exemplo, que vê a questão pelo lado da necessidade de se manter a ordem social, e não de proteger os interesses dos indivíduos (teoria da função social).

1.8.2.2. Os direitos objetivos podem ser classificados seguindo alguns

critérios, como em relação à eficácia e quanto ao conteúdo: a) Quanto à eficácia, podem ser: absolutos ou erga omnes, quando oponíveis contra todos (nome, reais, autorais etc); relativos, exigíveis apenas de alguém que participa de uma determinada relação jurídica (o contrato de trabalho, o direito de crédito, a locação etc); transmissíveis, quando se lhes é permitido passar de um titular para outro, inter vivos ou causa mortis (compra e venda e os direitos reais de uma maneira geral); não transmissíveis, ao contrário do anterior, como o direito à honra (art. 240, § 2 do CP); principais, os existentes autonomamente (o direito do trabalhador ao salário, como disposto na CF/88 e na CLT); acessórios, ao contrário do anterior, como o direito ao FGTS (Obs.: o acessório acompanha o principal);renunciáveis ou disponíveis, os que dizem respeirto aos exclusivos do indivíduo e que por isso pode deles se abster (numa ação de separação, o direito do cônjuge dependente em receber pensão do outro); não renunciáveis, ao contrário do anterior, que dado ao relevante valor social que possuem, não podem ser dispensados (a pensão de menores numa separação judicial). b) Quanto ao conteúdo, podem ser de caráter público (políticos, liberdade, respeito à pessoa humana, ação, petição, igualdade, ação popular, econômicos etc) ou privados (patrimoniais e não patrimoniais). Políticos, os que visam assegurar a participação do povo no poder (criar e partidos e deles participar, votar e ser votado); liberdade, garantem a liberdade pessoal (habeas corpus, sigilo da correspondência, crença etc, e muitos outros descritos no art. 5o da CF/88); respeito à pessoa humana, os que protegem a dignidade da pessoa humana (proibição de penas perpétua e de morte, o dever de respeitar a integridade física do preso); ação, o de buscar o socorro judicial quando o direito não é respeitado voluntariamente; petição, peticionar e de representar junto aos poderes públicos para defender direitos ou censurar abusos de autoridade); ação popular, anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade em que o Estado participe, defender a moralidade pública, o meio ambiente, o patrimônio histórico, cultural e artístico (art. 5o, XXIII da CF/88); econômicos, os que defender a ordem econômica e do trabalho (segurança alimentar, não formação de cartéis, liberdade sindical, Previdência Social). Os patrimoniais são do tipo reais, quando dizem respeito a coisa móvel ou imóvel, seguem essa coisa e a vincula ao proprietário

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(hipoteca, penhor, propriedade, usufruto etc, como descritos a partir do art. 485 do CC); obrigacionais, quando objetivam uma prestação pessoal (o contrato de trabalho); sucessórios, os decorrentes da morte de alguém cujos bens transmitem aos herdeiros; intelectuais, aqueles que protegem as invenções e as marcas comerciais (os da Lei 9.279/96) ou privados (patrimoniais e não patrimoniais). Os não patrimoniais são do tipo personalíssimos, quando são inerentes à pessoa humana e que as acompanha durante toda a vida (o nome, a integridade física e moral, a liberdade etc), e familiares, quando visam proteger a família e os seus interesses (art. 226, §§ 3 e 4 da CF/88 e art. 180 e ss. do CC).

1.8.2.3. Maynes veio afirmar o direito subjetivo do devedor de cumprir a obrigação que lhe cabe, postura essa adotada por nosso ordenamento jurídico no art. 890 do CPC: nos casos previstos em lei, poderá o devedor ou terceiro requerer, com efeito de pagamento, a consignação da quantia ou da coisa devida (ação de consignação em pagamento).

1.8.2.4. A idéia de direito subjetivo é inseparável da idéia de dever jurídico, que por sua vez se relaciona com a idéia de lícito/ilícito. Entende-se por lícito tudo aquilo que o direito não obriga (art. 5o , II da CF/88: Ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei), que o direito permite (art. 5o , XIII da CF/88) ou aquilo que ele não regulamenta. Por outro lado, a idéia de dever jurídico não se separa da idéia de proteção ou prestação jurisdicional, já que a lei civil afirma que “a todo direito corresponde uma ação que o assegura” (art. 75 do CC).

1.8.2.5. Como vimos anteriormente, à existência de um direito contrapõe-se uma obrigação ou dever jurídico, ou seja, restringe-se a liberdade de alguém. Mas de onde nasce esse dever jurídico? Kant não acreditava na idéia de autêntico dever jurídico, já que para ele dever mesmo é aquele nos censura internamente mandando fazer o bem sem esperar nada em troca (e este não é o caso do Direito); dirá, porém, que o dever jurídico nasce da adequação do fato à norma. Kelsen, porém, viu sua origem na norma (o dever de se fazer o que manda a norma).

1.2.8.6. O dever jurídico pode nascer de uma fato, a propósito do que dispõe o art. 159 do CC: Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano”. Mas pode também nascer da imposição legal, como o dever dos parentes em darem alimentos aos que dele necessitam, e do a do autor de homicídio, aos credores da vítima (artigos 399 e 1.537, II, respectivamente). Por outro lado a extinção desse dever poderá se dar pelo adimplemento da obrigação, pela renúncia do titular, pela morte (em obrigações personalíssimas), pela novação (art. 999 do CC), pela prescrição e decadência de direitos e obrigações (artigos 177/178 do CC, artigos 26/27 da Lei 8.078/90, art. 103 do CP etc), e até por determinação legal (art. 1.049 do CC).

1.8.2.7. É cabível uma classificação para os deveres jurídicos: contratuais, quando decorrentes de um acordo de vontades, acordo esse que a lei tratará dos efeitos, como aquele em que o prometente comprador se compromete de assinar a escritura do imóvel ao final do pagamento das prestações (art. 1.122

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e ss. do CC); extracontratual (todos aqueles que advém de determinação legal, como ditos alhures); positivo, quando estabelece a obrigatoriedade de se fazer algo, como o dever do médico de informar à autoridade pública doença cujo perigo assim obriga (art. 269 do CP); negativa, de se abster de determinada conduta, como o de não praticar o charlatanismo ou curandeirismo (artigos 283 e 284, respectivamente); permanente, como aquele que se estende no tempo, como aqueles que nos impõe o dever de abster de práticas delituosas (art. 121 e ss. do CP); provisório ou instantâneo, como aqueles cujo adimplemento extingue de imediato esse dever (do empregador pagar o 13o salário, primeira metade entre os meses de fevereiro e novembro, e a segunda até 2o de dezembro).

1.8.2.8. Podemos então falar em elementos do direito subjetivo, quais sejam, o sujeito, o objeto, a relação jurídica e a proteção jurisdicional. É o que veremos a seguir.

1.8.2.9. O objeto do direito, como temos visto, são os fatos juridicamente relevantes. Dizemos “fatos juridicamente relevantes” porque nem todo fato interessa ao direito, como por exemplo, a queda de um bloco do sobrado de Machado de Assis; mas se a queda desse bloco cair, por exemplo, sobre a cabeça de Quincas Borbas que passava pela calçada, pode gerar o direito deste em ser indenizado por aquele (art. 159 do CC). Fala-se em fato jurídico em sentido amplo (lato sensu) quando um acontecimento qualquer está previsto na norma, fazendo nascer, modificar, subsistir, transferir ou extinguir um direito (a venda de um telefone que dá direito ao vendedor de receber o preço; assim, os fatos jurídicos em sentido amplo são o somatório dos fatos jurídicos em sentido estrito mais os fatos jurídicos humanos (voluntários). Fato jurídico em sentido estrito (stricto sensu) ou fato jurídico natural, material ou involuntário quando a vontade humana não concorre diretamente, não obstante tal fato criar, modificar, manter ou extinguir uma relação jurídica (uma seca que destrói a plantação de Severino). Fatos jurídicos humanos ou voluntários são aqueles onde a vontade humana está presente (o contrato de compra e venda, de troca, de aluguel). Neste último caso fala-se ainda em atos jurídicos (art. 81 13 do CC), como aqueles capazes de adquirir, conservar, modificar, transferir ou extinguir direitos. Esses atos jurídicos podem ser lícitos (aquilo que o Direito permite, ou que não proíbe e o que não trata) ou ilícitos (o que é proibido pelo Direito), que podem ser ilícitos civis (art. 159 do CC), ilícito penal (ação ou omissão, tentada ou consumada, descrita como crime ou como contravenção penal), ilícito tributário (ato contrário à ordem tributária, ilícito administrativo (ato em desacordo com as regras da Administração Pública) etc. Fala-se ainda em atos jurídicos em sentido estrito quando há intenção ou vontade do agente em praticá-lo (realizar uma compra no supermercado); em ato meramente lícito quando a ação humana não visava tal ato, como o agricultor que

13 A designação “lícito” empregada pelo legislador diz respeito ao que está previsto em lei.

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encontra um tesouro enterrado em sua propriedade quando a escava para plantação (art. 608 CC); em negócio jurídico, quando há intenção manifesta de se praticar o ato (um contrato de aluguel).

Os fatos jurídicos em sentido estrito podem ser classificados como naturais ordinários quando são previsíveis e regulares (o nascimento de Lima Barreto) ou naturais extraordinários os que surgem sem regularidade (a loucura de Policarpo Quaresma). Fala-se, neste último caso, em fato do príncipe (factum principis), caso fortuito ou força maior, que em nosso CC está a exonerar o devedor do cumprimento da obrigação (artigos 865 e 879), e que no Direito Administrativo exime o contratado de cumprir as clásulas afetadas por ato do Poder Público.

1.8.2.10. Ao falarmos de sujeitos de direito, estamos a falar daqueles que são os titulares do direito subjetivo, i. é, que têm a prerrogativa de exercê-lo ou exigir a prestação jurídica que lhe é assegurada pela ordem jurídica 14 (sujeito ativo), e daqueles que, em contrapartida, têm a obrigação de cumprir a obrigação jurídica determinada (sujeito passivo). É imprescindível aqui haver a personalidade jurídica, ou seja, a aptidão para exigir ou cumprir uma obrigação. Esses sujeitos podem ser tanto uma pessoa individual (a pessoa natural, singular ou física etc) como uma pessoa coletiva (a pessoa jurídica, fictícia, abstrata, civil ou social etc). Pessoa natural é o ser humano, considerado individualmente, e pessoa jurídica uma coletividade de pessoas (uma empresa) ou de bens (o espólio, a massa falida) 15. Pessoa coletiva pode ser de direito privado ou de direito público (interno e externo). Em consonância com nossa lei civil que diz que “todo homem é capaz de direitos e obrigações na ordem civil”, a CF/88 estende esses direitos e obrigações inclusive aos estrangeiros residentes no país; não se pode, por isso, falar em direito de animais ou plantas, não obstante existirem leis que coloque a salvo esses seres. Fala-se em capacidade de direito quando nos referimos à capacidade de se adquirir direitos ou cotrair obrigações, e de capacidade de fato ou de exercício quando falamos de capacidade para exercer esses direitos pessoalmente (absoluta e relativamente incapazes). A capacidade civil plena se adquire aos 21 anos de idade, com 18 (ou por outros meios) se pode comercializar, com 17 se adquire capacidade militar, com 16 se pode celebrar contrato de trabalho (com assistência dos pais ou responsáveis) e com igual idade se tem capacidade política ativa e a partir dos 18 a estende (para Vereador) para passiva.

14 Em nosso ordenamento, vale a regra de que ninguém pode, em nome próprio, pleitear direito alheio (artigos 6o e 3o do CPC). Exceção a isto é quanto aos chamados “direitos difusos” (dispersos entre o público sem se poder identificar um titular) onde alguém defende seu direito e de uma coletividade. Para isto, ver art. 5o , LXXIII da CF/88 (Ação Popular) e art. 1o da Lei 7.347/85 (Ação Civil Pública). 15 O legislador não foi muito feliz na escolha dos termos, já que tanto a “pessoa física ou indivi dual” como a “pessoa jurídica” são pessoas jurídicas.

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A personalidade jurídica começa, na pessoa individual, a partir do nascimento com vida, como dispõe o art. 4o do CC (mas a lei coloca a salvo o direito do nascituro), e na pessoa coletiva, a partir do registro de seus estatutos (art. 18 do CC). Termina essa personalidade, na pessoa individual, com a morte, e na pessoa coletiva com a sua dissolução. O reconhecimento dessa personalidade requer a existência de um nome.

1.8.2.11. Falamos em relação jurídica como outro elemento essencial do direito subjetivo, ou seja, a relação existente entre duas ou mais pessoas capaz de gerar consequências jurídicas. Envolve o sujeito ativo (no direito privado é o titular do direito subjetivo, e no direito público é o Estado) e sujeito passivo (no direito privado é o devedor e no direito público pode ser um particular ou o próprio Estado através de algum de suas pessoas). Usa-se classificar a relação jurídica em reais (poder exercido sobre a coisa. Ex.: Ação de Reintegração de Posse), pessoais (por uma inter-elação de condutas. Ex.: A requisição de um de um serviço por A e sua prestação por B), de direito privado (as que se dão com fulcro na lei privada. Ex.: A relação de consumo), de direito público (ao contrário da anterior, como por exemplo um contrato de concessão após devida licitação pública), formais (exigem uma forma especial para se realizar, como a obrigatoriedade de se realizar o casamento em ambiente público, de portas abertas, como dispõe o art. 193 do CC), não formais (como a realização de um contrato de arrendamento rural), de subordinação (onde está o imperium do Estado e do outro o particular. Ex.: O Contrato Administrativo) e de coordenação (onde há, pelo menos em princípio, uma relação de igualdade entre os sujeitos. Neste último caso, dá-se ao modo do direito privado, inclusive quando de um lado está o Estado sem seu imperium (quando presta ou adquire, nos casos previstos em lei, um serviço no mercado de consumo. Ex.: A compra de um livro pela Prefeitura de Conselheiro Lafaiete); dá-se no direito público quando o Poder Público responde por suas obrigações para com o indivíduo (Ex. : Ação de indenização por acidente de veículo provocado por motorista do INSS); no direito internacional quando os Estados soberanos acordam entre si (Ex.: Tratado de livre comércio). Para a tutela do direito subjetivo presente na relação jurídica, as sociedades modernas proíbem a justiça privada (art. 345 do CP), e chamam para si essa responsabilidade (art. 75 CC). Esses direitos, no entanto, devem ser exercidos por quem tenha legitimidade (art. 6 do CPC) e no prazo previsto (artigos 103 e 109/115 do CP, artigos 177 e 178 do CC, art. 7, XXIX da CF/88 etc), sob pena de prescrição ou decadência (perda do direito de exercer esse direito quando não o faz no tempo previsto). Não obstante, há direitos que não são atingidos pela prescrição (art. 168 e 169 do CC e art. 5, XLII da CF/88) e outros que têm essa prescrição interrompida (artigos 172 do CC e 116/117 do CP). 1.8.2.12. Por fim, falemos da proteção jurisdicional como um dos elementos do direito subjetivo. Como vimos do art. 75 do CC, para cada direito

