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Quem sou eu? Poucos são os que realmente me conhecem. Para alguns, imagino, será um alívio. Tenho em mim um pouco de Hyde (a face que está à vista) e muito de Jekyll, a parte mais afável e íntima que partilho apenas com quem me sinto seguro e confiante para o fazer. Não quero com isto dizer que sofra da patologia associada à obra de Robert Louis Stevenson, mas, por certo, sei diferenciar momentos e agir consoante quero. Digamos que sou um crente na inteligência emocional. Já que estamos no capítulo das "crenças e crendices", acho importante frisar que não acredito em deus (o chamado "deus da bíblia") nem em qualquer divindade, material - porque há meninos que fazem juras e promessas a santinhas - ou imaterial. Muito por culpa de saber ler, admito. É, por isso, mais o que tenho em mim a escolher "não querer acreditar" do que "a impossibilidade de compreender", pois basta ler algumas histórias para ganharmos especial aversão a alguns personagens. O manda-chuva, o de onde nós derivamos todos os nossos bons atributos (mas alto lá, que depois da traição de Adão e Eva todos somos pecadores) é especialmente atrevido: participa em genocídios e outros massacres, revela-se ciumento e egoísta, testa os seus fiéis até à última das consequências e, num passo de magia, com a mesma mão que nos afasta também nos (vos) atrai, impelindo-nos a acreditar na sua perfeição, no seu amor incondicional, e que a destruição justa que tem prometida, os castigos, injúrias e as transformações em sal são disso reflexo. Os casos de Abraão e Jesus (dica: envolvem uma estranha relação com a morte) merecem um olhar atento: Abraão não mata Isaque porque, in extremis, um anjo lhe comunica que afinal já não é preciso, embora este se tenha minuciosamente preparado para o fazer; Jesus, se me permitem, foi uma tentativa de compensação. Na prática, foi lançar um filho a um destino cruel do qual não podia escapar sob pena de não se cumprir o que tinha já sido estipulado (sim, teria dado mais jeito ter escrito a narrativa doutra forma). Ainda assim, parece para alguns defensável que tenha sido uma dádiva, uma prova de amor. Tenho extrema dificuldade em aceitar estas e outras partes da bíblia, pelo que, perante tais evidências, escolho não acreditar/compactuar. Para

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Page 1: Quem sou eu?w3.ualg.pt/~fcar/2_cc_2013/quem somos/Quem sou eu_andre santos.pdf · Quem sou eu? Poucos são os que realmente me ... Hyde (a face que está à vista) e muito de Jekyll,

Quem sou eu?

Poucos são os que realmente me

conhecem. Para alguns, imagino, será

um alívio. Tenho em mim um pouco de

Hyde (a face que está à vista) e muito

de Jekyll, a parte mais afável e íntima

que partilho apenas com quem me sinto

seguro e confiante para o fazer. Não

quero com isto dizer que sofra da

patologia associada à obra de Robert

Louis Stevenson, mas, por certo, sei diferenciar momentos e agir consoante quero.

Digamos que sou um crente na inteligência emocional. Já que estamos no capítulo das

"crenças e crendices", acho importante frisar que não acredito em deus (o chamado "deus

da bíblia") nem em qualquer divindade, material - porque há meninos que fazem juras e

promessas a santinhas - ou imaterial. Muito por culpa de saber ler, admito. É, por isso, mais

o que tenho em mim a escolher "não querer acreditar" do que "a impossibilidade de

compreender", pois basta ler algumas histórias para ganharmos especial aversão a alguns

personagens. O manda-chuva, o de onde nós derivamos todos os nossos bons atributos

(mas alto lá, que depois da traição de Adão e Eva todos somos pecadores) é especialmente

atrevido: participa em genocídios e outros massacres, revela-se ciumento e egoísta, testa

os seus fiéis até à última das consequências e, num passo de magia, com a mesma mão que

nos afasta também nos (vos) atrai, impelindo-nos a acreditar na sua perfeição, no seu amor

incondicional, e que a destruição justa que tem prometida, os castigos, injúrias e as

transformações em sal são disso reflexo. Os casos de Abraão e Jesus (dica: envolvem uma

estranha relação com a morte) merecem um olhar atento: Abraão não mata Isaque porque,

in extremis, um anjo lhe comunica que afinal já não é preciso, embora este se tenha

minuciosamente preparado para o fazer; Jesus, se me permitem, foi uma tentativa de

compensação. Na prática, foi lançar um filho a um destino cruel do qual não podia escapar

sob pena de não se cumprir o que tinha já sido estipulado (sim, teria dado mais jeito ter

escrito a narrativa doutra forma). Ainda assim, parece para alguns defensável que tenha

sido uma dádiva, uma prova de amor. Tenho extrema dificuldade em aceitar estas e outras

partes da bíblia, pelo que, perante tais evidências, escolho não acreditar/compactuar. Para

Page 2: Quem sou eu?w3.ualg.pt/~fcar/2_cc_2013/quem somos/Quem sou eu_andre santos.pdf · Quem sou eu? Poucos são os que realmente me ... Hyde (a face que está à vista) e muito de Jekyll,

um lado ou para o outro, haverá um preço a pagar pela dissonância cognitiva, imagino.

Posso sempre argumentar isso em tribunal.

Mas porque também interessa ser trivial: vivo desde sempre em Faro, tendo apenas

saído para Espanha e Inglaterra. Vou fazer 21 anos em maio, altura em que o meu clube se

sagrará campeão nacional. Estou em Ciências da Comunicação por opção, embora um

exame negativo a Português me tenha obrigado a submeter candidatura apenas para a

segunda fase. Quando entrei trazia zero expectativas e é com essas que permaneço, pois

não ouso esperar dos outros nada. Entretanto, pude conhecer algumas pessoas de quem

me tornei amigo próximo e com outras fortaleci laços do passado. Também participei em

alguns projetos interessantes, como aquele no qual estou envolvido para esta disciplina, o

clube de debate "Perspetivas", onde, como o nome indica, organizamos debates semanais

sobre diversos temas. É uma iniciativa para suprir uma necessidade da comunidade

académica, pelo que, de certa forma, estamos a fazer serviço público. No entanto, reservo-

me ao direito de ter esperança de que o melhor está para vir. Se me perguntarem qual foi

o meu melhor trabalho até agora, sou tentado a responder que é o próximo.

Para finalizar, quero aproveitar para falar sobre duas atividades das quais não abdico. A

primeira, como se já tornou óbvio, é comunicar (escrever, falar e, mais recentemente,

ouvir - nem sempre fiz uso proveitoso desta faculdade). A segunda é ouvir música. Faço-o

constantemente e são raros os momentos em que não tenho uma ponte ou um refrão na

cabeça, muitas vezes cometendo a proeza de conseguir infetar outros. Gosto

principalmente de reggae, embora não despreze outros artistas de outros géneros. Se

tivesse de recomendar três daqueles cantautores com os quais todos temos de travar

conhecimento antes de morrer, seriam Perfect, Jorge Palma e, claro, Matisyahu.

André Santos, nº 45796

30-03-2013