quem conta a histÓria É quem dÁ o tom ou narrativas … · 2019-07-25 · de mestrado de...

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QUEM CONTA A HISTÓRIA É QUEM DÁ O TOM OU NARRATIVAS SOBRE AS BONECAS ABAYOMI: ANCESTRALIDADE E RESISTÊNCIA DAS MULHERES NEGRAS OU ROMANTIZAÇÃO DA ESCRAVIDÃO? Maria Cristina do Nascimento 1 Rede de Mulheres Negras de Pernambuco INTRODUÇÃO Boneca/o é reprodução do humano, apresenta significação ontológica, faz parte da nossa necessidade nos re/conhecermos, exerce função lúdica e de exercitar a alteridade, brincar de boneca/casinha é exercício de vivência coletiva e de experienciar troca de papeis, também funciona para perceber a organização societal e construir a sociabilidade. Daí a importância e a força do lugar da representatividade das bonecas negras para a autoimagem de negras e negros. As bonecas têm sua presença registrada desde as mais antigas civilizações, como as ushabts do Egito Antigo às barbies e tantas outras da atualidade (COSTA et, 2016). Fazer bonecas de pano (ou bruxinhas) para as meninas 2 brincarem é comum em toda América Africana, mas nem sempre essas bonecas têm tonalidades da cor da pele negra, na minha infância, por exemplo, não me recordo de vê-as pretas, maioria das vezes, eram feitas de tecido branco, ou cor rosa bem clarinho. No sul dos Estados Unidos, segundo o historiador Walter Passos (2016), na época da escravidão, as mulheres negras confeccionavam bonecas de duas cabeças juntamente com um conjunto de braços brancos (Topsy-turvy doll), ou seja, em vez de pernas tinham outra, cabeça e braços pretos, que eram escondidos embaixo da saia da boneca, pois os senhores de escravizadas/os não queriam que as crianças pretas 1 Mestra em Ciências da Religião, artivista, professora da Rede de Ensino do Município de Recife, bonequeira e atriz. contatos: [email protected] ou [email protected] 2 A reflexão sobre a questão de gênero: “brinquedo de menina, brinquedo de menino ou brinquedo de brincar?’ é imperiosa sobre esse lugar destinado às mulheres como cuidadoras e mantenedora do doméstico e das mulheres negras como empregadas domésticas no imaginário e prática colonizadora que estrutura a sociedade brasileira, racista, classista e sexista. A perspectiva filosófica africana é da ludicidade e do compromisso coletivo com a educação das crianças, como afirma um provérbio africano: “é preciso uma aldeia inteira para se educar uma criança”.

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QUEM CONTA A HISTÓRIA É QUEM DÁ O TOM OU NARRATIVAS

SOBRE AS BONECAS ABAYOMI: ANCESTRALIDADE E RESISTÊNCIA DAS

MULHERES NEGRAS OU ROMANTIZAÇÃO DA ESCRAVIDÃO?

Maria Cristina do Nascimento1

Rede de Mulheres Negras de Pernambuco

INTRODUÇÃO

Boneca/o é reprodução do humano, apresenta significação ontológica, faz parte

da nossa necessidade nos re/conhecermos, exerce função lúdica e de exercitar a

alteridade, brincar de boneca/casinha é exercício de vivência coletiva e de experienciar

troca de papeis, também funciona para perceber a organização societal e construir a

sociabilidade. Daí a importância e a força do lugar da representatividade das bonecas

negras para a autoimagem de negras e negros.

As bonecas têm sua presença registrada desde as mais antigas civilizações, como

as ushabts do Egito Antigo às barbies e tantas outras da atualidade (COSTA et, 2016).

Fazer bonecas de pano (ou bruxinhas) para as meninas2 brincarem é comum em

toda América Africana, mas nem sempre essas bonecas têm tonalidades da cor da pele

negra, na minha infância, por exemplo, não me recordo de vê-as pretas, maioria das

vezes, eram feitas de tecido branco, ou cor rosa bem clarinho.

