questionando o fracasso estatal um balanco da literatura critica

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69 BIB, São Paulo, nº 71, 1º semestre de 2011, p. 69-94. ,QWURGXomR Desde os atentados de 11 de setembro de 2001, tornou-se quase que senso comum dentro da área de Relações Internacionais afirmar que os chamados Estados Falidos são uma das principais ameaças à paz e segurança internacionais. Na última década, presencia- mos a produção de muitas obras dedicadas a debater as causas do fracasso e as prováveis soluções para o problema 1 e, mediante uma revisão prévia sobre tais estudos 2 , acreditamos ser possível sintetizar este debate da seguinte maneira. Primeiramente, o fracasso estatal afloraria das inabilidades ou da relutância das lideranças dos países em questão para im- plantar instituições governamentais liberais em seu interior, consideradas as mais adequa- das para o desenvolvimento das nações. Em segundo lugar, a ausência dessas instituições culminaria no surgimento de problemas in- ternos que extrapolariam as fronteiras nacio- nais e atingiriam outros países. Finalmente, a superação e reversão do fracasso seriam al- cançadas por meio de reformas em direção a um governo liberal democrático ou, no li- mite, pela reconstrução desses países, ambos os processos guiados por atores externos. É importante destacar que o foco dessas inter- venções, segundo seus propositores, se res- tringe às instituições estatais, com o intuito de aumentar a eficiência e a integridade das mesmas. Um projeto limitado em escopo e técnico por natureza, portanto. O que ainda merece a devida atenção, contudo, é a literatura de cunho crítico ao conceito Estado Falido, que vem surgindo nos últimos anos e que possibilita uma gran- de oxigenação ao debate tradicional, visto que procura fugir do que podemos chamar de “vilanização” da pobreza, isto é, os principais problemas de segurança internacional surgi- 4XHVWLRQDQGRR)UDFDVVR(VWDWDO XP%DODQoRGD/LWHUDWXUD&UtWLFD Aureo de Toledo Gomes 1 É interessante ilustrarmos a ampliação quantitativa do debate sobre Estados Falidos depois dos atentados ter- roristas de 11 de setembro de 2011 a partir da base de dados EBSCO, que reúne grande número de periódicos internacionais e é utilizada inclusive pelo site Periódicos Capes (www.periodicos.capes.gov.br). Tomando como base o ano de 1993 (publicação de Saving Failed States, de Helman e Ratner, considerado um dos textos precur- sores sobre a questão) e apenas periódicos científicos, até 2011 encontramos 223 publicações referentes ao tema. Quando refinamos a pesquisa estabelecendo o intervalo de procura entre 2002 e 2010, deparamo-nos com 213 resultados. Devemos salientar, contudo, que este levantamento apenas procurou analisar o número de vezes em que a problemática é citada, e não a natureza da análise realizada – se é favorável ou crítica ao termo Estado Falido, por exemplo. 2 Monteiro (2006) realiza uma boa revisão sobre a discussão envolvendo o impacto dos Estados Falidos para a segu- rança internacional a partir de autores como Helman e Ratner (1993), Rotberg (2004), Fukuyama (2005), entre outros. Ademais, em trabalhos anteriores, especialmente Gomes (2008, 2012), também avaliamos essa literatura sobre Estados Falidos e Reconstrução de Estados.

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Estados Falidos

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  • 69BIB, So Paulo, n 71, 1 semestre de 2011, p. 69-94.

    Desde os atentados de 11 de setembro de 2001, tornou-se quase que senso comum dentro da rea de Relaes Internacionais afirmar que os chamados Estados Falidos so uma das principais ameaas paz e segurana internacionais. Na ltima dcada, presencia-mos a produo de muitas obras dedicadas a debater as causas do fracasso e as provveis solues para o problema1 e, mediante uma reviso prvia sobre tais estudos2, acreditamos ser possvel sintetizar este debate da seguinte maneira. Primeiramente, o fracasso estatal afloraria das inabilidades ou da relutncia das lideranas dos pases em questo para im-plantar instituies governamentais liberais em seu interior, consideradas as mais adequa-das para o desenvolvimento das naes. Em segundo lugar, a ausncia dessas instituies culminaria no surgimento de problemas in-

    ternos que extrapolariam as fronteiras nacio-nais e atingiriam outros pases. Finalmente, a superao e reverso do fracasso seriam al-canadas por meio de reformas em direo a um governo liberal democrtico ou, no li-mite, pela reconstruo desses pases, ambos os processos guiados por atores externos. importante destacar que o foco dessas inter-venes, segundo seus propositores, se res-tringe s instituies estatais, com o intuito de aumentar a eficincia e a integridade das mesmas. Um projeto limitado em escopo e tcnico por natureza, portanto.

    O que ainda merece a devida ateno, contudo, a literatura de cunho crtico ao conceito Estado Falido, que vem surgindo nos ltimos anos e que possibilita uma gran-de oxigenao ao debate tradicional, visto que procura fugir do que podemos chamar de vilanizao da pobreza, isto , os principais problemas de segurana internacional surgi-

    Aureo de Toledo Gomes

    1 interessante ilustrarmos a ampliao quantitativa do debate sobre Estados Falidos depois dos atentados ter-roristas de 11 de setembro de 2011 a partir da base de dados EBSCO, que rene grande nmero de peridicos internacionais e utilizada inclusive pelo site Peridicos Capes (www.periodicos.capes.gov.br). Tomando como base o ano de 1993 (publicao de Saving Failed States, de Helman e Ratner, considerado um dos textos precur-sores sobre a questo) e apenas peridicos cientficos, at 2011 encontramos 223 publicaes referentes ao tema. Quando refinamos a pesquisa estabelecendo o intervalo de procura entre 2002 e 2010, deparamo-nos com 213 resultados. Devemos salientar, contudo, que este levantamento apenas procurou analisar o nmero de vezes em que a problemtica citada, e no a natureza da anlise realizada se favorvel ou crtica ao termo Estado Falido, por exemplo.

    2 Monteiro (2006) realiza uma boa reviso sobre a discusso envolvendo o impacto dos Estados Falidos para a segu-rana internacional a partir de autores como Helman e Ratner (1993), Rotberg (2004), Fukuyama (2005), entre outros. Ademais, em trabalhos anteriores, especialmente Gomes (2008, 2012), tambm avaliamos essa literatura sobre Estados Falidos e Reconstruo de Estados.

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    riam das inabilidades estruturais ou mesmo da relutncia poltica de pases como Afega-nisto, Iraque e Somlia, entre outros.

    Nesse sentido, o artigo procura preen-cher essa lacuna ao revisar e tentar sistema-tizar tais contribuies recentes sobre a dis-cusso. Para tanto, optamos por dividir os trabalhos em trs rubricas.

    Primeiramente, apresentaremos as cr-ticas forma como o fracasso estatal ana-lisado. Aqui cabe ressaltar que as anlises compartilham da utilidade analtica do con-ceito Estado Falido, porm divergem das metodologias empregadas para a construo dos ndices, em especial o Failed States In-dex, produzido pela Foreign Policy e o think tank Fund for Peace. Nesse sentido, um mo-vimento prvio apresentao das crticas uma apresentao, ainda que sumria, da for-ma como so construdos tais ndices, dando maior relevo para o Failed States Index.

    Em segundo lugar, apresentaremos as anlises que criticam a relao de causalidade estabelecida entre Estados Falidos e prolife-rao de grupos terroristas. fato consoli-dado que uma parte significativa de analis-tas e policy makers argumentam haver uma relao causal direta entre Estados Falidos e a proliferao do terrorismo transnacional, e que governana democrtica e reformas liberalizantes reduziriam a incidncia do ter-rorismo. Contudo, uma leva considervel de trabalhos problematiza tal relao de causa-lidade, questionando as justificativas utiliza-das para aes como a Guerra ao Terror.

    Em terceiro lugar, sistematizaremos as crticas forma como o discurso sobre Esta-dos Falidos construdo e instrumentaliza-do para ao poltica. Ainda que tais crticas sejam teoricamente informadas por aborda-gens muito distintas entre si desde anlises que destacam o papel dos interesses estra-tgicos de potncias, at aquelas inspiradas pelo ps-modernismo/ps-estruturalismo,

    ps-colonialismo e teoria crtica , os tra-balhos reunidos nessa seo apontam exata-mente para a arbitrariedade do uso poltico do conceito, assim como para suas deficin-cias ao abordar a situao dos pases consi-derados frgeis. A seo apresenta, portanto, uma diviso temtica, e no terica, para a sistematizao do debate.

    Ao final, apresentamos nossas conside-raes finais, buscando iluminar para quais direes as crticas levam a discusso sobre o fracasso estatal.

    Identificar e mensurar a fragilidade dos pases um dos principais pontos de diver-gncia entre os analistas no debate sobre o fracasso estatal. Nesse tocante, certamente o trabalho mais conhecido o Failed Sta-tes Index, do peridico Foreign Policy e do think tank Fund for Peace, que se prope a ser uma ferramenta crtica no apenas para destacar as presses normais que os Estados enfrentam, mas tambm identificar quando estas presses esto os levando para o limite do fracasso (Fund for Peace, 2011, p. 8). Um ponto que precisa ao menos ser sinte-tizado so as cinco etapas pelas quais passa a construo dos ndices sobre Estados Fali-dos, seja ele o do Fund for Peace ou os de-mais que iremos revisar. Ainda que ndices como o Failed States Index no sejam crticos ideia de Estado Falido, importante desta-car como tais ferramentas so construdas e apontar as divergncias entre os analistas so-bre as maneiras mais precisas de se apreender o fracasso estatal.

    Em primeiro lugar, h a definio do conceito de base (background concept), que consiste em fixar o entendimento dos for-muladores do ndice sobre o que seria fragi-lidade. Dessa forma, tendo-se em mente que fragilidade aqui se refere ao Estado, os ndi-

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    ces procuram definir o que seria tal entidade para, a partir da, tentar averiguar as fragili-dades dos pases em questo. Teramos desde definies minimalistas, relativas, sobretu-do, ideia do monoplio do uso legtimo da violncia, at abordagens mais amplas, as quais incluem boa governana, democracia e proviso de servios pblicos. Muitas ve-zes existe uma teoria de base, implcita ou explcita, que informa qual a concepo de Estado adotada.

