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HÉLIO PEREIRA LIMA RACIONALIDADE E EMANCIPAÇÃO UMA LEITURA DA TEORIA DA MODERNIDADE DE JÜRGEN HABERMAS UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES MESTRADO EM FILOSOFIA JOÃO PESSOA - PB 2000

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HÉLIO PEREIRA LIMA

RACIONALIDADE E EMANCIPAÇÃO

UMA LEITURA DA TEORIA DA MODERNIDADE DE

JÜRGEN HABERMAS

UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES

MESTRADO EM FILOSOFIA

JOÃO PESSOA - PB 2000

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HÉLIO PEREIRA LIMA

RACIONALIDADE E EMANCIPAÇÃO

UMA LEITURA DA TEORIA DA MODERNIDADE DE

JÜRGEN HABERMAS

Orientador: Prof. Dr. Giovanni da Silva Queiroz

João Pessoa – PB 2000

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HÉLIO PEREIRA LIMA

RACIONALIDADE E EMANCIPAÇÃO

UMA LEITURA DA TEORIA DA MODERNIDADE DE

JÜRGEN HABERMAS Aprovado em 16.03.2000

COMISSÃO EXAMINADORA

_________________________________________ Prof. Dr. Giovanni da Silva Queiroz (UFPB)

Orientador

_________________________________________ Prof. Dr. Edmilson Meneses Santos (UFSE)

Examinador

_____________________________________________ Prof. Dr. José Francisco de Melo Neto (UFPB)

Examinador

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Dedico este trabalho a todos aqueles que acreditaram no diálogo e fazem dele o caminho de busca da superação dos conflitos

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Agradeço à Universidade Católica de Pernambuco, na pessoa do Magnífico

Reitor, Pe. Theodoro Paulo Severino Peters, SJ., toda a confiança e o apoio

recebidos, para a realização deste trabalho;

Ao corpo docente do Programa de Mestrado em Filosofia da Universidade

Federal da Paraíba, pela dedicação com que se dispôs a colaborar nessa etapa de

formação; e aos colegas mestrandos desse Programa, que comigo compartilharam

dos desejos e ansiedades, próprios de quem se lança na busca do conhecer.

De maneira especial, agradeço aos colegas do Departamento de Filosofia e

Teologia da Universidade Católica de Pernambuco, sobretudo aos que diretamente

contribuíram para a realização desta pesquisa;

À minha esposa, Maria Izabel e minha filha, Marina, com as quais

compartilho, mais proximamente, da experiência do diálogo.

Um particular agradecimento ao Prof. Dr. Giovanni da Silva Queiroz, que

com paciência e dedicação, acolheu a tarefa de orientar a elaboração deste trabalho.

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“Penso que antes deveríamos aprender com os

desacertos que acompanham o projeto da modernidade, com

erros dos ambiciosos programas de superação, ao invés de dar

por perdidos a própria modernidade e seu projeto”

Jürgen Habermas

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RESUMO

A presente dissertação tem como objetivo fazer uma leitura da teoria

da modernidade de Jürgen Habermas. O pressuposto dessa teoria é o de que o

processo de racionalização estabeleceu uma relação interna, indissociável, entre

modernidade e racionalidade. Tal indissociabilidade radica-se na compreensão de

que a racionalização possibilitou a liberação de conteúdos cognitivos, bem como

de tipos de racionalidades específicas, os quais só podem ser apreendidos mediante um

conceito de razão mais amplo: a razão comunicativa. Esta procura superar os limites

da filosofia da subjetividade, que se expressa na relação monológica entre sujeito e

objeto, que conhece o mundo egocentricamente. É mediante a perspectiva da

racional idade dialógica que se manifestam tanto a dignidade da modernidade, que

se fundamenta na diferenciação em esferas de valores independentes, quanto o

sentido emancipador desse novo modelo de razão, que consiste em resgatar sua

unidade, à medida que instaura o diálogo, com vistas ao entendimento, como

paradigma da intercompreensão entre sujeitos.

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INTRODUÇÃO

Uma das preocupações encontradas no pensamento de Jürgen

Habermas, senão o acento principal, é a de que a modernidade é um “projeto

inacabado”. Isso significa que, ainda, existe algo a ser esclarecido, e, como tal, está

presente e é parte constitutiva das discussões que se fazem em torno da atualidade e

do sentido do mundo moderno. Tal afirmação pode ser reforçada, quando se

observa a aproximação entre os conceitos de modernidade e crise1. Sobretudo,

porque, nem sempre, se estabelece, com clareza, a compreensão do primeiro

conceito, que, por sua própria plurivocidade, sempre está aberto a mais de um

sentido, ou mesmo a epocalidades diversas. Porém, uma coisa é certa: esse conceito

sempre se evidencia quando se pretende explicitar o novo ethos que, por colocar-se

como momento do transitório, do fugaz, da mudança e do elogio do novo e atual, já

se apresenta como que envelhecido em sua própria dinâmica, mas que, ao mesmo

tempo, não quer se desvencilhar dos impasses gerados por ele mesmo, senão,

mediante o seu principal alcance, como bem foi definido por Kant: a conquista da

maioridade realizada dos homens, pelo uso público da razão. Por conseguinte, é na

aproximação dos conceitos de modernidade e crise que podemos compreender o

1 Para uma melhor compreensão do significado do conceito de crise que está sendo empregado neste trabalho, ver anexo, p. 126.

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esforço teórico habermasiano, no sentido de buscar responder aos conflitos gerados

no interior dessa nova cultura, a partir das condições oferecidas por ela mesma.

O objetivo proposto nesse trabalho é procurar fazer uma análise da

relação entre modernidade e racionalidade, dentro do horizonte estabelecido por

Habermas, no discurso inaugural proferido por ocasião da entrega do Prêmio

Adorno, na cidade de Frankfurt, em 1980, Modernidade – Um Projeto Inacabado,

horizonte este retomado em O Discurso Filosófico da Modernidade (1985) e em

Pensamento Pós-Metafísico (1988). Nesses textos, ele vai defender que os ideais

sobre os quais foi plasmado o ethos iluminista, ainda, se encontram presentes nas

estruturas da sociedade moderna, e, porque não foram completamente realizados,

sobretudo no que concerne ao ideal de emancipação, presente na razão, não podem

ser abandonados, sob o risco de ter que abandonar a própria razão, signo sob o qual

o Ocidente quis se compreender, ao longo de sua história, e teve, na reflexão

filosófica, seu bastião, enquanto expressão reflexiva da realização do sentido da

vida, com vistas à construção da “morada” do homem.

O pretexto desse trabalho é, portanto, fazer um percurso no

pensamento de Habermas, para tentar compreender porque o projeto da

modernidade não pode ser descuidado. E se isso acontecer, significa abandonar a

capacidade da razão de ir buscar, mediante a reflexão, a liberação do controle de

poderes hipostasiados, por um lado, e, por outro, descobrir, com as suas próprias

medidas, as condições para a realização de uma humanidade emancipada.

A teoria da modernidade de Habermas foi construída a partir de um

eixo, a saber, o da razão comunicativa, sobre o qual gravitam duas construções

teóricas, convergentes. A primeira elaborada no horizonte do ethos Iluminista, tendo

como ponto de partida o processo de racionalização de M. Weber. A segunda,

mediante uma reconstrução teórica desde a “filosofia das origens”, para resgatar o

momento da razão mergulhado na contingência, à medida que reforça a idéia da não

realização do “projeto da modernidade”. Ambas as construções procuram

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estabelecer a coextensividade dos conceitos de razão e de emancipação, bem como

a sua continuidade com a tradição do pensamento ocidental.

No capítulo primeiro, será tematizada a primeira construção teórica.

Esta já pode ser encontrada no artigo Modernidade – Um Projeto Inacabado, que é

retomada, de uma forma mais aprofundada, em O Discurso Filosófico da

Modernidade. Aqui se pode perceber que a reflexão gravita em torno da

configuração do contexto do ethos do Iluminismo. Porém, o ponto de partida da

teoria da modernidade de Habermas é o conceito de racionalização, oriundo de

Weber. Nesses dois trabalhos, ele recorre à Sociologia para tentar compreender o

processo de racionalização, não apenas como uma extensão progressiva a toda

sociedade da racionalidade com respeito a fins (Zweckrationalität) – racionalidade

instrumental, para Horkheimer e Adorno –, mas como um processo seletivo2. Esse

possibilitou a liberação, na sua máxima expressão, do potencial de racionalidade

comunicativa, mediante o qual pode-se lançar mão de um outro conceito de razão,

que seja capaz de apontar uma saída para as aporias da filosofia do sujeito.

Para Max Weber, o processo de racionalização deu-se como um

processo de desencantamento das imagens mítico-religioso-metafísicas do mundo,

no qual as diversas áreas do saber, ciência, moral e arte – modernização cultural –

conquistaram a sua autonomia e se desenvolveram, livres da tutela da religião e da

política. Simultaneamente, a economia e a política – modernização social – se

desenvolveram dentro de suas lógicas próprias, com regras definidas pelo mercado

e pelo direito positivo burguês, respectivamente. Essa clivagem, em diversas esferas

de justificação, já havia sido elaborada por Kant, nas suas “Críticas”. Ao realizar a

crítica à metafísica tradicional, que teve como conseqüência o estabelecimento dos

limites e das possibilidades de uma razão cindida, Kant nos legou um modelo de

razão cuja unidade tem, apenas, caráter formal. Essa clivagem da razão é percebida

2 A tese da seletividade dos processos de racionalização é, nas palavras de Richard J. BERNSTEIN “a pretensão sociológica mais importante de Habermas”, porque cria as condições para que ele possa pensar um conceito mais amplo de racionalidade, não explorado nem por M. Weber, nem por Horkheimer e Adorno. Habermas e la Modernidad. Trad. Francisco R. Martín. Madrid: Cátedra, 3a ed, 1994, p. 46 s.

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por Hegel como sendo o motivo e a necessidade da filosofia, pois, é própria do

pensamento a consciência dessa contradição e a busca de sua superação. Aqui a

razão emerge como poder de unificação dos diferentes. Porém, dada sob a medida

do Espírito Absoluto, a resposta de Hegel às cisões da modernidade vai além das

suas próprias condições, pois esta quer se compreender dentro de seus próprios

limites. É o que Marx procura fazer, quando retira do espírito hegeliano a síntese, e

a coloca no trabalho. Por conseguinte, tanto a elaboração da síntese pelo Espírito, na

filosofia hegeliana, quanto à síntese elaborada pela práxis, marxiana, conforme

Habermas, não respondem às cisões da modernidade, porque ambas estavam

prisioneiras da filosofia da subjetividade.

No segundo capítulo, será analisada a herança da filosofia da práxis na

Escola de Frankfurt, especificamente, a crítica da razão iluminista, talhada à medida

da Dialética do Esclarecimento, de Horkheimer e Adorno. Estes tomaram o

processo de racionalização como um empreendimento no qual a razão substancial

foi tragada pela racionalidade instrumental, cujo serviço ao esclarecimento e a auto-

conservação selvagem conduz à reificação: “A essência do esclarecimento é a

alternativa que torna inevitável a dominação”3. Na dialética do Iluminismo, que é

unidade da regressão e do progresso, da liberdade e da barbárie, venceu a dimensão

regressiva da razão, suprimindo a própria dialética. Nesse espectro, a história passa

a ser interpretada como o desenrolar de uma trama, em cujos meandros se divisa a

perda progressiva da autonomia do sujeito, graças à dominação da natureza exterior

e da repressão da natureza interior, sob o domínio da razão instrumental.

Essa perspectiva é contestada por Habermas, sob o seguinte

argumento: se se despoja a razão da sua pretensão de validade, ela é assimilada ao

poder. Ao mesmo tempo significa negar a dignidade da modernidade que consiste,

exatamente, na diferenciação em esferas de valores independentes, conforme

defendeu Weber. Com isso, tentaremos mostrar que a inflexão dada, na Dialética do

3 T. ADORNO e M. HORKHEIMER. Dialética do Esclarecimento. Trad. Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985, p. 43.

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Esclarecimento, aos efeitos reificantes da modernização sistêmica, impossibilitou

aos seus autores perceberem que o processo de racionalização liberou, também, o

potencial comunicativo de razão, enraizado no mundo da vida.

Finalmente, no terceiro capítulo, será feita a tentativa de análise da

segunda construção teórica. Aqui, haverá um esforço de compreensão do conceito

de razão comunicativa. Com esse conceito, Habermas acredita ter conquistado uma

saída para as cisões da razão na modernidade. Agora livre das aporias da filosofia

do sujeito, bem como da crítica radical da razão, o caminho está aberto ao diálogo

com o conceito de razão, mitigado, da perspectiva contextualista. Dessarte, se, na

primeira análise, o horizonte da reflexão é o Iluminismo, agora, resgatando o

momento da razão mergulhada na contingência, o horizonte se amplia até as origens

do pensamento ocidental. Sob esse aspecto, o próprio desenvolvimento da

perspectiva contextualista é tomado como um sinal de que a modernidade não

morreu, que o conceito de razão ainda está presente, e que os ideais iluministas têm

ainda algo a realizar. Mais do que isso: o que se observa, é que, se o momento do

condicionado, da cumplicidade da razão com o contingente, ainda, está presente, é

porque o momento do incondicionado, transcendental, está se revelando, ou como

diz Habermas, a precedência metafísica do uno frente ao múltiplo, e a precedência

contextualista do diverso frente ao uno são “cúmplices secretos”.

No Pensamento Pós-metafísico, principalmente quando trata do tema

da Unidade da Razão na Multiplicidade de suas Vozes, é retomado o conceito de

razão comunicativa, já consolidado na Teoria da Ação Comunicativa. Com isso, é

estabelecido um diálogo, agora, de uma forma mais ampla, com toda a tradição do

pensamento ocidental metafísico, mostrando que este conceito de razão, não apenas

está inserido nessa tradição, mas, acima de tudo, é um conceito de razão que abarca,

dialeticamente, os dois momentos da razão: o da contingência (pluralidade) e o da

necessidade (unidade). Assim, a teoria habermasiana da modernidade, resgatando os

dois momentos da razão, reafirma o papel que esta passa a desempenhar no

processo de racionalização: não mais como juiz absoluto, mas como uma razão

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“débil”, mediadora do diálogo entre o mundo da vida e uma modernização social

que se tornou autônoma. Como um parceiro que não se acanha, nem se amesquinha,

no confronto com o seu outro: uma modernidade em crise, que reafirma e acredita

na sua capacidade de pensar, a partir de seus próprios limites. Isso significa que dos

limites de uma razão débil, vem a sua força, uma força que deita suas raízes no

diálogo, intersubjetivamente compartilhado, com vistas ao entendimento mútuo,

caminho para a conquista da maioridade realizada dos homens, condição para uma

vida emancipada.

Em suma, nessa perspectiva, o que se vai procurar analisar é se o

conceito de razão comunicativa, consegue lançar luzes sobre uma sociedade, cujos

sinais mais visíveis são de perda de sentido e de liberdade. Essa questão quer nos

lançar ao cerne da problemática do processo de racionalização, e ao coração da

teoria da modernidade de Habermas, qual seja, se de fato esse conceito resgata a

relação interna entre modernidade e racionalidade. Sob esse prisma, uma última

pergunta a ser feita é a seguinte: até que ponto os ideais da razão iluminista, que

postulavam uma humanidade emancipada, podem ser tomados como ideais que não

foram realizados, ainda, ou se eles foram perdidos ao longo da travessia sem retorno

da inexorabilidade da odisséia humana?

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CAPÍTULO I

MODERNIDADE E RAZÃO

1.1. Weber: Uma Modernidade Racionalizada.

O presente capítulo tem como objetivo introduzir a análise sobre a

relação interna entre modernidade e racionalidade. Levando em consideração que o

intento desse trabalho é fazer uma leitura da teoria habermasiana da modernidade,

cujo cerne é essa relação acima referida, houve por bem, para efeito de maior

clareza possível na exposição das idéias, seguir o mesmo caminho percorrido por

Habermas para a elaboração de sua teoria. Esta tem como ponto de partida o

processo de racionalização de Weber, que é tomado como fio condutor para a

realização de uma leitura crítica do nosso tempo.

Isso significa, por um lado, que na teoria da racionalização weberiana

encontra-se a chave de leitura para a compreensão do que Habermas denomina de

“projeto da modernidade”4, cujo cumprimento ainda se encontra “inacabado” e, por

4 “... o projeto da modernidade, formulado no século XVIII pelos filósofos do Iluminismo, consiste em desenvolver impertubavelmente, em suas respectivas especificidades, as ciências objetivantes, os

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outro, que a relação interna entre modernidade e racionalidade, tida como evidente

até Weber, mas colocada em questão pelo pensamento pós-moderno, só pode ser

resgatada se se retorna a Hegel, tendo em vista que foi ele “o primeiro filósofo a

desenvolver um conceito preciso de modernidade ...”5, e porque as tentativas de

saídas da crise desse novo ethos ainda não responderam à questão deixada em

aberto por ele, qual seja: a da certificação6 da modernidade.

Em O Discurso Filosófico da Modernidade (1985), Habermas procura

estabelecer e discutir, sistematicamente, um ponto de partida para a compreensão da

Modernidade, tomando como impulso gerador de sua análise a premissa segundo a

qual ela não esgotou todas as suas possibilidades de realização: é uma ilustração que

ainda não foi esclarecida7. A necessidade de sua certificação como problema a ser

considerado pela reflexão filosófica contemporânea adquire relevo no interior do

pensamento habermasiano mediante o desafio colocado pelo pensamento ‘pós-

metafísico’, que intenta romper com os ideais emancipadores da razão presentes no

pensamento ilustrado, uma vez que visualiza, nesses ideais, tão-somente, ou um

irônico e avançado engendramento de novas irracionalidades e repressão, ou abraça

a defesa da modernização social em detrimento da modernidade cultural.

fundamentos universalistas da moral e do direito e a arte autônoma, mas ao mesmo tempo consiste também em liberar os potenciais cognitivos assim acumulados de suas elevadas formas esotéricas, aproveitando-os para a prática, ou seja, para uma configuração racional das relações de vida”. J. HABERMAS, “Modernidade – Um Projeto Inacabado”. In: Otília ARANTES e Paulo ARANTES, Um Ponto Cego no Projeto Moderno de Jürgen Habermas, São Paulo: Brasiliense, 1992, p. 110. 5 J. HABERMAS, O Discurso Filosófico da Modernidade. Trad. Ana Maria Bernardo et al. Lisboa: Dom Quixote 1990, p. 16. Doravante citado como DFM. 6 O conceito de certificação, em Habermas, significa o esforço da Modernidade em ir buscar em seu próprio conceito os critérios de sua orientação, por ser uma época histórica que não quer estar sujeita a passados exemplares, mas que tem de criar, a partir de si mesma, seus princípios normativos. Cf. Jürgen HABERMAS, DFM, p. 30. 7 J. HABERMAS, DFM, p. 282. Sobre o mesmo tema, Cf. J. HABERMAS, “Modernidade – Um Projeto Inacabado”. In: Otília ARANTES e Paulo ARANTES, Um Ponto Cego no Projeto Moderno de Jürgen Habermas, São Paulo: Brasiliense, 1992. É ilustrativo o comentário de Stephen K. WHITE sobre o que ele chama de “fundamentos conceptuais da modernidade ocidental”. Para ele, a análise de Habermas, sobre esses fundamentos, caminha na direção de assegurar o mesmo nível de autoconfiança que a auto-compreensão da modernidade uma vez possuiu. Crédito não encontrado na Dialética do Esclarecimento. Nesse sentido, “He (Habermas) was convinced that one could retain the power of his predecessor’s critique of modern life only by clarifying a distinctive conception of rationality and affirming the notion of a just or ‘emancipated’ society that would somehow correspond to that conception”. “Reason, modernity, and democracy”. In: Stephen K. White (ed.). The Cambridge Companion to Habermas. Cambridge: Cambridge University Press, 3ª ed, 1997, p. 4-5.

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Sob esse aspecto é que a busca de certificação da modernidade passa a

significar o esforço realizado pela razão de construir uma consciência clara de si

mesma, e nesse empreendimento, somente a razão é crítica, o suficiente, para

realizar sua certificação, porque só a razão é capaz de negar a facticidade, de se

perceber como limitada, de superar as fronteiras de toda ilusão conformista da

irracionalidade.

Para a análise do problema da certificação da modernidade Habermas

recorre a duas construções teóricas. A primeira, que é o ponto de partida da sua

teoria da modernidade, se assenta na análise weberiana sobre o desenvolvimento

das sociedades modernas. Esse processo, denominado por Weber de

racionalização8, provocou a desintegração das concepções metafísico-religiosas do

mundo ocidental, gerando uma cultura profana. Aqui se retoma a necessidade da

Sociologia9, para a compreensão da crise da racionalidade ocidental. A segunda, se

assenta na análise do conceito de razão, no interior da reflexão filosófica iniciada

por Kant, para mostrar que o conceito de racionalização ocidental, elaborado por

Weber, não abarca a dimensão emancipadora do processo de racionalização, porque

subsume, à razão instrumental, o momento reflexivo da razão. Ao mesmo tempo em

que colocou sob suspeita a relação interna entre modernidade e razão.

O processo de diferenciação e formalização do mundo moderno –

racionalização – elaborado por Weber, paga tributo à genial diferenciação,

elaborada por Kant, nas suas três “Críticas”, sobre as esferas da vida humana, que se

exprimiu na distinção entre Ciência, Moral e Arte. De acordo com a caracterização

8 “He (Weber) designates as rationalization every expansion of empirical knowledge, of predictive capacity, of instrumental and organization mastery of empirical processes”. J, HABERMAS. The Theory of Communicative Action. Trad. Thomas McCarthy. Boston: Beacon Press, 1984, vol. 1, p. 159. Doravante citado como TCA. 9 A contribuição da Sociologia, para a compreensão da crise da razão, é colocada por J. HABERMAS nos seguintes termos: “Among the social sciences sociology is most likely to link its basic concepts to the rationality problematic [...] Sociology became the science of crisis par excellence; it concerned itself above all with the anomic aspects of the dissolution of traditional social systems and the development of modern ones”. TCA, vol. 1, p. 3-4. Sobre a mesma questão, Cf. J. HABERMAS, Teoría y Práxis. Trad. Salvador M. Torres e Carlos M. Espí. Madrid: Tecnos, 1990, p. 273-287.

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weberiana da modernização cultural, a razão substancial10, que se expressava nas

imagens religioso-metafísicas do mundo, dividiu-se em três momentos, tendo, no

entanto, essa unidade, só caráter formal, isto é, mediante a forma da argumentação.

Assim, dado que as imagens do mundo se apresentam desagregadas, seus problemas

internos de justificação se cindem entre pontos de vista específicos da verdade, da

justeza normativa, da autenticidade ou do belo, podendo ser tratadas,

respectivamente, como questão de conhecimento, de justiça e de gosto.

Para se compreender o conceito de racionalização, oriundo de Max

Weber, há que considerar a sua objetivação nas esferas da cultura e da sociedade.

No primeiro caso, como um processo de desencantamento do mundo, mediante a

autonomização das Ciências empíricas, da Arte, da Moral e do Direito, que

buscaram suas fundamentações, a partir de suas próprias leis internas. Enquanto

processo de secularização, o desencantamento representa uma força libertária de

poderes hipostasiados, e, já, antecipa o ideal de uma sociedade emancipada. À

medida que esse potencial de racionalização foi incorporado à cultura e penetra nas

motivações valorativas das pessoas e nos sistemas centrais de ação que fixam a

estrutura da sociedade, dão origem ao processo de modernização da sociedade como

um processo por meio do qual emergem a empresa capitalista e o Estado moderno.

Ambos, Empresa e Estado, são regulados, internamente, por processos formais; o

primeiro, visando a defesa e a garantia do lucro, o segundo, visando a manutenção

impositiva da lei e da ordem, sob o manto da legitimidade.

Para a análise do processo de racionalização, Weber se serve de dois

conceitos distintos de racionalidade. No que diz respeito à racionalização social, ele

se guia pela idéia de racionalidade com respeito a fins (Zweckrationalität). Sob a

10 Por razão substancial se entende a razão que se expressava nas imagens do mundo religioso-metafísicas, a qual se divide, segundo Weber, em três momentos distintos, cuja unidade só pode ser mantida formalmente. “Uma vez que as imagens do mundo se desagregam e os problemas legados se cindem entre pontos de vista específicos da verdade, da justeza normativa, da autenticidade ou do belo, podendo ser tratados, respectivamente, como questão de conhecimento, como questão de justiça e como questão de gosto, ocorre nos tempos modernos uma diferenciação de esferas de valor: ciência, moral e arte”. J. HABERMAS, “Modernidade – Um Projeto Inacabado”. In: Otília ARANTES e Paulo ARANTES, Um Ponto Cego no Projeto Moderno de Jürgen Habermas, São Paulo: Brasiliense, 1992, p. 110.

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perspectiva do desencantamento do mundo, ele recorre a um conceito de

racionalidade complexo, porém, pouco elucidado11.

Max Weber elabora o conceito de racionalização dentro do contexto

científico que já havia se liberado da hipoteca da Filosofia da História e do

Evolucionismo do século XIX12. Nesse sentido, a racionalização não poderia ser

reduzida a uma mera oposição histórica, mediante a qual, o surgimento e o

desenvolvimento do método científico foram, aos poucos, tirando o véu da religião,

que cerceava o livre desenvolvimento da razão. Sob esse aspecto, os processos de

racionalização partem da necessidade das religiões mundiais de substituirem a

justificação mágica do mundo, por um conhecimento da natureza e por uma

explicação ética, passível de ser, racionalmente, justificada. O que significa dizer

que, na contramão do Iluminismo, nas palavras de Avritzer, “a racionalização

envolve uma sistematização de idéias e de comportamento no mundo e, enquanto

tal, não opõe ciência e religião, sagrado e secular”13.

Mesmo sendo o processo de racionalização cultural14 a pedra de toque

da teoria da racionalização de Weber, o passo seguinte de sua análise foi observar

que, à medida que as esferas axiológicas evoluíram, elaborando, internamente, seus

próprios critérios de valor, elas processaram, ao mesmo tempo, a substituição das

cosmovisões religiosas do mundo. Cada uma dessas esferas de valor, da Ciência, da

11 “Weber analyses the process of disenchantment in the history of religion, which is said to have fulfilled the necessary internal conditions for the appearance of Occidental rationalism; in doing so he employs a complex, but largely unclarified concept of rationality … in his analysis of societal rationalization … he allows himself to be guided by the restricted idea of purpose rationality [Zweckrationalität]”. J. HABERMAS. TCA, vol. 1, p. 143. 12 “Among the classical figures of sociology, Max Weber is the only one who broke with both the premises of the philosophy of history and the basic assumptions of evolutionism and who nonetheless wanted to conceive of the modernization of old-European society as the result of a universal-historical process of rationalization”. J. HABERMAS, TCA, vol 1, p. 143. 13 Leonardo AVRITZER. A Moralidade da Democracia. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1996, p. 57. 14 Para David INGRAM, “a racionalização cultural denota um conjunto complexo de eventos abrangendo a progressiva fixação, diferenciação e formalização das esferas de atividade relacionadas com o valor, a mais fundamental das quais gravita em torno da tríade kantiana da verdade (conhecimento), legalidade ou bem (direito e moralidade) e beleza (arte e gosto)”. Habermas e a Dialética da Razão. Trad. Sérgio Bath. Brasília: Editora UnB, 2a ed. 1994, p. 68. Para um estudo sobre esse tema, cf. André LECCLERC. “Remarques sur la Notion de Rationalité Culturelle Selon Marshall Sahlins”. In: Claude Savary (org.). Cheminements dans l’Espace des Théories de l’Activité Symbolique et de la Culture. Université du Québec à Montreal: Press de l’Université du Québec, 1998, p. 225-243.

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Política e da Economia desenvolve seu fundamento interno, sem o peso da

exigência de uma atitude moral ou religiosa particular, mas, apenas, sob a aceitação

externa de certa forma de conduta, assegurada pela soberania do Direito civil. Nas

palavras de David Ingram, significa que: “Correspondendo à crescente emancipação

(Verselbständigung) de cada esfera de valor, com respeito às restrições impostas

pela sua aglutinação anterior sob visões do mundo de caráter unitário e religioso,

corre um processo paralelo de auto-reflexão pelo qual cada forma de investigação é

fundamentada tendo em vista os princípios que lhe são peculiares”15. Por

conseguinte, a Ciência desenvolveu-se rumo à constituição de um conhecimento

empírico para conhecer e transformar o mundo, mediante um mecanismo causal

desencantado; a Economia organizou-se, funcionalmente, sob o meio do dinheiro,

para garantir o controle do mercado e a Política estruturou-se, sob a égide do Direito

positivo burguês, para elaborar regras impessoais para o funcionamento do corpo

hierárquico e burocrático. Portanto, todas as áreas do saber conquistam sua relativa

autonomia, e se desenvolvem, livres dos limites impostos pelo pathos religioso.

O diagnóstico da Modernidade de Weber, que, num primeiro

momento, surge como a conquista de um mundo desencantado, livre das amarras da

Religião, torna transparente que no interior do processo de racionalização a

desintegração da cosmovisão religiosa provocou uma tensão entre as diversas

esferas de valor, além do mais, revela que a própria fundamentação científica

padece dos mesmos limites de justificação das outras esferas de valor: seus

embasamentos não podem ser provados. Ou seja, Weber se rende ao fato de que o

mundo deve “permanecer fragmentário e sem valor em todos aqueles casos em que

é julgado à luz do postulado religioso de um ‘sentido’ divino da existência. Essa

perda de valor resulta do conflito entre a reivindicação racional e a realidade, entre a

ética racional e os valores que são, em parte, racionais, em parte irracionais”16. Ou

seja, com o desaparecimento progressivo do sentimento religioso, o aspecto

15 David INGRAM. Habermas e a Dialética da Razão. Trad. Sérgio Bath. Brasília: Editora UnB, 2a ed., 1994, p. 69. 16 Weber, From Max Weber, apud, David INGRAM. Habermas e a Dialética da Razão. Trad. Sérgio Bath. Brasília: Editora UnB, 2a ed. 1994, p. 74.

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racional-valorativo da Ética de princípios é obscurecido pelas demandas racional-

propositadas do vocacionalismo ético. Com isso, pode-se inferir que a teoria da

modernidade de Weber traz, no seu seio, um conflito entre dois processos de

racionalização, cujo deslanche foi a predominância da racionalização social sobre a

cultural.

Por conseguinte, se o processo de racionalização do mundo ocidental

teve como ponto de partida a necessidade das “religiões mundiais substituir a magia

pelo domínio cognitivo sobre a natureza e por uma explicação ética capaz de ser

justificada”17, conforme Leonardo Avritzer, seu ponto de chegada revelou que o

avanço da secularização e do aumento desmesurado da precedência dos bens

materiais desencadeou uma erosão progressiva no sentido da existência18. Nas

palavras de Weber, isso significa que:

“Desde que o ascetismo se propôs a remodelar o mundo e a nele implementar os

seus ideais, os bens materiais foram assumindo uma crescente e inexorável força

sobre os homens. Hoje em dia, o espírito do ascetismo religioso – quem sabe se

definitivamente – escapou da jaula de ferro. O capitalismo vencedor, apoiado em

uma base mecânica, não mais carece do seu apoio. Também o róseo caráter da sua

sucessora, a Aufklärung, parece estar desvanecendo [...] Quando a plenitude

17 Leonardo AVRITZER. A Moralidade da Democracia. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1996, p. 57. Para L. Avritzer, “Weber não foi apenas o autor que ressaltou os fundamentos morais (ascese protestante) da Modernidade ... Ele foi o autor cuja obra pretendeu demonstrar os motivos pelos quais a própria Modernidade, na medida em que as estruturas da economia de mercado e do Estado moderno se desenvolvem, solapa os seus próprios fundamentos culturais”. Ibid., p. 64. 18 Se o processo de racionalização deve ser interpretado como uma força libertária que prepara o caminho para uma sociedade ‘emancipada’, na perspectiva habermasiana, para Weber, segundo David INGRAM, “a perda de sentido, em conseqüência da desintegração da cosmovisão religiosa em ‘idéias últimas’, é inevitável, pois o que se segue é uma contradição lógica, obrigando as ordens da vida correspondentes a ‘colocarem-se em tensão umas com as outras’”. Habermas e a Dialética da Razão. Trad. Sérgio Bath. Brasília: Editora UnB, 2a ed. 1994, p. 73. Nessa mesma linha afirma Thomas McCARTHY que “Con el concepto de racionalización, Weber trataba de captar todo o complejo de tendencias relacionadas com el progreso técnico y científico e con sus efectos sobre la trama institucional de las sociedades tradicionales [...] Pese a que sus sentimientos frente a este proceso fueron ambiguos, Weber lo consideraba sin duda alguna como irreversible: o hombre moderno estaba condenado a vivir en un ‘estuche de servidumbre’”. La Teoria Crítica de Jürgen Habermas. Trad. Manuel. J. Redondo. Madrid: Tecnos, 3a ed.,1995, p. 38.

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vocacional não mais pode ser relacionada diretamente aos mais elevados valores

culturais [...], o indivíduo renuncia a toda tentativa de justificá-la”19.

