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QUARTA TURMA

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QUARTA TURMA

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RECURSO ESPECIAL Nº 40.114-3 - SP

(Registro n!! 93.0029996-4)

Relator: O Sr. Ministro Barros Monteiro Recorrente: Carlos José Weigand - espólio Recorrido: Eugênio Barbosa Filho - espólio Advogados: Drs. Flávio Luiz Yarshell e outros, e José Hélio Borba e

outro

EMENTA: Indenização. Acidente aéreo. Morte do piloto da aero­nave. Legitimidade de parte ativa e passiva. Ônus da sucumbên­cia.

- O Espólio do piloto falecido está em juízo, como parte for­mal, pela comunidade dos herdeiros. Aplicação ao caso do princí­pio da instrumentalidade do processo, desde que a propositura da demanda pelo Espólio nenhum gravame causou ao réu.

- Legitimidade passiva do réu, por não evidenciada de modo hábil e cabal a transferência de titularidade da aeronave. Inapli­cação ao caso do art. 620 do Código Civil. Pretensão de reexami­nar-se o quadro probatório (Súmula nº 07-STJ).

- Vencido o autor num dos pedidos que formulou, os encargos da sucumbência hão de ser repartidos proporcionalmente (art. 21, caput, do CPC).

Recurso especial conhecido, em parte, e provido.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos, em que são partes as acima indicadas:

Decide a Quarta Turma do Supe­rior Tribunal de Justiça, por una­nimidade, conhecer do recurso em

parte e, nessa parte, dar-lhe provi­mento, na forma do relatório e no­tas taquigráficas precedentes que integram o presente julgado. Vota­ram com o Relator os Srs. Ministros Cesar Asfor Rocha, Ruy Rosado de Aguiar, Fontes de Alencar e Sálvio de Figueiredo Teixeira.

R. Sup. Trib. Just., Brasília, a. 10, (102): 271-388, fevereiro 1998. 273

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Brasília, 10 de dezembro de 1996 (data do julgamento).

Ministro SÁLVIO DE FIGUEI­REDO TEIXEIRA, Presidente. Mi­nistro BARROS MONTEIRO, Rela­tor.

Publicado no DJ de 29-09-97.

RELATÓRIO

O SR. MINISTRO BARROS MONTEIRO: Cuida-se de ação de in­denização proposta pelo Espólio de Eugênio Barbosa Filho contra Car­los José Weigand, substituído pelo seu Espólio no decorrer da lide. Se­gundo a inicial, Eugênio Barbosa Fi­lho, piloto comercial, fora contrata­do em caráter autônomo para diri­gir a aeronave "EMB 710 Carioca, número de série 710032, prefixo PT­NBY", de propriedade do réu. No dia 20 de janeiro de 1989, ao pre­tender pousar em pista não homo­logada e deficiente (de terra e de pequeno comprimento), Eugênio so­freu um acidente em decorrência do qual veio a falecer, deixando dois fi­lhos menores impúberes, Eugênio Barbosa Neto e Aguida Maria Bar­bosa. Pleiteou o autor a condenação do réu ao pagamento da indeniza­ção correspondente à parte fixa de 3.500 OTNs (art. 257 do Código Bra­sileiro de Aeronáutica) e ainda, atri­buindo-lhe a culpa grave pelo even­to, ao pagamento da pensão mensal a ser oportunamente fixada.

Contestando o pedido, o réu, além de outras questões, alegou ilegitimi­dade de parte ativa ad causam do Espólio-autor e, de outro lado, a sua

ilegitimidade de parte passiva, uma vez que ao tempo do acidente já não mais era o proprietário da aerona­ve.

O MM. Juiz de Direito, após re­pelir as referidas preliminares, jul­gou a ação procedente, em parte, para condenar o réu ao pagamento da quantia correspondente a 3.500 OTNs, mais as verbas de sucumbên­cia.

O Tribunal de Justiça de São Pau­lo manteve o decisório de 1 Q grau por seus fundamentos, havendo aduzido o seguinte:

"A argüida ilegitimidade ativa se encontra suficientemente repeli­da nas contra-razões do espólio recorrido.

Afastado o rigorismo formal do processo, e em se tratando de di­reitos hereditários, nada está mesmo a impedir que o espólio­autor, por sua inventariante ve­nha a juízo defender os interes­ses e pleitear os direitos dos her­deiros menores, estes devida­mente habilitados no inventário.

As demais e o mérito a seguir se­rão reapreciadas e decididas.

Os elementos dos autos e a legis­lação trazida à colação pelo au­tor, e onde se funda a pretensão deduzida na exordial são sufici­entes para a completa solução da questão sub judice.

Os dispositivos do Código Brasi­leiro do Ar especificamente apon­tados pela douta Procuradoria de Justiça, em seu parecer de fls. 327/330, revelam que a aeronave

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acidentada pertence ao espólio­réu, porquanto sua propriedade ainda não foi formalmente trans­ferida, a gerar os efeitos preten­didos.

O recibo de fls. 68 não pode mes­mo ser tido como documento par­ticular, com fé pública e assina­do pelas partes e testemunhas, re­quisitos estes necessários e legais ao reconhecimento de domínio na transferência de aeronaves por ato inter vivos (cf. arts. 72, II e 73, II do CBA).

Tanto assim é que a certidão de fls. 214/215 do DAC, à vista do disposto no art. 115, § 2Q do mes­mo Código, não atesta a transfe­rência do domínio.

Enfim, definida a permanência do apelante no pólo passivo da lide, ressaltando que a prova oral produzida em audiência é de todo insuficiente para afastar a legi­timidade passiva, como exposto, a conseqüência lógico-legal é a manutenção de sua condenação, na forma do decidido.

Sim, porquanto não tendo o fale­cido explorador da aeronave aci­dentada contratado seguro, nos termos do art. 281 e seu inciso II do supra referido Código, com a finalidade de cobrir seus tripu­lantes de eventuais riscos, a res­ponsabilidade indenizatória, co­mo assentado pelo MM. Juiz, é inquestionável.

Por fim, tendo sido acolhido o pe­dido principal, aplica-se o dispos­to no § único do art. 21 do CPC" (fls. 340/342).

Rejeitados os declaratórios, o réu - Espólio de Carlos José Weigand -manifestou recurso especial com fulcro nas alíneas a e c do permis­sor constitucional. Insistindo na as­sertiva de ilegitimidade de parte ativa do Espólio autor que, segun­do o recorrente, postula em nome próprio direito alheio, apontou em primeiro lugar negativa de vigên­cia do art. 6Q do CPC. Ao depois, ale­gou negativa de aplicação do art. 620 do Código Civil, reiterando a preliminar de ilegitimidade para figurar no pólo passivo da deman­da, pois antes do evento lesivo ha­via promovido a venda da aeronave acidentada a terceiro. Sustentou, no ponto, que a transmissão da pro­prie'dade do aparelho se operara com a simples tradição, indepen­dentemente do registro da venda no "Departamento de Aviação Civil -DAC". Como divergente, indicou aí um julgado oriundo da Suprema Corte (RTJ 113/850). Por último, asseverou negativa de vigência do art. 21 e § único do CPC: havendo o autor formulado dois pedidos e ten­do somente um deles sido acolhido, a sucumbência devia ter sido repar­tida proporcionalmente.

Oferecidas as contra-razões, o apelo extremo foi admitido na ori­gem pela letra a.

O parecer da Subprocuradoria Geral da República é pelo não co­nhecimento.

E o relatório.

VOTO

O SR. MINISTRO BARROS MONTEIRO (Relator): A condena-

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ção imposta pelas instâncias ordi­nárias (a parte fixa de 3.500 OTN s - art. 257 do Código Brasileiro de Aeronáutica) prendeu-se à circuns­tância de haver o réu violado a sua obrigação de contratar o seguro pa­ra cobrir riscos futuros em relação aos tripulantes da aeronave. Con­quanto não se cuide no caso propria­mente de direitos hereditários, é de reconhecer-se aqui a legitimidade ativa do Espólio-autor, uma vez que, como parte formal, está ele em juí­zo pela comunidade dos herdeiros. Admitida a pretensão deduzida na peça inaugural, em parte, oportu­namente se procederá ao partilha­mento do quantum obtido e apu­rado.

Apega-se o réu - ora recorrente - ao aspecto puramente formal da questão concernente à legitimidade de parte, esquecido, porém, do ca­ráter predominantemente instru­mental do processo, a que a doutri­na e a jurisprudência dão amplo e justo relevo nos dias atuais. O fato de figurar no pólo ativo da lide o Espólio do falecido piloto do avião, representado por sua inventarian­te, não acarreta ao réu gravame al­gum, pois, de qualquer forma, como acima assinalado, comparece ele a juízo em nome e por conta da comu­nidade dos herdeiros. A extinção do processo, sem conhecimento do mé­rito, pretendida pelo recorrente, é que sim viria contrariar os princí­pios da instrumentalidade, da eco­nomia e da celeridade processuais, importando aí na mera perda de tempo em face do alvitre de reno­var-se a instância, apenas para o fim de alterar-se os nomes dos acio-

nantes, desde que a representação dos interessados continuaria tal como está neste litígio: permanece­ria a viúva, mãe dos menores im­púberes, Maria Anita Lourenço Mar­tarelli Barbosa.

Por tais motivos, não se vê afron­ta alguma ao indigitado art. 6Q da lei processual civil.

2. A alegação de ilegitimidade de parte passiva, por igual, foi acerta­damente rejeitada tanto pela r. sen­tença como pelo V. Acórdão.

O decisório de 1 Q grau, confirma­do por seus fundamentos em sede de apelação, assentara que a aero­nave era de propriedade do réu à época do evento. É que a simples co­municação de venda feita pelo re­corrente em data posterior ao aci­dente não se credenciava, de forma hábil e idônea, a transferir a pro­priedade do aparelho a terceiro, como pretendido.

Bem ao reverso do que sustenta o Espólio demandado, a tradição do bem móvel não suplanta a necessi­dade do registro para o efeito de considerar-se operada a transferên­cia a terceiro. As preceituações es­pecíficas constantes do Código Bra­sileiro de Aeronáutica evidenciam que a transferência de domínio só se concretiza através do registro a que aludiram as instâncias ordiná­rias. Confiram-se, a propósito, os textos dos arts. 72, inc. lI, 73, inc. lI, 106, § único (a aeronave é bem móvel registrável para efeito de transferência por ato entre vivos), 115, inc. IV, e § 2Q

Não incide na espécie, portanto, o apontado art. 620 do Código Civil

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Brasileiro. De anotar-se, ademais, que a sentença e o Acórdão recorri­do não chegaram a admitir, como as­severa o Espólio recorrente, ter ha­vido no caso a tradição da aeronave a terceiro. Trata-se aí de matéria de fato inserta pelo réu nas suas ra­zões, que, por ausência de conside­ração na instância a quo, não po­dem ser objeto de análise na via angusta deste recurso especial à luz do que enuncia a Súmula n Q 07-STJ.

Inocorre, assim, a negativa de vi­gência da norma invocada do Códi­go Civil e, de outro lado, não se aperfeiçoa o pretenso dissenso in­terpretativo em face de julgado oriundo do Excelso Pretório. As hi­póteses postas em confronto são cla­ramente distintas. Enquanto na es­pécie se cuida de questão concer­nente à propriedade de uma aero­nave, regida por lei especial, o pa­radigma selecionado diz com veícu­lo automotor envolvido em corri­queiro acidente de trânsito em via pública.

3. Por derradeiro, força reconhe­cer que ao recorrente assiste razão ao insurgir-se contra a repartição do encargos do sucumbimento.

A peça exordial encerra dois pe­didos: a) a condenação da parte fixa prevista no art. 257 do Código Bra­sileiro de Aeronáutica; b) a conde­nação do réu a pagar o pensiona­mento mensal.

Apenas o primeiro deles mereceu acolhimento.

Incide na hipótese em exame, conseqüentemente, o disposto no art. 21, caput, do Código de Proces-

so Civil e não o seu parágrafo úni­co. Não se pode afirmar que, venci­do o autor no tocante à pensão men­sal, tenha decaído de parte mínima do pedido.

Aplicando-se o direito à espécie (art. 257 do RISTJ), fica estabeleci­do que as custas processuais serão pagas meio a meio, cabendo aos liti­gantes responder cada qual pelos ho­norários dos respectivos advogados.

4. Ante o exposto, conheço, em parte, do recurso pela alínea a do admissivo constitucional e, nessa parte, dou-lhe provimento, para o fim de distribuir os ônus da sucum­bência na forma acima aludida.

É como voto.

VOTO

O SR. MINISTRO CESAR AS­FOR ROCHA: Sr. Presidente, acom­panho o eminente Ministro-Relator, sem ficar comprometido com a tese de que o registro da transferência no DAC é indispensável para que ocorra a mudança do domínio da aeronave.

VOTO- VOGAL

O SR. MINISTRO RUY ROSADO DE AGUIAR: Sr. Presidente, estou de acordo com o Eminente Ministro­Relator relativamente às duas ques­tões. Acentuo, quanto à legitimida­de passiva, a falta de prova suficien­te da transferência do domínio da aeronave, não registrada de acordo com o Código Brasileiro do Ar, e sem prova complementar capaz de con-

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vencer sobre a existência da alega­da alienação.

VOTO-VOGAL

O SR. MINISTRO FONTES DE ALENCAR: Senhor Presidente, es­tou de acordo com o Ministro-Rela­tor, adotando os acréscimos que fo­ram apresentados pelos que tam­bém o acompanharam.

VOTO

O SR. MINISTRO SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA: Acompa­nho o Sr. Ministro-Relator, com os acréscimos que foram trazidos nos votos que seguiram ao de S. Exa., reservando-me para, oportunamen­te, reexaminar o tema mais detida­mente.

RECURSO ESPECIAL Nº 43.714 - RJ (Registro nº 94.0003253-6)

Relator: O Sr. Ministro Cesar Asfor Rocha Recorrente: Elevadores Otis S/A Recorrida: Companhia do Metropolitano do Rio de Janeiro Advogados: Drs. Paulo Roberto de Carvalho Rego e outros, e André Luiz

da Costa Santos

EMENTA: Processual Civil. Erro material inexistente e não re­conhecido. Descabimento de agravo. Recurso especial. Divergên­cia não configurada. Ausência de prequestionamento. Não conhe­cimento.

"Para que se configure o erro material não basta a simples ine­xatidão; impõe-se que dele resulte desacordo entre a vontade do juiz e a expressa na sentença" (Ag 53.892-RJ, do TFR, ReI. saudo­so Min. Geraldo Sobral).

Não sendo reconhecida a existência de erro material, nem pelo juiz nem pelo Tribunal, o despacho que não o conhece não pode ser atacado por agravo de instrumento.

É imprescindível para a caracterização do dissídio jurispru­dencial, por lógico, que os acórdãos ostentadores de díspares con­clusões hajam sido proferidos em idênticas hipóteses, o que não ocorre no recurso em exame.

Impossível o acesso ao recurso especial se o tema nele inserto não foi objeto de debate na Corte de origem.

Recurso especial não conhecido.

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ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos es­tes autos, acordam os Srs. Ministros da Quarta Turma do Superior Tri­bunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por unanimidade, não co­nhecer do recurso. Votaram com o Relator os Srs. Ministros Ruy Ro­sado de Aguiar, Fontes de Alencar, Sálvio de Figueiredo Teixeira e Bar­ros Monteiro.

Brasília, 19 de junho de 1997 (da­ta do julgamento).

Ministro SÁLVIO DE FIGUEI­REDO TEIXEIRA, Presidente. Mi­~s~oCESARASFORROCH~R~ lator.

Publicado no DJ de 08-09-97.

RELATÓRIO

O SR. MINISTRO CESAR AS­FOR ROCHA: Julgada procedente ação ordinária ajuizada pela recor­rente contra a recorrida, foi esta condenada ao pagamento da quan­tia equivalente a 58.778,29 BTN's.

Após a publicação da sentença, a vitoriosa recorrente, por entender que teria havido erro material ao ser indicado o índice de indexação, pediu a sua correção pela OTN, ten­do o Juiz mantido a sua decisão, porque não teria havido nenhuma inexatidão material a ser corrigida.

Contra esse despacho a recorren­te agravou, mas o ego Tribunal a quo não o conheceu, pela razão fun­damental de que o inconformismo

da recorrente teria que ter sido vei­culado através de apelação, já que na hipótese não se vislumbrava erro material, pois "o Dr. Juiz não recep­cionou a estocada, assinalando o acerto do seu entendimento" (fls. 68). Aliás, contra outros aspectos da sentença foi interposta apelação.

Rejeitados os aclaratórios, foi ajuizado o recurso especial em exa­me com fincas nas letras a e c do permissor constitucional, por alega­da violação aos arts. 162, §§ 1 º e 2º', 463, I, 469, I, e 522 do Código de Processo Civil, bem como pelo su­gerido dissídio com os julgados que indica, ao argumento de que a ine­xatidão material pode ser corrigida a qualquer tempo e que a decisão que não a corrigiu seria agravável.

Devidamente respondido, o re­curso foi admitido na origem,

Recebi o processo, por atribuição, em 1 º de fevereiro de 1996, e reme­ti-o para pauta no dia 2 de junho do ano seguinte.

É o relatório.

VOTO

O SR. MINISTRO CESAR AS­FOR ROCHA (Relator): 1. Pelo dis­sídio o recurso não pode ser conhe­cido, pois são distintas as bases fá­ticas dos julgados confrontados.

A uma, porque o decidido na AR nº 71-RJ e na AC nº 274.333 foi transcrito apenas por sua ementa, que é insuficiente para demonstrar a dissidência, quando não se trata, como no caso, de notória divergên­cia.

R. Sup. Trib. Just., Brasília, a. 10, (102): 271-388, fevereiro 1998, 279

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A duas, porque a comprovação da divergência de referido aresto da ação rescisória não foi feita por certidões ou cópias autenticadas do acórdão colacionado, ou pela cita­ção de repositório oficial autoriza­do ou credenciado em que o mesmo se ache publicado, já que o "Bole­tim daAASP", conquanto conceitua­do, não é repositório autorizado.

A três, porque todos os casos co­lacionados partiram do pressupos­to de que teria havido erro material, o que não se afirmou no v. acórdão hostilizado.

Ora, o recurso especial só pode ser conhecido pela divergência pre­toriana quando, por lógico, os acór­dãos ostentadores de díspares con­clusões hajam sido proferidos em idênticas hipóteses, o que não se vê no caso de que se cuida.

2. O recurso não pode ser conhe­cido pela alegada ofensa aos artigos 162, §§ 1 Q e 2Q

, 463, I, e 469, I, do Código de Processo Civil, pois as normas neles insertas não merece­ram a mais mínima interpretação por parte do acórdão recorrido.

Para que a matéria objeto do ape­lo nobre reste prequestionada há necessidade tanto que seja levanta­da pela parte quando da impetra­ção do recurso comum na Corte or­dinária, quanto que seja por esta efetivamente debatida ao decidir a apelação.

Ausente o debate, inexistente o prequestionamento, por isso que obstaculizada a via de acesso ao apelo excepcional.

3. Analiso, agora, a sugerida vio­lação ao art. 522 do Código de Pro­cesso Civil.

Todas as bem lançadas razões ex­postas pela recorrente partem da premissa de que, ao estabelecer o BTN como índice de indexação, o juiz prolator da sentença teria co­metido erro material, pois teria sido a sua intenção a de ter fixado o ín­dice da "OTN" como fator de corre­ção.

Acontece que o magistrado singu­lar quis mesmo estabelecer o BTN e não a OTN, por isso mesmo que o índice que restou fixado não foi fru­to de seu manifesto equívoco ou en­gano, mas resultado de seu próprio convencimento.

Ora, "erro material é aquele per­ceptível primo ictu oculi e sem maior exame, a traduzir desacordo entre a vontade do juiz e a expres­sa na sentença" (REsp n Q 15.649-0/ SP, ReI. em. Min. Pádua Ribeiro), por isso é que "para que se configu­re o erro material não basta a sim­ples inexatidão; impõe-se que dele resulte desacordo entre a vontade do juiz e a expressa na sentença" (Ag 53.892-RJ, do TFR, ReI. saudo­so Min. Geraldo Sobral), ambos ci­tados por Theotonio Negrão (28ª ed., notas n illl 12a. e 12b. ao art. 463).

No caso, como já afirmado, o ín­dice consignado na sentença decor­reu da afirmação consciente do juiz que a prolatou.

Sendo assim, ainda que possa ser censurado o índice adotado - o que admito apenas para dar sabor ao de­bate - não houve nenhum desacor-

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do entre a vontade do juiz e a ex­pressa na sentença de sorte a que se pudesse afirmar ter havido erro material.

Com efeito, essa opção do magis­trado, consagrada na sentença pro­ferida, só poderia ser atacada por apelação e não por mero pedido de correção de inexatidão material.

E o despacho que o negar, não pode ser atacado por agravo de ins­trumento.

Este até pode servir de meio pró­prio para tanto. Mas somente para a hipótese de ter sido reconhecido o erro material e, ainda assim reco­nhecendo-o, o juiz entenda de não corrigi-lo ou, com maior razão, se o conserta.

Não fora assim, o processo trans­formar-se-ia em um caminhar ina­cabado pois bastaria à parte alegar ocorrência de erro material - cuja correção pode ser formulada a qual­quer tempo, desde que não encer-

rado o feito -, para, a partir de sua negação, ensejar a propositura de uma série de recursos, reabrindo toda discussão sobre uma matéria cujo debate já se encerrara.

É certo que o erro material, na­quele conceito acima exposto, pode ser corrigido a qualquer tempo. O erro material sim, mas não a deci­são resultante da convicção cons­ciente do magistrado, sobre a qual não se conforma uma das partes.

N a hipótese, não houve erro ma­terial, mas, como já reafirmado, uma opção fruto da convicção cons­ciente do magistrado, que elegeu o BTN como indexador, o que desper­tou o inconformismo da parte, mas que deveria ser veiculado pelo re­curso apelatório que, aliás, chegou a interpor, mas com a omissão do tema que ensejou o pedido de cor­reção.

4. Diante de tais pressupostos, não conheço do recurso.

RECURSO ESPECIAL NQ 44.717 - DF

(Registro n Q 94.0005927-2)

Relator: O Sr. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira

Recorrente: Ministério Público do Distrito Federal e Territórios

Recorrida: Vitorina Senhorinha de Jesus

Interessado: Francisco Luiz de Paiva

Advogado: Dr. Jorge Luiz de Moura Andrade

EMENTA: Processual Civil. Citação por edital. Requisitos. Fi­nalidade da citação. Necessidade. Princípio da ampla defesa. Dou­trina. Recurso provido.

R. Sup. Trib. Just., Brasília, a. 10, (102): 271-388, fevereiro 1998. 281

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- Do edital de citação deve constar, em respeito ao princípio da ampla defesa, além dos requisitos inerentes ao próprio ato cita­tório (art. 232, CPC) e do prazo para contestar (art. 225-11, CPC), a finalidade para a qual está sendo o réu convocado a juízo, com referência sucinta da ação e seu pedido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos es­tes autos, prosseguindo no julga­mento, acordam os Ministros da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos vo­tos e das notas taquigráficas a se­guir, por maioria, vencido o Minis­tro Cesar Asfor Rocha, conhecer do recurso e dar-lhe provimento. Vota­ram com o Relator os Ministros Bar­ros Monteiro e Ruy Rosado de Aguiar. O Ministro Fontes de Alencar não participou da votação por ter assu­mido o cargo de Coordenador-Geral da Justiça Federal. Ausente, justifi­cadamente, o Ministro Bueno de Souza.

Brasília, 25 de junho de 1997 (da­ta do julgamento).

Ministro SÁLVIO DE FIGUEI­REDO TEIXEIRA, Presidente e Re­lator.

Publicado no DJ de 15-09-97.

RELATÓRIO

O SR. MINISTRO SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA: Cuida­se de recurso especial interposto contra acórdão do Tribunal de Jus­tiça do Distrito Federal e Territó­rios, que entendeu ser dispensável no edital de citação constar um resu­mo do pedido ou da causa de pedir.

O recorrente, Ministério Público, aponta dissídio com aresto do Tri­bunal de Justiça do Mato Grosso do Sul, que reputou necessário constar do edital um breve relato da deman­da.

Sem contra-razões, foi o recurso admitido na origem, merecendo pa­recer favorável da Subprocuradoria Geral da República.

É o relatório.

VOTO

O SR. MINISTRO SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA (Rela­tor): A questão é singela e concerne na necessidade ou não de constar do edital de citação um breve relato da causa, a respeito da finalidade da­quele ato. Perquire-se, portanto, se além dos requisitos enumerados no art. 232, CPC, deve haver referên­cia àqueles dispostos no art. 225, CPC, notadamente o prescrito no inciso II, que trata do motivo da ci­tação, com todas as especificações constantes da petição inicial.

O dissídio restou configurado. An­tagônicas são as teses estampadas no acórdão recorrido e no paradig­ma, em relação ao mesmo tema aci­ma referido.

E razão socorre o recorrente, ten­do se equivocado data venia, a ego

282 R. Sup. Trib. Just., Brasília, a. 10, (102): 271-388, fevereiro 1998.

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Turma Julgadora, que não se hou­ve com o habitual acerto.

Com efeito, o referido art. 232 prescreve somente os requisitos es­senciais ao ato citatório, de forma editalícia, não podendo ser abando­nados os requisitos do próprio edi­tal, delineados no art. 225, que igualmente devem estar presentes naquele tipo de comunicação oficial.

Assim, tem-se como indispensá­vel para a validade da referida ci­tação, haver no edital, ainda que de forma sucinta, alusão ao propósito do ato, ou seja, o porquê do réu es­tar sendo convocado para defender­se, quais os elementos principais da contenda, sua causa de pedir e seu pedido.

Moniz de Aragão, ao tratar dos requisitos da citação por edital, afir­ma:

"O texto enuncia os requisitos necessários à citação por edital, os quais não se confundem com os do próprio edital, isto é, com o seu conteúdo, que é o mesmo do mandado, incluída a franquia contida no art. 225, lI, de publi­car-se apenas o 'fim da citação, com as especificações constantes da petição inicial' ... " (Comentá­rios ao Código de Processo Civil, v. lI, 8i'! ed., Forense, 1995, n. 300, pág.317).

N a mesma linha, doutrina José Rubens Costa:

"O edital, apesar da omissão da lei, conterá os requisitos para a citação por mandado (art. 225),

sendo afixado na sede do juízo, com certificação, nos autos, pelo escrivão ou chefe de secretaria (inc. II do art. 232)" (Manual de Processo Civil, v. lI, Saraiva, 1995, n. 12.3.1, p. 283).

Ernane Fidélis, por sua vez, não discrepa de tal posicionamen­to, ao asseverar que o "que interes­sa, no caso, são os dados essenciais do processo: nome das partes, com a respectiva qualificação, o resumo do fundamento de fato e de direito, o pedido com suas especificações, inclusive cominação, se houver" (Ma­nual de Direito Processual Civil, v. 1, 3i'! ed., Saraiva, 1994, n. 432, pág. 259).

É de salientar-se que tal proce­dimento, em ultima ratio, guarda respeito ao princípio constitucional da ampla defesa, uma vez que, ao ser o réu noticiado da existência de uma demanda judicial contra si, tem ele o direito de ser informado dos motivos que a causaram, ainda que seja para não responder à con­vocação, deixando prosseguir o fei­to à sua revelia.

Em face do exposto, conheço do recurso e lhe dou provimento para anular o processo a partir da cita­ção, inclusive, ensejando que outra seja realizada, nos termos da lei.

VOTO - VISTA

O SR. MINISTRO RUY ROSADO DE AGUIAR: Pedi vista dos autos para verificar a regularidade da ci­tação feita por edital.