    O segundo movimento a sistematizao do conceito, ou seja, a partir do carter terico do termo, caminha-se sua operacionalizao. Trata-se aqui de identificar quais so os atri-butos do conceito que permitiriam ao analista visualiz-lo empiricamente. Na maioria dos ndices criados, os atributos escolhidos so aqueles elementos considerados como setores constituidores de um Estado, destacando-se as esferas poltica, econmica, social, de seguran-a e, por vezes, a ambiental. Assim, parte-se da ideia de quais servios um Estado deveria prover aos seus cidados para ser considerado bem-sucedido, alm do monoplio do uso le-gtimo da violncia. importante frisar aqui que a discusso sobre a legitimidade do Estado restringe-se ao provimento de servios: legti-mo o Estado que consegue prover de maneira eficiente os servios considerados essenciais para a sua populao.

    A terceira etapa consiste na obteno de dados, isto , uma vez selecionadas as esfe-ras que constituem um Estado, trata-se agora de recolher dados que as caracterizariam. Os dados a serem recolhidos podem ser de trs tipos: indicadores de entrada (input indica-tors), referentes existncia ou qualidade de condies estruturais. As perguntas postas por tais indicadores demandam respostas de tipo sim ou no, tais como: Existe uma diviso de poderes no pas?; O pas ratifi-cou as convenes internacionais de direitos humanos?, entre outras. O segundo tipo so

    os indicadores de processo (process indicators), que medem os esforos para se alcanar de-terminado resultado. Dentre eles, podemos destacar a porcentagem do PIB em gastos de sade, a porcentagem do PIB em gastos mi-litares e a relao professor-aluno em escolas primrias. Por fim, o terceiro tipo so os in-dicadores de resultados (output indicators), que procuram medir os resultados das aes, que incluem o nmero de mortes em combates no ano, ndice de desemprego etc.

    Ainda referente aos dados, boa parte dos ndices faz uso de quatro metodologias especficas para coleta dos mesmos. Temos, primeiramente, as estatsticas pblicas (pu-blic statistics), coletadas pelos governos dos pases, organizaes internacionais e orga-nizaes no governamentais; em segundo lugar, os dados produzidos por especialistas (expert data), os quais se ancoram na ideia de que algumas pessoas mais envolvidas em determinados processos so mais capazes de fazer julgamentos sobre tais eventos; e, final-mente, as pesquisas de opinio (opinion polls), que procuram obter respostas de uma par-cela considerada representativa da populao total do pas em tela.

    Dois problemas comumente observados nesses procedimentos so as possibilidades de ocorrerem erros randmicos, aqueles que apare-cem em razo da grande quantidade de dados a serem obtidos, cujo exemplo mais comum seria quando, em um questionrio, os entre-vistados preenchem lacunas erradas, e erros sistemticos, aqueles nos quais a mensurao no corresponde ao conceito ao qual deveria fazer referncia. Um exemplo interessante seria a tentativa de se averiguar a capacidade estatal mediante a verificao de casas com saneamento bsico; se em um pas esta no competncia estatal, o dado seria assim clara-mente enviesado. Ademais, quando se trata de Estados Falidos, outro problema comum se-ria, por exemplo, determinar o que seria uma

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    parcela representativa da populao, como coletar dados primrios sobre provimento de servios, alm do fato de que a fonte das in-formaes pode ser bastante questionvel, vis-to que o governo, fonte comum desses dados, est sendo questionado pela populao e pelos construtores do ndice.

    A quarta etapa o clculo dos ndices, ou seja, a quantificao do conceito. Para tanto, as diferentes escalas de dados (por-centagens e moedas, por exemplo) precisam ser padronizadas, ou seja, os valores desses dados so transformados em uma variao fixa de nmeros, com um mnimo e um m-ximo definidos para que se possam comparar os pases. A seguir, os dados so agregados, isto , combinam-se os mesmos mediante operaes matemticas, uma vez que no h apenas um indicador que possa ser usado para representar a fragilidade estatal. Dessa forma, os analistas usam vrios dados que re-presentam os atributos da fragilidade estatal e os combinam em um ndice. A maior par-te dos ndices sobre Estados Falidos faz uso de dados compostos, ou seja, aqueles que se embasam em diferentes atributos e so, por-tanto, multidimensionais. Podem ser inclu-dos no mesmo ndice, entre outras variveis, o PIB, os ndices de mortalidade infantil e o nmero de homicdios3.

    Um grande problema da agregao de dados em ndices de fragilidade estatal refe-re-se atribuio de um valor para cada setor sob avaliao. Para ilustrar o argumento, o exemplo que Sann (2011) nos d esclare-

    cedor: se compararmos duas variveis que esto em setores diferentes do Failed States Index, como fuga de crebros devido a perse-guio ou represso e surto de violncia poltica contra inocentes civis, veremos que as mesmas so consideradas equivalentes em termos numricos. Todavia, o que isso quer dizer? Poderamos questionar que, como bem o faz Sann (2011, p. 30), a repatriao de um (ou mais de um) cientista compensaria por um massacre de inocentes? Assim, segundo o autor, nesse tipo de clculo h um pressu-posto implcito sobre a possibilidade de uma taxa de substituio entre as variveis, mas em contextos sociais e polticos tal pressu-posto no consegue se sustentar.

    Por fim, a ltima etapa consiste na visu-alizao dos nmeros, que so comumente apresentados em rankings ou em mapas. guisa de ilustrao, segue a visualizao pro-posta pelo Failed States Index de 2011, com as primeiras 15 entradas do ranking, alm da visualizao cartogrfica, dos mais estveis aos em estado mais crtico4:

    O Failed States Index possui algumas especificidades que merecem ateno. Pri-meiramente, a coleta dos dados realizada pela prpria equipe: alm de dados prim-rios adquiridos da Organizao Mundial da Sade, do Banco Mundial, do Alto Comis-sariado das Naes Unidas para Refugiados e do Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento, os analistas, mediante um software denominado CAST (Conflict Assessment System Tool) fazem uma anlise

    3 Uma importante limitao tcnica do clculo dos ndices d-se quando o clculo desconsidera o conceito de base. Se o conceito de base destaca que um elemento de suma importncia para a compreenso da fragilidade a falta de segurana, um mtodo de agregao que combine, alm de dados primrios sobre segurana, mas tambm dados de economia, poltica e programas sociais no seria aceitvel, visto que as outras dimenses poderiam compensar a falta de segurana e distorcer a real posio do pas no ndice.

    4 Tabela e mapa foram extrados de: . Acesso em: 10 fev. 2012.

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    Quadro 1

    As Primeiras 15 Entradas do Ranking

    Quadro 2

    Failed States Index 2011

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    de contedo (content analysis) de relatrios e artigos em lngua inglesa adquiridos de uma organizao de notcias chamada Meltwater. Em outras palavras, os relatrios e artigos so processados pelo software que, utilizando lgebra booleana, procura nos documentos informaes sobre conflitos, violncia e ou-tras variveis nos 177 pases sob anlise, com

    base em 12 indicadores5, separando as infor-maes relevantes das irrelevantes.

    Failed States Index

    Dentre os problemas do ndice, trs de-les so especialmente destacados por crticos

    5 Os indicadores sociais so: (1) presso demogrfica; (2) movimento de refugiados e de pessoas dispersas interna-mente; (3) legado de vingana por parte de faces internas; (4) fuga humana crnica e sustentvel. Os indicadores econmicos so: (5) crescimento desigual entre os grupos da populao; (6) declnio econmico acentuado e/ou severo. Os indicadores polticos so: (7) criminalizao e/ou deslegitimizao do Estado; (8) deteriorao progres-siva dos bens pblicos; (9) suspenso ou aplicao arbitrria do Estado de Direito e violaes de direitos humanos; (10) aparato de segurana operando como um Estado dentro de um Estado; (11) ascenso de faces de elites; e (12) interveno de outros Estados ou de atores polticos.

    Quadro 3

    Failed States Index

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    como Sann (2011). Em primeiro lugar, a metodologia, os dados dos indicadores, as palavras-chave utilizadas nas buscas da an-lise de contedo, e possveis erros de men-surao no so completamente descritos no site e na revista, o que impede, por exemplo, a replicao do ndice por outros pesquisa-dores. Em segundo lugar, as publicaes uti-lizadas nas anlises de contedo restringem--se s de lngua inglesa, ainda que tradues de outras fontes para o ingls estejam em planejamento. Por fim, a categorizao e a visualizao so, no mnimo, controversas: enquanto na revista Foreign Policy os pases so divididos em estados crtico (critical), em perigo (in danger), no limite (borderline), es-tvel (stable) e mais estvel (most stable), no site do Fund for Peace, como podemos ver na figura abaixo, os mesmos so visualiza-dos mediante os termos em alerta (alert), em aviso (warning), moderado (moderate) e sustentvel (sustainable), o que pode acar-retar problemas de avaliao de pases. Se nos atentarmos para a situao africana, no mapa da Foreign Policy h muitos pases em situao crtica, enquanto, no site do Fund for Peace6, os mesmos pases so vistos em situao de aviso.

    Na poca de sua publicao, o Failed Sta-tes Index provocou debates acalorados, com crticas vindas das mais diferentes esferas7. Alm de crticas posio de determinados pases no ranking, outros analistas questiona-

    ram a metodologia utilizada, apontando suas deficincias e propondo novas formas de se pensar a fragilidade estatal. Em especial, uma das crticas mais constantes ao Failed States Index girou em torno dos indicadores escolhidos para se avaliar o desempenho dos pases e como estes se relacionariam entre si. Goldstone (2008, p. 287) sintetiza esse pro-blema ao afirmar que:

    [...] simplesmente listar os indicadores no pro-porciona nenhum sentido sobre como eles se com-binam, ou qual tem mais peso, para se chegar ao fracasso estatal. Logo, o Failed States Index funcio-na mais como um checklist de itens para os policy makers considerarem com relao estabilidade dos pases. Ademais, possui valor limitado como guia para indicar o que muda ou a que processos procurar e responder em polticas direcionadas para fortalecer ou lidar com Estados em processo de falncia8.