Isso posto, é possível inferir que, na subsunção da racionalização

cultural pela racionalização social, temos a chave de leitura do conceito de

racionalização ocidental moderna de Weber, qual seja, o imperativo do conceito de

racionalidade com respeito a fins. Esse conceito ele o compartilha com Marx,

Horkheimer e Adorno. Em Marx, a racionalização se implanta, diretamente, pelo

desenvolvimento das forças produtivas, quer dizer, mediante a aplicação do saber

empírico, das melhorias das técnicas de produção, e com a organização,

qualificação e mobilização mais efetiva das forças de trabalho. Já as relações de

produção só são revolucionadas mediante a pressão racionalizadora das forças

produtivas. Em Weber, o marco institucional da Economia capitalista e do Estado

moderno é visto de outra maneira: não como um processo de racionalização das

forças produtivas, prisioneiro das relações de produção, mas, como um

desenvolvimento da ação racional com respeito a fins, tendo como conseqüência a

burocratização e a coisificação das relações sociais. Horkheimer e Adorno, e,

posteriormente, Marcuse, interpretaram o conceito de racionalização marxiana, na

perspectiva de Weber. Isso significa que, para eles, sob o signo da racionalidade

instrumental que se tornou autônoma, a racionalidade de domínio da natureza

emerge como a irracionalidade da dominação de uma classe sobre as outras, e as

forças produtivas, desacorrentadas, proporcionam relações alienadas. Segundo

Habermas:

“A Dialética do Esclarecimento remove a ambivalência que havia

alimentado Weber frente aos processos de racionalização e inverte

abruptamente a avaliação positiva de Marx. A ciência e a técnica – um

19 Max WEBER, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Trad. M. Irene de Q. F. Szmrecsányi e Tomás J. M. K. Szmrecsányi. São Paulo: Liv Pioneira Editora, 12a ed., 1997, p. 131. Ou seja, sem Natureza, sem Deus e sem História, o homem encontra, nele mesmo, o princípio mediante o qual ele pauta a sua vida. No entanto, a dificuldade que daí aflora é que, o sentido é elaborado na imanência da história, pois, segundo Lima VAZ, “É justamente a dificuldade em decifrar essa inscrição no imenso derivar para um futuro incerto do universo científico-tecnológico, que torna sempre mais dramática a interrogação sobre os fins da cultura”. “A Cultura e seus Fins”. In: Síntese Nova Fase 57 (1992), p. 154.

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potencial inequivocamente emancipatório para Marx – elas mesmas tornam-

se meio de repressão social”20.

Para Habermas, há um limite nessas três perspectivas de

racionalidade, não importando qual delas esteja correta. De fato, tanto Marx e

Weber, quanto Horkheimer e Adorno identificam a racionalização social como a

expansão da racionalidade instrumental dos contextos de ação, ao mesmo tempo,

eles têm uma noção vaga de um conceito mais amplo de racionalidade social – de

livres produtores, de exemplos históricos de comportamento ético de vida, uma

idéia de comércio e de trato fraternal com a natureza reabilitada – que se coloca

adiante do processo de racionalização que eles, empiricamente, descrevem. A

questão que se coloca é a seguinte: se eles identificam um conceito mais amplo de

racionalidade, por que não confirmá-lo no mesmo nível das forças de produção, na

racionalidade com respeito a fins e nos portadores totalitários da razão

instrumental? Segundo Habermas, isso não acontece por dois motivos:

primeiramente, porque Marx, Weber, Adorno e Horkheimer operam com um

conceito de ação que não é complexo o suficiente para apreender, nas ações sociais,

todos os aspectos da racionalização social; em segundo lugar, porque eles não

fazem a distinção entre categorias de ação e categorias de sistema: “a racionalização

das orientações da ação e das estruturas do mundo da vida não é o mesmo que a

expansão da ‘racionalidade’, isto é, da complexidade do sistema de ação”21. Noutros

termos, o problema não reside na razão instrumental, em si mesma, mas, na sua

universalização, na maneira como ela é resgatada, como uma forma de validade

exclusiva, quando se reduz a práxis à techne, ou ainda, quando se amplia a ação

racional com respeito a fins, a todas a esferas de decisão, sem dialogar com uma

teoria mais compreensiva de racionalidade22.

20 J. HABERMAS. TCA vol. 1, p. 144. 21 J. HABERMAS. TCA vol. 1 p., 145. 22 Cf. T. MCCARTHY. La Teoria Crítica de Jürgen Habermas. Trad. Manuel. J. Redondo. Madrid: Tecnos, 3a ed.,1995, p. 35 s.

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É sob o aspecto da distinção entre dois processos de racionalização,

que se desenvolvem de forma independentes e com lógicas internas próprias, que

podemos compreender o conceito de razão comunicativa habermasiano23, conforme

veremos adiante, na terceira parte deste trabalho. Esse conceito de racionalidade

compreende o processo de racionalização ocidental de uma forma mais ampliada,

possibilitando que ele seja pensado como um processo de emancipação. O que não

ocorre no conceito de racionalização ocidental de Weber, que subsume, em um

único conceito, tanto o processo de racionalização social, como o de

desencantamento do mundo. É o desdobramento conceitual, realizado no interior da

teoria habermasiana de racionalidade, que possibilita a tematização do momento

emancipador da razão, desdobramento este que já vinha sendo trabalhado desde

Técnica e Ciência como Ideologia (1968). Aqui já se entra em contato com um

quadro conceitual, que faz uma distinção entre trabalho e interação e entre o quadro

institucional de uma sociedade e os subsistemas de ação racional com respeito a

fins24; distinção que é reelaborada com mais acuidade n’ A Teoria da Ação

Comunicativa.

Por conseguinte, a crítica que se faz ao conceito de racionalização

ocidental, se inscreve, no seio da análise de Weber, sobre o processo de

desencantamento do mundo moderno, pois este não considera, sob uma justa

medida, o processo de modernização cultural do ocidente. É sob a ótica do resgate

do processo de modernização ocidental que podemos compreender o fio condutor

da obra de Habermas, seu esforço intelectual para demonstrar que, segundo L.

Avritzer “... existe um processo paulatino de substituição da legitimação religiosa

das esferas axiológicas de valor por critérios de validade fornecidos pela

comunicação através da linguagem”25. Ou seja, se a origem da Modernidade está na

interior do processo de racionalização das imagens religiosas do mundo, a saber, na

23 Segundo Luiz B. L. ARAÚJO, “O conceito de razão comunicativa é o núcleo da reflexão de Habermas, pois possibilita ampliar o conceito restrito de racionalidade que está no fundamento da análise weberiana da Modernidade”. Religião e Modernidade em Habermas. São Paulo: Loyola, 1996, p. 115. 24 J. HABERMAS. Técnica e Ciência como Ideologia. Lisboa: Edições 70, 1994, p. 60 e 83. Doravante citado como TCI. 25 Leonardo AVRITZER. A Moralidade da Democracia. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1996, p. 68.

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racionalização cultural, essa racionalização, contudo, é apenas uma face da

totalidade do processo. Impõe-se, por conseguinte, considerar que, na própria

evolução do processo de racionalização, a legitimação religiosa foi substituída pela

busca do consenso, mediado pela linguagem, capaz de nos remeter, segundo

Habermas, “... aos conceitos formais de mundo objetivo, mundo social e mundo

subjetivo, e às correspondentes atitudes básicas frente ao mundo externo, cognitivo

e moralmente objetivado, e um mundo interno subjetivado”26. Cada uma dessas

esferas possui critérios próprios de validade – verdade, correção e veracidade – que

remetem à busca de justificação, por meio da linguagem. Portanto, o processo de

racionalização cultural não tornou incompatíveis os critérios de validade, verdade,

veracidade e beleza, exige, apenas, que cada um deles seja referido a uma dimensão

diferente de mundo, em relação ao qual agimos, reflexivamente.

Sob o conceito de modernização, o processo de racionalização

ocidental voltou à baila, nos anos 50, pelo funcionalismo das Ciências Sociais,

limitando o conceito a um ‘feixe de processos cumulativos’ cujo substrato é a

acumulação, o desenvolvimento e a consolidação do sistema capitalista. O limite

dessa abordagem, segundo Habermas, é que ela não oferece os elementos teóricos,

necessários para a compreensão do processo de racionalização ocidental. Ao tomar,

como uma abstração, o conceito de Modernidade de Weber, desenraízam-no das

suas origens européias, utilizam-no como um “padrão neutralizado espácio-

temporalmente de processos de desenvolvimento social”, rompendo o laço que une

a “Modernidade e o contexto histórico do racionalismo ocidental de tal modo que

deixam de ser concebidos como racionalização, como objetivação histórica de

estruturas racionais”27.

Esse ambiente de desvinculação de seu contexto, de uma Modernidade

que conquistou sua autonomia e que progride, por força própria, propiciou as

condições para o surgimento da expressão pós-Modernidade. O limite, dessa

26 J. HABERMAS. TCA, vol 1, p. 235-6. 27 J. HABERMAS. DFM, p. 14.

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compreensão, reside na perda da conexão essencial interna, entre o conceito de

Modernidade e sua auto-compreensão, cuja conquista realizou-se no horizonte da

razão ocidental. É essa não compreensão dessa relação interna que abre espaço para

a relativização dos processos de modernização das sociedades ocidentais,

reduzindo-a um processo automático, e alimentando a ilusão de poder colocar-se

num ponto arquimediano como observador pós-moderno, externo ao processo. Tal

posicionamento se torna, também, possível, graças à aparente obsolescência da

modernização cultural, e à ilusão do desenvolvimento auto-suficiente da

modernização social. A modernização social executa, tão-somente, “as leis

funcionais da economia do Estado, da técnica e da ciência, as quais parecem ter-se

conjugado num sistema imune de influências”28. Nesse sentido, é uma cultura que já

esgotou todas as suas possibilidades, cristalizou-se; por isso os neoconservadores29

podem dar o adeus à Modernidade cultural. Aceitam o status de desenvolvimento

social e rejeitam toda possibilidade de sua auto-compreensão. Um outro adeus é

propugnado pelos jovens conservadores que, ao contrário dos neoconservadores, a

abandonam como um todo, por entenderem que a razão centrada no sujeito revelou

a sua verdadeira face: além de subjugar a natureza exterior, subjuga-se a si mesma

como vontade de poder instrumentalizador.

Essas duas formas de adeus à modernidade trazem algo em comum:

colocam-se fora da perspectiva conceitual em que se fundamenta sua auto-

compreensão. Abdicam dela, sem suprassumí-la como um momento de uma

negação determinada. Ora, se foi esse novo ethos quem criou o modelo normativo

que dá possibilidade para que se compare o factual com o desejável, o ideal de

28 J. HABERMAS. DFM, p. 15. 29 Em Modernidade – Um Projeto Inacabado, J. HABERMAS tipifica as três posições assumidas frente à crise da Modernidade: os jovens conservadores (antimoderno) cuja defesa da soberania da subjetividade descentrada, livre de todos os limites do ‘Eu’ transcendental, torna-se fundamento da rejeição da Modernidade no seu todo; os velhos conservadores (pré-moderno), cuja desconfiança na desagregação da razão substancial, lança-os na defesa a um regresso a posições anteriores à Modernidade; finalmente, os neo-conservadores (pós-modernos), que defendem as conquistas da Modernidade naquilo que pode ser assegurado, mas rejeitam o projeto da Modernidade como um todo. “Modernidade – Um Projeto Inacabado”. In: Otília ARANTES e Paulo ARANTES, Um Ponto Cego no Projeto Moderno de Jürgen Habermas, São Paulo: Brasiliense, 1992, p. 121-122.

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“auto-emancipação de uma humanidade razoável”30, para uma correta aproximação

do seu conceito, antes de cantar o seu requiescat in pace, é necessário, segundo

Habermas, “remontar a Hegel se quisermos compreender o que significava a relação

interna entre modernidade [Modernität] e racionalidade, tida como evidente até

Max Weber, e hoje posta em questão”31. O retorno a Hegel é imprescindível, não

apenas porque foi ele o primeiro a colocar o problema da certificação do novo

tempo, mas porque as saídas da sua crise, propostas até o presente momento, ainda

não responderam às questões deixadas em aberto por ele, quanto ao processo que

acompanha a evolução própria de cada um dos conceitos: modernidade e

racionalidade. Sem essa resposta, não apenas se desconfia que a saída, proposta pelo

pensamento pós-moderno não está ancorada nos pressupostos da auto-compreensão

moderna, inaugurados por Hegel, o que significa que o ‘pós’ não transcende o seu

horizonte, mas, também, se pergunta até que ponto esse abandono não é uma defesa

contra a Modernidade, o que confirma a sua atualidade.

1.2. Kant e Hegel: Subjetividade e Certificação.

O conceito de modernidade foi utilizado por Hegel, na sua Filosofia

da História, como um conceito epocal32, para referir-se à nova era. Para além de

uma referência meramente cronológica, o conceito se impõe como significado de

atualidade, do que, de fato, é um novo tempo e que, à guisa da perspectiva

messiânica, já começou: é kairós. Para a Filosofia, é o lugar cujo olhar remete à

história como um todo. “Aliás, diz Hegel, não é difícil ver que o nosso tempo é um

30 Sérgio P. ROUANET. As Razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 5a ed.,1998, p. 269. 31 J. HABERMAS. DFM, p. 16. 32 G. W. F. HEGEL. Filosofia da História. Trad. Maria Rodrigues e Hans Harden. Brasília: Editora UnB, 1995, p. 344 “Chegamos agora ao terceiro período do mundo germânico, e entramos assim no período do espírito consciente de sua liberdade, ao querer a verdade e a eternidade em si e por si universal”.

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tempo de nascimento e de trânsito para uma nova época; o espírito rompeu com o

mundo de seu ser-aí [...] está a ponto de submergi-lo no passado, e se entrega à

tarefa de sua transformação [...]. Seu abalo se revela apenas por sintomas isolados

[...]. Esse gradual desmoronar-se, que não altera a fisionomia do todo, é

interrompido pelo sol nascente, que revela num clarão a imagem do mundo novo”33.

O destaque dado ao presente, deve-se à condição de ser o gerador do que é novo.

Seu ponto de referência, o Iluminismo e a Revolução Francesa. Sua meta, enquanto

atualidade da época mais próxima, uma renovação contínua, em relação ao passado

do qual se cindiu. Nesse sentido, as expressões novos tempos e tempos modernos

conquistam, portanto, um novo significado, válido até os dias atuais: revolução,

progresso, emancipação, desenvolvimento, crise, espírito da época, etc.

Essa dinâmica que impele a modernidade a estabelecer seu horizonte

de sentido, a partir das suas próprias condições, pode ser melhor compreendida se se

retoma, numa perspectiva histórica, comparativamente, o pensamento predominante

até o século XVII, e o alvorecer do chamado Século das Luzes. Numa forma sucinta

e lapidar, Ernest Cassirer assim descreve o cerne do pensamento filosófico do

século XVII: “Para que lhe parecesse verdadeiramente ‘filosófico’, era preciso que

o saber tivesse alcançado e estabelecido com firmeza a idéia primordial de um ser

supremo e de uma certeza suprema intuitivamente apreendida, e que tivesse

transmitido a luz dessa certeza a todo o ser e a todo o saber dela deduzido”34.

Quanto ao Iluminismo, este já havia conquistado, na linguagem kantiana, a sua

maioridade. Não queria, apenas, alargar, quantitativamente, o conhecimento, mas

ansiava por aprofundá-lo, por conhecer a sua origem e a direção a ser tomada, mas,

acima de tudo, conduzir o seu próprio rumo. Sob esse aspecto, a variedade de

caminhos que se abrem ao espírito não significa dispersão, mas essa multiplicidade

persegue a “certeza da unidade”. Esta, é descrita por E. Cassirer como:

33 G. W. F. HEGEL, Fenomenologia do Espírito. Trad. Paulo Meneses. Petrópolis: Vozes, 1992, p. 26. 34 Ernst CASSIRER. A Filosofia do Iluminismo. Trad. Álvaro Cabral. Campinas: Ed. Unicamp, 1992, p. 24.

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“força criadora única, de natureza homogênea [...]. Quando o século XVIII

quer designar essa força, sintetizar numa palavra a sua natureza, recorre ao

nome ‘razão’. A ‘razão’ é o ponto de encontro e o centro de expansão do

século, a expressão de todos os seus desejos, de todos os seus esforços, de

seu querer e de suas realizações [...] o século XVIII está impregnado de fé

na unidade e imutabilidade da razão”35.

Sob esse aspecto, é que se pode compreender o motivo pelo qual a modernidade não

pode e não deseja mais persistir em colher, em épocas remotas, os critérios para sua

orientação, “ela tem que criar em si própria as normas que se rege. Ela vê-se

remetida para si própria sem que a isso possa fugir”36. Pois, só assim pode ela criar

suas próprias normas, sem ter que buscar, no passado rejeitado, os critérios para sua

orientação.

O conceito de modernidade, que é tomado por Hegel, perde sua

dependência em relação ao significado remoto do conceito de modernidade. Este se

expressava como a consciência de uma época que se posiciona, em relação ao

passado da Antigüidade, para compreender a si mesma, como sendo o resultado de

um processo de transição do antigo para o novo: o antigo era tomado, como modelo

normativo, digno de ser imitado. No sentido configurado pelo Iluminismo, esse

conceito lança suas raízes sobre a idéia de um progresso infinito do conhecimento e

do avanço, na direção do aprimoramento social e moral, desenvolvimento este que

perde, inexoravelmente, o fascínio pelos ideais do passado. Nas palavras de

35 Ibid., p. 22-23, grifos do autor. Continuando, E. Cassirer afirma que “A razão é una e idêntica para todo o indivíduo-pensante, para toda a nação [...] toda a cultura. De todas as variações dos dogmas religiosos, das máximas e convicções morais, das idéias e dos julgamentos teóricos, destaca-se o conteúdo firme e imutável, consistente, e sua unidade e sua consistência são justamente a expressão da essência própria da razão”. 36 J. HABERMAS. DFM, p. 18, grifos do autor. Sob o aspecto da autonomia da razão iluminista Cf. Ernst CASSIRER. A Filosofia do Iluminismo. Trad. Álvaro Cabral. Campinas: Ed. Unicamp, 1992, p. 24. “O século XVIII renunciou [...] a essa forma de ‘dedução’, de derivação e de explicação sistemática. Não rivaliza, em absoluto, com Descartes, Malebranche, com Leibniz e Spinoza, no tocante ao rigor e à autonomia do método. Busca uma outra concepção de verdade e da ‘filosofia’ que confere a uma e a outra mais amplitude, uma forma dotada de mais liberdade e mobilidade, mais concreta e mais viva. A Era do Iluminismo não outorga esse ideal de pensamento às doutrinas filosóficas do passado; prefere formá-lo tomando por exemplo a física contemporânea, cujo modelo tem sob os seus olhos”.

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Habermas, a Modernidade é aquilo que “proporciona expressão objetiva a uma

atualidade do espírito do tempo que espontaneamente se renova”37.

Daí que para Hegel, o sentido de ser da Filosofia Moderna encontra-se

nas próprias clivagens da razão na modernidade e na sua separação de estruturas

normativas do passado. O que significa dizer que, à medida que ela toma

consciência de si, desperta para a necessidade de sua autocertificação38. Ou como

afirma Sérgio Rouanet: “rompendo suas amarras como o mundo antigo, ela teve de

buscar em si mesma suas coordenadas e suas normas”39. Portanto, a necessidade da

Filosofia surge pelo desaparecimento do poder da conciliação, o que significa que a

tarefa da Filosofia, para Hegel, é a de elevar o seu tempo ao nível do conceito.

Assim sendo, cumpre à filosofia ter um papel de reflexão sobre a totalidade que

contém, em si mesma, a razão subjetiva e o seu outro. Como Habermas afirma, “A

inquietação causada pelo fato de a Modernidade, na ausência de modelos, ser

forçada a encontrar o seu equilíbrio nas cisões por ela provocadas, é considerada

por Hegel a ‘fonte da necessidade da filosofia’”40.

37 J. HABERMAS. “Modernidade: Um Projeto Inacabado”. In. Otília ARANTES e Paulo ARANTES. Um Ponto Cego no Projeto Moderno de Jürgen Habermas. São Paulo: Brasiliense, 1992, p. 101. Sobre a idéia de que a Modernidade cria seu próprio classicismo, Habermas diz: “Desde sempre se considerou clássico aquilo que sobrevive aos tempos: no entanto, o testemunho moderno, em sentido enfático, já não extrai tal força da autoridade de uma época passada, mas unicamente da autenticidade de uma atualidade passada”. Ibid. 101. No que concerne ao avanço do conhecimento científico, H. PUTNAM diz que este foi tão aclamado no século XVII que seus defensores reivindicavam que “Newton sabia mais do que Aristóteles”. Razão, Verdade e História. Trad. A. Duarte. Lisboa: Dom Quixote, 1992, p. 220. 38 Sobre a necessidade do filosofar que nasce da consciência do tempo, Lima Vaz assim reflete “[...] que experiências exemplares a consciência deve percorrer e cuja significação deve compreender para demonstrar-se como sujeito, a um tempo dialético e histórico, de um saber que contém em si a justificação da existência política como esfera do reconhecimento universal? Em concreto, esse saber é a filosofia hegeliana e o seu portador é o filósofo na hora de Hegel. A ele compete, em primeiro lugar, dar a razão de sua própria existência mostrando que o ato de filosofar não é um ato gratuito mas é a exigência da transcrição no conceito, do tempo histórico daquele mundo de cultura que colocou a Razão no centro de seu universo simbólico. Dando razão a sua existência, o filósofo anuncia o advento, na história do Ocidente, do indivíduo que aceita existir sob a forma da existência universal, ou da existência regida pela Razão”. “Senhor e Escravo: Uma Parábola da Filosofia Ocidental”. In: Síntese Nova Fase 21 (1981), p.19-20. 39 Sérgio P. Rounanet. As Razões do Iliminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 5a ed.,1998, p. 239. 40 J. HABERMAS. DFM. p. 27. Segundo Manfredo OLIVEIRA, em Hegel, o princípio, mediante o qual se compreende a Modernidade, é a subjetividade. Nesta, a liberdade humana estabelece seu eixo de sentido. “A emergência da subjetividade vai significar a emergência da soberania do sujeito autônomo sobre si mesmo”. “A Crise da Racionalidade Moderna: Uma Crise de Esperança”. In: Síntese Nova Fase 45(1989), p. 17.

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Para Hegel, a Modernidade se compreende sob o horizonte do

princípio da subjetividade41. Este paradigma, instaurado por Descartes, como

subjetividade abstrata no Cogito, atinge, em Kant, a sua autoconsciência absoluta42.

O advento da subjetividade significa que o homem descobriu o centro que deve

reger toda a sua história: a Razão. A partir desta, agora, ele deveria construir um

mundo de liberdade efetiva, sem a tutela das amarras que, até então, o mantinham

preso ao passado: sua vitória representa, no Iluminismo, “[...] a saída do homem de

sua menoridade ... Sapere aude! Tem a coragem de te servires do teu próprio

entendimento”43. Assumindo a condição da maioridade, a humanidade deveria, a

partir desse instante, fazer o uso público da Razão, efetivando sua emancipação,

frente à Religião e à Política, lançando fora as tutelas que a impediam de realizar a

conquista da idade adulta. Isso significa, segundo Manfredo Oliveira, que a

“liberdade vai ser concebida como reflexão, auto-relação do espírito a si mesmo, o

que vai abrir o horizonte para a autonomia do pensamento e da ação humana à

medida que tudo só se justifica levado ao tribunal do sujeito, que deve se auto-

afirmar e auto-conquistar em tudo”44. Assim, na modernidade, a religião, o Estado e

a sociedade, como, também, a Ciência a Moral e a Arte passam a ser configuradas

como manifestação da soberania da subjetividade.

A análise do processo de tomada de consciência da estrutura da razão

tem sua configuração lapidar na Crítica da Razão Pura. Aqui, Kant faz uma análise

dos fundamentos do conhecimento e, ao mesmo tempo, assume a tarefa de

denunciar o mau uso que fazemos da nossa faculdade de conhecimento. Nas suas

41 “O princípio do mundo moderno em geral é a liberdade da subjetividade; segundo esse princípio todos os aspectos essenciais patentes na totalidade espiritual desenvolvem-se para aceder aos seus direitos” W. Hegel, apud J. HABERMAS. DFM, p. 27. 42 Para Habermas, a estrutura da subjetividade é apreendida “como tal na filosofia, nomeadamente como subjetividade abstrata no Cogito ergo sum de Descartes, na forma da autoconsciência absoluta em Kant. Trata-se da estrutura da auto-relação do sujeito cognoscente que se debruça sobre si como sobre um objeto para se compreender como uma imagem num refletida num espelho, precisamente numa ‘atitude especulativa’. Desta Abordagem da filosofia da reflexão faz Kant a base das suas três ‘Críticas’. Faz da razão o supremo tribunal perante o qual tem de se apresentar uma justificação tudo aquilo que de uma forma geral reclama qualquer validade”. J. HABERMAS. DFM, p. 29, grifos do autor. 43 I. KANT. “Resposta à Pergunta: Que é Esclarecimento”. In: A Paz Perpétua e Outros Opúsculos. Trad. Artur Mourão. Lisboa: Ed. 70, 1995, p. 11. 44 Manfredo OLIVEIRA. “A Crise da Racionalidade Moderna: Uma Crise de Esperança”. In: Síntese Nova Fase 45(1989), p. 17.

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três “Críticas”, ele abandona o conceito substancial da razão, e a apresenta cindida

em seus momentos, cuja unidade, somente é recuperada, formalmente. Separadas

entre si, assenta, cada uma das faculdades – da razão prática, de julgar e do

conhecimento teórico – nos seus próprios fundamentos. Segundo Habermas, “ao

fundar a possibilidade de conhecimento objetivo, de discernimento moral e de

valorização estética, a razão crítica não apenas assegura as suas próprias faculdades

subjetivas nem apenas torna transparente a arquitetônica da razão, mas desempenha

também o papel de um juiz supremo mesmo perante a cultura no seu todo”45.

Ao apresentar a estrutura tri-dimensional da Razão, nas suas três

“Críticas”, Razão Pura, Razão Prática e do Juízo, mesmo resguardando a unidade

do eu penso formal que acompanha todas as representações – condição para garantir

a unidade egológica da consciência sempre idêntica consigo mesma, na pluralidade

das representações –, Kant instaura a auto-interpretação lapidar da modernidade. É

o olhar retrospectivo de Hegel que faz ver, nessa interpretação, a imagem refletida

de sua época. Assim, por não sentir, como cisões, os momentos distintos da razão e

sua clivagem, nas diversas esferas da cultura, Kant não coloca, como um problema

para o pensamento, a necessidade de unificação que nasce das separações impostas

pelo princípio da subjetividade. Por conseguinte, é quando a modernidade se

concebe como uma época histórica, que não está sujeita a passados exemplares e

que tem de criar, a partir de si mesma, seu princípio normativo, que se impõe, à

Filosofia, a necessidade de pensar essas cisões. Aqui se vislumbra o cerne do

problema da sua certificação, qual seja, segundo Habermas, o de saber se

“o princípio da subjetividade e a estrutura da autoconsciência que é inerente

a essa subjetividade são suficientes como fonte de orientação normativa – se

são suficientes para ‘fundar’ não apenas a ciência, a moral, e a arte de uma

forma geral mas para estabilizar uma formação histórica que se libertou de

45 J. HABERMAS. DFM, p. 29. Segundo Habermas, “... porque a reflexão transcendental, em que esse mesmo princípio da subjetividade surge por assim dizer na sua nudez, reivindica ao mesmo tempo competência jurídica face a essas esferas, Hegel vê na filosofia Kantiana a essência do mundo moderno concentrada como num foco”. Ibid., p. 30.

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todos os compromissos históricos. A questão é saber se da subjetividade e

da autoconsciência se podem extrair critérios colhidos no mundo moderno

servindo ao mesmo tempo de orientação dentro dele, o que significa, porém,

igualmente, que possam servir para criticar uma Modernidade em conflito

consigo própria. Como é que a partir do espírito da Modernidade poderemos

construir uma forma ideal interna que não se limite a imitar as múltiplas

manifestações históricas da Modernidade nem a impor-se a estas a partir de

exterior”46.

A questão, colocada desta forma, faz surgir um outro problema, que é

levantado, em relação ao poder da subjetividade, que se apresenta como princípio

unilateral. Pois, se de fato ele, o poder da subjetividade, tem força suficiente para

dar conta da “formação da liberdade subjetiva e da reflexão e de minar a religião,

[...] não é suficientemente forte a ponto de regenerar, no medium da razão, o poder

unificador da religião47”. Com isso, Habermas antecipa que, as cisões da

Modernidade resistirão, até mesmo, à figura do espírito absoluto de Hegel, que no

seu sistema assegurava, à Filosofia, o propósito de apresentar a razão como poder

unificador48.

A tentativa de superar as cisões da modernidade tem início com uma

crítica à unilateralidade do princípio da subjetividade, pois é só, por meio desse

caminho, que ela pode atingir a certificação do seu conceito, à medida que procura

atingir o equilíbrio, a partir de si mesma. O instrumento de que se vale é a reflexão,

46 J. HABERMAS. DFM, p. 30 47 J. HABERMAS. DFM, p. 31. É emblemática a posição de Habermas quando se trata da religião como medium unificador da cultura. Para ele, nenhuma figura da razão pode assumir o lugar da religião na sua dimensão unificadora. Nem mesmo o espírito absoluto de Hegel escapa a esse anátema. “Enquanto a linguagem religiosa trouxer consigo conteúdos semânticos inspiradores, que não podem ser jogados fora, que escapam à força de expressão de uma linguagem filosófica e que continuam à espera de uma tradução para discursos fundamentadores, a filosofia, mesmo em sua figura pós-metafísica, não poderá desalojar ou substituir a religião”. J. HABERMAS, Pensamento Pós-Metafísico. Trad. Flávio B. Siebeneichler. Rio de Janeiro: Ed Tempo Brasileiro, 1990, p. 61. Doravante citado como PPM. Sobre a questão da religião em Habermas, Cf. Luiz. B. L. ARAÚJO. Religião e Modernidade em Habermas. São Paulo: Loyola, 1996. 48 Segundo J. HABERMAS a filosofia de Hegel persegue um duplo objetivo, primeiramente intenta contra os sistemas filosóficos de Kant e Fichte no que concerne às “oposições filosóficas entre natureza e espírito, sensibilidade e entendimento, entendimento e razão, eu e não-eu, finito e infinito, saber e crença, ele (Hegel) pretende encontrar uma resposta para a crise da bipartição da própria vida” e, ao mesmo tempo, atingir a auto-compreensão da Modernidade expressa nesses sistemas. DFM, p. 31.

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mediante a qual Hegel “reconhece a mais pura expressão do princípio dos tempos

modernos”49. Porém, segundo Habermas, Hegel não atinge, num primeiro

momento, a meta desejada, de restabelecer a reconciliação da totalidade dilacerada,

uma vez que, mesmo recorrendo à “intersubjetividade das relações de entendimento

mútuo, ele falha no objetivo que é essencial para a auto-fundamentação da

Modernidade, ou seja, o de pensar o positivo de modo tal que este possa ser

superado a partir do mesmo princípio de que ele próprio parte: precisamente, da

subjetividade”50. Pelo contrário, Hegel recorre a um modelo de reconciliação da

totalidade ética, estranha ao novo tempo, à guisa do modelo idealizado da polis

grega e da comunidade cristã primitiva. Este modelo é abandonado, e, logo em

seguida, coloca, em seu lugar, o conceito de saber absoluto que ultrapassa os frutos

do Iluminismo – a arte romântica, a religião da razão e a sociedade burguesa –, pois,

numa Modernidade em conflito consigo mesma, que conquistara a sua

autoconsciência, não estaria no passado exemplar, as normas para sua orientação.

Após abandonar o projeto inicial de Iena, no qual a arte fora

considerada como poder de reconciliação, Hegel coloca a Filosofia como sendo o

lugar, mediante o qual, a razão se manifesta como poder absoluto de unificação.

Com isso, ele quer superar a Filosofia kantiana, que colocou a autoconsciência da

razão como fundamento do pensar, mas ficou presa ao emaranhado da Filosofia do

entendimento, que, se por um lado, apreende as diferenciações das esferas da vida

humana – Ciência, Moral e Arte –, por outro, não se mostra capaz de pensar a

unidade das diferenças. Para ele, inere ao pensamento a certeza dessa contradição e

sua superação. Pois se o saber imediato rejeita a diferença, o pensamento é o seu

reverso: é movimento e mediação, uma vez que dilui o simples em suas

determinações e as reflete na sua unidade. Para Hegel, segundo Manfredo Oliveira,

o pensamento “é, essencialmente, a relação dos diferentes uns aos outros: o objeto

49 Ibid., p. 32. 50 Ibid., p. 39.

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do pensar é sabido, em si mesmo, como relação de diferentes entre si, como a

unidade de contrapostos”51.

