raça, cultura, identidade e o racismo à brasileira

18
  1 Raça, cultura e identidade e o “racismo à brasileira”   Andreas Hofbauer Hoje, raça, cultura e identidade são palavras que se pode escutar nas ruas, nas conversas do dia-a-dia. São vocábulos que aparecem freqüentemente em artigos de  jornais e de revistas. Seu uso sempre diz respeito a algum tipo de afirmação ou construção de diferençase fronteiras.  O objetivo deste pequeno ensaio, porém, não é aprofundar uma reflexão teórica sobre estes conceitos (o que exigiria um trabalho de grande fôlego): quero muit o mais abordar o racismo no Brasile chamar a atenção para a importância que noções como raça, cultura, identidade, branco e negro têm nas reflexões e no debate sobre esta questão. Se quisermos falar de raça, cultura e identidade a partir de um ponto de vista das Ciências Sociais, é importante lembrar que raça, cultura e identidade são conceitos paradigmáticos dentro das Ciências Humanas, especialmente dentro da história do pensamento antropológico. Cada um destes termos tem a sua história, tem a sua dimensão explicativa.  A definição de todos os conceitos e especialmente destes conceitos paradigmáticos que visam a delimitar grupos humanos, têm sido objeto não apenas de debates e polêmicas acadêmicas, mas também de brigas políticas e ideológicas. Não cabe aqui fazer uma exposição de toda a história de cada um destes termos. Mas quero, pelo menos, mencionar, de f orma esquemática, uma ou outra etapa da história do desenvolvimento destes conceitos que deveria ajudar-nos a pensar o racismo no Brasil. Em primeiro lugar, parece-me importante, frisar que raçavai se transformar num conceito científico não antes do final do séc. XVIII 1 . Neste período, as diferenças humanas eram entendidas, ainda pela maioria dos pensadores, como uma conseqüência da influência do c lima e da geografia. Muitas das concepções raciaisdo final do séc. XVIII contavam, portanto, com a possibilidade de uma m udança da 1 Segundo Geiss (1988: 16), o termo raçaderiva da palavra árabe ra´s, que significa cabeça, chefe do clã(e não, como se lê freqüentemente, do substantivo latino ratio) e foi introduzi do na Península Ibérica na época da Reconquista (não antes do século XIII). Num primeiro momento, nobres portugueses e espanhóis recorriam ao termo raça ("raza") para  de forma semelhante ao uso árabe-beduíno  destacar sua origem. Os primórdios da história da noção de raça, portanto, nada têm a ver com uma diferenciação de grupos humanos segundo cores de peles diferentes ou outros critérios fenotípicos. Foram conjunturas políticas e econômicas específicas que levariam, com o decorrer do tempo, a uma convergência do critério cor com a categoria raça.  

Upload: rafaela-kelsen

Post on 04-Nov-2015

31 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Racismo

TRANSCRIPT

  • 1

    Raa, cultura e identidade

    e o racismo brasileira

    Andreas Hofbauer

    Hoje, raa, cultura e identidade so palavras que se pode escutar nas ruas, nas

    conversas do dia-a-dia. So vocbulos que aparecem freqentemente em artigos de

    jornais e de revistas. Seu uso sempre diz respeito a algum tipo de afirmao ou

    construo de diferenas e fronteiras. O objetivo deste pequeno ensaio, porm,

    no aprofundar uma reflexo terica sobre estes conceitos (o que exigiria um

    trabalho de grande flego): quero muito mais abordar o racismo no Brasil e chamar

    a ateno para a importncia que noes como raa, cultura, identidade, branco e

    negro tm nas reflexes e no debate sobre esta questo.

    Se quisermos falar de raa, cultura e identidade a partir de um ponto de vista das

    Cincias Sociais, importante lembrar que raa, cultura e identidade so conceitos

    paradigmticos dentro das Cincias Humanas, especialmente dentro da histria do

    pensamento antropolgico. Cada um destes termos tem a sua histria, tem a sua

    dimenso explicativa.

    A definio de todos os conceitos e especialmente destes conceitos

    paradigmticos que visam a delimitar grupos humanos, tm sido objeto no apenas

    de debates e polmicas acadmicas, mas tambm de brigas polticas e ideolgicas.

    No cabe aqui fazer uma exposio de toda a histria de cada um destes termos.

    Mas quero, pelo menos, mencionar, de forma esquemtica, uma ou outra etapa da

    histria do desenvolvimento destes conceitos que deveria ajudar-nos a pensar o

    racismo no Brasil.

    Em primeiro lugar, parece-me importante, frisar que raa vai se transformar num

    conceito cientfico no antes do final do sc. XVIII1. Neste perodo, as diferenas

    humanas eram entendidas, ainda pela maioria dos pensadores, como uma

    conseqncia da influncia do clima e da geografia. Muitas das concepes raciais

    do final do sc. XVIII contavam, portanto, com a possibilidade de uma mudana da

    1Segundo Geiss (1988: 16), o termo raa deriva da palavra rabe ras, que significa cabea,

    chefe do cl (e no, como se l freqentemente, do substantivo latino ratio) e foi introduzido na Pennsula Ibrica na poca da Reconquista (no antes do sculo XIII). Num primeiro momento, nobres portugueses e espanhis recorriam ao termo raa ("raza") para de forma semelhante ao uso rabe-beduno destacar sua origem. Os primrdios da histria da noo de raa, portanto, nada tm a ver com uma diferenciao de grupos humanos segundo cores de peles diferentes ou outros critrios fenotpicos. Foram conjunturas polticas e econmicas especficas que levariam, com o decorrer do tempo, a uma convergncia do critrio cor com a categoria raa.

  • 2

    cor de pele, caso um determinado grupo migrasse para uma regio mais quente ou

    mais fria. Da explica-se tambm a proposta de um dos maiores cientistas naturais

    da poca, George Leclerc de Buffon, de levar um grupo de africanos (do Senegal)

    para Dinamarca para estudar quantas geraes demoraria at que a cor de pele

    deste grupo fosse transformada em branco (Buffon estipulou um perodo de 8 a 12

    geraes) (Buffon 1839: 326, 335).

    no sc. XIX, sobretudo a partir da segunda metade deste sculo, que a raa

    torna-se de fato - uma categoria biolgica, i. ., uma categoria essencializada.

    Cientistas europeus e norte-americanos buscavam as causas das diferenas

    humanas no corpo humano, e, postulavam que as caractersticas fsico-

    biolgicas fossem o fator determinante de todas as diferenas observveis na vida

    social2.

