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JORNAL “ PÚBLICO “ 25-03-2014 Quem quer ser negro no Brasil? JOANA GORJÃO HENRIQUES(Texto, em São Paulo, Salvador e Brasília) e VERA MOUTINHO(Fotografia) Uma médica que nos hospitais é confundida com empregada de limpeza e cresceu a ouvir “negro não presta”. Um magistrado que foi o primeiro negro num tribunal superior do país em Brasília. Um doutorado a quem pedem para arrumar o carro. Uma festa popular, Iemanjá, onde o Brasil misturado parece o país da democracia racial. Breve geografia do racismo à brasileira e a pergunta: pode o Brasil eleger um Presidente negro em breve? Em Dezembro, Ariana Reis, 32 anos, chegou ao fim de 14 anos dedicados à universidade: três de preparação para as provas de acesso, cinco do curso de Pedagogia, seis do de Medicina. No convite para a cerimónia de formatura, terminava com o seguinte: “Sou mulher, sou negra, sou da favela e hoje sou médica.” Porque “é difícil”. Porque Ariana é a grande excepção num Brasil onde é raro encontrarem-se médicos negros nos hospitais. A “caçula” de 12 irmãos foi a primeira a ir para a universidade. Era a única mulher negra da sua turma na Faculdade de Tecnologia e Ciências da Bahia. Em seis anos a estudar Medicina, cruzou-se com apenas duas estudantes negras de outros anos. “Nos hospitais sempre me confundem com a menina que limpa o chão. Se cai qualquer coisa: ‘Você vem aqui, pega o pano, limpa.’ Quantas vezes eu já ouvi isso? Muitas vezes. [Olham para mim]: ‘Ah, é a enfermeira, a técnica.’ Se estou sentada lá na mesa — sabem que é um médico que está ali na mesa — [perguntam]: ‘É você? Ah…’” E Ariana responde: “Vou chamar a pessoa responsável por isso.” Ou então mostra o distintivo na bata: “Está aqui, sou médica.” Isto acontece com pacientes brancos e negros: “Na verdade, os brancos ficam mais impressionados. Os negros me abordam mais porque não estão acostumados a ver na sua comunidade pessoas em cargos assim de mais prestígio.” Ariana tenta mudar o olhar de quem a ofendeu: um negro não faz só limpezas, é possível que uma médica seja negra.

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Quem quer ser negro no Brasil

JORNAL PBLICO 25-03-2014

Quem quer ser negro no Brasil?

Por Joana Gorjo Henriques(Texto, em So Paulo, Salvador e Braslia) e Vera Moutinho(Fotografia)

Uma mdica que nos hospitais confundida com empregada de limpeza e cresceu a ouvir negro no presta. Um magistrado que foi o primeiro negro num tribunal superior do pas em Braslia. Um doutorado a quem pedem para arrumar o carro. Uma festa popular, Iemanj, onde o Brasil misturado parece o pas da democracia racial. Breve geografia do racismo brasileira e a pergunta: pode o Brasil eleger um Presidente negro em breve?

Em Dezembro, Ariana Reis, 32 anos, chegou ao fim de 14 anos dedicados universidade: trs de preparao para as provas de acesso, cinco do curso de Pedagogia, seis do de Medicina. No convite para a cerimnia de formatura, terminava com o seguinte: Sou mulher, sou negra, sou da favela e hoje sou mdica.

Porque difcil. Porque Ariana a grande excepo num Brasil onde raro encontrarem-se mdicos negros nos hospitais. A caula de 12 irmos foi a primeira a ir para a universidade. Era a nica mulher negra da sua turma na Faculdade de Tecnologia e Cincias da Bahia. Em seis anos a estudar Medicina, cruzou-se com apenas duas estudantes negras de outros anos. Nos hospitais sempre me confundem com a menina que limpa o cho. Se cai qualquer coisa: Voc vem aqui, pega o pano, limpa. Quantas vezes eu j ouvi isso? Muitas vezes. [Olham para mim]: Ah, a enfermeira, a tcnica. Se estou sentada l na mesa sabem que um mdico que est ali na mesa [perguntam]: voc? Ah E Ariana responde: Vou chamar a pessoa responsvel por isso. Ou ento mostra o distintivo na bata: Est aqui, sou mdica.

Isto acontece com pacientes brancos e negros: Na verdade, os brancos ficam mais impressionados. Os negros me abordam mais porque no esto acostumados a ver na sua comunidade pessoas em cargos assim de mais prestgio. Ariana tenta mudar o olhar de quem a ofendeu: um negro no faz s limpezas, possvel que uma mdica seja negra.

De facto, ela raramente se cruza com mdicas negras mdicos ainda vai vendo, mas poucos. Cresceu a ouvir: Negro no presta. E por isso: Cresci dizendo: Meu Deus, eu sou negra e negro no presta. No tinha orgulho de ser negra. Meu pai era o primeiro a dizer que negro no presta, que negro faz sempre coisa ruim e que no para ter orgulho de ser negro ele sendo negro.

Ariana Reis, na varanda de sua casa em Salvador: Sou mulher, sou negra,sou da favela e hoje sou mdica

Mas o pai, pedreiro, morreu com orgulho da filha negra. Estava bastante doente, com Alzheimer, quando Ariana soube que tinha conseguido a bolsa para entrar em Medicina cancelando assim o curso de Pedagogia que estava quase no fim. Chegou a casa, e contou: Pai, passei em Medicina. Eu acho que ele entendeu. No outro dia faleceu. Isso uma dor para mim. Ironia do destino, n? Filha passando em Medicina, pai falecendo no outro dia.