    No mesmo diapaso, surgiram outras obras tambm interessadas em identificar Estados Falidos, as quais merecem ser ava-liados. Os trabalhos de David Carment e seus colegas do projeto Country Indicators for Foreign Policy, da Canadian Internatio-nal Development Agency, inovam ao propor uma nova forma de se pensar a fragilidade dos Estados, colocando os pases sob anlise num continuum de fora/fraqueza, a partir de seus desempenhos em determinados in-dicadores. Criticando as abordagens que se restringem ora no nvel macro que privile-

    6 7 Por exemplo, o ento embaixador colombiano na ONU, Luis Alberto Moreno, afirmara que seu pas, a despeito

    dos problemas com grupos armados ilegais, uma democracia pluralista caracterizada por uma sociedade civil politicamente ativa e por uma imprensa livre e que listar a Colmbia como pas em situao crtica seria ultrapas-sado e impreciso (apud Foreign Policy, 2005, p. 4). Nesse caso especfico, a resposta dos idealizadores do ndice calcou-se no fato de que o fracasso seria um fenmeno com vrias dimenses e que a grande utilidade do Failed States Index estaria justamente no cruzamento dessas dimenses. Assim, apenas um governo democrtico e estvel no seria garantia de que um pas poderia deixar de ser considerado falido.

    8 Todas as tradues livres do ingls para o portugus apresentadas ao longo do texto so de nossa inteira responsa-bilidade e para uso exclusivo neste trabalho.

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    giam as abordagens de mudana sistmica e seus impactos nos Estados fracos , ora no nvel intermedirio anlises de cunho insti-tucional, as quais centram suas atenes nas estruturas polticas e econmicas dos pases , ora no nvel micro as quais olham pro-cessos especficos, em especial a dinmica de conflitos internos , Carment (2003) avan-a na necessidade de abordagens que com-binem todos os nveis, agregando mtodos economtricos e pesquisas de campo9. Outra inovao dos trabalhos a definio de fragi-lidade, agora vista de forma relacional e em graus, no em tipos.

    Um Estado pode ser forte segundo um indicador e fraco de acordo com outro. Argumentamos que o referencial para compreenso da fragilidade estatal no deve ser o desempenho passado, presente ou futuro em termos absolutos, mas sim em termos relativos vis--vis outros Estados em dado ponto. A mudana, que compreendida ao examinarmos o desempenho relativo de um pas, seja progressi-va ou regressiva, nos diz se um Estado est cami-nhando rumo ao fracasso ou se sua situao est melhorando. [...] Em suma, fragilidade no deve ser associada com um ponto final a partir do qual o pas no pode piorar. [...]Argumentamos tambm que fragilidade uma medida para verificar se as prticas e capacidades correntes dos Estados diferem de sua imagem ide-alizada. uma questo de grau, no de tipo. [...] uma medida para se verificar se as instituies, fun-es e processos polticos dos pases correspondem imagem do Estado soberano, aquele reificado nas teorias do Estado e no direito internacional. Pela nossa definio, todos os pases so, em alguma medida, frgeis (Carment; Samy, 2011, p. 3).

    O grupo liderado por Jack A. Golds-tone, da School of Public Policy da George Mason University, tambm buscou inovar a forma de se pensar a fragilidade estatal, privilegiando anlises de cunho institucio-nalista, mensurando como instituies dos pases reagiram diante de desafios internos e externos. Apesar de terem iniciados seus trabalhos antes da publicao do Failed Sta-tes Index especificamente em 1994, sob o nome de State Failure Task Force e finan-ciados pela CIA , Goldstone e seus cole-gas ganharam mais destaque aps o 11 de setembro e a avalanche de trabalhos sobre Estados Falidos. Segundo os autores, sob o conceito de fracasso estatal teramos quatro grandes eventos que indicam grave instabi-lidade poltica:

    Guerras revolucionrias: embates entre o governo e grupos organizados que ten-tariam derrub-lo;Guerras tnicas: conflitos entre o gover-no e grupos tnicos, religiosos ou mino-rias cuja meta seria mudar o status quo;Mudanas adversas de regime: mudan-as abruptas na forma de governana, desde colapsos estatais, instabilidades polticas e transies de democracias para regimes autoritrios;Genocdios e politicdios: polticas de governo que poderiam resultar na morte de grupos minoritrios inteiros10.

    9 Diferentemente do Failed States Index, os trabalhos do grupo de Carment, em especial o relatrio de 2006, ava-liam os pases segundo seus desempenhos em 10 reas mediante o uso de 74 indicadores, em contraposio aos 12 indicadores do ndice do Fund for Peace e da Foreign Policy. Os dados do grupo de Carment foram coletados de estatsticas pblicas e da anlise de especialistas. A grande fraqueza do ndice de Carment, de forma similar ao Failed States Index, que a metodologia no est claramente apresentada na publicao.

    10 O banco de dados utilizado no relatrio de 2000 incluiu 114 eventos ocorridos em diversos pases com populao acima de 500 mil habitantes, no perodo de 1955 a 1998. Em trabalhos mais recentes, como os de 2008 e 2010, o banco de dados lista os eventos ocorridos at 2003.

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    De acordo com os trs relatrios produ-zidos pelo grupo e publicados entre 1995 e 2000, das condicionantes analisadas pelos autores, quatro foram positivamente associa-das com as instabilidades polticas acima ar-roladas, quais sejam: (1) a qualidade de vida da populao; (2) o tipo de regime poltico de um pas e a natureza de suas instituies; (3) influncias internacionais, tais como o comrcio externo, participao em organiza-es internacionais e conflitos com pases vi-zinhos; e (4) a composio tnica e religiosa de sua populao. Ou seja, quando ocorrem alteraes negativas em qualquer dessas qua-tro variveis, instabilidades polticas podem ameaar a estabilidade dos pases.

    A partir de 2003, o grupo foi rebati-zado para Political Instability Task Force e continuou envidando esforos para refinar suas anlises. Em artigo de 2008, Goldstone destacou duas qualidades essenciais que todo Estado deve ter para se manter estvel: efeti-vidade e legitimidade. Enquanto efetividade referir-se-ia a quo bem um pas consegue executar suas funes essenciais, como pro-vimento de segurana, promoo de cresci-mento econmico, oferta de bens pblicos, entre outros; legitimidade refletiria se tais funes so percebidas pelas elites e pela po-pulao como justas ou razoveis nos termos das normas sociais correntes.

    Segundo Goldstone (2008), existem cinco caminhos principais que facilitariam a instabilidade poltica, aumentando as chan-ces do fracasso: (1) a escalada de conflitos tnicos ou grupais, cujos melhores exemplos seriam Ruanda, Libria e Iugoslvia; (2) pre-dao estatal (state predation), caracterizada pela corrupo de recursos por parte das eli-tes em detrimento de outros grupos, exem-plificado pelos casos da Nicargua, Filipinas e Ir; (3) rebelies regionais ou guerrilhas, exemplificadas pela Colmbia e Vietn; (4) colapso democrtico, resultando em guerra

    civil ou golpe de Estado, representados pelos casos da Nigria e Nepal; e (5) sucesses ou crises em Estados autoritrios como a Indo-nsia sob o governo de Suharto e o Ir sob o domnio do X Reza Pahlevi.

    A carncia de anlises empricas e a pre-sena de generalizaes simplistas na litera-tura que fracassariam em distinguir catego-rias distintas como Estados Fracos e Estados Falidos, e em explicar como pases especfi-cos podem ser associados com determinadas ameaas, so dois dos principais problemas identificados por Stewart Patrick (2007). Sem uma definio consensual, a tendncia agrupar Estados muito distintos num mes-mo grupo, subestimando no apenas as es-pecificidades histricas e culturais, mas tam-bm os desafios particulares pelos quais cada um passa, resultando em solues que seriam em tese adequadas para todos os casos, mas que no lidariam de forma precisa com as peculiaridades de cada pas.

    Ainda segundo Patrick (2007), o con-ceito Estado Falido no habilitaria o analista a diferenciar pases que no teriam capacida-de para oferecer os bens pblicos sua popu-lao daqueles que no estariam interessados em ofertar tais bens. Em ltima instncia, qual o ganho analtico em agrupar na mesma categoria a Coreia do Norte, cujo lder tem s mos um dos maiores exrcitos do mundo e que no estaria interessado em reformar o sistema poltico e econmico do pas, e Ti-mor Leste e Libria, cujos governos, segundo o autor (p. 647), demonstram interesse mas carecem das capacidades para lidar com as imensas dificuldades de suas sociedades?

    Por fim, Patrick levanta trs objees normativas ao conceito: em primeiro lugar, muitos pases jamais alcanaram o status de Estados efetivos, ou seja, nunca conseguiram prover todos os bens que a literatura argu-menta serem deveres dos Estados para com suas sociedades; em segundo lugar, ao apon-

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    tar os problemas internos dos Estados Fali-dos como causa das ameaas transnacionais contemporneas, ignora o fato de que mui-tos pases considerados bem-sucedidos con-triburam para a corrente situao daqueles vistos como frgeis e, por fim, esse enquadra-mento encorajaria polticas de reconstruo de Estado que privilegiariam regimes que garantissem a ordem e estabilidade em detri-mento de democracias.

    Apesar das crticas pertinentes, o autor enxerga mritos em ranquear pases de acordo com o desempenho dos mesmos em prover bens pblicos para suas populaes, pois tais ndices ajudariam a superar debates sobre como adjetivar determinados Estados (em co-lapso, falidos, fracos, entre outras categorias), indicariam que lacunas institucionais deve-riam ser preenchidas para que as autoridades nacionais e agentes externos possam saber precisamente quais as fontes de instabilidade e, por fim, contribuiriam para direcionar de forma mais adequada os recursos econmicos.

