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RACIONALIDADE LEGISLATIVA DO PROCESSO TRIBUTÁRIO – João Aurino de Melo Filho 488 da Administração Pública, da sua busca pelo interesse público, não particular, e do dever de juridicidade que ela deve buscar na consecução dos seus objetivos, é, inclusive nos países que adotam o contencioso francês, o fundamento usual da execução concreta da obrigação tributária pela Administração. Não podemos, no ponto, deixar de comentar que o modelo jurídico am- plamente estudado por Flávia Ribeiro ao tratar do processo de execução civil desjudicializado, o português, adota a execução fiscal desjudicializada e admi- nistrativa, que tramita perante órgãos da própria Administração Tributária. A autora questiona, ainda, o fato de o mesmo órgão que faz a inscrição e a extração da Certidão de Dívida Ativa ser o responsável pela execução fiscal. Também aqui, parece-nos não existir nenhum problema, tratando-se de proce- dimento comum no Direito Comparado, que exige, em todo caso, da autoridade que faz a inscrição e a execução, o controle da legalidade – algo que, mesmo no nosso sistema de execução judicial, já é exigido do órgão responsável pela inscrição e pela promoção da execução (artigo 2º, §3º, da Lei nº 6.830/80). Tomando-se por referência, por fim, a segurança dos executados no pro- cesso, ponto também destacado pela autora, entendemos que a execução fiscal administrativa promovida por agentes públicos oferece mais (ou pelo menos a mesma) segurança que a execução administrativa processada por agentes pri- vados (defendida, esta última, pela autora). Uma execução fiscal administrativa promovida por Procuradores Públicos, obrigados a se pautar pela juridicidade, além de fiscalizar e eventualmente reconhecer a nulidade dos atos administrati- vos; parece-nos mais segura que uma execução processada por agentes privados, que terão pouquíssima margem para reconhecer defeitos no título exequendo, além de ter interesse direto e pessoal na validade da obrigação em cobrança, posto que somente receberão, como entes privados, pagamentos pelos serviços efetivamente prestados. Neste quadro, concordamos com a defesa que a autora faz do processo civil desjudicializado, mas destacamos que, além dos fundamentos que emba- sam este, também aplicáveis, a execução fiscal desjudicializada possui, ainda, fundamentos adicionais, o que fortaleceria a racionalidade de eventual decisão legislativa que a positivasse. 4.2. Execução fiscal administrativa e devido processo legal: compatibi- lidade com as normas do artigo 5º, XXXV e LIV, da Constituição A execução fiscal administrativa possui fundamentos éticos, jurídicos e teleológicos, possuindo, ainda, fundamento pragmático, na medida em que a efetividade do sistema tende a ensejar a retomada de sua utilização como meio de cobrança da obrigação tributária. Há, contudo, uma ponderação constitucional que tem sido suscitada pelos críticos da execução fiscal administrativa no ordenamento jurídico brasileiro: Filho - Racionalidade Legislativa - 1 ed.indb 488 02/03/2018 11:09:47

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RACIONALIDADE LEGISLATIVA DO PROCESSO TRIBUTÁRIO – João Aurino de Melo Filho488

da Administração Pública, da sua busca pelo interesse público, não particular, e do dever de juridicidade que ela deve buscar na consecução dos seus objetivos, é, inclusive nos países que adotam o contencioso francês, o fundamento usual da execução concreta da obrigação tributária pela Administração.

Não podemos, no ponto, deixar de comentar que o modelo jurídico am-plamente estudado por Flávia Ribeiro ao tratar do processo de execução civil desjudicializado, o português, adota a execução fiscal desjudicializada e admi-nistrativa, que tramita perante órgãos da própria Administração Tributária.

A autora questiona, ainda, o fato de o mesmo órgão que faz a inscrição e a extração da Certidão de Dívida Ativa ser o responsável pela execução fiscal. Também aqui, parece-nos não existir nenhum problema, tratando-se de proce-dimento comum no Direito Comparado, que exige, em todo caso, da autoridade que faz a inscrição e a execução, o controle da legalidade – algo que, mesmo no nosso sistema de execução judicial, já é exigido do órgão responsável pela inscrição e pela promoção da execução (artigo 2º, §3º, da Lei nº 6.830/80).

Tomando-se por referência, por fim, a segurança dos executados no pro-cesso, ponto também destacado pela autora, entendemos que a execução fiscal administrativa promovida por agentes públicos oferece mais (ou pelo menos a mesma) segurança que a execução administrativa processada por agentes pri-vados (defendida, esta última, pela autora). Uma execução fiscal administrativa promovida por Procuradores Públicos, obrigados a se pautar pela juridicidade, além de fiscalizar e eventualmente reconhecer a nulidade dos atos administrati-vos; parece-nos mais segura que uma execução processada por agentes privados, que terão pouquíssima margem para reconhecer defeitos no título exequendo, além de ter interesse direto e pessoal na validade da obrigação em cobrança, posto que somente receberão, como entes privados, pagamentos pelos serviços efetivamente prestados.

Neste quadro, concordamos com a defesa que a autora faz do processo civil desjudicializado, mas destacamos que, além dos fundamentos que emba-sam este, também aplicáveis, a execução fiscal desjudicializada possui, ainda, fundamentos adicionais, o que fortaleceria a racionalidade de eventual decisão legislativa que a positivasse.

4.2. Execução fiscal administrativa e devido processo legal: compatibi-lidade com as normas do artigo 5º, XXXV e LIV, da Constituição

A execução fiscal administrativa possui fundamentos éticos, jurídicos e teleológicos, possuindo, ainda, fundamento pragmático, na medida em que a efetividade do sistema tende a ensejar a retomada de sua utilização como meio de cobrança da obrigação tributária.