Apesar de tudo, quando pedia dinheiro para livros, para a escola, ele dava. Era o maior sacrifcio. Mas ele dava. Na poca de aulas, tinha o costume de a esperar noite nas paragens de autocarro, porque o bairro era perigoso e tem que ficar olhando. Sempre me incentivou. Sempre.

Ela cresceu a ouvir que negro no presta, mas cresceu tambm a dizer que queria ser mdica. Aos 15 anos, estava num hospital com o sobrinho que tinha cado. Virou-se para o mdico, at ali brincalho, dando risada, e disse: Olha, eu estudo muito para ser mdica como voc. Houve um silncio da parte dele. Aquele que estava brincando, sorrindo, conversando com a gente se fechou. E a, como eu falo muito baixo, [pensei] que ele no ouviu, falei mais alto: Olha eu estudo muito porque quero ser mdica como voc, como o senhor. A ele virou, olhou para mim como se dissesse: Ponha-se no seu lugar, voc no vai conseguir. [Pausa] Sa dali arrasada. Arrasada.

Como que a gente que vem da escola pblica vai concorrer com esse pessoal da escola privada que no passou por greves de professores e de funcionrios?

Ariana Reis, 32 anos, mdica

Tinha levado um balde de gua fria. Mas no desisti por isso, no. Afinal, Ariana conhecida por ser do contra: Se tinha aquilo para fazer e ningum conseguia, eu ficava, ficava, ficava at conseguir.

Tentou Medicina, antes de entrar em Pedagogia, por trs vezes. Numa delas, em que no passou, chegou a casa, varanda de um apartamento numa favela, e chorou, chorou, chorou, lembra a me, no mesmo stio, agora numa noite de Fevereiro, j com a filha formada. E o irmo a dizer-lhe: Voc vai alcanar, vai alcanar.

O irmo no est em casa da me na noite em que l vamos, mas esto algumas das irms, sobrinhas e sobrinhos. Os jovens sentam-se na sala, logo entrada, agarrados aos telemveis e a olhar para o ecr da enorme televiso. V-se logo a fotografia da cerimnia de formatura de Ariana, em formato gigante: ela de bata, cabelo arranjado, maquilhada. Morro acima, vivem as irms, noutras casas. Foi naquela sala que ela estudou e continua a estudar Medicina, com gente a entrar e a sair. No edifcio ao lado, fiis de uma Igreja Evanglica cantam alto, batem palmas.

Quando entrou em Medicina, pagava trs mil reais por ms (cerca de 920 euros) mas tinha uma bolsa do ProUni, um programa do Ministrio da Educao que paga 50% da mensalidade a alunos em instituies privadas. Quando estudou Pedagogia, f-lo ao abrigo das cotas raciais, uma das polticas de aco afirmativa no Brasil que pretendem aumentar a percentagem de populao negra nas universidades.

No segundo pas com a maior populao negra do mundo a seguir Nigria, ser negro pertencer a uma maioria de 51% da populao de 200 milhes. Mas o ltimo Censos, de 2010, mostrava que apenas 26% dos universitrios eram negros; e apenas 2,66% dos alunos que terminaram o curso de Medicina eram negros, num estudo feito pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais para o canal UOL. Estes nmeros explicam-se, em parte, com a despesa da educao no Brasil: quem estuda em escolas privadas at ao fim do secundrio tem mais hipteses de entrar nas universidades pblicas, as melhores.

Para conseguir pagar a universidade privada, Ariana fez uns trabalhos avulsos, como limpar a casa da irm ou ajudar alguns colegas na faculdade. muito difcil. Consegui entrar na universidade porque cheguei num tempo em que meus irmos j estavam trabalhando e puderam me ajudar tambm. As cotas ajudam e muito. Como que a gente que vem da escola pblica vai concorrer com esse pessoal da escola privada que no passou por greves de professores e de funcionrios? -lhes cobrado desde que nascem: Vocs tm que ter um nvel superior. Tm espelhos na famlia: mdicos, engenheiros, professores. Nas famlias pobres, a maioria negras, a me dona de casa, o pai pedreiro, o pai est desempregado, o pai bandido, o pai ladro.

51% dos 200 milhes de habitantes so negros, o que faz do Brasil o segundo pas com a maior populao negra do mundo a seguir Nigria. Mas s 26% dos universitrios so negros

Ela estava entre os melhores da turma, diz. Em cirurgia, foi considerada a aluna-padro. A diferena em relao aos outros que tudo custava muito mais: saa de casa de madrugada para no apanhar engarrafamentos e garantir que estava nas aulas a tempo e horas, fazia ginstica ao dinheiro porque tinha de passar um dia inteiro fora de casa, tinha de comprar livros carssimos, alguns a mil, dois mil reais

Voltamos histria do convite. Queremos saber o significado daquela frase que ela colocou no final: Mulher j discriminada por si s, tem salrios inferiores aos dos homens, se for negra ainda pior. Da favela, o pessoal acha que ladro. Virei mdica: isso possvel.

Para se ter uma ideia do que diz: com o mesmo nvel de escolaridade, as mulheres brancas ganham 68,7% do salrio dos homens brancos, enquanto os homens negros ganham metade e as mulheres negras menos ainda, 38,5% (dados retirados do estudo Igualdade Racial no Brasil: reflexes no Ano Internacional dos Afrodescendentes, 2013, IPEA).

Ariana est num hospital militar como voluntria (mas tem um salrio). Quer fazer bancos em hospitais do interior para ganhar algum dinheiro e estudar para fazer a prova de cirurgia geral. Vou cursar dois anos de cirurgia geral em hospitais e terminando os dois anos vou prestar novamente prova para fazer residncia em cirurgia peditrica durante trs anos. Cirurgia porqu? Gosto de resolver. E cirurgio resolve muito.