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existe uma ação que lhe proteja. A CF, por sua vez, impôs que todo pretenso direito (lesado ou ameaçado) está sujeito à apreciação do Poder Judiciário: é o princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário previsto no art. 5, XXXV. Isto ocorre porque não é permitida a justiça privada em nosso ordenamento jurídico! Para efetivar essa prestação jurisdicional (seja no âmbito judicial como administrativo), o Estado é equipado em órgãos com competência específicas. Em termos administrativos, os órgãos e intâncias são os mais diversos, tudo a depender da matéria a ser tratada: JARI e as instâncias superiores para os recursos de infração de trânsito, as juntas recursais em matéria tributária, as comissões de avaliações das funções administrativas etc). Essas decisões, embora transitem em julgado 16 na esfera administrativa, ainda estão sujeitas à apreciação pelo Judiciário. Na esfera judicial, existe a justiça comum que tem uma estrutura destinada a julgar diversos tipos de relações jurídicas: a Justiça Comum Federal que julga os casos que a União tenha interesse (cível, criminal, tributário, agrário etc) e a Justiça Comum Estadual que julga as causas onde não haja interesse direto da União (cível, criminal). Por outro lado, existe a justiça especializada em determinadas matérias: A Justiça do Trabalho, que é Federal, e as justiças Militar e Eleitoral com organizações inclusive a nível estadual. É por causa desta divisão de atribuições que podemos falar em competência e incompetência para julgar determinadas matérias. Cada uma dessas estruturas se organizam em instâncias: primeira instância, quando a matéria é julgada pela primeira vez pelos Juizes de Direito, pelos Juizes Federais, pelos Juizes do Trabalho; segunda instância quando o vencido, descontente, pede um novo julgamento da questão (TRF, TRE, TRT, Juntas Recursais dos Juizados Especiais, TJ, e TA em alguns Estados). Neste último caso, quando o vencido fica descontente com a decisão ainda lhe é permitido em alguns casos recorrer da segunda decisão, e neste caso o recurso poderá ir para o STJ, TSE e STF. No caso da Justiça Estadual, ainda há a figura das entrâncias que servem para classificar a demanda de casos sob a apreciação de uma determinada jurisdição. Em qualquer desses casos, o titular do direito subjetivo que se sentir lesado ou ameaçado de lesão precisará de provocar o Poder Judiciário com uma ação, e começa com uma petição inicial. Instaura-se o processo (citação e constestação), o juiz aprecia as provas e profere a decisão (sentença). O vencido descontente recorre (apelação na área cível e recurso ordinário na Justiça do Trabalho), o vencedor contesta o recurso (contra-razões) e o Tribunal reexamina a decisão e profere outra, seja mantendo a decisão a quo ou modificando-a (acórdão). Observa-se que aqui, via de regra, não se discute provas que não foram discutidas em primeiro grau.

16 Decisão contra a qual não caiba mais recurso.

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Por último, há que se observar que o aumento das demandas e a morosidade do Poder Judiciário têm levado a sociedade a rediscutir a exclusividade do órgão judiciário para decidir as questões (soluções extrajudiciais dos conflitos). Fala-se aqui em juizes arbitrais, em Câmaras de Conciliação e em simples acordos na presença dos advogados dos interessados. Há outros estudiosos do Direito que têm canalizado esforços no sentido de atuar na prevenção dos conflitos, atuando em assessorias àqueles que hodiernamente estão expostos a esses conflitos. 1.9) Ao tratar do ordenamento jurídico e das regras de direito, não se pode olvidar, também, que etamos trabalhando muitas vezes com conceitos indeterminados, vale dizer, com conteúdo e a extensão largamente incertos dessas normas. Embora difíceis, há alguns conceitos absolutamente determinados no direito, e aí citaríamos os conceitos numéricos (15 dias, 50 Km etc). Mas os indeterminados são predominantes, como por exemplo o de “ato jurídico perfeito”, “sossego noturno”, “perigo”, “mulher honesta”. Esta realidade coloca o jurista, obrigatoriamente, frente-a-frente com o caso concreto, com as circunstâncias e com os valores assumidos pela sociedade para poder solucionar a questão que lhe é imposta. 1.10) Outra questão de peso no estudo da ordem jurídica é a questão das fontes do Direito. Falamos em fontes materiais quando nos referimos aos fatores determinantes na elaboração e na aplicação da norma (a realidade social, política e econômica da sociedade; os valores que orientam a convivência das pessoas: ideologia, crenças, sentimentos Tc); falamos em fontes formais quando nos referimos à materialização desse direito. Neste último caso, falamos ainda em fontes imediatas (aquelas que incidem imediatamente sobre as pessoas determinando uma conduta, como a lei e o costume) e em fontes mediatas (as que ficam na dependência de uma regra anterior para se manifestarem, como é o caso da doutrina, da jurisprudência e dos princípios gerais de direito). Como nos pontos 1.4 e 1.5 falamos em alguns e mais adiante falaremos sobre a equidade, contentaremos em acrescentar as seguintes: O direito comparado (art. 8 da CLT), que é o confronto entre diversos ordenamentos jurídicos estatais de modo a aprimorá-los; a convenção coletiva de trabalho, prevista no art. 611 da CLT e de caráter normativo, consistente em acordo entre dois ou mais sindicatos representativos das categorias patronal e obreira para regulamentar a atividade no âmbito da empresa; as decisões normativas da Justiça do Trabalho, que no caso particular dos dissídios coletivos, estabelecem regras jurídicas para valerem entre as partes; os atos regras, normas negociais ou convenções privadas são os atos emanados de acordo entre particulares ou entre estes e a Administração Pública, e que nos casos concretos, disciplinam as relações jurídicas. 1.11) Não poderíamos fechar este estudo da ordem jurídica sem nos atermos à questão da técnica jurídica. Estamos falando dos recursos técnicos que o jurista utiliza para conhecer, difundir e realizar o direito. Podemos dividi-la em técnicas de elaboração, de sistematização e de aplicação do direito.

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1.11.1. Para elaborar uma lei, é necessário dominar as regras de

redação legislativa e de tramitação do processo legislativo. Uma lei contém preâmbulo, corpo, disposições complementares, disposição sobre a vigência e de revogação, fecho, assinatura e referenda. Por outro lado, o processo legislativo se compõe de iniciativa de lei, exame prévio por comissões específicas, discussão plenária, aprovação, sanção, promulgação, publicação e vigência.

1.11.2. Na sistematização entra o trabalho doutrinário para dar unidade e coerência à lei, visando torná-la mais compreensível e passível de aplicação.

1.11.3. A aplicação ou interpretação da lei é o momento em que o mesma vai revelar o seu sentido aos destinatários, e esse momento constitui objeto de uma disciplina específica chamada Hermenêutica Jurídica. Veremos esta questão quando formos estudar o problema do método jurídico.

1.11.4. Para ser alcançar seu objetivo, a técnica jurídica lança mão de alguns recursos, sejam eles formais (a linguagem, as formalidades e o sistema de publicidade) ou substanciais (definições, conceitos, categorias, pressupões e facções).

a) A linguagem jurídica é de muita importância para o direito, já que é ela quem

comunica o fato ao direito, daí que seu uso correto pode ser decisivo para a solução de um caso. São elementos da linguagem jurídica as fórmulas, o vocabulário jurídico, o estilo jurídico e os aforismos. Por fórmulas entendemos os signos rigidamente exigidos para a prática de determinado ato jurídico, como a declaração do oficial de registro de que, em nome da lei, declara homem e mulher os nubentes diante de si (art. 194, segunda parte, do CC), assim como a advertência feita pelo presidente do tribunal do júri aos jurados para que julguem com retidão o caso que lhes será apresentado (art. 464 do CPP). Por vocabulário jurídico entendemos: as palavras do vocabulário comum que no direito são empregadas no sentido geral, como de prostituição (art. 229 do CP) ou ouro e prata (art. 432, 1 do CC); palavras do vocabulário comum que no direito assumem um sentido específico, como mulher honesta (art. 216 do CP) ou tradição (art. 520, II do CC); palavras oriundas de outras ciências, como moléstia transmissível (art. 219, III do CC); vocabulários específicos do direito (evicção, arras Tc). Importa ressaltar que bom uso do vocabulário jurídico não significa, necessariamente, o exagero da linguagem, que muitas vezes contribui apenas para distanciar o povo do direito. O estilo jurídico é a qualidade que ganha a expressão verbal quando utilizada no meio jurídico. Na oratória forense tem redundância a lógica, o entusiasmo, a graça, a adequação ao tribunal julgador Tc); nas sentenças é a distribuição ordenada da questão (relatório, fundamentação e dispositivo), a apreciação exaustiva, clara e honesta das provas, a citação correta das fontes em que baseia a decisão Tc; na legislação é a clareza e a concisão; nos contratos a honestidade, a clareza e a objetividade, bem como prever tudo e não omitir nada; na doutrina é a honestidade, a organização e a clareza do discurso, bem como a máxima exploração da matéria sem no entanto cansar o leitor, fazendo uso das notas

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de rodapé para os excessos e para as citações das fontes; nos arrazoados dos advogados e promotores é a lógica da argumentação, o uso adequado de títulos e subtítulos para organizar e distribuir o discurso, a objetividade, a clareza e as oportunas citações das fontes em que fundamenta o direito que defende; nos acórdãos é a concisão, a qual ainda é resumida em uma apresentação chamada “ementa”. Por sua vez, os aforismos, brocardos ou adágios são máximas gerais e concisas usadas para resumir uma regra de direito. Ex.: In dubio pro reo, onus probandi incumbiti auctori, nas coisas móveis a posse vale o título, meu direito vai até onde termina o do outro etc.

b) As formalidades jurídicas constituem nas exigências impostas pela lei para que determinados atos jurídicos sejam considerados válidos. São também chamados atos solenes para cercar de mais segurança o ato praticado (a exigência de transcrição da escritura pública no Registro de Imóveis para ter validade perante terceiros). Nosso ordenamento civil estabelece penas para os atos praticados sem as exigências que lhes são feitas (art. 130 CC).

c) Por sistema de publicidade designamos os recursos utilizados no direito a fim de que os atos jurídicos que interessam à coletividade sejam conhecidos por todos. Na elaboração das leis, é assegurado pela publicidade dos debates dos projetos de lei, da sessão de votação e da publicação das leis. Na aplicação da lei, está presente em todos os casos onde não haja necessidade de se proteger a intimidade ou o interesse social (art. 5, LX da CF/88). Na Administração Pública essa publicidade está assegurada constitucionalmente como um dos princípios da Administração (ar. 37, caput, da CF/88).

d) As definições jurídicas são as explicações que se dá para determinados elementos ou circunstâncias do direito onde a lei não deu essa definição (a definição de rixa prevista como crime no art. 137 do CP como “uma luta, uma batalha entre muitas pessoas, rompendo subitamente, por efeito de um movimento impetuoso de cólera, sem intenção claramente de matar ou ferir, mas rematando em pancadas, ferimentos mais ou menos graves, mesmo na morte de um ou muitos dos combatentes” 17. Embora o problema das definições seja da alçada da doutrina, algumas vezes o legislador usurpa dessa função (art. 47 do CC, artigos 24 e 25 do CP).

e) No sentido inverso das definições (que decompõem uma idéia), os conceitos jurídicos são a abstração ou a síntese que fazemos de determinadas realidades. Ex.: Quando falamos em justa causa, imediatamente nos vêm à memória os fatos descritos nos artigos 482 e 483 da CLT que dão direito, ao empregador ou ao empregado, rescindir o contrato de trabalho.

f) As categorias jurídicas compreendem-se na distribuição da matéria jurídica em quadros definidos, levando em conta a natureza, os elementos comuns e específicos, finalidades etc. Desta forma se pode falar em pessoas, coisas, responsabilidade ou em atos jurídicos como categorias do Direito Civil; igualmente, podemos falar em ações ou em defesas como categorias do Direito Processual, assim como em delitos ou em penas no Direito Penal.

17 NÁUFEL, José. Novo Dicionário Jurídico Brasileiro. 10a ed. Forense: Rio de Janeiro, 2002, p. 779.

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g) Nas pressunções temos como base, segundo Paulo Dourado de Gusmão, a verossimilhança , ocasião em que generalizamos o que ocorre geralmente em certos casos, estendendo as consequências de casos conhecidos a outro desconhecido, i. é, consideramos verdadeiro aquilo que é provável 18 . As presunções são do tipo simples ou comuns quando partem do senso comum das pessoas, e no direito são muito utilizadas em questões de fato (a presunção de que a testemunha que se mostra insegura esteja faltando com a verdade); podem também ser legais (estabelecidas pela lei), e neste caso dividem-se em: absolutas ou iuris et de iuri, as que não admitem prova em contrário, como a presunção de que todos conhecem a lei depois que a mesma é publicada (art. 3o da LICC) ou que o trânsito em julgado da decisão encerra a verdade; existem também presunções relativas ou iuris tantum, ou seja, as que admitem prova em contrário, como a presunção de que os filhos concebidos na constância do casamento sejam filho desse casal (art. 338 e ss. do CC), ou a de que duas pessoas que tenham morrido na mesma ocasião, sem se poder dizer ao certo qual delas morreu primeiro, que terão falecido simultaneamente (art. 11 do CC) ou ainda a de que a relação sexual com menores de 14 (quatorze) anos seja feita contra sua vontade (art. 224, a, do CP).

h) Por ficções jurídicas designamos a suposição de existência a algo que não existe na realidade, uma mera criação artificial que é muito necessária ao direito, ou, no dizer de Jhering, mentira técnica consagrada pela necessidade. São exemplos de ficção legal a de que empresas e Estados sejam pessoas (Pessoa Jurídica), de que as dependências de embarcações e aeronaves brasileiras, de natureza pública ou a serviço do governo brasileiro, onde quer que estejam, para efeitos penais sejam considerados território brasileiro (art. 5, 1 e 2 do CP), assim como a idéia de que os acessórios de um imóvel (móveis por natureza), sejam juridicamente imóveis (artigos 43, I e II, e 46 do CC).

2. O DIREITO E A JUSTIÇA 2.1) Importa darmos especial atenção para a questão que diz respeito à relação existente entre o direito e a justiça, eis que os dois dividem o mesmo palco do jurídico. A importância da justiça foi bem demonstrada por Platão, para quem «sem justiça não sobrevive nem mesmo uma sociedade de ladrões». Igualmente prescreveu o jurista italiano Del Vecchio: A noção de justo é a pedra angular de todo o edifício jurídico. Não obstante, há quem negue hoje a justiça como essencial ao direito, o que teremos oportunidade de demonstrar mais adiante. 2.1.1. De fato, em toda a história do «jurídico» houve sempre uma polêmica entre o que dispõe o Direito 19 e aquilo que o homem aspira enquanto membro de 18 GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao Estudo do Direito. 25a ed. Forense: Rio de Janeiro, 1999, p. 8. 19 Usamos o termo «Direito» aqui no sentido atual da palavra para exprimir um conjunto de regras consensualmente tidas como necessárias à vida em comunidade.