    Assim, juntamente com Susan Rice, o autor prope o Index of State Weakness in the Developing World (2009), o qual avalia 141 pases vis--vis suas capacidades no desem-penho de funes relativas segurana, pol-tica, economia e bem-estar social, avaliados mediante o uso de vinte indicadores11. No que tange segurana, os indicadores procu-rariam avaliar se o Estado capaz de manter a segurana para seus cidados e sua sobe-

    rania ao longo do territrio. Uma segunda leva de indicadores julgaria em que medida o governo do pas legtimo e capaz, avaliando a responsividade (accountability) do Estado para com seus cidados e se o mesmo gover-na de maneira efetiva e transparente. Com relao economia, os indicadores analisa-riam a capacidade do pas em garantir um ambiente econmico estvel, a qualidade das polticas econmicas e das medidas regulat-rias, a fora do setor privado e a distribuio de renda. Ademais, o bem-estar social seria mensurado a partir de capacidade do Estado em garantir sade, educao, acesso gua potvel, entre outras variveis.

    A inovao do ndice proposto por Rice e Patrick (2009) em contraposio ao Fai-led States Index a utilizao de indicadores distintos para se mensurar o fracasso estatal. Segundo Patrick (2007), o Failed States In-dex privilegia indicadores relacionados ao risco de violncia, no agregando de maneira satisfatria outras variveis que permitiriam uma melhor compreenso das capacidades institucionais dos pases. De acordo com esse autor, a partir da diferena entre capacidade institucional para se oferecer bens pblicos e comprometimento governamental para se levar adiante esta mesma tarefa:

    possvel diferenciar quatro grandes categorias de Estados: (1) aqueles com bom desempenho e com vontade e comprometimento; (2) Estados

    11 Os indicadores utilizados pelos autores para a rea de segurana so os seguintes: conflict intensity, political ins-tability and absence of violence, incidence of coups, gross human rights abuses, territory affected by conflict. Os indicadores para a rea poltica so os seguintes: government effectiveness, rule of Law, control of corruption, voice and accountability, freedom house. No que tange economia, os indicadores so: GNI per capita, GNP growth, income inequality, inflation rate, regulatory quality. Por fim, com relao ao bem-estar social, temos: child morta-lity, primary school completion rate, undernourishment, access to improved water and sanitation, life expectancy. A coleta de tais indicadores foi realizada por meio de estatsticas pblicas de agncias e organismos internacionais, tais como o Banco Mundial (economia), Freedom House (poltica), Center for Systemic Peace (segurana), Poli-tical Instability Task Force (segurana) e Governance Matters (poltica e segurana), alm de pesquisas de opinio e anlise de especialistas.

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    fracos, mas com comprometimento; (3) Estados que possuem os meios, mas que no tem compro-metimento; e (4) aqueles os quais no possuem nem capacidade nem comprometimento para o exerccio de suas tarefas (Patrick, 2007, p. 651).

    Com essa nova categorizao, seria possvel problematizar a conexo entre pa-ses considerados fracos e ameaas trans-nacionais, em especial o terrorismo. Desse modo, o autor destaca que: (1) nem todos os Estados Falidos possuem grupos terro-ristas em seu interior; (2) os atentados que ocorrem em Estados Falidos no tm carter transnacional, privilegiam alvos domsticos e so motivados por divergncias polticas; (3) grupos terroristas tendem a optar por Estados fracos como o Paquisto ou Qu-nia, pois, ao mesmo tempo que so frgeis e suscetveis corrupo, possibilitam acesso a uma estrutura financeira e logstica; e (4) a partir de uma organizao descentralizada, mediante a utilizao de clulas, hoje a ideia de santurios para atividades terroristas no seria mais to atrativa.

    Segundo Mata e Ziaja (2009), uma das grandes fraquezas do ndice de Patrick e Rice que, metodologicamente, no traz nenhuma inovao, seja na forma como os dados so coletados ou mesmo na criao de softwares. Ademais, podemos ainda destacar que o ndice restringe-se aos pases em de-senvolvimento, e que apesar de ter sido uma escolha deliberada dos autores, traz consigo uma questo tica importante: apenas os pa-ses considerados fracos e em desenvolvimen-to merecem ser avaliados? Para alm, Sann (2011, p. 35) aponta trs grandes problemas dos ndices sobre fragilidade estatal, porm no exclusivos, no trabalho de Rice e Patrick (2009) e extensivos s demais tentativas de se mensurar o fracasso estatal:

    Primeiramente, os conceitos a serem operaciona-lizados lidam com muitas formas de incerteza e

    geralmente so muito obscuros e tm fronteiras difceis de serem claramente delimitadas. Em se-gundo lugar, so altamente multidimensionais. No temos a nosso dispor ferramentas que nos ha-bilitem a reduzir todas as variveis polticas a uma unidade numrica. Imagine que almejemos agre-gar os direitos das mulheres e violncia. Quantas mortes seriam equivalentes a uma dada melhora na situao feminina em dado pas? [...] Em ter-ceiro lugar, ndices polticos trabalham com dados corrompidos, deteriorados e muitas vezes verbais (e que em muitos casos levam o nome de dado apenas por analogia).

    Nessa seo, portanto, a reviso do de-bate centrou-se nas maneiras consideradas mais adequadas para se apreender o fen-meno do fracasso estatal. Apesar de, meto-dologicamente, os trabalhos apresentarem diferenas substanciais, ontolgica e episte-mologicamente compartilham da ideia de que os chamados Estados Falidos so uma realidade e que possvel capturar suas ca-ractersticas principais para, assim, reform--los. Outro ponto em comum das aborda-gens revisadas a ideia de que o fracasso um fenmeno essencialmente domstico e, por isso, a nfase nas reconstrues das ins-tituies estatais. So trabalhos eminente-mente policy-oriented e que almejam servir de recursos para a interveno na realidade dos pases em tela.

    terrorismo

    Aps os atentados de 11 de setembro de 2001, aqueles favorveis s intervenes em Estados Falidos apontavam para o fato de que grupos terroristas poderiam fazer uso de tais pases como santurios para suas aes, sendo a Al Qaeda no Afeganisto durante o regime do Talib (1996-2001) a confirmao cabal dessa relao. No obstante, uma leva de estudos procurou testar empiricamente as premissas de que haveria uma relao de

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    causalidade entre Estados considerados fali-dos e a proliferao de grupos terroristas, as-sim como o argumento de que a governana democrtica e reformas liberalizantes reduzi-riam a incidncia do terrorismo. So tais tra-balhos o objeto de estudo da corrente seo.

    Especificamente sobre a relao de cau-salidade entre Estados Falidos e a prolifera-o do terrorismo, destaca-se a contribuio de James Piazza que, desde 2006, envida es-foros para encontrar quais seriam os prin-cipais determinantes para a proliferao de grupos terroristas. No trabalho de 2006, mediante anlises de regresso mltipla e tendo como variveis dependentes os inci-dentes terroristas e o nmero de vtimas em 96 pases, entre 1986 e 2002, o autor pro-curou encontrar a importncia de variveis como pobreza, desnutrio, desigualdade de renda, desemprego, baixo crescimento econmico como determinantes do terro-rismo12. Todavia, segundo o autor, variveis como o tamanho da populao, diversidade tnica e religiosa, represso estatal e o sis-tema partidrio, em suma, a forma como a estrutura estatal lida com questes relativas oportunidade de acesso ao aparato polti-co e formulao de polticas pblicas so mais significativas do que os fatores ante-riormente listado, problematizando assim a ideia de que pobreza e terrorismo esto intimamente ligados.

    No estudo de 2008, no qual procurou verificar se democracia e mercado livre se-riam positiva ou negativamente associados proliferao do terrorismo, o autor apresenta a seguinte concluso:

    Os resultados fracassam em fornecer suporte para as duas hipteses testadas neste estudo: que pases democrticos so negativamente relacionados com a incidncia do terrorismo internacional; e que polticas econmicas pr-mercado so negativa-mente relacionadas com a incidncia do terroris-mo internacional. Os resultados batem de frente com os pressupostos que aliceram a atual poltica contra-terrorismo dos EUA que o terrorismo produto de sistemas polticos e econmicos no liberais e apontam para populao, estabilida-de poltica e possivelmente fatores relacionados demografia religiosa como mais importantes na previso e preveno do terrorismo (Piazza, 2008, p. 83)13.

    Aidan Hehir outro autor que busca questionar a causalidade em tela. Em seu artigo de 2007, o autor cruzou os dados da lista de Organizaes Terroristas Internacio-nais (Foreign Terrorist Organizations FTO), que, segundo o Departamento de Estado dos Estados Unidos, enumeraria os principais grupos que representam ameaas seguran-a norte-americana, e o Failed States Index. Dessa interseco, o autor argumenta ser possvel tirar trs concluses:

    Primeiro, a falta de qualquer relao entre o grau de fracasso de um Estado e o nmero de grupos

    12 Os dados utilizados pelo autor so o ndice de Desenvolvimento Humano (IDH), utilizado pela ONU para o relatrio anual do Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento (PNUD); o coeficiente de GINI, ndice criado para mensurar a desigualdade na distribuio de renda; o PIB dos pases sob anlise; alm das taxas de in-flao e desemprego dos mesmos e o nmero de calorias ingeridas pelas pessoas por dia nesses pases. Essa ltima varivel, segundo Piazza, seria importante para ajudar a verificar se a associao pobreza-terrorismo vlida, visto que em pases com pouca ingesto de calorias indicaria baixa estabilidade alimentar e a possibilidade de altos ndices de inanio e fome.

    13 Mediante anlises estatsticas, Piazza (2008) relaciona os atentados terroristas ocorridos entre 1986 e 2003, com-pilados na publicao Patterns of global terrorism, do departamento de Estado dos EUA com quatro variveis que medem a liberdade poltica e econmica de um pas, criados pela Freedom House, pela Heritage Foundation e pelo Frasier Institute.