Em Salvador, o dia 2 de Fevereiro dia de culto a Iemanj, rainha do mar, um dos orixs venerados por religies afro-brasileiras como o candombl

O pas sempre foi racializado

Nos seis anos em que ensinou Antropologia da Sade no curso de Medicina na Pontfice Universidade Catlica (PUC), Accio Almeida no teve um nico estudante negro brasileiro. Precisamos de fazer com que os meninos negros estejam nos cursos de Engenharia, de Medicina, de Direito, diz, no ptio interior da PUC em So Paulo, uma das universidades onde d aulas (a outra a Faculdade de Campinas).

As cotas raciais no Brasil j existem h mais de dez anos: a Universidade de Braslia, a primeira federal a faz-lo, tem-nas desde 2004. Mas s em 2012 que passaram a ser obrigatrias nas universidades federais e institutos federais de educao, cincia e tecnologia, dividindo-se assim: 50% para alunos que estudaram nas escolas pblicas (e que tenham baixos rendimentos) e, dentro destas, uma percentagem para negros (pretos e pardos, como define o Censos) e para indgenas proporcional do Estado onde est a instituio.

O argumento contra as cotas defende que vm racializar um pas que nunca foi racializado. Mentira! Esse pas sempre foi racializado, as pessoas que no tinham vergonha na cara para se perguntarem porque que no h estudantes negros dentro de uma sala de aula

Accio Almeida, professor universitrio Doutorado, o primeiro na famlia toda a ter uma licenciatura, Accio Almeida, 48 anos, regressa ao tempo das discusses sobre polticas de aco afirmativas antes de estas serem implementadas, algo que gerou, e continua a gerar, acesas discusses: O argumento contra as cotas defende que vm racializar um pas que nunca foi racializado. Mentira! Esse pas sempre foi racializado, as pessoas que no tinham vergonha na cara para se perguntarem porque que no h estudantes negros dentro de uma sala de aula. Preencher as fichas a dizer de que raa somos essencial porque precisamos de saber quantos [negros] so, onde esto, em que lugares esto e esto nas periferias, no esto nas universidades, esto nas piores condies de sade.

No geral, o nmero de alunos no ensino superior aumentou bastante entre 2001 e 2010: 109%, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais, passando de 1,7 para 3,3% da populao brasileira. Porm, a desigualdade persiste: 2,3% dos negros e 4,3% dos brancos estavam na universidade, de acordo com o Censos 2010.

Estes so nmeros que se espelham nas relaes raciais dirias. J depois de ascender socialmente, Accio Almeida foi tendo vrios episdios de discriminao. Exemplos: estava parado num estacionamento espera que o empregado lhe viesse trazer o carro. No estava com uniforme de quem trabalha no estacionamento, e o cara chega com um ticket para mim Mais exemplos: Fui dar um curso de formao de questes raciais para funcionrios da sade na prefeitura. As pessoas comeam a chegar. Vem uma mulher que se vira para mim e no teve dvidas: O senhor vigia de que unidade? Na defesa da sua tese, estava de fato e gravata, no prdio da universidade, e havia um cara transportando coisas com um carrinho de mo. A, ele me viu e falou: Ei irmo, d uma fora a! Isso para mim foi super-significativo. Posso ter um doutorado, mas ainda me identificam como pobre.

Na dvida, diz sempre: , sim, racismo. Porque vivemos num pas racista, ento prove que a sua atitude no racista.

Transformao lenta

Se alguma vez pediram a Carlos Alberto Reis de Paula para dar uma fora a, meu irmo no Tribunal Superior do Trabalho (TST), no sabemos. O primeiro negro a presidir a esta instituio e o primeiro magistrado negro num tribunal superior do pas em 1998 (o prprio TST) prefere que os episdios de racismo de que foi alvo durante a vida fiquem nas brumas da histria.

Encontramo-lo em finais de Janeiro, em Braslia, pouco antes de deixar de ser o presidente do TST atingiu o limite de idade, 70 anos, em Fevereiro. No caminho at ao TST, atravessmos a esplanada dos ministrios, passmos pelos inmeros edifcios ministeriais, vimos o Senado, andmos no meio do centro do poder. Vimos o edifcio do Ministrio de Relaes Exteriores que at 2010 nunca tinha tido um diplomata negro no cargo de embaixador (segundo a BBC).

Carlos Reis de Paula, o primeiro negro a presidir o Tribunal Superior de Trabalho e o primeiro magistrado negro num tribunal superior

E a pensamos: com quantos colegas negros em posies idnticas sua que Carlos dePaula se cruza todos os dias? Veja s: quando fui nomeado e tomei posse como ministro do Tribunal Superior do Trabalho, a 25 de Junho de 1998, eu era o primeiro ministro [magistrado] negro num tribunal superior de justia aqui no pas. Atravs dessa conscientizao, a situao modificou. Em 2003, tivemos a nomeao do primeiro negro para o Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, que hoje presidente dessa corte maior aqui no Brasil [e o juiz do processo mensalo]. Temos j a presena de negros no Supremo Tribunal de Justia, que um facto extremamente relevante. um processo de conscientizao e um processo pelo qual o Brasil vai-se transformando.

Isto falando do poder judicirio, porque quanto aos outros rgos de poder a proporo sempre muito reduzida. O Brasil est-se transformando mas uma transformao lenta. Por exemplo, se fizer uma anlise da sociedade, vai notar que a presena de negros muito reduzida nas posies de comando, das empresas privadas, das empresas pblicas e da prpria administrao pblica. E vamos descobrir tambm que negros e brancos continuam com salrios desiguais: em 2013, os negros ganharam mais de metade (57,4%) que os brancos, revelou o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatsticas (IBGE).