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uma coletividade 20. Mas é necessário acompanhar a evolução do termo para não fazermos confusão: Os gregos usavam da palavra «dikáion» para designar aquilo que era justo, o que era devido a cada um, e da palavra «nómos» para se referir à lei. Por outro lado, os romanos usavam do vocábulo «ius» no primeiro sentido e «lex» no segundo. Santo Tomás no século XIII em seu Tratado da Justiça insiste nessa diferenciação entre o direito (ius) e a lei (lex). 2.1.2. No que tange ao conceito de justiça, a história também nos legou diversos sentidos, alguns dos quais parecem essenciais: a) Platão cuidou de definir o justo, e assim o coloca como uma aceitação e o

empenho de cada cidadão no exercício da função que lhe é atribuída dentro do Estado, tendo em vista a construção de uma cidade feliz. Essa função seria definida de acordo com a virtude de cada cidadão, ou seja, aos da coragem a guarda da cidade, aos da temperança o comércio, as artes e a agricultura, assim como aos da sabedoria o governo do Estado.

b) Essa idéia de justiça como virtude persiste em Aristóteles, especialmente a virtude política, pois «os legisladores formam os cidadãos na virtude, habituando-se a ela». Em Aristóteles há que se diferenciar justiça universal (sentido amplo) de justiça particular (sentido estrito). No primeiro caso temos a conduta humana de acordo com a lei e no segundo um hábito que realiza a igualdade, e neste último pode-se inclusive retificar a lei pela «equidade», e pode ser do tipo comutativa ou distributiva. Ainda para o estagirita, são os seguintes os elementos da justiça: o outro (a justiça é a mais nobre das virtudes por que diz respeito a um ato em relação a outra pessoa, e aqui se fala em alteridade), a vontade (o ato só é justo à medida que o agente o quer praticar, e aí alguém que involuntariamente causa um mal a alguém pode até cometer uma injustiça, mas apenas acidentalmente), a conformidade com a lei (o ato tem que ser conforme a lei, não só a lei positiva, mas a lei natural também se a primeira com esta divergir. Para corrigir eventuais divergências, a equidade deve ajustar a norma legal à natural), busca do bem comum (deve buscar a felicidade geral da polis) e a igualdade. Esta última é essencial para caracterização da justiça, mas igualdade aqui surge também em sentido relativo, pois se os sujeitos relacionados «não são iguais, não receberão coisas iguais» sob pena de não se reparar as desigualdades. Na justiça distributiva a relação se dá na forma geométrica ou de proporção, enquanto na comutativa numa relação aritmética. A primeira se dá nas relações do Estado para com os cidadãos e se destina à distribuição das honras e das penas com base no mérito de cada cidadão; a segunda ocorre nas relações interpessoais e possibilita o restabelecimento da igualdade eventualmente violada por uma das partes. Santo Agostinho, embora reconhecendo a igualdade como um princípio que rege a criação (Deus nos fez a todos como sua imagem e semelhança) se apegaria à idéia de «igualdade relativa» ao modo aristotélico,

20 É o que já se viu em outro lugar do episódio de Antígona.

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eis que na distribuição dos bens se privilegiaria aqueles que maior mérito tivessem, i.é, que observam a lei de Deus. Para compensar essa desigualdade, o homem serve-se da Graça, uma espécie de socorro que Deus concede aos «desviados» para lhes conduzir à salvação.

c) Ainda da era clássica, refere-se ainda à justiça conforme as palavras de Ulpiano, ou seja, ser honesto, não fazer mal a ninguém e dar a cada um o que lhe é devido: honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere. Mais tarde Leibniz iria adotar outro critério de classificação da justiça seguindo estes indicativos: Justiça universal (honeste vivere), justiça comutativa (alterum non laedere), justiça distributiva (suum cuique tribuere).

d) Santo Tomás (século XIII), utilizando-se da doutrina anterior, manteria a concepção aristotélica de justiça (o «que é em si justo»), reconhecendo sua diferença para com outras virtudes. No entanto, sua concepção de justiça, no entanto, vincula à sua idéia hierárquica onde a lei divina ocupa lugar privilegiado, seguida pela lei natural que por sua vez subordina a lei humana. Desta forma, não há que se falar em justiça que contrarie essas exigências.

e) Hobbes anos mais tarde viria inaugurar outro período para a justiça: a justiça como idéia de um contrato, e aí somente aquele que tem palavra de mando poderá proclamar o que é justo ou injusto, eis que recebeu esse poder do homem quando este saiu do estado de natureza. Poderíamos assim dizer que injustiça é violar um pacto anteriormente estabelecido (pacta sunt servanda): nesta lei de natureza reside a fonte e a origem da justiça. Porque sem um pacto anterior, não há transferência de direito, e todo homem tem direito a todas as coisas, consequentemente nenhuma ação pode ser injusta. Mas depois de celebrado um pacto, rompê-lo é injusto. E a definição de injustiça não é outra senão o não cumprimento de um pacto. Chamamos a atenção para o aspecto coercitivo aqui acentuado.

f) A consequência da “justiça totalitária” de Hobbes seria sua amenização pelos demais contratualistas, liberais e iluministas, que se estenderiam de Locke a Kant, neste último onde exatamente a liberdade seria aquela a dar o comando da justiça: agir livremente de forma que minha liberdade coexista com a liberdade dos demais. Como essa liberdade do indivíduo precisava conviver com a coerção do Estado, haveria que se distinguir entre liberdade e arbítrio: Liberdade é diferente de arbítrio porque ela não nos permite fazer o que queremos, mas apenas aquilo que é conforme a razão. 2.1.3. O período que se conheceu como do idealismo alemão (Kant, Fichte,

Hegel etc) conduziu a uma concepção formalista da justiça onde a forma prevaleceria sobre seu conteúdo, e assim as ilusões codificadoras chegaram ao extremo de Kelsen, já em nosso século, manifestar seu desprezo para essas exigências de justiça na validação do Direito: Já que muitos falaram sobre justiça mas ninguém consegue dizer o que ela seja (ou comprovar), contentaremos em buscar um direito formalmente válido. Consequências graves foram extraídas dessa “dispensa” da justiça, já que qualquer lei, uma vez tendo cumprido as formalidades exigidas (publicadas por um órgão competente e obedecendo a uma

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hierarquia pré estabelecida), seria considerada válida independentemente do conteúdo. Impende ressaltar que hoje muitos que negam o formalismo de Kelsen e procuram superá-lo, não restabelece essas exigências de justiça para o Direito, mas partem puro e simplesmente das exigências de utilidade (a Law and Economics, por exemplo). 2.2) Desta forma, seria legítima uma dupla visão da problemática da justiça: num primeiro momento, falaríamos em justiça em sentido subjetivo ao modo de Ulpiano como uma “vontade constante e perpétua de dar a cada um o que é seu” (Justitia est constans et perpetua voluntas ius suum cuique tribuendi), e aí teremos a justiça como virtude (sentido subjetivo); em segundo momento teremos justiça como ordem social que assegura esse direito de cada um (sentido objetivo). É ainda possível falar, no que tange à concepção subjetiva, em sentido latíssimo, lato e próprio ou estrito. No primeiro caso diz respeito à virtude em geral, em sentido quase que de beatitude, como se vê do Digesto onde ö direito é a arte do bem e do equitativo”; no segundo, dá-se sem as outras três das quatro virtudes cardiais que podem ser exercidas individualmente (prudência, temperança e coragem), mas somente se refere àquelas que tratam da relação do homem para com os demais, regulando suas relações; no terceiro caso, é a virtude em sentido próprio com objeto especial, vale dizer, como diria Santo Tomás: “a essência da justiça consiste em dar a outrem o que lhe é devido, segundo uma igualdade” 21. 2.3) Retomando à questão posta por Aristóteles no que diz respeito à classificação da justiça em justiça geral ou justiça social (que tem por objeto o bem comum) e justiça particular (esta que se divide em comutativa e distributiva e cujo objeto é o bem do particular), temos como fundamentais as notas seguintes. 2.3.1. A justiça social 20 é aquela que Aristóteles considerou a mais bela de todas: ”Nem a estrela da manhã, nem a estrela vespertina são tão belas quanto a justiça geral”. Como em qualquer outra virtude, esta também diz respeito a dar a cada um o seu; esse devido a cada pessoa é o bem comum (ou a nossa contribuição para que o mesmo se efetive), onde os devedores são os particulares (os membros da comunidade) e a sociedade é a credora. Neste aspecto, quando o indivíduo paga o seu imposto, quando serve à justiça eleitoral ou quando atua como jurado no Tribunal do Júri, está dando a sua contribuição para a promoção do bem comum: promovendo o investimento público no primeiro caso, contribuindo para a democracia no segundo e com a segurança pública no terceiro. Para que a realização da justiça não fique ao arbítrio de cada um o Estado, que tem a função de dirigir os particulares para o bem comum, obedecerá a um critério de legalidade, e aí alguns chamam esta também de “justiça legal” (debitum legale).

21 Ratio justitiae in hoc consistit quod alteri reddatur quod ei debetur secundum aequalitatem 20 Como vimos a designação não é a originariamente dada por Aristóteles que a chamou de justiça geral no capítulo 1 do livro V da Ética a Nicômaco.

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Embora não se possa dizer que o bem comum de que falaram Aristóteles e Santo Tomás seja o mesmo que buscamos hoje 22, ainda parece atual a distinção, no conteúdo do bem comum, das três espécies de bens que este formulou: um primeiro, que é a essência do bem comum e consistente na “vida dignamente humana da população” (bonam vitam multitudinis); um segundo, que é instrumento desse bem comum e que consiste num conjunto de “bens materiais” necessários ao exercício das virtudes, ou em outras palavras, para a realização de uma vida digna pelo ser humano (corporalium honorum sufficientia quorum usus est necessarius ad actum virtutis); um terceiro, que é condição para a realização desse bem comum, i.é, a paz necessária para se ter o mínimo de unidade, segurança e tranquilidade para a sobrevivência da sociedade. Um problema já posto por Aristóteles diz respeito à igualdade como um dos elementos da justiça. Como vimos, na justiça social trata-se de uma igualdade proporcional em relação à função de cada um na vida social, e neste caso a autoridade (autoridade hoje é autoridade de órgão governamental, já que a coletividade a cada dia é chamada a participar mais das decisões do Estado) tem função de arquiteto da justiça. A igualdade proporcional diz respeito à necessidade de se tratar de forma desigual os desiguais a fim de a igualdade seja estabelecida, como se pode exigir, por exemplo, na distribuição dos serviços públicos para aqueles que mais necessitam, na indenização de um grupo de produtores proporcionalmente aos prejuízos sofridos por uma seca etc. 2.3.2. Quanto à justiça distributiva, dissemos em outro lugar que diz respeito àquela em que o Estado distribui direitos e obrigações para os cidadãos, numa igualdade que também é proporcional, visando a participação de seus membros no bem comum. Desta forma, orienta o Estado na arrecadação de receitas, no investimento social, na fixação de responsabilidades com a coisa pública etc. Por membros entende-se tanto os indivíduos como as instituições (empresa, associação, municípios e estados-membros, neste último caso quando participam da distribuição de bens da União Federal). 2.3.3. No que tange à justiça comutativa (do latim commutare: trocar), que por alguns também é chamada sinalagmática para atrelá-la a um contrato, dizemos ser aquela que se dá numa relação entre particulares onde se segue com precisão a igualdade; por particular aqui se entende também o Estado quando em uma relação contratual dessa natureza. O dever nessa justiça comutativa diz respeito a dar algo que já faz parte dos bens dos contratantes, como a saúde em um contrato de serviço médico, a propriedade num contrato de compra e venda etc, o que a difere totalmente da justiça distributiva onde se dá aos indivíduos aquilo que é comum.

22 Para os autores antigos, de uma forma quase que unânime, o interesse individual não tem muita relevância, e o mesmo só tem sentido quando pensado a nível de coletividade. O indivíduo passou a ocupar lugar de destaque foi realmente após o Humanismo, e sobretudo, após a revolução francesa.

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Como já se adiantou, a igualdade aqui é absoluta, vez que busca dar a cada um exatamente aquilo que lhe cabe, e por isto também alguns chamam esta justiça de corretiva pelo fato de que não obedecido esse princípio, o Judiciário é chamado a restabelecer essa igualdade 23. Por fim, não se deve resumir esta justiça à justiça dos contratos como querem alguns. Já Aristóteles fazia a distinção quando primeiro disse se tratar de relação entre particulares, depois ao afirmar que poderia ser voluntária (contratual) ou involuntária (não contratual), e aí tanto se daria num contrato de compra e venda onde houve vontade do comprador quando se comprometeu pagar, como também pode se dar numa indenização por ato ilícito que não depende da vontade do causador do dano. Essa idéia de levar às últimas conseqüências um contrato poderia parecer que todo contrato seria justo, e bem sabemos que isto não é verdade. Essa teoria de justiça contratual ou voluntária, fundada na "autonomia da vontade", advém do contratualismo, sobretudo em Rousseau e Kant que levaram às últimas conseqüências, vale dizer o homem é livre para estabelecer um contrato, e à medida que o fez não podemos considerá-lo injusto. Isto exige que sejam convocadas exigências objetivas de justiça a fim de que prevaleçam acima da vontade das partes, fazendo com que numa compra e venda, por exemplo, o preço justo não se confunda com preço combinado, tendo em vista que nessa combinação poderá ter prevalecido a vontade de alguém que na realidade seja mais forte. 2.4) Questão importante em relação à temátiva da justiça diz respeito à equidade. Com efeito, assim preleciona Aristóteles: "A justiça e a equidade são portanto a mesma coisa, embora a equidade seja melhor. O que cria o problema é o fato de o equitativo ser justo, mas não o justo segundo a lei, e sim um corretivo da justiça legal. A razão é que toda lei é de ordem geral, mas não é possível fazer uma afirmação universal que seja correta em relação a certos casos particulares (...) Com efeito, quando uma situação é indefinida a regra também tem de ser indefinida, como acontece com a régua de chumbo usada pelos construtores em Lesbos: a régua se adapta à forma da pedra e não é rígida, e o decreto se adapta aos fatos de maneira idêntica" 24. 2.4.1. A equidade (epieíkeia) é portanto, a justiça que vai além da lei escrita, já que existe uma lei maior (a Natural, como insiste Santo Tomás na Q. 58 de sua Summa) que supera a capacidade legislativa do homem, seja porque o legislador deixou passar despercebida alguma questão (e aí teríamos as lacunas), seja por sua própria vontade quando não podem prescrever tudo, prima pela generalidade e a abstração, traçando apenas os princípios gerais que a norma visa atingir 25. 2.4.2. Desta forma o aplicador da lei (o Juiz) no caso concreto há que atentar para a equidade a fim de que possa estabelecer a igualdade ditada pela 23 Observa-se a simbologia da mulher de olhos vendados segurando uma balança com a mão e tendo na outra uma espada. 24 Ética a Nicômaco, 137b. 25 Retórica, I, 1375b.