    E, importante lembrar que tais interpretaes naturalizadas das diferenas

    humanas foram desenvolvidas na Europa e nos EUA no contexto de processos que

    costumeiramente descrevemos como: burocratizao das relaes sociais,

    racionalizao da economia, secularizao do pensamento, formao dos Estados-

    Naes. Sabemos tambm que a idia de raa biologizada serviria ainda como

    argumento bsico para implantar leis segregacionistas nos EUA, na frica do Sul,

    e tambm para promover o projeto do holocausto na Alemanha-ustria Nazista.

    Coube ao antroplogo Franz Boas a rebelar-se contra o valor explicativo

    totalizante que se atribua ao fator raa nas anlises dos grupos humanos. Foi no

    contexto da luta poltica contra o racismo nos EUA e o nazismo na Europa3 que

    Boas reivindicava uma separao conceitual rigorosa entre, de um lado, a raa (o

    mbito biolgico) e, de outro lado, o mundo da cultura, ou melhor, das culturas

    humanas. Ao mostrar que o mbito biolgico (i..: a raa) no tem praticamente

    nenhuma influncia sobre o desenvolvimento das culturas, Boas constri

    2 Pensadores como Gobineau, Lapouge (Frana), Robert Knox (Gr-Bretanha), Louis Agassiz,

    Samuel George Morton (EUA) e outros desenvolveram teses que seriam chamados de teorias raciais.

    3 Como alemo judeu emigrado nos EUA, Boas engajou-se no combate no apenas discriminao

    racial nos EUA, mas tambm ao anti-semitismo na Alemanha. Seus livros foram queimados no Terceiro Reich.

    A crtica terica de Boas dirigia-se no apenas aos tericos raciais, mas tambm aos evolucionistas clssicos que entendiam que todas as sociedades estivessem condenadas a percorrer as mesmas etapas de desenvolvimento e, - a partir desta crena cega no progresso - concebiam a cultura como um processo unilinear.

  • 3

    (conquista) um espao prprio para se pensar o mundo da simbolizao.

    Podemos dizer que, desta forma, Boas funda uma referncia conceitual

    importantssima para todas as teorias clssicas da Antropologia Moderna.

    Depois da Segunda Guerra Mundial, a Unesco iniciou uma grande campanha

    internacional de combate ao racismo4. Em vrios documentos e resolues

    amplamente divulgados, cientistas de renome internacional argumentavam, com

    muita nfase que o uso da categoria de raa para anlises da vida scio-cultural

    carece de qualquer base cientfica5. Objetivo final de todo este esforo foi mostrar

    que o holocausto e tambm o racismo nos EUA baseavam-se em idias

    cientificamente falsas, de modo a tentar proteger a humanidade de ideologias

    desastrosas deste tipo.

    J faz tambm algumas dcadas que geneticistas como Jacquard (p.ex.: 1978) e

    Cavalli-Sforza (p.ex.: 1993) mostraram que o conceito de raa, mesmo se usado

    como uma categoria estritamente biolgica ou gentica, no corresponde a

    nenhuma realidade observvel no mundo da empiria. Ou seja, as pesquisas destes

    especialistas revelaram que o material gentico no permite que se isolem grupos

    humanos, ou melhor, no permite que se definam - dentro da espcie humana -

    populaes como grupos essencialmente diferentes de outros.

    Permitam-me fazer ainda um comentrio curto sobre a idia da identidade,

    antes de abordar a importncia de tais conceituaes para a anlise do racismo no

    Brasil. Foi no final da dcada de 60 que alguns antroplogos sentiram que o

    conceito de cultura no dava conta de analisar certos dinamismos que se

    observava no mundo emprico. Percebeu-se que, em muitos casos, as fronteiras das

    culturas no coincidiam com as fronteiras grupais. Ou seja, descobriu-se que

    perfeitamente possvel que dois grupos compartilhem os mesmos valores culturais

    (que tenham a mesma lngua, mesma religio, etc.), e que, no entanto, sintam-se

    4 Foi neste contexto que a Unesco promoveu uma srie de pesquisas sobre as relaes raciais no

    Brasil (na Bahia, no Rio de Janeiro, em So Paulo) que apontaram para graves diferenas sociais entre os grupos brancos e negros e, desta forma, puseram em xeque o mito da democracia racial.

    5 No documento The statement of race, publicado em 1950, p.ex., constata-se que grupos nacionais, religiosos, geogrficos, lingsticos e culturais no coincidem necessariamente com grupos raciais e

    prope-se, por isso, a substituio do conceito de raa por grupo tnico: "Because serious errors of this

    kind are habitually committed when the term race is used in popular parlance, it would be better when

    speaking of human races to drop the term race altogether and speak of ethnic groups" (Unesco TRC,

    1950: 99).

  • 4

    diferentes um do outro. Como possvel tambm que exista uma diferena real

    em termos de produo cultural sem que isto cause a formao de identidades

    diferentes.

    Foi o antroplogo noruegus Fredrik Barth (no seu livro: "Ethnic groups and

    boundaries", 1969) que chamou a ateno para o fato de que no so diferenas

    objetivas que fazem com que os seres humanos criem diferentes grupos tnicos.

    Ele mostrou que so sempre apenas alguns signos, alguns traos diacrticos (p.ex.

    a linguagem, a vestimenta, o uso de penteado especfico, ou, poderia ainda ser

    tambm a cor de pele) que so escolhidos como emblemas de diferena,

    enquanto outros traos so ignorados. E por meio destes emblemas de

    diferena, por meio destes signos, que as pessoas constroem, afirmam, frisam e

    exibem uma identidade comum.

    H um certo consenso entre os autores de que a identidade deve ser entendida

    como um fenmeno relacional e processual. Como disse, p.ex., Roberto Cardoso

    de Oliveira, j em 1976 (no seu livro Identidade, etnia e estrutura social, p. 5): A

    identidade contrastiva (...) [i]mplica a afirmao do ns diante dos outros. Mesmo

    que haja vrias abordagens e vrios usos diferentes do conceito de identidade,

    pode-se afirmar, acredito eu, que, genericamente falando, a introduo da idia da

    identidade nas anlises das Cincias Sociais tem permitido pensar melhor o lado

    subjetivo dos processos scio-culturais, uma vez que a noo de identidade

    direciona a anlise para opes, para escolhas mais ou menos conscientes dos

    indivduos e dos grupos. Percebe-se aqui tambm e este detalhe me parece muito

    importante para o nosso tema - que a idia de construo de identidades aponta

    implicitamente para uma questo poltica, i.. para a questo da legitimao social

    (cf. tambm Manuela Carneiro da Cunha, 1986: 97-108)6.