Se [dissesse] que o Brasil um pas em que no h discriminao, no estaria sendo fiel aos factos, comenta. No podemos esquecer que o Brasil foi um pas de escravido de negros que vinham de vrios pases de frica. Essa escravido perdurou at 1888, por quase 400 anos. Isso uma marca na formao cultural de um povo. A prpria Constituio diz que a discriminao um crime: se prev, porque ocorre. Essa discriminao, atravs de polticas pblicas, gradualmente vai-se reduzindo.

Mestre e doutor em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), regio onde nasceu, foi professor na Universidade de Braslia (UNB), onde participou no debate e introduo de cotas para alunos, uma atitude pioneira em relao universidade pblica, diz. Porm, no existem cotas para professores negros, e a sua presena na UNB era muito reduzida mesmo. Dos mais de 300 professores, no havia dez professores negros, recorda o professor que se reformou em 2012.

Mas aces afirmativas existem h muito mais tempo, lembra o ministro. A grande descoberta do Brasil foi a partir da Constituio de 1988, um marco. Estabeleceu como valor ltimo a cidadania e universalizou os direitos em relao cidadania. Por exemplo, est expresso que os portadores de deficincia tero 10% das reservas em concurso pblico; que as mulheres tm de ter uma participao na vida poltica brasileira e para isso a legislao assegura determinado percentual. Mais: Quando se cuida da estruturao da ordem econmica e financeira do pas, diz-se que as empresas brasileiras pequenas, constitudas apenas por brasileiros, tm de ter leis que as protegem em relao concorrncia de outras empresas maiores. Isto so modalidades de aco afirmativa.

No podemos esquecer que o Brasil foi um pas de escravido de negros que vinham de vrios pases de frica. Essa escravido perdurou at 1888, por quase 400 anos. Isso uma marca na formao cultural de um povo

Carlos Alberto Reis de Paula, juiz

No h dvida de que o Brasil precisa das cotas raciais, defende. Porqu? O Brasil tem mais de 50% [de negros], mas isso no se retrata dentro das universidades, nem nos demais segmentos no pas. Se quero buscar cidadania, tenho de dar igualdade de oportunidades a todos e para isso obrigatoriamente tenho de passar pelo ensino. A grande tese reside a: criar oportunidade para todos concorrerem de forma igual. Para isso [as pessoas] tm que ter tido a oportunidade de se qualificar e passado obrigatoriamente pela universidade. Este no deve, porm, ser um trabalho isolado, deve ser feito em paralelo com o aprimoramento do ensino bsico e secundrio pblico, diz, porque tem sido reservado queles que tm piores condies econmicas e sociais, e no h uma boa estrutura nas escolas, os professores no so valorizados, os recursos pedaggicos so reduzidos e h ainda muitas desistncias.

Como que a sua experincia o levou onde est, ento? Natural do interior de Minas Gerais, da cidade Pedro Leopoldo, estudou Filosofia e Teologia, fez depois um bom curso na Faculdade de Direito. A me era domstica, o pai, que se formou em Engenharia Agrnoma em 1933, foi um exemplo maravilhoso. Era de uma famlia pobre o av era porteiro de uma secretaria de Estado e a av era tambm domstica, praticamente no tinham recursos. O meu pai, sempre sonhador, gostava de estudar e lutava com dificuldade.

Gradualmente, os negros tm vindo a ocupar espaos pblicos na sociedade, nota. Carlos de Paula formou-se, foi professor, foi juiz e sente que a gente passa a no sofrer a discriminao que boa parte das pessoas sofrem. Quer dizer, no Brasil, temos uma discriminao em relao aos pobres, os pobres so discriminados, mas de forma especial os pobres que so negros e de forma especial as mulheres que so negras.

Escravido mental

Aline Teles, 31 anos, aprendeu a gostar de si prpria no Instituto Biko, um organismo em Salvador que promove a ascenso poltica e social de negros e tem vrios programas, como a preparao para o vestibular (o exame de acesso universidade).

O Biko uma referncia para muitos jovens. Ariana Reis diz mesmo que h um antes e um depois do Biko na sua vida. Para Aline Teles, estudante de humanidades e polticas da cultura na Universidade Federal da Bahia, tambm: antes, esticava o cabelo, usava rabo-de-cavalo, no gostava de se ver no espelho. A gente no se aprende a gostar, a se valorizar. S comecei a gostar do meu cabelo do jeito que ele , a assumir ele dessa maneira, depois que passei pelo instituto, pelas aulas de Cidadania e Conscincia Negra.

Aline Teles, 31 anos, aprendeu a gostar de si prpria, da sua cor de pele e do seu cabelo, no Instituto Biko

Aprendeu a gostar de um cabelo crespo e da cor da sua pele. Fez todo um processo muito doloroso, porque isso mexe muito com a gente. At voc se olhar no espelho e dizer: Puxa, voc bonita desse jeito, seu cabelo lindo. E entender porqu tanta discriminao a gente sofre, de uma criana olhar para a outra e dizer: No vou falar com voc porque o seu cabelo no balana

No Biko, Aline comeou a olhar-se ainda a outro espelho, o dos modelos, e a ver professoras que usavam cabelos naturais ou a ouvir falar de personagens histricas que lutaram como lutou o prprio Biko, activista sul-africano contra o apartheid.

Antes de Barack Obama ter lanado a campanha Yes, we can j o Instituto Steve Biko proclamava sim, ns podemos, diz Slvio Humberto, um dos fundadores.