Há, contudo, uma ponderação constitucional que tem sido suscitada pelos críticos da execução fiscal administrativa no ordenamento jurídico brasileiro:

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sua suposta incompatibilidade com o devido processo legal. Questiona-se, especificamente, a compatibilidade da execução fiscal administrativa com as normas constitucionais do artigo 5ª, XXXV (“a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”) e LIV (“ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”).

Em relação ao artigo 5ª, XXXV, a compatibilidade da execução fiscal ad-ministrativa, desde que seja garantido o acesso ao Judiciário em caso de lesão ou ameaça a direito, é evidente. Garantido o acesso ao Judiciário nos casos de lide de pretensão discutida, a adoção da execução fiscal administrativa apenas separará e especializará as atribuições dos órgãos responsáveis pelo processo de cobrança da obrigação tributária, impondo à Administração a prática de atos executórios, e reservando ao Judiciário a competência para apreciar lesão ou ameaça a direito no processo de execução.

O Direito positivo construiu um complexo sistema estatal para resolução dos conflitos tributários (onde se inclui a lide de pretensão insatisfeita), que se desenvolve em duas instâncias: administrativa e judicial. O processo tributário, visto como um sistema processual, desenvolve-se ora no âmbito do Estado-Juiz e ora no âmbito do Estado-Administração. Em determinado momento desse desenvolvimento processual, o Estado terá o poder de cobrar, executivamente, a satisfação da obrigação tributária não atendida. Dado que a existência de uma fase de cobrança coativa é necessidade lógica do sistema tributário, e se considerando que o processo pode se desenvolver em duas instâncias distintas, parece inquestionável que a instância mais adequada para o desenvolvimento da fase de cobrança é, em razão da sua especialização e da racionalização dos trâmites processuais, a administrativa.

Em termos de juridicidade, um sistema que adote a execução fiscal ad-ministrativa, mas mantenha no âmbito judicial a competência para análise das lesões ou ameaças a direitos, não criará nenhuma limitação do acesso ao Judiciário; apenas compatibilizará o sistema de cobrança e discussão da obri-gação tributária com a forma ordinária de atuação do Judiciário, norteada pelo princípio dispositivo, agindo os juízes, regra geral, apenas quando provocados.

A especialização de atribuições, tomando-se por referencial a espécie de lide a ser resolvida, de pretensão discutida (reservada ao Judiciário) ou insatis-feita (reservada às instâncias administrativas, mesmo privadas, não judiciais), é, conforme demonstrado, uma tendência no Direito Comparado, não apenas em relação às lides tributárias, mas, também, no tocante às civis.

O ordenamento jurídico brasileiro ainda está dando os primeiros passos na positivação do novo paradigma, mas não é a ele de todo estranho, conforme exemplificam as normas que cuidam do leilão extrajudicial no Decreto-lei nº 70, de 21 de novembro de 1966, e na Lei nº 9.514, de 20 de novembro de 1997; a possibilidade de execução direta prevista na Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964; e mesmo, embora com ressalvas, a alienação de bens por iniciativa

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particular prevista no CPC (artigo 880 do Código de Processo Civil de 2015 e artigo 685-C do CPC/73).59 Em todos esses casos, apesar de assegurada a prática do ato executório fora da esfera judicial, mantém-se aberta a possibilidade de acesso ao Judiciário no caso de lesão ou ameaça a direito, o que está de acordo com o paradigma contemporâneo.60

Em conclusão mantida a possibilidade de acesso ao Judiciário (que, ob-viamente, deve ser processualmente regulado), a execução fiscal administrativa é compatível com o artigo 5ª, XXXV, da Constituição. Nesta linha, cita-se, por oportuno, trecho da justificativa de um dos primeiros projetos de lei do Legisla-tivo brasileiro que buscava autorizar a prática de atos executórios da obrigação tributária pela própria Administração, o Projeto de Lei do Senado nº 174, de 28 de fevereiro de 1996:

Não há dúvida de que o Estado necessita de instrumentos capazes de barrar a desenfreada sonegação e a mais absurda das injustiças praticadas contra o bom contribuinte, que paga em dia seus tributos; sem, entretanto, se esmigalhar o mais sagrado dos direitos fundamentais, consagrado através dos tempos, dos tempos, pelas civilizações modernas: a garantia e a preservação do juiz natural, estatuído em nossa Lei Maior (art. 5º, XXXV) como fundamento da democracia.

Isso ocorrerá naturalmente sem desmoronar o princípio do juiz natural.

[...]

Essa penhora administrativa não se opõe aos cânones constitucionais, por-que, na verdade, não suprime nem impede o ingresso do devedor perante o Poder Judiciário, Valendo-se da garantia fundamental que lhe oferece o inciso XXXV do art. 5º da Constituição Federal, com assento no princípio básico da separação dos Poderes, inserto no art. 2º da Carta Nacional.

Além da norma que impõe a possibilidade de acesso ao Judiciário, a norma do artigo 5º, LIV, CF, ao determinar que ninguém será privado dos seus bens

59. Conforme pontua Flávia Pereira Ribeiro, embora a alienação de bens por iniciativa particular prevista não configure um efetivo deslocamento da atividade judicial para outra instância, pode ser compreendida como “mais um exemplo da tendência de delegação de atividades burocráticas que historicamente estiveram sob a égide do juiz para a iniciativa privada” (RIBEIRO, Flávia Pereira. op. cit., p. 65).