    Tendo apontado, de forma esquemtica, para alguns dados histricos, algumas

    preocupaes cientficas e usos ideolgicos que envolvem os trs conceitos-chave

    em questo (raa, cultura, identidade), podemos agora tematizar o racismo no

    Brasil. Hoje, as evidncias da discriminao racial so claras. Dispomos de uma

    grande quantidade de estudos empricos (dados estatsticos) que comprovam com

    muitos detalhes que o grupo dos pretos (categoria usada nas pesquisas oficiais

    6 Cf. ainda as reflexes de Kabengele Munanga sobre a A identidade negra no contexto da

    globalizao (in: Ethnos Brasil, n1, p. 11-20).

  • 5

    do IBGE) vive em condies muito piores que o grupo branco. Todos os ndices

    scio-econmicos revelam a existncia da discriminao. Mas a questo que queria

    abordar aqui no tanto as conseqncias do racismo, mas o fenmeno em si:

    O que afinal racismo? Como funciona o racismo brasileiro? Se partirmos do

    princpio de que no so os indivduos singulares que, a cada momento, inventam

    os valores e as classificaes sociais, como podemos explicar aquilo que move as

    pessoas a discriminar outras? Que explicao sociolgica e/ou antropolgica

    podemos dar ao fenmeno do racismo? Trata-se de uma questo acadmica. Mas,

    parece-me importante aprofundar esta reflexo para tentar compreender melhor o

    que acontece na vida real. Estou ciente de que se trata de uma questo altamente

    polmica, conflituosa e pantanosa como o prprio fenmeno do racismo.

    No h consenso em torno da definio do que seja racismo. Por exemplo,

    onde termina o etnocentrismo e onde comea racismo? Tais polmicas tm tambm

    a ver com as brigas acadmicas e polticas em torno da definio dos nossos

    conceitos-chave: raa, cultura e identidade.

    H autores que ligam o fenmeno do racismo construo de raas humanas.

    Ou seja, para certos autores, como p.ex. Roger Sanjek, racismo existe, stricto

    sensu, apenas naquelas sociedades onde as pessoas acreditam, seguindo as

    mximas das teorias raciais clssicas, que o grupo do outro biologicamente

    diferente e por natureza inferior (cf. Beer 2002: 47;54,55). Mas a questo bastante

    complexa; a realidade emprica coloca sempre novos problemas, novos desafios

    para a anlise. Hoje, na Europa, a Nova Direita - os grupos que costumeiramente

    chamamos de racistas (p.ex. neonazistas, skinheads na Frana, Alemanha,

    ustria) - j no recorrem ao conceito de raa. Estes grupos incorporaram um

    discurso (uma linguagem) mais moderno e defendem agora a preservao da

    cultura ou da identidade nacional. E baseados neste discurso de autodefesa,

    exigem medidas polticas que visem a favorecer o seu grupo em detrimento de

    outro(s) (que, normalmente, so os imigrantes).

    No que diz respeito interpretao do fenmeno da discriminao racial no

    Brasil, podemos perceber muita divergncia. Mas h, parece-me, pelo menos um

    consenso: a maioria dos pesquisadores e mesmo os militantes negros tendem a

    concordar que h algo de especfico no racismo brasileiro. O racismo no Brasil

    possui certas caractersticas prprias. Ele causa discriminao, excluso,

    humilhao, mas no se trata exatamente do mesmo fenmeno que tem causado

  • 6

    discriminao, excluso e humilhao nos EUA, na frica do Sul. E, ao meu ver,

    no pode ser igualado tambm aos racismos europeus histricos (nazismo), nem

    aos atuais (excluso daqueles que no compartilham ou, supostamente, no se

    adaptam aos valores da Unio Europia), mesmo que possa haver semelhanas e

    influncias mtuas entre os fenmenos.

    Por qu? O que torna o racismo no Brasil diferente? A miscigenao histrica

    que criou um grupo intermedirio entre brancos e negros que borrou as

    fronteiras entre a raa branca e a raa negra? O fato de que muitos negros no

    se assumem como negros? A fora da ideologia da democracia racial que faz com

    que os processos de excluso ocorram de forma diferente, mais velada? a,

    nestes pontos de interpretao que as opinies comeam a divergir e muito.

    Num artigo recente, publicado na revista Novos Estudos (n59, 2001), Monica

    Grin analisa que uma das divergncias bsicas entre os especialistas no assunto

    provm daquilo que ela chama de falta de um consenso quanto ao estatuto

    ontolgico da raa no Brasil (Grin, 2001: 178). No seu ltimo livro (Classes,

    raas e democracia, 2002), Antonio Srgio Guimares, um dos pensadores que

    mais tem se dedicado anlise e ao combate do racismo, e mais tem publicado

    sobre este assunto recentemente, aponta para o mesmo problema. Ele fala de uma

    diferena ontolgica fundamental entre alguns antroplogos, como Yvonne Maggie

    e Peter Fry, por exemplo, e alguns socilogos como [ele prprio] eu (Guimares,

    2002: 54).

    Penso que defensvel distinguir, no meio das muitas diferentes abordagens

    tericas existentes, grosso modo, dois plos de argumentao que se opem. Estou

    ciente de que a tipologia que segue no passa de uma diferenciao grosseira que

    tende a achatar certas diferenas importantes que existem entre as muitas

    diferentes abordagens e tende ainda a simplificar as concepes tericas dos

    autores. Mesmo assim, arrisco-me a faz-lo com o objetivo de mostrar: 1) que

    tradies divergentes na concepo (construo) do outro esto ligadas

    diretamente a interpretaes diferentes do fenmeno do racismo; e 2) que uma

    abordagem contextual da construo do outro pode, talvez, superar problemas

    tericos intrnsecos a cada uma das tendncias citadas.

    De um lado, temos uma tradio basicamente sociolgica que se concentra na

    anlise das relaes entre negros e brancos, e mais especificamente no

  • 7

    aspecto da desigualdade social entre estes grupos raciais7. Autores desta tradio

    mais sociolgica tm conseguido comprovar com uma grande quantidade de

    trabalhos empricos e com dados estatsticos detalhados - a existncia da

    discriminao racial em todos os mbitos da vida social.

    A esta linha de pesquisa, ope-se uma tradio cultural-antropolgica que tende

    a abordar as relaes raciais a partir de um suposto estilo de vida brasileiro

    especfico. Ou seja, esta postura terica busca inserir, quando no subordinar a

    questo racial a uma abordagem mais ampla de toda a sociedade / cultura

    brasileira. Autores desta tradio mais antropolgica tendem a analisar, num

    primeiro momento, especificidades do mundo simblico, e, a partir da

    compreenso da construo dos valores culturais, propem-se a refletir sobre o

    racismo no Brasil.