Slvio Humberto define-se como classe mdia a famlia no o , os pais lutaram bastante para que ele estudasse em escolas privadas. Hoje vereador na prefeitura de Salvador pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB). Sou a excepo: 50 anos, doutorado, funcionrio pblico. A regra as pessoas negras no chegarem [a lugares de topo], independentemente da sua vontade. E voc precisa de questionar por que que no chegam.

Sou a excepo: 50 anos, doutorado, funcionrio pblico. A regra as pessoas negras no chegarem [a lugares de topo], independentemente da sua vontade. E voc precisa de questionar por que que no chegam

Slvio Humberto, vereador em Salvador

Sentado no seu pequeno escritrio em Salvador, com o retrato de Nelson Mandela atrs, Slvio Humberto explica que essa afirmao positiva importante porque o racismo entra de tal forma na cabea das pessoas que se torna uma espcie de escravido mental.

Por isso, no Biko, h a disciplina Cidadania e Conscincia Negra, onde se do ferramentas aos alunos para enfrentarem o racismo de frente, se trabalha a auto-estima e se tenta incutir o esprito de que os sonhos dos alunos so possveis. O instituto passa a mensagem aos estudantes: Busque o seu sonho, o seu sonho precisa de ser a sua primeira escolha.

Foi no Biko que Ariana Reis, por exemplo, encontrou quem tivesse acreditado no seu sonho de ser mdica. Encontrou tambm uma identidade, passou a ter orgulho em ser quem era, em ser negra. E consegui mudar todos minha volta, conta. Levava os sobrinhos, a me para palestras. Mostrava: Aquele dali advogado, aquele a economista, aquele ali engenheiro. Nunca tinham visto tantos negros com cargos de prestgio juntos.

Slvio Humberto, fundador do Instituto Steve Biko, que ajuda negros a entrar na universidade

Fundado em 1992 por pessoas ligadas ao movimento negro, o Biko tinha e continua a ter como objectivo aumentar o nmero de estudantes negros nas universidades. Em 21 anos, cinco mil pessoas foram beneficiadas pelas aces do instituto, calcula Slvio Humberto. A grande conquista do instituto colocar a universidade dentro do projecto de vida e de trabalho da populao negra, diz.

Quanto s cotas, perdemos tempo, parecemos um cachorro atrs do rabo, quando questionamos a sua pertinncia dentro desse discurso de conservadorismo racial que defende que raa no existe: refora-se, assim, o mito da democracia racial que considera que o problema social. Voz convicta: Desigualdade racial promove desvantagem social e no o contrrio. Paradoxo: O que o mito da democracia racial vai proporcionar essa des-racializao dos conflitos. Voc chega a um ponto que acha que o problema social e isso at chega cabea dos negros. O racismo to complexo que no uma questo de maioria, no so nmeros. Essa maioria precisa de se reconhecer como maioria racializada. Enquanto achar que uma maioria, mas no politiza o facto de ser uma maioria e no reconhece politicamente que h uma desigualdade racial, voc vai achar que no h tratamento diferenciado. Somos todos iguais, mas as oportunidades que temos no so.

Talvez por isso, como conta a estudante Layane Fonseca, 26 anos, h muitos estudantes que tm vergonha de dizer que so cotistas, como ela. O que critica: Enfraquece toda a luta que o movimento negro teve para se constiturem as cotas.

H pessoas de todas as cores na festa de Iemanj, importante para os negros e para os brancos tambm

Perversidades do racismo

Em Salvador, dia 2 de Fevereiro, dia de culto a Iemanj, rainha do mar, um dos orixs venerados por religies afro-brasileiras como o candombl.

A festa acontece em Rio Vermelho e comea de madrugada, com a peregrinao ininterrupta capela da colnia de pescadores. So 7h, o sol j vai alto e as ruas em volta da praia esto cheias, mas nada que se compare com o que ir acontecer umas horas mais tarde: um mar de gente compacto a fazer a festa em cada canto.

Na areia, grupos de negros e brancos, brasileiros e muitos turistas esperam que os barcos levem as oferendas: espelhos, flores, bonecas, todo o tipo de objectos. Uma primeira observao: estamos em frente a um exemplo da miscigenao racial harmoniosa no Brasil. H pessoas de todas as cores, a festa importante para os negros, brancos tambm veneram Iemanj. Mas olhamos volta: porque que a representao da deusa da fertilidade s feita com figuras brancas, de cabelos lisos, tirando umas T-shirts que nos iro levar festa Iemanj, Black, e que tm estampada uma mulher com caracis?

Ainda estamos a desconstruir o mito da democracia racial, diz a historiadora Wlamyra Albuquerque, que nos ir guiar pelas fronteiras do racismo na festa, tentando desmontar um mito que aprisiona at hoje os brasileiros. O facto de a festa reunir pessoas diferentes no quer dizer que elas se reconheam ou vivam como iguais. H uma democracia no sentido de circulao em espaos como a praia, por exemplo, mas nem todas as pessoas circulam em todos os lugares sem distino.

H uma democracia no sentido de circulao em espaos como a praia, por exemplo, mas nem todas as pessoas circulam em todos os lugares sem distino

Wlamyra Albuquerque, historiadora

Passados tantos anos, o Brasil ainda est refm desse conceito sobre a especificidade das relaes raciais brasileiras propagado por Gilberto Freyre nos anos 1930: a democracia racial era fruto de uma espcie de brandura da colonizao e escravatura lusas. Certo, nunca existiu uma poltica de segregao racial no Brasil, como nos Estados Unidos e na frica do Sul. Mas o pas construiu-se socialmente entendendo que brancos e negros so diferentes e ocupam lugares diferentes na estrutura social, contextualiza Wlamyra Albuquerque. No preciso ter placas proibindo a entrada de negros porque isso est posto no modo como os lugares so construdos e no tipo de pblico que atraem. Essa subtileza, essa forma quase imperceptvel de estabelecer fronteiras, das coisas mais perversas da sociedade brasileira: cada qual sabe qual o seu lugar.

por essa geografia que vamos circulando com Wlamyra, ento. Professora na Universidade Federal da Bahia, especialista em relaes raciais e escravatura, autora de livros como O Jogo da Dissimulao e de Uma Histria da Cultura Afro-Brasileira, com Walter Fraga Filho, ela vai-nos mostrar a forma como a sobreposio entre condio social e condio racial se processa numa das festas mais populares da Bahia.