R. Sup. Trib. Just., Brasília, a. 10, (102): 271-388, fevereiro 1998. 283

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Atendendo ao seu conteúdo e às peculiaridades do caso, estou acom­panhando o em. Ministro-Relator, com a devida vênia.

É o voto.

VOTO

O SR. MINISTRO CESAR AS­FOR ROCHA: Sr. Presidente, data venia, discordo dos votos de V. Exa. e do Sr. Ministro Barros Monteiro por duas razões. Primeira, porque o art. 225 do CPC, quando cuida de dizer o que deve ser obedecido na citação feita por mandado e exige sejam postas todas as especificações constantes da petição inicial, o faz

pela facilidade de reprodução da peça preambular, pois, uma vez que o oficial de justiça irá entregar pes­soalmente à parte, não haverá cus­to se se acrescentar também uma cópia da petição inicial. Por isso, o art. 225 fala do "mandado" e não se reporta, em nenhum instante, à ci­tação feita por edital. Segunda, por­que dizer que alguma coisa com re­ferência à petição inicial deve ser historiada no edital, além de enca­recê-lo, importará, também, numa dificuldade para se saber qual a sín­tese que haverá de ser feita. A sim­plificação, ou o sumário do que está exposto na petição inicial será o bastante para atender a esse requi­sito contido no art. 225 do CPC.

RECURSO ESPECIAL Nº 57.991- SP

(Registro nº 94.0038667-2)

Relator: O Sr. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira

Recorrente: Wilma Emília Sandini Raso

Recorridos: Geraldo Mantovani e cônjuge

Advogados: Drs. Paulo Hatsuzo Touma, e Hélio Ulpiano de Oliveira e outros

EMENTA: Civil. Negócio fiduciário. Transferência de proprie­dade de imóvel em garantia de dívida. Pedido de declaração de existência do pacto. Efeito natural de retorno ao estado anterior, com anulação da escritura. Prescrição. Incidência da norma do art. 177 e não do art. 178, § 9º, V, b, CC. Inexistência de ação anu­latória e nem mesmo de simulação. Recurso desacolhido.

I - O negócio fiduciário, embora sem regramento determinado no direito positivo, se insere dentro da liberdade de contratar própria do direito privado e se caracteriza pela entrega fictícia

284 R. Sup. Trib. Just., Brasília, a. 10, (102): 271-388, fevereiro 1998.

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de um bem, geralmente em garantia, com a condição de ser devol­vido posteriormente.

II - Reconhecida a validade do negócio fiduciário, o retorno ao estado anterior é mero efeito da sua declaração de existência, pelo que o bem dado em garantia de débito deve retornar, nor­malmente, à propriedade do devedor.

IH - Inocorre, assim, qualquer pretensão desconstitutiva de contrato, mas sim declarativa de validade, o que afastaria a pres­crição definida no art. 178, § 92 , V, b do Código Civil. E nem mes­mo se trata de simulação, porque no negócio simulado há um distanciamento entre a vontade real e a vontade manifestada, ine­xistente no negócio fiduciário.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos es­tes autos, acordam os Ministros da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos vo­tos e das notas taquigráficas a se­guir, por unanimidade, não conhe­cer do recurso. Votaram com o Re­lator os Ministros Barros Monteiro e Ruy Rosado de Aguiar. Ausentes, justificadamente, o Ministro Bueno de Souza e, ocasionalmente, o Mi­nistro Cesar Asfor Rocha.

Brasília, 19 de agosto de 1997 (data do julgamento).

Ministro BARROS MONTEIRO, Presidente. Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, Relator.

Publicado no DJ de 29·09·97.

RELATÓRIO

O SR. MINISTRO SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA: Os re­corridos firmaram com Costabile Raso, falecido marido da recorren­te, negócio fiduciário pelo qual trans-

mitiram àquele um imóvel situado em Águas de Lindóia-SP, em garan­tia de dívida, com a promessa de devolução do mesmo após a quita­ção do débito.

Exigido o cumprimento do pacto frente à mulher e sucessora do mor­to, esta se recusou a tanto, pelo que aforaram os recorridos ação ordiná­ria com vista à declaração de exis­tência do negócio fiduciário, à de­claração de ter ocorrido pagamento da dívida e à anulação da escritura e do correspondente registro do tí­tulo no álbum imobiliário.

Em contestação, a recorrente ale­gou prescrição, nos termos do art. 178, § 99 , V, b do Código Civil, sus­tentando que, em se tratando de ação anulatória de contrato por si­mulação, o prazo do ajuizamento já teria se escoado.

O Juiz rejeitou a preliminar, bem como o Tribunal Justiça de São Pau­lo, entendendo este que não se tra­tava de ação anulatória, mas sim de pedido declaratório de existência de negócio fiduciário, sendo que o re-

R. Sup. Trib. Just., Brasília, a. 10, (102): 271-388, fevereiro 1998. 285

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torno ao estado anterior seria mera conseqüência do acolhimento do pedido inicial.

Irresignada, a ré interpôs recur­so especial alegando violação do art. 178, § 9Q

, V, b do Código Civil, in­sistindo na ocorrência de prescrição.

Contra-arrazoado, o recurso foi admitido na origem.

Em memorial, refere-se a recor­rente ao Agravo n Q 152.302-SP, en­tre as mesmas partes e por ela in­terposto.

É o relatório.

VOTO

O SR. MINISTRO SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA (Rela­tor): Arecorrente persiste no seu en­tendimento segundo o qual teria ocorrido a prescrição, já que o obje­to da demanda seria a anulação da escritura do imóvel em razão de si­mulação das partes envolvidas.

Incorreta a tese, todavia.

Os recorridos, relatando porme­norizadamente os antecedentes do contrato entabulado, mostraram que efetivamente firmaram um ne­gócio fiduciário. Em garantia de dí­vida, transferiram para o falecido marido da recorrente o imóvel ob­jeto dos autos, com o compromisso de ser-lhes devolvido após o paga­mento do débito.

O negócio fiduciário, embora sem regramento determinado no direito positivo, se insere dentro da liber­dade de contratar própria do direi­to privado e se caracteriza pela en-

trega fictícia de um bem, geralmen­te em garantia, com a condição de ser devolvido posteriormente.

José Carlos Moreira Alves, ci­tando Goltz sustenta que o negócio fiduciário é formado por uma com­binação de dois contratos. Diz ele:

"Mas foi Goltz que, oito anos mais tarde, trabalhando sobre a concepção de Regelsberger, dei­xou bem claro que o negócio fi­duciário, em sua estrutura ínti­ma, resulta da conjugação de dois contratos:

a) de contrato real positivo, em virtude do qual se dá a transferência normal do direito de propriedade ou de direito de crédito; e

b) de contrato obrigatório negativo, pelo qual nasce para o fiduciário a obrigação de, após utilizar-se de certa forma do direito que lhe foi transmitido, o restituir ao fiduciante ou o retransferir a terceiro" (Da Alie­nação Fiduciária em Garantia, 2ª ed., Forense, 1979, pág. 19).

Desta forma, o retorno ao status quo ante é simples conseqüência lógica da declaração de existência do negócio fiduciário, porque cons­titui característica inerente à sua essência. Reputado válido o contra­to, a devolução do bem dado em ga­rantia de débito deve retornar, nor­malmente, à propriedade do deve­dor.

Não há, portanto, que se falar em pretensão de anulação de contrato.

286 R. Sup. Trib. Just., Brasília, a. 10, (102): 271-388, fevereiro 1998.

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Pelo contrário, o que se pretendeu foi o reconhecimento de sua efetiva ocorrência com produção de efeitos que são próprios à natureza do ne­gócio. Assim, o prazo prescricional é o amplo do art. 177 do Código Ci­vil e não aquele definido no art. 178, § 9º, V, b, do mesmo diploma legal.

É de salientar-se ainda que de ne­gócio simulado também não se cui­da. No negócio simulado há uma distância entre a vontade real e a vontade existente, o que se mostra ausente no fiduciário, que, por sua vez, se preocupa com a verdadeira expressão da vontade das partes.

Álvaro Villaça Azevedo, tra­tando exatamente do negócio fidu­ciário e do negócio simulado, com sua habitual segurança doutrinária expõe posição de civilistas tradicio­nais sobre o ponto, verbis:

"Muito clara é a lição de Bele­za dos Santos quando procura demonstrar a diferença de que se cogita, deixando manifesto que nos atos fiduciários não há diver­gências entre a vontade real e a declarada, como sói acontecer nos simulados. A vontade existente nos primeiros objetiva a trans­missão de um direito real ou de um crédito, com a ressalva de que o adquirente somente use o direi­to, que lhe foi transmitido, para determinado fim, sendo certo que não existe contradição alguma nesses atos, a não ser entre sua causa e efeitos, o que não acon­tece nos segundos.

Por outro lado, continua Bele­za dos Santos, não se visa, pelo pacto fiduciário, a enganar ter-

ceiros, mas, pelo contrário, pois os efeitos deste só atingem as pró­prias partes contraentes, sendo que 'na simulação o acordo para simular é naturalmente secreto, enquanto que o pacto fiduciário pode ser e, até para alguns auto­res, como Tondury, deve ser pú­blico'.

Francesco Ferrara, de forma magistral, estabelece um parale­lo entre o negócio fiduciário e o simulado, diferenciando-os da seguinte forma: 'O negócio simu­lado é um contrato fingido, não real; o negócio fiduciário é um negócio querido e existente. O ne­gócio simulado efetiva-se para produzir uma aparência, um en­gano: o negócio fiduciário preten­de suprir uma ordem jurídica deficiente ou evitar certas conse­qüências fachenses que derivam dum negócio. O negócio simula­do é um negócio único, vazio de consentimento: o negócio fiduciá­rio é uma combinação de dois negócios sérios, um real e outro obrigatório, neutralizando-se em parte e tendo influência contrá­ria" (Contratos Nominados ou Atípicos e Negócio Fiduciário, 3ª ed., Cejup, 1988, pág. 135).

Inocorreu, destarte, qualquer ofensa ao direito federal, agindo com o costumeiro acerto o ego Tri­bunal de origem.

Em face do exposto, não conheço do recurso.

Registro, finalmente, que o Agra­vo nº 152.302-SP, entre as mesmas partes e interposto pela ora recor­rente, chegou a este Gabinete em

R. Sup. Trib. Just., Brasília, a. 10, (102): 271-388, fevereiro 1998. 287

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julho pp., tendo sido desprovido em data de sete (7) do corrente.

VOTO

O SR. MINISTRO BARROS MONTEIRO: Srs. Ministros, estou de acordo com o voto do Sr. Minis­tro-Relator, uma vez que não se ope­rou realmente a prescrição no caso em virtude de ter ocorrido mera­mente um negócio fiduciário, como demonstrou o Eminente Ministro­Relator.

VOTO-VOGAL

O SR. MINISTRO RUY ROSADO DE AGUIAR: Sr. Presidente, tam­bém acompanho o Eminente Minis­tro-Relator. Com relação ao pedido meramente declaratório, se nisso se cifrasse a demanda, estaria em re­conhecer a imprescritibilidade des­sa ação, porque o direito formativo à declaração não tem pretensão que pudesse ser atingida pelo efeito do tempo.

RECURSO ESPECIAL NQ 60.616-0 - SP

(Registro n Q 95.0006551-7)

Relator: O Sr. Ministro Barros Monteiro

Recorrente: Encol S.A. Engenharia Comércio e Indústria

Recorridos: Acary Souza Bulle Oliveira e outros

Advogados: Drs. Valtécio Ferreira e outros, e Rosana de Oliveira San­tos e outro

EMENTA: Incorporação. Promessa de venda e compra. Retarda­mento na entrega da unidade habitacional. Interpelação prévia da promitente-vendedora.

- A resolução do contrato, postulada por adquirente sob a as­sertiva de mau adimplemento, não depende da prévia interpela­ção prevista no art. 43, inc. VI, da Lei n Q 4.591, de 16.12.64, somen­te exigível para a finalidade de destituição do incorporador.

- Caso fortuito não caracterizado. Incidência, ademais, da Su­mula n Q 07-STJ.

Recurso especial não conhecido.

288 R. Sup. Trib. Just., Brasília, a. 10, (102): 271-388, fevereiro 1998.

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ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos, em que são partes as acima indicadas:

Decide a Quarta Turma do Supe­rior Tribunal de Justiça, por unani­midade, não conhecer do recurso, na forma do relatório e notas taquigrá­ficas precedentes que integram o presente julgado. Votaram com o Relator os Srs. Ministros Cesar As­for Rocha, Fontes de Alencar e Sál­vio de Figueiredo Teixeira.

Brasília, 12 de maio de 1997 (da­ta do julgamento).

Ministro SÁLVIO DE FIGUEI­REDO TEIXEIRA, Presidente. Mi­nistro BARROS MONTEIRO, Rela­tor.

Publicado no DJ de 25-08-97.

RELATÓRIO

O SR. MINISTRO BARROS MON­TEIRO: São duas ações de resolu­ção de contrato; a primeira movida pelos compromissários-comprado­res sob alegação de atraso na entre­ga da unidade habitacional; a se­gunda proposta pela promitente­vendedora ao fundamento de que, não obstante notificados, os compro­missários-compradores deixaram de pagar parte do preço avençado, cor­respondente à parcela a ser finan­ciada.

A sentença julgou procedente, em parte, a primeira demanda e impro­cedente a segunda. Declarada res­cindida a promessa de venda e com­pra, condenou a construtora a de-

volver aos adquirentes a quantia que solveram por conta do preço, de­vidamente corrigida.

Ao negar provimento à apelação interposta pela incorporadora, o Tribunal de Justiça de São Paulo in­vocou as seguintes razões:

"Descartando-se a possibilidade da ocorrência de moras concomi­tantes, é de se verificar que a ces­sação dos pagamentos das pres­tações pelos promissários-com­pradores decorreu do atraso da entrega do apartamento no pra­zo convencionado, e se fez acom­panhar da imediata distribuição da ação de rescisão de contrato - dies interpellat pro homi­ne. A Construtora, por seu tur­no, e embora admitindo o atraso, sem razão invoca em seu prol as excludentes da força maior e do caso fortuito, além da necessida­de de ser previamente notificada para promover o regular prosse­guimento da obra. Mas a Cons­trutora, sem dúvida, foi quem in­correu em mora, por isso se con­siderando ineficaz a notificação que endereçou aos promissários­compradores.

O artigo 43, VI, da Lei n Q 4.591/ 64, concede a faculdade, aos ad­quirentes de unidade habitacio­nal em construção, de fazer noti­ficar o incorporador para dar prosseguimento à obra paralisa­da ou com o andamento atrasa­do, que poderá ser ou não exerci­tada. Não constitui providência obrigatória e não conflita, outros­sim, com o disposto no artigo 1.092, parágrafo único, do Código Civil.

R. Sup. Trib. Just., Brasília, a. 10, (102): 271-388, fevereiro 1998. 289

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Tocante ao caso fortuito, a sem­razão da Construtora é manifes­ta, ainda que o seu Assistente Técnico tenha procurado vincu­lar o atraso com o volume de pre­cipitação pluviométrica extraor­dinária. Não se tratasse de fenô­meno previsível, a ser sempre con­siderado, absolutamente, como afirmado pelo Perito, também não se pode vincular o atraso à intensidade das chuvas. Note-se que, seja por testemunhas seja documentalmente, nenhuma pro­va foi produzida sobre eventuais horas de trabalho perdidas du­rante o período, fato que, se ocor­rido, com certeza seria anotado pelo encarregado da obra.

Ao incorporador descabe alegar força maior decorrente da im­plantação de plano econômico, de aplicação geral, mas que não foi suficiente para determinar a ina­dimplência dos adquirentes das unidades habitacionais. Se não, como justificar que os promissá­rios-compradores continuaram a pagar as prestações, às quais, em última instância, irão integrar um caixa comum, de onde serão retirados os recursos necessários à edificação.

E, para levar avante empreendi­mento de porte, a Construtora deveria contar, também, com re­cursos próprios, pertinentes ao empenho, não podendo agora ser justificada pela ocorrência de fato a que deu causa.

Mantidos estoques de materiais para a realização da obra, os in­gressos dos valores das presta-

ções seriam suficientes para levá­la avante, já que os custos da construção são arcados mesmo pelos adquirentes das unidades habitacionais (cf. Caio Mário da Silva Pereira, 'Condomínio e In­corporações', Forense, 3ª edição, 1977, pág. 279)" (fls. 394/395).

Daí o recurso especial manifes­tado pela "Encol S.A. Engenharia, Comércio e Indústria" com arrimo nas alíneas a e c do admissivo cons­titucional. Asseverou, de início, que o V. Acórdão, ao deixar de reconhe­cer à edição do denominado "Plano Collor" a qualificação de caso fortui­to, ofendeu o disposto no art. 1.058 do Código Civil. Sustentou, de ou­tro lado, ser imprescindível a pré­via interpelação judicial, nos termos da art. 43 da Lei nº 4.591/64, que reputou contrariado. Acentuou que, além disso, não há previsão legal para a resolução do ajuste em face do atraso: desatendida a interpela­ção, a conseqüência é a destituição do incorporador. Por derradeiro, nes­te último tópico, apontou como di­vergente um aresto oriundo do Tri­bunal de Justiça de Santa Catari­na.

Contra-arrazoado, o apelo extre­mo foi admitido na origem.

É o relatório.

VOTO

O SR. MINISTRO BARROS MON­TEIRO (Relator): 1. Tocante à ocor­rência de caso fortuito, a recorren­te cingiu-se a alegar, como tal, a edição do denominado "Plano Col-

290 R. Sup. Trib. Just., Brasília, a. 10, (102): 271-388, fevereiro 1998.

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lor", sem refutar, conforme era de rigor, os argumentos expendidos pelo Eg. Colegiado a quo para re­pelir a argüição. A par de não se tra­tar de fato irresistível, como bem evidenciou o decisório recorrido, o exame da alegação a esta altura exigiria a reapreciação do conjunto probatório coligido, o que é defeso pela instância excepcional a teor do que enuncia a Súmula n Q 07 desta Corte.

2. A notificação judicial a que alu­de o art. 43, inc. VI, da Lei n Q 4.591/ 64, não constitui realmente medi­da obrigatória a cargo dos compro­missários-compradores. É mera fa­culdade e, tal como decidido pelo Acórdão ora vergastado, não os ini­be de intentar a ação de resolução contratual. O Prof. Caio Mário da Silva Pereira observa a propósito que, "realizada esta (a notificação), e decorrido o prazo de 30 dias sem que as obras se reiniciem ou o an­damento readquira a normalidade, os interessados não precisam ir a juízo para resolver o contrato, por­que a lei lhes oferece a faculdade de, pela sua vontade, destituírem o in­corporador" (Condomínio e Incorpo­rações, pág. 287, 7ª ed.).

É da jurisprudência desta Eg. Quarta Turma a diretriz de que "a resolução do contrato, postulada por adquirente alegando mau adimple­mento, não depende da prévia in-

terpelação prevista no art. 43, VI da Lei 4.591, somente exigível para a destituição do incorporador" (REsp n Q 15.9211CE, relator Ministro Athos Carneiro). Tal orientação rei­terou-se quando do julgamento do REsp n Q 109.821-SP, relator Minis­tro Ruy Rosado de Aguiar.

Não bastal?se, a decisão recorri­da anota que a cessação do paga­mento das prestações pelos compro­missários-compradores decorreu do atraso na entrega das unidades ha­bitacionais no prazo convencionado, fazendo-se acompanhar do imedia­to ajuizamento da ação de resolu­ção contratual. Invocável, no pon­to, a norma inscrita no art. 960, caput, do Código Civil que, de sua vez, consubstancia a regra dies interpellat pro homine. Confi­ram-se nesse sentido os REsp's n JlE

9.860-0/PR (RSTJ voI. 36, pág. 336) e 42.847 -5/SP, ambos por mim rela­tados.

Vale acentuar, por derradeiro, que o conflito de julgados não é sus­cetível de consumar-se na espécie, eis que a recorrente não cuidou de cumprir as prescrições insertas no art. 255, § 2Q

, do RISTJ, mencionan­do as circunstâncias que identifi­quem ou assemelhem as hipóteses confrontadas.

3. Ante o exposto, não conheço do recurso.

É o meu voto.

R. Sup. Trib. Just., Brasília, a. 10, (102): 271-388, fevereiro 1998. 291

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RECURSO ESPECIAL N9 61.434 - SP

(Registro n 9 95.0008701-4)

Relator: O Sr. Ministro Cesar Asfor Rocha

Recorrente: Blanca Antônia Martin Escudero

Recorrida: Fundação Benéfico Docente Alfonso Martin Escudero

Advogados: Drs. Francisco Manoel Xavier de Albuquerque e outros, e Athos Gusmão Carneiro e outros

Sustentação Oral: Dr. Francisco Manoel Xavier de Albuquerque, pela recorrente e Dr. Arruda Alvim, pela recorrida

EMENTA: Direito Internacional Privado. Art. 10, § 2~ do Códi­go Civil. Condição de herdeiro. Capacidade de suceder. Lei aplicá­vel.

Capacidade para suceder não se confunde com qualidade de herdeiro.

Esta tem a ver com a ordem da vocação hereditária que consis­te no fato de pertencer a pessoa que se apresenta como herdeiro a uma das categorias que, de um modo geral, são chamadas pela lei à sucessão, por isso haverá de ser aferida pela mesma lei com­petente para reger a sucessão do morto que, no Brasil, "obedece à lei do país em que era domiciliado o defunto." (art. 10, caput, da LICC).

Resolvida a questão prejudicial de que determinada pessoa, segundo o domicílio que tinha o de cujus, é herdeira, cabe exami­nar se a pessoa indicada é capaz ou incapaz para receber a he­rança, solução que é fornecida pela lei do domicílio do herdeiro (art. 10, ~ 29 , da LICC).

Recurso conhecido e provido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos es­tes autos, acordam os Srs. Ministros da Quarta Turma do Superior Tri­bunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por maioria, conhecer do recurso e dar-lhe provimento, ven­cido, na totalidade, o Sr. Ministro

Sálvio de Figueiredo Teixeira e na preliminar, o Sr. Ministro Ruy Ro­sado de Aguiar. O Sr. Ministro Fon­tes de Alencar conheceu do recurso e deu-lhe provimento em menor ex­tensão.

Brasília, 17 de junho de 1997 (da­ta do julgamento).

Ministro SÁLVIO DE FIGUEI­REDO TEIXEIRA, Presidente. Mi-

292 R. Sup. Trib. Just., Brasília. a. 10, (102): 271-388, fevereiro 1998.

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nistro CESARASFOR ROCHA, Re­lator.

Publicado no DJ de 08-09-97.

RELATÓRIO

O SR. MINISTRO CESAR AS­FOR ROCHA: A recorrente, Blanca Antônia Martin Escudero, nascida e domiciliada na Espanha, foi, em 16 dejulho de 1986, aos 45 (quaren­ta e cinco) anos de idade, por escri­tura pública de adoção simples ce­lebrada naquele país, adotada por Alfonso Martin Escudero, nascido em 1901, de naturalidade foral ca­talã mas domiciliado no Brasil (Es­tado de São Paulo) desde 1955 até a sua morte, aqui ocorrida em 02 de março de 1990, não deixando côn­juge sobrevivente, pois viúvo desde 21 de julho de 1979, nem à evidên­cia, ascendentes, nem nenhum des­cendente biológico, seja legítimo ou ilegítimo.

Em fevereiro de 1989, estando em Madrid, o falecido Alfonso fez seu testamento aberto, deixando todos os seus bens para a "Fundação Be­néfico-Docente Alfonso Martin Es­cudero", ora recorrida, instituin­do-a sua herdeira universal, deixan­do tocar, todavia, à recorrente (que também firmou o instrumento como testemunho), como legado, um apar­tamento, a ser comprado pela refe­rida Fundação, além de uma pen­são vitalícia bem como os objetos de menor monta ali indicados.

Com o óbito de Alfonso foi aberto na Comarca de São Paulo, que fora o seu último domicílio, o arrolamen-

to dos bens hereditários, com o pe­dido de que estes fossem adjudica­dos em favor da "Fundação Benéfi­co-Docente Alfonso Martin Escude­ro", que seria a sua herdeira uni­versal.

É que a lei espanhola, vigente no tempo da adoção, não conferia a Blanca, cujo vínculo com o de cujus decorria apenas de adoção simples, nenhum direito sucessório sobre a herança do falecido, salvo, eviden­temente, o legado decorrente do ato de última vontade, nada obstante, no momento da morte de Alfonso, já ser vigente a Lei n Q 21/87 que parificara naquele país todas as adoções, mas ressalvando as ante­riormente instituídas, pelo que, quemjá tivera sido conferido com a adoção simples, só se constituiria herdeiro do adotante com a expres­sa manifestação deste, o que não ocorrera na espécie de que se trata.

Ingressando no feito, Blanca plei­teou o seu reconhecimento como herdeira necessária do de cujus, com direito à legitima, por força do editado no art. 10 da Lei de Intro­dução ao Código Civil, postulando ainda a modificação do rito da ação de arrolamento para inventário, em face do disposto nos arts. 1.036 e se­guintes do Código de Processo Ci­vil, em tudo sendo atendida pelo digno Juiz processante, cujo decisó­rio foi reformado, em sede de agra­vo de instrumento, pela ego Quinta Câmara Civil do Tribunal de Justi­ça do Estado de São Paulo, à consi­deração de que, em apertada sínte­se:

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a) "o art. 10 da Lei de Introdu­ção ao Código Civil, manda que a sucessão por morte obedeça à lei do país em que domiciliado o de­funto, qualquer que seja a natu­reza e situação dos bens, e prevê ainda que a lei do domicílio do herdeiro ou legatário regule a ca­pacidade de suceder." (fls. 1.635);

b) pelo direito espanhol, Blan­ca, conquanto seja filha adotiva de Alfonso, não seria sua herdei­ra necessária, porque a ela foi conferida apenas a adoção sim­ples:

c) embora sendo certo que a Lei nº 21/87 dera paridade às adoções simples e plena, em ra­zão do que ambas confeririam, ao adotado, a condição de herdeiro necessário, ressalvara, contudo, aquelas primeiras instituídas antes de sua vigência, salvo se tivesse havido posterior manifes­tação expressa em sentido con­trário, inocorrente na hipótese dos autos;

d) ademais, a própria Blanca teria se conformado em receber apenas o legado, na medida em que também firmara o testamen­to aberto celebrado por Alfonso, que a brindou com o legado aci­ma mencionado:

e) por fim, como o testamento foi posterior à adoção e à vigência da Lei nº 21/87, seria de inferir­se que a vontade de Alfonso outra não seria senão a de deixar Blan­ca apenas como sua legatária.

Daí o recurso especial em exame, lançado com fincas nas letras a e c

do permissivo constitucional, por alegada violação ao art. 10 e ao seu § 2º, da LICC, e pela divergência com o julgado pelo colendo Supre­mo Tribunal Federal, em composi­ção plenária, no RE nº 79.613-RJ, em 25/2/76.

Em suma, alega que o r. aresto hostilizado cometeu erros concei­tuais quando confundira vocação hereditária e qualidade de herdei­ro (objeto do caput do art. 10), com capacidade para suceder (tratada pelo seu § 2º), que cuidariam de si­tuações distintas.

Assim, no caso,já que Alfonso era domiciliado em São Paulo quando de seu desenlace, à luz da lei brasi­leira é que se deveria buscar a res­posta para se saber se Blanca, ain­da que tendo sido apenas simples­mente adotada na Espanha, seria ou não herdeira necessária de Al­fonso.