É sob esse aspecto que a Filosofia da subjetividade se estabelece no

nível da diferença primária da relação entre sujeito e objeto. Daí torna-se mais

compreensível o motivo pelo qual, para Hegel, por um lado, o novo tempo,

enquanto época das cisões, provoca na Filosofia a necessidade de superar essas

cisões, o que somente é possível mediante o reconhecimento de que o princípio da

subjetividade é um princípio unilateral. Por outro, ele vai tentar desenvolver um

conceito de razão com o poder de unificar as diferenças, pois ele se torna a instância

crítica interna da própria Modernidade, que vai além da subjetividade, sem negá-

la52. Assim, com o conceito de absoluto “que consiste somente na relação entre o

finito e o infinito, na própria atividade de reflexão”53, Hegel faz uso dos meios da

filosofia do sujeito com a finalidade de superar a razão centrada no sujeito.

Esse modelo de certificação, elaborado por Hegel, segundo Habermas,

supera a própria possibilidade da Razão, pois, se por um lado, procura ultrapassar a

subjetividade, sem destruí-la, ou seja, a retém, no momento da negação

determinada, para suprassumí-la, em seguida, elevando-a, no momento da verdade,

por outro, a Razão assume, enquanto saber absoluto, o lugar deixado pelo destino, a

ponto de saber que o real é racional, que o significado essencial como um todo “já

51 Manfredo OLIVEIRA. “A Crise da Racionalidade Moderna: Uma Crise de Esperança”. In: Síntese Nova Fase 45(1989), p. 17. 52 Segundo Manfredo OLIVEIRA, o cerne da filosofia de Hegel pode ser captado, no interior da perspectiva aberta pela Filosofia transcendental, o que significa: “elaborar um conceito de razão, que seja capaz de dar conta das experiências da crise da Modernidade e tornar possível uma crítica de fundo ao reducionismo da Modernidade, para recuperar, numa dimensão superior, seu momento de verdade”. Ibid. p. 18. “Se o poder da unificação desaparece da vida dos Homens e os antagonismos perdem sua relação viva, a sua reciprocidade, e ganham autonomia, então surge a necessidade da filosofia ...”. Cf. W .Hegel, Differenzschrift, apud, Jürgen HABERMAS, DFM, p. 31. 53 J. HABERMAS, PPM, p. 165. J. HABERMAS, DFM., p. 42. Segundo Habermas “com o conceito de absoluto que supera todas as absolutizações e que retém apenas o processar infinito da auto-referência, enquanto incondicionado, que absorve todo o finito, Hegel pode compreender a Modernidade partindo do seu próprio princípio. E ao fazê-lo ele apresenta a filosofia como poder da unificação que supera todas as positividades que decorrem da reflexão – e cura, assim, os fenômenos modernos da desintegração”. Ibid., p. 44. Para Lima VAZ, “Será justamente em torno do núcleo conceptual constituído pela relação do homem com o Absoluto que se travará as grandes querelas pós-hegelianas e a herança de Hegel será disputada entre seus herdeiros de direita e de esquerda”. São, pois, as instâncias dialéticas do Espírito Absoluto: Arte (intuição), Religião (representação) e Filosofia (conceito) Antropologia Filosófica I. São Paulo: Loyola, 1991, p. 120.

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foi decidido”54. Isso significa que, com o Espírito Absoluto, Hegel realiza uma

reconciliação55 com a Modernidade, renunciando à capacidade crítica da razão, ao

mesmo tempo em que assiste à neutralização das condições sob as quais ela

adquiriu a consciência de si mesma.

Sob o prisma da busca de certificação, de um conceito de razão que

aglutine todas as nuances da Modernidade, Habermas afirmará que o discurso da

Modernidade foi inaugurado por Hegel, no sentido de que sua filosofia se instaura

como o pensamento que se reconhece a si mesmo como sendo a consciência de sua

época. No entanto, com o conceito absoluto de razão56, Hegel a aprisiona no interior

do seu próprio conceito de auto-certificação, por subsumir o contingente, o terreno

do não-ente, do mutável, aos ditames do espírito sublimado que sorve todas as

contradições atuais, para o interior de sua “absoluta auto-referência”. Para os neo-

hegelianos, há que desublimar – libertar – a razão absoluta, “essa figura do

pensamento que é a crítica da Modernidade, a qual se inspira no espírito da

Modernidade, do peso do conceito hegeliano de razão”57. Nesse sentido é que

Feuerbach reclamará, na natureza interior e exterior, a existência sensível: sensação

e paixão comprovam a existência de um corpo, sentido pela resistência do mundo

objetivo; Kierkegaard lembrará a existência histórica de cada indivíduo, premida

pela busca da autenticidade de sua existência, que exige uma decisão de caráter

irrevogável e de interesse infinito; Marx insiste no ser material que, ao agir,

54 Roger GARAUDY assim reflete essa afirmação de Hegel de que o real é racional: “Para que o homem conquiste ao mesmo tempo a mais alta liberdade e a felicidade, para que ele se ache completamente em ‘casa’ no mundo que acaba de nascer, é preciso superar-lhe todas a contradições, não pelo combate, pois o princípio da nova ordem não é colocado em xeque, mas por uma racionalização total do real, pela tomada de consciência da necessidade da contradição e de sua racionalidade”. Para Conhecer o Pensamento de Hegel. Trad. Suely Bastos. Porto Alegre: L&PM Ed., 1983, p. 17. 55 “Esto [a reconciliação] constituye la exigencia de la filosofía de la religión, (la necesidad de la filosofía en general). En esta reconciliación hay que corresponder a la exigencia suprema del conocimiento, del concepto y la razón; el conocer y el concebir no pueden ceder en nada ... e de su necesidad y dependencia, convicción ... Su altura misma consiste justamente en que él [o conteúdo absoluto] no renuncia a la Razón”. G. W. F. HEGEL. Lecciones sobre Filosofía de la Religión, 1. Trad. Ricardo Ferrara. Buenos Aires: Ricardo Ferrara, 1984, p. 21-22. Segundo J. HABERMAS, essa reconciliação significa que “Hegel vê a filosofia dispensada da tarefa de confrontar a existência corrompida da vida social e política com o seu conceito”. DFM, p. 50. 56 Para J. HABERMAS, ao conceber a realidade como uma unidade da essência e da existência, Hegel renuncia exatamente o que primordial para a Modernidade: a importância da transitoriedade plena de significado, antes defendida por ele em 1807. DFM, P. 59. 57 J. HABERMAS. DFM, p. 59.

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cooperativamente, sobre a natureza exterior, com vistas a suprir suas necessidades,

estabelece relações sociais, fundadoras da vida econômica, medium da

autoconstrução histórica da espécie. Noutros termos, os neo-hegelianos querem

recuperar a transitoriedade, que é o caráter próprio do novo tempo, como momento

no interior do qual se recupera o espaço para a crítica da própria História, à medida

que se libertam da égide da razão onisciente.

A crítica dos neo-hegelianos à razão absoluta, por conseguinte, toma

em consideração, as condições sobre as quais a razão se faz presente na História, ou

seja, recupera a própria história como atualidade aberta ao futuro, portanto, para

quem a própria crítica é uma forma de dar respostas à crise da atualidade. Eis o

elemento de continuidade com Hegel. Ao mesmo tempo, essa crítica assume o

problema constitutivo do discurso da modernidade, qual seja, um discurso que

rompe com a perspectiva ontológica que caracteriza a razão como Deus ou um ente

em geral, e com a perspectiva empírica, cuja caracterização remete às disposições

de um sujeito como capacidade de conhecer e de agir. Eis o elemento de

descontinuidade.

Para a continuidade do discurso sobre a razão na modernidade, a

recorrência à razão é imprescindível. Portanto, há que descobrir a razão na forma

como os sujeitos reproduzem sua vida e se comportam, em relação à natureza

interna e externa, cujos vestígios desse agir se fazem presentes nos contextos sociais

e culturais da vida, na qual eles se encontram, e se sedimentam em esboços ou

estruturas. Para Habermas, “essa ótica especificamente moderna é conduzida pelo

interesse numa autocertificação [...] (e) torna legíveis processos de formação

cultural suprasubjetivos, nos quais se entrelaçam processos de aprendizagem e

desaprendizagem”58. Sob esse prisma, de que na construção da história, condensam-

se processos supra-subjetivos articulados intimamente uns com os outros, é que

outras características do discurso moderno tornam-se visíveis, a saber: a crítica da

58 Ibid., p. 61.

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razão centrada no sujeito, a simultânea posição de destaque e debilidade dos

intelectuais e a responsabilidade pelos destinos da História.

Daí que para uma correta compreensão da modernidade, há que se pensar um

outro conceito de razão, uma vez que os traços autoritários inerentes à dialética do

Iluminismo, radica-se no princípio da autoconsciência ou da subjetividade, dado

que o sujeito auto-referente adquire sua autoconsciência à custa da objetivação tanto

da natureza interior, quanto da exterior. Dessa forma, tanto no conhecer, quanto no

agir, o indivíduo reporta-se sempre a objetos, tornando-se prisioneiro dos atos que

se destinam a lhe assegurar o seu auto-conhecimento e sua auto-comprensão,

impossibilitando uma correta compreensão do grau de reflexão e de emancipação.

Não é sem razão que os críticos da modernidade se lançam contra o positivismo da

razão. De Hegel até Heidegger, passando por Marx, Nietzsche e, de maneira

especial, como a crítica à razão é dada na Dialética do Esclarecimento, o anátema

contra uma razão fundada no princípio da subjetividade, é singular: ela só denuncia

toda forma de des-razão, apenas, para estabelecer, no seu lugar, o domínio, o poder

da própria racionalidade, à medida que transforma os canais de conscientização e de

emancipação, em outras formas de objetivação e de controle, passando a gozar “de

uma sinistra imunidade ao colocar-se sob as formas de uma dominação

eficientemente dissimulada”59.

1.3. Marx: Trabalho e Emancipação.

Uma saída apontada para a certificação da Modernidade no interior do

pensamento hegeliano, só que com uma inflexão sobre a dimensão prática da razão,

59 Ibid,, p. 62.

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é dada pelos hegelianos de esquerda. Estes procuram libertar o potencial

emancipatório da razão, acumulado ao longo da história, que se encontra prisioneiro

do ethos burguês, e aguarda o momento de sua libertação. Sob o olhar nas

mudanças econômicas, ocorridas na Europa, que criou uma nova sociedade marcada

pela mobilidade e pela transformação das relações sociais; mudanças cujo processo

se passava alheio à consciência participativa e deliberativa dos próprios sujeitos

atuantes, Marx tece sua crítica ao modus vivendi da sociedade burguesa capitalista.

Num primeiro momento, mostrando que a totalidade ética, pensada por Hegel, sob a

chancela da “filosofia da unificação”, não pode ser resolvida, apenas, pelo

pensamento. A sociedade civil desagregada não realiza a sua superação e a

conciliação dos seus conflitos, no Estado. Este, “não incorpora de modo algum a

sociedade antagônica numa esfera da eticidade viva; o Estado limita-se a preencher

os imperativos funcionais desta sociedade, e é ele próprio uma expressão da sua

eticidade dilacerada”60. Nesse contexto, a crítica de Marx a Hegel reside na busca

de uma saída para a totalidade ética dilacerada, não mais na Filosofia da reflexão,

mas no próprio âmago do conflito: no interior das forças produtivas.

Segundo Marx, no desenvolvimento das forças produtivas, presente no

rápido avanço dos instrumentos de produção e de comunicação, adormece o ímpeto

emancipador dos movimentos sociais que precisa ser despertado. Noutros termos,

no interior do sistema, permanece a esperança de se realizar a totalidade ética. Este

despertar das forças produtivas deve ser atribuído a um princípio da Modernidade,

mas não mediante o conceito de reflexão, e sim mediante o conceito de práxis do

sujeito produtor, trocando a autoconsciência pelo trabalho. “O objeto do trabalho,

portanto, é a objetificação da vida-espécie do homem, pois ele não mais se reproduz

a si mesmo apenas intelectualmente, como na consciência, mas ativamente e em

sentido real, e vê seu próprio reflexo em um mundo por ele construído”61.

60 Ibid., p. 68. 61 Karl MARX. “Manuscritos Econômicos e Filosóficos”. In.: Erich FROMM, Conceito Marxista do Homem. Trad. Otávio A. Velho, Rio de Janeiro: Zahar Ed., 7a ed., 1979, p.96-97. Cf. “A Ideologia Alemã”. In.: K. Max F. Engels. Florestan FERNANDES (org.). São Paulo: Ed. Ática, 1983, p. 187. “Ao produzirem os seus meios de vida, os homens produzem indiretamente a sua vida material mesma ... O que eles são coincide

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A Filosofia moderna destacava duas relações entre sujeito e objeto62.

A primeira, enquanto sujeito do conhecimento, que forma para si opiniões acerca de

algo no mundo, passíveis de serem verdadeiras ou não. A segunda, enquanto sujeito

de ação, cujo agir com respeito a fins, realiza algo no mundo objetivo, e cujo

resultado pode ser de sucesso ou insucesso. Isso significa que, na mediação entre

conhecer e agir, sujeito e objeto estabelecem relações, e ambos são afetados e

modificados na sua forma. Nesse contexto, a formação do espírito é compreendida,

pela Filosofia da reflexão, como um processo de autoconsciência, sob o modelo da

auto-referência; já a Filosofia da práxis compreende o processo da formação da

espécie, como autoprodução. Nesse sentido, Étienne Balibar vai defender que, à

medida que Marx identificou a essência da subjetividade como prática, e a

efetivação dessa prática como sendo uma atividade revolucionária, ele trouxe a

categoria de sujeito para o materialismo, mas não só, ele, sobretudo, “derrubou um

dos mais antigos tabus da filosofia: a distinção radical entre práxis e poiesis”63.

Distinção essa, lapidar, realizada por Aristóteles, para se referir às diferentes esferas

portanto com a sua produção, tanto como o que produzem quanto também como o que produzem. Portanto, o que os indivíduos são depende das condições materiais da sua produção ...”. 62 “... subjective reason regulates exactly two fundamental relation that a subject can take up to possible objects. Under ‘object’ the philosophy of the subject understanding first of all capacities to relate oneself to such entities in the world in an objectivating attitude and to gain control of objects, be it theoretically. The two attitudes of mind are representation an action. The subject relates to objects either to represent them as they are or to produce them as they should be. These two functions of mind are intertwined: knowledge of states of affairs is structurally related to the possibility of intervention in the world as the totality of states of affairs; and successful action requires in turn knowledge of the causal nexus in which it intervenes”. J. HABERMAS, TCA, vol 1, p. 387. 63 Étienne BALIBAR. A Filosofia de Marx. Trad. Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995, p.53. Sobre essa mesma questão, Hannah ARENDT diz que para Marx, numa sociedade plenamente socializada “cuja única finalidade fosse a sustentação do processo vital ... a distinção entre labor e trabalho desapareceria completamente; todo o trabalho tornar-se-ia labor, uma vez que todas as coisas seriam concebidas, não em sua qualidade mundana e objetiva, mas como resultado da força viva do labor, como função do processo vital”. A Condição Humana.Trad. Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária, 8a ed., 1997, p. 100. Adiante, após afirmar que a teoria de labor de Marx está orientada por este ideal “infelizmente um tanto utópico”, dado que o reino da liberdade só seria conquistado quando o homem fosse libertado do reino das necessidades físicas imediatas, ela considera que “em todos os estágios de sua obra, ele (Marx) define o homem como animal laborans para levá-lo depois a uma sociedade na qual este poder, o maior e mais humano de todos, já não é necessário. Resta-nos a angustiosa alternativa entre a escravidão produtiva e a liberdade improdutiva”. Ibid. p. 117. Valeria a pena perguntar, neste ponto, se a Razão Comunicativa de Habermas não recupera a distinção entre práxis e poiesis para assegurar o momento reflexivo – emancipatório – da práxis, que ficou prisioneiro, segundo Habermas, da dimensão instrumental da razão no paradigma da produção. Porém, a inflexão dada, por Habermas, ao momento reflexivo da práxis, não pode ser compreendida no sentido clássico de theoria, como contemplação. A reflexão possibilita a descoberta dos elementos cognitivos presentes no mundo da vida, e, mediante argumentos, instaura as condições simétricas para o diálogo com vistas ao entendimento, como veremos adiante.

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do ser: a teoria e a práxis64, e que serviu de modelo à justificação histórica da

divisão social do trabalho; a superação, dessa divisão, adviria, segundo Marx,

mediante a revolução operada por um novo sujeito histórico: a classe operária.

Dessa forma, a Filosofia da práxis vai instaurar o princípio da Modernidade como

sendo o trabalho, em oposição à autoconsciência. Ao absorver a distinção entre

fazer e agir, a filosofia da práxis, para Lima Vaz, assume o núcleo dinâmico da

cultura da modernidade, tendo sua expressão teórica na filosofia do sujeito,

“fazendo da História ao mesmo tempo a matriz de todos os seus valores e a obra por

excelência do seu supostamente ilimitado poder de produzir”65.

Marx formula o princípio do trabalho através do aporte da idéia da

atividade criadora do artista, como meio de este abranger, também, o conteúdo

racional da cultura burguesa. Nessa perspectiva, mediante sua atividade, o artista

dispõe das suas forças vitais e as coloca na sua obra, e ao contemplá-la, reapropria-

se do produto do seu trabalho, como algo de permanente e expressão da

determinidade da consciência de si. Tal não acontece no trabalho assalariado

(alienado), cujo elo de ligação entre produção e apropriação das forças vitais

objetivadas é cindido, interrompendo o fluxo normal da práxis, que deveria abarcar

o conteúdo estético-expressivo, o prático-moral e a troca de equivalentes. Ou seja,

na sociedade capitalista, a mercadoria, por se apresentar como algo supra-sensível e

independente do seu produtor, é o elemento gerador da cisão entre o processo de

produção material e o processo de auto-esclarecimento. É por causa desse caráter

supra-sensível da mercadoria, segundo L. Avritzer, “que o processo de

esclarecimento político dos produtores não ocorre imediatamente” 66. A

recomposição dessa cisão passa por uma práxis emancipatória, que deve brotar do

64 Segundo J. HABERMAS, dado que a práxis se referia à ação política, para os gregos, havia que distingui-la da ação, que tem como fim a construção de artefatos úteis: poiesis. “Em última instância, a política sempre se orienta à formação do caráter; procede pedagogicamente, não tecnicamente”. Enquanto práxis, a política, persegue a perfeição ou a excelência humana: areté, portanto, não tem nada a ver com a poiesis, que, enquanto techné – a habilidade artesanal –, “consiste na fabricação habilidosa de obras e em domínio firme de tarefas objetualizadas”. Teoría y Práxis. Trad. Salvador M. Torres e Carlos M. Espí. Madrid: Tecnos, 1990, p.50. 65 Lima VAZ. “A Cultura e seus Fins”. In: Síntese Nova Fase 57 (1981), p.158-159. 66 Leonardo AVRITZER. A Moralidade da Democracia. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1996, p. 36.

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próprio trabalho. No entanto, segundo Habermas, isso não ocorre, porque o trabalho

morto, o trabalho que foi arrancado do trabalhador, não é pensado como uma

intersubjetividade paralisada e mediatizada. Sob esse aspecto, as premissas

marxianas não superam os limites da razão centrada no sujeito, pois na relação

agente e mundo objetivo, a validade que pode ser afirmada é da racionalidade

cognitivo-instrumental, “e o poder unificador da razão, que agora é apresentado

como práxis emancipatória, não se dissolve nesta racionalidade com respeito a

fins”67, porque, a dimensão interativa da razão não está subsumida, na dimensão

sistêmica, como pensava Marx68.

Essa dificuldade de abarcar, mediante a Filosofia da práxis, um

conceito unificador de razão livre da auto-referência, e que contemple todos os

matizes da Modernidade, colidiu, segundo Habermas, com limites intransponíveis,

tanto quanto a Filosofia da reflexão. Para esta, a saída da filosofia centrada no

sujeito se deu mediante o recurso da automediação absoluta do espírito. Esse

modelo recebeu suas críticas, já na primeira geração dos discípulos de Hegel, que se

colocaram de encontro à supremacia secreta do universal, necessário e atemporal,

sobre o particular, contingente e temporal. Em Marx, o limite da Filosofia da práxis

está em reduzir a razão, apenas a uma das suas possibilidades: a teleo-atividade,

nesse sentido, ele não pode contrapor a filosofia da práxis à razão instrumental, ou

seja, ao processo inconcusso da racionalidade social, por ser, a racionalidade dessa

filosofia, parte integrante e resultado do contexto reificado.

A própria história do marxismo ocidental reflete as dificuldades

encontradas, para manter a unidade do discurso, em relação aos conceitos

fundamentais da filosofia da práxis. Algumas dessas dificuldades são relatadas por

Habermas, no sentido de enumerar a impossibilidade de Marx de propor uma saída

para as cisões da Modernidade. Primeiramente, quanto a avaliação positiva de

67 Ibid., p. 71. 68 Para Leonardo AVRITZER, “é ao nível dos processos de formação da identidade e produção da solidariedade e, principalmente do processo de argumentação moral que as possibilidades de emancipação dos indivíduos estão localizadas”, e não no interior do paradigma da produção. Voltaremos a esse tema, no

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Marx, em relação ao avanço das forças produtivas e do potencial emancipador da

Ciência e da Técnica. Estas são vistas, por Lukács, Bloch e Marcuse, como um

meio eficaz de repressão social; em segundo lugar, ele fala que a filosofia da práxis

toma como “mera aparência” a relação sistêmica entre a Economia capitalista e o

Estado. Nesse sentido, quando fosse superada a relação de produção, junto com ela

desapareceria a relação sistêmica: as relações sociais coisificadas seriam

recuperadas, no mundo da vida, livres dos ditames da lei do valor. Sob esse prisma,

o cuidado que se deve ter é o de não tomar o processo de emancipação, apenas,

como um modo de des-diferenciação de interações humanas complexas, pois, do

contrário, o poder unificador da razão fica reduzido a uma mera ilusão, frente a

teoria dos sistemas.

Essas dificuldades refletem que, se por um lado o trabalho assegura

uma relação da modernidade com a racionalidade, por outro, ele se debate com o

mesmo desafio que se encontrava a filosofia da reflexão, qual seja: a estrutura da

exteriorização de si mesmo no trabalho, bem como a estrutura da relação consigo

mesma, leva implícita a necessidade de auto objetivação, por conseguinte, “o

processo de formação da espécie é determinado pela tendência que os indivíduos

trabalhadores, na medida da dominação da natureza exterior, só adquirem a sua

identidade pelo preço da repressão da sua própria natureza interior”69. Ou seja, o

modo como a razão avança sobre a natureza, para transformá-la no mundo da

cultura, faz-se com tamanha instrumentalidade, que destrói a possibilidade de, em

princípio, não mais haver uma natureza independente. Daí se entender a inflexão

dada, por Horkheimer e Adorno, na Dialética do Esclarecimento, a essa figura do

espírito objetivado: a instrumentalidade da razão. Para evitar a instrumentalização

decorrente da razão centrada no sujeito, Hegel contrapõe, à absolutização da

autoconsciência, a automediação absoluta do espírito70. No entanto, a filosofia da

capítulo seguinte, quando se tentará abordar a relação de continuidade e descontinuidade entre Adorno e Habermas. Ibid., p. 48. 69 DFM., p. 73. 70 Segundo Habermas, a escolha de Hegel do termo espírito não é arbitrária, uma vez que esse é referido, na linguagem ordinária, como espírito de um povo, de uma época, ou de um grupo etc, portanto, está acima da subjetividade da autoconsciência solitária. “O Eu como a identidade do universal e do particular só se pode

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práxis, que nasceu como resistência à filosofia idealista, fica sem ter o que

contrapor à razão instrumental teleológica, quando a pressão para a objetivação se

faz sentir, no âmago da razão crítica, uma vez que a filosofia da práxis se

compreende a si mesma em termos materialistas, ou seja, como parte integrante e

resultado do contexto reificado.

Esse dilema da razão instrumental, é enfrentada por Horkheimer e

Adorno, na Dialética do Esclarecimento, porém, não no sentido de resolvê-la, de

apresentar uma saída, mas de levá-la ao paroxismo. Frente à razão instrumental, eles

opõem uma recordação, uma outra forma de relação com a natureza, envolta em

protesto contra a instrumentalização. Essa forma de resistência é denominada de

mímesis, que, nas palavras de Habermas, “faz lembrar uma relação entre duas

pessoas, na qual a pacífica exteriorização de uma, pela qual ela se identifica com o

modelo da outra, não exige a renúncia à própria identidade, mas concede, ao mesmo

tempo dependência e autonomia”71. Por estar livre da conceitualização que se

reflete na relação sujeito-objeto, a capacidade mimética apresenta-se como um mero

impulso, como o simples oposto à razão.

Por conseguinte, a crítica da razão instrumental, apresenta-se, na

Dialética do Esclarecimento, como uma denúncia contra a dominação que essa

razão exerce, mas não consegue explicar, por estar presa a conceitos que, se por um

lado, facultam ao sujeito dispor da natureza exterior e interior, por outro, não são

capazes de dar voz à natureza objetivada, para que ela denuncie os atentados de que

é vítima, por parte do sujeito. Nesse sentido, como a Teoria Crítica não renuncia à

esperança de uma sociedade emancipada, em Adorno, sobretudo, essa utopia será

vivida na imaginação estética. Para Olgária Matos, “A Teoria Crítica preserva a

transcendência da Utopia como verdade de um futuro de realização [...]. Eis a

conceber a partir da unidade de um espírito que integra a unidade do Eu com um outro, que com ele não é idêntico. Espírito é a comunicação dos particulares no meio de uma universalidade que se comporta como a gramática de uma língua em relação aos falantes, ou como um sistema de normas vigentes relativamente aos indivíduos agentes, e que não salienta o momento da universalidade perante a individualidade, mas garante a sua conexão particular”. “Trabalho e Interação”. In.TCI, p. 16. 71 DFM, p. 73.

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importância da imaginação estética e da fantasia como instância em que estão

depositadas as mais genuínas aspirações do indivíduo. Na imaginação estética há a

utopia de uma razão ressensualizada, na medida em que indica um princípio de

realidade diverso do atual: a reconciliação do homem com o homem passa pela

reconciliação do homem com a natureza ...”72. Ou seja, a arte passa a ser vista como

o locus privilegiado, no qual ainda se esconde aquela capacidade mimética que

escapa à abordagem conceitual, e resgata a melancolia de um instante perdido, que

somente pode ser recuperado como saudade do inteiramente outro.

Em resumo, a dialética do Iluminismo realiza-se sob a égide da

liberdade subjetiva que se apresenta na maior conquista dos tempos modernos : a

autoconsciência. Porém, a força dessa dialética está no processo de aprendizagem

irreversível, segundo o qual “as formas de compreensão não podem ser esquecidas a

bel-prazer, mas podem ser apenas reprimidas ou corrigidas por outras melhores”73.

Por conseguinte, as cisões que afloraram do princípio dessa subjetividade, e que se

efetiva na sociedade, no Estado e na vida privada, aos poucos vão se apartando e se

autonomizando cada vez mais, de maneira a ressurgir, simultaneamente, sob o

espectro de uma abstração, de alienação frente ao contexto de uma totalidade ética,

o que antes se apresentava como ideal emancipatório. É sob esse aspecto que

Habermas irá dizer, a respeito de Hegel e de seus seguidores, que vão procurar

extrair dessa dialética a auto-compreensão do novo tempo, cujo poder de unificação

deve ser haurido da própria razão, uma vez que inere a esta dialética a

impossibilidade de recorrer ao poder unificador da religião, que eles não

conseguiram talhar, numa justa medida, um conceito de razão que abarcasse todas

as nuances de um Iluminismo, em si mesmo dialético. Mas não só, a ausência de um

ideal de razão que dialogasse com uma modernidade em conflito consigo mesma,

colocou sob suspeita a própria razão. Agora ela está desafiada a esclarecer-se a si

mesma. Esse desafio abriu as portas para a suspeição dos ideais emancipadores da

72 Olgária F. MATOS. Os Arcanos do Inteiramente Outro. São Paulo: Brasiliense, 2a ed., 1995, p. 288-289. 73 J. HABERMAS. DFM, p. 90.

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razão, na forma de uma crítica radical da razão. É o que se tentará analisar no

capítulo seguinte, como Horkheimer e Adorno, mediante a Dialética do

Esclarecimento, vêem a razão que engendrou o ethos iluminista tão-somente a

expressão visível de um processo de racionalização, que foi conduzido sob o

domínio da razão com respeito a fins, como um processo de reificação, que minou a

possibilidade de realização do ideal Iluminista da autonomia do sujeito.

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CAPÍTULO II

MODERNIDADE E MITO

2.1. Horkheimer e Adorno: A Modernidade e o Mito da Razão Esclarecida

Na primeira parte deste trabalho procuramos introduzir e discutir,

sumariamente, a relação entre modernidade e razão, dentro da teoria da

modernidade de Habermas. Com isso, tentou-se mostrar que se o ponto de partida

dessa teoria é o processo de racionalização oriundo de Weber, compreendido como

a extensão progressiva para o conjunto da sociedade da racionalidade com respeito

a fins (Zweckrationalität), seu desfecho será a afirmação da afinidade interna,

indissociável, entre modernidade e racionalidade, condição para assegurar o caráter

emancipador do processo de racionalização, enquanto processo no qual se busca

realizar a autonomia.

Essa autonomia, compreendida como maioridade realizada dos

homens e expressa no uso público da razão, tematizada por Kant, Hegel e Marx, se

vê questionada em seu sentido pela tradição da filosofia da práxis marxiana.

Horkheimer e Adorno, mediante a Dialética do Esclarecimento, vão contrapor ao

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ideal emancipador da razão iluminista, um conceito de razão prisioneiro do mito,

que se expressa como razão instrumental. Esta é apresentada como uma categoria

interpretativa da história universal, e se alicerça na dominação da razão sobre a

natureza. E o Iluminismo, que se orgulhava da sua vitória sobre a fase mítica da

vida humana, vê-se envolto com uma razão que se anuncia na dominação da

natureza. Quanto ao seu programa de desencantamento do mundo “... a terra

totalmente esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal”74.

A herança marxiana do conceito de práxis, esta compreendida como

síntese totalizadora do real e núcleo conceitual dinâmico iluminador da emergência

da emancipação do homem, recebe uma inflexão lapidar no chamado marxismo

ocidental. Essa crítica, realizada na perspectiva da teoria crítica da Escola de

Frankfurt, de maneira especial por Horkheimer e Adorno, tem um endereço

definido: o âmago do próprio conceito de razão Iluminista, no sentido de colocar,

conscientemente, sob suspeita, seu caráter emancipador. O confronto de Habermas

com seus mestres75 é emblemático, porque se inscreve no seio do debate

contemporâneo do marxismo ocidental, debate iniciado no final da década de

192076, quando as esperanças de uma sociedade emancipada, via revolução russa,

aparecia, cada vez mais, como uma idílica quimera, à medida que a revolução

socialista começava a revelar uma outra face: o Estado Soviético burocratizado

apresentava-se como a negação das esperanças da filosofia da práxis, que era a

conquista do Estado pelo novo sujeito histórico: o operariado. Com isso

74 T. ADORNO e M. HORKHEIMER. Dialética do Esclarecimento. Trad. Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985, p. 19. 75 As considerações aqui apresentadas partem do pressuposto de que o pensamento de Habermas está em continuidade com a Escola de Frankfurt. Sobre essa questão cf. A. ARATO, e E. GEBHARDT, (Ed.) The Essential Frankfurt School Reader. New York: Continuum, 1998. David HELD. Introduction to Critical Theory. Horkheimer to Habermas. Berkeley: University California Press, 1980. Martin JAY, M. La Imaginación Dialética. Trad. Juan C. Curutchet. Madrid: Taurus, 3a ed., 1986. S. Eric BRONNER. Da Teoria Crítica e seus Teóricos. Trad. T. R. Bueno e C. Meneguelo. Campinas: Papirus, 1997. Bárbara FREITAG. Teoria Crítica Ontem e Hoje. São Paulo: Brasiliense, 3a ed., 1990. Olgária C. F. MATOS. Os Arcanos do Inteiramente Outro. São Paulo: Brasiliense, 2a ed., 1995. Raymond GEUSS. Habermas e a Escola de Frankfurt. Trad. B. I. Borges. Campinas: Papirus, 1988. 76 S. BRONNER coloca que a mudança de enfoque da economia política para a teoria crítica deu-se em 1930, quando Horkheimer assumiu a direção do Instituto. Da Teoria Crítica e seus Teóricos. Trad. T. R. Bueno e C. Meneguelo. Campinas: Papirus, 1997, p. 96.

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adiantamos, portanto, que não é nosso intuito proceder, neste trabalho, a uma

retomada de todos os problemas teóricos enfrentados pela Escola de Frankfurt, para

não incorrermos no risco da generalidade, mas, de maneira especial,

acompanharmos o confronto entre Habermas vs. Adorno e Horkheimer, sobre a

crítica da razão iluminista, talhada à medida da Dialética do Esclarecimento.

Assim, já de saída, a questão que se levanta é a seguinte: até que ponto pode-se

dizer que, em O Discurso Filosófico da Modernidade, Habermas não leva, em

consideração, o contexto em que foi escrita a obra de 1947; as questões a que ela

procurava responder e como estas foram decisivas para os desenvolvimentos e às

assunções posteriores do pensamento de Adorno77?