60. Deve-se registrar, por pertinência, que, no julgamento da constitucionalidade do leilão extrajudicial previsto no Decreto-lei nº 70/66, o Ministro Ilmar Galvão pontuou ex-pressamente que, por razões semelhantes, corrente doutrinária prestigiosa defendia a execução fiscal administrativa, “posto reunir ela, na verdade, na maior parte, uma série de atos de natureza simplesmente administrativa”, reservando-se ao Judiciário a “aprecia-ção e julgamento de impugnações, deduzidas em forma de embargos, com o que estaria preservado o princípio do monopólio do Poder Judiciário” (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Primeira Turma. Recurso Extraordinário nº 223.075/DF. Relator: Ministro Ilmar Galvão. Decisão unânime. Brasília, 23 de junho de 1998, publicação em 6.11.1998).

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nem da sua liberdade sem o devido processo legal, também tem sido apontada como óbice à positivação da execução fiscal administrativa. Para os defensores de tal tese, a norma constitucional, que positiva o devido processo legal, apenas autorizaria o processo de execução no âmbito do Poder Judiciário. A tese, no entanto, não se sustenta. A Constituição não cria uma cláusula de reserva judicial para o processo de execução coativa nem impõe que a perda de bens somente possa ser realizada no âmbito de um processo judicial. O que a Constituição determina é que a perda da propriedade somente poderá ocorrer no âmbito de um procedimento onde sejam asseguradas as garantias do devido processo legal.

Necessário registrar, no ponto, a indeterminação do termo “devido pro-cesso legal”, não existindo uma espécie de processo que, objetivamente, possa ser considerado “o devido processo legal”. Na verdade, a doutrina questiona a própria pertinência de eventual determinação do termo. Neste sentido, Carlos Roberto Siqueira Castro, citando o juiz Felix Frankfurter, da Suprema Corte norte-americana, ensina que o devido processo legal não pode ser aprisionado dentro dos traiçoeiros limites de uma fórmula.61

Não existe, realmente, uma fórmula que abarque toda a densidade do princípio, que apenas se desvela pelos seus desdobramentos. O devido processo legal, portanto, analisado em seu núcleo normativo, somente se densifica através do conjunto de direitos e garantias que o substancializam. Por isso, ao tratar do tema, Gilmar Mendes registra que o devido processo legal se traduz em “uma série de garantias hoje devidamente especificadas e especializadas nas várias ordens jurídicas”62. Em lição semelhante, Carmen Lúcia Rocha destaca que o devido processo legal “compreende um conjunto de elementos garantidores dos direitos fundamentais em sua persecução, quando ameaçados, lesados ou simplesmente questionados, tais como o direito à ampla defesa, ao contraditório, ao juízo objeti-vo”, entre outros, sendo “um meio formal e previamente conhecido e reconhecido de viabilizar o questionamento feito pelo administrado”63. Também pertinente, na questão, a lição de Uadi Lammêgo Bulos, que caracteriza o devido processo legal como “o reservatório de princípios constitucionais, expressos e implícitos, que limitam a ação dos Poderes Públicos”64.

61. CASTRO, Carlos Roberto de Siqueira. O devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova constituição do Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 1989, p. 56.

62. MENDES, Gilmar Ferreira. In: BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. MENDES, Gilmar Ferreira. op. cit., p. 592.

63. ROCHA, Carmen Lúcia Antunes Rocha. Princípios constitucionais dos servidores públicos. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 474-475.

64. BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 565.

Bockmann faz uma interessante análise do devido processo legal, dividindo os seus termos, para concluir pela necessidade de um “processo”, só possuindo “fundamento de validade a execução de ato atentatório à liberdade ou bens que esteja inserido em

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Do exposto, pode-se concluir que a doutrina pondera, em primeiro lugar, a impossibilidade de se definir o que é um “devido processo legal”, ao mesmo tempo em que registra que seu conteúdo material, o que lhe concede densifica-ção jurídica, são os princípios e garantias específicas que dele decorrem. Então, quando a Constituição se refere ao devido processo legal, ela está se referindo a um conjunto de direitos e garantias do cidadão, não apenas, mas principal-mente, processuais, aplicáveis a qualquer procedimento que implique restrição de liberdade ou de propriedade; independentemente da seara onde tramite, que pode ser judicial ou administrativa; razão pela qual, conforme exposto em tópico anterior, pode-se falar tanto em devido processo legal judicial quanto em devido processo legal administrativo:

Entende-se que o devido processo legal estampado neste preceito não se restringe ao processo judicial, na medida em que igualmente abarca a atua-ção administrativa de privação da liberdade e da propriedade individual. Do contrário, restariam desprovidas de qualquer legitimidade as interdições realizadas pela Administração em relação aos estabelecimentos irregulares, os embargos de obras construídas à revelia da lei, as apreensões de mercado-rias deterioradas, dentre outras medidas administrativas autoexecutórias.65

Nesta conjuntura jurídica, se o conjunto específico de garantias e prin-cípios que encontram reservatório no devido processo legal é o que concede ao instituto densificação, caso se suscite a ofensa de determinada norma ao devido processo legal é necessário que se pontue, precisamente, qual garantia ou princípio específico a norma afronta, não bastando que se diga, generica-mente, que ela é ofensiva ao devido processo legal. No caso da execução fiscal administrativa, seria necessário pontuar qual garantia específica ela ofenderia,

um processo”, vedando-se que “ato pontual e imediatamente auto-executório suprima liberdade ou bens do particular”; “devido”, que ele entende como constitucionalmente adequado, aberto e participativo, garantindo-se ao cidadão voz ativa e igualdade entre as partes, observando-se todas as garantias constitucionais e legais; e “legal”, no senti-do do estabelecimento “de prévia definição legal de toda e qualquer previsão que vise atacar, aviltar ou suprimir, direta ou indiretamente, liberdade ou bens dos particulares” (MOREIRA, Egon Bockmann. Processos administrativos: Princípios constitucionais e a Lei 9.784/1999. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 278-285).