    Roberto DaMatta, p.ex., afirma, ao comparar a questo racial no Brasil com a

    situao nos EUA, que [o] problema bsico (...) sem o qual a questo racial no

    pode ser entendida -, jaz no estilo cultural por meio do qual as duas sociedades

    elaboram, constroem e lidam com as suas diferenas (DaMatta 1997: 71,72). O

    antroplogo chama a ateno para o fato de que, diferentemente do sistema racial

    bipolar dos EUA que define o mestio como negro, no Brasil, as relaes sociais

    so dominadas por uma ideologia de mistura e ambigidade que faz com que o

    mestio simbolize integrao (ibid. 73)8.

    Autores como DaMatta, Peter Fry, mas tambm Lilia Schwarcz costumam dizer

    que, mesmo que o mito da democracia racial no corresponda realidade, este

    mito por si s constitui um ideal, um valor social para a maioria da populao

    brasileira. Por isto, segundo Schwarcz, p.ex., no adianta, no basta desmascarar

    a democracia racial como uma falsa ideologia, como teria feito Florestan

    Fernandes e seus seguidores. preciso levar os mitos a srio para entender

    porque as pessoas evitam explicitar o conflito, e preferem - em vez de criar

    identidades fechadas - negociar constantemente suas identidades, etc.9.

    7 Esta linha de pesquisa remete, em termos histricos e, at certo ponto, tambm metodolgicos, aos

    estudos das relaes raciais promovidas pela Unesco no Brasil (sobretudo ao trabalho de Florestan Fernandes) e seria retomada sobretudo a partir do final dos anos 70 por pesquisadores como Carlos Hasenbalg, Nelson do Valle Silva, e outros.

    8 DaMatta fala ainda de uma insegurana classificatria e de uma indeterminao tnica para explicar o fato que, no Brasil, [p]essoas ficam brancas ou negras de acordo com suas atitudes, sucesso e, sobretudo, relacionamentos (1997: 73;72).

    9 Vgl. Lilia M. Schwarcz. Nem preto nem branco, muito pelo contrrio: cor e raa na intimidade, in:

    L.M. Schwarcz, (Hg.). Histria da vida privada no Brasil. So Paulo, Companhia das Letras, 1998, p.

  • 8

    Em oposio radical a tais interpretaes, autores como A.S. Guimares baseiam

    sua reflexo numa diferenciao essencial entre dois grupos: brancos e negros.

    E, a partir deste pressuposto metodolgico, A.S.Guimares entende a grande

    quantidade de termos de cor, que so usados no cotidiano (moreno claro, moreno

    escuro, marrom bombom, etc.), como representaes metafricas do sistema

    racial (bipolar) clssico. Assim, ele afirma, p.ex., que (...) a cor, no Brasil, funciona

    como uma imagem figurada de raa (Guimares 1999: 43,44)10

    . Baseado nesta

    anlise, A.S. Guimares reivindica a reintroduo do conceito de raa como uma

    categoria analtica. Prope um discurso racialista como um recurso de autodefesa

    que deve ajudar a recuperar o sentimento tnico, o sentimento de dignidade, de

    auto-estima e de autoconfiana (Guimares, 1995:43). E a racializao deve servir

    ainda como uma base conceitual-acadmica que permita articular e agilizar a luta

    por polticas pblicas compensatrias.

    As diferenas entre as duas linhas de anlise parecem, de fato, insuperveis e

    inconciliveis. De um lado, as anlises mais cultural-antropolgicas tm contribudo

    muito para aprofundar e sofisticar a reflexo sobre a dinmica e sobre as

    ambigidades que marcam a questo complexa das identidades no Brasil. Mas na

    medida em que tendem a interpretar a construo da(s) diferena(s) e, portanto

    tambm, as relaes raciais a partir de um etos brasileiro (quase como uma

    espcie de essncia do ser brasileiro) que se situa alm do processo histrico, tais

    anlises correm, por vezes, o perigo de se transformar num discurso justificatrio

    dos mitos sociais11

    .

    236; Peter Fry. O que a Cinderela negra tem a dizer sobre a poltica racial no Brasil, in: Revista USP, 28 (1995/1996), p. 134.

    10 A.S. Guimares postula que no h denominao de cor sem a existncia de uma ideologia racial.

    Diz o autor: Algum s pode ter cor e ser classificado num grupo de cor se existir uma ideologia em que a cor das pessoas tenha algum significado. Isto , as pessoas tm cor apenas no interior de ideologias raciais (1999:44). E Guimares afirma ainda que, desde os primrdios da histria do Brasil, a [c]or (...) uma construo racialista (Guimares 1996:143 in: M. Chor Maio; cf. tb. Guimares 1995:27).

    11 Mesmo que a inteno dos autores no seja a da defesa dos mitos sociais, a nfase na

    importncia de analisar o mundo simblico em detrimento de outros fatores levou formulao de ataques, por vezes, bastante cidos. Os autores, que so acusados, de forma indireta e, por vezes, direta, de emperrar procedimentos polticos efetivos de combate ao racismo, sentem tais crticas como dolorosas e indevidas. Confira as palavras de P. Fry: I find it difficult not to side with those who resent attempts to interpret the Brazilian model or Brazilian sociological intelligence as fundamentally erroneous. To do otherwise would be to renege on the tenets of my discipline and succumb to pressures to capitulate to the inevitability of the racialization of the world. And yet, taking such a position, contrary to the dominant views of so many of my friends and colleagues, including those in the thick of the antiracist struggle in Brazil, is painful, bringing, as it does, accusations of neo-Freyreanism, representing white privilege or even of a lack of concern for racism and racial inequality.(Fry 2000:111).

  • 9

    De outro lado, a essencializao das categorias de negro e branco

    possibilitou questionar e desmascarar os mitos como discursos ideolgicos de

    dominao e possibilitou tambm desenvolver trabalhos estatsticos sobre a

    discriminao racial. Mas, ao mesmo tempo, este tipo de abordagem, que parte da

    existncia de grupos com fronteiras fixas, no d pistas metodolgico-tericas para

    interpretar a complexa questo da identidade.