A lei espanhola só serviria para aferir se Blanca, uma vez tida por herdeira pela lei brasileira, sofre­ria alguma restrição em sua capa­cidade para suceder. Como tal não ocorreria, seria de tê-la como her­deira necessária de Alfonso.

Em tempestiva resposta, a recor­rida propugna, preliminarmente, pelo não conhecimento do recurso, visto que o v. aresto hostilizado te­ria um fundamento constitucional não atacado pela recorrente, que consistiria em ter dado pela não aplicação do art. 227, § 6º, da Cons­tituição Federal.

No mérito, sustenta a manuten­ção do v. aresto objurgado.

294 R. Sup. Trib. Just., Brasília, a. 10, (102): 271-388, fevereiro 1998.

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Observo que, nos memonaIs, a recorrente postula ainda pelo não conhecimento do recurso especial em face de ter sido firmado por ad­vogados que não teriam poderes para tanto, porque a procuração de fls. 1.661 lhes fora outorgada por N acim Gabriel Arida, que não esta­va legalmente habilitado a consti­tuir advogado em nome da recorren­te para defendê-la no presente fei­to, pois que só teria recebido pode­res para representá-la na qualida­de de inventariante, na gerência e administração dos bens do espólio.

A douta Subprocuradoria Geral da República opinou pelo não conhe­cimento do recurso.

Devo destacar, por fim, que o pro­cesso contém, além dos judiciosos provimentos judiciais j á reportados, onde cada julgador (eminentes De­sembargadores Marco Cesar, Silvei­ra Neto e Marcus Andrade e Juiz Waldir Sebastião de Nuevo Campos Jr.) esmerou-se nos fundamentos expostos, a excelência das razões, contra-razões e memoriais firmados pelos eminentes Advogados Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, Cristó­vão Colombo dos Reis Muller, Arru­da Alvim, Athos Carneiro, Marcelo Ribeiro, José Luiz Clerot, Aluisio Xavier de Albuquerque, Humberto Barreto Filho e Xavier de Albuquer­que, bem como os elucidativos pa­receres elaborados por doutores do assunto, como os eminentes Profes­sores Juan Bautista Dias Garcia (fls. 533/548), Maria Helena Diniz (fls. 105/156), Irineu Strenger (fls. 564/579), Caio Mário da Silva Pereira (fls. 1.566/1.593) e Cândi-

do Rangel Dinamarco (fls. 1.5961 1.614).

É o relatório.

VOTO

O SR. MINISTRO CESAR AS­FOR ROCHA (Relator): A recorrida alega nos memoriais, vale dizer, nos estertores deste feito, que o recur­so especial não poderia ser conhe­cido por ter sido firmado por advo­gados que não teriam recebido po­deres para tanto, porquanto a pro­curação de fls. 1.661 lhes fora ou­torgada por N acim Gabriel Arida, que não estava legalmente habili­tado a constituir advogado em nome da recorrente para defendê-la no presente processo, pois que só teria recebido poderes para representá­la na qualidade de inventariante, para gerência e administração dos bens do espólio.

Anotando, de passagem e data venia que por dever de lealdade processual esse tema deveria ter sido agitado quando da apresenta­ção das contra-razões, e sem embar­go disso, observo que se ali ficou registrado que Blanca se apresen­tava como inventariante do espólio, como reconhece a própria recorrida, concedendo os mais amplos e gerais poderes para o outorgado inclusive constituir advogado, evidentemen­te que a qualificação de herdeira, na espécie, está subsumida na sua con­dição de inventariante, pois esta, na hipótese, decorre daquela.

Ora, se por ter recebido tão am­plíssimos poderes, pois outros mais

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não lhe poderiam ser concedidos, N acim Gabriel Arida poderia prati­car todos os atos para defender os direitos da inventariante Blanca, certo é que também por eles pode­ria defender a sua condição de her­deira, sob pena de tornar rigorosa­mente inócuo o mandato recebido.

A adoção de entendimento contrá­rio, data venia, demonstraria exa­cerbado apego a filigranas que não se compadeceriam com a sistemáti­ca adotada pela moderna processua­lística, que despreza a forma pela forma, dela extraindo o que de mais útil possa ter como mero instrumen­to para apreciação do conteúdo.

Assim, rejeito a primeira prelimi­nar.

Melhor guarida não acolhe a re­corrida quanto à alegação de que o recurso não poderia ser conhecido pela ausência de ataque a um fun­damento constitucional, pela via do extraordinário, que serviria de sus­tentação ao v. aresto objurgado.

É que não foi pelo que dispõe o § 6Q do art. 227 da Constituição Fe­deral que o r. acórdão hostilizado desacolheu a pretensão da recorren­te.

Não. O fundamento de sustenta­ção, no que tem de essencial para o deslinde da causa, foi único, qual seja o de que "o art. 10 da Lei de Introdução ao Código Civil, manda que a sucessão por morte obedeça à lei do país em que domiciliado o de­funto, qualquer que seja a nature­za e situação dos bens, e prevê ain­da que a lei do domicílio do herdei­ro ou legatário regule a capacidade de suceder." (fls. 1.635).

Assim, desacolho, também, essa segunda preliminar.

Devo de antemão adiantar que conheço do recurso pelo dissenso pretoriano posto que o r. acórdão ar­rolado como paradigma deu à ques­tão da capacidade de suceder, ali co­gitada, tratamento diferenciado da que foi conferida pelo v. aresto hos­tilizado, tendo sido bem atendidas as exigências regimentais e legais para configurar a divergência.

Quanto ao mérito, a discussão aqui instalada gira em torno da cor­reta interpretação que se deve dar às normas contidas no caput do art. 10 e respectivo § 2Q da Lei de Intro­dução ao Código Civil.

A recorrida, tal como entendeu o r. aresto hostilizado, renega a pos­sibilidade de a recorrente partici­par, como herdeira necessária, da sucessão de Alfonso j á que não dis­punha da indispensável capacidade sucessória para tanto eis que a lei espanhola que, na sua visão, deve ser aplicada, por ser a do domicílio da herdeira, não lhe conferiria essa condição, pois vinculada se achava ao falecido apenas por laços de ado­ção simples, relação da qual, quan­do instituída, não decorria nenhum direito para suceder.

Já a recorrente extrai, desses mes­mos dispositivos, outra compreensão, pois que a aferição da qualidade de herdeiro - e assim da vocação he­reditária - haveria de ser proces­sada à luz do comando expresso no caput do referido art. 10, que im­põe obediência, no que tange a isso, à lei brasileira, pois aqui é que Al­fonso era domiciliado desde 1955

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até o seu passamento, ocorrido em 1990.

Tais regras estão assim editadas:

"Art. 10. A sucessão por morte ou ausência obedece à lei do país em que era domiciliado o defun­to ou o desaparecido, qualquer que seja a natureza e a situação dos bens.

§ 2Q - A lei do domicílio do

herdeiro ou legatário regula a ca­pacidade para suceder".

Assoma, da sua primeira leitura, a incômoda sensação de que esses dispositivos são antinômicos, confi­guradores de uma contradição in­contornável.

A busca do saber se essas normas são ou não assim colisionais recla­ma uma reflexão mais demorada para que se possa, na sua essência - como observado pela Profa. Ma­ria Helena Diniz - captar a ple­nitude do significado do que nelas se contém, superando-se a atrativa adoração fetichista pelo teor de suas literalidades.

N o que tem de mais nodular, a questão é de direito internacional privado, e reclama a que se dê a cor­reta interpretação da expressão ca­pacidade para suceder de que cuida o § 2Q do art. 10 acima reproduzido.

Thdo o que mais foi posto deve ser lançado na coluna das questões pe­riféricas, pois encontrada a solução no que tange ao punctum saliens da causa, o que resta não se guinda a controvérsia.

De início observo que o Direito Brasileiro sempre adotou a teoria da unidade sucessória não só quan­do as questões decorrentes do fale­cimento envolvam pessoas e bens nacionais, senão também quando o hereditando for ou tiver herdeiros estrangeiros, ou deixar bens fora do Brasil.

Como leciona Oscar Tenório (in, "Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro", 2ª ed., Borsoi, 1955, Rio, pág. 342), "tem se mantido fiel o di­reito brasileiro à regra de que a sucessão se rege por lei única, seja qual for a natureza e a situação dos bens. É o princípio romano da uni­versalidade sucessória, apoiado em que o patrimônio deixado pelo de cujus forma um todo, tem expres­são una."

Por isso mesmo é que ao comen­tar o caput do art. 10 da LICC, des­taca a necessidade "de filiar, a dis­posição em exame ao que estipula o art. 7Q da Lei de Introdução: - os direitos de família se regem pela lei pessoal. A caracterização mais acen­tuada do direito familiar é a perso­nalidade das regras, em viva oposi­ção à territorialidade. A sucessão é o desdobramento, ou, como diz Cló­vis Beviláqua, uma face dos direi­tos de família. Coerentemente, pois, o artigo 10 da Lei de Introdução enuncia, como competente para re­ger a sucessão, a do defunto." (op. cit., pág. 345).

Por esse princípio dos bens da he­rança são considerados como um só todo, como uma só unidade, que se transmite por um só e mesmo ato aos herdeiros, "pois o patrimônio he-

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reditário constitui um todo; rege-se por uma só lei, as relações sucessó­rias, seja qual for o seu objeto, não se classificam entre as reais; consi­deram-se pessoais; subordinam-se à lei pessoal do falecido", como ensi­na Carlos Maximiliano (in, "Di­reito das Sucessões", V. lI, Freitas Bastos, SP, 2ª ed., 1943, pág. 584).

Evita-se, assim, a chamada frag­mentação sucessória, que acarreta o grave inconveniente da aplicação de diversas leis à sucessão, que de­corre quando se adota o princípio da territorialidade, em que os bens imóveis se sujeitam à lex rei si­tae e os móveis à lei pessoal do de cujus, tão em voga sob o domínio do feudalismo, quando a terra era tomada em precípua consideração.

Esse princípio do universum ius defuncti, que prestigia o estatuto pessoal do falecido como definidor das linhas mestras a serem adota­das para a sua sucessão, tanto pode, por seu turno, prestigiar a sua lei na­cional, como a lei do seu domicílio.

O Código Civil, no art. 14 da sua antiga Introdução, elegera a lei na­cional como lei sucessória, quando extensivamente e no que interessa editava que "a sucessão legítima ou testamentária, a ordem da vocação hereditária, os direitos dos herdei­ros e a validade intrínseca das dis­posições dos testamentos, qualquer que sej a a natureza dos bens e o país, onde se achem ... obedecerão à lei nacional do falecido ... ".

Com a lei introdutória atual, que determinou que "a sucessão por morte ... obedece à lei do país em que era domiciliado o defunto ... qual­quer que seja a natureza e a situa-

ção dos bens", o direito brasileiro erigiu a lei do domicílio como lex sucessionis.

Todavia, essa modificação, con­quanto nitidamente substancial, adstringiu-se, apenas a essa essen­cialidade a que ela se reporta.

Assim, o ensinamento que extraio da leitura que faço do texto de Os­car Tenório, é que "o âmbito de aplicação da lei do país em que era domiciliado o de cujus C .. ) abran­ge a sucessão legítima e a testamen­tária, a ordem de vocação hereditá­ria, os direitos dos herdeiros, inclu­sive a quota reserva, e as disposi­ções intrínsecas. C .. ) Somente não se rege pela lei do domicílio do de cujus a capacidade para suceder. Não se modificou, neste particular, o direito brasileiro, nos termos do artigo 14 da lei introdutória ante­rior." (op. cit., pág. 346).

Quanto à capacidade para suce­der, como visto, o § 2º do art. 10, pontifica que é a lei do domicílio do herdeiro ou legatário que a regula.

Aliás, cumpre destacar, como sa­lienta Oscar Tenório, que esse dis­positivo contido na lei introdutória atual - que submete à lei do domi­cílio do herdeiro a regulação de sua capacidade para suceder - não im­portou em nenhuma inovação no di­reito brasileiro pois que assim tam­bém já ocorria sob a vigência da lei anterior, quando o seu art. 82 cui­dava da regra geral da capacidade.

Nada obstante isso, o sistema da unidade sucessória não sofre ne­nhum abalo com a orientação fixa­da no art. 10, pelo seu caput - de que a lei do domicílio do falecido fixa

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a devolução de sua sucessão - e pelo seu § 2º - de que a lei do do­micílio do herdeiro, define a capa­cidade deste para suceder, como uma leitura desatenta com o espí­rito desarmado possa não fazer crer.

Assim, como antes, quando o art. 14 da antiga lei introdutória, no que interessa, editava que "a sucessão legítima ou testamentária, a ordem da vocação hereditária, os direitos dos herdeiros e a validade intrínse­ca das disposições dos testamentos, qualquer que seja a natureza dos bens e o país, onde se achem ... obe­decerão à lei nacional do falecido ... ", também agora a ordem da vocação hereditária e os direitos dos herdei­ros são definidos pela lei pessoal do defunto, com a diferença, apenas, de que a referência transmudou-se para a sua lei domiciliar.

É que capacidade para suceder não se confunde com qualidade de herdeiro.

Esta tem a ver com a ordem da vocação hereditária que consiste no fato de pertencer a pessoa que se apresenta como herdeiro a uma das categorias que, de um modo geral, são chamadas pela lei à sucessão, ou, no dizer de Sílvio Rodrigues, "é a relação preferencial, estabele­cida pela lei, das pessoas que são chamadas a suceder o finado".

Com efeito, essa qualidade de herdeiro haverá de ser aferida pela mesma lei competente para reger a sucessão do morto que, no Brasil, "obedece à lei do país em que era domiciliado o defunto ... qualquer que seja a natureza e a situação dos bens", em face do pontificado no caput do art. 10 da LICC.

Portanto, na hipótese, já que Al­fonso era domiciliado em São Paulo quando do seu desenlace, à luz da lei brasileira é que se deve buscar a resposta para se saber se Blanca, sendo sua filha adotiva, é ou não herdeira de Alfonso.

É inteiramente irrelevante, no caso, para aferir-se a sua qualida­de de herdeira, para saber se ela está ou não incluída no elenco dos herdeiros que a lei brasileira esta­belece como vocacionados para su­ceder, se a adoção foi simples ou ple­na, se houve ou não posterior pari­ficação entre esses institutos, se a relação entre adotante e adotada envolve ou não reciprocidade de di­reitos sucessórios, se a adoção foi celebrada no Brasil, na Espanha ou mesmo em qualquer outro país, e se era ou não desejo do hereditando que a sua filha adotiva participas­se de sua sucessão como sua herdei­ra necessária.

Não, tudo isso é absolutamente despiciendo para se concluir se Blanca era ou não herdeira neces­sária quando Alfonso faleceu pois que o único dado que efetivamente importa é saber se a lei brasileira, quando do desenlace de Alfonso, conferia ou não, ao filho adotivo, a qualidade de herdeiro.

Assim, ainda quando a filiação não era equiparada, em todos os seus gêneros e espécies, como ficou indubitavelmente a partir da Cons­tituição Federal de 1988, diante do disposto no § 6º do seu art. 227, a relação de adoção, quando o adotan­te não tivesse filhos legítimos, legi­timados ou reconhecidos, envolvia a de sucessão hereditária (art. 377, CC).

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Com efeito, a lei brasileira con­fere à Blanca, de há muito, a quali­dade de herdeira.

Visto isso, vale dizer, vencida es­sa etapa, ou como assevera Oscar Tenório, "resolvida a questão pre­judicial de que determinada pessoa, segundo o domicílio que tinha o de cujus, é herdeira, cabe examinar se a pessoa indicada é capaz ou inca­paz para receber, solução que é for­necida pela lei do domicílio do her­deiro." (op. cit., pág. 360).

Ora, em nenhum momento a re­corrida imputou qualquer outro empeço que pudesse desqualificar a recorrente como herdeira de Alfon­so, senão a pretensão de afastá-la de sua sucessão tão-somente com o frágil argumento de que a lei espa­nhola não conferia direitos sucessó­rios a quem se vinculara apenas por laços de adoção simples.

Nenhuma referência à indignida­de ou deserdação, ou a qualquer ou­tro instituto que tivesse o condão para retirar a sua capacidade para suceder foi formulada.

Com efeito, incapacitada para su­ceder, Blanca não era, como não o é.

Aberto como foi o pórtico para co­nhecimento do recurso especial e ainda que vendo com reserva, data venia, o Enunciado nº 456 da Sú­mula do Pretório Excelso, tenho que, em razão das peculiaridades da causa, não há nenhum obstáculo para, aplicando-se o direito à espé­cie, dirimir de vez a controvérsia, evitando-se delongas dispensáveis, e assim o faço sobretudo por não haver, no caso, a mais mínima dú­vida de que, ainda quando a filiação não era equiparada, em todos os

seus gêneros e espécies, ficou inilu­divelmente a partir da Constituição Federal de 1988, diante do disposto pelo § 6º do seu art. 227, o filho ado­tivo, quando não concorria com fi­lhos legítimos, legitimados ou reco­nhecidos do adotante, era seu her­deiro (art. 377, CC), e, nesta hipó­tese, herdeiro necessário, pois para os efeitos da sucessão, aos filhos le­gítimos se equiparam os legitima­dos, os naturais reconhecidos e os adotivos (art. 1.605, CC).

Assim, Blanca é herdeira neces­sária de Alfonso, hipótese em que este não poderia dispor de mais da metade de seus bens, pois a outra tocará de pleno direito à Blanca (art. L 721, CC), razão pela qual as disposições de seu testamento, como excederam a metade disponível, devem ser reduzidas aos limites da legítima (art. 1.727, CC).

Assim, à Blanca tocará, por seu direito à legítima, a metade da he­rança, acrescida do legado que lhe foi instituído (art. 1.724, CC).

A par de tudo quanto já foi dito, tenho-me no dever de lançar um breve comentário a duas referências (apenas referências) feitas pelo v. aresto atacado: a primeira, atinen­te a que a própria Blanca teria se conformado em receber apenas o legado, só e só porque também fir­mara o testamento aberto celebra­do por Alfonso, quando a brindou com o legado acima mencionado; a segunda, referente a que a vontade de Alfonso outra não seria senão a de deixar Blanca apenas como sua legatária, já que o seu testamento foi posterior à adoção e à vigência da Lei nº 21/87.

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Quanto à primeira, observo que a renúncia à herança não poder ser presumida, há de ser expressa, con­soante o disposto na parte final do art. 1.581 do Código Civil, além do que não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva (art. 1.089, CC).

Quanto à segunda, nada obstan­te ser certo que "quando a cláusula testamentária for suscetível de in­terpretações diferentes, prevalece­rá a que melhor assegure a obser­vância da vontade do testador" a transferência dos bens da hera~ça pode ocorrer, em certas circunstân­cias, até contra a vontade expressa do testador quando, por exemplo, como no caso em desate, as disposi­ções testamentárias excederem à metade da porção disponível have­rão de ser reduzidas aos limites dela (art. 1.727, CC).

Diante de tais pressupostos, co­nheço do recurso por ambas as alí­neas para lhe dar provimento, re­conhecendo que BlancaAntônia Mar­tin Escudero é herdeira necessária de Alfonso Martin Escudero, como sua filha adotiva que é, sendo-lhe destinado o percentual de cinqüen­ta por cento dos bens da herança, por conta da legítima, e mais o le­gado que lhe foi deixado por testa­mento, restaurando a decisão mo­nocrática de primeiro grau, reco­nhecendo Blanca como herdeira necessária, pelo que lhe toca 50% da herança a título de legítima, acres­cida essa porção do legado já referi­do, e devolvendo-lhe a inventarian­ça.

VOTO- VISTA (PRELIMINAR)

o SR. MINISTRO RUY ROSADO DE AGUIAR: 1. Estou de pleno acor­do com o eminente Relator, quando repeliu a preliminar de irregulari­dade na representação da ora recor­rente, pois os poderes que outorga­ra a N acim Gabriel Arida, na quali­dade de inventariante do espólio de Alfonso Martin Escudero, para ge­rir e administrar todos os bens mó­veis e imóveis do acervo, compreen­diam também o de defender seus in­teresses como herdeira, porquanto essa condição fora a causa de sua nomeação para a inventariança. Embora não se confundam as duas posições, e os interesses que delas decorram possam não ser os mes­mos, a verdade é que se há de en­tender inserido no mandato que a pessoa física e inventariante conce­de ao seu procurador, com os mais amplos poderes para agir em rela­ção ao espólio, também o de defen­der a própria qualidade da outor­gante como herdeira. Não seria ra­zoável exigir-lhe a prática de um novo ato, ou a escolha de outro man­datário, apenas porque no anterior instrumento não ficara explicitada a circunstância de também estar atuando na condição de herdeira.

2. A recorrida, ao pleitear sua ad­missão como herdeira, a fls. 58/59 dos autos do inventário, assim se manifestou:

"A requerente é herdeira ne­cessária de seu pai Alfonso Mar­tin Escudero, em conformidade

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com a lei brasileira não somente respaldada pela Constituição Fe­deral, como pela legislação con­tida no Código Civil Brasileiro." ... "Ressalte-se, também, que o in­ventariante, insiste em afirmar que a herdeira necessária é filha adotiva, por adoção simples, ig­norando a legislação pátria. A Constituição Brasileira no seu artigo 227, parágrafo 62 , eliminou quaisquer diferenças quanto aos direitos entre filhos legítimos e adotados"."

o magistrado, ao admitir o seu pleito, a fls. 241, afirmou:

"Quando da lavratura do tes­tamento, já estava em vigor a nossa atual Constituição Federal, que em seu artigo 227, parágrafo 62, equiparou as diversas espé­cies de filiação, inclusive, para fins de sucessão."

Do acórdão ora em exame, reco­lho:

"Em seu parecer de fls. 1.596 e seguintes, expõe o Desembarga­dor Cândido Rangel Dinamarco a constitucionalidade da ressalva feita quanto ao regime da adoção simples e filiação natural.

E, em ponto à frente, lembra que o de cujus, ao adotar D. Blan­ca nos limites estreitos da adoção simples, negando-lhe a condição de herdeira necessária, ao testar prosseguiu nessa intenção, im­pondo a boa exegese atendimen­to à vontade do testador.

o professor Caio Mário da Sil­va Pereira, opinando às fls. 1.566 e seguintes, no mesmo sentido orientou suas conclusões, de­monstrando, com clareza, as limi­tações para o caso da invocação do artigo 227, § 62, da Constituição Brasileira vigente, regulada a ca­pacidade sucessória da recorrida pela lei espanhola, e nunca erigida D. Blanca à condição de herdeira do de cujus." (voto do Des. Marco Cesar, Relator) (fI. 1.636)

"A capacidade hereditária, que nasce do princípio constitucional que nivelou os filhos de qualquer origem, atinge apenas os domici­liados no Brasil.

As críticas que podem ser tra­zidas à Constituição Espanhola ou às leis que tratam da adoção e que não se ajustam com perfei­ção à Lei Maior da Espanha, por mais procedentes, distanciam-se da causa da agravada. Difícil en­tender que o juiz brasileiro pos­sa afirmar ser inválida a doação feita em país estrangeiro, porque colide com as regras da nossa Car­ta Magna: e daí tirar conseqüên­cias jurídicas de largo porte.

O art. 17 da Lei de Introdução ao Código Civil afasta a eficácia de atos jurídicas ou manifesta­ções de vontade produzidas em outro país, mas somente quando "ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons costu­mes".

Não se enquadra o fato agora examinado como desvirtuado, por meio de qualquer uma das lesões das acima mencionadas.

302 R. Sup. Trib. Just., Brasília, a. 10, (102): 271-388, fevereiro 1998.

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Outrossim, no ato da adoção foram os interessados advertidos pelo notário das condições exis­tentes e vigentes, inclusive no que diz respeito ao conteúdo do art. 180 do Código Civil local: não se pode esquecer que o falecido teve oportunidade de modificar a adoção por ela praticada em seus efeitos, valendo-se da legislação específica, inclusive ao tempo em que mandou elaborar seu testa­mento público. Nada alterou.

Impulsiona-se o julgador a aca­tar a vontade do testador, até por­que a lei brasileira assim prescre­ve.

Interessante o apego ao dis­posto no art. 226, parágrafo 6Q

,

da Constituição Federal de 1988. Não se pode negar aos filhos igual­dade. Nem por isso a regra é ab­soluta; basta lembrar o disposto no art. 5Q

, XXXI, da mesma Car­ta, quando haverá distinção en­tre filhos brasileiros e estrangei­ros na sucessão de bens de es­trangeiros, desde que situados no Brasil. A igualdade entre filhos, em tal hipótese, não será obser­vada; os brasileiros receberão benefícios; e nenhuma palavra foi dedicada aos filhos estrangeiros.

Poder-se-ia dizer que o art. 226, § 6Q, está preocupado em es­tabelecer igualdade entre os fi­lhos do casamento ou não, ou da adoção, e não a igualdade entre brasileiros e estrangeiros. Entre­tanto, se todos são iguais peran­te a lei, sem distinções, é a pró­pria Carta Magna que diferencia o caso de herança de brasileiros,

excluindo dos favores legais os estrangeiros, mesmo que filhos do autor da herança.

Não se pode pretender igual­dade, salutar, diga-se de passa­gem, levando-a às últimas conse­qüências, quando o próprio cons­tituinte impõe limites. Nem me parece que o intérprete da lei bra­sileira, no afã de dar a ela a mais larga aplicação, possa invadir questões que dizem com a cons­titucionalidade de leis estrangei­ras, porque a soberania da Justi­ça Brasileira não caminha por tal tipo de estrada." (voto do Des. Sil­veira Neto) (fls. 1.645/1.646)

Apenas o terceiro juiz não se re­feriu ao texto constitucional, mas acompanhou os demais.

Por fim, observo que a recorrida, na sua petição de recurso de embar­gos declaratórios, depois de afirmar que pretendia interpor recurso ex­traordinário, renovou seu amparo na Constituição da República:

"Assim, mesmo que aplicável à espécie a lei espanhola - o que, insista-se, admite-se só pa­ra efeitos de argumentação -certo é que em face da proibição de distinção entre filhos de qual­quer natureza, mesmo se adoti­vos (consagrada no artigo 227, parágrafo 6Q da Constituição Fe­deral) e sendo essa proibição de ordem pública, inclusive consti­tuindo garantia constitucional, afastado estaria o estatuto pes­soal da herdeira, impondo-se por conseqüência a aplicação da lex fori." (fi. 1.666)

R. Sup. Trib. Just., Brasília, a. 10, (102): 271-388, fevereiro 1998. 303

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Desses elementos extraio a idéia de que, desde seus primórdios, a causa foi colocada também em ter­mos constitucionais, pois foi na Cons­tituição da República que tanto a parte, como todos os que decidiram nos autos, encontraram fundamen­to para a sua pretensão ou suas de­cisões.

Tendo sido afirmado na decisão recorrida que o preceito constitucio­nal, dispondo sobre a igualdade en­tre os filhos, garantia o direito plei­teado pela filha adotiva, a Câmara viu-se na contingência de examinar a incidência da norma constitucio­nal, para afastá-la, no caso dos au­tos. Se não fosse assim, não teria como admitir que um filho, por ser adotivo, pudesse receber tratamen­to diferenciado, apenas por ter do­micílio na Espanha.

Quero com isso dizer que o Tri­bunal, para examinar a possibilida­de da aplicação da lei do domicílio do herdeiro, que estabelecia uma restrição à capacidade sucessória do filho adotivo, necessariamente teve de interpretar o dispositivo consti­tucional, para admitir que, nesse caso, há limitações para invocar-se o artigo 227, parágrafo 6º da Cons­tituição da República. Por isso, o r. voto vencedor do Des. Silveira Neto consignou que a regra do artigo 226, parágrafo 6º, não é absoluta, "atin­ge apenas os domiciliados no Bra­sil", lembrando a distinção que faz, também em matéria sucessória, a mesma Constituição, no seu artigo 5º, XXXI.