65. RODRIGUES, Rodrigo Bordalo. op. cit., p. 173. Na lição de Paulo de Barros Carvalho: “Existe o chamado ‘devido processo legal’, como instrumento exclusivo de preservar

direitos e assegurar garantias, tornando concreta a busca de tutela jurisdicional ou do ato jurídico-administrativo que consubstancia a manifestação final da Fazenda, em questões tributárias que dependam de ato formal expressivo de sua vontade” (CARVALHO, Paulo de Barros. Segurança Jurídica no novo CARF. In: ROSTAGNO, Alessandro [Coord.]. Contencioso Administrativo Tributário: Questões Polêmicas. Rio de Janeiro: Noeses, dez. 2011, p. 01-34, p. 16-17).

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devendo-se reiterar que o simples fato de se desenvolver na seara administrativa não é suficiente para caracterizar a ofensa; pois, como já explicado, o conjunto de garantias, o devido processo legal, não é sinônimo de processo judicial, po-dendo haver devido processo legal na esfera administrativa e, em certos âmbitos, mesmo nas relações entre particulares.

O devido processo legal na esfera administrativa, no caso específico da expropriação de bens, é, deve-se pontuar, parte indissociável da atuação da Administração Pública. No Direito positivo brasileiro, há diversas previsões de atos administrativos autoexecutórios que implicam na perda de bens, podendo-se citar, apenas para exemplificar, as normas do artigo 72, IV, V, VII e VIII, da Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998;66 o artigo 58 do Código das Águas (Decreto nº 24.643, de 10 de julho de 1934);67 o artigo 7º do Decreto-lei nº 3.365, de 21 de junho de 1.941;68 o artigo 45 da Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999;69 as normas da Lei nº 6.024, de 13 de março de 1974, que dispõe sobre intervenção e liquidação extrajudicial de instituições financeiras privadas e pú-blicas não federais, assim como as cooperativas de crédito, pelo Banco Central do Brasil; a intervenção administrativa nas sociedades seguradores, na forma

66. “Art. 72. As infrações administrativas são punidas com as seguintes sanções, observado o disposto no art. 6º:

[...] IV - apreensão dos animais, produtos e subprodutos da fauna e flora, instrumentos,

petrechos, equipamentos ou veículos de qualquer natureza utilizados na infração; V - destruição ou inutilização do produto; [...] VII - embargo de obra ou atividade; VIII - demolição de obra;”.67. “Art. 58. A administração pública respectiva, por sua própria forca e autoridade, pode-

rá repor incontinente no seu antigo estado, as águas públicas, bem como o seu leito e margem, ocupados por particulares, ou mesmo pelos Estados ou municípios:

a) quando essa ocupação resultar da violação de qualquer lei, regulamento ou ato da administração;

b) quando o exigir o interesse público, mesmo que seja legal, a ocupação, mediante indenização, se esta não tiver sido expressamente excluída por lei.

Parágrafo único. Essa faculdade cabe a União, ainda no caso do art. 40, nº II, sempre que a ocupação redundar em prejuízo da navegação que sirva, efetivamente, ao comércio.”

68. “Art. 7º Declarada a utilidade pública, ficam as autoridades administrativas do ex-propriante ou seus representantes autorizados a ingressar nas áreas compreendidas na declaração, inclusive para realizar inspeções e levantamentos de campo, podendo recorrer, em caso de resistência, ao auxílio de força policial. (Redação dada pela Medida Provisória nº 700, de 2015)”

69. “Art. 45. Em caso de risco iminente, a Administração Pública poderá motivadamente adotar providências acauteladoras sem a prévia manifestação do interessado.”

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do artigo 90 do Decreto-lei nº 73, de 21 de novembro de 1966;70 a intervenção administrativa prevista na Lei Complementar nº 109, de 29 de maio de 2001, nas entidades de previdência complementar;71 e, especificamente com reflexos na seara tributária, a pena administrativa de perdimento de bens, prevista no artigo 105 do Decreto-lei nº 37, de 18 de novembro de 1966, e no artigo 23, §1º, do Decreto-lei 1.445 de 7 de abril de 1976.

Todos os casos citados cuidam, inegavelmente, de normas que dispõe sobre privação de bens em sede administrativa, não havendo que se falar, em nenhuma delas, em inconstitucionalidade por ofensa ao devido processo legal. O Supremo Tribunal Federal, aliás, sequer discute a compatibilidade dessas normas com o devido processo legal, pontuando, apenas, que o processo específico no qual a Administração interfira na propriedade de bens deverá respeitar o repositório de normas específicas do due process of law.

Ao analisar essa questão, especificamente no tocante à pena de perdimento, o Ministro Cezar Peluso registrou que este se submete a dois cânones, inscritos no artigo 5º, LIV, e no artigo 150, IV:

O primeiro exige apenas que a privação do bem obedeça a todas as garantias, substantivas e adjetivas, inerentes ao princípio do justo processo da lei (due

70. “Art 90. Não surtindo efeito as medidas especiais ou a intervenção, a SUSEP encami-nhará ao CNSP proposta de cassação da autorização para funcionamento da Sociedade Seguradora.