    Ambas as linhas de interpretao (a cultural-antropolgica e a sociolgica)

    afirmam que raa no deve ser entendida como um dado biolgico, mas como

    uma construo social12

    . E, parece-me que o n da falta de consenso em torno da

    ontologia do conceito de raa poderia ser desfeito exatamente por meio de uma

    anlise cuidadosa da maneira como a idia de negro (e de branco) e a idia de

    raa foram construdas no Brasil, ao longo da histria do pas. aqui que entra a

    minha crtica, a minha proposta terica e metodolgica, que, claro, apenas uma

    mais uma - interpretao possvel desta questo complexa. Uma vez que

    reconhecemos que raa como tambm negro e branco no so dados

    naturais, mas construes sociais que esto ligadas a idias culturais que tm

    sido usadas como critrios de incluso e excluso, reivindico que deveramos tratar

    tais conceitos tambm como parte integrante importante da histria da

    discriminao, i.., como elementos ideolgicos fundamentais da histria do

    racismo.

    Desta forma, possvel mostrar que:

    1) As concepes de negro e de branco foram desenvolvidas inicialmente

    como um discurso ideolgico independente da idia de raa.

    2) Raa foi usada durante muito tempo como uma idia no essencializada, e

    isto no apenas no Brasil.

    3) A idia de transformar negro em branco pode ser interpretada como um

    iderio (ou ideologia) antigo que ganhou fora simultaneamente com

    concepes especficas do mundo e do ser humano e que marcou desde o

    incio a sociedade colonial brasileira.

    12

    Confira, p.ex., as palavras de Guimares: Reconheo, todavia, que a minha argumentao repousa sobre dois pressupostos s vezes difceis de serem percebidos. Primeiro, no h raas biolgicas, ou seja, na espcie humana nada que possa ser classificado a partir de critrios cientficos e corresponda ao que comumente chamamos de raa tem existncia real. Segundo, o que chamamos raa tem existncia nominal, efetiva e eficaz apenas no mundo social e, portanto, somente no mundo social pode ter realidade plena (2002:50).

  • 10

    4) O iderio do branqueamento que me parece uma caracterstica

    importantssima do racismo brasileiro tem atuado como suporte

    ideolgico das relaes de poder patrimonial que se estabeleceram e se

    firmaram no pas.

    5) A partir do final do sculo XIX a idia do branqueamento se transformou

    num argumento importante no discurso daquela parte da elite brasileira

    (polticos e cientistas) que queria mudanas econmicas, mas, ao mesmo

    tempo, mostrava-se preocupada diante de qualquer mudana nas relaes

    de poder estabelecidas13

    .

    Tanto as anlises mais cultural-antropolgicas como as abordagens mais

    sociolgicas entendem que a ideologia do branqueamento nasceu num momento

    de incertezas, no contexto histrico-poltico da transformao da sociedade

    escravista para um novo modelo social, o sistema capitalista. Afirma-se que as

    teorias raciais clssicas, que ganharam fora a partir da segunda parte do sculo

    XIX na Europa e nos EUA, e que condenavam a miscigenao, punham em xeque a

    viabilidade do projeto de modernizao do pas.

    Segundo esta anlise, a idia do branqueamento serviu como uma sada

    ideolgica para este momento crtico de transformaes na poltica e na economia.

    Serviu elite poltica e econmica do pas tambm como argumento para promover

    uma grande campanha de importao de mo-de-obra branca europia o que

    teria como efeito colateral, a marginalizao (no-integrao) dos negros na

    nova sociedade de classe que estava surgindo nos centros urbanos do pas.

    L-se, portanto, seja nas abordagens cultural-antropolgicas seja nas

    sociolgicas, que o branqueamento uma ideologia (teoria) genuinamente

    brasileira que surgiu no final do sculo XIX como uma adaptao das teorias raciais

    clssicas situao brasileira14

    . Segundo A.S. Guimares, as linhas diretrizes das

    13

    Neste pequeno ensaio no aprofundarei este ponto que faz parte da interpretao corrente da ideologia do branqueamento.

    14 Foi Thomas Skidmore que, pela primeira vez, apresentou uma tal interpretao do

    branqueamento, no seu livro Preto no branco (1974). Cf. tambm: Giralda Seyferth (1995: 179), A.S. Guimares (1995:37, 38) e Octavio Ianni (1988: 153).

    Como propagandista mais importante da ideologia do branqueamento, cita-se comumente o antroplogo Joo Baptista Lacerda que, no Congresso Universal das Raas em Londres (1911) prognosticava que a populao brasileira estaria a caminho de um embranquecimento que levaria conseqentemente num prazo de um sculo - extino da raa negra (Lacerda 1911:18,19).

  • 11

    teorias raciais clssicas foram assimiladas, mas modificadas em dois pontos: 1)

    questionava-se o carter inato das diferenas raciais; 2) no se aceitava que a

    mistura racial levaria obrigatoriamente degenerao das raas (p.ex. Guimares

    1995:37). Mesmo que as reflexes de L. Schwarcz sobre o racismo se baseiem em

    premissas substancialmente diferentes daquelas de A.S. Guimares, esta autora

    apresenta uma interpretao quase idntica. Confira as seguintes palavras de L.

    Schwarcz: (...), se existe uma teoria que de fato criada no Brasil, a teoria do

    branqueamento, de incios do sculo [XX] (1996: 178). E: (...) os intelectuais eram

    obrigados a lidar com uma parte da teoria [racial clssica] e obliterar outra (ibid.

    172)

    Concordo que a ideologia do branqueamento foi um elemento fundamental para

    justificar e levar a cabo a poltica imigracionista. Esta ideologia teve um papel

    importante no discurso dos abolicionistas (cf. p.ex. J. Nabuco). Mas discordo de que

    o branqueamento seria filho deste momento histrico. Trata-se de um detalhe

    analtico ligado interpretao da construo da idia de negro, da idia de raa,

    que me parece um ponto muito importante para a compreenso do tipo de racismo

    que se desenvolveu no Brasil. Contrariamente s anlises correntes, que

    interpretam o surgimento do branqueamento como uma reao ao fim da

    escravido, e implicitamente defendem que escravido e branqueamento se

    excluem 15

    , argumentarei que escravido e branqueamento podem ser melhor

    entendidos como fenmenos que se complementavam.

    Quero para dar sustentao a estas minhas afirmaes chamar a ateno

    para apenas alguns detalhes da construo da idia de negro na histria do Brasil,

    j que no h tempo (espao) para aprofundar esta questo aqui16

    . Em primeiro

    lugar, queria destacar que as idias de negro e branco so anteriores ao discurso

    racial. Desde os primrdios das lnguas indo-europias, o branco representava o

    bem, o bonito, a inocncia, o puro, o divino, enquanto o negro era associado ao

    moralmente condenvel, ao mal, ao diablico, culpa. Na Idade Mdia, o grande

    Quero apenas chamar a ateno para o fato de que j em 1821 o mdico e filsofo, Francisco Soares Franco e Antnio dOliva de Sousa Sequeira fizeram propostas polticas quase idnticas quelas de Lacerda (p.ex.: incentivo imigrao europia) e projetaram igualmente um prazo de 100 anos (ou quatro geraes) para transformar a cor da populao brasileiro em branco (Franco 1821: 18; Sequeira 1821 :52 cf. tb. Hofbauer 1999: 155-158).