De fato, Habermas está ciente da gravidade do contexto no qual foi

escrita a Dialética do Esclarecimento. Tanto é que ele recorrerá à análise de

Dubiel78 para dizer que três fatores foram determinantes para a formação da teoria

crítica: primeiro, a experiência soviética, que confirmava o prognóstico de Max

Weber quanto ao acelerado processo de burocratização do Estado, tendo como

conseqüência a perda dos ideais democráticos de liberdade da sociedade; segundo, o

avanço do nazi-fascismo, que revelava a capacidade interventiva do Estado-gestor

na economia, à medida que barrava o avanço da ameaça revolucionária e, por fim, o

desenvolvimento da cultura de massa, principalmente nos Estados Unidos, que se

consolidava como força integradora do capitalismo79.

77 Marcos NOBRE. A Dialética Negativa de Theodoro W. Adorno. São Paulo: Iluminuras, 1998, p. 31 e 41. O autor defende que Habermas falha na sua avaliação sobre Adorno. Primeiramente porque Habermas não deixa claro que houve modificações no pensamento de Adorno após 1947. “Não se trata aqui de discutir a crítica de Habermas, que aponta para uma ‘contradição performativa’ no modelo da crítica de Horkheimer e Adorno. Trata-se apenas de mostrar que partindo exclusivamente da Dialética do Esclarecimento não se consegue uma correta compreensão da obra tardia”. Em segundo lugar, na sua tentativa fracassada de “encontrar em Adorno (ainda que seja ‘uma vez’) um estado de comunicação sem coerção que é antecipado quando pretendemos anunciar algo verdadeiro”. 78 J. HABERMAS. TCA, vol. 1. p. 366s. 79 “The Soviet-Russian perversion of the humane content of revolutionary socialism, the collapse of the social-revolutionary labor movement in all industrial societies, and the socially integrative accomplishments of a rationalization that had penetrated into cultural reproduction – these were the basic experiences that Horkheimer and Adorno attempted to work through theoretically in the early 1940s”. J. HABERMAS. TCA, vol. 1, 1984, p. 367. Marie J. GAGNEBIN. Sete Aulas Sobre Linguagem, Memória e História. Rio de Janeiro: Imago, 1997, apresenta uma quarta justificativa à dramaticidade e aspereza da linguagem da Dialética do Esclarecimento: o fato de ser uma obra de exílio. Este é emblemático por si mesmo para experiência judaica: é sinônimo, por excelência, de uma negação determinada. “Para onde quer que se

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No embate com Adorno e Horkheimer, em O Discurso Filosófico da

Modernidade, a reação com respeito a Horkheimer, é peculiar. De saída, coloca-o

entre os chamados ‘escritores obscuros da burguesia’. De uma só penada, Adorno e

Horkheimer são associados aos escritores negros, Sade e Nietzsche, mediante a

Dialética do Esclarecimento, “o seu livro mais negro, para conceptualizar o

processo de autodestruição do iluminismo”. O contraponto estabelecido ante a

forma pessimista com que é tratado o conceito de Aufklärung80 de Adorno e

Horkheimer utilizado na Dialética do Esclarecimento, é posto sem rodeios.

Segundo Habermas, a singularidade da tradição iluminista revela-se e se consolida

como o pensamento que se contrapõe ao mito, sob duas nuanças de um mesmo

embate: por um lado, por estabelecer o melhor argumento como arma contra a força

repetidora da tradição e, por outro, por quebrar o “sortilégio dos poderes coletivos

por meio de intelecções individualmente adquiridas transposta em motivos”. Nesse

sentido, o iluminismo representa, não apenas, a antítese ao mito, como se fosse este

tão-somente o elemento contraditório do diálogo: o iluminismo é, em sua natureza,

a própria subtração do poder do mito.

As idéias desenvolvidas na Dialética do Esclarecimento gravitam em

torno de um eixo que é constituído sobre duas teses centrais: “o mito já é

esclarecimento e o esclarecimento acaba por reverter à mitologia”81. Isso posto,

segundo Habermas, eles incorrem numa petitio principii, da qual se deduz uma

vantagem metódica: “Os mitos depositaram-se nas diversas estratificações do texto

homérico; mas o seu relato, a unidade extraída às lendas difusas, é ao mesmo tempo

a descrição do trajeto de fuga que o sujeito empreende diante das potências

dirijam os olhares só há dominação e morte e, pior ainda, acomodação à morte e resignação à dominação” (p. 108). 80 Horkheimer atribui dois sentidos ao conceito de “Aufklärung”: primeiramente, como o pensamento filosófico surgido na Inglaterra, França e Alemanha, em oposição à teologia; em seguida, como “o pensamento filosófico total que, ao contrário da mitologia, conduziu a batalha para alcançar a clareza sobre suas próprias idéias e tornar seus conceitos visíveis para todos ... Os dois sentidos estão ligados um ao outro”. Max Horkheimer, Apud, S. Bronner. Da Teoria Crítica e seus Teóricos. Trad. T. Bueno e C. Meneguelo. Campinas: Papirus,1997, p. 121. 81 T. ADORNO e M. HORKHEIMER. Dialética do Esclarecimento. Trad. Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985, p. 15.

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míticas”82. Ou seja, a história da subjetividade apresenta-se como um processo de

fuga ante à violência das potências míticas cujo ambiente de sua realização não se

apresenta como a pátria, cujo retorno é sonhado, mas como o ‘labirinto’ do qual se

deve escapar, para assegurar a própria identidade.

Essa libertação, no entanto, não se dá de forma plena. O indivíduo é

como que constantemente compungido a regressar às origens, da qual retorna,

mediante o sacrifício ‘simbólico’, e se resgata da ‘maldição’. Para Habermas, esse

regresso ritual, além de ser uma “necessidade vital” para a consciência coletiva, na

esteira de Durkheim, assegura a “coesão social”. Portanto, o logro inerente ao

sacrifício simbólico, cujo retorno é, apenas, aparente é a sua máxima expressão, é

parte constitutiva do sacrifício, e, não apenas, uma expressão de astúcia, como

pensavam Adorno e Horkheimer: o eu deve subtrair-se ao objeto sacrifical.

Porém, essa pseudo-realização da libertação representa, para Adorno e

Horkheimer, a prova de que o iluminismo permanece refém da potência mítica, o

que comprova, por um lado, a sua recaída na mitologia e, por outro, que ele não

atingiu plenamente a sua realização. É o que eles procuram comprovar, através da

odisséia da consciência, na qual, em cada estágio de sua evolução, ela se sente

atraída pelas origens de cujo encanto só pode escapar, mediante à renúncia imposta

a si mesma. Esse é o custo que o eu se impõe, a si mesmo, para conquistar a própria

identidade, à medida que se despede da ‘arcaica’ união com a natureza, tanto da

natureza externa quanto da interna: “Com a negação da natureza no homem, não

apenas o telos da dominação externa da natureza, mas também o telos da própria

vida se torna confuso e opaco”83. No episódio do canto das sereias, a beleza plástica

da cena fala por si mesma. Ao ouvir o canto das sereias, Ulisses, acorrentado ao

mastro, encarna “o domínio do homem sobre si mesmo em que se funda o seu ser, é

sempre a destruição virtual do sujeito a serviço do qual ele ocorre; pois a substância

dominada, oprimida e dissolvida pela autoconservação, nada mais é senão o ser

82 Ibid., p. 55. 83 Ibid., p. 60.

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vivo, cujas funções configuram, elas tão somente, as atividades da autoconservação,

por conseguinte exatamente aquilo que na verdade devia ser conservado”84. Essa é a

dupla face de Janus do iluminismo: o homem só consegue preservar a identidade

conquistada à custa do domínio da natureza exterior – ouve-se o canto das sereias

mas a condição de se estar acorrentado impede o contado com elas – e da repressão

da natureza interior – o desejo de ir ter com as sereias não é satisfeito por estar

preso ao mastro, símbolo da identidade, do eu, conquistada.

Sob esse aspecto, a Dialética do Esclarecimento remete as origens do

iluminismo às origens do processo histórico-universal. Nesse sentido, o

desencantamento do mundo moderno, com penetração em todas as esferas da vida

social: na economia, na cultura, na tecnologia, na lei e na política, assim como

pensou Weber85, que para Habermas representa a conquista da autonomia dessas

diversas esferas, para Adorno e Horkheimer, só aparentemente está realizado. A

emancipação do mundo moderno recai sobre ele mesmo como uma ilusão. O

controle racional da natureza exterior, inerente ao processo de desenvolvimento das

forças produtivas, impõe-se, apenas, pela necessidade de auto-preservação.

Nesse ponto do debate, em O Discurso Filosófico da Modernidade,

Habermas levanta três problemas (‘impressões’) que, segundo ele, devem ser

considerados pelos leitores da Dialética do Esclarecimento: 1) a similaridade da

tese levantada com o niilismo nietzschiano, 2) a consciência dos autores em relação

ao viés tomado para proceder a crítica da cultura e 3) a inflexão dada à crítica da

cultura que coloca, em questão, a credibilidade da própria crítica.

Quanto ao primeiro problema, concernente à crítica radical da razão

feita no primeiro excurso, a impressão deixada é a de que “a própria razão destrói a

humanidade que ela mesma possibilitou ... [pois] o processo do iluminismo se deve,

desde os seus primórdios, ao impulso de auto-preservação que mutila a razão

84 Ibid., p. 60 e 61. 85 Cf. Max WEBER. Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Trad. M. Irene de Q. F. Szmrecsányi e Tomás J. M. K. Szmrecsányi. São Paulo: Liv. Pioneira Editora, 12a. ed, 1997.

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porque só reclama em formas de dominação da natureza e do instinto orientada para

fins, justamente como razão instrumental”86. Daí o questionamento, será que a

razão, nas suas manifestações mais tardias – ciência, direito e arte – está subjugada

aos ditames da lógica da razão com respeito a fins?87 Certamente que, para

Habermas, o primeiro ensaio embarca nessa perspectiva, ao apresentar a ciência

moderna subsumida ao positivismo lógico, que hipertrofia o conhecimento técnico,

em detrimento do teórico: “Compreender o dado enquanto tal, diz Adorno e

Horkheimer, descobrir nos dados não apenas suas relações espácio-temporais

abstratas, com as quais se possa então agarrá-las, mas ao contrário pensá-las como a

superfície, como aspectos mediatizados do conceito, que só se realizam no

desdobramento de seu sentido social, histórico, humano – toda a pretensão do

conhecimento é abandonada.”88.

Se tal é a sorte da razão, no tocante à ciência moderna, que caiu no

sorvo da razão instrumental, semelhante destino tiveram, também, a moral e a arte,

segundo Adorno e Horkheimer, pois, com o desencantamento do mundo, os padrões

de orientação ético-religioso perderam sua força persuasiva, doravante subsumida à

ciência: “O fato de ter, não encoberto, mas bradado ao mundo inteiro a

86 J. HABERMAS. DFM, p. 113, grifos do autor. 87 É importante frisar que tanto para Adorno e Horkheimer quanto para Marcuse, o modelo da razão ocidental burguesa talhado à medida do conceito de racionalização de Max Weber, se expressa como uma razão formal, que se pretende axiologicamente neutra. É a razão que se efetivou no Ocidente e engendrou o Capitalismo. Segundo H. MARCUSE, “Industrialização e Capitalismo na Obra de Max Weber”. In: Cultura e Sociedade, vol 2, trad. W. L. Maar et al. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998, p. 115, “a idéia especificamente ocidental da razão se realiza efetivamente em um sistema da cultura material e intelectual (economia, técnica, “modo de vida”, ciência, arte) que encontra seu desenvolvimento pleno no capitalismo industrial ...”. É a razão instrumental (Zweckrationalität), cuja lógica ‘oculta’ é a do domínio da natureza exterior, que se converte no domínio da natureza interior e dos homens sobre eles mesmos, que minou a possibilidade de emancipação. Para Max HORKHEIMER, “A razão subjetiva (instrumental) perde toda a espontaneidade, toda a produtividade, todo o poder de descobrir e fazer valer novos conteúdos, ela perde sua própria subjetividade”. “Meios e Fins”, Eclipse of Reason, apud, Olgária C. F. MATOS, Os Arcanos do Inteiramente Outro. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 142. Em Habermas, a inflexão dada ao conceito de racionalização e de razão instrumental (Zweckrationalität) percorre um caminho singular dentro da tradição da Teoria Crítica, para ele há que reconhecer a evolução própria a cada conceito, ou seja, por um lado a independência da Modernidade social frente à cultural, por outro a autonomia da ciência e sua necessária evolução frente as outras áreas do saber. “With science and technology, with autonomous art and the values of expressive self-presentation, with universal legal and moral representations, there emerges a differentiation of three value spheres, each of which follows its own logic”. Cf. J. HABERMAS. TCA, vol. 1, p. 163-4, grifos do autor. 88 T. ADORNO e M. HORKHEIMER, Dialética do Esclarecimento, Trad. Guido A. de Almeida, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 5a ed. 1996, p. 38-39.

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impossibilidade de apresentar um argumento de princípio contra o assassinato ateou

o ódio com que os progressistas ainda hoje perseguem Sade e Nietzsche”. E mais:

eles “Não pretenderam que a razão formalista tivesse uma ligação mais íntima com

a moral do que com a imoralidade”89. Quanto à arte, esta quedou-se paralisada e

esvaziada de conteúdos crítico e utópico. Assim, ao ser fundida com o

entretenimento, destituída do seu caráter de transcendência, reproduz-se, na

indústria cultural, como mera imitação90: não reflete mais o caráter criador da

subjetividade do gênio. Desvitalizada de seu poder e separada, em domínios

culturais distintos, a razão substancial, agora como razão formal, é despojada de

suas pretensões de validade e assimilada ao poder; sem a capacidade crítica, a razão

renuncia a sua capacidade de se posicionar entre ‘sim’ e ‘não’, gerando uma relação

obscura entre o poder e a validade, pois se dispensou da tarefa de se pronunciar

sobre a questão de valor, e se volta apenas, segundo Adorno e Horkheimer, para os

princípios da autoconservação:

“... a razão constitui a instância do pensamento calculador que prepara o

mundo para os fins da autoconservação e não conhece nenhuma outra

função senão a de preservar o objeto a partir de um mero material sensorial

como material para a subjugação” 91.

89 Ibid., p. 111. Para Lima VAZ, a gravidade da crise da cultura moderna, está no âmago do próprio processo de constituição do ethos ocidental: “A grande falha aberta no solo cultural da Modernidade torna-se, assim, definitivamente visível e é ela que desenha o perfil da crise de uma civilização que se tornou universal pela difusão planetária das suas obras e do seu way of life, mas que não logrou infundir nessa universalidade a alma de um ethos que fosse o princípio vital da sua unidade e do seu sentido”. “Ética e Civilização”. In: Síntese Nova Fase, 49 (1990), p. 10. 90 Na Dialética do Esclarecimento, Adorno ainda mantém, de alguma maneira, uma similaridade com a acepção negativa do conceito de mimese herdado de Platão: como representação. Nesse sentido, segundo Gagnebin, “Poderíamos afirmar que prevalece, no pensamento de Adorno( e de Horkheimer), na época da Dialética do Esclarecimento, uma certa condenação da mímesis, descrita antes de tudo como um processo social de identificação perversa ... No fim da vida ... reabilitou a categoria da mímesis na sua Teoria Estética ... (na qual a arte é vista como) ‘refúgio do comportamento mimético’”. J. M. GAGNEBIN. Sete Aulas sobre Linguagem, Memória e História, Rio de Janeiro: Imago, 1997, p. 93, 97 e 103. 91 T. ADORNO e M. HORKHEIMER, Dialética do Esclarecimento, Trad. Guido A. de Almeida, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 5a ed. 1996, p.83. É nesse sentido que podemos compreender a afirmação de M. WEBER: “Na medida em que as operações são racionais, toda ação individual das partes é baseada em cálculo”. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Trad. M. Irene de Q. F. Szmrecsányi e Tomás J. M. K. Szmrecsányi. São Paulo: Liv. Pioneira Editora, 12a. ed, 1997, p. 5.

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Eis, pois, em linhas gerais, o diagnóstico sombrio da modernidade no

seu processo de racionalização, dado na Dialética do Esclarecimento. Porém, ao

que se resiste nesse diagnóstico, não é a clareza com que se acentua o processo de

racionalização social como um processo de reificação – os riscos da colonização do

mundo da vida são uma constante. Não obstante, há que reconhecer a dignidade da

modernidade cultural, pois, segundo Habermas, na esteira de Weber, a autonomia –

diferenciação – das esferas de valor, com a competência para se desenvolverem

independentemente uma das outras, não reduz, pelo contrário, potencia a capacidade

de diferenciar entre “sim” e “não”, pois em questão de verdade, de justiça e de

gosto, cada uma pode desenvolver sua lógica própria. É fato que no avanço visível

da modernização social, o horizonte de validade tende a ser restringido à

racionalidade com respeito a fins, porém há que considerar também, em meio à

tendência de se confirmar todas as questões de validade à racionalidade com

respeito a fins

“a compulsão ... induzida pela racionalização das imagens do mundo e dos

mundos da vida, para a progressiva diferenciação de uma razão que assume

uma forma processual ... . [E mais] À assimilação naturalista das pretensões

de validade do poder, à destruição da capacidade crítica, opõe-se o

desenvolvimento de especialistas nas quais uma esfera de validade

articulada proporciona às pretensões de verdade proposicional, justeza

normativa e autenticidade, um sentido próprio, sem dúvida também um

sentido próprio esotérico, e uma vida própria por sua vez ameaçada pela

cisão da práxis comunicativa do quotidiano” 92.

É sob esse prisma que, a Dialética do Esclarecimento não faz justiça à

modernidade cultural, quando a nivela à social, fechando-a sob os limites da

racionalidade instrumental, ou seja, não reconhece os avanços nas suas esferas de

conhecimento, de valor e de arte. Sob esse prisma é que Habermas se interroga

sobre as motivações que subjaziam ao pensamento de Adorno e Horkheimer: por

92 J. HABERMAS. DFM, p. 115, grifos do autor.

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que eles inflectiram a dialética do iluminismo a ponto de colocar em xeque o

próprio projeto da modernidade?

2.2. Os Limites de uma Crítica Total da Razão

Para contrapor o que Habermas chama de ‘unilateralidade’ da crítica

da Dialética do Esclarecimento, ele recupera a perspectiva da crítica da ideologia

marxiana. Primeiramente, sob a perspectiva de que Adorno e Horkheimer vêem o

iluminismo como uma fracassada tentativa de se libertar do poder do destino.

Iniciando sua argumentação, ele distingue duas formas míticas do pensar. A

primeira, no que diz respeito à constituição da identidade, da emancipação; a

segunda, à descrição desse pensamento. Sobre a primeira, refletiu-se ligeiramente

nos parágrafos anteriores; diz respeito ao comportamento ambíguo do sujeito frente

às potências míticas originárias cujo aspecto preponderante é a luta pela

constituição da identidade do eu, com vista à emancipação das forças primitivas.

Para Adorno e Horkheimer, o iluminismo saiu derrotado nessa luta frente às forças

primitivas do destino. Quanto à segunda, tem que ser levado em consideração que o

processo de desmitologização traz, a reboque, a diferenciação de conceitos

fundamentais. Ou seja, no mito temos, ainda, uma des-diferenciação entre conceitos

e realidade, gerada pela própria força integradora do mito, expressa pela linguagem:

“... a imagem lingüística do mundo ainda está entrosada com a ordem do

mundo [diz Habermas] ... Categorias de validade, como verdadeiro’ e

‘falso’, ‘bom’ e ‘mau’, estão ligados a conceitos empíricos como troca,

causalidade, saúde, substância, fortuna. O pensamento mítico não permite

diferenciação de conceitos fundamentais entre coisas e pessoas, inanimado e

animado, entre objetos que podem ser manipulados e agentes a que

atribuímos ações e manifestações lingüísticas. Só a desmitologização desfaz

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o sortilégio que a nós nos parece como uma confusão entre natureza e

cultura”93.

É o processo do iluminismo que promove essa diferenciação entre

natureza e cultura94. A imagem temporalizada do mundo moderno pode ser distinta

do próprio mundo. Cada mundo se estabelece como uma entidade singular em

interação com o outro: mundo objetivo, mundo social e mundo interior, cuja

validade pode ser reclamada, na perspectiva de verdade, retitude, veracidade; é o

que Max Weber denominou de racionalização das mundividências. Nesse sentido

Habermas argumenta que:

“só quando as conexões factuais de sentido e também de relações internas e

externas forem decompostas nos seus elementos de origem; só quando a

ciência, a moral e a arte forem em cada momento especializadas numa

exigência de validade, seguirem a sua lógica própria a cada momento e

forem purificadas de toda a escória cosmológica, teológica e cultural – só

então pode instalar-se a suspeita de que a autonomia da validade,

reivindicada por uma teoria, seja ela empírica ou normativa, é aparência,

porque se introduzem furtivamente nos seus poros interesses e exigências de

poder dissimulados”95.

Sob esse aspecto, é que se estabelece o cerne da problemática

levantada por Habermas, da qual ele deduz toda a sua defesa, quanto a

impossibilidade de uma crítica radical, sem o perigo de se cair na contradição

performativa96. A crítica da ideologia só pode instaurar-se, a partir do momento em

93 Ibid., p. 116. 94 Lima VAZ reflete esse processo de diferenciação com uma pergunta emblemática: “Que fins teriam levado o homem a abandonar o seguro porto da Natureza e a aventurar-se no mar incerto da cultura? [e complementa] A pergunta pode parecer tão ociosa quanto se tem por evidente que a invenção da cultura teria se apresentado exatamente ao homem como o único caminho capaz de assegurar seu lugar na Natureza”. “A Cultura e seus Fins”. In: Síntese Nova Fase 57 (1992), p. 149s. 95 J. HABERMAS. DFM, p. 117, grifos do autor. 96 Para a filosofia pragmática-transcendental, o conceito de contradição performativa ou pragmática, inscreve-se na contramão do pensamento pós-metafísico, que defende a não-fundamentação do saber teórico-prático. Sob esse aspecto, para K-O. Apel, uma fundamentação última do conhecimento e da ação não apenas é factível como intranscendível, pois a tarefa própria da filosofia é a da fundamentação última. Manfredo Oliveira assim resume o cerne desse conceito: “A contradição não se dá em nível semântico, isto é, entre duas partes de uma sentença, mas entre o que é afirmado e as condições necessárias de possibilidade dessa

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que pretende demonstrar que a validade da teoria traz um sutil liame com as origens

da qual se diz liberta, e que esconde uma ‘mistura ilícita de poder e validade’, de

quem deve a sua reputação. E mais, ela tem que mostrar, de que maneira e em que

nível, a conexão de sentido e de realidade é constitutiva e até que ponto elas se

confundem, e esta confusão se dá porque tais exigências de validade são

determinadas por ‘relações de poder’. Assim, a crítica da ideologia, mais do que um

embate entre duas teorias, é um contestar da verdade da teoria suspeita, a partir de

determinados princípios, ‘desocultando a sua falta de veracidade’. Nesse sentido, a

crítica dá continuidade ao processo do iluminismo, pois revela que determinadas

teorias, mesmo sob o manto de um discurso desmitologizado categorialmente,

ainda, permanecem prisioneiras do mito.

Que o iluminismo, mediante esse gênero de crítica, torna-se reflexivo

é ponto pacífico para Habermas. Porém, por que será que Adorno e Horkheimer

inflectiram a crítica a tal ponto, que ela foi tragada pela suspeita de não mais refletir

a verdade, ou seja, por que desautorizar a própria razão, colocando sob suspeita seus

próprios fundamentos? Somente uma explicação é possível: a não realização da tão

sonhada revolução socialista no Ocidente, e a barbárie da Segunda Guerra,

trouxeram à tona a idéia de que a razão havia abandonado a história, deixando atrás

de si o rastro de uma “civilização em auto-desagregação”97. Noutros termos, a

esperança recorrente nos anos trinta de que o potencial da razão presente na cultura

burguesa, sob a pressão do desenvolvimento das forças produtivas, alavancaria a

afirmação, ou seja, entre o conteúdo e o ato de afirmar: o ato implica e pressupõe a verdade, enquanto o conteúdo afirma não haver verdade”. Manfredo OLIVEIRA. Reviravolta Lingüístico-pragmática na Filosofia Contemporânea. São Paulo: Loyola, 1996, p. 282. 97 Para ilustrar tal perspectiva, J. Habermas cita uma passagem da Dialética do Esclarecimento, referente às “Notas” sobre a filosofia e a divisão do trabalho: “Ela (a filosofia) não reconhece nenhuma norma ou objetivo abstratos que, ao contrário dos vigentes, fossem praticáveis. Sua liberdade em face da força de sugestão da ordem existente reside justamente no fato de aceitar os ideais burgueses, sem transigir com eles, quer se trate dos ideais que seus defensores ainda proclamam mesmo desfigurados, quer se trate dos ideais que, apesar de toda manipulação, ainda possam ser reconhecidos como o sentido objetivo das instituições tanto técnicas quanto culturais”. Assim, talhada à medida dos ideais burgueses, a crítica da ideologia se apresenta assim, por um lado, como uma aparência enganosa de uma teoria convincente e, por outro, seu ponto de partida crítico sedimenta-se e está a serviço dos ideais da classe dominante, sob a roupagem do interesse geral. Apud J. HABERMAS. DFM, 118. T. ADORNO e M. HORKHEIMER, Dialética do Esclarecimento, Trad. Guido A. de Almeida, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 5a ed. 1996, p. 227.

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emancipação, aflora, nos anos quarenta, como uma radical desconfiança na crítica

da ideologia marxista, cuja radicalização se expressa no convite ao “iluminismo a

iluminar-se a si próprio”98. Neste ponto o problema torna-se agudo, pois, mediante a

crítica total da razão, efetuam uma crítica das suas próprias condições; não apenas a

crítica contra a irracionalidade dos ideais burgueses, mas contra o potencial da razão

presente nesses ideais, à guisa do que fizera o iluminismo, em relação ao mito99.

É sob o conceito de razão instrumental que Adorno e Horkheimer

afirmam a usurpação da razão pelo entendimento calculador, à medida que este

restringe a diferença entre validade e poder, e, ainda, subtrai a diferenciação de

conceitos fundamentais que a compreensão moderna do mundo julgava ter

conquistado quando da pretensa superação definitiva do mito. A razão, enquanto

razão instrumental, assimilou-se ao poder, renunciando, desta forma, à sua força

crítica – esta é a última desocultacão de uma crítica da ideologia, aplicada a si

mesma. Nessa linha de raciocínio, reforçando a perspectiva da Dialética do

Esclarecimento, Marcuse dirá que “esta racionalidade formal parece ter se

transformado despercebidamente no curso do desenvolvimento do conceito: na

medida em que se converte em questão de dominação ela se subordina por força de

sua própria racionalidade interna a uma outra, a saber, a razão da dominação”100.

Em busca de uma saída para a crítica total da razão, Habermas defenderá que, aqui,

se instaura o paradoxo101 porque, no momento da descrição, ela tem ainda que fazer

98 Cf. T. ADORNO e M. HORKHEIMER, Dialética do Esclarecimento, Trad. Guido A. de Almeida, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 5a ed., 1996, prefácio. 99 Essa radical inflexão no conceito de razão operada na Dialética do Esclarecimento criticada por Habermas pode também ser analisada, segundo Marcos Nobre, na forma como Adorno e Habermas retomam o conceito de ideologia de Marx. Para Adorno a ideologia “não é mais o véu, mas apenas e tão-somente o ameaçador rosto do mundo”. Ou seja, por não haver mais a legitimação tradicional, a ideologia, no capitalismo, é produzida conjuntamente com a produção material. Habermas aceita o pressuposto marcusiano de que a técnica e a ciência tornaram-se ideologia, porém, há que considerar não apenas o aspecto patológico desse desenvolvimento: é necessário pensar o potencial emancipatório que lhe é inerente, o que só é possível mediante uma reformulação das categorias marxistas de forças produtivas e relações de produção, pelas categorias de trabalho e interação. Cf. Jürgen HABERMAS “Trabalho e Interação”. In. TCI, p. 41-43; sobre o mesmo tema, ver, também, p. 83. 100 H. MARCUSE. “Industrialização e Capitalismo na Obra de Max Weber”. In: Cultura e Sociedade. Trad. W. L. Maar et al. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998, p. 124. 101 O paradoxo da crítica da razão é vista de maneira diversa por Horkheimer e Adorno. Segundo Sérgio P. ROUANET, para o primeiro “o paradoxo consiste no impasse de uma crítica da razão subjetiva feita na perspectiva da razão objetiva que o próprio Horkheimer considera extinta, ele consiste, para Adorno, no

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uso da crítica que se anunciou morta. Não obstante, isso não é problema para

Adorno. Na Dialética Negativa, ele estava consciente dessa contradição

performativa e defendia a permanência nela pois, “só o desenvolvimento insistente,

incansável do paradoxo abre perspectiva de ‘memoração da natureza no sujeito’ de

carga quase mágica, em cuja realização está encerrada a verdade mal compreendida

de toda a cultura’”102.

A fidelidade de Adorno ao impulso para uma crítica total da razão,

dada sob a medida da Dialética doEsclarecimento, aproxima-o de Nietzsche103, cuja

crítica à razão mina até mesmo a possibilidade da crítica. Por isso é que Habermas

dirá este trabalho é tributário a Nietzsche, não apenas como uma estratégia de uma

crítica da ideologia autofágica. Esse tributo reflete-se no conteúdo, por exemplo, na

sua “história primitiva da subjetividade”, no qual o processo de “domesticação dos

antigos instintos, deu-se mediante renúncia, cujo desfecho foi a repressão da

natureza interior, tendo como conseqüência a dominação da natureza exterior e se

consolidam na ‘dominação institucionalizada’ do homem sobre o homem. Esse

parentesco em termos de conteúdo entre a Dialética do Esclarecimento e Nietzsche,

fica patente, também, na crítica da razão instrumental, em cujas manifestações

subjazem “imperativos de auto-preservação e dominação”104.

impasse de uma filosofia baseada numa dialética que, segundo essa mesma filosofia, já deixou de existir”. As Razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 5a ed., 1998, p. 333-334. 102 J. HABERMAS. DFM, p. 120. 103 Habermas insere Nietzsche na segunda versão reflexiva do iluminismo, como o antípoda de Hegel. Enquanto este elevou a razão à categoria de absoluto, aquele “recalcou a estrutura paradoxal, explicou a assimilação da razão ao poder, consumada na Modernidade como uma teoria do poder que se remitologiza voluntariamente e que, em lugar de pretensão de verdade, retém apenas a pretensão retórica do fragmento estético”. Ibid., p. 120. Para uma análise da relação arte, ciência e moral, Cf. Roberto MACHADO. Nietzsche e a Verdade. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 1985. 104 “Uma teoria do conhecimento pragmática e uma doutrina afeccional da moral desmascaram a razão teórica e a razão prática enquanto ficções puras onde as pretensões de poder vão buscar um álibi eficaz ...”. J. HABERMAS. DFM, p. 122. Segundo Sérgio P. ROUANET, a crítica de Adorno à razão, não se insere na versão do irracionalismo Nietzschiano, de uma genealogia de poder afirmativa vs. uma genealogia de poder negativa. “Adorno recusou todas essas saídas (Nietzsche, Heidegger e Derrida) e assumiu o paradoxo, tematizando-o e incorporando-o no movimento interno da dialética negativa. Só a razão pode criticar a razão, e não o poder, ou a arte ou o êxtase dionisíaco: nisso, ele se distancia de todos os irracionalismos”. Ou seja, Adorno não foge à dialética do Iluminismo, uma vez que este é, ao mesmo tempo, dominação da razão calculista e a única possibilidade da quebra da lógica do mundo reificado. As Razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 5a ed., 1998, p. 334-335.

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Uma crítica que destrói seus próprios fundamentos, para Habermas,

não oferece uma saída por negar os pressupostos de sua própria validade, mais

ainda, ela libera as forças de emancipação para o lado do anti-iluminismo. Mesmo

assim, Adorno insiste na negação determinada. Dado que “a aporia da razão

criticando a razão é consciente [nas palavras de Sérgio Rouanet] e é nela que

Adorno vê a dignidade e o desespero do pensamento negativo, que não pode nem

abdicar da razão, nem abdicar diante dela”105, ele não se dá por escusado, frente ao

apelo da contradição performativa. Permanecer nesse lugar, adjudica-se a posição

de que não há saída. Ou seja, Adorno e Horkheimer não creditam uma saída

emancipatória para a Modernidade cultural a partir do sujeito talhado à medida da

razão instrumental, ao mesmo tempo em que não vêem lampejos de uma outro

modelo de razão, nas formas de vida existente. O certo é que a teoria que dava

sustentação aos pressupostos teóricos de Adorno e Horkheimer, perdera a

sustentabilidade: tanto no que diz respeito ao caráter emancipador das forças

produtivas, quanto na formação de uma consciência revolucionária unitária.