No sul dos Estados Unidos, segundo o historiador Walter Passos (2016), na

época da escravidão, as mulheres negras confeccionavam bonecas de duas cabeças

juntamente com um conjunto de braços brancos (Topsy-turvy doll), ou seja, em vez de

pernas tinham outra, cabeça e braços pretos, que eram escondidos embaixo da saia da

boneca, pois os senhores de escravizadas/os não queriam que as crianças pretas

1 Mestra em Ciências da Religião, artivista, professora da Rede de Ensino do Município de Recife,

bonequeira e atriz. contatos: [email protected] ou [email protected] 2 A reflexão sobre a questão de gênero: “brinquedo de menina, brinquedo de menino ou brinquedo de

brincar?’ é imperiosa sobre esse lugar destinado às mulheres como cuidadoras e mantenedora do

doméstico e das mulheres negras como empregadas domésticas no imaginário e prática colonizadora que

estrutura a sociedade brasileira, racista, classista e sexista. A perspectiva filosófica africana é da

ludicidade e do compromisso coletivo com a educação das crianças, como afirma um provérbio africano:

“é preciso uma aldeia inteira para se educar uma criança”.

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tivessem bonecas parecidas com elas, provavelmente, porque sinalizavam uma ideia de

poder ser gente e se ver: "Quando o senhor de escravizados ia embora, as crianças

tinham o lado preto, mas, quando o senhor de escravizados estava por perto, elas tinham

o lado branco” (PASSOS, 2016). Portanto, as Topsy-turvy doll eram estratégias das

mulheres negras, de possibilitar a partir da ludicidade, que suas crianças se

re/conhecessem em sua identidade negra afro-americana.

Ao abordar os aspectos culturais africanos e afro-brasileiros é impossível não

falar da escravidão, mas é indispensável que o enfoque a ser dado seja o da resistência

ancestral e seus princípios civilizatórios, com as interligações entre o ser/fazer/refletir-

se e da poética corpo/movimento/ancestralidade, uma vez que:

O navio trouxe corpos esfarrapados; o mercado negociou peças; coisas faziam todo tipo de trabalho; pessoas, porém, recriavam suas culturas

e se sentiam gentes, por inteiro. De tantas culturas, o trans-atlântico

ficaria repleto e as espalhou em terras firmes e foram tantas que se

encontraram, se multiplicaram e garantiram a humanidade frente a tanta violência. O domingo é o dia de folga “como melhor lhe apraz”,

isto era consenso entre os senhores no Brasil. Para a negrada era dia

de organização: dançar, tocar, fazer política, avançar. Por isso o congo, a congada, o tambor de mina, o batuque, a irmandade, o jongo,

o samba, o afoxé, a capoeira, o candomblé, o maracatu. Ou seja, essas

manifestações são recriações transplantadas dentro das suas possibilidades (PINHEIRO, 2007, p. 7).

É preciso estar atentas/os para não cairmos nas armadilhas do enfoque cultural,

das manifestações artísticas, destituídas da complexidade filosófica do ser/fazer

africano, do ser afro-brasileiro. Significa que, é preciso reconhecer, dentre tantos outros

símbolos e expressões, que o Maracatu é resistência dessa travessia do Atlântico. Que é

arraigado de religiosidade, que possui uma boneca como protetora, chamada Calunga,

que é a anfitriã dessa nação de pretas e pretos que resistiram. Inaldete Pinheiro de

Andrade (2007, p. 17), assim nos apresenta a relação entre uma boneca-memória-

ancestralidade:

A Calunga é a boneca sagrada do maracatu. É a embaixadora, abre o

desfile do cortejo. Um totem que representa o espírito do maracatu e

corporifica o elo com a cultura africana original, numa ponte entre as pessoas e o sagrado. Do banto, Kalunga encerra a ideia de grandeza,

imensidão, designando Deus, o Mar, a Morte.

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Historicamente, as bonecas têm presença marcante em manifestações culturais e

religiosas3 do povo negro, a historiografia nos mostra que, muito antes delas

constituírem-se brinquedos para as crianças, as bonecas faziam e fazem parte de

ritualísticas religiosas (SOUZA, 2010, p.27-28).