Salvador a boca por onde entraram os africanos escravizados, mas tambm todas as culturas africanas que recebemos e reinventmos, diz. Ento a importncia de Iemanj est no facto de a gente no deixar esquecer esse passado da forte presena dos povos africanos.

Wlamyra Albuquerque diz que ainda estamos a desconstruir o mito da democracia racial

Chegam rodas de dana, festeiros, chegam mes e pais de santo, chega o candombl, a religio popular na Bahia, para prestar homenagem a Iemanj. Mas aqui tambm se pode sambar e beber, por isso multiplicam-se as feijoadas privadas onde se paga para entrar. O lado festivo faz parte das culturas africanas reinventadas na Bahia e uma maneira de expor publicamente a fora das culturas negras nesse pas, diz.

Atravessamos o mar de gente e paramos a olhar a fila imensa que se disponibilizou a esperar horas para entregar uma oferenda. Enquanto isso, Wlamyra guia-nos com as lentes da diviso racial: A presena do povo de santo no reprimida mas, por outro lado, h tentativas de mostrar essa festa como uma festa clean. Se formos para os grandes hotis, h banquetes e samba, encontramos vrias referncias das culturas negras, s que no encontramos negros. Mas certo que [negros] estejam servindo em bandejas ou tocando para que as pessoas dancem. Isso parece um paradoxo, mas explica o modo como as relaes raciais se reconstroem no Brasil: no se nega a importncia das populaes negras, mas isso no quer dizer que se aceite a presena dos negros, mesmo em lugares como a Bahia, em que os nveis de desigualdade scio-raciais so muito fortes.

No momento em que falamos, passa um grupo de jovens brancas, vestidas de hospedeiras de bordo, caracterizadas para um pequeno show algures. Wlamyra comenta: Todo o padro de beleza continua sendo branco no Brasil. Basta olhar as campanhas publicitrias, as mocinhas das telenovelas, todas as personagens correspondem a um padro esttico marcadamente europeu. As nossas principais representantes de beleza so mulheres brancas, esguias, que deixam de fora qualquer pertencimento condio racial negra. Como mulher, como que Wlamyra sente isso? Eu acho que sou linda!, ri-se. Sinceramente, acho que h um certo desperdcio dos media brasileiros, uma falta de inteligncia no modo como pensam os padres de beleza. Ficam volta de modelos que esto em todos os lugares.

Continuamos a andar, paramos em frente a um grupo que ensaia capoeira, em tempos considerada crime, por isso o facto de estarem aqui uma forma de se reafirmar a populao negra no espao pblico e isso simbolicamente dito sem ser verbalizado. Passa uma criana a vender gua e sumos: no tem mais de dez anos. Wlamyra aponta: Voc no v criana branca vendendo. E: Note que a grande maioria dos vendedores de rua negra, no h branco servindo na festa, todos os que servem ou nos oferecem coisas para comprar so negros, diz. [ preciso] questionar o modo como se naturalizou a condio de subalternidade dos negros. responsabilidade de todos, independentemente da cor da pele, de desconstruir essa naturalizao.

Todo o padro de beleza continua sendo branco no Brasil. Basta olhar as campanhas publicitrias, as mocinhas das telenovelas, todas as personagens correspondem a um padro esttico marcadamente europeu

Wlamyra Albuquerque

Algum apregoa a venda de rosas atrs de ns. Por exemplo, uma rosa custa 12 reais. Ela tem que ser sempre molhada, cuidada. [Alguns vendedores vm para aqui dormir dois dias antes]. muito esforo para ganhar pouco dinheiro. Isso mostra o nvel de pobreza que ainda existe.

Nascida na periferia de Salvador, Wlamyra filha de uma dona de casa e de um militar de baixa patente e sempre estudou em escolas pblicas. At que teve um professor que a provocou a ir para a universidade numa altura em que ainda no havia cotas. Trabalhava de dia, estudava noite. Ascendeu socialmente e mesmo assim continua a viver episdios de racismo. Recentemente, entrou num consultrio mdico numa rea rica da cidade e teve algum a perguntar: A senhora tem a certeza que vai a esse prdio?

Os rolezinhos, por exemplo, so, para ela, um exemplo de que a melhoria da condio econmica do pas est deixando claro o quanto a democracia racial no Brasil uma farsa, pois no se trata s de ter ou no dinheiro. (Os rolezinhos provocaram polmica no final do ano passado porque grupos de jovens da periferia, alguns negros, marcavam encontros em shoppings criando o pnico entre lojistas e segurana.)

A representao da deusa da fertilidade s feita com figuras brancas, de cabelos lisos

Passa um grupo de meninas vestidas de azul, cada qual com tom de pele diferente. No Brasil, o Censos divide racialmente a populao em pretos e pardos (negros), amarelos, indgenas e brancos. Uma das coisas que mais intrigam entender como no Brasil possvel o racismo, j que h tanta mistura. As pessoas sabem que quanto mais elas se aproximam de um modelo branco, tanto em termos de tom de pele, como de forma de cabelo ou outras caractersticas, mais elas tm a chance de escapar do racismo. Ento se olhar para a festa encontra pessoas de pele negra com cabelos louros muito lisos ou que usam uma maquilhagem que disfara o tom da sua pele. Isso s quer dizer que elas lem essa gramtica do racismo e procuram se proteger das suas formas mais perversas, diz. A identidade sempre relacional e a identidade racial tambm: se est num lugar onde as pessoas a vo reconhecer pelo tom da pele e est com algum muito branco, provavelmente est em desvantagem em relao quela pessoa; se est com algum com tom de pele mais escuro, isso pode trazer desvantagem a essa pessoa.