É nesse sentido que, para Habermas, de Hegel a Adorno e Horkheimer

as tentativas de saída apontadas debateram-se num beco sem saída; ou bem se caiu

na defesa de uma razão absoluta, ou bem a razão se denegou da sua própria

condição de crítica.

A questão que se coloca é a seguinte: por que os caminhos apontados

para a certificação da Modernidade apresentaram-se sempre como um beco sem

saída? Qual saída se propõe à razão, de forma que ela não se apresente como

absoluta ou prisioneira de interesses com respeito a fins, ou, ainda, de uma razão

que se autodenega a possibilidade da crítica? Para Habermas, há que sair do

paradigma do conhecimento dos objetos para o paradigma da compreensão mútua

entre sujeitos capazes de fala e de ação. Este caminho não conduz às aporias da

filosofia do sujeito.

105 Sérgio P. ROUANET. As Razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 5a ed., 1998, p. 335.

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Antes de passarmos para a saída apontada por Habermas à questão da

certificação da modernidade, levantamos algumas questões no sentido de saber se a

mudança de paradigma proposta por ele significa o rompimento com seus

predecessores na Escola de Frankfurt. Será que, na intenção de preservar os

elementos emancipadores da racionalização ocidental, ele, estaria denegando

qualquer liame com pensamento de seu mestre, Adorno, e com a tradição crítica?

Como o representante mais “brilhante” da teoria crítica, nas palavras de Stephen

Bronner106, até que ponto podemos dizer que há continuidade ou apenas

descontinuidade entre o pensamento de Habermas e de seus predecessores na Escola

de Frankfurt?

2.3. Adorno, Habermas e o Esclarecimento: Variações Sobre um Mesmo Tema

A firmeza da linguagem utilizada e a força da argumentação de O

Discurso Filosófico da Modernidade, em resposta às críticas do que Habermas

denominou de “contra-iluminismo”, coloca-o em rota de colisão com o pensamento

de seu mestre, Adorno. No entanto, nas palavras de Marcos Nobre, se a Dialética do

Esclarecimento paga tributo a Nietzsche, a razão comunicativa, no seu correlato

mundo da vida, paga “tributo ainda à lógica da mimese”107. O fio que liga

Habermas e Adorno pode ser encontrado no artigo de Friedrich Pollock, State

Capitalism: Its Possibilities and Limitations108. Aqui é possível divisar elementos

de continuidade e de descontinuidade nos pensamentos de Adorno e de

106 S. BRONNER. Da Teoria Crítica e seus Teóricos. Trad. T. R. Bueno e C. Meneguelo. São Paulo: Papirus, 1997, p. 19. 107 Marcos NOBRE. A Dialética Negativa de Theodor W. Adorno. São Paulo:Iluminuras, 1998, p. 185. 108 Friedrich POLLOCK. “State Capitalism: its Possibilities and Limitations” In: The Essential Frankfurt School Reader. A. ARATO e E. GEBHARDT (editores). New York: Continuum, 1998, p. 71-94.

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Habermas109, ao mesmo tempo recuperar os traços comuns dos dois pensamentos e

colocá-las sob o mesmo eixo e, a partir deste, estabelecer os elementos de

continuidade e descontinuidade.

Nesse artigo, Pollock utiliza-se do conceito de “capitalismo de estado”

para designar a nova fase que se sucede ao “capitalismo privado”, cuja tônica é a de

que ao mercado foi subtraída a função reguladora do equilíbrio entre produção e

distribuição, à medida que o Estado foi assumindo esses controles, outrora próprios

ao mercado. “O desenvolvimento da Europa desde o fim da primeira guerra é

interpretado, social e economicamente, como um processo transicional,

transformando capitalismo privado em capitalismo de estado”110, diz Pollock.

Doravante, problemas econômicos, na velha acepção do termo, desaparecem, e, os

ajustes que antes eram perseguidos por meio das leis naturais de mercado, agora

passam a ser problemas administrativos.

Tanto Adorno quanto Habermas partem dessa fonte comum, e dela

retiram conseqüências diversas. Se, para o primeiro, a alternativa marxista

“socialismo ou barbárie” não se realizou; se o “socialismo real” não é socialismo e a

barbárie não se instalou por inteiro, que espectro é esse que instalou no pós-guerra?

Para Marcos Nobre, a possibilidade do modelo do capitalismo democrático não

estava clara para Adorno e Horkheimer, não obstante “a nova barbárie”, o mundo

totalmente administrado, já se vislumbrava no horizonte, como se deixa entrever

109 Para Marie FLEMING, mesmo que em O Discurso Filosófico da Modernidade, Habermas conteste “as teses provocativas, desenvolvidas por Horkheimer e Adorno no período que se seguiu à manifestação das atrocidades nazistas [...], por serem pouco convincentes como indicador de possibilidades futuras de emancipação, uma vez que se baseavam num entendimento restritivo da razão”, ele os mantém ligados ao impulso emancipatório do esclarecimento. Emancipation and Illusion. Pensilvânia: The Pennsylvania State University Press, 1997, p. 15 e 37. (tradução nossa). Essa perspectiva corrobora com a de Marcos NOBRE para quem há uma continuidade entre o pensamento de Habermas e de Adorno. A Dialética Negativa de Theodor W. Adorno. São Paulo: Iluminuras, 1998. Principalmente o capítulo I e o Fecho. 110 “The word state capitalism (so runs the argument) is possibly misleading insofar as it could be understood to denote a society wherein the state is the sole owner of all capital, and this is not necessary meant by those who use it. Nevertheless, it indicates four items better than do all other suggested terms: that state capitalism is the successor of private capitalism, that the state assumes important functions of the private capitalist, that profit interests still play a significant role, and that it is not socialism …”. Friedrich POLLOCK. “State Capitalism: its Possibilities and Limitations” In: The Essential Frankfurt School Reader. A. ARATO e E. GEBHARDT (editores). New York: Continuum, 1998, p . 71-2.

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nos escritos sobre a “indústria cultural”. Na nota sobre a nova edição alemã de 1969

da Dialética do Esclarecimento eles afirmam que a ameaça do pleno controle não

está descartada: o avanço “em direção à integração total está suspenso, mas não

interrompido”111. Isso significa que, para Adorno, principalmente, a nova ordem

estabelecida não antecipa ou cria novas possibilidades de emancipação: a dor, o

sofrimento e a falta de sentido diante da sociedade administrada, atuam como

antídoto frente a toda tentativa de justificação da realidade. O “Welfare State” não

revela, e sim perturba o diagnóstico do capitalismo tardio, que tomou corpo na

década de 1940.

Se essa é a análise de Adorno sobre o capitalismo avançado, a

perspectiva de Habermas é diversa. Tal diferença é apresentada por Marcos Nobre

numa recorrência a um texto de Dubiel, que estabelece, com clareza, uma distinção

de perspectiva entre esses filósofos. Sob esse prisma, os fundadores da teoria crítica,

principalmente, Pollock, Horkheimer e Adorno, interpretaram – sob o olhar

retrospectivo – “a ordem nacional-socialista como produto fatalmente exitoso do

domínio do capitalismo sobre as crises”112. Noutras palavras, Adorno concentrou

suas preocupações nas características autoritárias e manipuladoras do sistema

capitalista113. Em Habermas, por outro lado, temos um olhar prospectivo para o

111 T. ADORNO e M. HORKHEIMER. Dialética do Esclarecimento. Trad. Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996, p. 9. Para Marcos NOBRE, Habermas não faz justiça a Adorno, à medida que não considera suficientemente o fato de que o diagnóstico 1947 não permaneceu intocável nos seus escritos posteriores: “... algumas das reformulações incisivas que dele se seguem não serão repetidas por Adorno”. A Dialética Negativa de Theodor W. Adorno. São Paulo: Iluminuras, 1998. p. 30. 112 Ibid., p. 32. 113 Cf. A. ARATO e E. GEBHARDT. The Essential Frankfurt School Reader. New York: Continuum, 1998, p. 21 - 22. Na introdução, A. Arato afirma que, ao contrário de Adorno, Horkheimer, Kirchheimer e Marcuse, Newmann e Pollock lutam contra a histórica alternativa fascista, à medida que insistem na “... juridical-legal protection of civil rights and the survival of some residues of popular political participation under late capitalism postulated a New Deal type of system as the achievement of the democratic forces …”. E mais, enquanto a teoria de Adorno, “postulating the conquest of the subjective factor”, conduz à teoria da indústria cultural; “the theory (de Pollock) focusing on the role of democratic mass movements led to Pollock’s theory of ‘State Capitalism’ and eventually to the Offe-Habermas theory of political crisis”. Nessa mesma linha de raciocínio Helmut DUBIEL dirá que é possível fazer duas leituras da nova configuração descrita por Pollock: uma adorniana, da descrença na domesticação da dinâmica do capitalismo, ou seja, a democracia como uma ‘ideologia da ilusão’; outra, habermasiana, que aponta os elementos de emancipação presentes na ação política. O que não deve ser feito, segundo Dubiel, é reduzir essa oposição num esquema simples de ‘pessimismo’ e ‘otimismo’. “Naturally such simplifications are inadmissible … The central Habermasian category of system integration subsumes many of the implications of critical theory for a theory of domination … Down to the basic structure of their categories, both reflect the differences of their context of origin. One is a theory of late totalitarian capitalism, the other a theory of the Welfare state in a postfascist

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capitalismo do pós-guerra: é um capitalismo que se desenvolve em meio a uma

sociedade dilacerada por conflitos e tensões, e que, diferentemente da análise do

marxismo tradicional, essas não serão superadas numa forma de sociedade superior.

Sobretudo porque, no capitalismo avançado, a ciência, em perfeita sintonia com a

tecnologia, assumem um papel proeminente, pois se tornam, elas mesmas, forças

produtivas. Além do mais, do ponto de vista político, por estarem subordinadas à

finalidade de promover um estável e amplo crescimento econômico, a tomada de

decisão sobre a gestão da economia passa a ser de natureza técnica.

O que caracteriza do ponto de vista ideológico o capitalismo avançado

é a transformação da política numa espécie de tecnologia. Na esteira de Marcuse,

ciência e técnica tornaram-se, elas mesmas, ideologia114. Assim, enquanto outros

autores proclamam a morte da ideologia e a defesa de uma gestão de poder

pragmático e tecnocrático, Habermas revela o próprio cerne da ideologia desse novo

tecido social. Se por um lado, no início do capitalismo os conflitos de classes eram

eles mesmos propulsores da mudança, segundo Marx, as tensões do capitalismo

tardio não se dão mais na esfera da relação forças produtivas vs. relações de

produção, ao mesmo tempo em que os operários já não representam a força

propulsora da mudança, por outro lado, a crise do capitalismo democrático migrou

para a esfera da legitimação, e é gerida tecnocraticamente.

Em conseqüência, dado que a vida econômica é planejada e

administrada pelo Estado, em consonância com as grandes empresas, as crises

econômicas tendem a converter-se em crises políticas. Aqui reside o cerne da teoria

na crise do capitalismo tardio: “a teoria do capitalismo é a teoria da crise. Na

medida em que se pode prognosticar – esta crise começou”115. Portanto, os

mass democracy”. “Domination or Emancipation? The Debate Over the Heritage of Critical Theory”. In Axel Honneth …, et al. (ed). Cultural-political Intervention in the Unfinished Project of Enlightenment. Massachusetts: MIT Press, 2a ed, 1997, p. 4-5. 114 H. MARCUSE. “Industrialização e Capitalismo na Obra de Max Weber”. In: Cultura e Sociedade. Trad. W. L. Maar, et al. São Paulo:Paz e Terra, 1998, p. 132s. J. HABERMAS. TCI, p. 45s. 115 Marcos NOBRE. A Dialética Negativa de Theodor W. Adorno. São Paulo: Iluminuras, 1998. p. 32.

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problemas que gravitam em torno da “crise de legitimação”116, são mais

ameaçadores ao sistema que mesmo os econômicos, próprios ao desenvolvimento

do capitalismo, pois, o caráter tecnocrático – pragmático – da gestão moderna não é

suscetível de gerar fidelidade à ordem política, e que, portanto, a população não se

sente comprometida ante um regime político que não é capaz de cumprir sua tarefa

específica, que é a de garantir a continuidade do crescimento econômico. Ou como

diz Pollock: “O genuíno problema de uma sociedade planejada não jaz na esfera

econômica, mas na esfera política, nos princípios a serem aplicados nas decisões e

sobre o que deve ter preferência ...”117. É sob esse aspecto que o sistema político se

depara com uma “crise de legitimação”, em virtude de seu caráter estritamente

tecnocrático. Ou como diz Anthony Giddens, comentando Habermas: “Do mesmo

modo que a distinção de classes gerou a instabilidade econômica e deu origem ao

movimento operário do séc. XIX, essa contradição emergente tende a gerar novos

movimentos sociais que procuram injetar de novo na vida política os valores que se

perderam e que têm a ver, por exemplo, com as relações entre seres humanos e o

ambiente e com as relações dos indivíduos entre si”118.

Sob esse ponto de vista significa dizer que, enquanto encontramos em

Habermas uma reformulação do quadro categorial marxista, em Adorno deparamos

com a pergunta sobre a não-efetivação da emancipação, quando todas as condições

para sua realização estavam dadas. Noutros termos, enquanto o primeiro reformula

116 Na época de Marx, a luta de classes era uma fonte de tensão e de potencial de transformação social. No capitalismo tardio, com o capital organizado sob o signo “estado de bem-estar social” o conflito entre forças produtivas e relações de produção foi arrefecido. Para Habermas, no “capitalismo tardio”, como a vida econômica é administrada pelo governo em conjunto com as grandes empresas, as crises econômicas tendem a converter-se em crises políticas. E dado que o caráter tecnocrático da política moderna não desperta fidelidade contínua frente à ordem política, em virtude do não comprometimento com as grandes massas da população, as ameaças ao sistema daí decorrentes são maiores que as crises econômicas. Nesse sentido, segundo Anthony GIDDENS, “... em virtude da sua natureza tecnocrática confinada, a ordem política carece da autoridade legítima de que necessita para governar”. Isso é o que Habermas denomina de “crise de legitimação”. “Jürgen Habermas”. In K. Skinner (org.). As Ciências Humanas e os seus Grandes Pensadores. Lisboa: Dom Quixote, 1992, p. 173. 117 Friedrich Pollock. “State Capitalism: its Possibilities and Limitations” In A. Andrew e E. Gebhardt, (ed.) The Essential Frankfurt School Reader. New York: Continuum, 1998, p. 75. Ele ainda acrescenta: “Obviously, such decisions cannot be completely arbitrary but are to a wide degree dependent upon the available resources”. 118 A. GIDDENS. “Jürgen Habermas”. In K. Skinner (org.). As Ciências Humanas e os seus Grandes Pensadores. Lisboa: Dom Quixote, 1992, p. 173.

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o quadro categorial de Marx para poder compreender a forma democrática do

capitalismo, o segundo as interroga do “ponto de vista da sua caducidade

necessária”119. De fato, o ponto de partida assumido desde Técnica e Ciência como

Ideologia é o da mudança dos pressupostos fundamentais do “materialismo

histórico”, cuja reformulação é elaborada nesses termos:

“A conexão de forças produtivas e de relação de produção deveria ser

substituída pela relação mais abstrata de trabalho e interação. As relações de

produção designam um nível em que o marco institucional esteve ancorado,

mas só durante a fase do desenvolvimento do capitalismo – não antes, nem

depois (...). Tenho a suspeita de que o sistema de referência desenvolvido

em termos de relação análoga, mas mais geral, de marco institucional

(interação) e subsistemas da ação racional dirigida a fins (‘trabalho’ no

sentido amplo da ação racional estratégica) se revela mais adequada para

reconstruir o limiar sociocultural da história da espécie”120.

Assim, a questão não é reformular, do ponto de vista retrospectivo de

Adorno, os pressupostos teóricos marxistas, mas interrogá-los sobre o estado de

não-emancipação; o que não é o mesmo que afirmar a rendição ao estado de

reificação, pois a pergunta: “como é possível que a emancipação não tenha se dado

e continua a não se dar?” quer dizer: “o sentido da teoria enfática não é

prognóstico”121. Mais ainda, permanecer na negação determinada significa que é

ainda competência da filosofia “o esforço de ir além do conceito através do

conceito”122. Ou seja, Adorno não capitula frente ao irracionalismo, mas faz uso da

razão para criticar a razão. Assim se compreende porque a filosofia continua a

existir: porque foi perdido o momento histórico de sua realização123, e numa

119 Marcos NOBRE. A Dialética Negativa de Theodor W. Adorno. São Paulo: Iluminuras, 1998, p. 39. 120 J. HABERMAS. TCI, p. 83. 121 T. W. Adorno, Apud. Marcos NOBRE A Dialética Negativa de Theodor W. Adorno. São Paulo: Iluminuras, 1998, p. 41. 122 Ibid., p. 41. Comenta Marcos Nobre: “A filosofia de Adorno, portanto, não é uma tentativa de superar as antecessoras, mas tem por tema exatamente o fracasso de todas as tentativas pós-kantianas de dar a última palavra em termos teóricos e práticos e enfim conseguir conceptualizar o que antes não se conseguiu”, p. 180. 123 Cf. S. BRONNER Da Teoria Crítica e seus Teóricos. Trad. T. R. Bueno e C. Meneguelo. Campinas: Papirus, 1997, p. 226.

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humanidade não-reconciliada, não se pode pensar como se a identidade já estivesse

sido abolida. Ou como diz, Olgária Matos, “A Razão Crítica, depois de se defrontar

com o sofrimento, não renuncia à esperança – e seu maior serviço à Razão é a

autocrítica ...”124. Por outro lado, sob o olhar prospectivo de Habermas, não

devemos eliminar as possibilidades de emancipação, ainda presentes na

modernidade racionalizada, especificamente, no interior das forças produtivas, pois

se a ciência e a técnica se transformaram em ideologia – eis o aspecto patológico

(não-emancipatório) –, há que preservar o potencial de emancipação dessas forças

ainda não realizado125.

Isso posto, pode-se descrever a continuidade e a descontinuidade entre

Adorno e Habermas nos seguintes termos: com o primeiro temos um pensar que

mergulha na negação determinada e nela permanece, ou seja, ele vê nas

inevitabilidades aporéticas da racionalização o lugar e o objeto da “crítica

imanente”126: trabalha nos limites da filosofia da consciência. Para o segundo, como

a filosofia da práxis é vista como uma variante da filosofia do sujeito127, as aporias,

sobre as quais a teoria crítica se debate e não consegue desvencilhar-se, devem ser

revistas sob a luz do paradigma da compreensão mútua, de forma que os problemas

tradicionais enfrentados pela teoria da sociedade sejam ampliados. Eis a

124 Olgária C. F. MATOS. Os Arcanos do Inteiramente Outro. São Paulo: Brasiliense, 2a ed., 1995, p. 325. Nesse sentido, Sérgio P. ROUANET irá dizer que “O telos da dialética negativa é romper pelo pensamento a supremacia do pensamento sobre seu Outro ... A faculdade que visa aquilo sobre o qual não tem nenhum poder de algum modo já participa da natureza do que é visado: pois seu objeto, o não-idêntico, é a esfera da impotência absoluta. Nesse sentido podemos dizer que o pensamento é a mímesis do não idêntico, a imitação daquilo que é tão importante quanto ele próprio”. As Razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras. 5a ed., 1998, p.335. 125 “A melhor vantagem de um potencial ainda não realizado leva à melhoria de um aparelho econômico-industrial, mas hoje já não conduz eo ipso a uma modificação do marco institucional como conseqüências emancipatórias. Pois, a questão não é se esgotamos um potencial disponível ou ainda a desenvolver, mas se escolhemos aquele que podemos querer em vista da paz e da satisfação da existência. Mas importa logo acrescentar que unicamente podemos pôr esta questão e não dar-lhe uma resposta antecipadora ...”. J. HABERMAS. TCI, p. 89. 126 Para Adorno, a “‘crítica imanente’ não significa comparação do conceito com o conceituado em vista da sua unidade (atual ou potencial), mas não-identidade de conceito e conceituado em vista da ilusão necessária de sua identidade”. Marcos NOBRE A Dialética Negativa de Theodor W. Adorno. São Paulo: Iluminuras, 1998. p. 175. 127 J. HABERMAS. Direito e Democracia: Entre Facticidade e Validade. Trad. Flávio B. Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, vol. 1, 1997, p. 19. Habermas dirá que por não ter refletido sobre o nexo entre natureza em si, natureza para si e sociedade a filosofia da práxis “tornou evidente a recaída no pensamento pré-crítico”. Sobre o mesmo tema, Cf. J. HABERMAS, PPM, p. 49, principalmente a nota 13.

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descontinuidade. Não obstante, diz Marcos Nobre, “revelar a ambigüidade do

conceito marxista de trabalho, na confusão de ação racional com respeito a fins e

interação simbolicamente mediada, não se faz por oposição à idéia de crítica, senão

porque esse conceito de trabalho não é suficientemente crítico”128. Eis, pois, a

continuidade com a teoria crítica. E mais, se é verdade que a mudança de

paradigma, está em “libertar o ‘cerne racional da mimese’, assim como Marx

revelou o cerne racional da dialética hegeliana”, Habermas “encontrou na mimese

de Adorno (e de Horkheimer) os germes do novo paradigma comunicativo ...

pagando o tributo ainda à lógica da mimese”129. Tal tributo se tematiza mediante a

distinção entre sistema e mundo da vida, cujas relações sim-páticas (num falar

compreensivo configurador) dos homens entre si, e destes com as estruturas

atematizadas do mundo da vida perseguem mais a abertura de novos horizontes de

significado e garantidores da comunicação livre de distorção, e menos relações anti-

páticas (um falar apreensivo desfigurador), cujos interesses estão determinados

pelos meios do dinheiro e do poder.

Apresentados esses elementos de continuidade e descontinuidade entre

Adorno e Habermas, cujo objetivo principal foi o de procurar delinear o fio

condutor entre o pensamento de Habermas e o da teoria crítica, coloca-se a seguinte

questão: no discurso normativo da modernidade há espaço para o paradigma da

intersubjetividade? Se a resposta é afirmativa, indaga-se: esse paradigma é capaz de

preencher as lacunas, ou melhor abre perspectiva para se sair das aporias da

filosofia do sujeito, e resgata o conteúdo normativo desse novo ethos? Por fim,

considerando que Habermas faz assunção dos conteúdos normativos dos novos

tempos, portanto, retoma a Kant, a Hegel e a Marx, vale perguntar, se com o

conceito de razão comunicativa ele recupera e assegura os ideais de autonomia e de

emancipação, presentes nesses conteúdos?

128 Marcos NOBRE A Dialética Negativa de Theodor W. Adorno. São Paulo: Iluminuras, 1998. p. 183. 129 Ibid., p. 183 e 184.

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O fato é que a crítica radical da razão, segundo Habermas, é uma fuga

da própria dialética do iluminismo, por negar o lugar que ela ocupa no momento da

crítica. Esse abandono se reflete, sobremaneira, à medida que negam seu vínculo

com as conquistas da modernidade cultural – mesmo fazendo uso delas – ao mesmo

tempo em que resistem ao retorno às formas primitivas do pensamento religioso.

Além do mais, há um outro elemento a ser considerado, é que a crítica, mesmo

conduzindo-se por intuições que detectam na modernidade contextos de vida

reificados e explorados, não se dá conta de que a denúncia inspira-se numa

“sensibilidade peculiar [...] registrada à imagem de uma intersubjetividade intacta

que o jovem Hegel começou por imaginar como totalidade ética”. Ou seja, a crítica

total da razão ao atingir o alvo das contradições impingidas pela modernização

social, abarca os conteúdos estéticos da experiência, mas é incapaz de cobrar a

mudança moral. Isso se dá porque, ao rejeitarem o princípio normativo da

subjetividade – e suas conseqüências “mutiladoras de uma auto-referência

objetivante” – rejeitam também aquelas dimensões não realizadas da subjetividade:

“a perspectiva de uma prática auto-consciente em que a auto-determinação

solidária de todos pudesse associar à auto-realização autêntica de cada um

individualmente”130. É como se seguissem o aforismo: ‘jogam fora a água turva, e,

com ela, também a criança’.

Na esteira desse raciocínio, um outro equívoco é a rejeição da

modernização social. A crítica radical da razão, por não distinguir os critérios

emancipatórios e conciliadores dessa modernização, já apontada por Hegel, Marx,

Weber e Lukács, encobre, ao mesmo tempo, o seu caráter explorador.

Conseqüentemente, encobre o caráter ambivalente do processo de racionalização,

uma vez que, à medida que potencia a paisagem de um mundo administrado, solapa

as tênues manifestações das possibilidades de emancipação nelas presentes.

Por conseguinte, somente pode-se realizar uma crítica da razão, se o

seu fundamento, para não ser arbitrário, estiver legitimado mediante o potencial da

130 J. HABERMAS. DFM, p. 310.

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razão inerente à práxis cotidiana. Sob esse aspecto, o conceito de razão

comunicativa “introduzido inicialmente de modo provisório, remetendo para além

da razão centrada no sujeito, tem de conduzir para fora dos paradoxos e dos

nivelamentos de uma crítica auto-referencial da razão...”131. Ao mesmo tempo ela

deve se colocar em confronto com uma teoria concorrente que relega todo e

qualquer conceito de razão, como se este fosse apenas uma questão exclusiva da

tradição européia, que ficou prisioneira do pensamento centrado no sujeito. Uma

tentativa de “reabilitação da razão” torna-se um empreendimento de risco, pois tem

que evitar cair nas malhas da razão centrada no sujeito, quer sob o signo da razão

instrumental – cujo toque transforma tudo em objeto, inclusive a si mesma – quer

como uma razão inclusiva, que sorve tudo para o seu seio e em seguida erige-se

acima da unidade e da diferença. E, ainda, nas malhas do contextualismo radical,

que coloca tudo no terreno contingente do relativismo. Metaforicamente é o que

Habermas fala em ter que navegar entre Cila – que reclama para si absolutamente

tudo que lhe cai entre os dentes – e Caríbdis132 – que traga nas suas vagas aqueles

que ousam atravessá-las. É sob esse prisma que o paradigma da consciência

exauriu-se. Não consegue navegar sem cair entre os dentes de Cilas ou no abismo

de Caríbdis, pois, ou bem se hipertrofia a razão, ou se minam os seus fundamentos.

131 Ibid., p. 313. 132 J. HABERMAS. DFM, p. 61. Cf. T. ADORNO e M. HORKHEIMER. Dialética do Esclarecimento. Trad. Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985, p. 63.

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CAPÍTULO III

RAZÃO COMUNICATIVA E MODERNIDADE

3.1. O Problema da Razão no Pensamento Pós-metafísico

Como procuramos apresentar ao longo dos capítulos precedentes, uma

das preocupações centrais do pensamento de Habermas é a defesa de que a

modernidade é um “projeto inacabado”. Isso significa que os potenciais cognitivos

da razão, que foram liberados no processo de racionalização, não foram esgotados

ou simplesmente absorvidos pelo avanço da modernização social. São potenciais

que se encontram presentes no “mundo da vida” e podem ser resgatados com vistas

à transformação racional das condições da existência. É sob o prisma do resgate

desses potenciais cognitivos, que se pode compreender, por um lado, a necessidade

da releitura da filosofia plasmou o ethos Iluminista – Kant, Hegel e Marx – para se

restabelecer a relação entre modernidade e racionalidade e, por outro, a partir dessa

relação, manter o exercício da crítica frente à tentativa de se negar os ideais

emancipadores da razão, como procuramos apresentar no confronto Habermas vs.

Adorno e Horkheimer.

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A perspectiva do discurso da crítica radical à razão é algo que se

apresenta não apenas sob o espectro da Dialética do Esclarecimento. A própria

tarefa da filosofia é colocada em xeque, sobretudo, por aqueles que dispensam o

recurso de um conceito unificador de razão para fundamentar o discurso sobre a

realidade, e não necessitam nem encontram na razão um ponto de apoio para as

novas configurações culturais. Mas não só, desde Marx, canta-se, até mesmo, o

adeus à própria filosofia133. Isso significa que se a filosofia simplesmente abandona

a pergunta pela razão, o preço que ela deve pagar por esta modéstia, nas palavras de

Habermas, “é o abandono da pretensão de razão com que o pensamento filosófico

veio ele próprio ao mundo”134.

É essa preocupação, com a tarefa da filosofia, no pensamento pós-

metafísico, que faz com que Habermas, por um lado, defina, já na introdução da

Teoria da Ação Comunicativa, que “o tema fundamental da filosofia é a razão”135.

Assim, ele resgata o cerne do problema sobre o qual a filosofia se colocou desde as

suas origens: o de explicar o mundo na sua totalidade. Nesse sentido, o esforço da

filosofia foi o de procurar explicar o mundo, a unidade na diversidade dos

fenômenos a partir de princípios descobertos na própria razão. Por outro lado, ele

percebe que, com o avanço das ciências particulares, esse pensamento da unidade e

da precedência da teoria frente à prática136 perdeu destaque no contexto

contemporâneo, pós-metafísico: “A filosofia não dispõe mais de critérios de

validade próprios e diferentes, capazes de ficar incólumes à idéia da precedência da

prática frente à teoria, depois que as culturas de experts passaram a prescindir de

133 J. HABERMAS. “Filosofia como Guardador de Lugar e como Intérprete”. In: Consciência Moral e Agir Comunicativo. Trad. Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989, p. 26-27. Habermas fala de um adeus à filosofia que se realiza sob três formas, que ele denomina de terapêutica: Wittgenstein (a filosofia é uma doença que deve buscar sua cura através da linguagem); heróica: Heidegger e Bataille (“... dar lugar a um outro meio que possibilite o retrocesso não-discursivo à esfera imemorial da soberania ou do ser”); salvífica (recolher-se à defesa de antigas verdades). 134 Ibid., p. 19. Adiante ele dirá “... gostaria finalmente de defender a tese de que a filosofia, mesmo quando se retrai dos papéis problemáticos do indicador de lugar e do juiz, pode – e deve – conservar sua pretensão de razão nas funções modestas de um guardador de lugar e de um intérprete”, p. 20. 135 J. HABERMAS. TCA. vol 1. p. 1. 136 J. HABERMAS. “Conhecimento e interesse”. In: TCI.

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uma justificação, assumindo em si o poder de definição sobre os respectivos

critérios de validade”137.

Em meio ao embate ante “prós” e “contra” as conquistas da razão na

Modernidade, encontramos um pensamento que não se rende à perspectiva da

‘morte’ da razão, que desde Kant, “se dividiu em seus elementos e cuja unidade de

agora em diante só tem caráter formal”138. A esperança de Habermas é obter um

conceito de razão que expresse a relação de unidade139 que foi cindida com o

processo de racionalização. Uma unidade que se persegue, não como uma

imposição externa a esse processo, e sim gestada, no seu interior, como ele mesmo

afirma, uma unidade somente perceptível na multiplicidade de suas vozes140. Daí

que a necessidade de se pensar a filosofia sob um outro paradigma é algo inerente a

esse mesmo processo de racionalização, porque ele dispensa, cada vez mais,

qualquer tipo de fundamentação filosófica última141 para as suas formações

culturais. Pois, uma vez que o processo de racionalização ocidental possibilitou que

cada área de conhecimento – Ciência, Direito e Arte – conquistasse sua autonomia,

concomitantemente, ele liberou-se da tutela dos conteúdos normativos.

É sob esse clima de renúncia às conquistas do processo de

racionalização que encontramos, no pensamento de Habermas, uma insistente

137 J. HABERMAS. PPM, p. 59. 138 J. HABERMAS. “Filosofia como Guardador de Lugar e como Intérprete”. In: Consciência Moral e Agir Comunicativo. Trad. Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.1989, p. 18. 139 “‘Coming to an understanding’ refers to communication aimed at achieving a valid agreement. It is only for this reason that we may hope to obtain a concept of rationality by clarifying the formal properties of action oriented to reaching understanding – a concept expressing the interconnection of those moments of reason that became separated in the modern period, no matter whether we look for these moments in cultural value spheres, in differentiated forms of argumentation, or in the communicative practice of everyday life, however distorted that may be”. TCA, vol. 1, p. 392. 140 J. HABERMAS. PPM, p. 153. Cf. J. HABERMAS. “Filosofia como Guardador de Lugar e como Intérprete”. In: Consciência Moral e Agir Comunicativo. Trad. Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989, p. 33. “... os aspectos da razão que se diferenciaram nessas contracorrentes queriam remeter a uma unidade que, no entanto, só pode ser reconquistada aquém das culturas dos especialistas, por conseguinte no cotidiano, e não além, nos fundamentos e profundezas da filosofia da razão”. 141 Cf. TCA, vol1, p. 2. “All attempts at discovering ultimate foundation, in which the intentions of First Philosophy live on, have broken down”. Max WEBER, assim define o abandono da perspectiva de justificação, na Modernidade: “Quando a plenitude vocacional não mais pode ser relacionada diretamente aos mais elevados valores culturais [...], o indivíduo renuncia a toda tentativa de justificá-la”. Max Weber, apud, L. AVRITZER. A Moralidade da Democracia. São Paulo: Ed Perspectiva, 1996, p. 66.