Bonecas pretas e ancestralidade

Analisando o lugar das bonecas como símbolo da ancestralidade da mulher

negra em diáspora forçada, a partir do paradigma afrocêntrico4, percebe-se que os

princípios civilizatórios africanos e afro-americanos/brasileiros se entrecruzam no

brincar/fazer bonecas, tais como: religiosidade, ludicidade, comunitarismo, memória,

oralidade e ancestralidade, visto que,

Nossos passos são rastros, vem de longe, não estamos inaugurando a

história. Não somos autoras do princípio da coletividade, do fazer circular, da potencialidade poética e racional contidas em nossos

corpos, sabemos o valor da oralidade desde que nascemos na

experiência do acolhimento nas vozes de nossos familiares, na troca de saberes em nossas formações comunitárias, nas histórias ouvidas

aqui e ali. Busco referenciais de identificação ancestral, espelhos do

passado propiciando o ecoar de ações contemporâneas, atualizadas em

rituais cotidianos, vivências pessoais e coletivas de celebrações, que reúnem expressões de construções envoltas em dores, alegrias, perdas

e ganhos que nos marcam, permitindo percorrer, abandonar e retomar

caminhos que nos constituem, misturando recursos que vieram de longe e de perto, dessa própria terra (SILVA, 2009, p. 07).

O racismo estrutural brasileiro também se apresenta na ausência da

representatividade negra nas bonecas, no reforço estereótipos racistas em personagens

de programas humorísticos e em bonecas inspiradas na “nega maluca”, os “bonecos de

piche” aparentemente inocentes, elas reforçam a negação da identidade negra desde a

infância, onde boneca preta é vista como “feia, suja”, em pesquisa de especialização e

3 Segundo o portal Afroxé, Oyá possui uma boneca que fica presa em sua roupa, ou no laço nas costas, na

peitaça ou mesmo sob sua saia. A boneca de Oyá (algumas pessoas denominam de Abayomi) deve ser

feita a mão pelas/os filhas/os do axé que são cuidadoras/es do quarto de Egun e de Oya. Deve ser costurada a mão e recheada com palha para que fique na forma de uma miniatura de Oyá, representando o

amor de Iansã. Importante destacar que nada no candomblé é à toa, que tudo tem finalidade e ligação com

a ancestralidade.

4 Para Asante (2009), afrocentricidade constitui-se num paradigma, evocando a reafirmação, da/o

sujeita/o africana/o a partir da perspectiva negra, da construção do conhecimento numa orientação

afrocêntrica da informação, desviando-se do pensamento eurocentrado.

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de mestrado de Fernanda Morais de Souza (2010), crianças afirmavam, diante de uma

fada negra que este tipo de fada não existe, teria que trocar a pele dela, por uma pele

branca, o cabelo e a pele preta não são apreciadas por elas e o cabelo crespo é tido como

feio, fadas são loiras e de olhos azuis (SOUZA, 2010, p.22).

A boneca preta sem costura e sem cola (denominada de Abayomi) nasce da

necessidade dessa representação, é resultado da criação de uma arte-educadora e

bonequeira negra, a maranhense Waldilena (Lena) Martins, que, ao aproximar-se do

movimento de mulheres negras5, vê aflorada em si a consciência de sua negritude e se

sente provocada, inspirada a fazer de sua arte um elemento de fortalecimento da

identidade negra:

A narrativa de sua criação remonta a um período marcado pela efervescência de movimentos sociais no país, nos anos 1980,

momento de redemocratização, debates em torno de uma nova

Constituição e dos cem anos da Abolição da escravidão, ambos

culminando em 1988. No ano anterior, 1987, a Abayomi começa a tomar forma. Waldilena Serra Martins, mais conhecida como Lena

Martins, integrava o Movimento de Mulheres Negras e trabalhava

como coordenadora de animação cultural no Centro Integrado de Educação Pública — CIEP — Luís Carlos Prestes. A artesã

desenvolveu a técnica da boneca negra de pano, sem costura ou cola,

naquele mesmo ano. Os materiais utilizados eram retalhos, tidos como restos, descartes de fábricas e confecções (GOMES et, 2017, p.251-2).

As reflexões sobre a sustentabilidade do planeta e o significado de reciclar

também estiveram presentes nas criações de bonecas sem cola e costura.