Existe, portanto, no r. acórdão re­corrido, um fundamento de nature-

za constitucional, que deveria ter sido atacado através de recurso ex­traordinário, pois a aceitação da tese de que a regra do artigo 227, § 6º da Constituição da República, assegura a igualdade absoluta en­tre os filhos, também para efeitos sucessórios e sem distinção quanto ao seu domicílio, significaria o afas­tamento de qualquer norma infra­constitucional que estabelecesse distinção quanto aos seus direitos. De outra parte, somente interpre­tação mais flexível do enunciado na Carta, assim como adotado no acór­dão, poderia ensejar a conclusão de que, aos filhos com domicílio em outros Estados, era permitido tra­tamento desigual quanto ao re­conhecimento dos seus direitos. Sendo assim, através de recurso ex­traordinário, a recorrente poderia obter decisão favorável e suficiente para atendimento de sua pretensão, uma vez reconhecido que o texto constitucional não admite a flexibi­lização que lhe atribuiu o r. Tribu­nal a quo.

Diz-se que o julgamento da cau­sa poderia ter ficado no âmbito in­fraconstítucional, bastando para isso que se atribuísse ao conceito de capacidade sucessória o conteúdo que lhe atribui a recorrente, pelo que deixaria de incidir a norma do artigo 10, § 29 da LICC. Ocorre que não foi esse o caminho escolhido pelo Tribunal a quo, cujo julgado teve o desdobramento já referido: partiu da premissa de que a CR per­mite a diferenciação entre os filhos, examinou a regra do § 29 do art. 10, da LICC, estabeleceu em razão dis­so uma diferenciação que não pode-

304 R. Sup. Trib. Just., Brasília, a. 10, (102): 271-388, fevereiro 1998.

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ria fazer sem antes vencer a ques­tão maior da igualdade entre os fi­lhos. E o julgado com essa funda­mentação é que está agora subme­tido ao exame da Turma, que não pode, a meu ver, negar a existência de questão constitucional no julga­do do ego Tribunal de São Paulo, o qual deveria ter sido atacado atra­vés de recurso apropriado.

Posto isso, com base no Súmula 283/STF, não conheço do recurso.

VOTO- VOGAL

O SR. MINISTRO RUY ROSADO DE AGUIAR: Sr. Presidente, acom­panho o Eminente Ministro-Relator, acentuando o fato de que, no caso, a aderente é uma empresa, não ten­do sido afirmado nos autos que te­nha sofrido dificuldade no exercício da sua defesa em Juízo.

VOTO- VISTA

O SR. MINISTRO FONTES DE ALENCAR: Duas questões prévias tomam a minha atenção. A primei­ra diz com a procuração de que se serve o representante da recorren­te. A argüição correspondente rejei­tou-a o relator; e também o 1 º vo­gal. Mesmamente a afasto eu. Não só pelo que disseram os eminentes julgadores, mas sobretudo porque a heterogeneidade da peça de fl. 1.658 se me afigura certa, pelo que não há dizer-se falto de poderes aquele que em nome da recorrente outor­gou o mandado instrumentalizado à fl. 1.661.

A outra prende-se ao que se dis­se fundamento constitucional do acórdão de ataque isentado. O rela­tor repeliu essa preliminar trazen­do à tona o art. 10 da LICC e consi­derando que

"o fundamento de sustentação, no que tem de essencial para o deslinde da causa, foi único."

O em. Ministro Ruy Rosado de Aguiar não conheceu do recurso, com base na Súmula 283/STJ, por entender inegável a existência de questão constitucional no acórdão recorrido não enfrentada por recur­so extraordinário.

Admito que numa primeira mi­rada não divisei fundamentação constitucional no acórdão da Corte paulista. Distingui apenas, então, fundamento de voto com tom de constitucionalismo.

A remirar a causa, porém, depa­rei com o que me sugeriu um fun­damento constitucional da decisão recorrida. É que o acórdão adotado nos embargos declaratórios expõe o seguinte:

"Certo que os Juízes e Tribu­nais, em suas decisões, não estão obrigados a mencionar explicita­mente todos os argumentos e tex­tos do ordenamento jurídico cita­dos pelas partes, devendo, ao in­vés, construir a peça rescisória dentro do que se revele pertinen­te o suficiente para fundamentar a conclusão, e a r. decisão embar­gada assim procedeu.

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Bem claro que nela a adoção de pareceres de ilustres juristas não se erigiu em argumento de autoridade, mas sim reportou-se à base jurídica de tais peças, nos pontos acolhidos, preferindo o v. acórdão não transcrevê-los, e ao citar os eméritos, não pecou por invocação genérica, sendo explí­cito em dizer no que se valia de­les." (fI. 1.672)

Nada obstante, no corpo do acór­dão a menção ao parecer do em. Pro­fessor Cândido Rangel Dinamarco não se apega ao direito constitucio­nal brasileiro. A alusão ao parecer do também em. Professor Caio Má­rio da Silva Pereira, no que se refe­re a Constituição, não se me afigu­ra a modo de fundamentação do decidir. No voto do segundo juiz da Corte estadual o móbil da manifes­tação não é a norma da Constitui­ção da República, a que alude obi­ter dictum.

Esvaiu-se aquela sugestão de fun­damento constitucional.

O mirar e o remirar a causa e ve­zes várias examiná-la e a reexami­nar, tudo é próprio do juiz, para des­fazimento de dúvidas no seu dizer.

Ainda que se tenha presente ao acórdão recorrido um fundamento constitucional, não creio deva ser obstado o conhecimento do recurso sob calor de falta de interposição do apelo extraordinário. É que faltaria ao soi-disant fundamento constitu­cional a perseidade reclamada pela Súmula 126 do STJ e pela Súmula 283 do STF, porquanto a recorrente não contende com outros filhos da­quele de cuja sucessão se trata.

O relator, assinalando que capa­cidade para suceder e qualidade de herdeiro se não confundem, enten­deu que

"essa qualidade de herdeiro haverá de ser aferida pela mes­ma lei competente para reger a sucessão do morto que, no Brasil, "obedece à lei do país em que era domiciliado o defunto ... qualquer que seja a natureza e a situação dos bens ," em face do pontificado no caput do art. 10 da LICC"

e concluiu:

"Com efeito, a lei brasileira confere à Blanca, de há muito, a qualidade de herdeiro."

E, passo avante, registrou:

"Nenhuma referência à indig­nidade ou deserdação, ou a qual­quer outro instituto que tivesse o condão para retirar a sua capa­cidade para suceder foi formula­da."

Finalmente, conheceu do recur­so por ambas as alíneas e lhe deu provimento.

Adunam-se as expressões doutri­nais que permeiam o voto de S. Exa. e o que escólio da obra do Prof. Luiz Ivani de Amorim Araújo:

"A sucessão -por morte (legí­tima ou testamentária) ou por ausência - rende-se à lex loei domicilii do de cujus .. .

................ (omissis) ............... .

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A lei domiciliar do herdeiro ... ou do legatário .. , - regula a ca­pacidade para suceder" (Introdu­ção ao Direito Internacional Pri­vado, págs. 83/84 - São Paulo: Ed. Rev. dos Tribunais, 1990)

Vale anotado o extremo de Amíl­car de Castro que depois de dis­cordar da posição de Espínola & Espínola

("a nova lei de Introdução, quando declara no art. 10, § 2Q

,

que a lei do domicílio do herdei­ro ou legatário regula a capaci­dade para suceder considera não a capacidade para ter o direito de sucessor, mas a aptidão para exercer o direito de sucessor re­conhecido pela Lei competente")

assim pontificou:

"A melhor doutrina ensina que a faculdade de haver a herança conjunto de qualidades requeri­das para suceder, ou capacidade para suceder, deve ser regulada exclusivamente pelo direito que rege a sucessão (ius causae).

Pelo mesmo direito por que se aprecia a vocação hereditária é que se devem qualificar as pes­soas chamadas a suceder."

E acresceu:

"Sem dúvida nenhuma ajuris­prudência poderá consertar a lei ... " (Direito Internacional Pri­vado, págs. 433/434, 3e ed. - Rio: Forense, 1977).

Dou provimento ao recurso nos termos do pedido conduzido no re­curso especial que está nos autos.

VOTO- VISTA

o SR. MINISTRO SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA: 1. A ra­ridade do tema em torno da verda­deira inteligência do art. 10, § 2Q

,

da Lei de Introdução, ainda não apreciada anteriormente neste Tri· bunal, a riqueza de ângulos levan­tados pelas partes em razões, me­moriais e pareceres, a argüição de preliminares e a divergência já ve­rificada nos votos proferidos, leva­ram-me a ter vista dos autos.

Nesse exame, colhi inicialmente da exposição lançada pelo Sr. Minis­tro-Relator:

"A recorrente, Blanca Antonia Martin Escudero, nascida e domi­ciliada na Espanha, foi, em 16 de julho de 1986, aos 45 (quarenta e cinco) anos de idade, por escritu­ra pública de adoção simples ce­lebrada naquele país, adotada por Alfonso Martin Escudero, nascido em 1901, de naturalida­de foral catalã mas domiciliado no Brasil (Estado de São Paulo) desde 1955 até a sua morte, aqui ocorrida em 02 de março de 1990, não deixando cônjuge sobreviven­te, pois viúvo desde 21 de julho de 1979, nem à evidência, ascen­dentes, nem nenhum descenden­te biológico, seja legítimo ou ile­gítimo.

Em fevereiro de 1989, estando em Madrid, o falecido Alfonso fez

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seu testamento aberto, deixando todos os seus bens para a "Fun­dação Benéfico-Docente Alfonso Martin Escudero", ora recorrida, instituindo-a sua herdeira uni­versal, deixando tocar, todavia, à recorrente (que também firmou o instrumento), como legado, um apartamento, a ser comprado pela referida Fundação, além de uma pensão vitalícia, bem como os objetos de menor monta ali in­dicados.

Com o óbito de Alfonso foi aber­to na Comarca de São Paulo, que fora o seu último domicílio, o ar­rolamento dos bens hereditários, com o pedido de que estes fossem adjudicados em favor da "Funda­ção Benéfico-Docente Alfonso Mar­tin Escudero", que seria a sua her­deira universal.

É que a lei espanhola, vigente no tempo da adoção, não confe­ria a Blanca, cujo vínculo com o de cujus decorria apenas de ado­ção simples, nenhum direito su­cessório sobre a herança do fale­cido, salvo, evidentemente, o le­gado decorrente do ato de última vontade, nada obstante, no mo­mento da morte de Alfonso, já viger a Lei nº 21/87 que parificara naquele país todas as adoções, mas ressalvando as anteriormen­te instituídas, pelo que, quem já tivera sido conferido com a ado­ção simples, só se constituiria her­deiro do adotante com a expressa manifestação deste, o que não ocorrera na espécie de que se tra­ta.

Ingressando no feito, Blanca pleiteou o seu reconhecimento

como herdeira necessária do de cujus, com direito à legítima, por força do editado ao art. 10 da Lei de Introdução ao Código Civil, postulando ainda a modificação do rito da ação de arrolamento para inventário, em face do dis­posto nos arts. 1.036 e seguintes do Código de Processo Civil, em tudo sendo atendida pelo digno Juiz processante, cujo decisório foi reformado, em sede de agra­vo de instrumento, pela ego Quin­ta Câmara Civil do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, à consideração de que, em aper­tada síntese:

a) "o art. 10 da Lei de Intro­dução ao Código Civil, manda que a sucessão por morte obe­deça à lei do país em que do­miciliado o defunto, qualquer que seja a natureza e situação dos bens, e prevê ainda que a lei do domicílio do herdeiro ou legatário regule a capacidade de suceder." (fls. 1.635);

b) pelo direito espanhol, Blanca, conquanto seja filha adotiva de Alfonso, não seria sua herdeira necessária, por­que a ela foi conferida apenas a adoção simples;

c) embora sendo certo que a Lei nº 21/87 dera paridade às adoções simples e plena, em razão do que ambas conferi­riam, ao adotado, a condição de herdeiro necessário, ressal­vara, contudo, aquelas primei­ras instituídas antes de sua vi­gência, salvo se tivesse havido

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posterior manifestação expres­sa em sentido contrário, ino­corrente na hipótese dos autos;

d) ademais, a própria Blan­ca teria se conformado em re­ceber apenas o legado, na me­dida em que também firmara o testamento aberto celebrado por Alfonso, que a brindou com o legado acima mencionado;

e) por fim, como o testamen­to foi posterior à adoção e à vi­gência da Lei n Q 21/87, seria de inferir-se que a vontade de Al­fonso outra não seria senão a de deixar Blanca apenas como sua legatária".

Como se vê, a recorrente, filha adotiva por escritura passada em seu País de origem, em julho/86, pretende valer-se da lei brasileira, que confere, também para fins de herança, igualdade jurídica aos fi­lhos, adotivos ou não, argumentan­do com o princípio da universalida­de sucessória e enfatizando que, di­versamente da conclusão a que che­gou o ego Tribunal de Justiça de São Paulo, a expressão legal "capacida­de para suceder" reclamaria exege­se segundo a qual à lei espanhola somente incumbiria dizer da sua condição de filha adotiva e sua ap­tidão para herdar, cabendo à lei bra­sileira o mais em termos sucessó­rios, a saber, "se a adoção simples é fonte de vocação hereditária e se a vontade do testador pode prevale­cer sobre a legítima do herdeiro ne­cessário".

2. Antes do exame do mérito, no entanto, há duas preliminares a

apreciar, de não-conhecimento do especial. A primeira, por falha na representação postulatória da re­corrente; a segunda, a propósito de fundamento constitucional não-im­pugnado no acórdão paulista.

3. Quanto àprimeira dessas pre­liminares, também a rejeito, acom­panhando os votos já proferidos.

O instrumento de mandato outor­gado pela recorrente (fls. 1.658) con­feriu a N acim Gabriel Arida todos os poderes para gerir e administrar os bens do espólio, para o qual a re­corrente tinha sido nomeada inven­tariante, constando até mesmo po­deres para contratar advogado.

Certo é que a finalidade imedia­ta do contrato seria a defesa dos negócios do espólio. Embora precípua, não era essa, porém, a fmalidade úni­ca, haja vista que o mandato pode­ria servir também para a defesa dos interesses pessoais da inventarian­te. Destarte, no ponto, ponho-me de acordo com o Sr. Ministro-Relator, na medida em que o Direito Proces­sual contemporâneo não comporta tamanho rigor formal.

4. Passo, a seguir, ao exame da segunda preliminar.

Do voto do Relator do acórdão paulista (Des. Marco Cesar), extraio:

"Uma vez que, por disposição de vontade, BlancaAntonia Mar­tin Escudero não foi instituída sucessora do de cujus, nem o é por direito de sangue, cumpre es­tabelecer se a adoção havida na Espanha serve à mesma para alçá-la a tal condição.

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o artigo 10, da Lei de Intro­dução ao Código Civil, manda que a sucessão por morte obedeça à lei do país em que domiciliado o defunto, qualquer que seja a na­tureza e situação dos bens, e pre­vê ainda que a lei do domicílio do herdeiro ou legatário regule a ca­pacidade de suceder.

A confrontação entre o primei­ro ponto (caput), e o segundo (§ 2 Q

), largamente estudada nos luminosos pareceres de fls. e fls., todavia pressupõe que se acerte desde logo se a adoção simples da recorrida pelo falecido Alfonso Martin Escudero, serviu a qual­quer tempo para erigi-Ia à condi­ção de herdeira.

A conclusão é negativa.

Faça-se referência ao parecer acostado nos autos da lavra do eminente Professor Irineu Stren­ger (fls. 569 e seguintes).

Existentes no direito espanhol, como já sucedeu no direito local, a adoção simples e a adoção ple­na, pela Lei n Q 21, do ano de 1987, vale dizer, após a adoção simples da recorrida pelo falecido, redu­ziu-se a adoção a uma única for­ma, mas tal lei, ao assim dispor, ressalvou que as adoções simples ou menos plenas subsistiriam com os efeitos que lhes reconhecesse a legislação anterior, sem prejuízo de que se pudesse levar a cabo a adoção regulada por aquela lei, se para isso se cumprissem os requi­sitos nela exigidos.

Garantiu a lei espanhola, pois, o ato jurídico perfeito, e em tais

termos deve ser acatada a situa­ção estabelecida quando da ado­ção da recorrida, que não servia, como a adoção simples do ante­rior direito brasileiro, para erigi­la à condição de herdeira.

Em seu parecer de fls. 1.596 e seguintes, expõe o Desembarga­dor Cândido Rangel Dinamarco a constitucionalidade da ressal­va feita quanto ao regime da ado­ção simples e a filiação natural.

E, em ponto à frente, lembra que o de cujus, ao adotar Dª Blan­ca nos limites estreitos da adoção simples, negando-lhe a condição de herdeira necessária, ao testar prosseguiu nessa intenção, im­pondo a boa exegese atendimen­to à vontade do testador.

O Professor Caio Mário da Sil­va Pereira, opinando às fls. 1.566 e seguintes, no mesmo sentido orientou suas conclusões, de­monstrando, com clareza, as limi­tações para o caso da invocação do artigo 227, § 6Q

, da Constitui­ção brasileira vigente, regulada a capacidade sucessória da recor­rida pela lei espanhola, e nunca erigida Dª Blanca à condição de herdeira do de cujus".

Da declaração de voto do Primei­ro vogal (Des. Silveira Netto), colho:

"Forçoso, pois, concluir-se que embora a sucessão se faça segun­do a lei brasileira para qualquer falecimento de pessoa domicilia­da no Brasil, hipóteses destaca­das na própria lei merecem tra­tamento diferenciado".

310 R. Sup. Trib. Just., Brasília, a. 10, (102): 271-388, fevereiro 1998.

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"Ora, segundo o que está nos autos, ao tempo da adoção da agravada pelo falecido, esta po­deria ser simples, limitando os di­reitos sucessórios. Modificada a lei espanhola, para permitir que houvesse adoção em medida mais ampla, abrindo capacidade suces­sória, impunha ao adotante ma­nifestação expressa a respeito; uma vez inexistente, não há que se beneficiar, no caso presente, a agravada com a igualdade cons­titucional assegurada na Consti­tuição Brasileira aos filhos.

A capacidade hereditária, que nasce do princípio constitucional que nivelou os filhos de qualquer origem, atinge apenas os domici­liados no Brasil.

As críticas que podem ser tra­zidas à Constituição Espanhola ou às leis que tratam da adoção e que não se ajustam com perfei­ção à Lei Maior da Espanha, por mais procedentes, distanciam-se da causa da agravada. Difícil en­tender que o juiz brasileiro pos­sa afirmar ser inválida a doação feita em país estrangeiro, porque colide com as regras da nossa Carta Magna; e daí tirar conse­qüências jurídicas de largo por­te.

O art. 17 da Lei de Introdução ao Código Civil afasta a eficácia de atos jurídicos ou manifestações de vontade produzidas em outro país, mas somente quando "ofen­derem a soberania nacional, a or­dem pública e os bons costumes".

Não se enquadra o fato agora examinado como desvirtuado, por meio de qualquer uma das lesões das acima mencionadas.

Outrossim, no ato da adoção foram os interessados advertidos pelo notário das condições exis­tentes e vigentes, inclusive no que diz respeito ao conteúdo do art. 180 do Código Civil local; não se pode esquecer que o falecido teve oportunidade de modificar a adoção por ela praticada em seus efeitos, valendo-se da legislação específica, inclusive ao tempo em que mandou elaborar seu testa­mento público. Nada alterou.

Impulsiona-se o julgador a aca­tar a vontade do testador, até por­que a lei brasileira assim prescre­ve.

Interessante o apego ao dis­posto no art. 226, § 6º, da Consti­tuição Federal de 1988. Não se pode negar aos filhos igualdade. Nem por isso a regra é absoluta; basta lembrar o disposto no art. 5º, XXXI da mesma carta, quan­do haverá distinção entre filhos brasileiros e estrangeiros na su­cessão de bens de estrangeiros, desde que situados no Brasil. A igualdade entre filhos, em tal hi­pótese, não será observada; os brasileiros receberão benefícios; e nenhuma palavra foi dedicada aos filhos estrangeiros.

Poder-se-ia dizer que o art. 226, § 6º, está preocupado em es­tabelecer igualdade entre os fi­lhos do casamento ou não, ou da adoção, e não a igualdade entre brasileiros e estrangeiros. En-

R. Sup. Trib. Just., Brasília, a. 10, (102): 271-388, fevereiro 1998. 311

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tretanto, se todos são iguais pe­rante a lei, sem distinções, e a própria Carta Magna que dife­rencia o caso de herança de bra­sileiros, excluindo dos favores le­gais os estrangeiros, mesmo que filhos do autor da herança.

Não se pode pretender igualda­de, salutar, diga-se de passagem, levando-a às últimas conseqüên­cias, quando o próprio constituin­te impõe limites. Nem me parece que o intérprete da lei brasileira, no afã de dar a ela a mais larga aplicação, possa invadir questões que dizem com a constitucionali­dade de leis estrangeiras, porque a soberania da Justiça Brasilei­ra não caminha por tal tipo de es­trada".

N a realidade, foi a própria recor­rente que invocou a norma consti­tucional, que estaria a reconhecer os seus direitos, o que levou o Tri­bunal de origem a apreciá-lo e pro­clamar que o mesmo não a favore­cia, louvando-se em parecer, além de arrimar-se no art. 5Q

, XXXI da Lei Maior.

Levando em linha de considera­ção tais manifestações, além do já constante no requerimento da re­corrente (fls. 58/59) e no pronuncia­mento judicial de fls. 241 (admissão da recorrente na qualidade de her­deira), vê-se que presente, no desen­rolar da causa, o fundamento cons­titucional em torno do art. 227, § 6Q

,

do texto de 1998. Assim, lastreou­se o acórdão em fundamentos cons­titucional (não-aplicação do art. 227-§6Q

) e infraconstitucional (ado­ção da lei espanhola).

Bem ou mal, entendeu o Colegia­do bandeirante que, mesmo que se aplicasse ao caso a lei brasileira, seria constitucional, sob o prisma do direito brasileiro, a ressalva feita pela Lei espanhola n Q 21, de 1987, que considerou válidos os efeitos das adoções anteriores à sua vigên­cia, de acordo com as regras da épo­ca, o que, conseqüentemente, não conferiria à recorrente o status de herdeira necessária perante o nos­so ordenamento jurídico.

Esse ponto, não cuidou a recor­rente de impugnar, incidindo, em conseqüência, o Enunciado n 2 126 da Súmula deste Tribunal, segun­do o qual

"É inadmissível recurso espe­cial, quando o acórdão recorrido assenta em fundamentos consti­tucional e infraconstitucional, qualquer deles suficiente, por si só, para mantê-lo, e a parte ven­cida não manifesta recurso extra­ordinário" .

Não se trata, como se vê com ni­tidez, de exigir-se a declaração de inconstitucionalidade da lei espa­nhola, mas da inteligência e do al­cance do art. 227-§ 62 da nossa Constituição no caso concreto.

Argumenta a recorrente, por ou­tro lado, que, mesmo que se admita o fundamento constitucional, não seria ele suficiente para os fins do referido verbete sumular, a saber, para sustentar as conclusões do acór­dão recorrido, daí faltar-lhe interes­se em recorrer extraordinariamen­te, enfatizando, mais, que, em qual-

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quer das hipóteses, de provimento ou não do especial, restaria prejudica­do o eventual extraordinário.

O exame detido que fiz da espé­cie, todavia, não me levou a essa conclusão. Sendo dois os fundamen­tos, ambos suficientes, ultrapassan­do um, remanesceria o outro. Supe­rado o fundamento infraconstitucio­nal, pela incidência da lei brasilei­ra, permaneceria o fundamento constitucional do acórdão guerrea­do, segundo o qual não-incidente na espécie a igualdade contemplada no art. 227-§ 69 da Constituição.

Daí o acerto, a meu juízo, do ra­ciocínio desenvolvido no voto do Sr. Ministro Ruy Rosado de Aguiar:

"Tendo sido afirmado na deci­são recorrida, que o preceito cons­titucional, dispondo sobre a igual­dade entre os filhos, garantia o direito pleiteado pela filha adoti­va, a Câmara viu-se na contingên­cia de examinar a incidência da norma constitucional, para afastá­la, no caso dos autos. Se não fos­se assim, não teria como admitir que um filho, por ser adotivo, pu­desse receber tratamento dife­renciado, apenas por ter domicí­lio na Espanha.

Quero com isso dizer que o Tri­bunal, para examinar a possibi­lidade da aplicação da lei do do­micílio do herdeiro, que estabe­lecia uma restrição à capacidade sucessória do filho adotivo, neces­sariamente teve de interpretar o dispositivo constitucional, para admitir que, nesse caso, há limi­tações para invocar-se o artigo

227, § 69 da Constituição da Re­pública. Por isso, o r. voto ven­cedor do Des. Silveira Neto con­signou que a regra do artigo 227, § 69 , não é absoluta, "atinge ape­nas os domiciliados no Brasil", lembrando a distinção que faz, também em matéria sucessória, a mesma Constituição, no seu ar­tigo 59, XXXI.

Existe, portanto, no r. acórdão recorrido, um fundamento de na­tureza constitucional, que deve­ria ter sido atacado através de re­curso extraordinário, pois a acei­tação da tese de que a regra do artigo 227, § 69 da Constituição da República, assegura a igual­dade absoluta entre os filhos, também para efeitos sucessórios e sem distinção quanto ao seu domicílio, significaria o afasta­mento de qualquer norma infra­constitucional que estabelecesse distinção quanto aos seus direi­tos. De outra parte, somente in­terpretação mais flexível do enun­ciado na Carta, assim como ado­tado no acórdão, poderia ensejar a conclusão de que, aos filhos com domicílio em outros Estados, era permitido tratamento desigual quanto ao reconhecimento dos seus direitos. Sendo assim, atra­vés de recurso extraordinário, a recorrente poderia obter decisão favorável e suficiente para aten­dimento de sua pretensão, uma vez reconhecido que o texto cons­titucional não admite a flexibili­zação que lhe atribuiu o r. Tribu­nal a quo.

Diz-se que o julgamento da causa poderia ter ficado no âm-

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bito infraconstitucional, bastan­do para isso que se atribuísse ao conceito de capacidade sucessó­ria o conteúdo que lhe atribui a recorrente, pelo que deixaria de incidir a norma do artigo 10, § 2Q

da LICC. Ocorre que, não foi esse o caminho escolhido pelo Tribu­nal a quo, cujo julgado teve o desdobramento já referido: par­tir da premissa de que a CR per­mite a diferenciação entre os fi­lhos, examinou a regra do § 2Q do artigo 10, da LICC, estabelecen­do em razão disso uma diferencia­ção que não poderia fazer sem antes vencer a questão maior da igualdade entre os filhos. E o jul­gado com essa fundamentação é que está agora submetido ao exa­me da Turma, que não pode, a meu ver, negar a existência de questão constitucional no julga­do do ego Tribunal de São Paulo, o qual deveria ter sido atacado através de recurso apropriado".

Em face do exposto e em conclu­são, com a mais respeitosa venia também não conheço do recurso.

VOTO- VISTA

O SR. MINISTRO BARROS MON­TEIRO: 1. Tal como os votos prece­dentes, estou em rejeitar, Sr. Presi­dente, a preliminar de irregularida­de da representação da ora recor­rente. É que, outorgada por ela a procuração a N acim Gabriel Arida, na qualidade de inventariante do Espólio de Alfonso Martin Escude­ro, claro se afigura que os amplos

poderes conferidos ao mandatário compreendiam aqueles concernen­tes à defesa da sua qualidade de herdeira.