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    terroristas ali baseados; segundo, a pouca dife-rena no nmero de incidentes de terrorismo nos pases alocados nas primeiras vinte posies do n-dice de Estados Falidos [por exemplo, 11 estados listados na Tabela 3 (Estados Falidos e Terroris-mo) Repblica Democrtica do Congo, Costa do Marfim, Chade, Haiti, Guin, Libria, Rep-blica Centro-Africana, Coreia do Norte, Burundi, e Serra Leoa juntos totalizam oito fatalidades durante o perodo de 1998-2006 e no possuem nenhuma Organizao Terrorista Internacional]; terceiro, a presena de nmeros significativos de Organizaes Terroristas Internacionais em Esta-dos que em tese no poderiam ser avaliados en-quanto fracassados, sendo at considerados como democrticos (Hehir, 2007, p. 317).

    Com raciocnio semelhante, Newman (2007) avalia a causalidade entre Estados Falidos e terrorismo ao comparar as orga-nizaes terroristas consideradas mais pe-rigosas vis--vis os pases a partir dos quais elas surgem e operam, procurando identi-ficar possveis padres ou correlaes entre o habitat dos terroristas e tipos de regimes polticos. Tambm compara uma amostra de pases usualmente considerados fracos ou falidos14 e a quantidade de atentados terro-ristas que ocorreram em seus territrios. A primeira comparao capacitou Newman a afirmar que grupos terroristas apresentam operaes mais significativas em pases de-mocrticos e nos quais o governo consegue projetar poder sobre o territrio; a segunda, por sua vez, mostrou que a despeito de baixo desempenho na proviso de bens pblicos e na proteo de direitos humanos, pases con-siderados fracos ou falidos no apresentam necessariamente atividades terroristas em seus territrios. Assim, o autor assevera que no h relao conclusiva entre terrorismo e

    Estados Falidos: apesar de grupos terroris-tas operarem a partir de alguns pases tidos como frgeis, a maioria deles no possui ati-vidade terrorista significativa.

    Por fim, outro estudo seminal o de Pape e Feldman (2010), que, ao apresentar o que seriam as principais causas dos aten-tados terroristas contemporneos, ainda que no diretamente, questiona fortemente a tese da associao Estados Falidos-terroris-mo. Segundo os autores, o terrorismo suici-da, nacional ou transnacional, origina-se da mesma causa, qual seja, a ocupao militar externa, e, enquanto a mesma persistir, a tendncia a termos tais fenmenos persisti-r. Um segundo achado dos autores que as diferenas religiosas entre os interventores externos e a populao do pas ocupado uma varivel que permite compreender por que determinadas intervenes culminam em ataques suicidas e outras no. Ademais, a ocupao de comunidades afins (kindred com-munities), relativas determinada cultura ou religio, e no necessariamente determinado pas, o principal fator que leva um indi-vduo a cometer um atentado suicida. Dito de outra forma, a presena norte-americana na Arbia Saudita, em terras consideradas sagradas pelos muulmanos, seria uma con-dicionante mais poderosa para o terrorismo suicida do que o fracasso estatal.

    Logo, mediante tais trabalhos, vemos que as alegaes para intervenes e recons-trues de Estados tendo em mente uma possvel proliferao de grupos terroristas em seus territrios algo bastante controverso, longe de ser consensual entre parte conside-rvel dos analistas interessados no tema.

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    Em sua anlise sobre o conceito de fra-casso estatal, Pureza e seus colegas (2007) apontam para o fato de que a literatura tradi-cional comunga de dois pressupostos bsicos, de certa forma j apresentados nas sees an-teriores: Estados fracassam porque no pos-suem as capacidades institucionais, econ-micas e polticas para se manterem enquanto entidades polticas legtimas e autnomas; e a falta de tais capacidades sobremaneira re-sultante de problemas de governana interna. Para alm, os autores argumentam que Esta-do Falido um conceito negativo, descritivo e prescritivo: refere-se a algo que no est ex-plcito, no caso, o Estado democrtico liberal ocidental, ao afirmar que alguns pases fra-cassaram em atingir esse determinado pata-mar; descreve as situaes de diferentes pases como casos permanentes de crises e caos; e prescrevem que tipo de caractersticas e capa-cidades os Estados devem ter. Nesse sentido, conforme Newman (2009, p. 437):

    O uso da categoria Estado Falido quando apli-cada, por que, e com quais consequncias no sempre resultado de uma verdade objetiva ou da realidade, mas sim de uma interpretao subjetiva de eventos que prioriza Estados Falidos, mas ne-gligencia por exemplo desafios ambientais ou mesmo epidemias. Como uma demonstrao da importncia das construes polticas, a realidade emprica dos Estados Falidos muitas vezes me-nos importante do que a percepo que poderosos atores tm do conceito e das ameaas com as quais se deparam.

    A partir dessa constatao, selecionamos um grupo de estudos crticos que problemati-za a forma como o conceito de Estado Falido foi construdo e vem sendo instrumentaliza-do. Em outras palavras, esses estudos privi-legiam, cada qual a seu modo, em que cir-cunstncias o conceito seria usado, quais os

    impactos dessa utilizao, assim como quais pressupostos estariam implcitos na termino-logia e como se d a lgica de construo in-terna desses discursos, questionamentos estes nada desprezveis, embora pouco trabalhados pelo mainstream acadmico e poltico.

    O que une os primeiros trabalhos a se-rem revisados nessa seo a nfase nas cir-cunstncias e nas consequncias da utiliza-o do conceito Estado Falido, destacando como os interesses de determinados atores, especialmente as grandes potncias, podem estar sendo mascarados sob o debate do fra-casso estatal.

    Em alguma medida, tal ponto j foi sa-lientado pelo prprio peridico Foreign Po-licy, quando da publicao do Failed States Index de 2009. A reportagem centra-se na diferena entre as vises norte-americana e chinesa sobre a situao dos pases do Ter-ceiro Mundo, destacando o fato de que, na nsia por matrias-primas e energia, Pequim vem recorrentemente buscando investimen-tos em pases que, segundo a agenda de se-gurana dos Estados Unidos, seriam consi-derados falidos e, no mnimo, de alto risco. Contudo, alm do acesso a esses insumos, a China tambm estaria conseguindo apoio poltico de diversos pases em temas sensveis da poltica externa chinesa, como o isola-mento de Taiwan e votaes relativas a direi-tos humanos na ONU. Segundo dados arro-lados pelo jornal O Estado de So Paulo, de 14 de fevereiro de 2011, apenas na Arglia, empresas chinesas j tm contratos fechados de mais de 20 bilhes de dlares, e a atuao de Pequim em pases como Sudo, Zmbia e frica do Sul visa garantir o acesso irrestrito a matrias-primas necessrias. Logo:

    [...] enquanto os EUA e seus aliados discursam para autocratas do Terceiro Mundo sobre boa governana e transparncia, engenheiros chineses constroem estradas paras as casas de final de sema-na dos ditadores (Halper, 2010, p. 99).

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    O que outros autores fazem mostrar que visualizar o fracasso estatal mais como oportunidades do que como riscos no privilgio chins. Bs e Jennings (2007), ao mapear as circunstncias em que o ter-mo foi utilizado avanam na hiptese de que pases adjetivados de falidos so aqueles nos quais a recesso e informalizao do Estado na medida em que as decises sobre dis-tribuio e redistribuio de bens e recursos ocorrem fora e entre as estruturas estatais so considerados uma ameaa aos interesses do Ocidente. Em outros pases, contudo, esse funcionamento do Estado no apenas aceitvel, mas em certa medida facilitado, uma vez que pode vir a criar condies mais propcias para negcios. Classificar (ou no) Estados como falidos seria um meio para delinear repostas polticas consideradas mais adequadas para esses pases.

    Nos casos de Afeganisto e Somlia, Bs e Jennings (2007) argumentam que prevaleceu o enquadramento securitrio, ou seja, a situao de tais pases foi percebida como ameaa aos interesses norte-america-nos, resultando em respostas militares para as duas conjunturas. No Afeganisto, os autores destacam que o regime do Talib controlou boa parte do territrio do pas, conseguindo at combater o cultivo de pio; todavia, o que levou o regime do Talib a cair e ser considerado falido no foi uma situao de fracasso estatal, e sim a interveno dos Estados Unidos aps os atentados de 11 de setembro de 2001. Os autores no descon-sideram os argumentos humanitrios para a derrubada do Talib; o problema que estes mesmos argumentos s foram formalmente verbalizados aps os atentados, quando os

    interesses norte-americanos que, at o final da dcada de 1990, no divergiam dos do Afeganisto15, mudaram a partir da conexo entre Bin Laden e o Talib. Com relao Somlia, os autores argumentam que apesar de ser considerado um pas fracassado desde o incio da dcada de 1990, o conceito foi operacionalizado em 2006, quando as Isla-mic Court Unions (ICU) estavam conseguin-do estabilizar seu domnio sobre pores considerveis do territrio somali.

    Por outro lado, nos casos de Sudo e Nigria, pases considerados fracassados se-gundo parte significativa de analistas, as res-postas foram distintas. No caso do primeiro, as jazidas de petrleo existentes e a presena chinesa no pas funcionariam como um efi-ciente escudo contra o enquadramento secu-ritrio para a situao sudanesa. Com relao Nigria, apesar da circunstncia precria no entorno do delta do rio Nger, com desta-que para pobreza e desemprego, combinados com problemas ambientais, crime e corrup-o, tratar o pas como falido no do inte-resse de potncias ocidentais visto que, alm das reservas de petrleo, o governo de Abuja visto como parceiro confivel e potncia regional numa poro do continente africa-no vista como bastante problemtica. Bs e Jennings (2007, p. 483) concluem afirman-do que situaes de Estados Falidos so ora definidas como ameaas e outras vezes no: o ponto crucial que o conceito e o termo em si no jogam qualquer luz sobre a questo da segurana humana nos pases em questo.