Parágrafo único. Aplica-se à intervenção a que se refere este artigo o disposto nos arts. 55 a 62 da Lei no 6.435, de 15 de julho de 1977.”

71. “Art. 43. O órgão fiscalizador poderá, em relação às entidades abertas, desde que se verifique uma das condições previstas no art. 44 desta Lei Complementar, nomear, por prazo determinado, prorrogável a seu critério, e a expensas da respectiva entidade, um diretor-fiscal.

[...] Art. 44. Para resguardar os direitos dos participantes e assistidos poderá ser decretada a

intervenção na entidade de previdência complementar, desde que se verifique, isolada ou cumulativamente:

I - irregularidade ou insuficiência na constituição das reservas técnicas, provisões e fundos, ou na sua cobertura por ativos garantidores;

II - aplicação dos recursos das reservas técnicas, provisões e fundos de forma inadequada ou em desacordo com as normas expedidas pelos órgãos competentes;

III - descumprimento de disposições estatutárias ou de obrigações previstas nos regula-mentos dos planos de benefícios, convênios de adesão ou contratos dos planos coletivos de que trata o inciso II do art. 26 desta Lei Complementar;

IV - situação econômico-financeira insuficiente à preservação da liquidez e solvência de cada um dos planos de benefícios e da entidade no conjunto de suas atividades;

V - situação atuarial desequilibrada; VI - outras anormalidades definidas em regulamento.”

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process of law), que, sem contestação, foi observado na espécie. E a contra-rio, aqui sim, pode bem traduzir-se em que, se tais e outras garantias sejam respeitadas, não obsta à mesma privação por força de lei ordinária.

O segundo, esse proíbe, não eventual recurso legal do perdimento para sa-tisfação de gravame aos cofres públicos, mas apenas a tributação excessiva, que aniquilaria os direitos de propriedade e de liberdade, e que, como tal, em nada diz com o caso.72

O Ministro, em conclusão, pontuou que a perda de bens em sede admi-nistrativa (perdimento) não ofende nenhum preceito constitucional, desde que sejam assegurados ao administrado, na seara administrativa, os direitos e garantias específicos decorrentes do devido processo legal. A Constituição, portanto, em nenhum momento impediu a privação de bens em sede adminis-trativa, apenas exigiu que, no processo concreto onde se efetive a expropriação de bens, sejam respeitadas as garantias do devido processo legal. Exigiu, ainda, e aqui complementamos a lição do Ministro Peluso, que fosse garantido ao administrado, no caso de lesão ou ameaça a direito, o acesso ao Judiciário. O acesso ao Judiciário, aliás, deve ser franqueado ao particular antes mesmo do início da execução do ato, dado que o fato de a lei autorizar a execução de ofí-cio não afasta a possibilidade de controle a priori da atuação administrativa.73

O devido processo legal não serve, pois, de impedimento à execução fiscal administrativa nem à autoexecutoriedade dos atos administrativos em geral; servindo, sim, como um limite, na medida em que impõe, pela necessidade de respeito aos seus desdobramentos, uma série de condicionamentos ao processo de execução concreto:

O devido processo legal não representa cláusula que repele o atributo da autoexecutoriedade do ato administrativo. Juridicamente aceitável a coexis-tência entre as noções, da mesma forma que se admite, no âmbito do regime jurídico administrativo, a concomitância entre o princípio da supremacia e o princípio da indisponibilidade. O Direito Administrativo é impregnado pela

72. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Recurso Extraordinário nº 251008/DF. Relator: Ministro Cezar Peluso. Decisão unânime. Brasília, 27 de agosto de 2004, publicação em 29.9.2004

73. “Evidentemente, o fato de o atributo autorizar a execução pela própria Adminis-tração, prescindindo de autorização judicial anterior, não afasta a possibilidade de controle “a priori” pelo destinatário do ato exequendo. Ou seja, a desnecessidade de intervenção prévia para que haja a efetivação da autoexecutoriedade não significa que se apresenta como incabível o controle prévio da prerrogativa. Escopo principal do princípio do devido processo legal é permitir ao particular a tomada de provi-dências visando ao combate de uma atuação estatal indevida. Assim, perceba-se que os condicionantes ao exercício da execução coativa possibilitam este controle prévio à tomada de qualquer ato material pela Administração” (RODRIGUES, Rodrigo Bordalo. op. cit., p. 209).

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relação dialética entre autoridade e liberdade, entre prerrogativas e sujeições. Assim, o devido processo legal constitui princípio que conforma a execução administrativa, ajustando-a a preceitos limitadores da atuação estatal, tanto sob a ótica processual quanto substancial.74

Diante desse quadro, podemos concluir que, assegurando-se ao adminis-trado, além das garantias do devido processo legal, o acesso ao Judiciário no caso de lesão ou ameaça a direito (o que, no ordenamento jurídico brasileiro, também pode ser considerado uma decorrência do devido processo legal), deve ser considerada constitucional a expropriação administrativa de bens. Esta, a propósito, a lição que já nos oferecia Hans Kelsen em 1945. Para ele, o fato de a Constituição prescrever que nenhuma interferência no patrimônio, na liberdade e na vida do indivíduo pode ocorrer sem o “devido processo de Direito” não impõe, necessariamente, o monopólio da função judiciária pelos tribunais, podendo o processo administrativo no qual exercida a interferência assinalada ser regulado de um modo que corresponda ao ideal do “devido processo de Direito.75

Denise Lucena Cavalcante, com percuciência, também conclui, além da conveniência, pela juridicidade do processo administrativo de execução fiscal:

Está claramente comprovado que não é possível ter uma justiça tributária com o Poder Judiciário extremamente ocupado com atribuições referentes à cobrança do crédito tributário, que por sua própria natureza, são atividades meramente administrativas, podendo ser dispensada a interferência do juiz nos trâmites procedimentais da cobrança.