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razão humana (uma forma superior da natureza) ao legislador. O Juiz équo é na verdade aquele que ao aplicar a lei compreende a vontade do legislador na hora que criou a norma, vontade essa que há de ser sempre a realização da igualdade. Desta forma, quando o juiz em uma separação estabelece o dever de um dos cônjuges pagar ao outro pensão X, está a observar a situação financeira do alimentante e a necessidade do alimentado no momento em que decide o caso; seria verdadeiramente legal se assim permanecesse no caso de o alimentando aumentasse significativamente seu vencimento, mas não seria equo em razão da necessidade do alimentado. Da mesma forma, não seria adequado numa decisão consumerista onde as partes são evidentemente desiguais (fornecedor em detrimento do consumidor), sobretudo no que diz respeito à aquisição de provas, que o juiz seguisse à risca a obrigatoriedade da prova por parte do fornecedor. 2.4.3. Importa considerarmos mesmo a postura do ordenamento jurídico pátrio em relação à questão da equidade. Segundo disposição expressa do art. 127 do CPC, "o juiz só decidirá por equidade nos casos previstos em lei". Assim, está o juiz brasileiro autorizado a agir corretivamente em equidade da lei adjetiva (art. 20, § 4º e art. 1.109 do CPC) ou substantiva (artigos 1.040, IV e 1.456 do CC, art. 15 da Lei 5.478/68, artigos 7º e 51, V da Lei 8.078/91). Importa salientar ainda que no Direito do Trabalho a equidade consta expressamente como fonte do direito, enquanto não há sua permissão legal de aplicação no Direito Penal, salvo se para beneficiar o réu. 3. O DIREITO E SEU MÉTODO 3.1) Para meditarmos sobre a problemática do método jurídico, pensamos seguir alguns passos assim ordenados: Primeiros perguntaremos sobre o significado do método em geral no dia-a-dia da ciência, depois procuraremos o sentido do método especificamente no Direito, informaremos as propostas que historicamente vem sendo colocadas e depois procuraremos construir, na circunstância jurídica atual, uma que melhor corresponda os nossos anseios. 3.2) O método é sem dúvida uma realidade na vida das pessoas, quer estejam conscientes disto ou não. Com efeito, se a cozinheira não levasse em conta a preferência dos destinatários de seus pratos, o momento em que eles seriam procurados, a combinação dos temperos e as medidas de higiene, certamente seu trabalho seria um fracasso; da mesma forma o atleta que não seguisse regras determinadas ou que não se preparasse fisicamente não lograria qualquer êxito. Imaginemos desta forma um técnico que em seu laboratório fizesse combinações químicas estranhas àquelas que previamente se convencionou utilizar. Da mesma forma se dá no Direito onde seu profissional busca, no dia-a-dia de suas atividades, realizar esse direito, e a importância desse método para o direito é tamanha que dele se ocupa uma disciplina especial chamada Metodologia Jurídica, a qual é oferecida para aqueles que queiram se aprofundar na discussão. 3.3) A palavra metodologia em geral virá da junção de méthodos (aqui tomado no sentido de «caminho para o além de») e lógos (com o sentido de discurso, razão

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ou estudo). Neste caso, podemos dizer que metodologia seja um «estudo organizado para se alcançar um fim estabelecido». Para metodologia jurídica ainda teríamos que acrescentar sua especificidade que é a temática jurídica, i. é, será «o estudo organizado para realizar o direito», e esta percepção nos obriga a olhar para dentro da pauta do jurista, esse homem que constrói normas, executa essas normas ou propõe a execução das mesmas. Chamamos a atenção para o que coloca C. Neves acerca da escolha do método jurídico que cada profissional do direito há de escolher em sua empreitada jurídica: «Não se pode compreender hoje um qualquer modelo metódico jurídico sem refletirmos problemática e criticamente sobre a sua intencionalidade no quadro global do pensamento jurídico ...» 26. Desta forma, o discurso metodológico do jurídico se liga necessariamente aos demais setores do pensamento jurídico, visto que é instrumento de reflexão e realização do direito que está sendo pensado. Em vista disso, alguns verão esse método como algo de estético, outros como um sistematizador e aplicador de normas, ao passo que outros verão no método uma reflexão em torno do próprio direito a fim de torná-lo exequível e eficaz. 3.4) Postas estas considerações veremos como os juristas têm se ocupado da questão a fim de que façamos uma opção consciente em torno das diversas propostas oferecidas para se realizar o direito.

3.4.1. A busca da compreensão e da explicação do direito já é uma realidade entre os romanos27, os quais tentaram suprir a escassa legislação da época (a Lei das XII Tábuas que vinham do meado do século V a . C, a legislação do Baixo Império e outras fontes prescritivas). Com efeito, no período em que se afirma o ius romanum, o direito era o direito dos juristas (interpretatio prudentium), e não o direito dos legisladores que séculos depois viria a ser abraçado pelos países que seguiram religiosamente as lições iluministas (Montesquieu e Beccaria como exemplo da escola do Direito Natural de cunho racionalista e defensores da lei escrita e elaborada por instâncias distintas como garantia da segurança jurídica), nem o direito anglo-saxônico do sistema common law28. Assim, o ius ou a jurisprudentia se definiu como obra de alguns juristas romanos, particulares que embora não tendo um saber especializado, a origem aristocrática lhes conferia autoridade para emitirem as responsa ou sententia (opiniões ou pareceres) perante os casos concretos que lhes eram colocados pelos cidadãos ou no exercício de uma assessoria aos magistrados e juízes (consilium). A distinção entre ius e lex (o primeiro como objeto da Jurisprudência 29 e a segunda como tentativa de sua realização, como aliás já falamos anteriormente) nesse período é a nota caracterizadora da autonomia do jurídico em relação ao político e às forças

26 NEVES, A . Castanheira. Metodologia Jurídica: problemas fundamentais. Stvdia Ivridica 1. Coimbra Editora: Coimbra, 1993, p. 9. 27 NEVES, António Castanheira. Digesta: escritos acerca do Direito, do Pensamento Jurídico, da sua Metodologia e Outros. Coimbra: Coimbra Editora, 1995. Vol. 2, p. 290. 28 NEVES, António Castanheira. Op. Cit., p. 291. 29 Jurisprudência aqui nada tem a ver com o sentido atual que lhe é dado, vale dizer, como decisão reiterada dos tribunais acerca de uma questão. Entendia-se por Jurisprudentia que hoje denominamos Ciência do Direito.

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ideológicos vigentes. Foi decisiva para esse trabalho a recepção dos princípios ético-filosóficos gregos, tanto pelos primeiros pensadores romanos como pelos juristas propriamente ditos, a se falar por exemplo de Paulo, Gaio, Ulpiano, Papiniano e outros.

3.4.2. Diferente já foi no período medieval, apesar de ali se manterem os elementos fundamentais do método clássico. Nessa época a idéia de sociedade estava fortemente hierarquizada, tendo Deus como foco de irradiação, e esses dogmas foram impregnados pela escolástica no jurídico, cujo princípio da autoridade caracterizaria o que se chamou de interpretatio. Aqui, o Codigo Iuris Civilis (um coletânea dos textos de Justiniano na virada do séc. V e recuperada por Irnério no final do século XI), viria a se tornar para o direito o que a Bíblia era para a teologia. Neste caso, o conhecer se afasta de qualquer pretensão especulativa para centrar-se na interpretação da palavra daquela autoridade que proclamou o documento, daí a justificativa para a fama dos comentários de leis e doutrinas e que tinham prioridade no magistério medieval. Em um primeiro momento surge como uma exegese gramatical-filológica, consistente em esclarecer, mediante glosas, o sentido do texto (Escola dos Glosadores); em segundo momento aparece como uma extensão do sentido filológico do texto para buscar a intenção do mesmo, tendo em vista a necessidade de responder às novas exigências sociais não literalmente previstas (Escola dos Comentadores).

3.4.3. O que temos hoje como predominante no método jurídico é hernça de um percurso que começa com a proclamação da liberdade do homem em relação qualquer ordem transcendente e alheio à sua experiência (o Humanismo), e avança pela escola do Direito Natural de inclinação racional. Se a regra de conhecimento do direito ventilada pelo jusnaturalismo era a sua apreensão «arbitrária» junto a um todo misterioso, perfeito, acabado e imutável, não muito diferente é tal como se apresentou pela escola racionalista, vale dizer, como expressão da razão legislativa. A influência positivista que por ora se acentuou (e recusou qualquer outro direito que não pudesse ser comprovado empiricamente tal como se dava com a ciências naturais), ninguém ousaria mais perquirir o direito num conjunto de pareceres oriundos do trabalho fatigante de um grupo de consultores, nem se buscaria a opinião de autores consagrados (nas especulações metafísicas ou não), mas o direito estaria pronto para ser consumido por todos à medida que ia sendo codificado pelo soberano (o Estado)30. Em outras palavras, o direito passa a ser aquele que a razão humana detecta e comprova cientificamente (a racionalidade), e o seu conhecimento agora dar-se-ia por mera interpretação (silogisticamente), não restando ao juiz outro papel que não o de ser «a boca da lei». Não muito diferente é no sistema common law, já que diferentemente da jurisprudência

30 Aqui parece não haver muita relevância o fato da diversidade das duas grandes matrizes desse pensamento (francesa e alemã), já que embora a primeira se fundamenta na vontade do legislador e a segunda na razão histórica, os dois viriam a convergir na pressuposição de um direito já posto e agora assumido pelo Estado.

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romana do período clássico em que o direito era criado pelos juristas, aqui temos um direito jurisdicional de criação dos juizes.31

3.4.4. Uma vez que a pretensão de um corpo jurídico perfeito e acabado

alcança o seu apogeu com a Escola de Exegese na França no século XIX, ali mesmo e imediatamente começa a ruir tal pretensão. As primeiras objeções partiram das afirmações de que a «técnica» decisória não se dá puro e simplesmente pelo processo lógico-dedutivo, mas também por critérios valorativos e teleológicos do julgador; depois, que esse processo silogístico pretendido não partia da premissa oferecida (a norma), mas das próprias premissas construídas pelo julgador no momento de suas ponderações. De tudo isto restava afirmar que a decisão acaba por ser a interpretação não de um critério objetivo contido na norma, mas dos próprios critérios subjetivos da atividade judicativa. 3.4.5. Postas estas considerações preliminares, vejamos separadamente alguns dados de cada escola e suas respectivas propostas. a) A primeira que temos a considerar evidentemente a Escola da Exegese. Como é cediço, a Revolução Francesa consolida os princípios do jusnaturalismo racionalista dos séculos XVII e XVIII. Firmou-se desde então o projeto de substituir as legislações imperfeitas e arbitrariamente impostas pelo despotismo dos reis por uma lei racional, adequada e válida para todos os povos civilizados. O Código de Napoleão representava esse ideal: Feito por uma comissão de juristas presidida pelo Imperador, «continha o resumo da moral do mundo», a «moral imperecível», e o Direito Civil ali contido não somente servia ao povo francês, mas «era modelo para todas as nações do mundo», era «imortal». Com efeito, a Escola da Exegese se firmou em torno desse ideal codificador, tendo em Bugnet um dos principais expoentes, cujo fanatismo se resume numa única lição: Eu não sei Direito Civil; apenas ensino o Código de Napoleão. Exegese é então uma palavra que veio do grego e nos primeiros tempos do cristianismo significava interpretar literalmente as palavras do Espírito Santo. No contexto jurídico, notou-se um apego extremado dos juristas ao texto da lei, evoluindo para uma busca das fontes da lei e depois para uma interpretação sistemática da legislação. Desta forma, poder-se-ia dizer que uma decisão judicial significava subsumir os fatos concretos à norma geral através de uma operação lógico-dedutiva onde a lei é a premissa maior, o fato a premissa menor e a sentença a conclusão. b) Em meio a esse fetichismo legal surge Gény e sua Escola da Livre Investigação do Direito pela metade do século XIX, colocando em causa os postulados principais que sustentavam a escola exegética, tal como sejam: a impossibilidade da lei para acompanhar a evolução social e a duvidosa legitimidade do legislador em representar a «vontade» do povo. Já que muito mais

31 NEVES, António Castanheira. Op. Cit., p. 300.

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que racional «a lei é essencialmente a vontade do legislador», proclamou-se então uma busca da vontade desse legislador quando da feitura da norma para encontrar seu real sentido. Reconhece-se assim a lacunosidade da norma que deve ser preenchida por um processo de integração. Desta forma, «o direito deve ser procurado dentro do próprio direito». c) Postura diferente e radical viria a ser assumida simultaneamente na Alemanha pela Escola do Direito Livre. Para esta escola, o jurista ao pensar a norma deve agir como verdadeiro sociólogo, pois a vida é muito mais rica que a norma, podendo inclusive dela se afastar se a mesma ao ser aplicada se afastar dos ditames da justiça. Pode-se então falar que «todo direito deve ser a tentativa de um direito justo» (Stammler). O direito estatal está sempre em atraso em relação às exigências da vida, e o verdadeiro direito positivo é aquele querido pela sociedade, e é esse sentimento que representa o direito positivo fundamental. Desta forma, conclui-se que se o juiz não consegue captar a forma como o legislador solucionaria o caso concreto, deve apelar para o sentimento da sociedade, e se mesmo assim não encontrar a solução, está autorizado a julgar discricionariamente. d) Pela Escola Histórica temos que Savigny 32 se opôs veementemente à idéia de codificação na Alemanha sustentada por Thibaut, atrasando por quase um século a edição de um Código Civil para aquele país. Para ele, o direito não é nenhum produto racional da vontade legislativa, mas criação espontânea do «espírito do povo» revelado pelo costume. Desta forma, o costume era a fonte autêntica do direito, já que o legislador não faz outra coisa a não ser «formalizar aquilo que já está reconhecido pelo povo como direito». Pode-se dizer assim também que querer codificar é uma violência contra esse direito, já que constitui um óbice para sua natural evolução. Esse historicismo repercutiu em duas frentes bem definidas: Os que procuravam o direito na história do povo alemão (germanistas) e aqueles voltavam às fontes romanas (pandectistas). O fetichismo da lei foi substituído pelo fetichismo da história. e) Com a Jurisprudência dos Conceitos (pandectistas) se tentou uma conciliação entre exegetas e historicistas, e é por alguns considerada de concepção histórico-evolutiva. A lei é suporte oferecido pelo legislador como algo a mais para a solução do caso, ficando o intérprete obrigado a situar esse legislador no contexto histórico dos fatos. A novidade aqui seria o papel da Jurisprudência de captar os elementos conceituais que permaneciam apesar da história. f) Por outro lado a Jurisprudência Analítica se definiu como outra tentativa de conciliara exegese e historicismo, com particular interesse para o mundo Common Law. Com efeito, John Austin critica o casuísmo do sistema Common Law,

32 Sabe-se que embora Savigni seja o principal expoente do historicismo, tais idéias remontarm de outros autores como Vico, Montesquieu, Hegel , dentre outros.

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recomendando a adoção de processos lógico-analíticos na interpretação do direito costumeiro. Para esse autor, deveriam ser separadas as preocupações entre direito vigente e a Filosofia do Direito 33. Como essa orientação por si só levaria o direito a um legalismo despropositado, haveria a necessidade do legislador se orientar por critérios de utilidade (Bentham). g) A Jurisprudência Teleológica por sua vez põe em relevo «o fim do Direito» («o Direito é a ciência dos fins»), tendo em Jhering um dos seus principais representantes. Jhering, tendo se afastado da Jurisprudência dos Conceitos, vem nesta segunda fase falar de um direito como produto da história, mas não produção de um processo natural como supunha Savigni, mas como resultado de uma conquista da «luta pelo direito». Essa luta se dá, pois, com vista a um fim: Garantir as condições de existência da sociedade. Descobrir esses fins significa o verdadeiro sentido da ciência jurídica. O critério para julgamento das leis não é verdade, mas um critério relativo definido em razão dos fins que o direito visa no caso concreto. h) A escola anterior serviu de orientação para a Jurisprudência dos Interesses. Preocupou-se em saber o que acontecia no momento em que o juiz julgava um caso concreto. Definiu que o papel desse julgador é colaborar com a manutenção da ordem jurídica vigente para que os ideais dessa ordem se concretizem. Reconheceu ainda que as normas jurídicas (interesses jurídicos) estão sempre em conflito com os interesses da vida, sendo papel da ciência jurídica conciliar esses interesses antagônicos. Desta forma, caberia ao juiz ajustar esses interesses como o legislador o faria se vivenciasse aquele momento. i) É sob os postulados dogmáticos de algumas das escolas anteriores que Kelsen, na virada do século XX, vem construir sua Teoria Pura do Direito. Com efeito, seu trabalho é uma tentativa de retomar o idéia de uma ciência jurídica desvinculada da Filosofia, da Moral, da Sociologia etc. O Direito basta-se a si mesmo e deve ser compreendido apenas numa relação de formalidade, vale dizer, basta ao direito ter sido elaborado conforme uma hierarquia normativa onde a Constituição ocupa lugar privilegiado, desnecessário portanto perguntar sobre o conteúdo desse direito. Pode-se falar no Direito como um todo «sistêmico», buscado simplesmente por uma atitude teorético-normativa. Impende ressaltar que fenômenos históricos como o nazi-facismo e os totalitarismos (talvez injustamente identificados com Kelsen), assim como o agigantamento do Estado burocrático e suas contradições liberais iriam, no período pós-guerras, implicar um novo cenário no universo do pensamento jurídico metodológico, e que mais à frente mostraremos as raízes mesmo que remotas da escola brasileira sobre a qual tencionamos falar. Para o momento, resta observar que parece prevalecer hoje uma certa prerrogativa do legislador para declarar o direito, mas não mais a sua exclusividade. E a isso soma-se mais a reivindicada pluralidade jurídica de que

33 Diz-se por isso que Austin é o principal precursor de Kelsen.

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falaremos adiante, i. é, a tese de que o Direito não teria mais no Estado, através de seu órgão legiferante, a exclusividade de ditar esse direito.