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defesa de um retorno às origens do pensamento que tomou corpo no interior do

ethos Iluminista. Pois, segundo ele, somente a partir de uma análise reconstrutiva da

racionalidade é que se pode perguntar sobre a atualidade ou palidez da razão; da sua

capacidade de contribuir para compreensão dos desafios da crise da sociedade

moderna ou da sua despedida em direção ao que foi denominado de “pós-

modernidade”: uma sociedade que dispensou a preocupação pela pergunta sobre os

fins.

No Pensamento Pós-metafísico, Habermas retoma, mais uma vez142, a

questão da crise da filosofia no pensamento pós-metafísico, e procura ratificar sua

resposta afirmativa em favor da continuidade da razão no projeto da modernidade.

Só que agora tomando uma distância ainda mais ampla, indo aquém de Kant e

Hegel, para estabelecer um diálogo, como ele mesmo afirma na introdução, “no

âmbito da controvérsia com as variantes contextualistas de uma crítica à razão que

predomina atualmente”143. Nessa retomada da defesa desse projeto é reafirmada a

necessidade da mudança de paradigma da racionalidade, para responder aos

desafios que se fazem presentes à razão: quer seja, ao hipertrofiá-la, à guisa dos

“velhos conservadores”, quer seja, na perspectiva contextualista, que nega qualquer

elemento de validade universal à razão, ou, ainda, sob a ótica da primeira geração

da Escola de Frankfurt, que, sem negar a universalidade da razão, a reduz à

dimensão instrumental.

O ponto de partida estabelecido em Pensamento Pós-metafísico para a

análise do problema da razão no pensamento pós-metafísico, pode ser encontrado

na seguinte questão:

“Até que ponto a filosofia do século XX é moderna? ... E mesmo que a

filosofia – um empreendimento profundamente voltado à antigüidade e ao

142 Com pequenas variações no tema, encontramos reconstruções do pensamento ocidental elaboradas por Habermas em defesa do projeto da Modernidade, principalmente, em Teoría y Praxis. Trad. Salvador M. Torres e Carlos M. Espí. Madrid: Tecnos, 2a. ed., 1990. Mudança Estrutural da Esfera Pública. Trad. Flávio R. Kothe. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Trad. Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.1989. TCA, vol. 1 e vol. 2. 143 J. HABERMAS. PPM, p. 7.

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seu renascimento – tivesse aberto realmente suas portas ao espírito

inconstante da Modernidade, voltado à inovação, ao experimento e à

aceleração, poderíamos colocar uma outra questão, capaz de nos levar mais

além: será que também ela é vítima do envelhecimento da

Modernidade...?144

Esse é o horizonte sobre o qual é analisado o problema da crise da

filosofia na atualidade, a saber: a ruptura com a razão substancial, que se dividiu em

esferas axiológicas autônomas e o desafio de a filosofia romper a cápsula que

protege cada uma dessas esferas, sem negar a racionalidade autônoma de cada uma

delas, e ao mesmo tempo restabelecer o diálogo entre a prática comunicativa

cotidiana e uma modernização cultural “narcisista”, que se satisfaz em seus

domínios autônomos. Essa cisão pode ser interpretada, como sendo a não

necessidade de um medium de unidade para o pensamento filosófico, por um lado, e

como a rendição da razão, frente a não realização do ideal emancipatório

Iluminista145, por outro. Sob esse aspecto, o problema enfrentado pela teoria da

modernidade de Habermas pode ser colocado a partir da seguinte questão: como

captar a unidade da razão sem se render à tentação de: 1) dar ouvidos aos discursos

aporéticos da filosofia da subjetividade, que reclamam um retorno à metafísica pós-

kantiana; 2) mergulhar nos labirintos multifacetários do pensamento “pós-

moderno”, que a tudo sorve para o terreno do contingente, 3) identificar sua

expressão, mediante a crítica radical da razão, apenas, como a vitória da ‘barbárie’,

e, ao mesmo tempo, manter-se fiel à tradição do pensamento ocidental?

O caminho percorrido por Habermas na história do pensamento

ocidental persegue o intento de mostrar que, se o ponto de partida da razão

comunicativa está em sintonia com a tradição filosófica ocidental, a meta de

144 J. HABERMAS. PPM, p. 11. 145 A perspectiva emancipatória da razão, segundo J. HABERMAS, está presente desde as origens do pensamento filosófico, pois ao tornar presente a identidade do mundo pela contemplação, o eu conquista a sua identidade: “Esta é a razão que nos leva a dizer que o pensamento filosófico, voltado para as origens, continha força emancipatória”. PPM., p. 156. Cf. J. HABERMAS. “Conhecimento e Interesse”. In. TCI, p. 135.

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chegada não é um simples continuum do conceito de razão a partir da metafísica

tradicional146. Nesse sentido, é que ele vai refazer todo o caminho da metafísica,

desde Parmênides, para mostrar que esse conceito de razão, não é tributário do

conceito tradicional de razão, quer seja sob o paradigma do “ser”, quer sob o da

“consciência”. A razão comunicativa, por ter um caráter eminentemente processual

e por perseguir o entendimento mútuo sobre o mundo da vida, em toda sua latitude

e, ainda, por “ajudar a recolocar em movimento a cooperação paralisada, como um

móbile teimosamente emperrado, do fator cognitivo-instrumental como o moral-

prático e o estético-expressivo”147, é uma razão débil148, que não esmaga ou oprime

a particularidade, em nome da universalidade, mas, sob o paradigma da

intercompreensão mútua, assume a condição de intérprete e mediadora do diálogo,

com vistas ao entendimento, pois esse, juntamente com o consenso, residem no

interior da linguagem, constituindo o seu telos.

3.2. Limites dos Paradigmas Ontológico e da Consciência, para a Compreensão da

Crise da Razão na Modernidade.

A crítica à perspectiva da filosofia das origens se expressa na

cumplicidade com que seus conceitos se aproximam dos conceitos das grandes

religiões. Pois, se, por um lado, estas interpretam a unidade sob uma perspectiva

ético-salvífica, por outro, os filósofos, mesmo na direção do pensamento que leva

146 Para J. HABERMAS, são três as características fundamentais da metafísica tradicional: 1) o pensamento da identidade: todas as coisas e acontecimentos da experiência são considerados parte de um todo; 2) a doutrina das idéias. Desde Platão se concebe que a unidade que subjaz à multiplicidades dos fenômenos como seu fundamento ontológico é de natureza conceitual. 3) conceito forte de teoria. Na metafísica, a teoria substitui a religião, enquanto forma por excelência de vida consciente: exige-se o abandono da vida natural e promete um contato com o sentido que está para além das contingências do cotidiano. PPM, p. 151s. 147 J. HABERMAS. “Filosofia como Guardador de Lugar e como Intérprete”. In: Consciência Moral e Agir Comunicativo. Trad. Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989, p. 33. 148 J. HABERMAS fala de uma razão débil: “um conceito de razão cético e pós-metafísico, mas não derrotista”. “A Unidade da Razão na Multiplicidade de suas Vozes”. In: PPM, p.152.

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do mythos ao logos, ficam presos ao conceito contemplativo149 de verdade, que

carrega um forte componente ético-religioso: bios theoretikós. É sob esse aspecto,

que Habermas vai mostrar como o tema mais importante da filosofia das origens,

permaneceu insolúvel no seu interior, a saber: o problema da “unidade” e da

“multiplicidade”150.

Enquanto origem e fundamento de tudo, o uno apresenta-se como

possibilidade de se pensar a realidade como um todo. Razão pela qual os fenômenos

não são explicados por si mesmos, mas só na sua relação com o todo: a partir de

algo que subjaz aos fenômenos, que pode ser apreendido conceitualmente. Foi essa

postura metafísica que rompeu a relação imediata do homem com o seu mundo.

Agora, sob a égide da metafísica, a relação se realiza mediada por princípios: o

particular só se explica pelo universal, que é o seu fundamento. É o triunfo do uno

sobre o múltiplo, do universal sobre o particular.

Essa questão é abordada por Habermas sob três aspectos. Primeiro

aspecto: relação do uno e do múltiplo; do infinito e do finito. Como é que o uno

pode ser tudo sem colocar, em risco, sua unidade? Plotino ensaia a primeira

resposta: “o uno é tudo e nem sequer um (de tudo)”. O uno é tudo porque, enquanto

origem, está presente em tudo; mas não é um de tudo, porque só conserva sua

unidade, enquanto alteridade. O segundo aspecto é o da individualidade. Se tudo é

reconduzido ao uno, como ficam a integridade, a individualidade e a

inconfundibilidade do singular? Sob as categorias de gênero e espécie, a metafísica

decompôs o universal, no particular151. Mesmo assim, o particular permanece sendo

149 Segundo J. HABERMAS, “A palavra ‘teoria’ remonta às origens religiosas: theoros era o nome do representante que as cidades gregas enviavam aos festivais públicos. Na teoria, isto é, contemplando, aliena-se ele no acontecer sagrado. No uso lingüístico filosófico, teoria transfere-se para o espetáculo do cosmos. Como contemplação do cosmo, a teoria pressupõe já a demarcação da fronteira que, com o Poema de Parmênides, funda a ontologia e retorna no Timeu de Platão: reserva para o logos um ente depurado da instabilidade e da incerteza e deixa à doxa o domínio do perecível ...”. “Conhecimento e Interesse”. In: TCI, p.129 e 130. Essa mesma perspectiva é retomada em PPM, p. 156. “A filosofia está referida à vida consciente, como se esta fosse um telos”. 150 PPM, p. 154. 151 “Para o trabalho de desmembramento do geral no particular a metafísica tem à disposição os conceitos de gênero e diferença específica”. J. HABERMAS. PPM, P. 158. Esse conceito de desmembramento é compreendido por M. OLIVEIRA como decomposição. “A metafísica conheceu as categorias do gênero e da

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particular, somente em relação a um determinado geral. Ou seja, são as

características acidentais que o individualizam. Por fim, o da negatividade da

matéria. Por que a metafísica pensa a matéria somente como não-ente, de forma

negativa? Por que ela só é pensada como oposta ao inteligível? Posto o primado do

bem, de quem tudo precede, por que então o mal?

A modernidade realiza a primeira grande reviravolta na metafísica

tradicional com Kant152. Seu objetivo é fundamentar o conhecimento buscando

resolver as aporias da metafísica tradicional, elaborando um outro conceito de

razão. Para ele, a unidade do múltiplo não é mais uma totalidade objetiva, mas o

produto da ação da subjetividade, construído pelo próprio sujeito, que age mediante

regras. Essa síntese encontra seu ápice na unidade egológica do sujeito sempre

idêntica ela mesma. Por um lado, essa síntese gera objetos para a consciência, por

outro, a unidade construída pelo sujeito é referida a toda experiência possível e ao

incondicionado. Essa unidade se faz no âmbito do sujeito, pois, na experiência, não

há correspondência para o todo e o incondicionado. Portanto, a “razão teórica” só

pode conhecer o que lhe é dado na experiência: o todo da metafísica é inatingível.

Já a “razão prática”, assim como a teórica, desenvolve uma unidade sintética,

incondicionada, de todas as condições em geral, uma totalidade que se constitui

enquanto unidade sintética, incondicionada, de todos os homens, através de leis

objetivas comuns.

A resposta kantiana resolve só parcialmente as questões da metafísica

tradicional. A relação do uno e do múltiplo, do infinito e do finito, retorna, agora, na

versão transcendental. O dualismo agora passa a ser colocado na relação entre a

“razão pura” e a “razão prática”, entre liberdade e causalidade da natureza,

legalidade e moralidade. O dualismo dos mundos não é superado nem mesmo

quando introduz um terceiro tipo de idéias da razão, que considera a história e a

diferença específica para decompor o universal no particular”. Reviravolta Lingüístico-pragmática na Filosofia Contemporânea. São Paulo: Loyola, 1996, p. 340. 152 Segundo M. HEIDEGGER, Kant provocou o primeiro e o mais profundo abalo na metafísica tradicional. Kant y el Problema de la Metafísica. Trad. Gred I. Roth. México: Fondo de Cultura, 2a. ed., 1996, p. 20.

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natureza do ponto de vista teleológico. Continua em aberto o problema da

“indizibilidade” do individual153.

Com Hegel, a tentativa de renovar o pensamento da unidade da

metafísica, ganha um novo contorno, à medida que ele tenta superar a dualidade

colocando a razão dentro da história. Para Manfredo Oliveira, “Hegel, a partir da

reviravolta antropocêntrica da modernidade vai pensar o uno como ‘sujeito

absoluto’, liberdade absoluta. Por outro lado, a história é o espaço de mediação

entre o uno e o múltiplo, o infinito e o finito”154. Hegel buscará a superação dessa

dualidade ao apresentar a razão como poder de unificação, pois, “entende sua

filosofia da reconciliação como resposta à necessidade histórica de sobrepujar as

rupturas do novo tempo a partir de seu próprio espírito”155. Essa unidade será dada

através da recuperação do não-ente história para o interior do idealismo, e sob o

conceito de absoluto, “que não é concebido nem como substância nem como

sujeito, mas apenas como processo mediador da auto-relação que se reproduz, sem

qualquer condição (...) que retém apenas o processar infinito da auto-referência,

enquanto incondicionado, que absorve todo o finito”156. Por conseguinte, ao trazer a

história para dentro da filosofia, Hegel deu um passo decisivo em relação ao

pensamento metafísico, que só se compreendia cosmologicamente. A partir daí, o

trabalho de síntese do espírito será realizado através e dentro da história,

integrando-se à sua dinâmica. Porém, segundo Habermas, a perspectiva de

superação da dualidade kantiana, através do absoluto da história, que foi

propugnada por Hegel, carrega um limite que, como vimos na primeira parte desse

trabalho, sofreu resistências, já na primeira geração de seus discípulos, pois deixou

aberta a porta, não só para uma busca de síntese realizada através do trabalho social

(Marx) ou da escolha-radical (Kierkegaard), mais próxima à síntese kantiana, como

também propiciou, por um lado, a crítica radical da razão, e, por outro, a dispensa

153 J. HABERMAS. PPM, p. 162-163. 154 M. A. OLIVEIRA. Reviravolta Lingüístico-pragmática na Filosofia Contemporânea. São Paulo: Loyola, 1996, p. 342. 155 J. HABERMAS. PPM, p. 164. 156 J. HABERMAS. DFM, p. 42 e 44.

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de uma teoria unitária para a ciência, que, com o advento da epistemologia pós-

empirista, revolucionou a imagem que a ciência tinha de si mesma157.

Esse clima de renúncia, a uma perspectiva universalista da razão, é um

reflexo da consciência moderna do tempo e deve ser encarado como testemunho de

que o processo de racionalização ainda permanece aberto aos que ousam desbravar

campos desconhecidos, que se expõem aos riscos do novo, que não temem as

surpresas do inédito, e se lançam na direção de um futuro ainda não demarcado:

“Na valorização do transitório, diz Habermas, do fugaz, do efêmero, na celebração

do dinamismo, se exprime propriamente a nostalgia do um presente imaculado e

imóvel”158. Parafraseando Adorno159, na desagregação da modernidade é posto o

selo de sua autenticação.

Os reflexos do caráter dinâmico e provisório do novo tempo, da defesa

da cultura da multiplicidade e do louvor ao contingente, da consciência da

pluralidade de mundos históricos e da variedade liberta de síntese, deixaram aberto

o caminho para a investida do relativismo. Foi esse contexto que impulsionou a

mudança de paradigma da “filosofia da consciência” para a “filosofia da

linguagem”: a guinada lingüístico-pragmática passa a se constituir o horizonte da

filosofia contemporânea. Isso significa que, se a linguagem constitui um meio para

as objetivações histórico-culturais do espírito humano, uma apreciação segura das

objetivações desse espírito deve partir, não dos fenômenos da consciência, mas das

suas expressões lingüísticas. Por conseguinte, não é por acaso que, a partir dessa

guinada, o domínio que Hegel denominou de “espírito objetivo”, foi tematizado

numa dupla direção: por um lado, como linguagem, cultura e história em geral; por

157 Há, na discussão contemporânea, uma tentativa de re-unificar a ciência mediante a naturalização. Tal discussão foge ao horizonte deste trabalho. 158 J. HABERMAS. “Modernidade - Um Projeto Inacabado”. In: Otília ARANTES e Paulo ARANTES, Um Ponto Cego no Projeto Moderno de Jürgen Habermas. São Paulo: Brasiliense, 1992, p. 102. 159 T. ADORNO. Teoria Estética. Apud. J. HABERMAS. “Modernidade - Um Projeto Inacabado”. In: Otília ARANTES e Paulo ARANTES, Um Ponto Cego no Projeto Moderno de Jürgen Habermas. São Paulo: Brasiliense, 1992, P. 104.

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outro, como idiomas nacionais, culturais e históricos160. Aqui, se reacende o velho

tema da unidade e da multiplicidade: como pensar juntos esses dois aspectos?

Nesse contexto, a questão acerca da possibilidade do conhecimento

objetivo recebe duas respostas: uma objetivista outra relativista. Essas duas

abordagens recebem um tratamento especial por parte de Habermas, porque elas se

inscrevem na perspectiva de analisar a modernidade, no interior da sua própria

dinâmica. É um enfrentamento que não capitula diante da desilusão causada pelas

falsas superações da filosofia, ou ainda que não teme confrontar-se com as aporias

da modernização cultural, e que serve de ensejo para posições denominadas por

Habermas de “conservadoras”161. Pelo contrário, esse enfrentamento assume os

desafios de um ethos, em conflito consigo mesmo, e que busca a sua auto-

certificação. Sob esse aspecto é que podemos compreender, por um lado, que o

embate com a perspectiva contextualista, mais precisamente com R. Rorty e H.

Putnam, é um debate que se insere na continuidade da tradição do pensamento

ocidental, e se inscreve no interior de um diálogo na busca de compreensão das

objetivações históricas do espírito. Noutros termos, o contextualismo é reflexo do

espírito de uma época que intentou se compreender a partir de suas próprias forças,

e que não abandonou o problema de pensar a questão da unidade e da

multiplicidade. Por outro lado, o pensar da unidade na multiplicidade significa, para

Habermas, que o contextualismo trabalha com uma metafísica negativa: “O primado

metafísico da unidade perante a multiplicidade e o primado contextualista da

pluralidade frente à unidade são cúmplices secretos”162. Ou seja, o contextualismo

torna-se o principal desafio para a filosofia na contemporaneidade porque ele opera

160 A diferença está em, por exemplo, tematizar a linguagem como universal (Humbold e seus seguidores) que os idiomas nacionais realizam, ou partir dos diversos idiomas e tentar encontrar o que há de universal nestes. 161 Sob esse aspecto é que se pode compreender a recusa de Habermas em aceitar os discursos que anunciam o fim do projeto da Modernidade, principalmente quando nega à filosofia a possibilidade de compreendê-la nas suas próprias contradições. Daí a acusação de Habermas aos três tipos de conservadorismos que postulam um adeus, não só a Modernidade como um todo, mas à própria filosofia na sua tentativa de compreender o desenvolvimento da razão em meio às contradições da Modernidade. Cf. J. HABERMAS. “Modernidade - um projeto inacabado”. In: Otília ARANTES e Paulo ARANTES, Um ponto cego no projeto moderno de Jürgen Habermas. São Paulo: Brasiliense, 1992. “Filosofia como guardador de lugar e como intérprete”. In: Consciência moral e agir comunicativo. Trad. Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989. 162 J. HABERMAS. PPM, p. 153.

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com um conceito de razão que objetiva salvar, apenas, o momento do não-idêntico,

do transitório, do heterogêneo que foi sacrificado ao idealismo. Portanto, é uma

crítica que mergulha no meio da arena do conflito da crise da razão na modernidade,

sem a ela renunciar. Tal enfrentamento é o que pretendemos abordar, logo em

seguida.

3.3. A Modernidade e o Contextualismo: Uma Razão Mitigada

Procuramos situar, sumariamente, o ambiente sobre o qual se

estabelece o diálogo entre Habermas e a perspectiva contextualista, e como esse

diálogo se inscreve no interior da tradição do pensamento moderno, na tentativa de

resgatar os elementos ainda não realizados dos ideais da razão iluminista. Como

vimos, nesse ambiente, motivado, sobretudo, pelo avanço das ciências da natureza,

o que se encontra não é, apenas, um distanciamento, e sim um clima de renúncia,

cada vez mais acentuada, às tentativas de justificação que vigoravam até o

Iluminismo. No horizonte desse debate, o contextualismo, abraçado por Richard

Rorty, parte na defesa de que o legado deixado pela modernidade foi “a perda da fé

em nossa capacidade de advir com um conjunto único de critérios, que todas as

pessoas em todos os lugares e tempos possam aceitar, de inventar um jogo de

linguagem singular que possa de algum modo controlar todos os trabalhos feitos por

todos os jogos de linguagem já desempenhados. Mas a perda dessa meta teórica

mostra meramente que um dos temas secundários menos importante da civilização

ocidental – metafísica – está no processo de encerramento das atividades”163. Isso

posto, o que a perspectiva rortiana postula, já não é, à guisa de Adorno da Dialética

163 R. RORTY. Objetivismo, Relativismo e Verdade. Trad. Marcos. A. Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará 1997, p. 289.

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Negativa, uma “solidariedade com a metafísica no instante de sua queda”, mas a

renúncia a qualquer forma de conhecimento que busque uma fundamentação última.

Os “pragmáticos”, como afirma Rorty, não necessitam nem de metafísica nem de

epistemologia: a verdade é o que “é bom para acreditarmos”, é uma crença bem

justificada164. Noutros termos, dispensada da tarefa de pensar o mundo, à filosofia

resta, apenas, assumir o discurso “edificante” (edifying)165.

Diante da renúncia à possibilidade de buscar, na razão, o fundamento

da unidade, como fica a questão acerca da possibilidade do conhecimento objetivo,

vista na sob a ótica contextualista? As perspectivas do contextualismo de R. Rorty

(relativista) e H. Putnam (objetivista) esboçam duas saídas distintas. O primeiro

apóia a objetividade do conhecimento “na intersubjetividade de um consenso, ao

qual subjaz (...) o consenso em nossa linguagem, em nossas formas de vida

faticamente compartilhadas”166. Por esse caminho, ele substitui a busca de

objetividade pela realização da solidariedade na comunidade lingüística, à qual

pertence, casualmente167. O limite desse contextualismo, para Habermas é que ele

não ousa elevar o mundo da vida até o nível abstrato, postulando uma comunidade

ideal e geral, intersubjetivamente comunicativa, libertos de sua provincialidade.

Essa perspectiva, por conseguinte, há que evitar a toda idealização, à medida que

renuncia ao conceito de racionalidade, por ser este um conceito-limite, com

164 “... não há nada a ser dito nem sobre a verdade, nem sobre a racionalidade, para além das descrições dos procedimentos familiares de justificação que uma dada sociedade – a nossa – emprega em uma ou outra área de justificação [...] Para o pragmático ... ‘conhecimento’ é, como ‘verdade’, simplesmente um elogio feito às crenças que pensamos estar bem justificadas; as crenças que, por enquanto, tornam uma justificação adicional desnecessária”. Ibid., p. 39, 40 e 41, grifos do autor. 165 Sobre a perspectiva assumida por R. RORTY de que a tarefa da filosofia deve ser dividida, entre filósofos edificantes e filósofos sistemáticos, Cf. Filosofia e Espelho da Natureza. Trad. Antônio Trânsito. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994, cap. VIII. J. HABERMAS vai de encontro a essa divisão argumentando que se, em última instância, a validade das concepções não pode ser medida senão pelo acordo alcançado por argumentos, então o solo sobre o qual deitam a validade de nossas disputas tem um fundamento vacilante. “Filosofia como Guardadora de Lugar e como Intérprete”. In:. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Trad. Guido A. de Almeida. São Paulo: Tempo Brasileiro, 1989, p. 29. 166 J. HABERMAS. PPM, p. 172. 167 “Para os pragmáticos, o desejo por objetividade não é o desejo de escapar das limitações de uma comunidade, mas simplesmente o desejo de alcançar a maior concordância intersubjetiva possível, o desejo de estender a referência do pronome ‘nós’ tão longe quanto possível”. R. RORTY. Objetivismo, Relativismo e Verdade. Trad. Marcos. A. Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997, p. 39.

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conteúdo normativo explícito, que se dirige a uma comunidade universal e

ultrapassa os limites de uma determinada comunidade168.

Postular um conceito limite como “racionalidade” e “verdade”, é

alargar, por demais, a nossa capacidade de descrever os nossos procedimentos

familiares de justificação, segundo R. Rorty. Se uma tal afirmação é considerada

etnocêntrica ou “relativista”, é porque os pragmáticos não desenvolvem uma teoria

“positiva”, tendo a verdade como referência, mas uma negativa, segundo a qual há

que abandonar a distinção tradicional entre conhecimento e opinião, e instaurar a

distinção entre “a verdade como correspondência à realidade e a verdade enquanto

um sinal de aprovação para crenças bem justificadas”169. Isso significa, para os

pragmáticos, que operam como uma base ética e não epistemológica ou metafísica

do valor da investigação humana, que não há nada a ser dito sobre a verdade para

além do que cada um de “nós” defendemos, como sendo bom para acreditar. Ou

seja, o que atribuímos como “conhecimento” ou como “verdade” é tão-somente um

elogio feito às crenças que tomamos como bem fundamentadas: não necessitam de

uma justificação adicional.

Em defesa desse contextualismo, R. Rorty dirá que, a crítica a ser feita

aos pragmáticos é tão-somente por que eles levam muito a sério a própria

comunidade. A “evocação ritual da ‘necessidade de se evitar o relativismo’ é

maximamente compreensível enquanto uma expressão da necessidade de preservar

certos hábitos da vida européia contemporânea”170. Ser etnocêntrico, segundo essa

perspectiva, é estabelecer uma divisão entre as pessoas para as quais devemos

168 A idéia da necessidade de uma fundamentação racional, é combatida por R. RORTY, desde A Filosofia e o Espelho da Natureza, Trad. Antônio Trânsito. Rio de Janeiro: Relume Dumará, de 1979, principalmente o capítulo 5. Ele mantém a mesma posição em Contingência, Ironia e Solidariedade. Trad. Nuno F. da Fonseca. Lisboa: Editorial Presença, 1992, p. 115, quando diz que: “Se não há um centro para o eu, então há apenas maneiras diferentes de coser novos candidatos para crença e desejo a tecidos já existentes de crença e desejo”. Mais, recentemente, ao afirmar que Habermas, ao afeiçoar-se à idéia de validade universal, faz dela seu próprio conceito, da mesma forma que Platão e Agostinho “... para se relacionar com algo mais largo do que eles e as circunstâncias contingentes nas quais nas quais eles se descobriram”. Truth and Progress, vol 3. Cambridge: Cambridge University Press, 1998, p. 321. 169 R. RORTY. Objetivismo, Relativismo e Verdade. Trad. Marcos. A. Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997, p. 40. 170 Ibid., p. 46.

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justificar nossas crenças e as outras. Por conseguinte, afirmar que temos de

trabalhar com as “nossas próprias luzes” é defender que – tendo em vista que o

modo tradicional ocidental metafísico-epistemológico de objetivar nossa maneira de

ser não está mais se realizando, não cumpre mais sua tarefa – devemos estar abertos

para o encontro com as crenças de outras comunidades e confrontá-las com as que

já possuímos: isso não significa que devamos buscar um ponto de apoio

arquimediano, sobre o qual possamos avaliar as nossas crenças e as das outras

pessoas, mas que a nossa referência será sempre o nosso ethnos “... que se orgulha

de si mesmo por sua suspeição frente ao etnocentrismo – antes que sua habilidade

em incrementar a liberdade e a abertura dos encontros do que por sua possessão da

verdade”171.

A tomada de posição frente a esse contextualismo radical é reforçada,

num primeiro momento, dentro da perspectiva contextualista objetivista de H.

Putnam. Habermas defende, com H. Putnam contra R. Rorty, que

“(...) se eliminamos a distinção entre uma opinião justificada hic et nunc e

uma verdadeira, isto é, aceitável sob condições idealizadas, então não

podemos mais explicar nossa capacidade de aprender reflexivamente, ou

seja, de melhorar nossos próprios standards de racionalidade”172.

Na visão de H. Putnam, não são as normas de uma determinada

comunidade que asseguram se uma teoria é ou não uma racionalização, mas “uma

teoria ideal da racionalidade, uma teoria que nos daria as condições necessárias e

suficientes para que uma crença seja racional nas circunstâncias relevantes de

qualquer mundo possível”173. Ele defende, frente a Rorty, que se todo argumento

racional fosse uma racionalização então não faria sentido defender ou sustentar

qualquer ponto de vista racionalmente. Ou seja, se um ponto de vista é tão bom

171 Ibid., p. 14. 172 J. HABERMAS. PPM, 1990, p. 172 e 173. H. PUTNAM, dirá, nesse sentido, que “... o fato de fazermos estes juízos mostra que temos uma idéia reguladora de um intelecto justo, atento, equilibrado ...”. Razão, Verdade e História. Trad. António Duarte. Lisboa: Dom Quixote, 1992, p. 206, grifos do autor. 173 H. PUTNAM. Razão, Verdade e História. Trad. António Duarte. Lisboa: Dom Quixote, 1992, p. 140.

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como qualquer outro, então, o ponto de vista de que o relativismo é falso é tão bom

como qualquer outro174. Por conseguinte, mesmo não postulando algo como um

“fundamento” para a racionalidade, H. Putnam defende que é possível construir

uma concepção de racionalidade mais “racional” à medida que, mediante o diálogo,

trabalhamos no interior da nossa tradição. O que significa dizer que o simples fato

de falarmos em “diferentes concepções de racionalidade postula um Grenzbegriff,

um conceito-limite da verdade ideal”175. Portanto, mesmo que a racionalidade não

possa ser definida mediante um cânone, ou um conjunto de princípios a serem

seguidos, não significa que o barco navega à deriva, pois: “... temos para nos guiar

uma concepção evolutiva das virtudes cognitivas”176.

É sob a perspectiva de H. Putnam, de que não existe apenas o

diálogo177, mas, para além deste, há que postular um “conceito limite”, mediante o

qual pode ser criticado o limite da “comunidade de diálogo” de R. Rorty, que não

consegue superar o etnocentrismo. Numa situação de dissenso, quando o que está

em jogo não são apenas opiniões rivais e sim standards de racionalidade

concorrentes, temos que admitir a idéia de uma relação de simetria entre “nós” e

“eles”. Por isso mesmo, temos que alargar o nosso horizonte de compreensão, não

apenas, para assimilar o “nós” à perspectiva “deles”, mas, principalmente, porque

precisamos reformar, previamente, nossas práticas cotidianas de justificação. O que

significa dizer que, no processo de diálogo, ambos os partidos têm um ponto de

apoio comum: de que o entendimento é possível, e, porque em toda comunidade

lingüística, assegura Habermas, idéias como verdade, racionalidade ou justificação,

preenchem a mesma função gramatical, mesmo que sejam interpretadas e aplicadas,

a partir de critérios distintos178.

174 Ibid., p. 156. 175 Ibid., p. 264. 176 H. PUTNAM dirá que ao eliminarmos o normativo empreendemos um “suicídio mental”, uma vez que, mesmo não tendo um ponto de apoio arquimediano, e de falarmos sempre em linguagem de ocasião e lugar, “a exatidão e a inexatidão do que nós falamos não é justamente devida a um tempo e a um lugar”. “Why Reason Can’t be Naturalized”. In: Synthese, 52 (1982), p. 3-23, grifos do autor. 177 H. PUTNAM. Razão, Verdade e História. Trad. António Duarte. Lisboa: Dom Quixote, 1992, p. 264. 178 J. HABERMAS. PPM, p. 175.

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Essa breve retomada da perspectiva contextualista teve, como

objetivo, resgatar o segundo eixo da teoria da modernidade de Habermas. Assim,

tentou-se mostrar que para ele, mesmo caminhando na direção do pensamento da

unidade da razão, na perspectiva da guinada lingüística, é importante reconhecer a

importância desses dois tipos de contextualismo – relativista e objetivista. Estes

refletem o espírito da cultura atual que, se por um lado arrasta tudo para o

torvelinho da experiência contingente (relativismo), por outro, ainda, tenta

resguardar um a priori que assegure uma teoria de racionalidade ideal

(objetivismo). Esse confronto pretende lançar luzes, não apenas, sobre o processo

de construção do conceito intersubjetivo de razão, mas, sobretudo, para realçar sua

relevância, pois, a razão comunicativa procura ver os potenciais cognitivos dos

ideais do Iluminismo, ainda, presentes, mesmo que fragmentados, na prática

comunicativa de cada “mundo da vida”. Ao mesmo tempo, compreende-se,

também, porque, a razão comunicativa declara tudo contingente, até mesmo as

condições da gênese do seu próprio meio lingüístico, exceto as “estruturas do

entendimento lingüístico possível”, porque elas constituem um limite, um

componente intransponível, “para tudo aquilo que pretende ter validez no interior

de formas de vida estruturadas lingüisticamente”179. Isso significa que, no momento

da defesa relativista – de que as formas de vida e os jogos de linguagem são

incomensuráveis –, eles não só não escapam, como fazem uso, mesmo que

implicitamente, dos critérios formais da compreensão moderna do mundo: mesmo

que os padrões de racionalidade estejam dependentes de contexto e sejam

historicamente cambiáveis, as pretensões de validade reclamadas transcendem

qualquer contexto imediato.