2. Não vislumbro, de outro lado, fundamento constitucional a sus­tentar o Acórdão recorrido, por si só suficiente, com vistas à incidência no caso da Súmula n Q 126 desta Ca­sa.

Assim se enuncia o referido ver­bete sumular:

"É inadmissível recurso espe­cial, quando o acórdao recorrido assenta em fundamentos consti­tucional e infraconstitucional, qualquer deles suficiente, por si só, para mantê-lo, e a parte ven­cida não manifesta extraordiná­rio".

Em primeiro lugar, o voto do Re­lator, Desembargador Marco Cesar, arrimou-se na motivação substan­cial de que, adotada BlancaAntonia na Espanha pela forma da "adoção simples", desprovida de direitos le­gitimários, não foi ela erigida à con­dição de herdeira.

É certo que, em determinado pon­to de seu pronunciamento, o Sr. Desembargador Relator se reporta ao parecer do Prof. Caio Mário da Silva Pereira acostado aos autos, o qual, na dicção empregada pelo dou­to prolator do voto, "orientou suas conclusões, demonstrando, com cla­reza, as limitações para o caso da invocação ao art. 227, § 6Q

, da Cons-tituição vigente ...... " (fls. 1.636). En-tretanto, a alusão feita ao texto da Lei Maior não se enreda com o fun-

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damento central daquele voto, tan­to mais que essa mesma referência ao preceito da Constituição Federal é de conteúdo negativo, o que, ali­ás, pode ser confirmado pela leitu­ra de excerto do supramencionado parecer do mestre mineiro que se encontra a fls. 1.590: "A Constitui­ção Brasileira de 1988, no art. 227, § 6 Q

, equiparou todos os filhos (ha­vidos ou não da relação de casamen­to e por ado(;ão). O princípio consti­tucional impressiona à primeira vis­ta. A tentativa de decidir a pendên­cia sob o império do art. 227, § 6Q

,

pode levar a equívoco, se não aten­tar em que, na sucessão de Alfonso Martin Escudero, ocorre o denomi­nado 'fato anormal', deslocando o caso para o terreno do conflito de leis no espaço".

Inexiste, pois, no primeiro voto do julgamento da apelação, motivo de porte constitucional.

O 2Q Juiz, Desembargador Silvei­ra Neto, acompanhou o Sr. Relator na conclusão, não reconhecendo em favor de Blanca Antonia a condição de herdeira. Pode admitir-se que este 2Q voto tenha fundamento de natureza constitucional, porquanto, ao referir-se à possibilidade de trans­formar-se, pela legislação espanho­la, a "adoção simples" em adoção mais ampla, o eminente julgador anotou que se impunha ao adotante manifestação expressa a respeito, acrescentando: "uma vez inexisten­te, não há que se beneficiar, no caso presente, a agravada com a igual­dade constitucional assegurada na Constituição Brasileira aos filhos. A capacidade hereditária, que nasce

do princípio constitucional que ni­velou os filhos de qualquer origem, atinge apenas os domiciliados no Brasil" (fls. 1.644/1.645). S. Exa. ainda, em seguida, tratou da igua­lização dos filhos, asseverando que a regra não é absoluta mesmo em face da Constituição da República (art. 5Q

, inc. XXXI).

Já o 3 Q voto, da lavra do il. De­sembargador Marcus Andrade, não contém fundamento constitucional autônomo. S. Exa. acentuou, em seu douto pronunciamento, que a "ado­ção simples", forma pela qual a ora recorrente foi adotada, permaneceu indene ainda que frente a disposi­tivos da Constituição Espanhola que se editaram posteriormente. Além de sustentada a inteireza da norma que instituíra a "adoção sim­ples" (art. 180 do Código Civil Es­panhol), o ilustre julgador ainda obtemperou a respeito: Ademais -e esse tópico se afigura fundamen­tal- problemático o reconhecimen­to por Corte de Justiça Brasileira, da invalidade e ineficácia de lei es­trangeira por inconstitucionalidade, quando nem os próprios Tribunais, mormente o constitucional, do País em que editada, dessa forma decla­raram, obstando a vigência" (fls. 1.651). S. Exa., em suma, deu pro­vimento ao agravo por considerar aplicável à espécie o art. 10, § 2Q

,

da LICC, segundo o qual a lei do domicílio do herdeiro regula a ca­pacidade para suceder. Sendo Blan­ca Antonia filha adotiva simples, sem direito legitimário, falta-lhe a capacidade de herdar.

O simples fato de haver um dos votos ventilado matéria de porte

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constitucional não significa que o Acórdão recorrido assim também se tenha expressado. Cumpre distin­guir, como o faz José Carlos Bar­bosa Moreira, entre fundamentos de voto e fundamentos do julgado. A fundamentação do Acórdão será exclusivamente a vencedora, ou se­ja, aquela adotada pela maioria. Consoante advertência lançada pelo eminente Professor e Desembarga­dor, "é intuitivo que nem todos os argumentos invocados pelos mem­bros do corpo julgador se convertem em fundamentos da decisão colegia­da: serão tais, exclusivamente, os aceitos pela maioria dos votantes" ("Distinção entre fundamento do Acórdão e fundamento do voto", Revista de Processo, voI. 1, abril­junho de 1976, pág. 304).

Por tais razões, afasto também a segunda preliminar.

3. A tônica dos votos proferidos no julgamento da apelação é a de que, adotada Blanca Antonia na Espanha pela forma da "adoção sim­ples", sem direitos legitimários, não desfruta ela do status de herdeira. A Eg. Câmara fez incidir no caso a preceituação constante do art. 10, § 2 Q

, da Lei de Introdução ao Códi­go Civil, e, conseqüentemente, apli­cou a legislação espanhola, corres­pondente ao domicílio da herdeira, quanto à capacidade para suceder.

A locução "capacidade para suce­der", inserta no supra aludido § 2Q

,

tem sentido ambíguo e, por isso mesmo, tem sido objeto de críticas veementes e acirrados debates acer­ca de seu exato alcance, tanto na doutrina nacional como na alieníge-

na. Cabe, portanto, antes de tudo, definir-se o conceito de "capacida­de para suceder" a que se referiu o legislador brasileiro na lei colisio­naI.

A decisão recorrida atribuiu à re­ferida expressão um caráter dema­siado restritivo, conforme, por sinal, se acha escrito e ressaltado no voto prolatado pelo il. 3Q Juiz, Desembar­gador Marcus Andrade: "é necessá­ria a aptidão para assumir o direito de exercer, capacidade específica que lhe falta" (fls. 1.652). Não é ou­tro o escólio emanado do emérito Prof. Caio Mário da Silva Pereira no supra aludido parecer, de cujos ensinamentos se serviram, em gran­de parte, os doutos julgadores de 2Q

grau para determinar a solução da lide. Assim é que a fls. 1.584 de seu parecer, o mestre de Minas leciona: "em qualquer caso, somente pode suceder o que tem capacidade. Esta não se confunde com aptidão gené­rica ou capacidade de direito, porém aquela que especificamente se rela­ciona com o fato de poder acudir ao chamamento". Mais adiante, o emi­nente parecerista conclui: "a deter­minação da capacidade ou incapa­cidade sucessória de BlancaAntonia decorre da 'adoção simples' que a be­neficiou" (fls. 1.586).

Não é bem assim, porém. Segun­do magistério de Maria Helena Diniz, "será preciso, ante a ambi­güidade terminológica, distinguir, como fazem os alemães, a capacida­de para ter direito à sucessão (Er­bfiihigkeit), que se sujeita à lei do domicílio do auctor sucessionis,

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da capacidade de agir relativamen­te aos direitos sucessórios, ou seja, da aptidão para suceder ou para aceitar ou exercer direitos do suces­sor (Erbrechtliche Handlungsfiihi­gheit), que se subordina à lei pes­soal do herdeiro ou sucessível (LICC, art. 10, caput). Deveras, a capaci­dade para a situação de herdeiro ou para ter direitos sucessórios rege­se pela lei competente para regular a sucessão (LICC, art. 10, caput). Conseqüentemente, a extensão dos direitos sucessórios e a proporção resultante de determinado estado jurídico deverão submeter-se à lex domicilii do de cujus, logo tal ca­pacidade não é inerente à pessoa do herdeiro ou legatário por ser confe­rida pela norma regular da suces­são. O art. 10, § 2 Q

, disciplina a 'ap­tidão para exercer o direito de su­ceder', reconhecido pela lei domici­liar do autor da herança e regido pela lei pessoal do herdeiro, e não 'a capacidade para ter direito de sucessor, que se rege pela lex do­micilli do falecido" (Lei de Intro­dução ao Código Civil Brasileiro In­terpretada, pág. 269, ed. 1994).

N essa linha o voto que proferiu o saudoso Ministro Cunha Peixoto, quando da apreciação do RE n Q

79.613-RJ, trazido à colação pela re­corrente como paradigma, in ver­bis:

"A solução do problema consis­te, pois, na inteligência a ser dada à palavra capacidade exis­tente no § 2Q do citado art. 10 e a fixação do que seja a vocação he­reditária referida no caput do mesmo artigo.

UI - Em primeiro lugar, não é jurídico distorcer o conceito de capacidade, largamente difundi­do no direito, para dar-lhe em de­terminado dispositivo, outro sen­tido, ou melhor, o de 'qualidade de herdeiro', como quer o eminen­te mestre Amílcar de Castro (Direito Internacional Privado, voI. U, pág. 149).

Na verdade, como ensinam os doutores, a capacidade civil de uma pessoa é, de um lado, sua aptidão para ser sujeito de direi­tos ou obrigações, e, de outra par­te, sua aptidão para exercer es­tes direitos e executar essas obri­gações.

Portanto, não se pode confun­dir a capacidade para suceder com a ordem de vocação heredi­tária, regulada no capítulo das sucessões.

Por outro lado, é princípio de hermenêutica que se há dúvida sobre o verdadeiro sentido de um texto legal ou de uma palavra por ele empregada, deve-se adotar a inteligência que melhor se afine com o dispositivo da lei e a práti­ca da vida, ou melhor, com seu sentido corrente na doutrina e no conceito do povo.

IV - Daí a quase totalidade dos doutores que versaram a ma­téria sustentar dever a vocação sucessória ser regida pela lei do domicílio do de cujus, pouco im­portando com a classificação do país do suscetível.

Ensinam Espínola e Espíno­la: "É a lei da sucessão que de-

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termina que pessoas devem reco­lher a herança, a título de suces­são legítima, na falta de testa­mento, precisa os herdeiros ne­cessários, estabelece a quota dis­ponível, fixa os quinhões heredi­tários, indica a ordem dos suces­síveis. Em primeiro lugar, com­pete à lei da sucessão indicar as pessoas que, por se encontrarem numa determinada relação de parentesco, devem ser chamadas à sucessão do de cujus" (A Lei de Introdução ao Código Civil, voI. IH, pág. 33, n Q 277).

Antes, à pág. 27, já haviam afirmado, não só aludindo, ex­pressamente, ao § 2Q do art. 10, como dando exemplos, nada ha­ver a capacidade para suceder com a vocação hereditária: "en­tendemos que a nova Lei de In­trodução, quando declara, no art. 10, § 29 , que a lei do domicílio do herdeiro ou legatário regula a ca­pacidade para suceder - consi­dera, não as condições de que depende a situação de herdeiro em relação a uma determinada herança, não a capacidade para ter o direito de sucessor; mas, a aptidão para exercer o direito de sucessor reconhecido pela lei competente. Essa capacidade, que refere diretamente a uma de­terminada pessoa, indicada com o caráter de herdeiro pela lei da sucessão, apresenta dois aspec­tos: uma refere-se aos requisitos necessários para que exista a si­tuação prevista; o outro visa a ca­pacidade para exercer pessoal­mente, diretamente, o direito de herdeiro. Quanto ao primeiro as-

pecto, suponhamos que a lei da sucessão, a lei do domicílio do de cujus atribua, aos filhos naturais reconhecidos, o mesmo direito à herança que compete aos filhos legítimos; um filho natural reco­nhecido, cuja lei pessoal seja di­versa da do pai, terá o seu direi­to à sucessão reconhecido pela lei deste, pouco importando que a sua lei pessoal não admita seme­lhante equiparação. Mas, para is­so, é necessário que se trate de um filho natural, reconhecido de conformidade com a lei compe­tente".

No mesmo sentido Wilson Ba­talha: "não nos merece dúvida a que a capacidade para ser herdei­ro consiste, na realidade, na pró­pria qualidade de herdeiro. E a qualidade de herdeiro só pode de­correr da lei que rege a sucessão, tal como se viu a propósito da or­dem da vocação hereditária. Tão absurda seria a aplicação, em tal matéria, da lei pessoal do herdei­ro, que não se poderá atribuir ao texto legal, embora dubiamente redigido, tão estranho significa­do. As opiniões sustentadas por André Weiss (11, pág. 384) e Pacchioni (pág. 307) não resis­tem à crítica. A capacidade espe­cífica do gozo, comojá foi demons­trado, rege-se sempre, pela lei que rege a situação jurídica a que se refere. Nenhum motivo sério existe para que exceção se esta­beleça a propósito do direito su­cessório" (Tratado Elementar de Direito Internacional Privado, voI. 253, n Q 169).

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Serpa Lopes, embora arrola­do entre os que sustentam opi­nião diversa, pelo menos em uma passagem de sua obra - Lei de Introdução ao Código Civil- mos­tra que se afina com ponto de vis­ta dos Espínola e de Batalha. De fato, escreveu ele à f. 58: "o art. 10 de nossa lei de introdu­ção, porém, implica na preponde­rância da lei do domicílio do fale­cido para regular a vocação he­reditária. São os herdeiros desig­nados por essa lei os que deverão ser chamados à sucessão".

Haroldo Valadão, a seu tur­no, escreveu: "a aplicação geral da lei do domicílio do de cujus, Lei de Introdução, art. 10 com­preende a sucessão legítima e a testamentária e, assim, tal lei de­terminará o quadro dos sucessí­veis, a sucessibilidade objetiva e a sucessibilidade subjetiva (a ca­pacidade de gozo, de direito, do herdeiro).

a capacidade de direito, de gozo, do herdeiro, de suceder, a suces­sibilidade objetiva e subjetiva dependerá da lex sucessionis, hoje, no Brasil, a lei do domicílio do de cujus, enquanto a capaci­dade de fato, de o herdeiro prati­car atos jurídicos, de receber, se submeterá à sua lei, hoje a do seu domicílio.

Só a capacidade para receber, de fato, é que fica para a lei pessoal do herdeiro" (Direito Internacio­nal Privado, voI. II, pág. 213).

A afirmativa tem o apoio dos autores alienígenas. M. Poullet leciona: Mais alo si, de quelle releve le droit de succéder? Quel est le législateur compétent pour conférer ou retirer le droit de suc­céder? Logiquement, rationnell­ment ce ne peut être que le légis­lateur compétent pour régler la succession. Nier, ditjustemnt M. Rolin, que la capacité de succé­der soit régie par la loi qui gou­verne la succession comme il r entend" (Droeit International Privé Belge, pág. 531, n Q 400).

Examinando o art. 744 do Có­digo Espanhol que, como o brasi­leiro, estabelece que a capacida­de para suceder por testamento e ab intestato se rege pela do herdeiro ou legatário, Manuel de Lasala Llamas, depois de ob­servar que tal dispositivo provo­ca entre "los doctores y los prác­ticos alguna confusión y oscuri­dade", faz a distinção entre capa­cidade e vocação hereditária: "la distinción antedicha, entre la "c a­pacidad" personal deI heredero e lagatario, y "las "cualidades" exi­gidas para suceder, de la solución más cierta dentro deI sistema de la personalidade la "capacidad" propriamente dicha no puede re­girse sino por el estatuto perso­nal deI heredero o lagatario; los ilamientos de ciertas personas y, por consiguinte, las "cua!idades" exigidas para suceder, tocan ex­clusivamente a la lei deI de cujus; ésta es la competente para deci­dir por exemplo, se heredan los hijos legitimados, los naturales y los adoptivos y para determinar

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la quantia de sus derechos; ésta misma por tanto, la que nos dice se heredan e no los hijos concebi­dos y no nacidos" (Sistema Es­panol de Derecho Civil Interna­cional e Interregional, Editorial Revista de Derecho Privado, Ma­dri, s/d).

Ser ou não herdeiro é, pois, matéria de sucessão e não de ca­pacidade" (RTJ voI. 84, págs. 515/ 517).

N o direito estrangeiro, prevale­ce idêntica orientação doutrinária. Segundo Werner Goldschmidt, ci­tado por Oscar Tenório:

"Las cuestiones previas a la sucesion (como, por ejemplo, la validez de un matrimonio ou de una adopción e los efectos de fun­dar la vocación sucesoria deI cónyuge e deI hijo adoptivo y de sus descendientes matrimoniales o extramotrimoniales) se rigem por sus proprias leyes: la validez del matrimonio, verbigracia, por el Derecho deI Pais donde se celebró el matrimonio y la adop­ción conjuntamente por los Dere­chos domiciliarios de adoptante y de adoptado. Esta tesis es con­firmada por el art. 3.286 C. Civ. que, aI someter la capacidad de suceder a la ley deI domicilio deI heredero en el momento de morir el causante, no hace sino aplicar a este supuestos los arts. 6, 7, 948 C. Civ. No se debe confundir con las cuestiones previas a la voca­ción sucesoria, esta misma que se rige invaliablemente por el esta­tuto sucesorio. (nossos os grifos).

Em otras palabras, una cosa es, si una persona es coyuge deI cau­sante es ilamado a la sucesión y, en caso afirmativo, en qué pro­porción. Una cosa es si alguien es hijo adoptivo deI causante, y otra si un hijo adoptivo posue vocación sucesoria en la herencia deI pa­dre adotante. Una cosa es si un ente (un ser humano, una agru­pación de personas y bienes) po­sue en un momento dado capaci­dad de derecho, y otra si este ente es heredero en la sucesión de un determinado causante". (Parecer sobre "Sucessão - Universalida­de - Domicílio do Defunto -Aplicação da Lei Brasileira", in Revista Forense, voI. 256, pág. 174)

Assim também em Portugal, con­soante magistério do Professor Fer­rer Correa, igualmente lembrado por Oscar Tenório:

"Note-se, porém, que pode le­vantar-se uma questão prévia: saber se existe e está validamen­te constituída aquela relação que, segundo o estatuto sucessório, fundamenta determinada preten­são hereditária - a filiação legí­tima ou ilegítima, o matrimônio, a adopção. Essa questão não se resolve pela lei do de cujus. A Lei do de cujus dirá, por exemplo, se a adopção é fonte de vocação su­cessória; se o cônjuge do heredi­tando tem alguns direi tos sobre a herança (e quais) quando con­corre com determinados parentes daqueles etc.

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Mas o problema de saber se a adopção, o matrimônio, a filiação ilegítima estão validamente cons­tituídos no caso concreto embora tenha interesse, e até um interes­se decisivo, para resolução do pro­blema do destino da herança, não é em si mesma uma questão de direito hereditário - e não pode resolver-se, por isso, pela lei da sucessão. Qual então a lei com­petente? É a lei reguladora da respectiva relação jurídica (da filiação, da adopção, do matrimô­nio), que tanto pode coincidir como não coincidir com o estatu­to sucessório" (publicação citada, pág. 174).

Ora, o Acórdão vergastado con­fundiu qualidade de herdeiro com capacidade para suceder, tanto que, a despeito de os votos proferidos se reportarem ao art. 10, § 2Q

, da LICC, fazem eles - todos referência ao status de herdeira da recorrente Blanca Antonia, assim como o fize­ra ao final também o parecer exa­rado pelo em. Prof. Caio Mário ao asseverar que a adotada simples não tinha, ao abrir-se a sucessão de Alfonso, a condição de herdeira (fls. 1.592).

A qualidade de herdeiro, a voca­ção hereditária são conceitos que não se embaralham com o da "ca­pacidade para suceder". As primei­ras são reguladas pela lei do país em que era domiciliado o de cujus (art. 10, caput, da LICC). A última, pelo art. 10, § 2Q

, do mesmo estatu­to legal.

Não se sustenta, por conseguin­te, o decisum recorrido,já que apli-

cou indevidamente à hipótese sub judice o supra indigitado § 2Q do art. 10 da LICC. O artigo de lei fe­deral a incidir no caso era simples­mente o caput do mesmo art. 10. Saber se a filha adotiva ostente ou não a qualidade de herdeiro é ma­téria que diz com a sucessão de Al­fonso Martin Escudero. "Ser ou não herdeiro é matéria de sucessão e não de capacidade", como deixou claro o Ministro Cunha Peixoto em seu voto acima reproduzido.

Eis por que, Sr. Presidente, no caso em tela não tenho dúvidas em aderir ao entendimento manifesta­do pelo Sr. Ministro-Relator, de con­formidade com o qual:

"Com efeito, essa qualidade de herdeiro haverá de ser aferida pela mesma lei competente para reger a sucessão do morto que, no Brasil, "obedece à lei do país em que era domiciliado o defunto ... qualquer que seja a natureza e a situação dos bens", em face do pontificado no caput do art. 10 da LICC.

Portanto, na hipótese, já que Alfonso era domiciliado em São Paulo quando de seu desenlace, à luz da lei brasileira é que se de­ve buscar a resposta para se sa­ber se Blanca, sendo sua filha adotiva, é ou não herdeira de Al­fonso.

É inteiramente irrelevante, no caso, para aferir-se a sua quali­dade de herdeira, para saber se ela está ou não incluída no elen­co dos herdeiros que a lei brasi­leira estabelece como vocaciona-

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dos para suceder, se a adoção foi simples ou plena, se houve ou não posterior parificação entre esses institutos, se a relação entre ado­tante e adotada envolve ou não reciprocidade de direitos sucessó­rios, se a adoção foi celebrada no Brasil, na Espanha ou mesmo em qualquer outro país, e se era ou não desejo do hereditando que a sua filha adotiva participasse de sua sucessão como sua herdeira necessária.

Não, tudo isso é absolutamen­te despiciendo para se concluir se Blanca era ou não herdeira ne­cessária quando Alfonso faleceu pois que o único dado que efeti­vamente importa é saber se a lei brasileira, quando do desenlace de Alfonso, conferia ou não, ao filho adotivo, a qualidade de her­deiro".

Acompanhando, no mais, inclusi­ve na sua conclusão, o lúcido e bri­lhante voto prolatado pelo eminen­te Ministro-Relator, somente tenho acrescentar que dois dos argumen­tos aflorados no decorrer do julga­mento da apelação (aceitação do le­gado pela ora recorrente e necessi­dade de cumprimento da vontade manifestada pelo falecido Alfonso) permaneceram, cada qual, como fundamento isolado de voto (um expendido pelo Desembargador Mar­cus Andrade, outro pelo Desembar­gador Silveira Neto), não se erigin­do, portanto, em fundamento de Acórdão.

4. Em face de todo o exposto, co­nheço do recurso por ambas as alí-

neas do permissor constitucional e a ele dou provimento.

É como voto.

VOTO (MÉRITO)

O SR. MINISTRO RUY ROSA­DO DE AGUIAR: Vencido quanto à preliminar, devo examinar o méri­to.

Observei, no estudo que fiz, a in­tensidade das críticas lançadas ao preceito do § 22 do art. 10 da nossa Lei de Introdução ao Código CiviL Disposição semelhante já constou do projeto de Convenção votado na Conferência de Haia de 1900, reti­rado pela dificuldade na sua inter­pretação, especialmente por ser equívoco o termo "capacidade" (Ser­pa Lopes, Lei de Introdução, III 229). Costuma-se distinguir a capa­cidade de ter direitos na sucessão e a capacidade para agir relativamen­te ao exercício dos direitos sucessó­rios (Espínola e Espínola Fo., A Lei de Introdução ao CC, 2ª ed., 3/18). Essa distinção já vem do es­boço de Teixeira de Freitas: "A ca­pacidade civil é de direito ou de fato. Consiste a capacidade de direito no grau de aptidão de cada classe de pessoas para adquirir direitos, ou exercer por si ou por outrem atos que não lhe são proibidos. A capaci­dade de fato consiste na aptidão, ou grau de aptidão, das pessoas de existência visível para exercerem por si os atos da vida civil" (artigos 21 e 22). Também se diz que a capa­cidade pode ser gozo lato sensu (o fato de ser uma pessoa, do ponto de vista jurídico), ou de gozo stricto

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sensu (aptidão de o indivíduo se tornar sujeito passivo de direitos), ou capacidade de exercício (Serpa Lopes, op. cit., pág. 63 ou 67).

Referindo-se a Lei de Introdução à "capacidade para suceder" (art. 10, § 29), surge necessariamente o problema de definir a qual capaci­dade referiu-se o texto, sabendo-se que capacidade para suceder corres­ponde à possibilidade de adquirir a herança (Clóvis, CCB, v. 6/19), ou aos pressupostos para suceder (Pontes, Tratado, 55/11).

N esse ponto, penso que está com a razão a recorrente, pois a unani­midade da doutrina se coloca ao seu lado. Transcrevo, por ser suficien­temente elucidativo, o parecer do Pro f. Oscar Tenório (Forense, 256/ 173-174):

"Haroldo Valladão ("Direito Internacional Privado", voI. II, pág. 213) distingue da seguinte forma: Acerca da capacidade do herdeiro, da sucessibilidade sub­jetiva, a doutrina certa que vem de Freitas quando considerou in­capacidade especial do direito as proibições de dispor que a lei pre­vê para o testador, e foi exposta com a clareza e segurança habi­tuais por Machado ViUela. O DIP, 149 e 153, é a de que a capa­cidade de direito, de gozo, do her­deiro de suceder, a sucessibilida­de objetiva e subjetiva de Villela, o DIP, 148-9, dependerá da lex successionis, hoje, no Brasil, a lei do domicílio do de cujus, en­quanto a capacidade de fato, de o herdeiro praticar atos jurídicos,

de receber, se submeterá à sua lei, hoje a do seu domicílio.

Verifica-se que, não obstante a diversidade de interpretação de nossos autores quanto ao § 29 do art. 10 da Lei de Introdução (Amílcar criticando, Batalha in­terpretando-a como capacidade de exercício, Valladão, como ca­pacidade de fato), todos afirmam que a sucessibilidade do herdei­ro é regida pela lei do domicílio do de cujus.

A posição do direito argentino é para nós especialmente interes­sante, uma vez que há dois dis­positivos do seu CCivil que sejus­tapõem aos dois dispositivos de nossa Lei de Introdução de que vimos nos ocupando.

Reza o art. 3.283 do CCivil ar­gentino:

(EI derecho de suceswn aI patrimonio deI difunto es regi­do por el derecho local deI do­micilio que el difunto tenía a su muerte, sean los sucesores nacionales o extranjeros.)

E, logo em seguida, encontra­mos o art. 3.286 que diz:

(La capacidad para suceder es regida por la ley deI domi­cilio de la persona aI tiempo de la muerte deI autor de la suce­sión.)

Cabível, pois, a mesma inda­gação que fizemos inicialmente, quanto ao art. 10 e o seu § 29 da Lei de Introdução: domicílio do

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defunto ou domicílio do herdei­ro?