    Em linha similar, Nasser (2009) apon-ta para o fato de que o termo Estado Falido tem se tornado um expediente conveniente para que as grandes potncias, em associa-

    tendo em vista a passagem de oleodutos pelo pas, alm de perceberem o novo governo como um importante

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    o com empresas multinacionais, possam intervir nesses territrios e assim facilitar o acmulo de riquezas mediante a explorao de recursos naturais, o que atualmente resul-ta em envolvimento cada vez maior de pases como Estados Unidos, Rssia e China nos conflitos internos, ora disputando recursos, ora apoiando militarmente as faces em conflito. No caso da estratgia norte-ame-ricana para a frica, por exemplo, Nasser chama a ateno para o fato de think tanks influentes no governo, como o Council on Foreign Relations, destacarem a necessidade de se ampliar o papel das foras militares do pas e assim vigiar e controlar as fontes energticas e os sistemas de distribuio do continente africano frente a vazios de poder e ameaas como o terrorismo, caractersticas do fracasso estatal.

    Chapaux (2009) caminha em direo semelhante de Nasser e Bs e Jennings, apresentando duas anlises interessantes so-bre o uso do conceito de Estado Falido e as consequncias dessa utilizao. Segundo o autor, o conceito de Estado Falido, ao me-nos em tese, permitiria queles que o criaram impor um modelo de governana aos pases classificados como fracassados. Contudo, mediante os exemplos da interveno norte--americana no Iraque e as respostas interna-cionais aos distrbios ocorridos na Bolvia entre 2003 e 2006, Chapaux argumenta, primeiramente, que nem sempre o termo utilizado com esse objetivo e que, em segun-do lugar, quando o termo utilizado para promover mudanas de regime nem sempre se obtm xito, muitas vezes devido s resis-tncias dos pases-alvo.

    Ao mapear a aplicao do termo ao re-gime de Saddam Hussein, o autor identifica trs utilizaes distintas em momentos dife-rentes e por atores distintos. Primeiramen-te, antes da interveno, veculos de mdia e autoridades do governo negaram que o

    Iraque fosse um Estado Falido. Em segundo momento, os opositores guerra utilizam o termo para afirmar que o Iraque se tornou um Estado Falido em decorrncia da inter-veno norte-americana. Por fim, Chapaux identifica o retorno do conceito ao discurso oficial, momento mais significativo da uti-lizao, seja em figuras como a do ex-secre-trio de Defesa Colin Powell ou mesmo no ento candidato democrata presidncia, John Kerry. A especificidade desse momen-to deve-se ao fato de que o discurso sobre o fracasso estatal utilizado como justificativa e legitimao para a presena das tropas es-trangeiras no Iraque, pois os Estados que esto no Iraque tem que ficar para evitar a produ-o de um novo Estado Falido (Powell, 2003 apud Chapaux, 2009, p. 122). Sumarizando, Chapaux (2009) afirma que a noo de Esta-do Falido foi utilizada para tentar dar legiti-midade interveno no Iraque, e no para impor um modelo de governana. Ademais, o autor argumenta que:

    A relao de causalidade entre a interveno e a si-tuao atual do Iraque esquecida; o trabalho de reconstruo dos EUA j no descrito como a reparao de um dano e sim como uma necessida-de objetiva. Assim, a legitimidade da ocupao no se avaliaria em termos da legitimidade do ataque, a qual muitos se opuseram, mas agora se apresentaria como uma misso altrusta que intenta evitar que o Iraque rume ao caos (Chapaux, 2009, p. 123).

    No caso da Bolvia, quando da nacionali-zao dos hidrocarbonetos iniciada em 2003 pelo presidente eleito Evo Morales e dos con-flitos que da redundaram entre o governo e as empresas afetadas, Chapaux (2009) diz que o conceito de Estado Falido foi utilizado por analistas para afirmar que os problemas pelos quais o pas passava eram consequn-cias de um processo de fracasso estatal que se instaurava e que demandava solues r-pidas, pois, caso contrrio (Washington Post, 2003 apud Chapaux, 2009, p. 132):

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    Poderemos ver uma possvel secesso ou uma guerra civil devastadora. Tamanho caos no co-rao do continente se espalharia para alm das fronteiras bolivianas, desestabilizando seus vizi-nhos e interrompendo a economia da regio. Em ltima instncia, a Bolvia pode se tornar o Afega-nisto dos Andes, um Estado Falido que exporta drogas e desordem.

    No caso do pas andino, o autor afirma que o discurso objetivava contribuir para questionar o governo iniciado aps a eleio de Evo Morales. Contudo, as crticas que esse enquadramento recebeu e a pouca receptivi-dade que o mesmo teve tanto no discurso aca-dmico como poltico impediram que a viso do fracasso estatal boliviano se estabilizasse.

    A segunda anlise, realizada por Cha-paux e Wiln (2009), inicia-se com uma pergunta bastante pertinente: A distino entre Estados Falidos e aqueles considerados bem-sucedidos teria alguma influncia nas relaes internacionais, mais precisamente na forma como os pases se relacionam na prtica? Para tentar responder a essa inda-gao, os autores direcionam suas atenes para o relacionamento dos Estados dentro do Peacebuilding Commission (PBC), rgo da ONU criado em 2005 para coordenar as reconstrues de pases sados de conflitos. Por meio da anlise dos casos do Burundi e Serra Leoa, os autores argumentam que os pases sob o escrutnio do PBC, mesmo que no sejam explicitamente nomeados Estados Falidos so considerados menos capazes para resolverem seus problemas. A consequncia dessa viso que a fraqueza dos referidos pases os deslegitimariam para serem partici-pantes ativos nas discusses e os alijariam da tomada de decises sobre seu prprio pro-cesso de reconstruo.

    Em sua reflexo sobre Estados Falidos, os autores utilizam o conceito habermasiano de discurso tico, o qual se refere s regras que embasariam e legitimariam um debate,

    assim como as decises tomadas aps o mes-mo que, nas palavras de Linklater (2007), definiriam a priori o formato do processo de tomada de decises, mas no a natureza da deciso a ser alcanada. Dito de outra forma, a tica de um debate estabelece os procedi-mentos dos debates para que indivduos pos-sam expressar as suas demandas e diferenas morais e assim resolv-las mediante a fora do melhor argumento. Nesse sentido, no se almeja predizer ou condicionar o resultado final, mas, ao mesmo tempo em que aponta os critrios formais que precisariam ser sa-tisfeitos, tambm convidaria os participantes a refletirem sobre que estruturas e crenas obstruem a concretizao do dilogo aberto. Com esse ponto de partida, Chapaux e Wi-len identificam dois tipos de tica dentro da poltica internacional.

    Em primeiro lugar, teramos a tica de identidade, cujo melhor exemplo seria a fi-liao ONU: um pas no precisa ser bom ou mau, ocidental, rico ou democrtico para se filiar organizao; o simples fato de ser um Estado suficiente para que sua vontade tenha peso dentro da ONU, com exceo do Conselho de Segurana. Consequentemen-te, em um debate envolvendo esse tipo de tica, as decises seriam consideradas legti-mas somente se seguissem a vontade de to-dos (consenso) ou a vontade de uma maioria predefinida e aceita pelos participantes que seriam afetados pela deciso a ser tomada. O segundo tipo seria a tica da capacidade, exemplificada pela filiao ao FMI, pois a importncia econmica de determinados pases daria mais peso s suas decises, ou seja, no importa apenas se voc um Esta-do, mas tambm que tipo de Estado voc .

    Essa distino importante para o in-tento dos autores, pois, a despeito de for-malmente as decises dentro do PBC serem tomadas via consenso, ou seja, todos em tese teriam o mesmo peso, o que se observa a

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    consolidao de uma tica de capacidade: me-diante os relatrios das discusses sobre os casos do Burundi e Serra Leoa, seria possvel verificar uma oposio cada vez mais paten-te entre pases considerados bem-sucedidos e aqueles vistos como fracassados e, conse-quentemente, uma tendncia a considerar legtimo que pases vistos como mais capazes impusessem suas decises sobre a reconstru-o de terceiros, decises estas que afetariam mais diretamente as populaes de Burundi e Serra Leoa, mas cujo plenipotencirio no PBC no teria como influenciar o contedo. Segundo os autores, incorrer-se-ia no risco de que pases considerados incapazes no te-rem o que dizer sobre sua prpria reconstru-o, quaisquer que fossem os objetivos a se-rem alcanados ou mesmo onde os recursos a serem investidos deveriam ser alocados, em virtude do tipo de tica dominante no PBC.

    Sobre a capacidade heurstica do con-ceito Estado Falido, Pinar Bilgin e Adam David Morton (2002, p. 56) argumentam que ao tentar explicar as causas do fracasso, a maioria dos estudos se foca no comporta-mento poltico de tais pases e nas implicaes desse comportamento sobre a segurana da or-dem econmica liberal, sem questionar o con-texto econmico no qual tais comportamentos esto includos. Logo, segundo os autores, a excessiva preocupao da literatura tradi-cional com os supostos sintomas do fracasso estatal, em especial a proliferao de grupos terroristas em Estados Falidos, impede uma anlise pormenorizada sobre as condies es-truturais que levariam os pases ao fracasso. Assim, Bilgin e Morton (2007) chamam as anlises sobre segurana internacional aps o 11 de setembro e que versam sobre Esta-

    dos Falidos de externalistas e reducionistas: externalistas por no inclurem na anlise o impacto que a globalizao e o capitalismo hodierno tiveram sobre os pases, no abor-dando de forma adequada como os Estados influenciam e so afetados por esses proces-sos16; e reducionistas, porquanto reduzem as ameaas segurana ao terrorismo.