    15 Esta concepo baseia-se em anlises anteriores: cf. p.ex. a argumentao de Bastide

    1985:54,104; Fernandes, in: Bastide e Fernandes: 1971:87-91 e de Ianni 1988:150-153.

    16 Para uma abordagem mais detalhada, cf. A. Hofbauer (1999).

  • 12

    paradigma de incluso e excluso era a filiao religiosa, e ainda no a cor de pele.

    A grande clivagem era traada entre "ns cristos" e "eles, os muulmanos"

    ("mouros"). Usava-se a cor negra para denominar, depreciar pessoas moralmente

    condenveis, e, de uma forma mais genrica, todos os inimigos de f. Assim, houve

    momentos na histria em que os hngaros e os suecos foram xingados de pretos.

    Cames usava a palavra negro para se referir tanto a africanos como a povos

    asiticos. Quero lembrar ainda que os indgenas desta terra enquanto foram

    vtimas de escravizao eram tambm chamados de negros (inclusive pelos

    jesutas cf. p.ex. as cartas e textos escritos por Manuel da Nbrega)17

    .

    Uma outra construo ideolgica, que foi fundamental para todo o projeto da

    colonizao das Amricas, foi justamente a igualao entre negro e escravo: uma

    idia que os rabes (e antes deles os judeus) j tinham desenvolvido a partir de uma

    reinterpretao do Velho Testamento (trata-se do Gnesis: 9, onde a palavra

    escravo [servo] aparece pela primeira vez nas Sagradas Escrituras infelizmente,

    no h espao para entrar no mrito desta questo). O importante para minha

    argumentao constatar que no incio da colonizao a cor de pele no era vista

    como um dado objetivo do mundo natural, como uma categoria biolgica. Isto ,

    a cor de pele no constitua ainda uma categoria racializada, mas estava ligada,

    em primeiro lugar, a um iderio moral-religioso.

    A fuso ideolgica entre escravido, cor negra e imoralidade, de um lado, e a

    fuso entre cor branca, ideal moral-religioso e status de liberdade de outro lado,

    fez parte de um discurso de dominao que foi inventado pelas classes

    dominantes (um discurso que justificava a explorao). Mas, podemos observar que

    este discurso teve tambm sua repercusso entre aqueles que, em princpio, eram

    vtimas deste discurso, sobretudo entre aqueles que ansiavam ascender dentro da

    ordem estabelecida (h vrios registros do mundo rabe-muulmano medieval,

    como tambm de Portugal do sc. XVI que falam de escravos africanos que

    expressavam o desejo de embranquecer).

    A historiadora Hebe Maria Mattos (1998: 93-98) analisou processos jurdicos (do

    sc. XIX, nas provncias de Minas Gerais, Rio de Janeiro e So Paulo) e chamou a

    ateno para o fato de que em nenhuma ata aparece a categoria de negro (ou

    preto) associada ao status de livre.Ou seja, o registro branco significava

    17

    Usava-se tambm o termo negros da terra para diferenciar os escravos locais dos escravos africanos (sobre este assunto, cf. tb. John M. Monteiro. Negros da Terra. So Paulo, Companhia das Letras, 1994).

  • 13

    implicitamente ser livre. Chamar uma pessoa livre de preto (ou negro) era uma

    ofensa grave. Mattos cita at um caso de homicdio (municpio de Rio Claro, Rio de

    Janeiro, 1850) que foi cometido por uma pessoa livre por esta ter sido xingada de

    negro. Um exemplo que explicita bem este uso contextualizado de denominaes

    da cor de pele - e que causou espanto aos europeus viajantes - foi registrado pelo

    ingls Henry Koster, no incio do sc. XIX no Brasil (1809-1815). Koster

    documentou, com muita surpresa e certa incompreenso, a resposta que ouviu

    sua pergunta, se um certo capito-mor seria "mulato". O interrogado, que Koster

    descreveu como homem de cor, respondeu: "Era, porm j no !". E a pessoa

    justificou: "Pois, Senhor, um Capito-Mor pde ser Mulato?" (Koster 1942:480).

    Outro viajante, o pintor alemo Rugendas, que esteve no Brasil entre 1822 e

    1825, constatou, igualmente com espanto, a maleabilidade, a ambigidade na

    maneira com que as pessoas se referiam s cores e s raas. Escreve

    Rugendas: Os que no so de um negro muito pronunciado, e no revelam de uma

    maneira incontestvel os caracteres da raa africana, no so, necessariamente,

    homens de cor; podem, de acordo com as circunstncias, ser considerados

    brancos (Rugendas 1979:145, 146). Como precondio para que isto possa

    acontecer, Rugendas cita quatro fatores: origem, alianas, riquezas ou mrito

    pessoal.

    Quero deixar claro que estas descries e comentrios dos viajantes no devem

    ser lidos como prova de uma facilidade de mobilidade social, mas - e isto interessa

    aqui - tais registros histricos revelam a existncia de um ideal (ideologia) que hoje

    chamaramos de branqueamento. Isto , revela-se aqui a existncia de um iderio

    que funde status social elevado com cor branca e/ou raa branca e projeta ainda

    a possibilidade de transformao da cor de pele, de metamorfose da cor (raa).

    Estamos, portanto, falando de um iderio historicamente construdo que podemos

    chamar, em sentido lato, de ideologia ou de mito. De qualquer forma, trata-se de

    uma produo simblica que servia como interpretao do mundo (das relaes

    sociais), e que, conseqentemente queiramos ou no deve ser vista tambm

    como um fenmeno cultural.

    Agora, importante destacar tambm que tal produo simblica no surgiu por

    acaso e, portanto, no deve ser compreendida como uma espcie de essncia de

    um povo que tem vida prpria. Meu argumento aqui que esta ideologia do

    branqueamento desenvolveu-se e articulou-se paralelamente ao regime escravista,

  • 14

    ou melhor, sustentava as relaes escravistas-patrimoniais. Infelizmente, no h

    tempo novamente para aprofundar aqui esta argumentao. Seguem outra vez -

    apenas alguns dados, algumas reflexes para ilustrar aquilo que quero dizer.