Como se classifica Wlamyra? Eu sou negra. Com certeza. Mas sei que mais fcil para mim dizer isso. Sendo professora universitria, podendo circular em vrios espaos e sendo dona do meu prprio discurso, podendo falar a partir do que sei como pesquisadora sobre relaes raciais, isso me d uma certa proteco e possibilidade de enfrentar o racismo.

Junto aos grandes hotis do Rio Vermelho, h uma avenida com restaurantes e cafs. A decorao de alguns moderna, poderia ser em Nova Iorque ou em Lisboa e os preos tambm. Esto cheios de gente, o ambiente exactamente como Wlamyra Albuquerque descreveu: quanto mais caro, mais branca a massa de gente que l est.

A auto-estima

A escultura Navio Negreiro gigante, ocupa toda uma sala do Museu Afro-Brasil, em So Paulo. para l que nos leva Emanoel Arajo, o autor da pea, director e fundador do museu doou mais de duas mil peas da sua coleco numa das sesses de fotografia.

Situado num pavilho desenhado por Oscar Niemeyer, em pleno Parque Ibirapuera, o museu nasceu com uma provocao, diz o seu idelogo, no s para os brancos mas tambm para os negros porque h na comunidade negra, que a maioria, uma falta de auto-estima.

Sou mais um brasileiro que quase deu certo", ironiza Emanoel Arajo

imagem do que o Instituto Biko faz com os seus alunos, tambm este museu quer sublinhar o orgulho negro. Seguimos para a sala onde se mostram diversas personalidades histricas negras importantes, porque a memria que se pretende avivar essa: importante no foi s Pel, foi tambm o gegrafo Milton Santos, o editor Francisco Paula Brito, o psiquiatra Juliano Moreira, o poeta Cruz de Sousa, o engenheiro Teodoro Sampaio, o engenheiro Andr Rebouas H uma quantidade de negros no Brasil que esteve na academia imperial de Belas-Artes, na literatura, na engenharia, que estava em todos os ramos da existncia humana brasileira, comenta. Este museu pretende ser um espelho para essa auto-estima. O estigma da escravido perverso e continua, mas preciso que as pessoas no se deixem perturbar.

Aspecto importante este no ser um museu do negro, mas um museu que tenta ligar o Brasil a frica, fundamental na construo do pas, at porque a riqueza do pas foi tambm construda pelos escravos que, por sua vez, ajudaram ao enriquecimento das oligarquias, a mo-de-obra foi e continua sendo negra, ela que de certa forma ainda est na base da pirmide e carrega o peso.

Nascido em 1940, em Santo Amaro da Purificao (Bahia), Emanoel Arajo vem de uma famlia de ourives. Se h energia que passa para quem o conhece, a da confiana e auto-estima. Sentado num dos sofs dos escritrios do museu, um open space quente num Vero paulista com as mais altas temperaturas dos ltimos tempos, vai-se abanando e responde pergunta sobre se se considera, ento, uma excepo. Sou mais um brasileiro que quase deu certo.

Obviamente, o quase irnico: ele um artista plstico que recebeu diversos prmios importantes, criou dois museus (antes deste, o Museu de Arte da Bahia), foi director da Pinacoteca de So Paulo, que renovou, durante dez anos (1992-2002) Segredo: Trabalho e vontade, que fundamental para alcanar o que voc deseja. Isso no tem cor. E a vontade fora sua.

O povo brasileiro ndio, negro, mulato, branco, imigrante. Para aos negros, resta sempre a questo de estar no ltimo escalo da sociedade, porqu?

Emanoel Arajo, director do Museu Afro Brasil

Obstculos, por ser negro, existiram, sim. Mas os obstculos a gente tira de letra. Em todas as actividades humanas, sobretudo num pas de terceiro mundo ou num pas emergente, voc tem que ter a pacincia, a impertinncia e a teimosia para poder fazer. Depois, teve a sorte de conhecer quem acreditasse nele.

O que no significa que tudo seja uma questo de vontade, como se poderia depreender das palavras de um homem que descreve o Brasil como o pas ambguo. Defensor da aplicao da lei de 2003 que obriga o ensino da Histria Afro-Brasileira nas escolas, Emanoel tambm pr-cotas raciais, pr-polticas de aco afirmativas, mas num esprito de ir um pouco mais adiante. Trata-se de um lugar de direito do povo brasileiro, e o povo brasileiro ndio, negro, mulato, branco, imigrante. Para aos negros, resta sempre a questo de estar no ltimo escalo da sociedade, porqu? E somos um pas que ainda tem quilombola pessoas que fugiram na poca da escravido e fizeram comunidades livres e independentes e trabalho escravo.

Voltamos, assim, questo da ambiguidade com uma frase que ele repete de cor: Sempre digo que o Brasil um pas ambguo, uma ambiguidade em que tudo pode e tudo no pode, tudo e tudo no . Durante muitos anos, dizia-se que o Brasil era uma democracia racial e essa democracia racial era uma espcie de benesse de um olhar branco sobre o negro, o negro que vinha e vem de todos os estigmas da escravido. Hoje j ningum acredita nesse mito da democracia racial, garante.