3.4.6. Feitas estas sucintas considerações acerca de algumas questões do método na realização do direito, chamamos a atenção para a atual crise de «autonomia» e de «racionalidade» que esse Direito enfrenta, bem como para as implicações metodológicas que isso suscita. De acordo com as lições de A . Castanheira Neves 34, há hoje três modelos em causa na busca de se realizar o direito: o Normativismo, o Funcionalismo e o Jurisprudencialismo. a) Sobre o Normativismo Jurídico, do monismo estatal ao modo kelseniano e sua pretensão de resumir o direito à norma escrita (num eterno discurso da segurança jurídica e consequentemente do indivíduo, (indivíduo este que é mesmo a perspectiva desta corrente), temos falado ao examinar as questões do método e a ela retornaremos quando falarmos das várias escolas integrantes do modelo funcionalista.

c) O Jurisprudencialismo coloca-se como uma segunda tentativa de ver o Direito (e a primeira das alternativas que trataremos), que sem abstrair no todo da norma, impõe-lhe limites a ser definido e valorado na prática judicativa. Posto que a tecnificação do mundo e da pessoa reduziu o homem a simples indivíduo (assim como o projeto socialista que o identificou com a coletividade), esta corrente busca partir do homem-pessoa, com todos os requisitos ético-valorativos, numa aludida dignidade absoluta de homem que não comprometa as implicações comunitárias que essa dignidade implica. Numa palavra, o homem é sujeito de direitos e também de obrigações. Em termos normativos, os valores da norma estão acima da racionalidade, assim como sua validade (exigida pelo normativismo apenas pelo preenchimento de critérios formais da atividade legislativa) acima da eficiência (a propósito do funcionalismo , que despreocupado com os valores contidos na norma, prioriza os efeitos aos quais a mesma está destinada). A validade dessas normas pode inclusive ser questionada em face dos valores e princípios de direito. Invocando a presunção de justiça da decisão anterior, cabe à parte o ônus da argumentação contrária, visto que a mesma é sempre discutível.35 Na tentativa de estabilizar a jurisprudência (e aí é igualmente importante a doutrina como auto-contradição do direito e impulsionadora de seu desenvolvimento natural), impõe-se como uma corrente de ponderação progressista, já que reconhecendo o Direito como algo problemático e sujeito à retificação (e aí nega o normativismo), refuta igualmente uma atitude revolucionária capaz de colocar em perigo uma valoração normativa historicamente construída (como o faria o funcionalismo).

34 Cfr. Teoria do Direito: Lições proferidas no ano lectivo de 1998/1999. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1998. 35 Importa esclarecer que a visão jurisprudencialista do Direito nada tem a ver com o sistema Common Law de origem anglo-saxônica, visto que mesmo este poderá se prestar a uma leitura normativa dos costumes.

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d) Quanto ao Funcionalismo Jurídico, temos a considerar que se pode falar em três segmentos, todos eles negando a supremacia do indivíduo e invocando a sociedade como o alvo principal a ser encenado no palco jurídico: o funcionalismo sistêmico, o funcionalismo social e o funcionalismo político.

d.1. Ao falar de funcionalismo sistêmico estamos a pensar o direito

como um subsistema dentro do sistema social, que numa operação binária de lícito/ilícito, legal/ilegal, funciona como um moderador das pretensões dos indivíduos. Consequentemente, não reivindica nenhuma regulação material da sociedade. Do ponto de vista normativo, nega o normativismo quando substitui o paradigma da aplicação pelo da decisão concreta, vale dizer, é uma racionalidade sim, mas estratégica e que pode inclusive optar por formas alternativas de aplicação tendo em vista a melhor realização dos objetivos da norma. Visto assim o direito como um planificador social, correta seria a decisão que mais adequasse a essa função, sendo irrelevante questões como valores sociais o regras formais. É a idéia do juiz que livremente intervém para criar a soluções exigidas pela sociedade.

d. 2. O funcionalismo social tem duas leituras básicas: uma primeira

de caráter tecnológico onde são negados dois dos pressupostos básicos do funcionalismo político, vale dizer, o compromisso ideológico e a militância política aparecem sob o signo da neutralidade tecnológica, enquanto a transformação revolucionária é substituída pela visão estratégica, o que lhes permite pensar o direito como uma verdadeira «engenharia social»; numa segunda leitura esse funcionalismo aparece sob o batismo de econômico (Economic Analysis of Law), eis que apregoa uma «análise econômica do direito», consistente em pensar o direito através de uma relação de custo-benefício com cálculos nem sempre fáceis de serem compreendidos. Numa tentativa de superação do monstro utilitário de Bentham, essa utilidade é pensada apenas do ponto de vista econômico; é uma «inteligência de interesses» onde o jurista antes de agir deve sempre considerar os «custos de transação» e buscar sempre uma «maximização de benefícios» com um «mínimo de custos», e olvidando quaisquer outras questões como critérios de justiça ou de educação, contentam que a solução seja economicamente viável.

d. 3. No terceiro caso, no funcionalismo político, o direito é pensado

como um instrumento da política, requerendo uma expressa politização da prática jurídica. Essa exigência é justificada pela alegação de que o atual Estado social de direito encontra-se em transposição da sociedade individualístico-liberal para a sociedade pluralístico-social, numa pesada crítica à realidade social atual sob a perspectiva neomarxista. Nesta linha se enquadram a Teoria Crítica do Direito quando ergue a bandeira da filosofia política da Escola de Frankfurt, o Critical Legal Studies Moviment e sua escola progressista e o Uso Alternativo do Direito com os seus postulados metodológicos assumidamente transformadores, escola esta de onde se extraíram os principais elementos para o Direito Alternativo Brasileiro.

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3.4.7. Postas estas considerações acerca do problema atual do método jurídico, algumas palavras são necessárias sobre uma escola brasileira que tem suscitado muito discussão em torno de seus postulados: falamos do Direito Alternativo Brasileiro. Primeiramente falaremos da influência alienígena que a escola pátria recebeu; depois, comentaremos brevemente seu histórico, características e exigências. a) A fonte de inspiração que nos parece principal para a escola brasileira é a da escola italiana do Uso Alternativo do Direito. Para os italianos dessa corrente, o jurista deve partir do princípio de existe um sistema jurídico já estabilizado em torno da figura do Estado. Criticam veementemente a dogmática do século XIX e reivindica uma postura metodológica transformadora por parte do jurista no momento concreto da realização da justiça. Para isto, devemos aproveitar das antinomias do sistema jurídico vigente para proteger os mais necessitados. A revolução jurídica defendida é uma revolução pelas vias do Estado 36.

Para Lédio Rosa de Andrade é equívoca a opinião de muitos juristas brasileiros que partem de uma visão exclusivamente judicativa do movimento italiano no sentido de usar da lei para atender aos interesses da classe mais pobre, que para esse autor se assim o fosse melhor seria chamar tal escola de uso alternativo da lei.37 Ainda para Lédio, malgrado o pioneirismo dos magistrados a participação de outros profissionais, sobretudo professores, foi essencial para a afirmação daquele movimento, e a luta de todos aqueles juristas iria além da simples benfazeja hermenêutica, lutando assim por todos os meios pela transformação das instituições jurídicas e construir uma nova sociedade. Com estes ensinamentos, o alternativista do refuta a condição meramente reformadora da escola italiana, inclusive pelas origens históricas da magistratura democrática.

b) Outra escola que serviu de referencial para o Direito Alternativo Brasileiro é a Magistratura Espanhola. O privilégio das traduções das idéias italianas desde o início dos anos 70 fez com que ainda no tempo da ditadura de Franco os juizes passassem a adotar uma postura combativa frente aos problemas políticos e econômicos daquele país 38. Foram de imediato e concretamente enfrentadas as exigências de respeito por parte do Estado das garantias de tratamento

36 Difere-se desta forma da estratégia brasileira, que não somente assume essa condição política transformadora da realidade aproveitando-se do que o Estado já oferece, mas reconhece a revolução por outras vias alternativas e socialmente impostas pelos grupos que lutam por essa transformação (os movimentos sociais, ou mais propriamente os movimentos populares em suas lutas por terra, por casa, emprego, escola etc). É o que temos visto algures sobre a problemática do pluralismo jurídico. 37 Op. Cit., p. 238 38 Observa-se que dessa forma os magistrados espanhóis saíram em vantagem em relação aos brasileiros que só tiveram contatos com tais ideias muito tempo depois, haja vista que a falta de traduções permitiu que as poucas obras tornasse sua circulação restrita entre os intelectuais, e mesmo assim quando o movimento estava muito adiantado na Europa.

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processuais e de independência do Poder Judiciário. A convocação aos juizes foi então para a interpretação benéfica da lei em prol da justiça social 39.

Em termos de estrutura jurídica, parece não reclamar uma revolução. Segundo Rosa de Andrade, a escola espanhola nunca assumiu uma postura revolucionária em relação ao Direito nem buscou a superação da social democracia e a construção de uma nova sociedade. Sua atenção está voltada para a defesa das garantias democráticas assumidas pela Constituição para evitar qualquer retrocesso 40. Para aquele autor, é compreensível que nos países europeus onde se manifesta um ascendente retorno das forças conservadoras ao poder, a magistratura italiana e espanhola estejam preocupadas com a garantia das conquistas do Estado do Bem-Estar. Ainda assevera que essa postura seria inadequada para o Brasil que nem sequer alcançou esse estado, residindo talvez nisto a principal diferença entre a escola brasileira para com as duas europeias aqui consideradas.

c) Não se pode olvidar no entanto os pontos comuns existentes entre esses três movimentos vislumbrados já nas suas origens, i. é, a participação e a postura ideológica de seus iniciadores em um determinado momento histórico41. Ocorre que em Itália os conflitos sociais de 1968/69, impulsionados pela desilusão da expansão econômica do período pós-guerras e a mudança tática das forças de esquerda (a revolução armada substituída pela guerra de posição) no sentido de encontrar um consenso para a crise, idéias essas ventiladas também dentro do Poder Judiciário. Ora, essa origem se difere na realidade brasileira, pois enquanto a Itália estava livre de Mussolini desde 1945, o Brasil era assombrado pelos fantasmas militares (que durariam até 1984) e incapacitava do Judiciário de responder aos conflitos sociais crescentes, cujas respostas isoladas somente seriam vencidas após um momento de euforia da abertura democrática. Diferença também há entre a escola italiana e a espanhola cuja ditadura franquista se estenderia até 1975 e cercaria o Judiciário com toda sorte de perseguição, não obstante a ascensão das organizações dos magistrados que dicididamente se colocavam em favor daqueles que se sentiam alijados das glórias econômicas usufruídas pelos irmãos europeus.

d) Os motivos históricos que impulsionaram o surgimento do Direito Alternativo Brasileiro podem assim ser resumidos 42. A condição política e econômica da América Latina que coloca em dúvida a validade do projeto econômico liberal parece constituir o pano de fundo do discurso alternativista 39 No Brasil, não obstante os pedidos públicos de alguns de seus pares, os magistrados brasileiros parece não terem sofrido nenhuma sanção de suas hierarquias. 40 Op. Cit., p. 296. 41 Observa-se apenas as circunstâncias profissionais desses magistrados, pois enquanto no Brasil há uma única associação prevista em lei e que congrega seus membros, teve até bem pouco tempo caráter meramente recreativo, enquanto em Itália e Espanha a liberdade associativa faz com que existam várias entidades que se forma inclusive por questões ideológicas. 42 Para outras informações sobre o movimento do Direito Alternativo Brasileiro, ver nossa bibliografia indicada no trabalho O sentido atual da «autonomia» do direito e as novas exigências do seu ensino: Uma reflexão à luz do Direito Alternativo Brasileiro, elaborado por ocasião de nossos estudos de mestrado pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra/Portugal.

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brasileiro, discurso esse partidário da opinião de que qualquer análise do Direito que não leve em conta as questões reais onde estão inseridos os sujeitos de direito seria mera ficção e consequentemente inútil 43. A neutralidade política pretendida pelo sistema liberal-iluninista é desde já colocada em causa. Para os alternativistas brasileiros, essa «neutralidade» já seria em si uma opção política pela manutenção do status quo. E vai além disso: nega ao Direito o estatuto de ciência para encará-lo como uma simples retórica que busca convencer o cidadão do bom uso do poder e da violência organizada. Com base nisto, recusa-se em alguns autores o estudo filosófico do Direito ou a pretensão de se construir uma teoria jurídica, contentando-se em dar um sentido social para esse Direito.44

Descontentes com a falácia normativista, com a ausência de respostas para os problemas que se avolumavam ante o crescimento da população, com o consequente desprestígio do Poder Judiciário, o surgimento de novos sujeitos de direito que o modelo «oficial» não estava preparado para interpretar (diga-se os agentes coletivos previstos na ação popular, no mandado de segurança coletivo e a ação civil pública), assim como em relação à inadequação de outras teorias jurídicas para a realidade brasileira, foi proposto um profundo reestudo da prática judicativa. Nesse contexto, nasceu a escola brasileira que não apenas foi fruto de especulações acadêmicas, mas brotou mesmo da angústia do próprio Poder Judiciário ao ser convocado para responder a essa realidade.

O Direito Alternativo diz-se Ter sido lançado no I Encontro Internacional de Direito Alternativo realizado em Santa Catarina em setembro de 1991, impulsionado pelas pesadas críticas que os alguns magistrados da região Sul do Brasil vinham recebendo da imprensa em razão do «desprezo» pela lei, críticas essas que acabaram por mobilizar outros juizes brasileiros em torno da questão.

Do ponto de vista político e metodológico, a «neutralidade» política vigente entre os magistrados, sobretudo no período da ditadura militar, foi substituída pela opção ideológica de orientação socialista (condição ideológica expressa hoje negada por autores como Lédio Rosa de Andrade 45 para quem o movimento não tem uma ideologia, mas pontos teóricos comuns, como a não aceitação do capitalismo como modelo econômico, o combate ao liberalismo burguês como sistema sociopolítico, combate à miséria da maioria da população, luta pela democracia como concretizadora das liberdades individuais e igualdade de oportunidades, bem como a simpatia pela teoria crítica do Direito), implementada pela recusa ao culto dogmático da norma e da vinculação obrigatória, elegendo a crítica exegética para desmontar a falsa neutralidade política e ideológica do

43 ANDRADE. Lédio Rosa de. Op. cit., p. 19. 44 Esta é a posição de Lédio Rosa de Andrade na obra citada, p. 20. Não estamos certo de ser a posição de consenso dentro dessa escola, já que outros autores, dentre eles Antônio Carlos Wolkmer e Luiz Fernando Coelho têm estudado com uma certa profundidade o assunto, ficando afastada, em princípio a perspectiva «empirista» da escola brasileira. 45 www.tj.sc.gov.br/sejur/doutrina/direito alternativo.htm

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jurídico, tudo isso fortalecido pela integridade de conduta e pela postura profissional atuante.