    Ainda segundo Bilgin e Morton (2004), a adjetivao de pases enquanto fracos ou falidos teria consequncias problemticas, dentre as quais se destacam: a reduo do sucesso ou fracasso s capacidades coercitivas dos pases para controlarem seus territrios deixando em um segundo plano a discusso sobre a natureza da democracia nesses territ-rios; a viso da fragilidade estatal como com-portamento desviante de normas internacio-nalmente reconhecidas, que serviria como justificativa e legitimao para intervenes; a negligncia em relao aos impactos dos programas de ajuda e estruturao econ-mica capitaneados por organizaes como o Fundo Monetrio Internacional (FMI) e Banco Mundial, que muitas vezes criam, ou ento exacerbam, os sintomas do fracasso. Como alternativa s abordagens tradicionais, Bilgin e Morton (2007, p. 21) propem:

    Uma maior considerao precisa ser dada a como as diferentes lgicas de soberania e capitalismo se combinam e formatam as condies estruturais que confrontam os Estados ps-coloniais fa-lidos ou qualquer outro adjetivo. Essas contra-dies so capturadas pela maneira como pases especficos internalizam processos de acumulao de capital e formas de dominao. [...] Em suma, uma historicizao mais profunda dos processos de formao estatal no mundo no ocidental necessria, ciente da circunstncias polticas e eco-nmicas nas quais estes Estados evoluram.

    16 Quando tratados, a globalizao e a atual conjuntura do capitalismo internacional so vistos na maioria das vezes como meios que facilitam a proliferao de ameaas como o terrorismo, e no como causadores dessas ameaas.

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    De outro lado, temos as anlises interes-sadas na questo da representao e atribui-o de sentidos aos chamados Estados Fali-dos, as quais se ancoram em pressupostos das abordagens ps-modernas/ps-estruturalis-tas de Relaes Internacionais17, em especial no tratamento dado por essas perspectivas sobre a relao entre discurso e realidade. De forma geral, inspirados em trabalhos de Mi-chel Foucault e Jacques Derrida, os trabalhos a serem revisados argumentam que os sujei-tos, objetos e as relaes entre os mesmos e que constituiriam a realidade s se tornam inteligveis mediante a estruturao de cam-pos discursivos. Em outras palavras, o real no poderia ser compreendido como ex-geno ao indivduo e passvel de ser acessado sem qualquer interpretao pelo analista18. O estudo das prticas discursivas, portanto, no almeja revelar a verdade que at ento estaria obscurecida, mas sim verificar como certas representaes embasam a produo do conhecimento e de identidades, e como essas mesmas representaes tornam deter-minados cursos de ao possveis. Moreno (2011, p. 21) sintetiza bem o impacto que as anlises ps-modernas/ps-estruturalistas teriam sobre o conceito Estado Falido:

    [...] ao qualificar determinados Estados como em runas, falidos, ou pelo menos como represen-taes imperfeitas do Estado moderno e suas po-pulaes como atrasadas, primitivas, guerrei-ras, a literatura no est empreendendo um mero esforo inocente de melhor compreenso destes

    Estados e das suas sociedades, mas est produzin-do aquilo que deve ser governado, disciplinado e modernizado e, desse modo, criando as condies de possibilidade para as novas operaes de paz da ONU.

    A viso depreciativa sobre a experincia de outros pases considerados falidos um ponto em comum das anlises de Hugues e Pupavac (2005) e Manjikian (2008). Am-bas as anlises almejam destacar como as percepes sobre o chamado fracasso estatal aps o 11 de setembro de 2001, no mni-mo, assemelham-se a uma narrativa sobre enfermidades, tratando sociedades sadas de conflitos como patolgicas e incapazes de se recuperarem autonomamente. Dizemos no mnimo, pois por vezes a metfora utiliza-da para caracterizar o fracasso estatal refere--se explicitamente ao tratamento de doen-as, como no seguinte trecho de Goldstone (2008, p. 293):

    Impedir o fracasso estatal no simples como con-sertar um telhado com vazamentos de uma casa, no qual a tecnologia conhecida e a questo giraria em torno de se aplicar corretamente as solues. mais como tentar curar um cncer, uma vez que no estado atual do conhecimento, no sabemos preci-samente como prevenir ou curar cada caso. Contu-do, podemos sugerir algumas diretrizes gerais para uma abordagem global (grifo nosso)19.

    Assim, com base em estudos de casos do Camboja e dos territrios que outrora fize-ram parte da Iugoslvia, Hugues e Pupavac (2005) argumentam que a noo de Estado

    17 No nosso objetivo reconstruir todo o percurso das abordagens ps-modernas/ps-estruturalistas na rea de Relaes Internacionais. Para uma reviso especfica sobre o impacto do ps-modernismo/ps-estruturalismo em Relaes Internacionais, sugerimos Nogueira e Messari (2005) e Resende (2010).

    18 As abordagens em tela propem uma ruptura com a concepo representacionalista da linguagem, afastando-se da ideia de que a linguagem seria nica e exclusivamente um reflexo das condies materiais e/ou ideacionais da sociedade. Parte-se agora do pressuposto do real como resultado de prticas discursivas, no possuindo fundao ontolgica e sendo produto de relaes de poder, as quais dariam forma e sentido ao mundo mediante a linguagem e teriam consequncias prticas, possibilitando e legitimando determinadas aes, ao passo que tambm desauto-rizariam tantas outras.

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    Falido, alm de fixar a culpabilidade dos conflitos nas sociedades em questo, d a en-tender que a razo de ser desses mesmos con-flitos pode ser encontrada em predisposies inatas das populaes desses pases vio-lncia. Esse paradigma teraputico, segun-do terminologia das autoras, caracterizaria as populaes do Camboja e da Iugoslvia como traumatizadas e brutalizadas, o que ex-plicaria o fracasso estatal, ao mesmo tempo que retiraria o foco das influncias polticas domsticas e internacionais sobre a consti-tuio do Estado nessas regies, permitindo que a soberania fosse-lhes negada, uma vez que cambojanos e os povos da ex-Iugoslvia ora seriam percebidos como passivamente espera de ajuda externa, ora como no confi-veis para liderarem os seus prprios proces-sos de reconstruo.

    De forma semelhante, Manjikian (2008) argumenta que o ato de classificar um pas como falido ou bem-sucedido re-pousa em pressupostos implcitos sobre o Estado, tratando-o como um corpo, assim como em premissas relativas sade, aos tra-tamentos que parecem ser mais promissores e autonomia que os pacientes desfrutam ou no uma vez recebido o diagnstico. Seguin-do o raciocnio da autora, parte significativa das metforas utilizadas nas caracterizaes sobre a relao entre fragilidade estatal e ter-rorismo compara o ltimo a uma virose, focando-se nos solos frteis de Estados Falidos, assim como no fcil contgio e transmisso para outros territrios. A par-tir dessa metfora, a comunidade internacio-nal, assim como um mdico, vista como altamente capaz, possuindo todas as habili-dades e capacidades para intervir e resgatar o

    pas fracassado. A este, uma vez que no teria capacidade para tomar conta de si prprio, restaria apenas aguardar a interveno que o salvaria, j que aos Estados Falidos nem mes-mo optar sobre qual tratamento se subme-ter seria possvel.

    importante reforar que a autora no pretende trivializar os problemas de diversos pases do mundo: o intento aqui chamar a ateno para a forma como a cultura ociden-tal em geral (e a norte-americana em particu-lar) escolhe patologizar alguns problemas de governana e sociedade e no outros (Man-jikian, 2008, p. 343). Nota-se tambm que um dos ganhos oriundos dos esforos tanto de Manjikian (2008) como de Hugues e Pu-pavac (2005) mostrar que a doena dos Es-tados Falidos , na verdade, um amontoado de sintomas (corrupo extensiva, inabilida-de para prover bens pblicos e projetar po-der sobre o territrio, baixos ndices educa-cionais, desemprego, entre outros), ou seja, no advm de nenhuma qualidade essencial, mas sim da forma como se decide interpretar o quadro geral.

    So tambm dignos de nota os trabalhos que, amparados em insights da literatura ps--colonialista20, problematizam a caracteriza-o corrente dos chamados Estados Falidos. Dentre os pressupostos ps-colonialistas que informaram teoricamente as anlises em tela, alguns deles semelhantes queles das abor-dagens ps-modernas/ps-estruturalistas, destaca-se a ideia de que a produo do co-nhecimento ou das representaes insepa-rvel de questes relativas ao poder, e a de que o mundo social no um objeto inerte espera de uma descrio imparcial, objetiva e desinteressada: pelo contrrio, conforme nos

    19 A analogia com doenas e morte no privilgio de Goldstone (2008). Por exemplo, Zartman (1995, p. 8) cha-mava o colapso estatal de uma doena degenerativa de longo prazo, enquanto Krasner e Pascual (2005, p. 155) diziam que os elementos do fracasso estatal assemelham-se a folhas mortas que se acumulam em uma floresta.

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    diz Krishna (2009, p. 73), as representaes sobre a realidade dependem sobremaneira de questes relativas a quem descreve, de onde partem as descries, quais so os interesses dos responsveis pelas descries, entre ou-tros pontos.

    Nessa linha, talvez seja de Jonathan Hill (2005) uma das crticas ps-colonialistas mais incisivas ao conceito de Estado Fali-do. Partindo da premissa de que o Primeiro Mundo e o Terceiro Mundo no so entida-des ou divises geogrficas naturais, mas sim que se formam um em relao ao outro, o autor identifica dois elementos centrais na tese sobre o fracasso estatal: primeiramente, a identificao dos Estados Falidos como in-capazes ou desinteressados em desempenhar as funes que deveriam cumprir; e, em se-gundo lugar, a definio de quais seriam es-sas funes, destacando-se o provimento de bem-estar, ordenamento legal e segurana. Logo, embasando as descries sobre Esta-dos Falidos jazeria a definio do que cons-tituiria um Estado bem-sucedido e das ca-pacidades que os pases deveriam ter. Assim:

    Ao adotar uma perspectiva eurocntrica, a abor-dagem comparativa escolhida pela literatura tra-dicional para identificar Estados Falidos torna-se inadequada para explicar o desenvolvimento indi-vidual dos Estados. Ao invs de explicar por que os problemas sociopolticos de um Estado surgiram, esta abordagem comparativa meramente salienta que os Estados africanos so diferentes daqueles do Primeiro Mundo antes de condenar os Estados africanos por serem diferentes. Estados so identi-ficados como falidos no pelo que so, e sim pelo que eles no so. [...] O processo de identificao de um Estado Falido , portanto, analiticamente de pouca valia para explicar porque Estados esto passando por problemas polticos, econmicos e sociais que resultaram na descrio de falidos (Hill, 2005, p. 148).