[...]

Vamos refletir com imparcialidade: será mesmo tão absurdo que o próprio Estado, responsável pela constituição, fiscalização e cobrança administrativa do crédito tributário, seja incompetente para continuar a cobrança deste crédito através da execução forçada? Parece-nos que não.

O fato de o fisco continuar na tarefa da cobrança administrativa do crédito tributário não significa, de modo algum, que se esteja violando princípios constitucionais, ou agredindo o devido processo legal administrativo ou judicial.

A violação das garantias constitucionais não decorre desta alteração do procedimento da cobrança, mas, sim, se isto for feito de forma arbitrária e sem observância do devido processo legal.76

74. RODRIGUES, Rodrigo Bordalo. op. cit., p. 172.75. KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado. Tradução de Luís Carlos Borges. São

Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 271.76. CAVALCANTE, Denise Lucena. Execução fiscal administrativa e devido processo legal.

Revista Nomos, v. 26, 2007, p. 47-54, p. 50.

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Cap. 7 ◆ MODELO DE EXECUÇÃO FISCAL ADMINISTRATIVA PARA COBRANÇA DAS OBRIGAÇÕES TRIBUTÁRIAS 497

Harada, embora seja contra à execução fiscal integralmente administrativa, registra, pelo menos em relação ao ato específico da penhora administrativa, não ter localizado nenhuma objeção de natureza científica que sustente eventual “reserva de jurisdição”:

Aos opositores da penhora administrativa eu pergunto: a penhora de um imóvel X ordenada pelo juiz competente causa constrangimento menor ao devedor do que a penhora do mesmo imóvel X ordenada pela autoridade administrativa competente? Claro que não! A penhora efetivada por ordem da autoridade administrativa competente oferece maior dificuldade de defesa do que aquela ordenada pelo juiz competente? A resposta negativa se impõe! Então, pergunto, por que a resistência? Por que o juiz deveria ficar vigiando o ato de penhora? Seria por causa da superstição?

O importante, o relevante juridicamente é assegurar os princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. Se a penhora for excessiva ou se ela não obedecer a gradação prevista na lei sempre restará ao devedor impugnar essa penhora por ocasião dos embargos, regidos pelo princípio da eventualidade.77

Para nós, não apenas a penhora, mas todos os atos executórios podem e devem ser realizados pelo Estado-Administração, o que em nada ofenderá o devido processo legal, desde que, na regulação concreta, sejam asseguradas aos contribuintes todas as garantias do devido processo legal, inclusive, no tocante a eventuais lides de pretensão discutida, a atribuição do Estado-Juiz para pro-cessamento e julgamento definitivo.78

Devemos registrar, ainda, que a execução fiscal administrativa é regra nos países ocidentais, conforme exposto na segunda parte deste trabalho, onde analisamos países com sistemas jurídicos que têm servido de exemplo ao nosso, como Estados Unidos, França, Alemanha, Espanha e Portugal. Em todos esses países, o devido processo legal, estando ou não inserido expressamente na Cons-tituição, também é reconhecido como garantia fundamental, o que em nenhum momento impediu o desenvolvimento da execução fiscal administrativa.

77. HARADA, Kiyoshi. Exame do anteprojeto de lei que dispõe sobre a cobrança de dívida ativa apresentado pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional e seu substitutivo. In: Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1430, 1 jun. 2007. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/9968>.

78. Além disso, do mesmo modo que ocorre na execução fiscal judicial, a discussão acerca do crédito tributário formalizado, no âmbito da execução administrativa, também será, de ordinário, postergada, o que é natural na dinâmica de todo processo de execução de título extrajudicial, onde o contraditório, além de eventual, é, regra geral, posterior (exercido por meio de embargos). As garantias constitucionais, embora alcancem todo o processo, não o fazem de modo absoluto e indistintamente, adaptando-se às fases e especialidades dos procedimentos (BECKER, L. A. Contratos bancários: execuções especiais. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 273).

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E não se venha dizer que o devido processo legal, na Constituição Federal de 1988, possui uma redação mais restrita, mais específica ou está inserido em uma construção normativa peculiar, porque tal não se sustenta. A positivação do devido processo legal, na nossa Constituição, foi realizada seguindo exa-tamente a redação tradicional do instituto, nos termos fixados desde a Carta Magna de 1.215:

Nenhum homem livre será detido ou sujeito à prisão, ou privado dos seus bens, ou colocado fora da lei, ou exilado, ou de qualquer modo molestado, e nós não procederemos nem mandaremos proceder contra ele senão mediante um julgamento regular pelos seus pares ou de harmonia com a lei do país.79

Dizer, como nossa Constituição o diz, que ninguém será privado de seus bens sem o devido processo legal é, portanto, repetir a redação clássica do prin-cípio do devido processo legal, razão pela qual José Afonso da Silva registra que a inserção positivo-constitucional do devido processo legal no ordenamento jurídico brasileiro placitou o enunciado da Carta Magna Inglesa de 1215.80

A redação tradicional do devido processo legal também foi placitada pela Constituição dos Estados Unidos na Seção 1 da Emenda XIV.81 A Constituição norte-americana, depois de determinar que nenhum Estado poderá fazer ou executar lei que limite os privilégios ou as imunidades dos cidadãos dos Es-tados Unidos (“No State shall make or enforce any law which shall abridge the privileges or immunities of citizens of the United States”); proibiu que os Estados privassem as pessoas da vida, da liberdade e da propriedade de seus bens sem o devido processo legal ( [...] nor shall any State deprive any person of life, liberty, or property, without due process of law).