Como negar o normativismo não seria necessariamente abraçar as especulações metafísicas do jusnaturalismo, a escola brasileira passou a adotar o que um dos teóricos do movimento, Amilton Bueno de Carvalho, chamaria de «jusnaturalismo de caminhada» (que constituía numa visão utópica do direito, apregoado pelo jusnaturalismo e reconhecido pela lei, devendo ser encarada positivamente sempre à luz da evolução histórica) e que Lédio Rosa de Andrade, chamava de «positivismo de combate» e hoje chama de «positivação combativa».

Em síntese, são as principais características identificadoras da escola brasileira: d.1) aplicação de várias normas de conteúdo social que são esquecidas na maioria das vezes no dia-a-dia da função jurídica; d.2) prática hermenêutica que interpreta extensivamente a norma que beneficia os menos favorecidas e restritivamente as que privilegiam as classes mais abastadas, sempre invocados os princípios sociais contidos na Constituição Federal; d.3) o reconhecimento, não obstante as divergências dentro do movimento, de um Pluralismo Jurídico 46, vale dizer, eleva à condição de norma legal o «direito achado na rua», o direito dos «Sem Terra», dos «Sem Teto», das Comunidades Indígenas etc., todos no sentido de dar eficácia a uma prática emergente da população e válida socialmente, porém não reconhecida oficialmente, cabendo ao julgador reconhecê-la no caso concreto.

Hoje, a escola alternativista brasileira congrega não somente uma vasta gama de magistrados na diversidade de foros e instâncias, mas pode-se dizer que já seja uma escola de juristas, haja vista reunir outros profissionais do direito como professores, alunos, Promotores de Justiça e advogados. e) Resta-nos de momento apenas tecer algumas críticas subsidiárias à análise desse movimento. Salta aos olhos que o Direito Alternativo Brasileiro se situa numa ala mais revolucionária em relação às duas escolas anteriormente lembradas. Impende ressaltar que não obstante a ação intelectual de prestigiados estudos de autores de renome como Lédio Rosa de Andrade, Luiz Fernando Coelho, Antônio Carlos Wolkmer, Hamilton Bueno de Castro, José Eduardo Faria e tantos outros, não se pode falar ainda em uma teoria do Direito Alternativo, até porque como ditos alhures, há quem negue essa pretensão.

A possibilidade de uma decisão judicial contra a lei parece ser o ponto mais vulnerável do calcanhar de Aquiles e do qual a escola brasileira tem procurado se resguardar. Tal possibilidade não será tão censurável se considerarmos o estado obsoleto de nossas legislações; o problema está na forma como isso será feito, já que corremos o risco de fugir da injustiça da norma e cair na arbitrariedade do juiz

46 Observa-se que este é dos pontos mais polêmicos a serem enfrentado pelo Direito Alternativo, mormente tratar-se de uma questão que desmonta séculos de teoria jurídica centrada na idéia do Estado como possuidor do privilégio de elaborar e aplicar a norma, e ainda porque negada a necessidade de se construir uma «teoria» para o uso alternativo do direito.

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(será que esse direito de decidir contra a lei também seria admitido aos juizes que tomam o partido contrário aos pobres?), embora essa possibilidade seja refutada pelos expoentes da escola ao argumento de que o duplo grau de jurisdição impede que isso aconteça.

Luiz Fernando Coelho é um dos autores que ao invés de acentuar uma revolução interna no direito, reivindica uma ação mais alargada dos atuais movimentos sociais para ultrapassarem os limites do corporativismo e do reformismo para se transformarem em efetivas forças de pressão dentro do Estado.

Com efeito, não se pode negar o papel social dos juizes, visto que têm um relevante papel de «críticos» do direito idealizado a fim de que o excesso de pretensões de uns impossibilite a existência digna de outros. Mas mais que um que um retirar dos ricos para dar aos pobres (o Robin Wood do Direito) como querem alguns, assim como um agente neutro e «pacificador» dos conflitos entre os que têm muito e os que têm pouco (ou nada), o Direito há que ser algo mais. Não parece crível que o Direito seja nem que assim possa ser pensado, ou seja, ao nível do simples nivelamento social ou apasiguador das diferenças.

Ademais, se o Direito se restringir à ação corretiva das mazelas políticas e sociais, problemas se levantarão quanto ao seu sentido, à sua duração e à sua própria autonomia. Qual seria verdadeiramente sua diferença em relação à Sociologia, à Economia e à Política? Como afastar a pretensão contrária de esse direito ser invocado exatamente em favor das classes economicamente privilegiadas? Igualmente, incerto seria também o futuro do Direito, ou seria certo pela previsão de seu fim, quando a propósito de Marx se corrigissem as injustiças sociais. Nem se fala, ainda, da possibilidade de consequências perniciosas que uma visão assim extremada nos levaria para outras frentes judiciárias com fins distintos dos sociais e econômicos, já que negada uma preocupação doutrinária ou a busca de um sentido mais amplo para o direito.

Talvez essas respostas não sejam mesmo passíveis de resposta por qualquer escola de direito, e não o seria igualmente exigível à escola brasileira a pretexto de seu demérito. Talvez tenham mesmo razão, invocando o existencialismo filosófico, que «o direito não é, vai sendo».

Por certo deve o Direito acima de tudo ser um humanizador das relações sociais, interferindo positivamente na construção de uma ecologia planetária onde o homem se reconheça não somente como parceiro de outros homens, mas também como ser finito e dependente da vida e da harmonia desse planeta, de uma comunidade de irmãos na diversidade da vida. Se o Direito se resumisse ao político, estaria justificada sua manipulação por aqueles que em um certo momento histórico ascendesse ao poder e, faltando para com o respeito para com os demais, impusesse respeito à nova ordem constituída, e aí incorreríamos nos mesmos riscos da corrente legal-estatista contra quem tanto se protesta.

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4. HERMENÊUTICA E INTERPRETAÇÃO JURÍDICA 47 4.1) Antes de adentrarmos na questão, pensamos ser úteis algumas palavras sobre a opção que se há de fazer por um tipo de conhecimento na hora que o jurista sai à caça do direito: se se adota uma postura dogmática ou crítica em relação ao tema que lhe é colocado. Servimo-nos do pontifício jurídico do Prof. Castanheira Neves em sua obra de teoria do direito indicada no programa deste semestre para contrapor duas ordens de conhecimento: o conhecimento dogmático e o conhecimento zetético. Em torno do primeiro, teríamos um pensamento de posições, um pensamento fixo e externo em relação à questão jurídica colocada, sustentando-se pelo culto a um sistema de valores construídos; ter-se-ia princípios e soluções previamente tidos como adequados à solução da lide (paradigma da contemplação ou da interpretação). No sentido oposto vem o segundo, que assumindo um discurso hipotético (antes de tudo a questão aparece como provável), impõe a obrigação de comprovar racionalmente uma tese para que a mesma seja validada (paradigma da investigação). Numa palavra, o horizonte do dogmático é a interpretação do dever-ser regulativo, enquanto o do zetético é a investigação dos problemas. Assim, a opção por um dos dois posicionamentos é que vai definir a postura do jurista diante do poder absoluto da propriedade definido no art. 524 e as novas exigências de sua adequação elencados no inciso XXIII da CF/88; pela mesma forma uma das vias teria que ser eleita pelo jurista quando, ao enfrentar a questão atual da união civil de pessoas do mesmo sexo, colocar-se diante das disposições civilísticas do Direito de Família consubstanciadas no art. 226 da CF/88 e as garantias do art. 5º, caput, da Magna Carta. 4.2) Algumas distinções iniciais se fazem necessárias. Ao falarmos em Hermenêutica estamos a falar de uma teoria ou de uma ciência que tem por objetivo estudar as formas de sistematização dos processos para alcançar o sentido e a extensão da norma, i.é, estudamos a técnica de interpretar; ao falarmos de interpretação estamos nos referindo à prática ou à técnica propriamente dita de interpretar. No primeiro caso temos o suporte teórico para o trabalho do segundo em sua incansável tarefa de revelar o sentido e o campo de atuação da norma. Impende também apontar a diferença entre interpretar e aplicar o direito, já que neste último caso, lançando mão de uma interpretação prévia, submetemos a norma geral ao fato concreto através de uma decisão. Igualmente não se pode confundir nada disso com integração, pois como veremos adiante, trata-se de uma solução alternativa quando da inexistência de uma norma que satisfaça ao caso concreto.

47 Como os demais temas tratados a nível de Introdução ao Direito, as palavras seguintes não pretendem nem podem usurpar o terreno da Filosofia Jurídica nem da própria Hermenêutica Jurídica; longe disso, visam apenas nortear algumas informações talvez úteis para aqueles que se interessarem em explorar esse fascinante terreno da busca e aplicação do sentido do direito.

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4.3) Se remetemos a um passado longínquo da tradição "jurídica", chegaremos ao real sentido da palavra Hermenêutica que era mesmo a explicação da vontade dos deuses, passando para o Cristianismo com idêntico papel de revelar aos fiéis a vontade do Pai. A palavra "fiéis" por si só já revela o caráter dogmático da hermenêutica primitiva, posição que foi literalmente assumida pela Escola de Exegese ( a norma é onipotente), assim como foi questionada pela Livre Investigação do Direito (o sentido da norma deve ser buscado), pela Escola do Direito Livre (o sentido da norma é sempre a realização da justiça) e pela Escola Histórica (o sentido da norma se encontra na consciência do povo). Essa dogmática foi reassumida por Kelsen em sua pretensa pureza metodológica e novamente entrou em crise como vimos nos estudos anteriores acerca da Metodologia Jurídica, sendo quase que pacífico hoje, a propósito do que no põe Coelho, que a hermenêutica não se refere somente à lei em si, mas ao seu conteúdo, i.é, ao direito contido na lei 48. 4.4) Cumpre-nos agora explorarmos um pouco o problema atual da Interpretação Jurídica. A preocupação pelo sentido das leis expresso em suas palavras é algo já mito antigo, como se vê de Celso: "saber as leis não é conhecer-lhes as palavras, mas sim, conhecer a sua força e o seu poder". Coelho refuta o caráter objetivo da interpretação e afirma que não é o sentido da norma que se põe sobre o jurista, mas é o jurista que influenciado por seus valores, suas ideologias, estabelece o sentido da norma 49. A olhar por esse prisma, o jurista seria a única fonte autêntica do direito. 4.4.1. Falamos às vezes em interpretação restritiva quando a mesma se resume ao disposto claramente na norma (art. 155 do CP) ou em interpretação extensiva quando o intérprete avança um pouco a disposição legal (art. 399 do CC). Neste último caso, que não se confunde com analogia por não constituir uma lacuna, tem-se que para as mesmas razões devem ser dados iguais direitos (ubi eadem ratio, ibi eadem iuris dispositio), embora tal interpretação há que ser feita com cautela para não se cometer injustiças, tratando casos apenas semelhantes como se fossem verdadeiramente iguais (minima differentia facti maximas inducit consequentias iuris). Ademais, fala-se em interpretação autêntica quando uma norma cumpre o papel de interpretar a outra (§§ 1º - 3º do art. 6º Da LICC), e neste caso também falamos em interpretação legislativa em oposição à interpretação jurídica e à interpretação administrativa. 4.4.2. Atentamos agora para o fato de que uma interpretação pode se dar por processos diferentes de realização: a) O processo literal ou filológico está ligado à gramaticalidade do texto da norma, e nele o jurista persegue o sentido técnico das palavras ali presentes. Sem olvidar da importância assumida pela consciência do sentido das palavras da lei, é preciso ter um pouco de cuidado também ao adotar esse método, primeiro porque nem sempre o legislador encontra as palavras certas para aquilo que quer

48 COELHO, Luiz Fernando. Lógica Jurídica e Interpretação das Leis. Rio de Janeiro: Forense, 1991, p. 178. 49 Ob. Cit, p. 182.

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expressar, sem contar que muitas das vezes a técnica redacional pode não ser das melhores. b) O processo teleológico, ao contrário, sai em busca não do sentido das palavras contidas na norma, mas sim da finalidade e dos valores que tal norma visa. Esses fins, que nem sempre estão explícitos na norma, devem ser procurados pelo jurista, como aliás exige o art. 5º da LICC. c) Já o processo histórico ou histórico-evolutivo busca identificar os sentimentos e os interesses presentes no momento da feitura da norma. Dessa forma, pergunta-se qual seria a disposição do legislador se estivesse presente no momento da interpretação da norma e não no tempo que ela foi criada. Como recurso, o intérprete lança mão de todos os documentos que de uma certa forma ajudem a compreender o momento histórico em que a norma foi editada (exposição de motivos, doutrinas, artigos de jornais etc), e assim busca conciliar o princípio da legalidade com a transformação social 50. d) Ao usar do processo lógico ou racional o jurista opera a chamada ratio legis buscando o sentido da norma utilizando-se apenas dos recursos da lógica formal ou silogística: uma cláusula do contrato de promessa de compra e venda estabeleceu que a não quitação de uma das parcelas implicaria em rescisão do contrato; se o comprador infringiu essa cláusula, logo o contrato deverá ser rescindido. As críticas levantadas a esse método são aquelas mesmas que vimos ao tratarmos da Escola da Exegese: o jurista, por mais racional que seja, nunca consegue julgar com a precisão matemática que esse método interpretativo propõe; seus sentimentos, seus valores, sua ideologia, sempre estarão influenciando a decisão. e) Através do método sociológico o intérprete estará atento é aos efeitos sociais ou às consequências da norma, consequências essas que podem ser inclusive de ordem econômica ou política. Neste sentido, o fator predominante não está nos fins da norma, valores ou qualquer outra questão de ordem sentimental. Pensando assim, uma norma que visasse por exemplo (e olha que isto já ocorreu há pouco tempo em nosso país), cobrar contribuição dos aposentados, além de repercutir mau politicamente ainda traria consequências danosas para muitos que já recebem parcos vencimentos. f) Por fim, chamamos a atenção para outro processo interpretativo que é o sistemático ou orgânico. Através desse processo, o intérprete terá uma visão estrutural do ordenamento, afastando qualquer interpretação isolada da norma. Nessa operação estará presente uma visão hierárquica das normas, não somente tendo a Constituição Federal como principal referencial, mas utilizando, se necessário for, de outros recursos como por exemplo a os princípios de direito, a Declaração Universal dos Direitos Humanos etc. Através desse processo é que será possível dizer que a despeito do art. 240 do CC que dá à mulher apenas um papel secundário na família, à luz do art. 5º, caput, da CF/88 tudo isso não tem mais o menor sentido, uma vez que a mulher foi constitucionalmente elevada à dignidade estatutária de qualquer pessoa.

50 HERKENHOFF, João Baptista. Como aplicar o direito: (à luz de uma perspectiva axiológica, fenomenológica e sociológico-política). 6ª ed. Rio de JANEIRO: Forense, 1999, p. 23.