    Ademais, a partir dessa caracterizao problemtica, a nica sada para os Estados Falidos seria a ajuda de atores externos, apre-sentados como benevolentes, como as foras capazes de restaur-los e os resgatarem, re-tirando desses mesmos interventores quais-quer responsabilidades acerca do chamado fracasso estatal.

    Problematizar este ltimo ponto a inteno de Hill (2009) em trabalho que investiga a utilidade analtica do conceito de Estado Falido quando aplicado ao caso da Arglia. Segundo o autor, tentar com-preender a guerra civil argelina da dcada de 1990 luz do conceito de fracasso es-tatal, salientando apenas a incapacidade do Estado em desempenhar determinadas fun-es como principal determinante para a continuidade do conflito, deixar de lado a influncia que outros atores internacionais tiveram na situao, em especial o FMI e o Banco Mundial.

    Logo, o autor tenta mostrar que as re-formas estruturantes da dcada de 1990, exigidas pelos organismos supracitados, en-fraqueceram a capacidade da Arglia em pro-ver servios considerados necessrios para a populao e que estariam no rol de funes a serem desempenhadas por Estados bem--sucedidos, constituindo-se assim num dos motivos mais determinantes a levar parte dos argelinos a apoiar os insurgentes, da mesma forma que financiamentos externos possibi-litaram que governo e rebeldes prolongassem os embates. Assim sendo, mediante o exem-plo da Arglia, Hill (2009) tensiona a viso de que as causas do fracasso so sumamente domsticas, alm de verificar como as cone-xes do pas com o sistema internacional po-tencializaram seus problemas.

    20 Para os interessados no pensamento ps-colonialista, sugerimos Krishna (2009) e Young (2008).

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    Por fim, temos a contribuio de Marta Fernandez Moreno (2011) que, mediante o estudo de caso da Somlia, questiona a cons-truo discursiva do fracasso estatal. Segun-do a autora, a caracterizao das novas ope-raes de paz da ONU, em especial aquelas conduzidas a partir do final da Guerra Fria, depende de determinada viso sobre as socie-dades alvo. Mais especificamente:

    [...] a produo da descontinuidade/inovao das operaes de paz em relao ao passado colonial depende da continuidade das sociedades alvo de tais operaes vistas como sujeitas a conflitos ancestrais de natureza endgena, ligados a um passado pr-colonial; revelando, desse modo, uma dependncia mtua entre as identidades mo-derna, produzida como smbolo do progresso, e tradicional, construda como atrasada (Moreno, 2011, p. 17; negrito no original).

    Informada pelas abordagens ps-mo-derna/ps-estruturalista e ps-colonialista, Moreno procura desestabilizar o discurso de que as novas operaes de paz seriam uma inovao em relao ao passado colonial. Pelo contrrio, a autora sugere que a lgica subja-cente a estas misses a da teoria da moder-nizao, a ideia de que o desenvolvimento se d por etapas, levando sociedades at outrora consideradas tradicionais para a modernida-de. Desse modo, as operaes permitiriam re-tirar os chamados Estados Falidos do caos so-cial no qual estariam inseridos, colocando-os no caminho do desenvolvimento. Contudo, a condio de possibilidade para tal viso calcada numa caracterizao esttica de pases como a Somlia, cuja situao sempre per-cebida como derivada da continuidade dos seus modos de organizao social pr-moder-nos. Moreno tambm destaca o carter hbri-do da Somlia, resgatando discursos e obras que apontam para a influncia dos atores di-tos modernos no atraso das sociedades hoje consideradas passveis de interveno, pertur-bando assim as fronteiras discursivas entre o

    progresso e a racionalidade de atores externos e a barbrie e irracionalidade somali.

    Ao final da presente reviso, resta-nos apontar o que a crtica ao conceito de Estado Falido acrescenta ao debate e que novas agen-das de pesquisa so abertas para se explorar o problema de pases considerados fragilizados.

    Em primeiro lugar, temos uma crtica ideia de que a apreenso do fracasso estatal consistiria simplesmente na seleo de deter-minados indicadores e o consequente desem-penho dos pases segundo tais dados, mos-trando que a percepo do fenmeno pode mudar drasticamente conforme as variveis utilizadas. Ademais, por vezes, a distino en-tre causas e sintomas do fracasso estatal tor-na-se opaca: guisa de ilustrao, uma guerra civil uma indicao de que um Estado faliu ou a sua causa? No toa, Easterly e Freschi (2010) afirmam que o fracasso estatal pode ser considerado um destruidor de ideias, pois ao tentar combinar variveis to distintas en-tre si, como guerras civis, corrupo, inabili-dade para prover bens pblicos, entre outras, cria um agregado extremamente confuso.

    Em segundo lugar, a viso de que Es-tados considerados fracos ou falidos seriam incubadores das ameaas contemporneas paz e segurana internacional, em especial o terrorismo, tambm tensionada. Parte dos autores apresentados ao longo do texto, a despeito das metodologias distintas, chegou a concluses no mnimo semelhantes: no possvel fazer afirmaes conclusivas sobre a associao entre Estados considerados fracos ou falidos e a proliferao de grupos terroris-tas, o que se choca frontalmente com as pre-missas da Guerra ao Terror do governo Ge-orge W. Bush, quais sejam, h uma relao de causalidade direta entre os ditos Estados Falidos e a proliferao do terrorismo e que

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    governana democrtica e reformas liberali-zantes reduziriam a incidncia do mesmo.

    Nota-se tambm a ausncia de anli-ses historicizantes sobre a situao dos pa-ses subdesenvolvidos, optando-se por uma comparao, muitas vezes implcita, entre o que seria um Estado bem-sucedido e o que est faltando no Terceiro Mundo. Ou seja, discutem-se muito as instituies e o tipo de governo que no estariam presentes, mas es-quece-se de averiguar que relaes sociais e formas de domnio realmente existem, sub-sumindo todos esses processos pelos concei-tos de anarquia, caos social e falncia estatal. Ademais, principalmente a partir das cr-ticas vindas dos trabalhos informados pela literatura ps-moderna/ps-estruturalista e ps-colonialista, temos a poderosa ideia de que os Estados Falidos seriam uma represen-tao que acabaria por construir a realidade, viabilizando identidades desiguais entre os atores e autorizando prticas intervencionis-tas e de reconstruo.

    Frente a tal quadro, uma medida extre-mamente importante fazer uma mudana na maneira como se formula o problema: em vez de mantermos o vis comparativo, tei-mando em perguntar o que falta e o que pre-cisa ser transplantado para tais pases, talvez devssemos nos questionar o que as popula-es nessas regies esto realmente fazendo

    diante da situao na qual esto inseridas e como se relacionam com os interventores.

    O primeiro tipo de pergunta acaba por reforar a ideia de que em Estados Falidos reina um caos total, uma barbrie generali-zada, o que cria as condies para as cons-trues de sentido de que a ajuda externa neutra e benevolente, sem outros interesses. O segundo tipo de pergunta, contudo, leva o pesquisador a deixar de lado essa viso e tentar entender o que realmente se passa nes-ses pases, a se engajar com o local, evitando assim exotiz-lo ou romantiz-lo. Felizmen-te, alguns analistas j procuram enveredar nesse tipo de investigao, tais como os es-tudos de Richmond (2010, 2011) e Mac-Ginty (2012), os quais verificam, cada qual a seu modo, como as intervenes externas impactam as populaes locais, mas como, ao mesmo tempo, essas mesmas populaes negociam com os interventores e conseguem influenciar o processo. Em suma, trata-se de entender as reconstrues como um fen-meno hbrido, que combina contribuies externas, mas tambm aquelas oriundas da populao envolvida. Levando em conside-rao o atual estgio em que se encontram as reconstrues do Afeganisto e do Iraque, questionar o fracasso estatal um esforo nada desprezvel, pelo contrrio, extrema-mente necessrio.

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    Artigo recebido em 13/09/2009

    Aprovado em 16/05/2011

    Questionando o fracasso estatal: um balano da literatura crtica

    O objetivo do artigo revisar as crticas ao conceito de Estado Falido e evidenciar como as mesmas ampliam o debate contemporneo sobre o tema. Para tanto, optamos por dividi-las em trs linhas: primeiramente, as contribuies que questionam as formas de se identificar o fracasso estatal; em segundo lugar, aquelas que problematizam a relao Esta-dos Falidos e proliferao do terrorismo transnacional; e, em terceiro lugar, as obras que privilegiam a forma como o discurso sobre Estados Falidos construdo e utilizado para a ao poltica.

    Palavras-chave: Estados Falidos; Terrorismo; Segurana internacional; Relaes internacionais; Discurso.

    Calling into question the State failure: a review of critical approaches

    The aim of the article is to review the criticisms on the concept of failed State and to show how they enlarge the scope of the contemporary debate on the theme. In order to achieve such goal, the author decided to separate those conceptions into three lines: first, the contributions that discuss the current ways of identifying State failure; secondly, the works that put in question the relationship between failed States and transnational terrorism; and thirdly, those approaches whose main focus is the exam of how the discourse on failed State is built and used for political action.

    Keywords: Failed States; Terrorism; International security; International relations; Discourse.

    La dfaillance de ltat en question: un bilan de la littrature critique

    Lobjectif de larticle est de revoir les critiques propos du concept dtat Failli et didentifier comment ces critiques largissent le dbat actuel sur le sujet. Nous avons pour cela dcid de rpartir ces critiques en trois groupes : tout dabord, les contributions qui remettent en question les formes didentification de lchec de ltat ; ensuite, celles qui problmatisent le rapport entre les tats Faillis et la prolifration du terrorisme transnational ; et, enfin, les ouvrages qui privilgient la forme par laquelle le discours sur les tats Faillis est construit et utilis pour laction politique.

    Mots-cls: tats Faillis; Terrorisme; Scurit internationale; Relations internationales; Discours.