Abayomi e luta antirracista

Considero que é preciso nos questionar em relação ao lugar das Abayomi nas

discussões sobre o racismo, resistência das mulheres negras e a luta antirracista em

nossos movimentos. Estamos repetindo a narrativa mais divulgada ou estamos

enegrecendo e atualizando nossas práticas artivistas? Dessa forma, poderemos pensar

no lugar da arte em nossos processos de formação política e resistência ao racismo

estrutural.

Algumas abordagens que vêm sendo realizadas sobre essas bonecar em tutoriais

encontrados no Youtube, e, muitas vezes, repetidas em processos educativos, negam o

5 Em 1987, ocorreu o Primeiro Encontro de Mulheres Negras Brasileira, em preparativo e organização de

uma pauta própria para incidir na Constituição de 1988.

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lugar de protagonismo de Lena Martins, além disso, reforçam um discurso de

romantização da escravidão. Vale ressaltar que:

As versões que circulam na web são muito bonitas e inspiradoras, mas não tem qualquer suporte histórico e ainda negam a autoria de uma

artesã ainda viva. Lena, que é maranhense, criou a boneca em 1987. O

nome veio de uma amiga, integrante dos movimentos negros, que

estando grávida disse que batizaria a criança, se fosse mulher, de Abayomi – significando “meu presente”, ou em outras versões,

“aquele/a que me traz alegria”. Em uma entrevista ao programa

“Cultne na Tv”, Lena lamenta a invenção que lhe tirou a autoria da

boneca. Disse que mais de uma vez ouviu de pessoas, inclusive dos

movimentos sociais, dizendo que preferiam a outra versão por ser

mais romantizada, embora inverídica. Sei que a verdade é menos encantadora, mas nessa triste época da desinformação que vivemos

acho importante deixar tudo às claras para não falsear nossa própria

cultura e história (COSTA, A. 2018).

A boneca preta sem cola e sem costura questiona a ausência de bonecas negras

nas prateleiras das lojas, como faceta do racismo estrutural, ela também nos apresenta a

ludicidade como parte de nossas memórias ancestrais. Defendo o protagonismo de uma

mulher negra, dessa artivista6, como criadora dessa metodologia afrocentrada, no

sentido dado por Asante, que assinala pontes para o re/encantamento do ser brincante,

num continuum de teias de memórias e histórias de vidas:

Começamos com a visão de que a afrocentricidade é um tipo de pensamento, prática e perspectiva que percebe os africanos como

sujeitos e agentes de fenômenos atuando sobre sua própria imagem

cultural e de acordo com seus próprios interesses humanos (ASANTE, 2009, p. 93).

Venho utilizando a feitura dessas bonecas, no meu artivismo7 antirracista,

juntamente com remendos e costuras poéticas, tanto em intervenções no movimento de

mulheres negras e misto, quanto em formações com profissionais da educação pública e

privada, como caminho para dialogar sobre a cosmo-percepção-mundo africana e afro-

brasileira, que tem a circularidade de saberes, memória, musicalidade, ancestralidade,

religiosidade, ludicidade como partes de um todo,

Uma roda de samba, uma roda de capoeira, uma festa de terreiro, uma

escola de samba, um desafio de slam, quase todas as expressões culturais negras (artes, religiões, lutas, brinquedos e brincadeiras,

6 Aquela cujo ativismo se faz com arte em e nos movimentos sociais. 7 Segundo Nascimento, (2018) palavra artivismo constitui-se num neologismo a partir da contração de

arte+ativismo, refere-se à arte de carácter ativista, com preocupações políticas e de resistência cultural.

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dentre outras) sempre se constituiram em elementos de afirmação de

identidade e de resistência política, visto que a cultura negra é

banhada de arte/vida/memória/atitude coletivizada. Considero também que, devido a processos históricos de extrema perseguições racistas,

são práticas imbricadas de luta e afirmação da existência negra,

indígena e afro-brasileira[...]São diálogos estabelecidos a partir de

uma forma de pensar/agir que articulam princípios e percepções-mundo complexas, corpos que transam, tremem, tramam e entram em

transe, sentidos e sentimentos, envolvendo sons, ritmos,

trancendências e espiritualidades, coletividades, memórias e ancestralidades. Essa complexidade precisa ser levada em conta para o

exercício da transculturalidade na ação política de resistência,[...]