    Um ponto fundamental no funcionamento do sistema escravista no Brasil foi a

    larga margem de manipulao pessoal do poder: havia um espectro amplo de

    decises dos senhores que independiam da interferncia direta de instituies

    estatais. Cabia ao senhor determinar as tarefas, as reas de trabalho de cada

    escravo (se ele tinha de trabalhar na roa ou dentro da casa-grande como escravo

    domstico). Quem decidia sobre punies adequadas ao escravo infrator era -

    normalmente - o senhor, e no um juiz imparcial nomeado pelo estado. A chance de

    conquistar a carta de alforria dependia, em primeiro lugar, das relaes entre o

    senhor e o escravo. E a carta de alforria no resultava num rompimento com as

    estruturas de domnio, no era garantia de uma "vida em liberdade, mas apenas

    um possvel - passo em direo diminuio da explorao direta.

    Mesmo assim, podemos afirmar que, a instituio da alforria cumpria uma

    funo-chave no sistema escravista: ela garantia a ordem social, pacificava o

    cotidiano18

    porque criava a iluso de uma melhora possvel, de uma superao do

    status de escravo, de uma superao do status de negro. A alforria, que no

    revolucionava a vida dos ex-escravos, mas era muito mais uma promessa para

    geraes futuras, teve sua correspondncia ideolgica na idia de uma possvel

    transformao (metamorfose) da cor de pele. E neste sentido que se pode

    argumentar que o iderio do branqueamento sustentava em termos ideolgicos

    o sistema escravista. Ou melhor, mais precisamente, a concepo no-

    essencializada da cor (raa) tem funcionado no sentido de sustentar as relaes

    de poder patrimonial.

    Enquanto as relaes patrimoniais hierrquicas so um obstculo para a

    implantao de direitos civis (liberdade individual, igualdade diante da lei), a

    ideologia do branqueamento traz em si um potencial de resistncia contra qualquer

    tentativa de essencializar os limites de cor e/ou de raa. A ideologia do

    branqueamento prope negociaes contextuais das fronteiras e das identidades.

    Desta maneira, contribui para abafar a construo de uma reao coletiva. Divide

    aqueles que poderiam se organizar em torno de uma reivindicao comum, e faz

    18

    Cf. tb. E. Frana Paiva (Escravos e libertos nas Minas Gerais do Sculo XVIII: Cap.: as duas faces da alforria, p. 106-109).

  • 15

    com que as pessoas procurem se apresentar no cotidiano como o mais "branco"

    possvel.

    Mesmo que os tempos tenham mudado, mesmo que j h algum tempo o Brasil

    tenha sido envolvido tambm pelas foras globais do capitalismo moderno que

    tendem a burocratizar e racionalizar as relaes sociais, possvel sentir ainda

    hoje a fora do poder patrimonial que se baseia em redes pessoais de proteo e de

    dependncia e que continua atuando muitas vezes de forma latente, outras vezes

    de forma bem explcita. Percebe-se que a lgica do capitalismo moderno no

    substituiu totalmente (ainda) a lgica do patrimonialismo; h muito mais formas de

    convivncia complexas e sobreposies entre estas duas lgicas de organizao

    econmica e de organizao social (da qual fazem tambm parte mecanismos e

    princpios de incluso e excluso).

    Desde os anos 50 classificaes tipolgicas de cores esto presentes no discurso

    cientfico19

    , desde o final dos anos 70 o Movimento Negro recorreu a concepes

    essencializadas de negro com o objetivo de forjar uma identidade poltica

    combativa e de desmistificar a idia da democracia racial; alm disso, sabemos

    que na era da globalizao, conceitos como negro e branco e raa esto sendo

    reavaliados por novos interesses e novas foras ideolgicas. Mas mesmo assim, o

    iderio do branqueamento no foi totalmente apagado, ele perceptvel no dia a

    dia at hoje. Assim, a fora social do iderio do branqueamento pode explicar no

    apenas a (ainda) pequena porcentagem de "negros" nas estatsticas oficiais at

    hoje20

    , mas explica tambm a grande quantidade de termos de cor, que dominam o

    linguajar cotidiano21

    . Muitas das palavras usadas no cotidiano como auto-descries

    ou como termos que buscam no ofender a pessoa denominada so bastante

    curiosas (moreno, moreninho, marrom bombom, queimado de praia, meio-branco) e

    sinalizam que uma grande parte da populao continua evitando identificar-se com a

    categoria negro (preto) e valoriza e privilegia cores claras.

    19 Cf. os estudos sobre relaes raciais que foram promovidos pela Unesco (p.ex. Fernandes que tendia a incluir os mulatos na categoria de negros - homens de cor - 1971: 87,91; 1978:I:13).

    20 No ltimo censo, 1999: 5,4 % da populao brasileira identificou-se com a categoria preta; os

    dados preliminares de 2000 indicam 6,4%.

    21 J famosa a pesquisa do PNAD de 1976 que levantou 136 cores como auto-denominaes (tais

    como: turvo, verde, azul, queimado da praia, etc.); numa outra pesquisa, Marvin Harris levantou 492 "racial terms".

  • 16

    Tudo indica que a ideologia do branqueamento continua funcionando como

    uma espcie de pano de fundo ideolgico sobre o qual outros discursos, outras

    concepes de negro e branco vo se sedimentando (p.ex.: o discurso do

    Movimento Negro atual e as propostas acadmicas de racializar as diferenas). E

    mesmo que esta anlise cause desgosto entre muitos que se empenham no

    combate ao racismo, parece-me que no adianta ignorar a fora ideolgica do

    branqueamento, quando o objetivo entender os processos de incluso e

    excluso na sociedade brasileira.

    Objetivo desta sucinta anlise da histria do branqueamento foi debater

    algumas das razes do racismo brasileiro e, desta forma, procurei mostrar que

    cores e raas so construes ideolgicas, desenvolvidas ao longo de processos

    histricos e que, conseqentemente, o estudo destas categorias deve incluir uma

    anlise contextual das relaes de poder e dos mitos sociais. Baseado nestas

    reflexes, argumentei aqui tambm que as flexibilidades nas denominaes e

    ambigidades na definio da cor de pele (comuns no cotidiano no Brasil) no

    devem ser vistas como uma mera metfora, como uma imagem figurada de raa.

    Racializar as diferenas um mtodo possvel mas no o nico que permite

    desmascarar, questionar os mitos, os discursos justificatrios da discriminao

    racial. Para entendermos o funcionamento do racismo brasileiro, parece-me que

    importante levar a srio tambm as auto-representaes, os discursos dos

    indivduos, uma vez que do acesso ao mundo simblico, aos valores, aos ideais

    scio-culturais, s ideologias, que, em ltima instncia, orientam e justificam tanto a

    percepo da realidade, como as aes individuais. Tais auto-representaes so

    um reflexo direto da complexa questo das identidades que envolve, como

    argumentei no incio da exposio, opes polticas mais ou menos conscientes.