Werner Goldschmidt, o gran­de internacionalista argentino, escolhido pelo Hournal de Droit International (Clunet) para es­crever o artigo correspondente ao direito internacional na América Latina para o número especial do centenário desta publicação (1 2

tomo de 1973), em seu "Derecho Internacional Privado" (Edito­rial El Derecho, 1974, Buenos Ai­res), diz na pág. 390 (Las cues­tiones previas a la sucesion (co­mo, por ejemplo, la validez de um matrimonio ou de una adopción a los efectos de fundar la vocación sucesoria deI cônyuge o deI hijo adoptivo y de sus descendientes matrimoniales o extramatrimo­niales) se rigen por sus proprias leyes: la validez deI matrimonio, verbigracia, por el Derecho deI Pais donde se celebró el matrimo­nio y la adopción conjuntamente por los Derechos domiciliarios de adoptante y de adoptado. Esta tesis es confirmada por el art. 3.286 CCivil. No se debe confun­dir con las cuestiones previas a la vocación sucesoria, esta misma que se rige invaliablemente por el estatuto sucesorio. Em otras palabras, una cosa es, si una per­sona es coyuge del causante es ilamado a la sucesión y, en caso afirmativo, em qué proporción. Una cosa es si alguien es hijo adoptivo deI causante, y otra si un hijo adoptivo posue vocación sucesoria en la harencia deI pa­dre adotante. Una cosa es si un ente (un ser humano, una agru-

pación de personas y bienes) po­sue en un momento dado capaci­dad de derecho, y otra si este ente es heredero en la sucesión de un determinado causante.

Em Portugal, o Professor Fer­rer Correa assim pontificou em suas aulas na Faculdade de Di­reito da Universidade de Coim­bra mimeografadas sob o título de "Lições de Direito Internacio­nal Privado" (1963), na pág. 714: Dissemos que a regra da compe­tência da lei nacional do heredi­tando se aplica a todas as formas de sucessão - e, desde logo, à su­cessão legítima e legitimária.

É essa lei que, na falta de tes­tamento indica as pessoas cha­madas a suceder bem como o qui­nhão hereditário de cada uma. Por ela se resolverá a questão de saber se o cônjuge do hereditan­do, um filho natural ou adoptivo, um parente em 62 grau na linha colateral - é chamado à heran­ça e em que medida. Bem assim se se verifica o direito de repre­sentação em favor de um certo parente do falecido.

Note-se, porém, que pode le­vantar-se uma questão prévia: saber se existe e está validamen­te constituída aquela relação que segundo o estatuto sucessório, fundamenta determinada preten­são hereditária - a filiação legí­tima ou ilegítima, o matrimônio, a adopção. Essa questão não se resolve pela lei do de cujus. A lei do de cujus dirá, por exemplo, se adopção é fonte de vocação sucessória; se o cônjuge do here-

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ditando tem alguns direitos sobre a herança (e quais) quando con­corre com determinados parentes daqueles etc.

Mas o problema de saber se a adopção, o matrimônio, a filiação ilegítima estão validamente cons­tituídos no caso concreto embora tenha interesse, e até um interes­se decisivo, para a resolução do problema do destino da herança, não é em si mesma uma questão de direito hereditário - e não pode resolver-se, por isso, pela lei da sucessão. Qual então a lei competente? E a lei reguladora da respectiva relação jurídica (da filiação, da adopção, do matrimô­nio), que tanto pode coincidir como não coincidir com o estatu­to sucessório."

Quanto ao mais, acompanho o eminente relator.

É o voto.

VOTO - VISTA

O SR. MINISTRO SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA: 5. Pas­sando ao exame do mérito tenho em primeiro lugar, por configurad~ a divergência. Sem embargo de não serem idênticas as situações fáticas dos acórdãos recorrido e paradigma, este oriundo do Supremo Tribunal Federal, evidencia-se antagonismo nas teses concernentes à interpre­tação do art. 10, § 2Q da Lei de In­trodução. Ademais, consoante se tem afirmado nesta Corte sem a rigidez das amarras juris~ruden­ciais e regimentais do sistema an-

terior a 1988, não se mostra neces­sária a identidade absoluta das si­tuações fáticas dos arestos em con­fronto, sendo suficiente a semelhan­ça, desde que presentes diferentes interpretações sobre a mesma ques­tão federal.

Melhor seria que o nosso sistema recursal, em se tratando de instân­cia extraordinária, nela incluído o recurso especial, até mesmo por so­brevivência, seguisse o modelo hoje presente nos melhores ordenamen­tos jurídicos, de que é exemplo, no particular, o norte-americano, com o seu writ af certiorari, através do qual se realiza o prévio exame sele­tivo das questões de relevo a mere­cer apreciação em tal instância, ra­cionalizando o mecanismo judicial, tornando a Justiça mais ágil e va­lorizando a entrega da prestação ju­risdicional.

Enquanto, no entanto, persistir a anomalia do nosso atual sistema melhor que a instância extraordiná~ ria, com o poder criativo e evolutivo da jurisprudência, vá encontrando caminhos hábeis e razoáveis que pelo menos não inviabilizem a atua­ção do Judiciário em dar resposta às causas verdadeiramente relevan­tes que lhe são submetidas. Como já tive ensejo de assinalar (REsp 4.987-RJ, RSTJ 26/378), "o Superior Tribunal de Justiça, pela relevân­cia da sua missão constitucional não pode deter-se em sutilezas d~ ordem formal que impeçam a apre­ciação das grandes teses jurídicas que estão a reclamar pronuncia­mento e orientação pretoriana".

No caso, os autos estão a espe­lhar, induvidosamente, uma dessas

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causas, nas quais se rivalizam o fun­do e a forma, a substância dos ar­gumentos e o talento dos seus ex­positores, com as luzes da doutrina e um precedente da Suprema Corte ricamente fundamentado.

6. Rememorando a situação fáti­ca, tem-se que a recorrente foi ado­tada pelo falecido na forma simples, sem qualquer direito sucessório. Posteriormente, quase três anos após a adoção, o adotante firmou testamento aberto, subscrito tam­bém pela filha, contemplando-a com um apartamento em Madri e uma pensão mensal vitalícia. Antes, po­rém, desse testamento, foi editada no Reino da Espanha lei que confe­ria direitos sucessórios aos filhos adotivos, ressalvando, todavia, as adoções efetuadas sob a égide do diploma normativo anterior, a não ser que o adotante, por vontade pró­pria, viesse a modificar o regime, o que não ocorreu no caso de que se cuida.

7. Na espécie, como já exaustiva e superiormente anotado, toda a discórdia se centra na inteligência e no alcance que pode ou deve ter a norma do § 2Q do art. 10 da Lei de Introdução, segundo a qual a capa­cidade para suceder é regulada pela lei do domicílio do herdeiro, dispon­do o caput desse artigo que a su­cessão por morte é disciplinada pela lei do domicílio do de cujus, qual­quer que seja a natureza e a situa­ção dos bens.

Como se sabe, em matéria de di­reito sucessório o ordenamento po­sitivo brasileiro tem acatado a re­gra, adotada nos melhores sistemas

jurídicos, de que a sucessão se rege por uma só lei, independentemente da situação e da qualidade dos bens envolvidos. Isso se deu tanto na re­vogada Lei de Introdução, quanto na atual, que faz prevalecer a lei do domicílio deste.

É de convir-se, entretanto, que as nossas leis de regência no tema têm contemplado exceções a esse prin­cípio da universalidade, consoante parte final do caput do art. 14 do texto revogado e §§ 1 Q e 2Q do citado artigo 10 do hoje vigente.

A doutrina majoritária, ao co­mentar a expressão "capacidade para suceder", sustenta que não te­ria havido inovação com a institui­ção, pelo Decreto-Lei 4.657, de 4.9.1942, da "nova" Lei de Introdu­ção. Afirma, em linha geral, que so­mente quanto à capacidade de fato se aplicaria a lei do domicílio do herdeiro, aplicando a lei do domicí­lio do de cujus para aferir a capa­cidade de direito ou a qualidade de herdeiro.

Tenho, no entanto, com respeito­sa vênia, que não se pode negar a alteração ocorrida entre as leis de 1916 e de 1942. Com efeito, dizia a primeira, em seu art. 14:

"A sucessão legítima ou testa­mentária, a ordem da vocação he­reditária, os direitos dos herdei­ros e a validade intrínseca das disposições do testamento, qual­quer que sej a a natureza dos bens e o país, onde se achem, guarda­do o disposto neste Código acer­ca das heranças vagas, abertas no Brasil, obedecerão à lei nacional

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do falecido; se este, porém, era casado com brasileira, ou tiver deixado filhos brasileiros, ficarão sujeitos à lei brasileira".

Na segunda, atual, expressa o texto:

"Art. 10. A sucessão por morte ou por ausência obedece à lei do país em que era domiciliado o de­funto ou o desaparecido, qual­quer que seja a natureza e a si­tuação dos bens.

§ 1Q .......................................... .

§ 2Q A lei do domicílio do her­deiro ou legatário regula a capa­cidade para suceder".

Como se vê, antes havia expres­sa referência à ordem da vocação hereditária e aos direitos dos her­deiros, o que não há atualmente. Destarte, ao prescrever o texto vi­gente que a lei do domicílio do her­deiro regula a capacidade para su­ceder, não se pode fazer qualquer distinção de capacidade de direito ou de fato, valendo o princípio se­gundo o qual onde o legislador não distingue não é dado ao intérprete fazê-lo (ubi lex non distinguit, nec interpress distinguere debet).

Em última análise, questiona-se, como se fez no paradigma, o que se há de entender na expressão "capa­cidade para suceder" constante do § 2Q do art. 10, LICC, sobretudo em face da ambigüidade do termo "ca­pacidade" ali usado, qualificado de equívoco por Serpa Lopes.

Vê a recorrente uma nítida dis­tinção entre ela e o instituto da vo-

cação hereditária, sendo este a "dis­tribuição dos sucessíveis em classes das quais umas preferem às outras na adição da herança", segundo a conceituação de Clóvis, distinção igualmente acentuada no colaciona­do acórdão-padrão (RE 79.613-RJ, RTJ 84/491).

Amílcar de Castro, um dos mais precisos e rigorosos dos nos­sos juristas, com a autoridade que sempre se lhe reconheceu, anotou (Direito Internacional Privado, 4ê

ed., Forense, 1987, n. 235, pág. 456):

"Espínola & Espínola enten­dem que 'a nova Lei de Introdu­ção, quando declara no art. 10, § 2Q

, que a lei do domicílio do her­deiro ou legatário regula a capa­cidade para suceder, considera não a capacidade para ter o di­reito de sucessor, mas a aptidão para exercer o direito de suces­sor reconhecida pela lei compe­tente'.

Deve discordar-se desta dou­tíssima opinião. Não se trata de capacidade propriamente dita, mas da qualidade de herdeiro. A expressão capacidade para suce­der tem no art. 10, § 2Q

, da Lei de Introdução o mesmo sentido com que é empregada no art. 1.577 do Código Civil; e não se há de pre­sumir, por essa redação, fosse empregada a palavra capacidade com sua significação própria, de capacidade de exercício, porque então seria inútil a disposição, já estando, como está, tão clara­mente escrito no art. 7Q da mes­ma Lei de Introdução ao Código

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Civil que o direito do país em que for domiciliada a pessoa determi­na sua capacidade. De resto, para que a pessoa possa exercer o di­reito de suceder é preciso, antes, que tenha esse direito. Sem tê­lo, como poderá exercê-lo? É tão expressiva a frase 'capacidade para suceder', que não pode dei­xar dúvida a respeito de ter sido inspirada na pior doutrina, anti­gamente pregada por Boulle­nois, e modernamente por Weiss e Pacchioni, com diferença ape­nas de que estes falam em ius patriae, enquanto a Lei de In­trodução se refere a ius domici­lii. A melhor doutrina ensina que a faculdade de haver a herança, conjunto de qualidades requeri­das para suceder, ou capacidade para suceder, deve ser regulada exclusivamente pelo direito que rege a sucessão (ius causae). Pelo mesmo direito por que se aprecia a vocação hereditária é que se devem qualificar as pes­soas chamadas a suceder. Em sentido contrário, supõe Weiss que a capacidade para suceder depende do direito que rege o herdeiro, porque a vontade do de cujus só pode governar a dispo­sição dos bens, e não as condi­ções exigidas para que a pessoa possa herdar. Entretanto, nin­guém afirma que a vontade do de cujus possa atribuir a quem quer que seja a capacidade para suceder, e sim o que se sustenta é que a capacidade para suceder só pelo direito regulador da su­cessão é atribuída ao herdeiro. Evidentemente, a qualidade de

herdeiro não é inerente à pessoa, sim qualidade que lhe é atribuí­da pelo direito regulador da su­cessão: trata-se de condição re­querida para suceder, questão preliminar, de condição jurídica, exigida para se exercer o direito de ser sucessor, ou de suceder".

Certo é que o admirável jurista, ao assim doutrinar, reconheceu que a jurisprudênci a poderia "consertar a lei". Tal colocação, entretanto, apenas reforça a conclusão a que chegara quanto à exegese do texto legal.

Outra, aliás, não foi a conclusão extraída pelo voto do saudoso Mi­nistro Cordeiro Guerra, verbis:

"Bem sei que, assim concluin­do, divirjo de ponderáveis e au­torizados argumentos, inclusive do parecer da douta Procurado­ria Geral da República, porém, não se me afigura possível apli­car, na inteligência do § 2Q do art. 10 da Lei de Introdução ao Códi­go Civil Brasileiro, princípios e normas, que ele afastou, para excepcionar. Certo ou errado, doutrinariamente, como pensa Amílcar de Castro, o § 2Q do art. 10 da Lei de Introdução mandou regular a capacidade para suce­der, do herdeiro, pela lei do seu domicílio e, a meu ver, não pode ele herdar quando a lei de seu domicílio não lhe dá esse direito".

E adiante:

"Estava concluído, assim, o meu voto, quando recebi o memorial

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das partes e neles encontrei pa­recer do Professor Rubens San­tana, da Pontifícia Universidade Católica de Porto Alegre, e fiquei satisfeito, porque coincidente com o meu voto que já estava pronto.

O ilustre Professor gaúcho, apreciando a hipótese a pedido dos recorrentes, assim manifesta:

'Ilógico e injurídico seria fa­lar em capacidade de herdeiro para quem não tem, pelo seu direito domiciliar, posição de herdeiro. Iria de encontro aos interesses da ordem púbica re­conhecer, ao estrangeiro, capa­cidade de exercício de direito de sucessão sobre bens no ter­ritório nacional, quando a sua lei domiciliar lhe nega essa condição'" .

Com suporte em tal pOSICIOna­mento, aplicando-se a lei espanho­la ao caso, a recorrente não pode ser considerada herdeira necessária do falecido, uma vez que a lei que equi­parou os filhos adotivos a legítimos para efeitos sucessórios ressalvou as adoções ocorridas antes da sua vigência.

Assim, afigura-se impossível no caso concluir favoravelmente à re­corrente, para quem a expressão "capacidade para suceder", constan­te do § 22 do art. 10 da Lei de Intro­dução, se refere somente à capaci­dade de fato (exercício), enquanto que a capacidade de direito (aquisi­ção ou gozo) seria regulada pela lei do domicílio do falecido, no caso, a brasileira.

Com efeito, anteriormente à aná­lise da lista da vocação hereditária, necessário que se avalie se a pes­soa é ou não herdeira. Para tanto, somente pela lei do seu domicílio, que rege seu estado civil (lato sen­su), é que se vai verificar a sua con­dição. Não sendo herdeira, em ra­zão da lei espanhola não lhe confe­rir tal direito, descabe examinar se pela ordem de vocação da lei brasi­leira ela seria chamada à sucessão.

8. Assim posta a questão sob o prisma da interpretação sistemáti­ca, seria até mesmo de cogitar-se, em exegese teleológica, das razões que teriam levado o legislador bra­sileiro à adoção da imprecisa, am­bígua e "equivocada" expressão, es­pecialmente quando se reflete sobre as pretensões deduzidas na causa a que se refere o paradigma e na de que os autos tratam, considerando que em momento algum pelo con­trário, o de cujus, como adotante, quis erigir a recorrente, que já con­templara satisfatoriamente com valiosos bens, como sua herdeira adotiva.

Fosse clara a dicção da lei brasi­leira, no sentido que lhe quer atri­buir a recorrente, certamente o ado­tante, devidamente orientado por competentes profissionais, teria as­sumido outra postura.

Daí o relevo que na espécie ga­nha a intenção do de cujus adotan­te, a encontrar sustentação no art. 85 do Código Civil, que contempla e dita regra geral para a boa her­menêutica dos atos jurídicos, segun­do a qual "nas declarações de von-

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tade se atenderá mais à sua inten­ção que ao sentido literal da lingua­gem".

9. Em conclusão, com renovada venia, no mérito também conheço do recurso, mas lhe nego provimento.

RECURSO ESPECIAL NQ 62.353 - RJ

(Registro n Q 95.0012751-2)

Relator: O Sr. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira

Recorrente: Lydia Oliveira Luz

Recorrida: Caixa de Previdência dos Funcionários do Sistema Banerj -Previ

Advogados: Drs. Davi Moreira Ferreira, e Orlando Fernandes Neto e outros

EMENTA: Processual Civil. Ação rescisória. Decadência. Ajuiza­mento no prazo. Impossibilidade de citação. Ausência de culpa da autora. Falha da máquina judiciária. Termo inicial. Primeiro dia após o trânsito emjulgado da última decisão. Boa-fé do recorrente. Recurso especial inadmitido. Agravo interposto. Decisão monocrá­tica negando-lhe seguimento. Dies a quo. Evoluçãojurisprudencial. Precedentes. Recurso provido.

I - Nos termos da jurisprudência sumulada desta Corte (Enun­ciado n. 106), o obstáculo da máquina judiciária não pode preju­dicar a parte autora que ajuizou a ação rescisória no prazo e não teve culpa da citação não ter ocorrido tempestivamente.

II - Segundo entendimento que veio a prevalecer no Tribunal, o termo inicial para o prazo decadencial da ação rescisória é o pri­meiro dia após o trânsito em julgado da última decisão proferida no processo, salvo se se provar que o recurso foi interposto por má-fé do recorrente.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos es­tes autos, acordam os Ministros da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos vo-

tos e das notas taquigráficas a se­guir, por unanimidade, conhecer do recurso e dar-lhe provimento. Vota­ram com o Relator os Ministros Bar­ros Monteiro, Cesar Asfor Rocha e Ruy Rosado de Aguiar. Ausente, jus-

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tificadamente, o Ministro Bueno de Souza.

Brasília, 26 de agosto de 1997 (data do julgamento).

Ministro BARROS MONTEIRO, Presidente. Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, Relator.

Publicado no DJ de 29-09-97.

RELATÓRIO

O SR. MINISTRO SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA: Cuida­se de recurso especial interposto contra acórdão do Tribunal de Jus­tiça do Rio de Janeiro, que mante­ve decisão monocrática de indeferi­mento da inicial de uma ação resci­sória por decadência.

Entendeu o Colegiado de origem que a autora não teria diligenciado para evitar a consumação do prazo. Embora tenha ajuizado a ação em 5.5.92, e o trânsito em julgado do acórdão rescindendo ocorrido em 16.5.90, não cuidou ela de promover a citação dentro do prazo de dois anos, que teria se esgotado em 16.5.92.

Irresignada, a autora interpôs re­curso especial alegando, além de dis­sídio, violação dos arts. 219, 220 e 263, CPC, sustentando que, por for­ça de obstáculo judicial, foi impossí­vel ordenar-se a citação dentro do prazo de dois anos, não se verifican­do qualquer inércia de sua parte.

Contra-arrazoado, foi o recurso admitido na origem, merecendo pa­recer favorável da Subprocuradoria Geral da República.

É o relatório.

VOTO

O SR. MINISTRO SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA (Rela­tor): 1. O acórdão rescindendo foi publicado no órgão oficial do Esta­do em 12 de março de 1990. Foram interpostos embargos declaratórios em 14 daquele mês e ano e da deci­são dos embargos foram as partes intimadas em 11 de maio de 1990. Adveio recurso especial, que foi inad­mitido pela Presidência do Tribunal fluminense, originando agravo (fls. 124), que restou desprovido por esta Corte, com decisão publicada em 9 de agosto de 1991.

Em primeiro lugar, no que con­cerne à consumação da decadência por não ter sido despachada a ini­cial antes dos dois anos para aforar­se a rescisória, tenho que não houve com o costumeiro acerto o ego Cole­giado.

Tomando-se como termo final do prazo o assentado pelo acórdão re­corrido - 16 de maio de 1992 - não se pode afirmar que a autora se quedou inerte depois do ajuizamen­to da ação, que se deu em 5 de maio.

Pelo contrário.

Compulsando os autos, constata­se que, embora tenha a inicial dado entrada no Tribunal naquele dia, ela somente foi distribuída para a em. Relatora em 3 de junho, tendo o processo passado por diversas se­ções, o que é atestado pelos doze ca­rimbos existentes antes do despa­cho inicial.

Houve, portanto, falha do apare­lho judiciário. A autora não diligen-

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ciou porque nada tinha a fazer en­quanto o processo não chegasse às mãos da Relatora. Se não agiu com culpa, não pode ser penalizada com a declaração de perda do direito de ajuizar a rescisória.

Aliás, já é entendimento firme na jurisprudência desta Corte, conso­lidado no Enunciado de n. 106 de sua súmula, que, "proposta a ação no prazo fixado para o seu exercício, a demora na citação por motivos ine­rentes ao mecanismo da Justiça não justifica o acolhimento da argüição de prescrição ou decadência".

Desta forma, reputa-se caracte­rizada a violação do art. 219, CPC, prejudicada a análise das demais impugnações, inclusive o dissídio.

2. É de salientar-se, outrossim, que o termo a quo do prazo para o ajuizamento da rescisória fixado pelo Tribunal de origem também não se amolda à doutrina e à juris­prudência contemporâneas, preocu­padas sobretudo com o prejuízo que pode advir ao jurisdicionado em ra­zão da ineficiência da máquina es­tatal criada para a composição dos conflitos.

Não se justifica atribuir nature­za jurídica declaratória ao juízo de admissibilidade negativo em tem­pos em que uma demanda pode le­var até décadas para ser soluciona­da se porventura se esgotarem as instâncias. E é por isso que se tem admitido como marco de contagem do prazo decadencial da rescisória a decisão que inadmitiu o último recurso, desde que não haja má-fé do recorrente, funcionando como termo a quo o primeiro dia seguin-

te ao trânsito em julgado daquela decisão.

No REsp 299-RJ, julgado em 25.9.89 (RSTJ 4/1.554), esta Turma traçou as linhas gerais da discus­são a respeito do prazo decadencial na rescisória.

Zl:

Ao proferir o voto de relator, adu-

"Três correntes doutrinárias versam a essência da questão posta à apreciação.

Por uma delas, o trânsito em julgado somente se dá após a úl­tima decisão, sendo irrelevante se o recurso foi ou não conheci­do. Segundo outra corrente, o re­curso inadmissível, ou tornado tal, não tem a virtude de empecer ao trânsito em julgado, que ex­surgiria a partir da configuração da inadmissibilidade e não da de­cisão que a pronuncia, de natu­reza apenas declaratória (nesse sentido, Barbosa Moreira, "Co­mentários", Forense, n M 122 e 148; Pontes de Miranda, "Tra­tado da Ação Rescisória", 5ª edi­ção). E, pela terceira exegese, a interposição de recurso extraor­dinário, mesmo inadmitido, obs­taria a formação da coisa julga­da, a afastar o dies a quo da de­cadência, salvo o caso de intem­pestividade.

Esse terceiro posicionamento, acrescente-se, mereceu reitera­damente, nos últimos anos, o prestígio do Supremo Tribunal Federal, do que são exemplos, como anotou o Dr. Paulo Gustavo Gonet Branco, ilustre Procurador

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da República, em seu bem lança­do parecer, dentre outros, os ares­tos coligidos pelo Ministério Pú­blico (AR 1.189, do Plenário -RTJ 112/989; RE 103.049 - RTJ 1211209), assim como os também colacionados no douto memorial dos Recorridos (RE 101.311 -RTJ 110/880, RE 108.727 - RTJ 117/1.361, RE 97.450 - RTJ 104/ 1.265), onde demonstrada a dis­tinção nas decisões da Suprema Corte quando tempestivo e in­tempestivo o recurso.

No caso, arrimando-se na pri­meira das três teses, alegam os Recorrentes que não pode pros­perar o entendimento segundo o qual a intempestividade do recur­so extraordinário inadmitido não obstaria a formação da coisa jul­gada, enfatizando que ares iu­dicata somente poderia resultar da última decisão proferida no processo, mesmo porque carece­dor seria da rescisória se não pu­desse demonstrar, em seu ajuiza­mento, o trânsito em julgado. E trazem à colação arestos do egré­gio Tribunal de Justiça de São Paulo (RT 554/258) e da Excelsa Corte (RTJ 84/684), este último com pequenos equívocos, mas fi­dedigno na tese esposada.

Em que pese versada com bri­lho, e até sustentada em antigos precedentes, não vejo como aco­lher, na tese, a douta argumen­tação.

A uma, porque a mesma supe­rada foi jurisprudencialmente na própria Suprema Corte, como re­gistrado, em se tratando de re-

curso inadmissível pela intem­pestividade.

A duas, porque a sua acolhida tornaria incerto e inseguro o di­reito, na medida em que, a qual­quer tempo, após uma decisão trânsita em julgado, a parte ven­cida poderia manejar recurso ma­nifestamente intempestivo ape­nas para obter o prazo bienal que o ensejasse ajuizar a rescisória, reavivando uma demanda já fin­da, em autêntico retorno aos tem­pos de antanho, anteriores à ac­tio judicati, quando as ações se eternizavam, em prejuízo do in­teresse público.

O Direito busca a paz social e esta se alcança quando se tem a certeza jurídica, que advém da res iudicata. A propósito, em apontamentos à ação rescisória, recentemente tive a oportunida­de de expressar que "a imutabi­lidade das decisões judiciais sur­giu no mundo jurídico como um imperativo da própria sociedade para evitar o fenômeno da per­petuidade dos litígios, causa da intranqüilidade social que afas­taria o fim primário do Direito, que é a paz social" (RJTJESP 116/ 8).

A três, porque o escopo do re­curso especial, pela sua nature­za de apelo excepcional, vincula­do à "questão federal", não é o reexame da causa para aferir os eventuais direitos das partes em conflito, mas sim tutelar a auto­ridade e a unidade do direito in­fraconstitucional.

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A espécie, no entanto, a meu juízo, está a merecer exame es­pecial, em decorrência de cir­cunstâncias que a distinguem.

Com efeito, vê-se dos autos que, decididas as causas conexas em primeiro e segundo graus, in­terposto o extraordinário, foi o mesmo admitido por força de agravo, com suporte em norma regimental, "para melhor exame do caso", por determinação do relator, o saudoso Ministro Bar­ros Monteiro (DJ de XI/72, pág. 7.725). Anos após, entretanto, o Supremo Tribunal Federal dele não conheceu, por maioria, rela­tor o Ministro José Néri, ao fun­damento de intempestividade, ao argumento central de que, na vi­gência o Código de Processo Ci­vil anterior, se firmara a exegese de que o prazo corria em férias forenses em se tratando de recur­so extraordinário, inaplicando-se o art. 26 do referido Código, que determinava a suspensão o pra­zo por superveniência de férias que absorvessem pelo menos a metade da sua duração.

Reconhecida essa intempesti­vidade em dezembro de 1981, a rescisória foi ajuizada em setem­bro de 1983, tendo sido liminar­mente indeferida sob o funda­mento de que o trânsito em jul­gado, com a inadmissibilidade do extraordinário, retroagira a ja­neiro de 1972, quando decorrido o prazo recursal para a impugna­ção do acórdão (CPC, art. 467).

É contra esse entendimento que se batem os Recorrentes, sa-

lientando que o extraordinário fora inicialmente admitido e que o julgamento da intempestivida­de não se fez por unanimidade, acrescentando que não lhes era, até então, possível propor a res­cisória à míngua de comprovação da coisa julgada.