(NASCIMENTO, 2018, p. 284).

Fortalecendo, assim, o papel das mulheres negras e do feminismo negro

interseccional como questionador do sexismo dentro do movimento negro misto e do

racismo no movimento feminista:

A proposta nesse diálogo sobre artivismo feminista é que pensemos a

partir de um feminismo não hegemônico, que reconheça a pluralidade das mulheres e que faça uma crítica ao sistema hetero patriarcal

branco capitalista centrado no racismo e nas opressões de gênero e

classe, um feminismo antirracista que fortaleça a luta descolonizadora[...] (NASCIMENTO, 2018, p. 288).

Nessas intervenções, tenho presenciado certa dificuldade de levar para o âmbito

da escola a feitura das bonecas pretas (“Vão dizer que é boneca de vodu”; “As famílias

não vão querer, vão achar que é macumba”) e, também, dificuldades em aceitação da

autoria contemporânea da boneca, do lugar de sujeitas negras e de seu protagonismo na

luta antirracista, “Ah, mas eu prefiro a outra historinha...”, discurso que considero

resultante do racismo estrutural institucionalizado, que deve ser combatido

cotidianamente.

A boneca Abayomi é materialização do lúdico na vida de mulheres negras e

desse poder criativo que é ancestral. Lena Martins, em depoimento para o Banco de

Memória do Museu 13 de maio de Santa Maria no RS, define sua criação:

(...) pra mim, Abayomi ela é uma bandeira poética, eu como militante,

eu, eu defino ela dessa forma, porque é um objeto singelo, mas que

tem uma, alguma coisa impactante de ser uma boneca totalmente negra que não tem desenho de olho, de boca, nem de nariz. E o

objetivo do meu trabalho, é fortalecer a auto -estima da população

afrodescendente e, dessa forma, por mais simples que seja, estar contribuindo pra eliminação do racismo, essa é a, é a meta principal

do meu trabalho, essa é a minha forma de estar interferindo na

sociedade de alguma forma com o que eu sei fazer. E aí eu vou deixar

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aqui mais alguma outra coisa que eu gosto de usar bastante, que é,

assim, é fazer arte com o que a vida oferece (ESCOBAR; GOTTERT,

2010, p.02).

Fazer bonecas pretas como a Abayomi é um meio de interferir no imaginário

racista através da ludicidade, dessa forma, ela nos aponta o quanto mulheres em

movimento fortalecem outras mulheres.

Lena Martins tomou contato com os retalhos ainda na infância.

Nasceu em 1950, em São Luís, no Maranhão, Nordeste do Brasil.

Herdou da mãe, Maria Madalena, costureira, a criatividade e o gosto pelos tecidos e rendas. Foi morar no Rio de Janeiro em 1958, onde

cresceu, formou família, criou os dois filhos e desenvolveu o ofício de

artesã, fazendo roupas, sapatilhas, bonecas de palha de milho e as

bonecas tradicionais brasileiras (bruxinhas de pano). Hoje, Lena vive em Santa Tereza, centro do Rio de Janeiro, e se dedica inteiramente às

Abayomi, realizando oficinas e exposições (GOMES et, 2017, P. 253).

Ouso trazer algumas questões, que considero necessárias e importantes para esse

diálogo: Por que nessas narrativas, por vezes romantizadas, sobre a origem da Abayomi

ocorre uma invisibilidade do processo de criação (anos 80, organização do movimento

de mulheres negras) e de sua criadora? É possível criar uma história de afetividade e

compromisso ético, presentes na feitura dessas bonecas, sem apagamento da

contemporaneidade ancorada na ancestralidade? Destarte, ensinar a fazer Abayomi por

meio de oficinas pode ser compreendida,

[...]como exercício de transmissão de uma memória a ser reconstruída.

Neste sentido, pode ser útil a concepção de “memória social” como

fruto de uma construção coletiva do passado, elaborada no presente pelos indivíduos de um determinado grupo, e não apenas uma

expressão cristalizada do que aconteceu (GOMES et, 2017. p. 256).