Note-se que a redação da Constituição norte-americana é, na essência, exatamente igual a nossa (ou, para sermos mais honestos, a nossa é igual a deles), salvo pelo acréscimo da palavra “vida”, que não consta no enunciado normativo da Constituição brasileira.82

79. Magna Carta de 1.215 (Magna Charta Libertatum). Tradução da Biblioteca Virtual de Direitos Humanos. Universidade de São Paulo (USP). Disponível em: <http://www.direitoshumanos.usp.br/>.

80. SILVA, José Afonso da Silva. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 434-435.

81. “EMENDA XIV Section 1. All persons born or naturalized in the United States and subject to the juris-

diction thereof, are citizens of the United States and of the State wherein they reside. No State shall make or enforce any law which shall abridge the privileges or immunities of citizens of the United States; nor shall any State deprive any person of life, liberty, or property, without due process of law; nor deny to any person within its jurisdiction the equal protection of the laws.”

82. Para Elizabeth Moura, há razões para não inclusão da palavra “vida” no texto consti-tucional brasileiro:

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Cap. 7 ◆ MODELO DE EXECUÇÃO FISCAL ADMINISTRATIVA PARA COBRANÇA DAS OBRIGAÇÕES TRIBUTÁRIAS 499

Não existe, pois, nenhuma peculiaridade na redação do devido processo legal na Constituição Federal de 1988, não havendo como se defender que, somente no Brasil, a execução fiscal administrativa ofenderia este princípio.

Caso existisse alguma norma específica, além do princípio do devido pro-cesso legal, que limitasse, na Constituição brasileira, a atuação autoexecutória da Administração, até se poderia pensar na inconstitucionalidade da execução fiscal administrativa. É o caso, por exemplo, da Argentina, onde a Corte Suprema de Justiça julgou inconstitucional a possibilidade de medidas cautelares e da penhora administrativa, conforme analisamos ao cuidar do processo tributário argentino. Sem entrar no mérito da decisão, não podemos deixar de chamar atenção para duas peculiaridades normativas da Constituição argentina: o ar-tigo 17, que condiciona a perda da propriedade à “sentencia fundada en ley”,83 e não, simplesmente, como a brasileira, a um processo devido e legal, que pode ser judicial ou administrativo; e o artigo 109, que veda ao Executivo o exercício de funções judiciais.84 Mesmo, repetindo, sem discutir o mérito da decisão da Suprema Corte argentina (que, aliás, deu-se por apertada maioria de 4 a 3), a existência de dois enunciados normativos constitucionais que limitam a atuação do Estado-Administração, certamente, justificou, alhures, a discussão acerca da constitucionalidade da adoção de atos administrativos de constrição.

“A principal e mais significativa diferença entre o devido processo legal prescrito na nossa legislação e o due process of law prescrito na ordem jurídica norte-americana, que pela simples leitura fica imediatamente evidente é que, no direito pátrio, ‘ninguém será privado da liberdade (grifo nosso) ou de seus bens (grifo nosso) sem o devido processo legal’, ou seja, a Constituição brasileira determina que o Estado não poderá privar ninguém da vida, nem por intermédio do jus puniendi, nem por meio de nenhum outro ato emanado do Poder Público” (MOURA, Elizabeth Maria de. O devido processo legal na constituição brasileira de 1988 e o estado democrático de direito. São Paulo: Celso Bastos Editor, 2000, p. 83).

Uadi Bulos, por outro lado, ensina que, embora o Constituinte somente tenha cuidado expressamente do direito à liberdade e à propriedade, a cláusula, em razão do artigo 5º, §2º, é bem mais aberta, envolvendo a inviolabilidade à vida, a privacidade, o direito de locomoção, a legalidade, os bens corpóreos e incorpóreos, etc. (BULOS, Uadi Lammêgo. op. cit., p. 567).

83. “Art. 17.- La propiedad es inviolable, y ningún habitante de la Nación puede ser privado de ella, sino en virtud de sentencia fundada en ley. La expropiación por causa de utilidad pública, debe ser calificada por ley y previamente indemnizada. Sólo el Congreso impone las contribuciones que se expresan en el artículo 4º. Ningún servicio personal es exigible, sino en virtud de ley o de sentencia fundada en ley. Todo autor o inventor es propietario exclusivo de su obra, invento o descubrimiento, por el término que le acuerde la ley. La confiscación de bienes queda borrada para siempre del Código Penal argentino. Ningún cuerpo armado puede hacer requisiciones, ni exigir auxilios de ninguna especie.”

84. “Art. 109.- En ningún caso el presidente de la Nación puede ejercer funciones judiciales, arrogarse el conocimiento de causas pendientes o restablecer las fenecidas.”

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A Constituição brasileira, no entanto, não possui normas semelhantes àque-las citadas, presentes na Carta Magna argentina, não exigindo a sentença judicial como condição para perda da propriedade, razão pela qual, inclusive, existem diversos atos administrativos autoexecutórios no nosso sistema jurídico.85 Não calha, pois, nenhuma tentativa de utilizar, como exemplo para questionamento da compatibilidade constitucional da execução fiscal administrativa ao Direito brasileiro, a decisão da Corte Suprema de Justiça argentina – o que se diz apenas para argumentar, pois, ainda que calhasse a comparação, é preciso reforçar que o Judiciário brasileiro é independente e não seria, obviamente, obrigado a se curvar ao entendimento eventual do Estado-Juiz argentino.