Perfilhando-me na terceira das referidas correntes, pelas razões já assinaladas, não posso, no en­tanto, deixar de reconhecer que o caso concreto apresenta peculia­ridades que recomendam o provi­mento do recurso para afastar a decadência reconhecida no egré­gio Tribunal de origem.

Em primeiro lugar porque, não obstante alçado apenas para me­lhor exame, não se pode deixar de considerar que passou a exis­tir uma expectativa de tempesti­vidade do extraordinário, quase a configurar uma presunção, in­clusive porque a inadmissibilida­de, no Tribunal a quo, não de­correra de extemporaneidade do extraordinário.

Em segundo lugar, porque a intempestividade, declarada no Supremo quase um decênio após (XIlI1981), não se deu por una­nimidade, sendo de aduzir-se que baseada em interpretação discu­tível e merecedora de críticas até mesmo naquele Excelso Pretório, como anotado pelo Ministro Cló­vis Ramalhete, autor do voto ven­cido.

Em terceiro lugar, porque tam­bém a tese da retro ação do dies a quo do prazo bienal da deca­dência não é pacífica. Ao contrá-

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rio, como registrado, sobre a mes­ma existe dissenso.

Em quarto lugar, porque não demonstrada, nem sequer alega­da, a má-fé dos Recorrentes, que se viram impossibilitados de ajui­zar a rescisória enquanto pen­dente de julgamento o extraordi­nário já admitido para "melhor exame".

Em quinto e último lugar, por­que, sem embargo de filiar-me à terceira das três linhas de her­menêutica na vexata quaestio, reconheço que circunstâncias es­peciais podem afastar a sua apli­cação, sob pena de efetivarem-se situações que a consciência jurí­dica repudia, refletidas no bro­cardo summum jus summa in­juria.

A melhor interpretação, pro­clamava Piragibe da Fonseca, em sua Introdução ao Estudo do Direito, "não é absolutamente aquela que se subordina servil­mente às palavras da lei, ou que usa de raciocínios artificiais para enquadrar friamente os fatos em conceitos prefixados, mas aquela que se preocupa com a solução justa". Interpretar, já constava das Institutas (Gottlieb Heinec­cio, § 28), não é conhecer ou sa­ber as palavras da lei, mas sim a sua força e o seu alcance.

"A lei, prelecionava o grande Amílcar de Castro, embora nun­ca ao arrepio do sistema jurídico, deve ser interpretada em termos hábeis e úteis. Com os olhos vol­tados, aduza-se com Recasens Siches, para a lógica do razoável.

Como já assinalei em outra oportunidade (cfr. RTJ 114/363, no relatório do RE 103.909), o magistrado não é amanuense da lei, com mera função de conferir fatos com dispositivos legais, apli­cando textos com a insensibilida­de das máquinas. A própria lei confere função singular ao magis­trado, quando estabelece que, na sua aplicação, ojuiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum. Em outras palavras, a lei deve ser, nas mãos do seu aplica­dor, um instrumento de realiza­ção do bem social, porque o rigo­rismo na interpretação dos textos legais pode, muitas vezes, nos con­duzir ao descompasso com a rea­lidade, o que significaria o pri­meiro passo para uma injustiça.".

Posteriormente, no REsp 2.447-RS, julgado em 5.11.91 (RSTJ 28/ 312) a mesma Turma fixou orienta­ção no sentido de se levar em consi­deração a boa-fé do recorrente, de modo que mesmo o recurso intem­pestivo faria com que o termo ini­cial da rescisória se deslocasse para a decisão que assim o declarasse. Sob o comando do Ministro Athos Carneiro, esse julgado ficou assim ementado:

"Mesmo se adotada a tese se­gundo a qual o início do prazo de decadência para a pretensão res­cisória não é obstado pela inter­posição de recurso que venha a ser considerado intempestivo, ain­da assim impende considerar a boa-fé do recorrente, naqueles ca­sos especiais em que a própria in-

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tempestividade do recurso apre­senta-se passível de fundada dú­vida. Impossibilidade jurídica do ajuizamento de ação rescisória 'condicional' ou 'cautelar', inter­posta no biênio para ter anda­mento somente se o recurso pen­dente for tido por intempestivo.

A melhor aplicação da lei é a que se preocupa com a solução justa, não podendo o juiz esque­cer que por vezes o rigorismo na exegese do texto legal ou na ado­ção da doutrina prevalecente po­de resultar em injustiça conspí­cua".

É de considerar-se, por outro la­do, que, em um sistema como o nos­so, em que a admissibilidade dos re­cursos excepcionais se faz primei­ramente pela Presidência do Tribu­nal de origem, que pode inclusive discutir meritoriamente o acerto ou não da Turma, se passou a enten­der de excessivo rigor considerar letra morta para tal desiderato a decisão que inadmite recursos ex­traordinário ou especial. Se o recor­rente interpôs o recurso e se não agiu maliciosamente, tem ele a ex­pectativa de ser o mesmo examina­do nos Tribunais Superiores.

Outrossim, argumentou-se tam­bém que, tendo a rescisória por pressuposto geral o trânsito emjul­gado da decisão, seria inviável ad­miti-la nos casos de recursos ainda pendentes.

Dentro desse raciocínio, passou­se a adotar o posicionamento segun­do o qual o acórdão que resolver os recursos excepcionais, mesmo que

seja para não conhecê-los por falta de pressuposto específico de admis­sibilidade recursal, tem como efei­to deslocar o início do prazo deca­dencial para o dia seguinte ao seu trânsito em julgado. Neste sentido, os REsps 34.014-RJ (RSTJ 73/239), relator o Ministro Ruy Rosado de Aguiar, e 21.751-CE (DJ 10.4.95), relator o Ministro Antônio Torreão Braz, desta Turma, e 18.691-RJ (DJ 28.11.94), da Primeira Turma, rela­tado pelo Ministro Demócrito Rei­naldo, assim respectivamente ementados:

"- O prazo da decadência da ação rescisória começa a fluir do trânsito em julgado da decisão proferida no recurso extraordiná­rio não conhecido".

"- Não corre o prazo para o exer­cício da ação rescisória se inter­posto recurso especial ou extra­ordinário, ainda que não venha a ser admitido".

"- A rescisória, dada a sua na­tureza, pressupõe o esgotamento de todos os prazos, para que a de­cisão rescindenda seja irrecorrí­vel. O prazo para propositura da ação rescisória tem sua fluência contada a partir do trânsito em julgado da decisão proferida no último recurso interposto do acór­dão rescindendo, in casu, do re­curso extraordinário interposto".

A diferença do presente caso com os mencionados precedentes está em que o recurso especial interpos­to não chegou a esta Corte, tendo sido barrado no ego Tribunal esta-

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dual. Adveio agravo, que restou des­provido, no entanto, por decisão monocrática.

Embora tenha havido distinção, a conclusão a que se chega é a mes­ma: impossibilidade de se classifi­car a natureza jurídica do juízo de admissibilidade negativo como de­claratória. O prazo somente deve fluir após o último dia que a parte dispunha para agravar "regimental­mente", conforme, aliás, já decidiu a Terceira Turma deste Tribunal, no REsp 13.415-RJ (DJ 29.6.92), de que foi relator o Ministro Nilson Naves, com a seguinte ementa:

"Ação rescisória. I - Trânsito em julgado da decisão rescindenda. 1. Quando interposto, em tempo, o recurso extraordinário (extraor­dinário, matéria constitucional ou especial, matéria infraconsti­tucional), não admitido, daí a in­terposição do respectivo agravo, tempestivamente, tal circunstân­cia impede a formação da coisa

julgada. 2. Hipótese em que, não provido o agravo de instrumen­to, o trânsito em julgado somen­te ocorrera após esgotado o pra­zo para o subseqüente agravo regimental. II - Decadência. In­tentada a ação no prazo de lei, a demora na citação, quando por motivo atribuível ao funciona­mento da Justiça, não justifica o acolhimento da argüição de deca­dência, em casos dessa ordem, a demora não pode ser imputada ao autor. III - Recurso especial co­nhecido e provido".

Assim, o termo a quo teria sido 19 de agosto de 1991, com final em 19 de agosto de 1993. Ajuizada a ação em 5 de maio de 1992, impossível ter a autora como decaída do seu di­reito.

3. Em face do exposto, conheço do recurso e lhe dou provimento para cassar o v. acórdão hostilizado e de­terminar o prosseguimento da res­cisória, como de direito.

RECURSO ESPECIAL NQ 63.570 - SP

(Registro n Q 95.0017021-3)

Relator: O Sr. Ministro Ruy Rosado de Aguiar

Recorrente: Bolsa de Mercadorias e de Futuros - BMF

Recorridos: Brascan Administração e Investimentos Ltda. e outros

Advogados: Elton Calixto e outros, e Roberto V. Calvo e outros

Sustentação Oral: Dr. Rubem Ferraz de Oliveira Lima, pela recorrente e Dr. Roberto Calvo, pela recorrida

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EMENTA: Bolsa de mercadorias e futuros. Intervenção. Hedger.

As atividades da BM&F são objeto de auto-regulação. Reconheci­da a inexistência de norma estatutária ou contratual que autori­zasse a intervenção no mercado, atingindo a posição do hedger, descabe reapreciar a matéria em recurso especial.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos es­tes autos, acordam os Ministros da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos vo­tos e das notas taquigráficas a se­guir, prosseguindo no julgamento, após o voto vista do Sr. Ministro Fon­tes de Alencar, por unanimidade, não conhecer do recurso. O Sr. Mi­nistro Barros Monteiro acompa­nhou os voos anteriormente profe­ridos. Ausente, ocasionalmente, o Sr. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira.

Brasília, 23 de abril de 1997 (data do julgamento).

Ministro BARROS MONTEIRO, Presidente em exercício. Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, Rela­tor.

Publicado no DJ de 25-08-97.

RELATÓRIO

O SR. MINISTRO RUY ROSADO DE AGUIAR: Brascan Administra­ção e Investimentos Ltda., Ticket Serviços, Comércio e Administração Ltda., Vereda S/A- Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários e

Boa Vista Itatiaia Companhia de Seguros propuseram ação ordinária contra a Bolsa Mercantil & de Fu­turos, objetivando a declaração da ilegalidade de deliberação da ré e sua condenação à quantia de NCz$ 1.574.215,66, correspondente ao prejuízo sofrido em virtude da men­cionada deliberação, ao ordenar a li­quidação compulsória de parte das posições que detinham no mercado de futuro de Ibovespa, com limite máximo de oscilação.

Contra a sentença de improce­dência da ação, apelaram os auto­res e a ego 8ª Câmara Civil do Tri­bunal de Justiça do Estado de São Paulo, por maioria de votos, negou provimento ao recurso.

Interpostos embargos de declara­ção, foram eles parcialmente rece­bidos para fixar a verba honorária em 15% do valor atribuído à causa.

Os autores interpuseram embar­gos infringentes e a mesma ego 8ª Câmara Civil, por maioria de votos, acolheu os embargos e julgou pro­cedente a ação, invertendo os ônus da sucumbência.

Autores e ré ingressaram com embargos de declaração, tendo a ego Câmara rejeitado ambos os recur­sos.

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Brascan Administração e Inves­timentos Ltda. e outras e Bolsa Mer­cantil & de Futuros, atualmente de­nominada Bolsa de Mercados & Fu­turos - BM&F, ingressaram, a pri­meira, com recurso especial, a se­gunda com recursos extraordinário e especial. No recurso das autoras (alínea a), alegou-se que os vv. ares­tos proferidos nos Embargos Infrin­gentes n Q 137.293-1/0-03 e nos em­bargos de declaração, teriam afron­tado o § 3Q

, do artigo 20, do CPC. A ré recorre pela alínea a, alegan­

do violação aos artigos 165, 458, in­cisos II e III, 535, inciso II, do CPC, 159, 160, inciso I, 965 e 1.058, do Código Civil. Sustenta a recorren­te: a) nulidade dos acórdãos profe­ridos nos embargos infringentes e nos declaratórios dele opostos, por falta de fundamentação legal (arts. 165, 458, II e 535, II, do CPC); b) ofensa aos artigos 159, 160, 1.058 e 965 do CC, matérias que teriam sido amplamente prequestionadas, em­bora inexistindo nos julgados refe­rência expressa às disposições le­gais. Esclarece que, diante da insol­vência do aplicador N aji N ahas, sem condições de liquidar posição com­pradora assumida, a Comissão de Valores Mobiliários (Deliberação 80-CVM, de 11 de junho de 1989) decretou o recesso das Bolsas de Valores no dia 12 de junho e sus­pendeu as negociações e liquidações no mercado de balcão e com índices representativos de carteira de ações, nesse mesmo dia. Em tal contexto, a BM&F, através do Ofício Circular 55/ 89, tomou as providências cabíveis que lhe competiam, no estrito cum­primento do seu dever legal, respei-

tando um fato do príncipe contra o qual não tinha meios de rebelar-se (art. 107, da CR anterior, 37, § 6Q

,

da CR/88 e artigos 159, 160, I e 1.058 do Código Civil). Diz, ainda, que "dentro de seu indispensável poder de auto-regulação do merca­do, assentado na lei, a BM&F, bus­cando salvar o mercado como um todo e impedir reflexos danosos, em seu meio, de fortíssima crise então experimentada pela Bovespa, deter­minou, genericamente, que todos os detentores de posições vendidas re­duzissem apenas pequeno percen­tual das posições que detinham, tão­só cerca de 15% das mesmas." Assim, o v. acórdão recorrido, ao considerar ilícita a intervenção da BM&F no mercado, ocorrida no exercício regu­lar de seu direito de auto-regulação, teria contrariado o artigo 160, inci­so I, do Código Civil.

Com as contra-razões, o Tribunal de origem admitiu o recurso extra­ordinário e parcialmente o especial ofertados pela BM&F, inadmitindo o recurso da Brascan e outras.

Ambas as partes manifestaram agravos de instrumento (nQJi 70.751-2/SP e 70.752-20/SP), improvido o das autoras e não conhecido o da ré.

É o relatório.

VOTO

O SR. MINISTRO RUY ROSADO DE AGUIAR (Relator): 1. Não en­contro nos vv. acórdãos recorridos, proferidos nos embargos infringen­tes e nos embargos declaratórios, os defeitos apontados pela recorrente.

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Ao julgar os embargos infringen­tes, a ego Câmara fundamentou su­ficientemente a sua decisão, expon­do as razões de fato e de direito que justificavam a solução adotada, in­clusive fazendo remissão ao longo e erudito voto vencido. Não estava obri­gada a indicar dispositivo legal além daqueles referidos no relatório, nem o de analisar cada um dos argumen­tos apresentados pelas partes, se­não os suficientes para chegar à sua conclusão. O certo é que foram en­frentadas as questões jurídicas sub­metidas a julgamento, permitindo às partes a interposição dos recur­sos cabíveis.

Inexistindo a omissão, não havia o que suprir através dos embargos declaratórios, e sua rejeição está lon­ge de constituir nulidade processuaL

De outra parte, o tema da respon­sabilidade civil da Bolsa de Merca­dorias & Futuros está bem definida e examinada nos julgados objeto deste recurso especial.

2. Interessa para a compreensão da causa reproduzir documentos que estão nos autos, descrevendo a natureza das operações realizadas, os fundamentos apresentados pelas partes e os dos julgados já proferi­dos:

a) Os autores descreveram as atividades da Bolsa de Mercado­rias e Futuros:

"As autoras, assim como di­versas outras pessoas físicas e

. jurídicas, são investidoras de recursos próprios no mercado de ações, tanto no mercado à

vista, quanto no mercado a fu­turo de índice.

As autoras operam contra­tos a futuro de índices na Bol­sa Mercantil & de Futuros (do­ravante abreviadamente de­signada BM&F). O objeto de tais contratos, saliente-se, é o contrato a futuro de índice Bo­vespa (Ibovespa).

O índice BOVESPA mede a lucratividade de uma carteira teórica de ações composta pe­los valores mobiliários mais re­presentativos dentre os que são negociados na Bolsa de Valores de São Paulo (Boves­pa). As autoras anexam, como doc. n Q 5, as especificações es­tipuladas pela BM&F do "con­rato futuro de Ibovespa".

Conforme esclarece o anexo folheto editado pela BM&F (doc. 6), o mercado de ações é essencialmente um mercado de risco, risco esse que pode ser dividido em dois tipos:

a) risco não sistemático, ligado a acontecimentos que afetam um setor ou empre­sa isoladamente;

b) risco sistemático, atri­buído a fatores, em geral macroeconômicos - tais como taxa de juros, política monetária, inflação e de­sempenho da economia -que afetam o mercado de ações como um todo.

O investidor, para se prote­ger do risco não sistemático,

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diversifica o seu patrimônio entre ações de setores/empre­sas diferentes, minimizando-o em relação àqueles que man­têm posições concentradas em poucas ações.

De outro lado, não há como possa o investidor, por maior que seja a sua carteira de ações, se proteger do risco sistemáti­co, salvo se ele se utilizar do hedge.

É ainda a BM&F que escla­rece no citado folheto (doc. nº 6):

" os participantes do mercado terão a oportunida­de de reduzir ou eliminar o risco sistemático através de um instrumento moderno, flexível, de baixo custo.

Os detentores de ações poderão fazer hedge contra a desvalorização de sua car­teira." (os destaques são nos­sos)

Através do hedging de ven­da, o investidor, ao adquirir ações de mercado à vista, pode defender-se do risco de queda do preço das ações, vendendo contratos Ibovespa a futuro na BM&F. Portanto, ao vender contratos de índice Bovespa no mercado futuro, o investidor utiliza-se de um instrumento que lhe oferece uma proteção, ou seguro, contra o chamado risco sistemático.

Para que seja bem compre­endido o mecanismo de funci-

onamento do mercado, a futu­ro de índice quando se pratica o hedging de venda, como no ca-so dos autos, permitem-se às autoras exemplificar com números hipotéticos:

a) um investidor compra à vista, por 10, uma cartei­ra das ações mais represen­tativas dentre aquelas que compõem o índice Bovespa;

b) concomitantemente, vende a futuro um contrato de índice Bovespa pelo va­lor, por exemplo, de 15;

c) se o valor de sua car­teira à vista cai de 1 ° para 8, ele estará perdendo 2; em compensação, para neutra­lizar essa perda, se o valor do contrato futuro cair de 15 para 12, ele estará ganhan­do 3, porque vendeu a futu­ro por 15 o que está valendo 12; com isso, garante a per­da de 2 no mercado à vista e ainda ganha 1 como remu­neração do capital aplicado naquele mercado;

d) ao contrário, se o valor de sua carteira à vista sobe de 10 para 13 e o contrato futuro de 15 para 17, ele es­tará lucrando 3 no mercado à vista e perdendo 2 no fu­turo, porque terá vendido o futuro por 15 o que vale no mercado 17.

Assim, no mercado futuro, sempre que há uma valoriza-

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ção, o investidor que vendeu a futuro perde, enquanto aque­le que comprou a futuro ganha.

Olhando o reverso, sempre que há uma desvalorização do mercado, quem vendeu a futu­ro ganha, enquanto aquele que comprou a futuro perde.

N a verdade, porém, o inves­tidor que está ganhando no hedging com a queda no mer­cado à vista não está apenas tendo lucro; está se protegen­do contra a desvalorização da carteira à vista.

Exatamente em função de tais oscilações no mercado fu­turo, a BM&F efetiva os cha­mados ajustes diários, que são definidos como:

"equalização de todas as posições no mercado futuro, com base no preço de com­pensação do dia, e com a conseqüente movimentação diária de débitos e créditos nas contas dos Clientes/Ope­radores Especiais, de acor­do com a variação negativa ou positiva no valor das posi­ções por eles mantidas" (art. 1 Q, n Q 002, do Regulamento de Operações da BM&F -doc. 7).

Assim, a cada oscilação no mercado futuro, a BM&F exi­ge do investidor que sofreu o prejuízo o respectivo ajuste, creditando-o aos que estiverem na outra ponta da operação. Disso resulta a movimentação

diária de lucros e preJulzos para as posições com saldo cre­dor e devedor, respectivamen­te. Assim, se a cotação sobe, os vendedores pagam o seu pre­juízo naquele dia e os compra­dores recebem o valor corres­pondente. Ao contrário, se a cotação desce, os compradores pagam o prejuízo daquele dia, e os vendedores recebem o va­lor correspondente.

De outro lado, se ocorre uma inadimplência de parte do in­vestidor, seja qual for a posi­ção em que ele se encontre, a BM&F deve determinar a li­quidação compulsória daquele que não cumpriu com a sua obrigação, conforme dispõe o seu Regulamento (doc. n Q 7), verbis:

"Art. 69. Os Clientes con­siderados inadimplentes fi­carão sujeitos às seguintes penalidades:

I - Liquidação de suas posições, em qualquer mer­cado, sob responsabilidade de Corretores de Mercado­rias associadas da Bolsa, a critério destas;

Il-Divulgação, pela Bol­sa, de sua condição de ina­dimplente, por solicitação da Corretora de Mercadorias."

Se ainda assim o comitente não honrar seus pagamentos, perante a BM&F responderá a Corretora de Mercadorias (art. 46 do Regulamento de Opera-

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ções - doc. 7), a qual, por isso, deve exigir de seus clientes garantias suficientes para ope­rarem em Bolsa." (fls. 03/07)

b)Aré, de sua vez,justificou a sua determinação, ora posta em cheque pelas requerentes:

"Mas, será que a Ré poderia determinar o que determinou através do Ofício Circular 055/ 89-SG? Dentre as normas que as Autoras declararam conhe­cer há previsão para situações como as ora atacadas? É evi­dente que sim. Os Estatutos so­ciais e o Regulamento de Ope­rações da Bolsa, que são ane­xados a estes autos em suas ín­tegras, prevêem essas situa­ções.

As atribuições do Superin­tendente Geral estão regula­mentadas e previstas no arti­go 49 dos Estatutos Sociais, cuja íntegra as Autoras já de­clararam conhecer e aderiram expressamente. As posições detidas pelas autoras, também previstas no Regulamento de Operações, podiam ser reduzi­das. Dispõem os artigos 52, 83, 85 e 86 do Regulamento de Operações:

"Art. 52 - A Bolsa, a seu critério, poderá estabelecer períodos de negociação, nos quais não sejam observados os limites de oscilação diá­ria das cotações nos merca­dos futuros."

"Art. 83 - ...

§ p- ...

§ 2Q - Os detentores de

posições que excederem os limites que venham a ser es­tabelecidos, deverão enqua­drar-se às novas condições no prazo que for determina­do pela Bolsa, findo o qual as posições excedentes serão fechadas compulsoriamen­te."

"Art. 85 - No exercício de suas funções, o Superin­tendente Geral poderá:

I- ...

U - Estabelecer normas e procedimentos especiais para quaisquer operações a serem efetuadas em seus pregões;

Art. 86 - O Superinten­dente Geral, caso considere necessário, poderá ainda:

I- ...

U - Determinar a liqui­dação parcial ou total de po­sições em aberto, de Opera­dor Especial, Corretora de Mercadorias ou Cliente."

Verifica-se, pelo exame das normas retro expostas, conhe­cidas e aceitas pelas Autoras como válidas para regular um mercado do qual participam, que não houve, por parte da Ré, qualquer atitude arbitrá­ria ou ilegal em relação às Au­toras ou aos contratos por elas mantidos. Ao contrário, o que

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fez a Ré foi regular, atividade inerente ao seu objeto social, as condições de operacionaliza­ção do mercado em um mo­mento em que a falta dessa regulação, prevista em seus Es­tatutos, sem nenhuma infrin­gência às disposições de ordem pública, poderia, aí sim, trazer sérios prejuízos ao mercado como um todo, inclusive às Au­toras. Talvez, nessa hipótese, poderiam as mesmas se insur­gir contra a Ré, mas nunca pe­los atos até aqui praticados e ora atacados." (fls. 153/155)

c) A sentença de improcedên­cia da ação considerou que:

"O núcleo de toda a questão reside na possibilidade jurídi­ca de adoção, pela ré, de certa norma excepcional de liquida­ção de contratos e se a ela com­pete indenizar eventual prejuí­zo disso resultante. A resposta será encontrada no princípio da auto-regulamentação emer­gente do Estatuto Social da BM&F e das normas monova­lentes por ela editadas para re­gramento das operações.

Assim é que, o Regulamen­to contém disposições atribu­tivas de autonomia à aciona­da para desrespeitar limites de oscilação diária das cota­ções nos mercados futuros (art. 52), fechamento compulsório de posições (art. 83, § 22), tudo em prol da manutenção dos ob­jetivos elencados no art. 22 do Estatuto.

Dentre as atribuições do Su­perintendente Geral, estatuta­riamente prevista (art. 49), detém ele o poder-dever de "es­tabelecer normas e procedi­mentos especiais para quais­quer operações a serem efetua­das em seus pregões" e de "de­terminar a liquidação parcial ou total de posições em aber­to, de Operador Especial, Cor­retora de Mercadorias ou Cli­ente" (arts. 85, II e 86, II, do Regulamento de Operações).

Em virtude do conhecido "episódio N ahas, a Comissão de Valores Mobiliários decre­tou o recesso das Bolsas de Valores no dia 12 de junho/89, com a suspensão das negocia­ções e liquidações no mercado de balcão, razão pela qual a Bovespa resolveu estabelecer um limite de oscilação diária de 10%, em caráter provisório, seguindo-lhe a ré os passos, através de Ofício Circular n 2

055/89-SG, subscrito pelo Su­perintendente Geral, dentro dos limites de sua competên­cia.

Sem dúvida, a situação rei­nante era anômala, como am­plamente divulgado, merecen­do imediata tomada de posi­ção, para o reequilíbrio do mer­cado bursátil. E isso foi feito genericamente, em benefício do sistema como um todo, e não para beneficiar alguns em detrimento de outros, o que resguarda o princípio da eqüi­tatividade.

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Todos os que operam no mercado de Bolsas conhecem suas normas e sabem dos ris­cos do negócio. As corretoras não podem a respeito alegar ig­norância, porque inseridas no contexto; as investidoras, como as autoras, que contratam a intermediação, igualmente não as podem ignorar, pela nature­za própria das operações esco­lhidas, como por força de cláu­sula contratual." (fls. 290/292)

d) o v. acórdão que manteve o juízo de improcedência, segue pelo mesmo diapasão:

"O problema que agora se coloca é o da legitimidade da intervenção da ré nas opera­ções mencionadas. Tem ela competência para fazê-lo ou deveria deixar que o mercado se acalmasse? Em suma, qual o conteúdo jurídico da denomi­nada auto-regulamentação? Quais seus limites?

Como assinala Fernando Albino de Oliveira, diante da insuficiência da legislação a propósito das operações e da Intervenção da Bolsa no mer­cado, durante muito tempo "praticou a auto-regulação, re­solvendo, a partir de suas re­gras estatutárias e com base nos usos e costumes, as even­tuais pendências entre as vá­rias participantes e adaptan­do-se às mudanças de política econômica" (ob. cit., pág. 227). O ilustre autor aponta três in­tervenções do mercado futuro

e afirma que "não se pode ne­gar que essas sucessivas inter­venções criam um clima de in­segurança nos participantes do mercado, que desconhecem o que pode ser determinado pe­las autoridades monetárias, fazendo-o reticentes à abertu­ra de novas posições" (idem, ibidem).