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4.4.3. Como temos visto em outras ocasiões, ao interpretar a norma é comum se encontre casos que não estejam expressamente previstos (lacunas) ou contradições (antinomias). Quanto às lacunas já oferecemos em outros momentos as informações mais importantes, vale dizer, o intérprete poderá lançar mão de outros recursos para solucionar a questão. Chamamos a tenção para o fato de que em nosso ordenamento jurídico, a teor do disposto no art. 4º da LICC, o juiz está expressamente proibido de não julgar, podendo lançar mão da analogia, dos costumes e dos princípios gerais de direito. A isso damos o nome de integração, e obviamente outros recursos podem ser utilizados para se encontrar o direito: a doutrina, a jurisprudência, a equidade etc. Pensamos ser válido ainda um brocardo jurídico antigo que sobrepunha o direito à norma na hora de interpretar: "dê-me o fato e eu te darei o direito". Diante do que temos visto, só faz sentido mesmo falar em lacunas da lei, e não do ordenamento jurídico, já que este comporta as outras fontes de direito invocadas na integração 51. Mas as lacunas da lei podem se dar tanto pela ausência absoluta de disposição legal sobre o assunto (falta de previsão legal de casamento entre pessoas do mesmo sexo) ou pela disposição de forma vaga ("mulher honesta", bom pai de família, bom funcionário). Paulo Nader invoca Cossio para falar nas cinco principais teorias acerca das lacunas: que a evolução social acaba por deixar espaços vazios na legislação (teoria do realismo ingênuo); que o não proibido é automática e juridicamente permitido (teoria do empirismo científico); que as lacunas se dão apenas a nível de lei, não de ordenamento (teoria eclética); que embora haja lacunas, é necessário concluir, do ponto de vista da prática jurídica, que o direito sempre terá uma solução para a lide (teoria pragmática); que o ordenamento jurídico não apresenta lacunas, não porque exista um amontoado de regras como poderia sugerir o empirismo científico ou o ecletismo, mas porque admitir que a ordem jurídica é um todo será admiti a priori que não há casos fora desse ordenamento, sob pena de comprometer a própria idéia de «todo». Quanto às antinomias, temos dito que se trata de possíveis contradições existentes entre duas normas que estejam na mesma escala hierárquica. Bobbio ainda chama a atenção para o fato de que além de pertencer ao mesmo grau hierárquico as normas devem ter o mesmo âmbito de validade. Para o jurista italiano, há que se considerar quatro situações de validade: temporal, quando não se poderia falar em incompatibilidade entre a permissão de casar a partir dos dezoito anos para os homens e dos dezesseis para as mulheres com a proibição de casar sem alcançara tal idade; espacial, não sendo também incompatível a imunidade parlamentar do vereador com a permissão de o mesmo ser punido por atos dessa natureza fora de seu município; pessoal, quando não se caracteriza incompatibilidade entre o direito de votar assegurado a todos os brasileiros com a negação desse direito àqueles que por diversas razões tenham suspenso esse

51 Há quem negue a existência de lacunas exatamente nesta questão. Neste caso, estão a confundir «lei» com ordenamento jurídico, coisas totalmente diferentes.

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direito; material, não se verificando incompatibilidade entre a permissão de fumar cigarros com a proibição de fumar maconha 52. Mas as antinomias podem ser verificadas, por exemplo, com uma norma permissiva de não fazer com uma ordenativa de fazer (não pagar a multa de trânsito da qual se recorre x obrigação de pagar para recorrer), situação tal ode os deparamos com uma contrariedade; outra situação de contrariedade ocorre ainda no caso do enfrentamento entre uma norma que proíbe e outra que permite fazer algo (proibição de desmatar uma área de preservação e outra que possibilita a extração de madeira mediante autorização do órgão ambiental); por outro lado, há antinomia também no caso de choque entre uma norma que ordena e outra que proíbe praticar determinado ato (o mandamento de se extrair os órgãos de um morto cuja proibição não estava expressa em sua identificação e outra que manda respeitar a figura do morto), e neste caso temos uma pura contradição. Do ponto de vista da extensão, é lícito falar em antinomia total-total quando duas normas serem totalmente conflitantes, em antinomia parcial-parcial quando duas normas conflitarem em uma parte e não em outra e em antinomia total-parcial quando uma das normas for totalmente incompatível com outra que é para com ela incompatível apenas em parte. Do ponto de vista do conteúdo, falamos em antinomia própria quando a norma é simultaneamente permitida e proibida, bem como em antinomia imprópria primeiro quando princípios opostos forem protegidos e o holocausto total ou parcial de um for necessário para a total proteção do outro (antinomia de princípios); depois quando a norma faltar com a fidelidade na defesa dos valores que pretende defender, v.g, garantir o direito de propriedade e ao mesmo tempo condicionar esse direito ao cumprimento da função social (antinomia valorativa); por fim, quando em uma norma se tem em mente um determinado fim que é obstado por outra (antinomia teleológica). Sob o aspecto da solução das antinomias ainda poderíamos classificá-las como aparentes sempre que uma solução lhe é possível, e de reais quando ocorre o contrário: são insolúveis por falta de critérios ou por serem eles insuficientes. A propósito da antinomias reais, Bobbio preleciona três critérios de solução: o cronológico, tendo como norte o princípio de que a lei posterior prevalece sobre a anterior em caso de incompatibilidade (lex posterior derogat proiri); o hierárquico, onde o princípio basilar é outro: lex superior derogat inferiori, i.é, a lei superior prevalece sobre a inferior 53; o da especialidade, orientado pela idéia de que a lei especial revoga a geral toda vez que com ela for incompatível (lex specialis derogat generali) 54. Ocorre às vezes que esses critérios são insuficientes para a solução das antinomias, já que podem naturalmente se dar entre normas igualmente gerais ou especiais, editadas ao mesmo tempo ou hierarquicamente iguais. Neste caso o tratadista italiano vê como solução a observância de serem as normas jurídicas imperativas, proibitivas ou permissivas, já que neste ponto aquelas que se

52 BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Trad.: Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos. 8ª ed. Brasília: UnB, 1996, p. 86. 53 Cf. item "1.4", caput, de "Ordem Jurídica" destes nossos sumários. 54 Ob. cit, p. 92.

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hostilizam jamais poderão ser iguais nessa classificação. Trataria então o jurista de estabelecer um critério hierárquico entre as mesmas. No caso de uma ser imperativa ou proibitiva e a outra permissiva, prevaleceria esta última; o problema aqui é saber de qual ponto de vista se olharia a solução, se para o autor ou para o réu. De outra forma, quando uma for imperativa e outra proibitiva, a solução seria a permissão, haja vista que as duas por serem contraditórias se anulam e deixam vaga a disposição legal: ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Diante dessas dificuldades, ocorre ao jurista a necessidade de fazer discricionariamente sua interpretação, seja eliminando uma das normas, eliminando as duas ou conservando-as; neste último caso, o fundamento jurídico haverá que se furtar à idéia de antinomia, haja vista que seria logicamente impossível se orientar simultaneamente por duas normas que fossem contraditórias entre si. Ocorre ainda que se poderia solucionar o caso usando de dois critérios diferentes, mas chegando a soluções totalmente opostas; neste caso o problema estaria em qual opção fazer. Teríamos assim que solucionar os conflitos existentes entre os próprios critérios que poderiam dar-se da seguinte forma: a) entre o hierárquico e o cronológico. Aqui temos o caso por exemplo do conflito entre a disposição constitucional de 1988 de que o advogado é indispensável à administração à justiça (art. 133) e a Lei 9.099/95 em seu art. 9º que dispensa o advogado nas ações cujo valor não ultrapasse quarenta salários mínimos. Em tese optar-se-ia pelo critério cronológico ou pelo da hierarquia, sendo no caso necessário prevalecer o último, sob pena, inclusive de não se poder falar em hierarquia; b) entre o da especialidade e o cronológico: O caso aqui leva necessariamente à opção pelo primeiro critério pelo fato de se tratar de uma publicação posterior mas que trata genericamente a situação, não tendo como prevalecer sobre outra já existente e que dispõe esmiuçadamente sobre o tema (lex posterior generalis non derogat priori speciali); c) entre o hierárquico e o da especialidade. Neste caso dois critérios fortes se chocam, e a solução não parece tão tranquila, ora se inclinando para um, ora se inclinando para outro. Se se perguntasse a um normativista convicto a resposta seria tranquilamente no sentido de se optar pelo primeiro critério, e aí restaria prejudicada a necessidade de se adaptar os princípios gerais da Constituição (que seria a norma hierarquicamente superior) ao dia-a-dia da norma, da especialização; por outro lado, se sacrificássemos o hierárquico, além de prejudicarmos o próprio conceito de hierarquia correria se o risco de esvaziar paulatino e progressivamente o conteúdo constitucional. 5. SISTEMAS JURÍDICOS 5.1) Outra questão de fundo em nossas lições introdutórias é fazer algumas considerações sobre os Sistemas Jurídicos. Ao falar desta questão estamos a destacar as regras obrigatórias de direito adotadas por cada povo, e assim é legítimo falar em sistema romano, germânico, anglo-americano, muçulmano, soviético, israelita, hindu etc, haja vista a notória dificuldade de se ter um mesmo direito para todos os povos.

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5.1.1. O sistema egípcio, ligado diretamente à civilização do Nilo, pouco deixou escrito suas leis, embora se saiba que elas existiram. Está ligado à espiritualidade de seu povo, haja vista a função do Estado de propiciar a realização da felicidade eterna, o qual incorpora a figura da divindade. Na antiguidade temos que o tribunal era organizado pelo rei e o processo era escrito, pelo menos parcialmente, e se orientava basicamente por leis publicadas pelo rei após ouvir um conselho de legislação, e havia igualdade jurídica entre todos, exceto em relação aos prisinoneiros de guerra. No direito civil os contratos desempenham importante papel e o direito penal é moderado em relação a outros povos da época. A partir do século V esse direito evolui para o regime senhorial desagregador, cuja centralização é retomada com sucesso a partir do século XVI, retomadas as caracterísitcas iniciais. 5.1.2. O sistema dos direitos cuneiformes compreende àqueles direitos dos povos do Próximo Oriente que se serviam de um processo de escrita em forma de cunha ou prego, dos quais temos notícias através dos chamados “grandes códigos”. A grande obra jurídica antes de Roma da qual temos notícia é o Código de Hammurabi, atribuído ao rei da Babilônia e provavelmente editado por volta dos anos1726-1686 a . C. Possui 282 artigos e se afirma como “um regulamento de paz” onde o rei aparece como um justiceiro e protetor dos fracos. Além disto, demonstra uma grande evolução jurídica desses povos ao regulamentar uma diversidade de atos, sobretudo contratuais, inclusive de caráter comercial e bancário. 5.1.3. Já o sistema hebráico é um direito religioso de inclinação monoteísta, tendo como fonte o próprio Deus que deu de presente esse direito ao povo com o qual fez uma aliança. O direito é portanto imutável, não obstante poder ser interpretado de acordo com a evolução social, possibilidade essa que garantiu a sua sobrevivência no curso da história e influenciou significativamente outros direitos. É nas suas fontes que a maioria dos direitos foram beber e elaborar o que temos atualmente considerado de moderno, tanto no campo dos direitos civis, penais e humanitários. 5.1.4. O sistema grego, embora seus doutrinadores não tenham sido verdadeiros juristas por não pensarem autonomamente o jurídico, constitui uma das principais fontes históricas do direito da Europa Ocidental. Não se pode falar na verdade em direito grego uma vez que cada polis tinha o seu direito, mas algumas cracterísticas comuns podem ser enumeradas: as leis escritas são raras, e seu conhecimento se dá através de alguns textos homéricos, dos discursos de Demóstenes e Iseu, dos textos de Platão, Aristóteles e Plutarco, assim como de inscrições jurídicas e duas leis descobertas recentemente: a “Lei de Gortina” e a “Lei de Dura”. Embora tenham se referido à “nómos” como fonte de direito, o termo era igualmente destinado à significação da lei no sentido romano da palavra como aos costumes propriamente ditos, cabendo aos romanos essa distinção. O grande contributo desse povo foi de fato a construção de uma base filosófica para o Estado e para o direito. 5.1.5. O sistema hindu refere-se à religião bramânica, sobretudo do povo da India, não se confundindo necessariamente com o direito indiano que se refere a todos os ocupantes do território da India e que podem ser cristãos, hindus e

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muçulmanos. O dharma do sânscrito refere-se a um “dever” do homem dentro de uma comunidade, revelado pela divindade e que cosagra a desigualdade à medida que estabelece a cada pessoa um papel previamente definido na casta. As fontes principais desse direito são o Veda (o conhecimento, a soma de todo o saber, de todas as verdades morais e religiosas) e o costume. 5.1.6. Quanto ao sistema chinês, ao contrário do hindu e do muçulmano, não é estritamente religioso, mas um sistema integrado à concepção filosófica de Confúcio (550-479 a . C) que desenvolveu uma doutrina de sabedoria prática, sobretudo de respeito a um conjunto numeroso de regras de etiqueta. Para Confúcio o homem é naturalmente bom porque sua natureza é outorgada pelo Céu, devendo cultivá-la para bem viver. Nesse sistema, o direito revela um antagonismo entre os ritos ou etiquetas (o li) e a lei (o fa): o primeiro, o li, corresponde ao conjunto de regras morais às quais o homem deve tender normalmente, dispensando processos e sendo suficiente para a harmonia entre as pessoas; não há direitos subjetivos, mas apenas deveres para com os mais velhos, para com os pais, para com os súditos etc; sua administração cabe aos chefes de família e de clã; é o “governo pelos homens”. O segundo, o fa, corresponde às idéias da escola das leis que vê no homem uma natureza má, necessitando de leis, as mais severas possíveis; devem os homens denunciar as infrações mesmo que não sejam as vítimas; é o “governo das leis” que se impõe na luta contra os privilégios, exigindo a igualdade de todos perante a lei. Não obstante, houve uma predominância do li, caracterizando o direito chinês pela diferenciação das classes sociais, cada uma com papéis morais e jurídicos próprios, com grande apreço à família na base das relações sociais e com as classes privilegiadas recusando uma lei uniforme e vivendo sob um código de honras, enquanto o povo em geral vivia sob uma legislação penal severa. A tomada do poder pelo Partido Comunista, a Revolução Cultural e a marxização do direito imprimiram importantes modificações no direito chinês, com alternância de códigos e fundamentos, cada um desses elementos deixando suas marcas no estado atual daquele sistema. 5.1.7. Quanto ao sistema japonês, sabe-se que passou por vários períodos de formação, percorrendo desde a originária influência da China, passando por um feudalismo semelhante ao feudalismo europeu até a sua ocidentalização. Na primeira fase encontra-se o confronto entre o li e o fa; no segundo a desagregação do direito estatal e o fortalecimento dos senhorios; na terceira, nota-se uma rápida ascensão dos conceitos ocidentais de direito, culminando com uma notória codificação sob influência alemã e francesa, além da influência democrática americana. 5.1.8. No que tange ao sistema muçulmano, podemos dizer que seja um direito da comunidade religiosa islâmica, i.é, daqueles que se submetem a Deus e ao chamado de Alá (Islão), não obstante a variação de um lugar para outro no que diz respeito à penetração dos direitos ocidentais. Está ligado aos ensinamentos do profeta Maomé (571-632) que pregava a religião monoteísta e dizia um enviado de Deus na sucessão de Adão, Noé, Abraão, Moisés e Jesus, razão pela qual foi expulso de sua cidade, Meca, a qual retomou pela “guerra santa”. Não há, portanto, um direito autônomo, mas uma face da religião: assim como a teologia