Bem analisada, pois, a Constituição brasileira, e a amplitude do devido processo legal, pode-se concluir que este último acaba se tornando um obstá-culo meramente retórico à execução fiscal administrativa: uma tentativa (até então, bem-sucedida) de se impedir uma mudança de paradigma processual (execução fiscal administrativa) por meio de uma figura jurídica de inegável força persuasiva (o “devido processo legal”). Ocorre que o devido processo legal não pode servir de obstáculo retórico à evolução jurídica, não podendo ser suscitado sempre que se pretenda realizar uma alteração legislativa apta a romper um paradigma. O simples rompimento de um paradigma jurídico, por mais que este faça parte da tradição legislativa, não interfere, por si só, no devido processo legal – e tanto a implementação quanto o reconhecimento da compatibilidade constitucional da denominada Lei de Arbitragem exemplifi-cam a assertiva. O direito de ser julgado segundo a “lei da terra” não implica na impossibilidade de alteração dessa lei, apenas impõe que tais alterações sejam realizadas segundo determinados critérios jurídico-constitucionais previamente fixados.

A positivação da execução fiscal administrativa, embora represente uma alteração de paradigma, não ofende, em tese, nenhum princípio ou regra cons-titucional. A atividade de controle prévio e de execução de atos administrativos que o Judiciário tem praticado na execução fiscal decorre de uma decisão política do legislador, não de uma determinação constitucional. O modelo judicializado de execução fiscal, solução adotada pelo Direito brasileiro, não é uma imposi-ção jurídica, mas apenas uma solução circunstancial, política e, acima de tudo, completamente equivocada, que usa, em larga escala, a máquina judiciária para concretizar atos administrativos que poderiam ser concretizados pela própria Administração.86

85. MELO FILHO, João Aurino de. Sistemas de cobrança executiva da obrigação tributária no direito comparado: execução fiscal administrativa como modelo moderno de cobrança da administração tributária de massas. op. cit., p. 43.

86. Em sentido semelhante, a lição de Anderson Ricardo Gomes: “Na realidade, não há na Constituição Federal qualquer óbice à realização de atos

procedimentais de expropriação patrimonial pela própria Administração Tributária,

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Cap. 7 ◆ MODELO DE EXECUÇÃO FISCAL ADMINISTRATIVA PARA COBRANÇA DAS OBRIGAÇÕES TRIBUTÁRIAS 501

O problema é que essa decisão do legislador, de impor ao Estado-Juiz a curatela cautelar dos contribuintes inadimplentes e a execução material de atos do Estado-Administração, tem gerado um alto custo, e não apenas econômico, ao Judiciário, à Administração e, principalmente, à sociedade como um todo, que, além de pagar pelos serviços adicionais praticados pelo Judiciário (que é financiado com os tributos pagos por todos), é obrigada a arcar com os ônus daí decorrentes, como a demora na conclusão dos demais processos judiciais.

5. RACIONALIDADE TELEOLÓGICA DA EXECUÇÃO FISCAL ADMINISTRATIVA

No sistema de resolução de conflitos tributários, o Estado, em algum momento, terá o poder de cobrar, executivamente, a satisfação da obrigação tributária não atendida. Resta saber, do ponto de vista teleológico, qual a ins-tância estatal adequada, administrativa ou judicial, para o desenvolvimento dessa fase de cobrança.

Estudando-se as três funções básicas do Estado,87 pode-se dizer que a função normativa é própria do Legislativo; a jurisdicional, do Judiciário; e a

sendo que a atribuição de tal competência ao Poder Judiciário decorre da tradição administrativa e processual vigente no Brasil, representando apenas o resultado da escolha política efetuada pelo legislador pátrio.

[...] De tal forma, a intervenção do Poder Judiciário reservada apenas aos atos decisórios

e resolução de questões controversas que eventualmente surjam incidentalmente no procedimento, mais do que possível, é aconselhável, pois tem o efeito de desobstruir o Poder Judiciário de atividades meramente burocráticas e formalistas, possibilitando que este Poder canalize seus recursos e servidores para a efetiva resolução de conflitos de interesses” (GOMES, Anderson Ricardo. Necessária mudança de paradigma na cobrança de créditos tributários no Brasil. Monografia premiada no 2º concurso de monografias do Sinprofaz (Sindicato Nacional de Procuradores da Fazenda Nacional). Revista Justiça Fiscal, ano 8, número 30, maio/agosto, 2017, p. 17-29, p. 24).

87. Diogo de Figueiredo Moreira Neto fala em quatro funções do Estado: normativa, insti-tuidora da ordem jurídica, realizando-se pela criação da norma; jurisdicional, exercida para controlar a observância da ordem jurídica, o controle de juridicidade; adminis-trativa, que tanto pode ser apreciada pelo viés negativo, como toda aquela função que não se destine à edição de regra legal ou à produção de decisão jurisdicional, quanto pelo positivo, podendo ser entendida como toda atividade estatal que vise atender a necessidades de planejamento, decisão, execução e controle destinados à gestão de interesses públicos; e, enfim, política, cujo marca é a discricionariedade, nos termos da ordem jurídica, que permite que certas escolhas integrativas sejam confiadas aos agentes do Estado (MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. op. cit., p. 20-21).

Sobre a função política, que também deve ser limitada pelo princípio da juridicidade, cabível a ponderação do autor, contra uma interpretação mais extensiva dos seus limites:

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