Com isso, ou seja, com a pressuposição de um limite intransponível

no interior da linguagem, Habermas acredita sair da armadilha tanto do

contextualismo (R. Rorty)180 – que não pode argumentar sem cair na contradição

179 Ibid., p. 176. 180 Para R. RORTY, não há ponto arquimediano ou gancho celeste a partir do qual possamos olhar e julgar nossas ações. O que possuímos são apenas nossos standards de valores, nosso ethnos, mediante o qual

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performativa – quanto do objetivismo (H. Putnam) – que, no momento da defesa de

sua tese, deve tomar uma posição entre a linguagem e a realidade. Por conseguinte,

o recurso à pragmática transcendental, enquanto tematização dos pressupostos

universais pragmáticos da ação comunicativa, não significa, de forma alguma, a

busca de um ponto de vista extramundano, de um sujeito sem mundo e sem história,

que imaginasse fazer proferimentos infalíveis. Mais do que isso, é a busca de um

conceito de razão, de uma razão histórica, cujas pretensões de validade levantadas

são dependentes do contexto e, ao mesmo tempo, transcendentes: “A tensão ideal

que irrompe na realidade social remonta ao fato de que a aceitação de pretensões de

validade, que cria fatos sociais e os perpetua, repousa sobre a aceitabilidade de

razões dependentes de um contexto, que estão sempre expostos ao risco de serem

desvalorizadas através de argumentos melhores e processos de aprendizagem que

transformam o contexto”181.

3.4. Racionalidade e Emancipação: uma Modernidade Certificada?

Procuramos seguir o percurso do pensamento habermasiano, tentando

mostrar alguns dos problemas enfrentados por sua filosofia, para responder aos

desafios apresentados às aporias do conceito de razão que foi plasmado no interior

do ethos Iluminista. A dialética do Iluminismo instaurou-se como uma dialética que

procurava resgatar, numa síntese superior, tanto o momento regressivo como o

progressivo da liberdade. Porém, nesse movimento, predominou o imperativo da

razão instrumental. Nesse sentido, a crítica realizada à razão, sob a medida da

avaliamos e julgamos nossos comportamentos. Nada é capaz de transcender a própria cultura. Objetivismo, Relativismo e Verdade. Trad. Marcos A. Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997, p. 28s. 181 J. HABERMAS. Direito e Democracia. Trad. F. B. Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, vol. 1, 1997, p. 57.

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Dialética do Esclarecimento e, mais ainda, do pensamento pós-metafísico, por

exemplo, tem seu lugar reconhecido. Porém, o problema da razão, não pode ser

reduzido, apenas, à retirada do véu que encobre os limites e as aporias da razão. Tal

desvelamento já foi realizado pelos seus críticos. Por conseguinte, considerando que

é um esclarecimento que ainda não se esclareceu, parafraseando Habermas, há que

perguntar, a ele mesmo, e a partir da dinâmica interna de sua dialética, por que ficou

saliente, apenas, o momento da negação. Ou seja, por que não tomar a negação,

como negação determinada, para não cair no ceticismo frente à razão. Há que tomar

a crise como catarse, como um momento sobre o qual a razão se debruça sobre si

mesma e procura superar a visão que a reduz, tão-somente, a uma das suas possíveis

dimensões.

Na modernidade, a razão foi pensada a partir do paradigma da

subjetividade, que, em si mesma, detinha as medidas de determinação do outro de

si, de forma que o conhecimento se fazia compreensível como um momento de

determinação, que é produção do sujeito (Kant). Sob esse aspecto, a subjetividade

surge como a origem de todo sentido, que, na relação com o outro de si, ela

conquista-se a si mesma como sujeito. Nessa relação, nas palavras de Manfredo

Oliveira, “o outro emerge como um momento indispensável no processo de

autoconquista através de um processo de objetivação: ela (a subjetividade) se refere

aos objetos do mundo e a si mesma como realidade, cujo sentido dela provém”182.

Sob esse aspecto, a relação do sujeito com o mundo, na perspectiva da filosofia da

subjetividade, é uma relação entre sujeito e objeto, porque os processos de

subjetivação e de objetivação universal são coincidentes. Noutros termos, a razão

subjetiva é uma razão manipuladora, pois só conquista a si mesma – autorelação –

através de um relacionamento objetivante com o outro.

Na lição inaugural de 1965, em Frankfurt, sobre Conhecimento e

Interesse, já está introduzido o problema da razão comunicativa sob o prisma do

182 Manfredo OLIVEIRA. “A Crise da Racionalidade Moderna: Uma Crise de Esperança”. In: Síntese Nova Fase 45 (1989), p. 29.

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conceito de emancipação. Ali encontramos a defesa de que, assim como os

interesses práticos e técnicos têm seu lugar no interior das ciências histórico-

hermenêuticas e empírico-analíticas, é próprio das ciências de orientação crítica

essa preocupação pelo interesse emancipatório; uma vez que o sentido de validade

dos enunciados críticos é aquilatado pelo conceito de auto-reflexão. Isso significa

que: por ser determinada através de um interesse emancipatório do conhecimento, a

auto-reflexão liberta o sujeito da “dependência de poderes hispostasiados”183.

Ao resgatar o conceito de auto-reflexão e tomá-lo como determinante

do interesse emancipatório do conhecimento, Habermas quer mostrar que o

fundamento da emancipação deita raízes sobre uma sólida base que é a linguagem.

Eis porque esta não pode ser compreendida, apenas, como instrumento de descrição

ou interpretação do universo e da tradição184. Seu surgimento na história do gênero

humano representa a ruptura cultural com a natureza, é o ponto de inflexão em que

a consciência-de-si defronta-se com outra consciência-de-si, estabelecendo o

horizonte do mundo humano, o qual só encontra fundamento e sentido no

reconhecimento185. A linguagem constitui a mediação intransponível para as

objetivações histórico-culturais do espírito humano, por conseguinte, uma análise

confiável de suas atividades deve ter como base não os fenômenos da consciência,

mas suas expressões lingüísticas:

“O que nos arranca à natureza é o único estado de coisas que podemos

conhecer segundo a sua natureza: a linguagem. Com a estrutura da

linguagem, é posta para nós a emancipação. Com a primeira proposição,

expressa-se inequivocamente a intenção de um consenso comum e sem

restrições ... Na auto-reflexão, o conhecimento pelo conhecimento vem

183 J. Habermas. “Conhecimento e Interesse”. In: TCI, p. 141. Esse trabalho foi publicado na coletânea de artigos que deu origem ao livro Técnica e Ciência como Ideologia, publicado na Alemanha em 1968. 184 Para um estudo detalhado da evolução da filosofia da linguagem no pensamento contemporâneo, de Platão até os dias atuais, Cf. Manfredo OLIVEIRA, Reviravolta Lingüístico-pragmática na Filosofia. São Paulo: Loyola, 1996. 185 Navegando, ao que parece, nos conceitos hegelianos da Fenomenologia, cujas saídas apontadas na dialética do ‘Senhor e do Escravo”, não desaguam no reconhecimento, e sim no estoicismo, cepticismo ou consciência infeliz, Habermas apresenta a ação comunicativa, fundada no diálogo intersubjetivo, livre de coação, como um caminho de superação dessa lacuna dessa dialética, ao mesmo tempo em que aponta uma saída às aporias da filosofia do sujeito.

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coincidir com o interesse pela maioridade. O interesse emancipatório visa a

consumação da reflexão enquanto tal. Sem dúvida, só numa sociedade

emancipada, que tivesse levado a cabo a maioridade dos seus membros é

que a comunicação se desdobraria no diálogo, livre de dominação ... a idéia

do verdadeiro consenso”186.

Essa perspectiva de emancipação procura recuperar o conteúdo não

realizado da dialética iluminista, qual seja, liberdade e autonomia do sujeito, pelo

uso público da razão, abrindo-se na direção de postular um novo conceito de razão

que não seja, por um lado, destituído de corpo, prisioneiro de uma subjetividade

espontânea constituidora de mundos, e, por outro, que não reduza a história, apenas,

à condição de uma automediação do espírito absoluto. Ao mesmo tempo, que não

recua nem diante de uma dialética negativa, que constrange toda expressão dessa

dialética ao seu caráter instrumental, nem daqueles que dispensam a necessidade de

um ideal de razão que esteja para além dos limites contextualistas, que consideram

defensável, apenas, o que se justifica dentro dos limites de opinião e de crença do

seu etnos.

Diante do exposto, recolocamos a questão levantada acima: se nos

moldes da filosofia do sujeito, a razão, que reclama pretensão de validade e

universalidade, não deu conta de pensar uma síntese que restabelecesse a unidade

das cisões da razão na modernidade, sem cair nas aporias da filosofia da

subjetividade, até que ponto o paradigma de razão comunicativa consegue

reconstruir a unidade cindida?

O ponto de partida para se retomar o problema da razão na

Modernidade só pode ser colocado dentro da necessidade da mudança de paradigma

da filosofia do sujeito, sobretudo por este não poder responder à altura das

investidas que lhe foram desferidas pela filosofia analítica da linguagem e pela

psicologia comportamental187. O que constrange a superar o solipsismo, o

186 HABERMAS, J. “Conhecimento e Interesse”. In: TCI, p. 144. 187 “Early in the twentieth century, the subject-object model of the philosophy of consciousness was attacked on two front – by the analytic philosophy of language and by the psychological of behavior. Both renounced

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isolamento da consciência individual frente ao mundo exterior e toda a sua

alteridade, dá-se pela necessidade tanto de superar a relação sujeito-objeto, na qual

tudo é reduzido a objeto, inclusive o próprio eu, quanto pela impossibilidade de, em

última análise, se justificar tanto a validade universal quanto a objetividade do

conhecimento, a partir apenas da consideração da consciência individual. Noutros

termos, tem-se que superar o modelo da relação sujeito-objeto, por um conceito de

razão mais amplo: a relação entre sujeitos, uma vez que não podemos nos furtar à

força da auto-reflexão presente na modernidade, mas com ela romper os laços que a

prendem ao “logocentrismo” ocidental188, estabelecidos por Descartes e Kant.

A filosofia da consciência, que se expressa sob o modelo da relação

sujeito-objeto, não consegue ir além da dimensão cognitivo-instrumental do saber

proposicional, porque, nesse modelo, conhecimento e ação ocorrem sob o arbítrio

isolado do sujeito. Assim, ao reduzir a racionalidade à dimensão não-comunicativa

da linguagem, se reduz seu raio de abrangência, além de impedir a expressão de seu

potencial emancipador. Esse equívoco do “logocentrismo” ocidental, de não

considerar os outros aspectos da razão ocidental – normativos e estético-expressivo

– deu-se porque:

“... a auto-compreensão ocidental distingue o ser humano pelo monopólio de

se opor ao ente, reconhecer e tratar objetos, fazer cumprir afirmações

verdadeiras, (por conseguinte) a razão ficará de um ponto de vista

direct access to the phenomena of consciousness and replaced intuitive self-knowledge, reflection, or introspection with procedures that did not appeal to intuition. They proposed analyses that started from linguistic expressions or observed behavior and were open to intersubjective testing. Language analyses adopted procedures for rationally reconstructing our knowledge or rules that were familiar from logic na linguistics; behavioral psychology took over the methods of observation and strategies of interpretation established in studies of animal behavior”. TCA, vol 2, p. 3. Daí se compreender que a mudança de paradigma não é simplesmente uma troca de etiqueta. “... após a implosão da figura da razão prática pela filosofia do sujeito, não temos mais condições de fundamentar os seus conteúdos na teleologia da história, na constituição do homem ou no fundo casual de tradições bem-sucedidas ... Por esta razão, eu resolvi encetar um caminho diferente, lançando mão da teoria do agir comunicativo: substituo a razão prática pela comunicativa. E tal vai muito além de uma simples troca de etiqueta”. J. HABERMAS. Direito e Democracia I. Trad. Flávio B. Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, vol. 1, 1997, p. 19. 188 “Todas estas tentativas (pós-hegelianas) de destranscendentalizar a razão ficam presas ainda a pré-decisões conceituais da filosofia transcendental. As alternativas falsas caem somente quando há a passagem para um novo paradigma, o do entendimento”. PPM, p. 52.

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ontológico e epistemológico da análise lingüística limitada a apenas uma das

suas dimensões”189.

Essa redução da linguagem a, apenas, uma das suas dimensões –

representativa de estado de coisas – é uma herança que vem desde Platão190. Foi o

avanço da filosofia da linguagem ordinária que direcionou sua compreensão para a

dimensão da “prática social concreta”, tomando-a, nas palavras de Danilo

Marcondes, “como um sistema de atos simbólicos realizados em determinado

contexto social com objetivo preciso e produzindo certos efeitos e conseqüências

convencionais”191. Com isso, rompeu-se com a tradição da filosofia que a

considerava como um meio através do qual se descrevia o mundo ou se interpretava

a realidade. Sob esse aspecto, a Filosofia da Linguagem Ordinária procurou romper

com o solipsismo do “logocentrismo” ocidental, bem como com a posição inicial da

Filosofia da Linguagem, que se voltava mais para a lógica interna da linguagem, e

com “problemas tais como sentido, referência, predicação, etc”192.

Essa perspectiva aberta pela Filosofia da Linguagem Ordinária vem

mostrar que é, primeiramente, a “utilização comunicacional” de uma linguagem,

articulada em proposições, o elemento essencial da nossa forma de vida sócio-

cultural e que consolida o nível de reprodução social genuína de vida193. Assim, em

termos de Filosofia da Linguagem, segundo Habermas,

189 “... a relação do ser humano com o mundo é cognitivamente reduzida: ontologicamente é reduzida ao mundo dos entes como um todo (como totalidade dos objetos que podem ser representados e dos estados de coisas existentes); epistemologicamente é reduzida, à capacidade de conhecer estados de coisas existentes ou de as produzir de forma racional propositada, e semanticamente é reduzida a um discurso concreto no qual se usam proposições assertórias e não é admitida qualquer exigência de validade no foro interno”. J. HABERMAS. DFM, p. 289. 190 J. HABERMAS, DFM, p. 289. Sobre esse aspecto “secundário” do uso da linguagem, Manfredo OLIVEIRA afirma: “Desde o Crátilo de Platão, a linguagem é considerada como instrumento secundário do conhecimento humano. O mundo conhecido reflete-se valendo-se das frases da linguagem. Há, pois, uma relação entre linguagem e mundo, realizada por meio do caráter designativo da linguagem: as palavras são significativas na medida mesma em que designam objetos. Para saber qual é a significação de uma palavra qualquer, temos de saber o que é por ela designado”. M. OLIVEIRA. Reviravolta Lingüístico-pragmática na Filosofia Contemporânea. São Paulo: Loyola, 1996, p. 119. 191 Danilo MARCONDES. Filosofia, Linguagem e Comunicação. São Paulo: Cortez, 2a ed., 1992, p. 32. 192 Ibid, p. 21 e 37. 193 J. HABERMAS. DFM, p. 289. Cf. “Conhecimento e Interesse”. In: TCI, p. 144.

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“... surgem a originalidade e a igualdade de valor das três funções

lingüísticas logo que abandonamos o nível analítico do juízo ou da

proposição e alargamos a análise a atos da fala, exatamente à utilização

comunicativa de frases. Os atos elementares da fala apresentam uma

estrutura na qual se combinam três elementos: o componente proposicional

para a representação (ou menção) de estados de coisas, o componente

ilocucionário para a admissão de relações interpessoais e, finalmente, os

componentes lingüísticos que experimentam a intenção de quem fala ”194.

Essa abordagem, em termos da teoria dos atos da fala, das complexas funções

lingüísticas, reveste-se de conseqüência para a semântica, para os pressupostos da

teoria da comunicação e para o próprio conceito de racionalidade. Há que antecipar

aqui que estas conseqüências estão limitadas, especificamente, apenas no que

resulta imediatamente relevante para a crítica da razão instrumental.

No primeiro aspecto, o semântico, a teoria do significado ampliada à

pragmática, demonstrou que a função da linguagem ultrapassa os limites estritos da

construção e descrição dos fatos195. A partir das três funções originárias da

linguagem, os atos da fala podem ser contestados mediante três pretensões de

validade diferentes: o ouvinte pode negar o enunciado como um todo, contestando a

verdade do que é anunciado, ou a justeza da ação da fala, ou ainda a veracidade da

intenção expressa do falante.

O segundo aspecto, dos pressupostos ontológicos da comunicação,

procura criticar a concepção ontológica inerente à filosofia do sujeito, por

considerar o “mundo”, em relação ao qual o sujeito fazia referências pelas suas

representações ou proposições, como a totalidade dos objetos ou estados de coisas

existentes. O mundo dos objetos é correlato de todas as afirmações verdadeiras.

194 J. HABERMAS. DFM,, p. 289. 195 “A semântica da verdade apropriou-se desta idéia desde a época de Frege: nós compreendemos uma proposição assertórica quando sabemos o que é o caso, se ele for verdadeiro ... No âmbito dessa teoria, a problemática da validez é localizada exclusivamente na relação da linguagem com o mundo, tido como totalidade dos fatos. A validez é equiparada à verdade de asserções; por isso, um nexo entre significado e a validez de expressões lingüísticas só se estabelece no discurso que constata fatos. No entanto, a função de

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Porém, se os atos de fala regulativos e expressivos, da mesma forma que os

constatativos, podem ser aceitos como válidos ou recusados como inválidos, e se

introduz a retitude normativa e a veracidade subjetiva com pretensões de validez

análogas à verdade, “têm de ser postulados ‘mundos’ análogos aos fatos para

relações interpessoais reguladas legitimamente e para vivências subjetivas

imputadas”196. Não apenas um “mundo” que é objetivo, sob o qual nos colocamos

em atitude de terceira pessoa, mas também um normativo, frente ao qual nos

sentimos obrigados, bem como um subjetivo, que, na qualidade de primeira pessoa,

nos revelamos ou velamos perante o outro. Assim, em cada ato de fala, o falante se

refere, simultaneamente, a algo no mundo objetivo dos fatos, ao mundo social

comum das normas, e ao mundo subjetivo das vivências pessoais. A herança

“logocêntrica” capitula ante a dificuldade terminológica de ampliar o conceito

ontológico de mundo.

Quanto às conseqüências para o terceiro aspecto, o do conceito de

racionalidade, é que, para Habermas, a racionalidade revela-se, fundamentalmente,

menos como posse, e mais como os sujeitos capazes de linguagem e de ação

adquirirem e usam a linguagem197, ou seja, a inflexão está no uso do conhecimento

adquirido. Por conseguinte, na perspectiva da razão comunicativa significa que o

conhecimento se adquire mediante interações lingüisticamente mediadas, entre

sujeitos que se orientam por relações de exigências de validade, sedimentadas no

reconhecimento intersubjetivo. O que não acontece na perspectiva da razão centrada

no sujeito, pois aqui ele conhece o mundo egocentricamente. Sob esse aspecto a

representação constitui, conforme já fora observado por Karl Bühler, apenas uma de três funções originárias da linguagem”. J. Habermas. PPM., p. 77-78. 196 J. HABERMAS. DFM, p. 290. Há, ainda, situações em que a linguagem não se refere a nenhum dos mundos. 197 “I shall presuppose this concept of knowledge without further clarification, for rationality has less to do with the possession of knowledge than with how speaking and acting subjects acquire and use knowledge”. J. HABERMAS. TCA, vol.1, p. 8. Em PPM, p. 69-70, Habermas irá afirmar que “... tanto as atividades não-lingüísticas como as ações de fala encarnam um saber proposicional; contudo, o modo específico de empregar o saber decide sobre o sentido da racionalidade, que serve como medida para o sucesso da ação. Se tomarmos como ponto de partida o uso não-comunicativo do saber proposicional em ações teleológicas, iremos detectar a idéia da racionalidade orientada para fins (Zweckrationalität) tal como foi elaborado na teoria da escolha racional. E se partirmos do uso comunicativo do saber proposicional em atos de fala, descobriremos a idéia da racionalidade orientada para o entendimento (Verständigungsrationalität), que numa teoria de significado pode explicitar apoiando-se nas condições para a aceitabilidade de ações de fala”.

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razão comunicativa por ser processual, e por incluir o moralmente prático e o

esteticamente expressivo, é mais rica que a razão teleológica, que se reduz à

cognitivo-instrumental. É uma racionalidade que

“faz lembrar as antigas representações do logos na medida em que comporta

conotações da força não coercitivamente unificada, geradora de consenso,

de um discurso cujos participantes ultrapassam as suas opiniões a princípios

limitadas subjetivamente, a favor de um acordo racionalmente motivado. A

razão comunicativa expressa-se num entendimento descentrado do

mundo”198.

Essas conseqüências da teoria dos atos da fala, muito sumariamente

tematizadas, não pretenderam, em hipótese alguma, ser uma abordagem abrangente

da teoria da competência comunicativa habermasiana199. Como falamos acima,

estas considerações estão circunscritas, tão-somente, no que resulta imediatamente

relevante para a crítica da razão instrumental.

Sob esse prisma, da crítica da razão instrumental, há que considerar

que, tanto a natureza e a sociedade objetivadas quanto à autonomia, enquanto

autoafirmação da racionalidade com respeito a fins, são momentos derivados da

razão que se tornaram autônomos, em relação às estruturas de interação do mundo

da vida. Assim, a razão centrada no sujeito não é mais do que o resultado de uma

cisão e de uma usurpação, mediante a qual um momento subordinado, graças ao

processo de autonomização das diversas esferas de valor, na modernidade, destaca-

se de sua matriz, e assume o lugar da totalidade, sem poder assimilar a estrutura do

todo, ou o que é mais grave, impondo a dominação da parte sobre o todo. É nesse

sentido que Adorno e Horkheimer não perceberam a ironia que representou o

processo de diferenciação, no qual à medida que o potencial de razão comunicativa

foi libertado sob as formas de estruturas de mundos da vida modernos, os

198 J. HABERMAS. DFM, p. 291. 199 Para uma abordagem abrangente da teoria da competência comunicativa de Habermas, Cf. M. OLIVEIRA. Reviravolta Lingüístico-pragmática na Filosofia Contemporânea. São Paulo: Loyola, 1996, p. 294s.

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imperativos dos subsistemas econômicos e administrativos voltaram-se contra a

prática frágil do cotidiano, potenciando a dominação dos imperativos desses

subsistemas sobre os momentos não-emancipados da razão prática.

Horkheimer e Adorno, à medida que viam na razão instrumental

apenas os imperativos para a “autoconservação” do sujeito, não perceberam que são

as atividades coordenadoras da ação que asseguram à espécie humana a sua

manutenção através de atividades coordenadoras da ação de seus membros, e que

esta coordenação, em âmbitos centrais da existência, é mediada por um tipo de

comunicação que visa ao acordo. Isso significa que a reprodução da espécie exige,

do mesmo modo, o cumprimento de condições de racionalidade que somente estão

presentes na ação comunicativa. “Estas condições, segundo Habermas, se tornaram

perceptíveis na modernidade com a descentração do nosso entendimento do mundo

e a diferenciação de distintos aspectos universais de validade”200.

Conseqüentemente, se na modernidade as imagens religioso-metafísicas do mundo

perderam credibilidade, o próprio conceito de “autoconservação” é atingido por essa

mudança, uma vez que a integração normativa da ação cotidiana passa a exigir uma

orientação que não esteja prisioneira da subjetividade. Assim, o processo de

“autoconservação” na perspectiva descentrada, passa a exigir as condições da

racionalidade da ação comunicativa, pois torna-se dependente das “realizações

integrativas” do sujeito que coordenam suas ações mediante pretensões de validade

suscetíveis de crítica. Daí que a vida social se reproduz através de ações racionais

com respeito a fins de seus membros, e, simultaneamente, por uma vontade comum

ancorada na prática comunicativa201.

Sob essa perspectiva, o potencial de racionalidade comunicativa, que

somente pode ser liberado, na sua máxima expressão, com o advento das formas

modernas de mundo da vida, deve ser abordado, tanto ao que concerne a sua

200 TCA, vol. 1, p. 397. 201 “The social-life context reproduces itself both through the media-controlled purposive-rational actions of its members and through the common will anchored in the communicative practice of all individuals”. J. HABERMAS, TCA, vol. 1, p. 398.

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mudança, quanto ao seu desenvolvimento, como simultaneidade. Ou seja, a

autonomização das esferas de valor não reteve, mas liberou o potencial aprisionado,

de cada uma das esferas de valor, resgatando validade própria para cada um dos

mundos: a ciência, ligada ao mundo da verdade factual, a moral, ligada ao mundo

social das normas e a arte ligada ao mundo subjetivo. Foi esse processo de

diferenciação, portanto, que possibilitou o surgimento de pretensões de validade

específicas, em relação aos quais os sujeitos podem se posicionar entre sim e não.

No processo de diferenciação, como afirma Sérgio Rouanet: “o indivíduo adquire

pela primeira vez condições de agir autonomamente, sem o peso inibidor da religião

e da autoridade, secular ou religiosa: as ações passam a ser coordenadas segundo os

critérios de racionalidade inerentes ao processo comunicativo, e não mais segundo

determinações heterônomas”202. Isso significa que há um equívoco na descrição

weberiana do processo de desencantamento do mundo, à medida que separa a

racionalidade substancial da racionalidade formal. Portanto, o desencantamento não

usurpou os conteúdos míticos, metafísicos e religiosos da tradição, tornando-os

impotentes frente à racionalidade teleológica; pelo contrário, a defesa da

racionalidade comunicativa, exatamente por causa do seu caráter processual, está

“diretamente implicada no processo de vida social e que os atos de

compreensão tomam conta dos atos de um mecanismo coordenador da ação.

[E mais] O tecido de ações comunicativas alimenta-se de recursos do mundo

da vida e é, ao mesmo tempo, o medium através do qual se reproduzem as

formas de vida concreta ... Por isso pode reconstruir o conceito hegeliano de

totalidade do contexto da vida independentemente das premissas da filosofia

da consciência”203.

Dessa forma, o caráter de simultaneidade e interdependência entre os

dois processos de racionalização, o cultural e o social, possibilita visualizar que, à

medida que o avanço do primeiro se fez presente, o segundo foi ganhando corpo e

se desenvolveu na esfera do Estado e da economia, passando a ser regido por uma

202 Sérgio P. ROUANET. As Razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 5a ed., 1998, p. 340. 203 J. HABERMAS. DFM, p. 292.

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lógica própria, independente do processo de coordenação comunicativa das ações,

pelo meio do dinheiro e do poder, tem como conseqüência a reificação e a

burocratização das relações vitais. Essa lógica de dominação da razão instrumental,

sem precedente, radicada na esfera do sistema, ganhou vulto, e se ampliou, a ponto

de seus tentáculos ameaçaram anexar a sua lógica de imperativos funcionais todas

as esferas do mundo da vida. A essa ameaça Habermas denomina de “colonização

do mundo da vida”. Ela progressivamente substitui a coordenação comunicativa das

ações pela lógica funcionalista da razão instrumental. Mesmo que não seja uma

batalha entre forças do bem e do mal, com um final previamente definido, é

necessário que sejam ampliadas e criadas novas condições simétricas de diálogo

para que as “reservas” de racionalidade comunicativa, hauridas do mundo da vida,

possam resistir às investidas da razão instrumental.

A questão que se coloca, agora, é: com o conceito de razão

comunicativa habermasiano, não se estaria criando uma nova versão idealista para a

filosofia? O próprio Habermas levanta a questão de saber se, com este conceito e

com sua força transcendente de exigências universais de validade, não se estabelece,

novamente, um idealismo que se distancia da filosofia da práxis. Um mundo da vida

que se reproduz mediante o agir orientado ao entendimento não se distancia dos

seus processos de reprodução material? De fato, materialmente, ele se reproduz

mediante objetivos preestabelecidos pelos que intervém nesse mundo. Contudo,

essas ações instrumentais intercruzam-se com ações comunicativas, à medida que

executam planos de outros participantes e com eles interagem no processo de

comunicação. Por esta via, “também são associados ao meio do agir orientado para

a comunicação problemas da esfera do trabalho social. Assim, também a teoria do

agir comunicativa espera que a reprodução simbólica do mundo de vida esteja junta

com a reprodução material daquele”204. Ou seja, não se trata de um modelo idealista

de razão: esta tem o seu lugar no próprio mundo da vida, pois está radicada nas

estruturas intersubjetivas mediadas pela linguagem, e reclamam o uso da razão em

204 J. HABERMAS. DFM, p. 297.

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todas as dimensões da vida. Tal reclame, pressupõe a autonomia de todos os que se

colocam sob o horizonte da comunicação, porque estão aptos para se posicionar

frente às esferas axiológicas de valor, e sobre elas chegar a um entendimento mútuo,

livre de coação. Isso significa que os pressupostos da racionalidade comunicativa

não fogem, pelo contrário, reafirmam o ideal emancipador da razão Iluminista.

Por conseguinte, a diferença entre razão comunicativa e razão

instrumental não pode ser estabelecida, “sem resistência”, sob a hegemonia da

“autoconservação”, pois ela não se refere a um sujeito que se conserva relacionando

com os objetos na sua atividade representativa e na sua ação, nem a um sistema que

mantém sua integridade imune ao seu meio. A razão comunicativa se refere a um

mundo da vida simbolicamente estruturado, que se constitui mediante as

contribuições interpretativas de seus membros e que só se reproduz através da ação

comunicativa. Assim, “A razão comunicativa não se limita simplesmente a dar

como prontos o sujeito ou o sistema; pelo contrário, ela participa na estruturação do

que deve ser preservado”205. A perspectiva utópica de reconciliação e liberdade tem

seu fundamento nas condições mesmas da socialização comunicativa dos

indivíduos, e é erigida no interior dos mecanismos lingüísticos da reprodução da

espécie.

Frente à suspeita de que a razão comunicativa aparece como uma

‘razão pura’, que num momento seguinte se encarnasse na vida, isto é, só depois

vestisse a roupagem lingüística, Habermas afirma que se trata de uma razão

encarnada em contextos comunicativos das estruturas do mundo da vida. Ou seja,

na medida em que planos de ação de atores diversos se envolvem no uso da língua,

tendo em vista a comunicação no tempo histórico e sobre o espaço social, tomam-se

posições do tipo “sim/não”. Essas posições reclamam validade, podem ser

criticadas, e são critérios para a prática cotidiana. Assim, o reconhecimento

intersubjetivo de exigência de validade requerido pelo acordo comunicativo

proposto, possibilita a criação de uma rede de interação social no contexto do

205 TCA, vol. 1, p. 398.

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mundo da vida. Por seu turno, essas exigências de validade têm uma dupla face:

enquanto exigências, transcendem todo o contexto local; porém, as decisões

tomadas têm que ser assumidas no aqui e no agora, e reconhecidas por todos os

concernidos, do contrário, inviabilizaria o acordo entre os participantes da interação

e impossibilitará a realização da cooperação. Assim, o momento transcendente de

validade universal acaba com toda a regionalização; o momento obrigatório de

exigências de validades aceita aqui e agora dá-nos a base de uma práxis ligada ao

contexto. Ou, como diz Habermas,

“de um lado, a validez exigida para as proposições e normas transcende

espaços e tempos; de outro, porém, a pretensão é levantada sempre aqui e

agora, em determinados contextos, sendo aceita ou rejeitada, e de sua

aceitação ou rejeição resultam conseqüências fáticas da ação”206.

O momento incondicionado, dentro do processo de compreensão,

significa que a validade exigida para as asserções e normas, transcende espaço e

tempo, porém, as exigências são levantadas no aqui e agora e são aceitas ou

recusadas com conseqüências factuais. É o que K. O. Apel denomina de

entrecruzamento entre a comunidade ideal e a comunidade real de comunicação.

Sob esse aspecto, a prática comunicacional torna-se reflexa, mas não como uma

reflexão pré-ligüística do sujeito do conhecimento. “Esta reflexão pré-lingüística-

solitária é substituída pela estratificação de ação e discurso inscrita na ação

comunicativa. Pois as pretensões de validade apresentadas factualmente remetem

direta ou indiretamente para argumentações com as quais podem ser trabalhadas e

eventualmente resolvidas”207.

Duas considerações podem ser extraídas do processo argumentativo:

primeiro, este se apresenta, antes de mais nada, como processo de argumentação,

sobre pretensão de validade, como o meio de reflexão do agir comunicativo, que

está livre da hipoteca objetificadora da filosofia do sujeito; segundo, ao estarem

206 PPM, p. 176. 207 J. HABERMAS. DFM, p. 298.

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envolvidos numa argumentação, os participantes não podem deixar de supor,

reciprocamente, que as condições da situação ideal de discurso208 foram fielmente

cumpridas. Ou, como afirma Sérgio Rouanet, “se a comunicação se deu sem

interferências estranhas, e sem deformações subjetivas, podemos dizer que o

consenso foi alcançado racionalmente, porque se verificou através da argumentação

racional”209.