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diz em que o muçulmano deve crer, o direito (a Châr’ia) prescreve como ele deve agir, cuja sanção é a condição de pecador, sendo inaplicável, portanto, aos não muçulmanos; a obediência desta se dá pelo Figh, um conjunto de soluções previstas voltadas para essa finalidade. As fontes da Châr’ia são o Alcorão (o livro sagrado do Islão que contém a Revelação feita ao Profeta), a Sunna ou tradição (um conjunto de atos ou silêncios atribuídos ao Profeta e que demonstram seu comportamento prático), o ‘Idjmã’ (o acordo entre a comunidade muçulmana, baseado no princípio de que a comunidade nunca chegará a um acordo errôneo) e a analogia (o raciocínio necessário para extrair do Alcorão e da Sunna a solução nos casos em que não haja uma previsão expresa de um caso concreto). Não obstante, o costume e a lei sempre estiveram presentes na realidade muçulmana, sobretudo após as ocupações e revoluções, notando-se em uns países mais e em outros menos, uma inegável influência do direito ocidental. 5.1.1. O sistema romano de direito é sem dúvida o mais adotado pelos países de língua latina, tendo sido compilado por Justiniano em seu Corpus Iuris Civilis, difundido pelas universidades medievais 55 e reavivado pelo Código de Napoleão de 1804 56. Diz-se que inclusive os outros dois principais troncos do direito europeu (o Common Law inglês e dos países de orientação comunista) não escaparam totalmente à sua influência. Em sua fase universitária medieval, apresentava algumas vantagens em relação ao direito local: além de ser escrito e comum à maioria dos mestres (ius commune), era mais evoluído e portanto mais completo, visto que fora desenvolvido por uma sociedade muito desenvolvida e trazia algumas instituições que o feudalismo até à época desconhecia. Evoluiu-se bem na Itália, Bélgica, França, Alemanha, Portugal, Espanha etc. Caracterizou-se pelo uso de uma terminologia comum das concepções jurídicas entre os Estados adotantes do sistema; reconheceu o caráter abstrato da norma e impôs a solução dos casos concretos e os litígios a partir de regras gerais fixadas pelo legislador; por fim, estabeleceu o princípio de que o direito deve ser justo e razoável, i. é, o direito é sempre aquilo que a inteligência do homem mediano reconhece como sendo justo, apontando "o que deve ser", pouco importando na verdade com o que é na verdade. Do ponto de vista prático, alguns avanços se fizeram observar com a progressiva substituição do direito arcaico e feudal pelo romano. Primeiramente, chama-se a atenção para a idéia de "racionalidade" buscada pelo novo direito: as provas que antes eram produzidas com o auxílio de Deus dá lugar aos inquéritos, testemunhos, prova escrita etc). Depois, aos poucos o "estado de guerra" ou de anarquia geral próprio do feudalismo cede seu lugar para uma fase embrionária do Estado moderno com o fortalecimento dos reis. A economia fechada comum no feudalismo é agora substituída pelas trocas, pela burguesia que começa se aglomerar nas cidades e faz surgir uma nova concepção de direito (o Direito

55 GILISSEN, John. Introdução Histórica ao Direito. 2 ed. Trad. A . M . Espanha e L . M . Macaísta Malheiros. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995, p. 202. 56 RÁO, Vicente. O Direito e a vida dos direitos. 5ª ed. anotada e atualizada por Ovídio Rocha Barros Sandoval. São Paulo: RT, 1999, p. 99.

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Urbano) ancorado na concepção de igualdade jurídica entre seus membros. Por fim, como já se viu, a paulatina e inevitável substituição dos costumes pelo direito escrito a partir do século XIII e assim vislumbrando uma melhor segurança jurídica, legislação essa cuja competência migraria dos senhores, príncipes e soberanos para ser definitivamente atribuído à nação ou à vontade geral como diria Rousseau. A colonização de vastos territórios por países europeus a apartir do século XVI foi responsável pela exportação do Direito Romano, como é caso por exemplo de Portugal e Espanha nas américas, que se serviu inclusive das universidades para se difundir, tendo permanecido quando da conquista da independência pelos Estados. Além disso, alguns países optaram pela adoção dos códigos europeus, como é o caso de Irão e Etiópia que implementou códigos à moda francesa, assim como da Turquia que se inspirou no Código Civil Suíço e no Código Penal Italiano. 5.1.2. O sistema common law desenvolveu-se na Inglaterra a partir do século XII pelas decisões das jurisdições reais, influenciando a maior parte dos países de língua inglesa como EUA, Canadá e Austrália. A pópria expressão “common law” em si já foi adotada para designar o direito comum à Inglaterra em contraposição aos direitos de cada região, e não se confunde com o “ius commune” que se firmou a partir do século XVI e que designava o direito erudito, elaborado por doutrinadores com base no Direito Romano e supletivamente dos costumes de cada país; é, pois, o direito criado pela jurisprudência e sustentado pela invocação dos precedentes judiciários, tendo a lei uma importância diminuta ou quase nenhuma na evolução do direito 57, não obstante a retomada a partir do século XX do chamado statute law ou direito dos estatutos promulgado pelo legislador. Mas até hoje não existe uma sistematização legislativa constitucional ou ordinária, sendo ainda naquele caso invocada a Magna Carta de 1215. Até o século XIII o direito da Inglaterra se assemelhava ao dos demais países continentais, e já nessa época o poder real consegue, bem antes que na França, impor-se e desenvolver com competência sobre os senhorios locais. Essa imposição levou à instalação de tribunais específicos para dirimir os diversos conflitos que surgiam, e qualquer pessoa que quisesse pedir justiça ao rei poderia endereçar-lhe por escrito o pedido; tal pedido era previamente apreciado por um colaborador do rei (o Chanceler), que se o considerasse fundamentado, expedia uma ordem (writ, ou dito em latim, breve) a um xerife (agente local do rei) ou a um senhor para que desse satisfação ao queixoso, pena de desobediência, o qual poderia comparecer ao tribunal e explicar as razões pelas quais se recusava a obedecer à decisão; medidas foram adotadas no sentido de atrair mais e mais litígios para os tribunais reais, e não obstante as lutas dos senhores feudais no sentido de conter o aumento desses writs, estes foram se adaptanto e se estendendo a novos casos. O direito inglês se firmou assim no tipo de “ordens do rei” que ao poucos se transformou em “ordens dos seus consultores jurídicos” (os chaceleres), diferenciando-se sobremaneira do estilo romano que se expressava em ações judiciais. Assim é que a estrutura narrativa dos casos desse sistema

57 Cf. Gilissen, ob. cit., p. 208.

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baseado na citação de julgados anteriores desses tribunais se difere dos outros sistemas onde se invoca principalmente a lei. Mas somente em 1875 é que a obrigação dos juizes de decidirem de acordo com a orientação dos precedentes foi imposta por lei; por outro lado, o precedente judiciário não pode ser considerada fonte autêntica do direito, haja vista que o juiz quando decide faz apenas declarar o direito que já existe, ser seu oráculo vivo. O alargamento das demandas tornou os juizes mais independentes, surgindo em seguida a idéia de recorrer de suas decisões ao próprio rei, cuja solução inspira-se nas regras de direito canônico e dos princípios de direito romano, fugindo-se às regras do common law e pautando-se na equidade (equity), tudo por ser mais favorável às suas pretensões absolutistas. Os conflitos do século XVII entre o Rei e o Parlamento favoreceram a subsistência do common law que passou a conviver dualísticamente com o equity, as quais se fundiram pela reforma judiciária de 1875. Outra novidade do direito inglês é a figura do júri e que diz ter precedentes no inquérito carolíngio 58, formado a partir da experiência de convocar 12 homens da vizinhança para dizer se o reclamado realmente desapossou a terra do queixoso, ou ainda a entrega da acusação pública criminal ser entregue à comunidade, a qual decidia de acordo com o que sabia do fato. Sobreviveu magistralmente na Inglaterra até o século XX, e passando por algumas reformas, mantém-se hoje para alguns casos em matéria penal e civil. 5.1.3. O sistema canônico constitui o direito dos cristãos, especialmente dos católicos, inicialmente voltado para as decisões dos concílios, tendo desempenhado na história do direito laico uma inegável importância, assim como recebeu dele importantes contributos. Durante vários séculos certos domínios do direito eram regidos exclusivamente pelo Direito Canônico, sendo durante grande período da Idade Média o único direito escrito e também objeto de especulação doutrinária bem mais cedo que o direito laico. Fundado na doutrina dos Evangelhos, reconhece a dualidade dos sistemas jurídicos: o religioso e o laico, o primeiro voltado para a salvação da alma e o segundo para a vida temporal. Ocorre que até hoje ainda sobrevive quando rege a comunidade eclesiástica (embora essa obediência seja, do pondo de vista da coação estatal, manifestamente espontânea); em alguns países ainda se adotam no Direito Privado algumas regras de Direito Canônico, sobretudo em matéria de casamento e divórcio, como é o caso da Irlanda e na Bélgica. A origem desse direito parece remontar às primeiras comunidades cristãs, que vivendo na clandestinidade, receberam das Epístolas de Paulo a orientação de buscar a conciliação em caso de conflitos ou na impossibilidade dela em solução prevista nos próprios ensinamentos bíblicos, não sendo recomendável dessa forma recorrer aos tribunais romanos não cristãos. Com a evolução desse direito, novas competências foram acrescentando-se aos tribunais eclesiásticos (os clérigos, os cruzadas, os universitários e os miseráveis, estes constituídos dos órfãos e viúvas quando pediam a proteção da Igreja). Quanto aos clérigos essa competência era absoluta, sendo relativa aos demais (privilegium fori). A partir do

58 Gilissen, ob. cit., p. 214.

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século XVI essa competência vai se restringindo mais e mais às questões religiosas, graças às divisões internas da Igreja e à recusa de alguns reis em se submeter a Roma. Tendo em vista a necessidade de sistematizar a vasta legislação canônica constituída pelos decretos da autoridade eclesiástica que interpretava a vontade de Deus, duas importantes obras foram concretizadas: a de Gaciano e a de Gregório IX, que a partir do século XIII passaram a ser compiladas num único documento que levou o nome de Corpus Iuris Canonicis em contraposição ao Corpus Iuris Civilis de Justiniano, tendo exercido grande influência no ensino medieval juntamente com a teologia. 5.1.4. O sistema feudal de direito teve grande importância sobretudo nos séculos XII – XIV. Suas instituições principais eram a vassalagem e o feudo, cuja relação jurídica constituía numa relação pessoal: o vassalo por ser “livre” contratava com o senhor, prometendo-lhe fidelidade e submetendo ao seu poder, e em troca obtinha proteção e manutenção propiciada pela terra que recebia. Esses mini-exércitos levaram a uma natural desagregação do poder real e adquiriram certa autonomia, dividindo a Europa Ocidental e impossibilitando ao Estado qualquer controle sobre eles. Na época, assitiu-se também uma idêntica decadência religiosa e cultural; a legislação e a jurisdição estatais foram praticamente suprimidas; o direito romano desaparece (exceto na Itália), e à exceção do direito canônico que sobrevive nas matérias eclesiásticas e em algumas na órbita civil, o direito se restringiria basicamente aos costumes que ainda podiam variar substancialmente de uma aldeia para outra. A doutrina mais confiável nos informa que nos séculos X e XI foram séculos sem escritos jurídicos: sem leis, sem livros, sem atos reduzidos a escrito; quase nenhum contrato feudal é escrito; aliás, há poucas escolas e os juizes (tribunal composto de alguns vassalos) seriam incapazes de ler qualque texto, realidade essa que atingia inclusive os clérigos. Com essa escuridão geral, as decisões eram dadas com o recurso das ordálias e dos duelos judiciais. 5.1.5. O sistema germânico foi essencialmente consuetudinário, não havendo na verdade “um” direito germânico, mas uma diversidade de costumes dos seus povos, segundo Gilissen, em pouco se diferenciando de qualquer povo arcaico 59, não tendo deixado inclusive documentos escritos. Não se pode negar, no entanto, sua importância na formação do nosso direito. 5.1.6. Os sistemas de orientação comunista têm em seu histórico a teoria marxista-leninista do direito posta em prática na Rússia no período pós-1917, vale dizer, a busca de uma sociedade libertária onde desapareceriam o Direito e o Estado, visto não ser mais necessária qualquer tipo de coação; para alcançar esse estágio de evolução, necessário seria passar antes pela ditadura do proletariado. Através da Constituição de 1936 a Rússia buscou edificar esse estado de transição, sendo seguida por outros países após o fim da II Guerra Mundial, semeando os princípios socialistas por diversos continentes. A base geral desse pensamento funda-se na dualidade de elementos vislumbrada na sociedade por seus mestres: a base ou infra-estrutura que constitui a existência

59 Ob. cit., p. 162.

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material da sociedade (recursos naturais, tecnologias, indústrias etc) e a superestrutura (ideologia, religião, artes, Direito etc) que reflete as relações de produção. Com efeito, as obras desses autores pouco se ocupam especificamente da questão jurídica, mas as idéias essenciais estão descritas em uma obra de Engels de 1884, de grande envergadura e entitulada As Origens da Família, da Propriedade e do Estado. Como é cediço, junto com a religião, as artes, as ideologias em geral etc, o direito pertence à superestrutura e permite que a classe dominante tenha a posse dos bens em detrimento da classe espoliada, sendo necessariamente injusto e sujeito ao desaparecimento na sociedade ideal ou comunista. A investida comunista russa levou em conta a supressão do direito de sucessões, do antigo direito e dos antigos tribunais; os tribunais foram constituídos de três juízes eleitos (um deles permanente), os quais deveriam julgar de acordo com os decretos do novo governo e sem fazer qualquer referência ao direito anterior. A divisão dos poderes foi suprimida, sendo instaurada uma estrutura única composta de conselhos (sovietes) que tinham no ápice o congresso russo ou Comitê Executivo Central. A partir de 1921 são feitas algumas concessões ao direito de propriedade e publicados alguns códigos, sendo efetuadas diversas reformas nas décadas seguintes tendo em vista as dificulades de realizar o projeto comunista e ainda a nefasta burocartização do Estado. O final da história todos já conhecem. Gilissen faz uma síntese do que há de comum entre todos os países que confessam a doutrina socialista: 1) A concepção instrumental do direito como forma de atingir uma sociedade sem classes, a sociedade comunista, quase ao estilo de Pound, com a diferença de que para o jurista americano e sua social engineering há outros interesses de ordem privada, social e pública que devem ser protegidos pelo Direito, enquanto que para os comunistas todo direito é político e por isso não há que se falar em outro direito que não seja o Direito Público. 2) Supressão do princípio da separação dos poderes e a total concentração do mesmo nas mãos do partido, partindo-se do pressuposto de que esse controle é democraticamente assegurado a todos os trabalhadores. 3) O Estado e o Direito têm função passageira, não possuindo outros valores que não aqueles definidos nos ideais comunistas, caindo assim num monismo ideológico e no desacolhimento de outros direitos do cidadão que não sejam esses ditados pela filosofia comunista. 4) A lei acaba por constituir a única fonte do direito pelo fato de que só ela consubstancia a vontade popular, malgrado a necessidade assumida de sua substituição toda vez que a evolução social assim o egigir. Por outro lado, os juizes eleitos para um mandato de cinco anos não tem necessariamente que ser formados em direito, preparando assim a comunidade cada vez mais para uma sociedade sem Direito. 5) Uma nova concepção organizativa do Estado e do Direito que parte do pressuposto de que uma sociedade sem classes onde “os direitos de cada um são distribuidos de acordo com suas necessidades” e que a educação do “homem

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novo” possibilitará que cada indivíduo colabore espontaneamente com a coletividade sem que haja qualquer tipo de coação.