Trago para compreender o lugar da centralidade e do lugar de fala da/o sujeita/o

negra/o, as características centrais para um projeto afrocêntrico aportado por Molefi

Kete Asante (2019, p. 96-99): o Interesse pela Localização psicológica – o lugar onde

sua mente está situada; a pessoa se coloca num lugar central ou marginal em relação a

sua cultura? O compromisso com a descoberta do lugar do africano como sujeito: lugar

da/o africana/o como sujeita/o em qualquer evento, texto e ideia, o que pensam, sentem

e falam de si mesmas/os. Descobrir pessoas, conceitos, textos, eventos ou fenômenos. A

defesa dos elementos culturais africanos: valores e elementos culturais como parte do

projeto humano, olhar a dimensão da criatividade africana e dar um lugar a ela; o

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compromisso com o refinamento léxico - combater os preconceitos e racismo presentes

na linguagem eurocêntrica ao designar, nomear ou classificar elementos das culturas

africanas. Conhecer e nomear a partir do que pensam os povos africanos e o

compromisso com uma nova narrativa da história da África.

A partir dessa perspectiva de centralidade das vozes e autorias negras e em

movimento, depois de experimentar seu reconto, não me satisfiz com a historinha das

bonecas que nasceram na travessia do Atlântico, e corri atrás das outras e outras

narrativas.

Das histórias sobre Abayomi ou bonecas para acalanto, que nos fortalecem e nos

vinculam à ancestralidade africana, tenho referendado três (03) delas, das quais me

nutro nos processos de oficinas, logicamente, quanto mais acumulo informações, mais

diferencio as perspectivas que mediam as narrativas historiadas nas oficinas. Aqui, irei

pincelá-las:

Das referências aos navios negreiros, a dor, o choro e o pensar o cuidado das

crianças como algo coletivo, lúdico e ancestral, com devidas vênias, para que essas

narrativas, não funcionem para amenizar o holocausto que foi a escravidão nas

Américas e as reais condições dos tumbeiros, num processo de romantização da dor,

essa abordagem vem sendo contestada, como assinala Andriolli Costa (2018):

Aquele que procura a origem da peça na internet não tardará a encontrar a seguinte versão como a mais repetida: a de que as

Abayomi foram criadas por mães africanas que, para acalmar as

crianças no navio negreiro, arrancavam tecido de suas saias para dar forma ao brinquedo. Há ainda outra versão, na qual a boneca era dada

para que a criança ainda sentisse o cheiro da mãe quando tirada de seu

seio para que a mulher servisse de ama de leite. Ambas remetendo à

ancestralidade e ao período colonial. Quem espalha essa versão diz que o nome significa “encontro precioso”. Nenhuma dessas é

verdadeira.

É possível trazer essa versão para traçar contrapontos sobre as reais condições a

que foram submetidas mulheres, homens e crianças no sanguinário processo escravista.

Uma outra narrativa que encontrei em editorial refere-se à possibilidade de

reencontrarem-se (mãe e filha/o), pós Lei do Sexagenário, a partir da cor da roupa da

bonequinha do tamanho do dedo feita pela mãe antes da separação em terras brasilis e

escondida no cabelo crespo das crianças. Segundo a youtuber, essa boneca seria a única

recordação que a/o filha/o teria da mãe – o significa da palavra em iorubá: “estou dando

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o melhor de mim para você ou feito de mim para você”. Narrada por uma mulher negra,

ativista do movimento negro, o que, para mim, dá legitimidade à história contada, ao

mesmo tempo, invisibiliza Lena Martins.

E a narrativa histórica, documentada, da escrevivência de sujeitas/os da

atualidade, da busca em se ver materializada nas bonecas após no processo de

descoberta enquanto mulher negra, com marcas de ancestralidade e memória,

protagonizada por Lena Martins.