Estamos agora no ncleo da exposio onde se mostram as grandes figuras negras. Emanoel Arajo tem por cima a pea com Pel a dar um chuto numa bola. Como l o facto de as reas de exportao da imagem do Brasil, o carnaval e o futebol, terem uma presena to forte dos negros, perguntamos-lhe? Fica restrito explorao do corpo de um futebolista ou de uma negra com seus trajes mnimos rebolando na frente de uma cmara. Isto ainda uma questo da imagem perversa que se tem do negro no Brasil. Porque se est limitando a uma questo simplria a presena negra no Brasil, que o corpo.

Numa das conversas informais com Emanoel Arajo, ficou na cabea uma frase que ele disse: Ningum quer ser negro no Brasil. Porque se sofre com isso: um pas que durante sculos instituiu diversas cores para que as pessoas se afastassem do negro. Tem moreno, moreninho, preto, pretinho, formiga, pardo Uma infinidade de cores para que se possa escapar dessa condio racial.

O Brasil est-se transformando mas uma transformao lenta", diz o juiz Carlos Alberto Reis de Paula

Um Presidente negro?

H um sketch do Cabaret da Raa, um espectculo em cena h 17 anos em Salvador, que faz uma brincadeira com o que Emanoel Arajo est a referir em relao s vrias tonalidades da pele. Uma actriz, mulata, diz plateia que morena e que deve ter um antepassado negro na famlia.

Mrcio Meirelles, encenador e director do Bando de Teatro Olodum, conta que quando estrearam a discriminao ainda era mais flagrante: no havia anncios com negros, no havia novelas com negros, mas uma revista que apareceu na altura, Raa, mostrava que havia um pblico de classe mdia negro que queria se ver, queria ver a sua imagem.

Como encenador, Mrcio procurou colocar a questo sobre o que ser negro no Brasil e o espectculo reflecte isso. Da a ambiguidade do sketch da morena, porque essas so interrogaes num pas que tem preto e pardo (misto) como opo no Censos.

O prprio negro racista a maioria do contingente policial negro, e eles primeiro checkam se os outros negros so bandidos ou no

Mrcio Meirelles, encenador

Na altura, Meirelles que considerado branco no Brasil, de classe mdia e teve toda uma formao eurocntrica quis investigar a cultura africana no teatro e o porqu de o pblico negro ser uma percentagem mnima da plateia. Ainda antes da implementao das cotas, fizeram uma campanha: cobravam meia entrada a negros. Era uma brincadeira, qualquer um que dissesse sou negro, quero pagar meia entrada, pagaria. Era uma forma tambm de provocar essa discusso que est no espectculo: o que ser negro?

O cenrio est agora um pouco diferente, h mais negros na academia e em outras reas da sociedade, mas no muda muito a questo do racismo. Existe racismo, a gente condicionado a isso e o prprio negro racista a maioria do contingente policial negro, e eles primeiro checkam se os outros negros so bandidos ou no; nos nibus primeiro, so os negros revistados, nas lojas os empregados so negros e so eles que so primeiro discriminados. No Brasil, o racismo sempre foi negado, ento muito difcil combater uma coisa que no existe e isso torna o racismo mais perverso.

Hoje, porm, a ascenso social de classes que eram mais pobres, o consumismo e o acesso a informao esto a operar aquilo a que ele chama uma revoluo cultural no Brasil e isso coloca outras questes e outros problemas como associar os negros aos pobres. Um negro primeiro tem que provar que rico e que no est ali para roubar. Voc tem um primeiro momento em que a cor, a pele, grita mais alto que as questes sociais.

O "Cabaret da Raa" procurou colocar a questo sobre o que ser negro no Brasil

uma questo que Slvio Humberto tambm coloca: As vezes em que fui discriminado foi porque era um negro que estava entrando num espao que era das pessoas brancas. O racismo na Bahia no se manifesta porque as pessoas negras no esto nesses espaos. A ascenso social das pessoas negras, no individualmente mas colectivamente, comea a promover mudanas e possibilidades maiores de choques e das pessoas exteriorizarem o seu racismo. Concluindo: um bom teste sobre se vivemos racialmente de forma harmnica: coloque as pessoas juntas, vamos disputar o mercado de trabalho, vamos disputar as oportunidades.

Significa esta ascenso de uma classe mdia negra que o Brasil poder eleger um Presidente negro em breve? Impossvel, responde Accio Almeida em So Paulo. Existe uma resistncia muito grande. Slvio Humberto, em Salvador, ironiza: pode ser que o Brasil eleja um Presidente antes de a Bahia ter um governador negro. Mas dadas as condies objectivas ainda tem muita gua para passar debaixo dessa ponte. No Museu Afro-Brasil, um artista brincou com a imagem de Obama e de Emanoel Arajo, sobrepondo-as. Ele ri-se quando lhe falamos dela e fazemos a mesma pergunta. Obama s foi eleito porque no afro-americano, filho de uma me branca e de um pai negro. Se tivesse o estigma da escravido, no seria eleito. Os EUA so democrticos h 250 anos, teve um apartheid, outro pas. O Brasil est a anos-luz de distncia. Wlamyra Albuquerque: No acredito nisso. Sinceramente, acho que no se trata de ter ou no um Presidente negro, mas em que medida a questo do negro uma questo nacional.

Muitos perguntaram, j, se algum dia Joaquim Barbosa se candidataria. O prprio respondeu que no vrias vezes. Recentemente, porm, disse que era preciso fazer algo para incluir os negros no mainstream da sociedade e que o Brasil nunca tratou a srio esse assunto. Citado pela Afropress numa conferncia em Londres, dizia: a desigualdade racial um dos problemas-chave na poltica brasileira.