    Entendo, portanto, que a grande quantidade de termos raciais e de cores,

    usados no cotidiano, em primeiro lugar produto de uma histria particular de

    discriminao. Reflete um tipo de racismo especfico que est ligado a relaes

    sociais e a relaes de poder que diferem do modelo europeu e do norte-americano,

    onde a idia de raa biolgica foi desenvolvida e vingou, de fato, como uma

    espcie de representao coletiva da realidade social.

    Quero, ento, concluir minha anlise, dizendo que o racismo um fenmeno

    social complexo: no apenas discriminao e humilhao, mas tambm o

  • 17

    discurso sobre os processos de incluso e excluso. H uma relao intrnseca

    entre realidade e discurso sobre a realidade - e no preciso assumir pressupostos

    marxistas para fazer esta afirmao. Por isto, parece-me necessrio analisar os

    contextos histricos, polticos e sociais juntamente com o plano do(s) discurso(s), ou

    seja, juntamente com a construo das idias, se quisermos entender o

    funcionamento do fenmeno do racismo. Desta maneira, possvel mostrar que

    no existe um etos brasileiro descolado das relaes raciais como tambm

    possvel mostrar que raas e/ou cores no tm uma existncia prpria, no tm

    um significado que independa do mundo dos valores e dos ideais culturais.

    Bibliografia:

    BUFFON, George Leclerc de. Oeuvres compltes de Buffon (Tome troisime; "De lHomme"), Paris, Bazouge-Pigoreau diteur, 1839.

    BARTH, Fredrik (org.). Ethnic groups and boundaries. The social organization of culture difference. Oslo, Universitetsforlaget, 1969.

    BASTIDE, Roger. As religies africanas no Brasil, So Paulo, Livraria Pioneira Editora, 1985.

    BASTIDE, Roger e FERNANDES, Florestan. Brancos e negros em So Paulo, So Paulo, Companhia Editora Nacional, 1971.

    BEER, Bettina. Krperkonzepte, interethnische Beziehungen, Rassismustheorien. Berlin, Dietrich Reimer, 2002.

    CAVALLI-SFORZA, Luca e Francesco. Chi siamo. La storia della diversit umana. Milo, Mondadori, 1993.

    CUNHA, Manuela Carneiro da. Antropologia do Brasil, So Paulo, Brasiliense/Edusp, 1986.

    DaMATTA, Roberto. Notas sobre o racismo brasileira, in: Jess SOUZA (org.). Multiculturalismo e racismo. Braslia, Paralelo 15, 1997.

    FERNANDES, Florestan. A integrao do negro na sociedade de classes (vol.I e II). So Paulo, tica, 1978.

    FRANCO, Francisco Soares. Ensaio sobre os melhoramentos de Portugal e do Brazil. Lisboa, Imprensa Nacional, 1821.

    FRY, Peter. O que a Cinderela negra tem a dizer sobre a poltica racial no Brasil, in: Revista USP, 28 (1995/1996).

    FRY, Peter. Politics, nationality, and the meaning of race in Brazil, in: Daedalus, Journal of the American Academy of Arts and Sciences, Vol. 129, n2, (2000).

    GEISS, Imanuel. Geschichte des Rassismus. Frankfurt, Suhrkamp, 1988. GRIN, Monica, Esse ainda obscuro objeto de desejo polticas de ao afirmativa e

    ajustes normativos: o seminrio de Braslia, in: Novos Estudos, n 59, (2001). GUIMARES, Antonio Srgio. Classes, raas e democracia. So Paulo, Editora 34,

    2002. GUIMARES, Antonio Srgio. Cor, classes e status nos estudos de Pierson,

    Azevedo e Harris na Bahia: 1940-1960, in: MAIO, Marcos Chor e SANTOS, Ricardo Ventura (org.). Raa, cincia e sociedade. Rio de Janeiro, Fiocruz, 1996.

  • 18

    GUIMARES, Antonio Srgio. Racismo e anti-racismo no Brasil, So Paulo, Edies 34, 1999.

    GUIMARES, Antonio Srgio.Racismo a anti-racismo no Brasil, in: Novos Estudos, n43, (1995).

    HOFBAUER, Andreas. Uma histria de branqueamento ou o negro em questo. Tese de doutoramento, USP, 1999.

    IANNI, Octavio. As metamorfoses do escravo. So Paulo, Hucitec, 1988. JACQUARD, Albert. loge de la diffrence: la gnetique et les hommes. Paris, Seuil,

    1978. KOSTER, Henry. Viagens ao nordeste do Brasil [1809-1815]. So Paulo/Rio de

    Janeiro/Recife/Porto Alegre, Companhia Editora Nacional, 1942. LACERDA, Joo Baptista. Sur les mtis au Brsil. MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silncio. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1998. MONTEIRO, John, Manuel. Negros da Terra. So Paulo, Companhia das Letras,

    1994. MUNANGA, Kabengele. A identidade negra no contexto da globalizao, in:

    Ethnos Brasil, n1, (2002). OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Identidade, etnia e estrutura social. So Paulo,

    Livraria Pioneira Editora, 1976. PAIVA, Eduardo Frana. Escravos e libertos nas Minas Gerais do Sculo XVIII. So

    Paulo, AnnaBlume, 1995. RUGENDAS, Joo Maurcio. Viagem atravs do Brasil [1822-1825]. So Paulo, Belo

    Horizonte, Itatiaia, Edusp, 1979. SCHWARCZ, Lilia e QUEIROZ, Renato da Silva (org.). Raa e diversidade. So

    Paulo, Edusp, 1996. SCHWARCZ, Lilia Moritz. Nem preto nem branco, muito pelo contrrio: cor e raa

    na intimidade, in: SCHWARCZ, L.M. (org.). Histria da vida privada no Brasil. So Paulo, Companhia das Letras, 1998.

    SEQUEIRA, Antnio dOliva de Sousa. Addio ao projecto para o estabelecimento politico do reino-unido de Portugal, Brasil e Algarves. Coimbra, Imprensa da Universidade, 1821.

    SEYFERTH, Giralda. A inveno da raa e o poder discricionrio dos esteretipos, in: Anurio Antropolgico/93, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1995.

    SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989. SKIDMORE, Thomas. Black into white, New York, Oxford University Press, 1974. UNESCO - TRC: The race concept. Paris, Imprimerie des Arts et

    Manufactures/Unesco, 1952.