Sob esse aspecto, Habermas procura explicitar que a força da razão

comunicativa está sedimentada na busca da coesão, da compreensão intersubjetiva e

do reconhecimento mútuo. Assim, no seio desse universo, não é possível separar o

irracional do racional, não há um ponto arquimediano seguro, no interior do qual

possamos nos refugiar com a verdade e, através dele, olharmos os que jazem nas

sombras da ignorância. Qualquer violação do contexto de vida comunicacional não

atinge, apenas, o indivíduo isoladamente, mas reflete-se sobre a comunidade, e cuja

responsabilidade deve recair sobre ela. Essa idéia corrobora com o fato de que a

razão comunicativa, não apenas, está limitada contextualmente, mas que suas

possibilidades encontram-se mediatizadas, no tempo histórico e no espaço social,

pelas experiências que têm como centro o corpo. Seu potencial discursivo

confunde-se com os recursos do mundo da vida, que, enquanto saber intuitivo e a-

problemático, se oferece como suporte semelhante ao que a filosofia do sujeito

atribuía à consciência, como realizadora de síntese. Por conseguinte, essa razão, que

se expressa na ação comunicativa, faz a mediação com as estruturas comuns dos

mundos da vida, que só atingem as formas de vida particulares, mediante o agir

orientado ao entendimento, através do qual ela deve reproduzir-se. Eis porque essas

estruturas gerais, no processo histórico de diferenciação, podem se fortalecer. Nesse

sentido, temos, aqui, a chave para a compreensão do processo de racionalização do

208 Para Manfredo OLIVEIRA, tal situação ideal “... não é nem um fenômeno empírico, nem uma pura construção do espírito, mas simplesmente uma pressuposição mútua inevitável nos discursos. Nesse sentido, a situação ideal se manifesta como o fundamento normativo da compreensão lingüística: ela é antecipada e, enquanto antecipada, eficaz”. Reviravolta Lingüístico-pragmática na Filosofia Contemporânea. São Paulo: Loyola, 1996, p. 314. 209 Sérgio P. ROUANET. As Razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 5a ed., 1998, p., 339. “Nesse sentido, a racionalidade pode ser vista como a capacidade dos atores e locutores de alcançarem um saber falsificável na tríplice dimensão do mundo objetivo, social e subjetivo”.

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mundo da vida, e simultaneamente para a liberação concomitante do potencial de

razão, investido no agir comunicativo. Segundo Habermas, é essa tendência

histórica que possibilita explicar o conteúdo normativo da modernidade que está

ameaçado de autodestruição, sem recorrer às assunções da filosofia da história.

Ao propor uma saída para a crise da razão na modernidade, através de

um novo paradigma de razão, que emerge da dimensão comunicativo-pragmática da

linguagem, Habermas não intenta buscar, como vimos, um ponto de vista

extramundano, a partir do qual obtivesse um lugar privilegiado para espargir o olhar

sobre as contradições de um ethos em conflito, e lançar proferimentos infalíveis.

Pelo contrário, é no interior dos pressupostos universais da pragmática da

linguagem que se radica seu conceito de razão, mediante o qual se levantam

pretensões de validade que são, simultaneamente, dependentes de contexto e, ao

mesmo tempo, o transcendem.

Duas conseqüências podem ser abstraídas dessa mudança de

paradigma, para uma compreensão da crise da razão na modernidade.

Primeiramente: o debate em torno dessa crise não está numa simples decisão entre

uma posição universalista ou relativista. O que importa é colocar sob o mesmo teto

e pensar juntos, o universal e o particular, o empírico e o transcendental, o

contingente e o necessário. Como Habermas afirma: “O conceito de razão

construído sobre o pressuposto da atividade voltada ao entendimento livra-nos do

dilema de ter que escolher entre Kant e Hegel .... (Pois) não é mais preciso superar o

desnível transcendental entre o mundo inteligível e o mundo dos fenômenos através

de uma filosofia da natureza ou da história (...)”210. Isso significa que: a síntese, que

se postula, tem uma perspectiva falibilista. Pois, mesmo que o saber intuitivo dos

agentes da ação comunicativa tenha, como pressuposto, a totalidade do mundo da

vida, que se faz presente de forma pré-reflexa e difusa, no processo de tematização

210 J. HABERMAS. PPM, p. 178. “A razão comunicativa não é destituída de corpo, como se fosse a espontaneidade de uma subjetividade constitutiva de mundo, em si mesma alheia ao mundo, e também não constrange a história – reivindicada para a automediação absoluta de um espírito historicizado – sob uma teleologia que se fecha em círculo”.

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desse saber, vêm juntas com o conteúdo, que é, simultaneamente idealizado e

efetivo, as pretensões de validade sempre criticáveis, e a capacidade dos agentes de

se orientarem por essas pretensões.

Com isso se descarta a perspectiva de fundamentação última de Apel.

Essa tomada de posição dirige-se rumo à especificidade da razão comunicativa,

como diz, Manfredo Oliveira “é que ela é, ao mesmo tempo, imanente, isto é, só

controlável em contextos concretos dos jogos de linguagem e instituições da vida

humana, mas, por outro lado transcendente, ou seja, é igualmente uma ‘idéia

reguladora’, na qual nos orientamos, quando criticamos nossa vida histórica”211.

Enquanto a filosofia transcendental apontou na direção da necessidade, a tônica da

reflexão do pensamento pós-metafísico volta-se para o terreno do contingente. Daí a

afirmação de Habermas de que idéias como univocidade, verdade, justiça,

sinceridade e imputabilidade, que encontram espaço e deixam seus vestígios no

ventre fértil da história, “não têm força formadora de mundo; podem ser tomadas,

quando muito, no sentido de idéias heurísticas da razão”212. É nesse sentido que se

pode compreender porque a razão comunicativa é considerada uma razão débil, que

coloca tudo sob a ótica do contingente, menos as estruturas do entendimento

lingüístico213.

A segunda conseqüência diz respeito à pergunta de Adorno: o que

resta do conteúdo normativo da metafísica, no “instante de sua queda”? Se a razão

não pode mais fazer uso dos conceitos universalizantes do idealismo, uma vez que

os limites da filosofia do sujeito sacrificam o momento do particular e do

contingente, ao universal e necessário ao mesmo tempo, essa mesma razão, não

pode se render ao desafio de pensar esses conteúdos normativos, a partir da medida

dos ideais que ela mesma tornou possível, no Iluminismo. A razão não pode se

render à facticidade conservadora do status quo, pois seria antecipar a vitória do

211 M. OLIVEIRA. Reviravolta Lingüístico-pragmática na Filosofia Contemporânea. São Paulo: Loyola, 1996, p.347. 212 J. HABERMAS. PPM, p.179. 213 Ibid., p. 152 e 176.

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irracionalismo. Só a razão é crítica, o suficiente, para reconhecer os seus limites,

mas, acima de tudo, as possibilidades de superação desses limites. Isto significa

dizer que, ou bem se toma uma matriz mais ampla para a análise da razão na

Modernidade, ou corre-se o risco de reduzir a razão a, apenas, uma das suas

dimensões. Com isso, nega-se o potencial emancipador da razão, condição para que

se possa, pelo menos, pensar na possibilidade de uma sociedade emancipada.

Eis, pois, o ideal presente no conceito habermasiano de racionalidade:

a dimensão crítica da razão pode ser recuperada, pois ela continua viva e permanece

presente nas estruturas da intersubjetividade lingüísticas. Portanto, não há por que

se render ao desafio da metafísica negativa. Mesmo na qualidade de uma razão

“débil”, “A razão comunicativa é uma casca oscilante – porém, ela não se afoga no

mar das contingências, mesmo que o estremecer em alto mar seja o único modo de

ela ‘dominar’ contingências!”214. Noutros termos, o “resíduo” de incondicionado

presente na razão comunicativa, por não ser algo de absoluto, não pode, nem

mesmo, fundamentar uma “metafísica negativa”. Porém, essa sua condição de ser é

que possibilita a asseveração da pluralidade, da diferença e da contradição, à

medida que se coloca como mediadora e intérprete do diálogo entre o saber dos

experts e a práxis cotidiana, carente de orientação.

A razão comunicativa não anuncia nem um mundo abandonado por

Deus, nem se coloca como um consolo. Seu escopo, que, dialeticamente é sua

grandeza e seu limite, está em procurar analisar as condições indispensáveis ao

entendimento em geral e, a partir daí, desenvolver a idéia de uma subjetividade

íntegra, capaz de possibilitar um entendimento não coagido entre os indivíduos. O

ideal de uma intersubjetividade intacta deve ser entendido tão somente como a

revelação de condições simétricas de reconhecimento recíproco livre. “Entretanto,

esta idéia não deve ser carregada com as cores da totalidade de uma forma de vida

reconciliada e projetada no futuro nos moldes de uma utopia; ela contém nada mais,

214 Ibid., p. 181.

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mas também nada menos, do que a caracterização formal de condições necessárias

para formas não antecipáveis de uma vida não fracassada”215.

Com efeito, se a razão comunicativa não anuncia o absurdo de um

mundo abandonado por Deus, nem levanta a pretensão de consolar quem quer que

seja, o que postula, Habermas, com o conceito de razão comunicativa? É patente, no

pensamento desse filósofo, a presença de uma atmosfera otimista, se bem que

ponderada, em relação aos ideais emancipatórios do pensamento Iluminista, bem

como suas repercussões para a constituição do ethos moderno. Sem seguir uma

ordem hierárquica de precedência de problemas, pode-se afirmar, lato sensu, pelo

menos, quatro desafios que estão presentes na teoria da modernidade de Habermas,

com as quais ele dialoga, procurando uma saída que reconheça a dignidade da razão

que plasmou esse ethos: 1) argumentar, contra Weber, que o processo de

racionalização cultural não foi absorvido pela racionalidade societária, dado que as

formas de interação lingüísticas presentes no mundo da vida ainda resistem às

ingerências do sistema sobre suas formações culturais; 2) não capitular diante da

dialética negativa de Adorno, que anuncia a ilusão do progresso de um mundo

administrado, e não percebe os sinais de emancipação na racionalização cultural; 3)

suprir as lacunas das teorias objetivistas e contextualistas. Os primeiros, que

defendem a existência de uma realidade independente para a qual convergem nossas

interpretações, pois terão que levar em conta o medium da linguagem. Os

contextualistas, ao defenderem que qualquer descrição possível é, apenas, uma

construção particular da verdade, pois não podem defender suas teses sem cair em

contradição performativa.

À medida que propõe uma saída às aporias da filosofia do sujeito,

Habermas está a reafirmar a confiança na cultura ocidental, uma cultura que se quis

compreender, não obstante suas crises, sob o signo da razão. Se no processo de

racionalização o avanço da racionalidade instrumental, que reduz a objetos

215 Ibid., p. 182. Em TCA, vol. 1, p. 73. Habermas chamará de “utopismo”, o erro da modernidade de pensar que com os conceitos de compreensão descentrada do mundo e de racionalidade procedimental, fosse possível derivar, simultaneamente, o “ideal of a completely rational form of life”.

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manipuláveis, todas as esferas da vida humana, significou a precedência desse

modelo limitado de racionalidade, a própria consciência desse processo de

manipulação e dominação revela que, também, com a racionalização, uma outra

dimensão da razão se tornou presente: a dimensão racional da práxis comunicativa.

Muito embora essa práxis seja uma dimensão constante da vida humana, foi a

modernidade que liberou, das hipotecas das tradições culturais, o processo

discursivo de validade, pelo qual o sujeito, conscientemente, busca criar, mediante

procedimentos discursivos de argumentação, as condições de sua emancipação.

Nesse processo, não é mais o sujeito solipsista que, a partir da razão subjetiva

autocentrada, manipula o mundo em sua volta. O conceito de razão comunicativa

resgata a autonomia de cada sujeito, que se coloca sob o horizonte da comunicação,

como sendo a condição de possibilidade sobre a qual se realiza a emancipação.

Mediante o resgate dessa autonomia, é reconhecido o direito de cada um de se

colocar, livremente, como parceiro na comunicação, levantando pretensões de

validade, que não significam monopólio, mas que são submetidas à crítica, e tornam

factível o reconhecimento mútuo de sujeitos entre si, condição para a realização do

ideal de uma sociedade emancipada.

Portanto, a pertinência e a força do paradigma de racionalidade

comunicativa, fundado na intersubjetividade lingüística, reside na própria decisão

em favor da razão216, pois, segundo Siebeneichler, “A decisão em prol da razão

equivale à antecipação de uma sociedade emancipada, ou seja, à antecipação da

maioridade realizada dos homens”217. Desse modo, frente ao desafio da negação da

razão, ou da subsunção das dimensões da razão, apenas, à dimensão analítico-

instrumental, acreditar na razão que, mediante uma avaliação crítica das pretensões

de validade intersubjetivamente reconhecida, libera as forças emancipatórias da

razão. Nesse sentido, como diz Sérgio Rouanet, parafraseando Pascal, é melhor

216 Segundo Marconi PEQUENO, “Com o conceito de razão comunicativa, Habermas acredita fundar um racionalismo novo capaz de interagir como o pensamento sem, com isso, colocar em risco a dignidade da razão”. “O Sujeito e a Questão da Razão Comunicativa”. In: Revista de Filosofia. Dezembro/1991, p. 86. 217 F. B. SIEBENEICHLER. Jürgen Habermas: Razão Comunicativa e Emancipação. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2a. ed., 1990, p. 65.

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apostar em Habermas, pois, “se ganharmos, ganharemos tudo; se perdermos, não

perderemos nada, porque não podemos ficar mais pobres do que já estamos”218.

218 Sérgio P. ROUANET. As Razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 5a ed., 1998, p. 347.

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CONCLUSÃO

Após esse percurso realizado numa das nuances do pensamento de

Habermas é possível, à guisa de conclusão, retirar alguns elementos indicativos de

que a inflexão dada por esse filósofo ao problema da razão e da emancipação, na

sua teoria da Modernidade, vincula-se à tradição da cultura ocidental que, desde as

suas origens, procurou compreender-se sob signo da razão, e encontrou, na filosofia,

enquanto a expressão do logos demonstrativo, um locus privilegiado de amparo e de

resistência. Amparo, frente à ameaçante necessidade inexorável da natureza, da

sucessão do mesmo; resistência, diante às tentativas de se tomar a cultura como algo

de antemão definido ou conduzido pela vis a tergo, sob o olhar lancinante do

destino.

É visível o esforço do pensamento de Habermas para manter viva essa

tradição. Pois, se é verdade, segundo a máxima, que tradição só permanece viva se

ela se recria incessantemente, é verdade, também, que uma transformação

indiscriminada operada numa tradição pode colocar em risco a sobrevivência da

própria tradição cultural. Sob essa perspectiva mais ampla, é possível lançar um

olhar sobre as contribuições desse pensamento à filosofia ocidental e perceber que a

sua preocupação primeira está em procurar resgatar, em meio à crise que se abateu

sob o ethos moderno, aqueles vestígios de razão que, se outrora revelaram-se tão

saliente, a ponto de serem proclamados com a maioridade realizada dos homens

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(Kant) ou o tempo privilegiado, kairós, no qual a consciência realiza

terminantemente a experiência de si mesma (Hegel), agora tornaram-se quase

imperceptíveis; como que foram apagados os seus rastros, e a história humana foi

lançada à sorte desenfreada de uma cultura de mercado, que regrediu ao estágio

primitivo, no qual a realização da existência se dá, não na busca do sentido da

descoberta do outro, da solidariedade, ou da criação de algo que seja permanente,

como expressão da determinidade da consciência de si, mas no mero consumo pelo

consumo, atingindo sua máxima expressão na supressão da permanência do objeto.

Sob o prisma da crise da razão na modernidade é que se pode perceber

a grandeza do esforço de Habermas em resguardar as conquistas da razão que

tomou corpo no ethos iluminista. Nesse intento, ele resgata, por um lado, a partir do

processo de reconstrução do caminho da razão no ocidente, o liame que une as

manifestações da racionalidade moderna a toda tradição do pensamento ocidental, e,

por outro, realiza uma crítica a toda tentativa de abandonar as conquistas do

esclarecimento, antes mesmo de mostrar que seus potenciais foram esgotados.

Quando se postula abandonar essas conquistas, sem que antes se pergunte pela sua

atualidade, corre-se o risco de dar um salto na direção de algo que se apresenta, tão-

somente, como um espectro que nos remete a um futuro vazio. O “projeto do

esclarecimento” ainda está por ser realizado; eis, pois, o que ele pretende defender

com sua teoria da modernidade.

Destarte, à guisa de conclusão, retomamos os três elementos

constitutivos dessa teoria – modernidade, racionalidade e emancipação – para

procurar mostrar que é mediante a elaboração de um conceito mais lato de razão – a

razão comunicativa – que se inscreve o que Habermas denominou de certificação

do novo tempo, a saber: a relação interna entre modernidade e racionalidade.

Portanto, sem maiores pretensões, com a retomada desses três elementos, não se

está postulando dar um arremate conclusivo a essa teoria, mas, tão-somente,

recuperar os elementos significativos dessa relação.

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Quanto à recuperação do conceito de modernidade, desde o início

deste trabalho, perseguiu-se o intento de compreender a lenta e custosa reconstrução

filosófica desse conceito realizada por Habermas, e, por extensão, acompanhar a

defesa desse “projeto”, cuja dinâmica interna irrompe como um reflexo de uma

atualidade em contradição, resistente às sínteses apressadas que propugnam a sua

despedida.

Submetendo esse conceito à reflexão filosófica, Habermas procura

recuperar suas categorias constitutivas, para, a partir dessa análise, afirmar que o

“projeto da modernidade” está “inacabado”. Nesse sentido, enquanto conceito

filosófico, a modernidade recupera sua dignidade de ser um “tempo” no qual a

estrutura representativa do tempo perde sua força repetitiva, própria do simbolismo

mitológico, para ser recuperada numa atualidade temporal, revestida de uma

novidade qualitativa, de forma que o tempo presente venha a assumir a sua

dignidade, mediante “uma estrutura axiológica capaz de desqualificar a primazia do

antigo e pôr em questão a instância normativa de um passado fixado na identidade

de uma origem, diante da qual o presente deva abdicar da sua novidade”219.

Em Habermas, a reflexão filosófica sobre o conceito de modernidade

se situa no âmago da expressão objetivada do espírito subjetivo: uma sociedade em

conflito que, não obstante os avanços, cada vez mais rápidos, no âmbito da ciência e

da tecnologia, mostra-se impotente diante da perda de ideal, de sentido, e incapaz de

forjar um projeto humanizador das relações sociais. Por conseguinte, somente dessa

atualidade em conflito é que a filosofia, situada no presente, se instaura, por um

lado, como reflexão capaz de conferir ao presente a dignidade de instância de

compreensão e, por outro, enquanto crítica, com condições de julgá-lo à luz dos

valores hauridos desse mesmo presente, pois, parafraseando Hegel, só a filosofia

está apta para captar o tempo no conceito, por isso ela torna-se a enteléquia da

civilização moderna.

219 Lima VAZ, “Religião e Modernidade Filosófica”. Síntese Nova Fase. 53 (1991), p. 149, grifos do autor.

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É sob esse aspecto, o da busca de significado do “novo tempo”, que se

estabelece a relação interna entre modernidade e racionalidade. Daí o segundo

elemento, indispensável para a compreensão da teoria habermasiana: a razão

comunicativa. Esta, em sendo a pedra de toque da defesa do “projeto inacabado”,

advoga que ele ainda não se esgotou, exatamente porque, enquanto potencial de

razão que foi liberado, na sua máxima expressão, com o advento das formas

modernas de mundos da vida, conseqüentemente com o processo de autonomização

das diversas esferas de valor, seu esgotamento somente poderá ser postulado se

antes for demonstrado que as instituições históricas sobre as quais essa razão tomou

corpo já não se deixam mais compreender por este conceito. Se isso for

demonstrado, uma nova mudança de paradigma torna-se indispensável para se

pensar as contradições da sociedade contemporânea. Do contrário, procurar uma

saída que não responda, a partir das condições criadas pela modernidade, as suas

próprias contradições é forjar artifícios para fugir aos seus desafios, por um lado, e

perder o vínculo interno que a prende à racionalidade, por outro.

Sob esse prisma é que se compreende a relevância do conceito de

razão comunicativa, dado que ele surge como uma resposta à necessidade de um

tempo histórico e de um espaço social determinados, que não mais quis se

compreender a partir do seu passado ou da “razão da autoridade”. Pelo contrário,

agora, esse novo ethos descobriu-se como um tempo no qual a autoridade reside e

deve ser buscada na própria razão.

Quanto às contradições geradas por esse novo ethos, em cuja dialética

procurou-se equilibrar tanto o momento repressivo quanto o momento emancipador

da razão, o conceito de razão comunicativa habermasiano procura enfrentá-las e dar

uma resposta sem fugir às condições que o processo de racionalização tornou

possível: a liberação do potencial comunicativo da razão, presente nos diversos

mundos da vida.

Enquanto razão autônoma, a razão comunicativa é uma razão crítica,

que acompanha o progresso da racionalidade instrumental e procura mostrar que o

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avanço hegemônico da economia de mercado globalizado, planificador das relações

sociais sobre os diversos mundos da vida, não é condição, nem significa o progresso

para uma sociedade humanizada. Para tanto, é necessário que sejam resgatados os

ideais básicos de cidadania, de direitos humanos e do respeito pela diversidade

cultural. Eis, pois, a dimensão não idealista da razão comunicativa. Por estar situada

na prática e por estar fundada num paradigma dialógico, essa dimensão da razão

está sempre aberta ao diálogo com as outras formas de racionalidade que a clivagem

da razão na modernidade tornou possível. Nesse diálogo, ela procura desmascarar as

falsas racionalidades, pois, somente mediante o confronto dialógico é que se pode

chegar ao verdadeiro consenso, sobre como queremos construir uma sociedade mais

humanizada.

É sob esse aspecto que é possível compreender o terceiro elemento da

teoria da modernidade de Habermas: a questão do sentido e a dimensão

emancipadora da razão comunicativa. Essa dimensão se patenteia como o elemento

impulsionador da relação interna entre a modernidade e a racionalidade. É mediante

um conceito de interação com vistas ao entendimento, que a idéia de emancipação

se instaura no coração da razão comunicativa. Ela cria as condições para que todos

os indivíduos participem da discussão dos objetivos e estejam envolvidos na

consecução dos processos sociais que direta ou indiretamente venha a afetá-los.

Sob esse prisma, a emancipação da sociedade não pode ser vista como

um processo que caminha pari passu com o desenvolvimento das forças produtivas.

Por conseguinte, se é visível o progresso da razão instrumental, nos âmbitos da

ciência e da técnica, por mais avançado que esteja, por si só ele não garante a

realização da tão sonhada “vida boa”. A realização das necessidades básicas à

existência, necessidade fundamental à sobrevivência da espécie, deve vir acolitada

pela criação de condições sociais e históricas que assegurem um diálogo livre

intersubjetivo. Tais condições, que se encontram presentes no mundo da vida,

devem ser resgatas mediante o diálogo não coercitivo, antecipatório à idéia de uma

intersubjetividade intacta, capaz de criar condições para um entendimento sem

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coerção, tanto dos indivíduos no seu relacionamento recíproco, como também da

identidade de um indivíduo que se entende consigo mesmo. Pois, nas palavras de

Habermas, “Intersubjetividade intacta constitui a manifestação de condições

simétricas de reconhecimento recíproco livre”220.

Isso não significa que a prática comunicativa esteja imune aos

desafios dos conflitos sociais, em torno dos quais estão envolvidos interesses

antagônicos. Pelo contrário, ela constitui, mutatis mutandis, como que uma ilha de

liberdade, na qual a busca da superação dos conflitos se dá mediante o diálogo, em

meio a uma prática social predominantemente repressiva. Nesse sentido, ao

reconhecer na prática comunicativa a possibilidade de serem resgatados os ideais

iluministas de racionalidade, emancipação, autonomia, liberdade, frente a uma

modernização que avança autonomamente, Habermas, mediante o conceito de razão

comunicativa, procura assegurar que, não obstante terem sido “recalcados” pelos

ideais da sociedade de consumo do “capitalismo tardio”, os “impulsos”

emancipadores desses ideais não foram destruídos: estão na “clandestinidade”. É

por isso que se pode resguardar, ainda, um cifra de esperança: é necessário

continuar admitindo um desenvolvimento para melhor. Entretanto, “esta idéia não

deve ser carregada com as cores da totalidade de uma forma de vida reconciliada e

projetada no futuro nos moldes de uma utopia; ela contém nada mais, mas também

nada menos, do que a caracterização formal de condições necessárias para formas

não antecipáveis de uma vida não fracassada”221.

Essas considerações sobre a teoria da modernidade de Habermas,

conspiram na direção de se questionar: se, e até que ponto, essa teoria, de fato, faz

justiça aos ideais emancipadores da razão iluminista, à medida que reascende a

esperança de uma mudança na sociedade? Ou se estamos diante de um modelo

analítico, que, para não capitular frente à defesa pragmática, de que “não há nada

220 J. HABERMAS. PPM, p. 182. 221 Ibid., p. 182

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para emancipar”222, e da Dialética Negativa de Adorno, prontamente reconhece o

status reificador do avanço da racionalização sistêmica sobre o mundo da vida, e

busca na racionalização cultural, mediante o conceito da razão comunicativa, uma

rememoração de possibilidades latentes de esperança de emancipação, que ressoam

tão-somente como consolo, frente a um mundo no qual o alento apenas confirma a

preocupação de W. Benjamin de que “... esse inimigo ainda não parou de

vencer”223?

Sob esse prisma, uma última consideração que gostaria de fazer sobre

a teoria habermasiana da modernidade, é no sentido de levantar uma questão a

respeito do seu conceito de razão. Não estaria este conceito carregando um estigma,

que nos parece ser um limite: é uma dimensão da razão que se apresenta, apenas,

como resistência frente à ameaça de uma outra dimensão da razão – sistêmica – que,

a olhos vistos, vai minando as possibilidades da realização do ideal de uma

sociedade emancipada?

Essa idéia de razão comunicativa como resistência pode ser

encontrada, em grandes linhas, em L. Avritzer224. Para este, o intento de Habermas

é mostrar que o projeto da modernidade pode ser defendido, desde que se descarte o

legado iluminista, segundo o qual o progresso moral é decorrência da aplicação,

neste campo, dos princípios das ciências naturais, por um lado, e, por outro, a

crença de que a evolução da ciência com vistas ao controle técnico da natureza e a

evolução dos sistemas econômicos podem ser compreendidos enquanto processos

empíricos de ampliação da racionalidade disponível. Por conseguinte, quando

Habermas faz referência à questão da moral e da ciência, ele não recorre

diretamente a Kant, Hegel e Marx, e sim, a Weber. Os motivos que o levam a

222 “A utopia pragmática não é então, aquela em que a natureza humana tenha sido liberta ... Pois nós queremos narrativas acerca de um cosmopolitanismo crescente, apesar de não querermos narrativas acerca da emancipação. Pois nós pensamos que não há nada para emancipar ...”. Richard RORTY. Objetivismo, Relativismo e Verdade. Trad. Marcos. A. Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará 1997, p.283-284. 223 Walter Benjamin. “Teses sobre Filosofia da História”. In.: KOTHE, Flávio R. (org.) Walter Benjamin. 2. ed. Trad. Flávio R. Kothe. São Paulo: Ática, 1991. (Col. Sociologia). 224 Leonardo AVRITZER. “Jürgen Habermas: Razão de uma Modernidade Antecipada”. Síntese Nova Fase, 49 (1990), p. 71-83.

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recorrer a Weber, para lançar as bases da sua teoria é porque ele pretende defender

“uma modernidade despida das dicotomias religião/ciência e pré-

capitalismo/capitalismo”225. Que não busca suas origens nem nas filosofias do

século dezoito, nem na perspectiva evolucionista do século dezenove. Assim, o

legado weberiano cumpre a função de lançar para um momento histórico anterior ao

século dezoito a emergência desse novo tempo, compreendido como a dissolução

das imagens metafísico-religiosas do mundo.

Destarte, ao antecipar a modernidade, Habermas a coloca em

diacronia com o surgimento e consolidação do mercado, ao mesmo tempo em que

atribui o seu impulso inicial ao surgimento de estruturas da consciência que

tomaram corpo no plano da tradição cultural, diferenciando, assim, dois tipos de

racionalidade. A primeira, racionalidade comunicativa, associada à emergência das

esferas axiológicas de valor, base de sustentação do novo ethos e ligada à interação

social. A segunda, racionalidade sistêmica, está diretamente vinculada ao

desenvolvimento da ação racional com respeito a fins, tendo como conseqüência a

burocratização e a coisificação das relações sociais, com predominância do dinheiro

e do poder. O limite dessa teoria está em associar o surgimento do Estado e da

economia ao desenvolvimento do segundo tipo de racionalidade, e todo o potencial

de comunicação e de emancipação, na esfera da razão comunicativa. “Habermas, ao

cindir a modernidade, despe-a desde as suas origens, do potencial de emancipação

inerente à esfera do trabalho”226. O que significa dizer que, na sua teoria, o potencial

emancipador da esfera do trabalho está negado, e que as relações dimanadas do

mercado não contém potencial emancipatório.

As conseqüências dessa clivagem operada no coração do “projeto”

que se pretende defender, tornam-se “um exercício de resistência de forças isoladas

numa trincheira isolada, cujo poder de força já não é mais capaz de decidir a

225 Ibid. p., 74. 226 Ibid., p. 81. “A obrigação de tornar esta esfera estanque em relação à da comunicação, obrigação decorrente da antecipação da modernidade, implica negar qualquer possibilidade de emancipação dos trabalhadores. Mas importante do que discutir se tal possibilidade existe ou não é perceber a conseqüência da sua negação para uma perspectiva da modernidade”. Ibid. p., 81.

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batalha”227. Se é assim, não há como não concordar com os argumentos de L.

Avritzer contra a teoria da modernidade de Habermas. No entanto, há que

considerar o seguinte aspecto: o limite dessa teoria pode ser o de ter deixado

exposto um flanco, de ter considerado a razão comunicativa apenas como uma razão

débil, “uma casca oscilante”228 e quase sem defesa. Porém, não será essa sua

grandeza, por não postular um modelo de razão absoluto, que antecipasse todas as

saídas da crise, que se lançasse numa empresa suicida de uma emancipação

salvacionista? L. Avritzer fala de “forças capazes de vir instaurar o novo”. Porém

não diz qual é o novo e, menos ainda, quais são essas forças.

Portanto, não obstante a pertinência desse indicativo de L. Avritzer,

não pode ser esquecido que uma das principais características da Modernidade,

senão a mais importante, é exatamente a autonomia da razão. Nesse sentido, cumpre

ao filósofo, mediante o uso público da razão autônoma, ser aquele que procura ir à

frente, abrindo uma trilha no denso bosque da existência, porém, não antecipa que

adiante haverá uma clareira ou um abismo. Apenas está consciente de que se for um

abismo, este terá que ser contornado, passos terão que ser recuados, novos caminhos

terão que ser abertos; quanto à clareira, essa terá que ser construída, não de acordo

“com o modelo da realização de fins visados, mas significa principalmente o surgir

espontâneo, não controlável teleologicamente, a partir dos esforços cooperativos,

falíveis e sempre fracassados, que procuram eliminar ou atenuar os sofrimentos de

criaturas vulneráveis”229.

Penso que a razão comunicativa, mesmo que seja apenas como

resistência, veio nos mostrar que ainda há possibilidade de sermos agentes, em meio

a uma sociedade globalizada, na qual nos pensamos “livres”, por termos acesso, em

“tempo real”, a tudo o que o mercado produz. Porém, só virtualmente livres porque,

sem nome e sem rosto, parecemos mais como que peças descartáveis de uma

engrenagem desgastada pela repetitividade do mesmo: um futuro que ressurge como

227 Ibid., p. 82. 228 PPM, p. 181. 229 PPM, p. 182.

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algo construído com resíduos dos refugos do passado. Por conseguinte, frente ao

mundo do sistema, a razão comunicativa faz ver que há um mundo da vida, no qual

podemos resgatar o sonho de uma humanidade emancipada, pois nele podemos nos

sentir vizinhos, amigos, solidários, senhores da nossa vontade, de nossos desejos e

dos nossos sonhos, principalmente quando compartilhados. É um mundo familiar

onde todos se sentem reconhecidos, individualizados, com nome e com rosto.

Destarte, mesmo que seja apenas como resistência, nesse mundo podemos dizer

como o poeta “faz escuro, mais eu canto!”

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ABSTRACT

The objective of this Thesis is to make an interpretation, reading

of the Theory of Modernity by Jürgen Habermas. The postulate of this Theory

is that the process of Rationalization established an inseparable inner relation

between Modernity and Rationality. This inseparability is rooted in the

comprehension that Rationalization made possible the liberation of cognitive

contents and types or specific rationalities. And these can only be

apprehended by means of a wider concept of Reason: the Communicative

Reason. This rich and meaningful viewpoint tries to overcome the limits of

the so called Philosophy of Subjectivity, which, in its turn expresses the

monological relation between Subject and Object, considering the world on

an egocentrical way. It is by means of this dialogical rationality perspective

that, either the dignity of Modernity, which consists of independent values

differentiation, either this new Reason model emancipating sense, which rests

upon its unity regaining, manifests it self, as a result of a processing dialogue,

in search of understanding, as a paradigm of intercomprehention among

subjects.

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