Mesmo considerando as demais histórias bonitas e mais aceitas, considero

importantíssima a divulgação da história contada, escrevivida por Lena e outras

companheiras do movimento de mulheres negras, que formaram a Cooperativa

Abayomi, no Rio de Janeiro, pela sua força de impulsionar a positividade de ser

negra/o. pela força do movimento de mulheres negras na resistência e luta contra o

racismo

É da necessidade de deixar uma marca de memória de parte de si e de nossa

coletividade, que criamos e articulamos nossos desejos de nos re/conectarmos umas

com as outras, a arte nos impulsiona nessa travessia, entre o que nos contaram e o que

nós queremos contar, “nosso olhar transforma o mundo e nos transforma a nós

mesmas”, nossa cosmo-percepção-mundo, mulher, negra, arte/educadora, artivista,

marca nossa trajetória no mundo. Assumir-se sujeito e reinvindicar nosso lugar de fala é

cotidianamente negado. Por isso, reafirmar outro ponto de vista, contra hegemônico e

antissistêmico, é fundamental enquanto formação política dos movimentos sociais.

Tutoriais no Youtube e a in/visibilidade de Lena Martins

São muitos os tutoriais no Youtube ensinando a fazer abayomi, realizados por

uma diversidade de pessoas, com finalidades bem diversificadas, mas o que impressiona

é que a narrativa com foco na escravidão recebe mais likes e é reproduzida, sendo

muito mais divulgada, do que aquela de protagonismo de uma mulher ainda viva e

atuante na luta antirracista,

Quando finalizando o referido artigo o vídeo com Lena Martins, no CULTNE

tinha apenas 1.027 visualizações, o documentário no Vimeo, 1.747, enquanto o DIY

Boneca Abayomi - Ancestralidade, História e Resistência sinalizava mais de 157.000

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visualizações, a youtuber é uma jovem negra que narra a história de “nascimento”,

criação da Abayomi na diáspora negra, durante a travessia do atlântico, por mães

escravizadas para acalentar as crianças, a mesma estimula a feitura das bonecas para

serem dadas e sua história recontada.

Em abril de 2019, foi publicado um documentário etnográfico, realizado pelo

Observatório do Patrimônio religioso da Universidade Federal do Estado do Rio de

Janeiro- UNIRIO, dentro do projeto "30 anos da boneca Abayomi: nós de memória e

arte" e foi coordenado pela Prof.ª Dra. Edlaine Gomes, até o momento estava apenas

com 153 visualizações foram realizadas.

Um outro destaque é o vídeo: “Abayomi Doll Activity - (African Craft Gift

Idea)”, a youtuber é uma mulher socialmente vista como branca fazendo um tutorial

para ensinar, em inglês, como fazer bonecas abayomi, utilizando malhas de cores

diversificadas, não respeitando o principal na boneca que é ser preta, vira apenas uma

boneca “exótica”, “africana” pra estrangeiro fazer e dar de presente, com 27.097

visualizações.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mesmo com produções de artigos acadêmicos a história da criação da Abayomi

e da cooperativa que leva o seu nome, vem sendo pouco lida, vista e ouvida,

predominando a narrativa romantizada. Se a motivação inicial foi a busca pelo

fortalecimento da consciência negra, da autoimagem e representação das pessoas

negras, o discurso destoa, fica piegas e de perspectiva colonizadora do culturalismo,

centrado sob o viés da escravidão e não da ação transformativa antirracista de mulheres

negras em movimento.

Há uma prevalência das narrativas sobre a cultura africana e afro-brasileira,

ainda a partir do paradigma da colonialidade, do olhar eurocêntrico. A caixinha

reservada é a da cultura popular, do folclore, exalando um cheiro de exoticidade. O

racismo estrutural garante a legitimidade desse discurso, embranquece as histórias e

invisibiliza nosso protagonismo descolonizador e antissistêmico.

Se quem conta a história é quem dá o tom, vamos descolonizar nossa prática e

discurso sobre as Abayomi e sobre as culturas africana e afro-brasileira, desvincular

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nossas histórias do paradigma da escravidão para o da afrocentricidade, recolocar nosso

lugar de agentes e sujeitas/os de histórias, nossa herança cultural não é da escravidão,

mas da África.

REFERÊNCIAS

Abayomi: boneca de Oyá. Disponível em:

http://portalafroxe.com.br/index.php?option=com_k2&view=item&id=352:abayomi-a-

boneca-de-oya. Acesso: 27 de mar. 2019.

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