Não se pode negar, eviden­temente, qualquer poder de polícia à Bolsa. Pode e deve ela intervir, por força de sua com­petência, uma vez que não é mera assistente privilegiada do que se passa sob seus olhos, quando depara com excesso de posições. Já L. G. Paes de Bar­ros Leães afirma que cabe à Bolsa "fiscalizar a atuação de seus membros e as operações nelas realizadas" ("Mercado de Capitais" - Insider Trading, RT, 1982, pág. 134). Cabe à Bolsa, pois, baixar normas re­guladoras de suas próprias ati­vidades e das de terceiros que ali negociam fiscalizando seu cumprimento e, eventualmen­te, diante de comportamentos antijurídicos, impor as sanções correspondentes. É que não há norma sem sanção.

Em acórdão proferido no Re­curso Extraordinário n Q 86.771, o então Min. Antônio Neder, no famoso caso Cepalma, fir­mou orientação que cabe à Bolsa de Valores "a competên­cia fiscalizadora das operações bolsistas, quer no tocante à conduta das corretoras, quer

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no tocante ao cumprimento da lei por quaisquer sociedades que negociem seus títulos na­quelas operações. É evidente que tal fiscalização deve ser exercida para evitar fraudes nas operações de bolsas e o conseqüente prejuízo das ad­quirentes de títulos" (in "Mer­cado de Capitais S/A - Juris­prudência", voI. 1, organizado por Nelson Eizirik e Aurélio Wander Bastos). O acórdão encontra-se na "Rev. Trim. de Jur.", voI. 89/565-574).

A regulação do mercado des­tina-se, como se vê, a evitar fraudes. É que não pode a Bol­sa fiscalizar o ganho e a perda de cada qual, uma vez que o risco é da essência da compra e venda de ações e de merca­dorias.

No caso de Bolsa de Valores, ao invés de intervenção do Es­tado, há o que se denomina de auto-regulação que advém da auto-regulamentação. Em re­lação às Bolsas de Valores, há auto-regulação advinda de tex­to de lei que defere à Comis­são de Valores Mobiliários, a competência para a fiscaliza­ção das sociedades corretoras, nos termos do art. 17 da Lei n Q

6.385/76.

No caso dos autos, inexiste regulação advinda de lei. Cin­ge-se à regulação voluntária, isto é, advinda da adesão das corretoras à Bolsa Mercantil & de Futuros. Através de contra­to, a corretora convenciona com

o cliente e a forma de partici­pação no mercado acionário e afirma sujeitar-se à disciplina normativa da Bolsa. Evidente está que o Superintendente po­de determinar uma série de providências, tal como advém dos arts. 85 e 86 do Regula­mento.

Decorre de tal competência, que é ela deferida ao Superin­tendente sempre que houver interesse geral (ou público) en­volvido. Nunca para resguar­dar qualquer interesse dos as­sociados da Bolsa. Afirma Nel­son Eizirik que "quando a Bol­sa eventualmante atua, na es­fera de seu poder normativo e disciplinar, protegendo os in­teresses de seus associados, em detrimento do interesse da generalidade dos participantes do mercado, há evidente des­vio de finalidade da auto-regu­lação, tendo como resultado a ilegitimidade e ineficácia de tais atos contrários ao interes­se público" (parecer - fls. 378).

Em seguida, afirma que "no caso das Bolsas de Futuros, a auto-regulação, exercida numa base corporativa e estatutária, deve promover, em primeiro lugar, a necessária liquidez aos contratos nelas transaciona­dos, em mercado livre e aber­to, assegurando aos hedgers a adequada contra os riscos pro­venientes da flutuação de pre­ços no mercado à vista" (pág. 379)." (fls. 622/625)

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e) Porém, a decisão que ora está em exame, e que interessa para o deslinde do recurso espe­cial, estabeleceu três enunciados:

1) a BM&F tem poder de auto-regulação;

lI) o regulamento da Bolsa permite a intervenção nas ope­rações já realizadas;

lII) no caso, essa interven­ção aconteceu fora do permiti­do pelo seu estatuto, de modo arbitrário e desnecessário.

No exame que fazem dos estatu­tos e do regulamento das operações da BM&F, tanto o voto vencido, co­mo o parecer anexado aos autos, en­tendem que houve desvio de finali­dade:

"As bolsas constituem associa­ções civis, entidades de direito privado, cujos objetivos funda­mentais são os de:

a) manter um local adequa­do à realização, entre seus as­sociados, as Sociedades Corre­toras, de transações com títu­los e valores mobiliários (e Com­modities, no caso das Bolsas de Mercadorias), estabelecendo e implementando sistemas de negociações que propiciem continuidade de preços e li qui­dez ao mercado;

b) preservar elevados pa­drões éticos de negociação para os seus associados, baixando normas reguladoras de suas atividades, fiscalizando seu

cumprimento e aplicando aos transgressores as penalidades cabíveis.

Daí considerarmos as Bolsas como entidades tipicamente au­to-reguladoras. Por auto-regula­ção entende-se basicamente a normatização e fiscalização, por parte dos próprios membros do mercado, organizados em insti­tuições ou associações privadas, de suas atividades, sempre com vistas à manutenção de elevados padrões éticos. No caso da auto­regulação, portanto, ao invés de haver uma intervenção direta do Estado, disciplinando os negó­cios dos participantes do merca­do, estes se autopoliciam (ou se "auto-regulam") no atendimento dos deveres legais e padrões éti­cos consensualmente aceitos e consagrados pela prática dos ne­gócios (conformejá tivemos a opor­tunidade de analisar em: Auto­Regulação: Perspectivas após o "Caso Cepalma", in Revista Bra­sileira de Mercado de Capitais, Rio, IBMEC, n Q 13, jan.labril de 1979; e Questões de Direito Societário e Mercado de Capitais, Rio, Forense, 1987, págs. 129 e se­guintes).

A auto-regulação pode ser exercida por imposição legal ou de forma puramente voluntária. N o caso das Bolsas de Valores, a auto-regulação é exercida por im­posição legal, sendo mesmo tais entidades, ainda que privadas e autônomas, consideradas "órgãos

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auxiliares" da Comissão de Valo­res Mobiliários no que tange à fis­calização das Sociedades Corre­toras, nos termos do art. 17 da Lei 6.385/76. Já no caso das Bol­sas de Mercadorias e de Futuros a auto-regulação é voluntária, na medida em que inexiste norma legal obrigando-as a fiscalizar seus associados. No caso, a auto­regulação configura um sistema normativo corporativo, que, em­bora instaurado sem expressa imposição legal, reveste-se de certa eficácia jurídica uma vez que as normas baixadas pelas Bolsas são de caráter estatutário e consuetudinário. Na medida em que tais normas são baseadas em praxes uniformes e gerais segui­das no mercado, sua legitimida­de promana de prática reiterada, devendo ser referendadas pelo direito positivo, dada a função interpretativa e integradora nos negócios jurídicos dos usos obser­vados no comércio, a teor do art. 131 do Código Comercial (Luis Gastão Paes de Barros Leães, ob. cit., pág. 34).

As Bolsas, embora entidades de direito privado, desempenham funções de interesse público, re­lacionadas à manutenção de um mercado com continuidade de preços e apto a propiciar liquidez aos títulos nele transacionados, no qual os participantes devem observar elevados padrões éticos. Daí entendermos que as Bolsas constituem autênticos "órgãos de colaboração" com o poder público (Arnoldo Wald e Nelson Eizi­rik, O regime jurídico das bolsas

de valores e sua autonomia fren­te ao Estado, Revista de Direito Mercantil, n Q 61,jan./abril, 1986).

Daí decorre que a auto-regu­lação deve ser sempre exercida com vistas ao interesse público, nunca buscando apenas resguar­dar o interesse dos associados da Bolsa. Quando a Bolsa eventual­mente atua, na esfera de seu po­der normativo e disciplinar, pro­tegendo os interesses de seus as­sociados, em detrimento do inte­resse da generalidade dos parti­cipantes do mercado, há eviden­te desvio de finalidade da auto­regulação, tendo como resultado a ilegitimidade e ineficácia de tais atos contrários ao interesse público.

Considera-se, em estudos teó­ricos sobre a regulação de mer­cados, que em tais casos a enti­dade auto-reguladora é "captura­da" por seus associados, que uti­lizam o poder normativo - esta­tutário da entidade em benefício de seus próprios interesses. N es­se sentido, vale notar que a cha­mada "teoria da captura" (cf. o nosso O papel do Estado na Re­gulação do Mercado de Capitais, Rio, IBMEC, 1977, págs. 43 e se­guintes) ou "Teoria Econômica da Regulação" (George Stigler. The Theory of Economic Regulation in The Bell Journal ofEconomics and Management Science, N ew York, voI. 2, n Q 1, 1971; e Richard Posner, Theories ofEconomic Re­gulation, The Bell J ournal of Eco­nomics and Management Scien­ce, NewYork, voI. 5, n Q 2,1974) de­monstra que muitas vezes a regu-

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lação estatal ou a auto-regulação exercida pelas Bolsas é estabele­cida com vistas à proteção dos agentes econômicos mais podero­sos, notadamente nos casos de normas jurídicas que impedem maior competição e que mantêm privilégios conhecidos ou permi­tem a cartelização por parte de empresasjá posicionadas no mer­cado.

No caso das Bolsas de Futuros, a auto-regulação, exercida numa base corporativa e estatutária, deve promover, em primeiro lu­gar, a necessária liquidez aos con­tratos nelas transacionados, em mercado livre e aberto, assegu­rando aos hedgers a adequada proteção contra os riscos prove­nientes da flutuação de preços no mercado à vista. Em segundo lu­gar, cabe às Bolsas disciplinar a conduta de seus associados, as Sociedades Corretoras, de tal sor­te que mantenham elas, perma­nentemente, adequados padrões éticos e princípios eqüitativos de negociação, não lesando jamais os interesses dos investidores, seus clientes.

Nesse sentido o Estatuto So­cial da BM&F em seu art. 2Q dis­põe que:

"Art. 2Q - A Bolsa tem por

objeto social:

I - organizar, prover o fun­cionamento e desenvolver um mercado livre e aberto, para negociação de mercadorias e ativos financeiros;

II - manter local adequado à realização de operações de compra e venda de mercado­rias e ativos financeiros, espe­cialmente organizado e fisca­lizado pelos seus associados;

III - dotar, permanente­mente, o referido local de to­das as facilidades necessárias à pronta e eficiente realização e liquidação dessas operações;

IV - estabelecer e organi­zar sistemas de negociação que propiciem continuidade de preços e liquidez ao mercado;

V - estabelecer normas e princípios eqüitativos de nego­ciação, preservando elevados padrões éticos, para as pessoas que nela atuem, direta ou in­diretamente;

VI - regulamentar as tran­sações e dirimir questões ope­racionais em que sejam interes­sados os seus associados;

VII - efetuar registro, com­pensação e liquidação das ope­rações realizadas em seus pre­gões;

VIII - divulgar as opera­ções realizadas, em seus pre­gões, com rapidez, amplitude e detalhes;

IX - fiscalizar os seus as­sociados e as operações reali­zadas em seus pregões;

X - aplicar penalidade aos infratores das normas legais, regulamentares e operacio­nais;

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XI - conceder, aos seus as­sociados, crédito operacional relacionado com o objeto social declarado;

XII - participar de outras sociedades ou associações e exercer atividades que não contrariem as disposições des­te Estatuto e a legislação vi­gente."

Os objetivos básicos das nor­mas de auto-regulação estão liga­dos, portanto, à manutenção de um mercado livre e aberto, dota­do de permanente liquidez, e no qual as operações possam ser divulgadas com rapidez, em aten­ção ao princípio do full disclosure Ctransparência de informações).

Ademais, deve a auto-regula­ção evitar a manipulação no mer­cado, que compromete a liquidez, dada a artificialidade de preços sempre resultante da ação do manipulador. Numa situação de manipulação do mercado, as co­tações a futuro comportam-se ar­tificialmente, diminuindo a corre­lação entre os preços à vista e a futuro, e conseqüentemente difi­cultando o hedge, que consiste, conforme antes analisado em processo de transferência d~ ris­cos.

Os casos clássicos de manipu­lação nos mercados futuros são classificados como de corners ou squeezes. Configura-se o corner quando um investidor ou grupo de investidores alcança substan­cial controle sobre determinado contrato futuro, com o objetivo de

manipular os preços. Para tanto, ele adquire pesadas posições compradoras a futuro, sem que a oferta disponível no mercado à vista permita aos "vendidos" li­quidar suas posições mediante a entrega dos bens objeto do con­trato. Já a situação de squeeze ocorre quando os investidores com posições vendedoras não po­dem liquidar suas posições, exce­to pagando preços excepcional­mente elevados, em conseqüência de alguma perturbação repenti­na ocorrida no processo de forma­ção de preços no mercado futuro CAilton Coentro Filho, A regu­lação econômica dos mercados futuros: o caso dos contratos de índices e de taxas de juros, São Paulo, publicação da Bolsa Mer­cantil & de Futuros, janeiro de 1986).

V - Objetivos das normas au­to-reguladoras que estabelecem limites de posições

Normalmente, no exercício de sua auto-regulação, as Bolsas de Futuros e de Mercadorias atri­buem, a si próprias, mediante re­gras estatutárias, amplos pode­res de normatização sobre os ne­gócios realizados em seus recin­tos.

Pode-se mesmo dizer, analogi­camente aos poderes exercidos pela Administração Pública na disciplina das atividades dos par­ticulares, que as Bolsas detêm determinados poderes discricio­nários na regulação dos mercados.

O poder discricionário é aque­le que permite ao agente a práti-

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ca de atos com liberdade de esco­lha de seu conteúdo, de seu des­tinatário, de sua conveniência, de sua oportunidade e do modo de sua realização, na lição clássica de Hely Lopes Meirelles (Direi­to Administrativo Brasileiro, São Paulo, RT, 132 ed., 1987, pág. 127).

Evidentemente não se confun­de o ato discricionário com o ato arbitrário. Com efeito, a discricio­nariedade consiste na permissão outorgada por lei à Administra­ção para que esta escolha, entre as várias possibilidades de solu­ção, aquela que melhor corres­ponda aos objetivos da lei. Se a Administração, no uso de seu po­der discricionário, não atende ao fim legal, pratica abuso de poder (Victor Nunes Leal, in Revista de Direito Administrativo, nº 14, pág.66).

Comentando a afirmação aci­ma, Hely Lopes Meirelles lecio­na que:

"Qual será, entretanto, o "fim legal" a que o jurista pá­trio se refere? Bielsa e Bon­nard nos respondem, quase com as mesmas palavras: o fim legal é o que vem expresso ou subentendido na lei. E na rea­lidade assim é. A lei adminis­trativa é sempre finalística: almeja um objetivo a ser atin­gido pela Administração, atra­vés de ato ou atos jurídicos que constituem meios para a con­secução de tais fins. A ativida­de do administrador público -

vinculada ou discricionária -há de estar sempre dirigida para o fim legal, que, em última aná­lise, colima o bem comum.

Discricionários, portanto, só podem ser os meios e os mo­dos de administrar; nunca os fins a atingir. Em tema de fins - a lição é de Bonnard - não existe jamais, para a Adminis­tração, um poder discricioná­rio. Porque não lhe é nunca deixado poder de livre aprecia­ção quanto ao fim a alcançar. O fim é sempre imposto pelas leis e regulamentos, seja explí­cita, seja implicitamente." (ob. cit., pág. 129).

A legitimidade das determina­ções das Bolsas, como entidades auto-reguladoras, está igualmen­te condicionada ao atendimento das finalidades das suas regras. Assim, quando uma determina­ção da Bolsa, que atinge os inte­resses dos investidores, não está conforme os fins expressos ou implícitos nas suas regras esta­tutárias, tal determinação é evi­dentemente arbitrária, e, portan­to, ilegal.

No contexto da auto-regulação dos mercados futuros, as Bolsas eventualmente baixam regras que estabelecem limites de posi­ções. Tais regras, em circunstân­cias excepcionais (uma vez que atingem negócios jurídicos j á fir­mados) podem ser aplicadas aos contratos em curso.

Nesse sentido, o Regulamento de Operações da BM&F, em seu art. 83, dispõe que:

R. Sup. Trib. Just., Brasília, a. 10, (102): 271-388, fevereiro 1998. 351

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"Art. 83 - A Bolsa poderá estabelecer limites operacio­nais por Agentes de Compen­sação, Corretoras de Mercado­rias, Operadores Especiais e Clientes, ou Grupo de Clientes que, segundo seu critério, es­tejam agindo em conjunto ou representando um mesmo in­teresse.

§ 1 Q - Os limites operacio­nais a que se refere o caput deste artigo, poderão compre­ender:

a) Todos os determinados mercados;

b) Contratos de mercadorias e ativos financeiros específi­cos.

§ 2Q - Os detentores de po­

sições que excederem os limi­tes que venham a ser estabe­lecidos, deverão enquadrar-se às novas condições no prazo que for determinado pela Bol­sa, findo o qual as posições ex­cedentes serão fechadas com­pulsoriamente.

§ 3Q - Durante o período de

enquadramento referido no pa­rágrafo anterior, incidirão so­bre as posições excedentes, margens adicionais que serão estabelecidas a critério da Bol­sa".

E o art. 86 do mesmo Regula­mento estabelece que:

"Art. 86 - O Superinten­dente Geral, caso considere ne­cessário, poderá ainda:

I - Proibir, por prazo inde­terminado, que Operador Es­pecial, Corretora de Mercado­rias e Cliente operem em quais­quer mercados, ou abram no­vas posições;

II - Determinar a liquida­ção parcial ou total de posições em aberto, de Operador Espe­cial, Corretora de Mercadorias e Cliente."

Verificamos, portanto, que a BM&F pode estabelecer limites operacionais para seus associa­dos e para os investidores. Uma vez estabelecidos tais limites, os detentores de posições que os ex­cedam devem enquadrar-se às novas condições, no prazo fixado pela Bolsa, sob pena de terem suas posições excedentes liquida­das compulsoriamente. Com vis­tas a operacionalizar tal previsão regulamentar, é atribuído ao Su­perintendente Geral da Bolsa o poder de "determinar a liquida­ção parcial ou total das posições em aberto", de operador especial, Corretora ou investidor.

As normas acima podem ser invocadas, conforme se verifica, frente a contratos já celebrados (ou "posições em aberto"), daí devendo decorrer extrema caute­la em sua aplicação, só justificá­vel em circunstâncias excepcio­nais.

O poder da Bolsa na aplicação das normas acima é discricioná­rio. Para não resvalar no arbítrio, deve ser conforme os fins das refe­ridas disposições regulamentares.

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Não temos qualquer dúvida em afirmar que as disposições re­gulamentares que permitem à Bolsa estabelecer limites opera­cionais e determinar a liquidação total ou parcial de posições tem uma finalidade evidente: coibir a concentração excessiva, com a conseqüente manipulação de pre­ços. Ou seja, são normas que se dirigem aos manipuladores do mercado, os quais, dada a concen­tração de posições em seu poder, podem ocasionar situações de corner ou de squeeze.

Conforme destaca o estudo pu­blicado pela BM&F:

" ... ao constatarem tentati­vas de manipulação, as bolsas podem impor limites de posi­ções mais restritivas, aumen­tar as exigências de margem e liquidar total ou parcialmente as posições dos investidores no mercado" (Ailton Coentro Fi­lho, ob. cit., pág. 7 - os grifos são nossos).

A Bolsa Brasileria de Futuros - BBF, congênere da BM&P', dis­põe, em seu Capítulo 18, sobre as "medidas de emergência", entre as quais está incluída a do "fecha­mento total ou parcial de posições de comitentes e/ou membros de mercado". Dado o seu caráter ex­cepcional, nos termos do Regula­mento de Operações da BBF tais medidas de emergência podem ser aplicadas nas hipóteses se­guintes:

I - Número excessivo de posições em aberto.

II - Excessiva concentra­ção das posições em aberto a nível de membros ou comiten­tes.

III - Excessivo grau de es­peculação no mercado que pos­sa provocar risco considerável de não cumprimento das obri­gações assumidas pelas partes contratantes.

IV - Iminência de situações de guerra, calamidade ou amea­ça de hostilidades.

V - Introdução de medidas governamentais que possam afetar os preços ou o funciona­mento do mercado.

Idêntica é a situação no direi­to norte-americano. Nos termos das normas contidas no Commo­dity Exchange Act, que manifes­tamente inspiraram as regras es­tatutárias das Bolsas de Futuros Brasileiras, a CFTC é dotada de emergency powers, que podem ser exercidos em casos de manipula­ção ou comers (Regulation ofthe Future Industry, in The Concise Handbook of Future Markets, cit., 5-27). Nesse sentido, a Seção 4ª do Commodity Exchange Act atribui à CFTC o poder de esta­belecer limites de posições, sem­pre visando coibir a manipulação e a excessiva especulação no mer­cado.

Tais disposições excepcionais não se aplicam aos hedgers con­forme a "Regulation § 1.3 (z) I"

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da CFTC, dado o objeto essencial dos mercados futuros de possibi­litar a proteção contra os riscos da variação de preços. Conside­ra-se, a propósito, que o risco de manipulação decorrente de posi­ções concentradas, não existe quando o detentor de tais posi­ções é um hedger. Nesse sentido, observa-se que:

"Position limits are subject to a number of special rules. The most important ofthese is that positions limits do not apply to "bona fide" hedging transactions. The danger po­pulary associated with large positions are deemed not likely to arise if the person holding the position is a hedger" (Re­gulation of the Future Indus­try, in The Concise Handbook ofFuture Industry, cit., 5-27).

Há raríssimos exemplos, na experiência internacional, de aplicação de tais regras, dado o seu caráter excepcional. O mais notável deles foi o caso dos ir­mãos Hunt no mercado da prata, em 1979/80. No período de setem­bro de 79 a janeiro de 80, o preço da prata no mercado spot da Co­mex (uma das principais bolsas de mercadorias nos EUA) elevou­se em cerca da 400%, alcançando US$ 49 a onça. Tal preço foi o re­sultado das substanciais aquisi­ções de contratos de prata no mercado futuro por parte dos ir­mãos Hunt, que pretendiam dei­xar os vendedores em situação de corner. Visando precisamente coi-

bir a manipulação, a Comex res­tringiu os limites de posições dos manipuladores, forçando-os a li­quidarem suas posições.

Se a Bolsa eventualmente de­termina a liquidação total ou par­cial de posições de hedgers que estão atuando de boa-fé, que não estão promovendo qualquer ma­nipulação, nem detêm posições que caracterizem indevida con­centração, tal determinação evi­dentemente é contrária aos prin­cípios da auto-regulação do mer­cado, caracterizando ato arbitrá­rio, dado o desvio de finalidade nele verificado.

O desvio de finalidade, no caso, configura-se pela violação ideoló­gica das regras da Bolsa, cujos objetivos não podem ser os de causar prejuízos indevidos aos hedgers de boa-fé. As regras que permitem a imposição de limites e a determinação de "fechamen­to" de posições tem um endereço certo e único: coibir a ação dos manipuladores. Ao aplicar tais regras contra os hedgers, a Bolsa comete ato arbitrário, no qual se caracteriza o desvio de finalida­de, a violação moral de seus pró­prios regulamentos. Tal ato ile­gal, ao causar prejuízos aos hed­gers de boa-fé, gera à Bolsa, evi­dentemente, o dever de indenizá­los".

"O problema que agora se co­loca é o da legitimidade da inter­venção da ré nas operações men­cionadas. Tem ela competência para fazê-lo ou deveria deixar que o mercado se acalmasse? Em

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suma, qual o conteúdo jurídico da denominada auto-regulamenta­ção? Quais seus limites?

Como assinala Fernando Al­bino de Oliveira, diante da in­suficiência da legislação a propó­sito das operações e da interven­ção da Bolsa no mercado, duran­te muito tempo "praticou a auto­regulação, resolvendo, a partir de suas regras estatutárias e com base nos usos e costumes, as even­tuais pendências entre os vários participantes e adaptando-se às mudanças de política econômica" (ob. cit., pág. 227). O ilustre au­tor aponta três intervenções do mercado futuro e afirma que "não se pode negar que essas sucessi­vas intervenções criam um clima de insegurança nos participantes do mercado, que desconhecem o que pode ser determinado pelas autoridades monetárias, fazendo­o reticentes à abertura de novas posições" (idem, ibidem).

Não se pode negar, evidente­mente, qualquer poder de polícia à Bolsa. Pode e deve ela intervir, por força de sua competência, uma vez que não é mera assisten­te privilegiada do que se passa sob seus olhos, quando depara com excesso de posições. Já L.G. Paes de Barros Leães afirma que cabe à Bolsa "fiscalizar a atuação de seus membros e as operações nelas realizadas" ("Mer­cado de Capitais" - "Insider Tra­ding", RT, 1982, pág. 134). Cabe à Bolsa, pois, baixar normas re­guladoras de suas próprias ativi­dades e das de terceiros que ali

negociam, fiscalizando seu cum­primento e, eventualmente, dian­te de comportamentos antijurídi­cos, impor as sanções correspon­dentes. É que não há norma sem sanção.

Em acórdão proferido no Rer­cuso Extraordinário n Q 86.771, o então Min. Antônio N eder, no fa­moso caso Cepalma firmou orien­tação que cabe à Bolsa de Valo­res "a competência fiscalizadora das operações bolsistas, quer no tocante à conduta das corretoras, quer no tocante ao cumprimento da lei por quaisquer sociedades que negociem seus títulos naque­las operações. É evidente que tal fiscalização deve ser exercida pa­ra evitar fraudes nas operações de bolsas e o conseqüente prejuí­zo dos adquirentes de títulos." (in "Mercado de Capitais S/A - Ju­risprudência", voI. I, organizado por Nelson Elzirik e Aurélio Wander Bastos). O acórdão en­contra-se na "Rev. Trim. de Jur.", voI. 89/565-574.

A regulação do mercado desti­na-se, como se vê, a evitar frau­des. É que não pode a Bolsa fis­calizar o ganho e a perda de ca­da qual, uma vez que o risco é da essência da compra e venda de ações e de mercadorias.

No caso de Bolsa de Valores, ao invés de intervenção do Esta­do, há o que se denomina de auto­regulação que advém da auto-re­gulamentação. Em relação às Bolsas de Valores, há auto-regu­lação advinda de texto de lei que defere à Comissão de Valores Mo-

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biliários, a competência para a fiscalização das sociedades corre­toras, nos termos do art. 17 da Lei n Q 6.358/76.

N o caso dos autos, inexiste re­gulação advinda de lei. Cinge-se à regulação voluntária, isto é, advinda da adesão das corretoras à Bolsa Mercantil & de Futuros. Através de contrato, a corretora convenciona com o cliente a for­ma de participação no mercado acionário e afirma suj eitar-se à disciplina normativa da Bolsa. Evidente está que o Superin­tendente pode determinar uma série de providências, tal como advém dos arts. 85 e 86 do Regu­lamento.

Decorre de tal competência, que é ela deferida ao Superinten­dente sempre que houver interes­se geral (ou público) envolvido. Nunca para resguardar qualquer interesse dos associados da Bol­sa. Afirma Nelson Eizirik que "quando a Bolsa eventualmente atua, na esfera de seu poder nor­mativo e disciplinar, protegendo os interesses de seus associados, em detrimento do interesse da generalidade dos participantes do mercado, há evidente desvio de finalidade da auto-regulação, tendo como resultado a ilegitimi­dade e ineficácia de tais atos con­trários ao interesse público" (pa­recer - fl. 378).

Em seguida, afirma que "no caso das Bolsas de Futuros, a au­to-regulação, exercida numa base corporativa e estatutária, deve promover, em primeiro lugar, a

necessária liquidez aos contratos nelas transacionados, em mercado livre e aberto, assegurando aos hed­gers a adequada contra os riscos provenientes da flutuação de pre­ços no mercado à vista" (pág. 379).

É com base neles que o v. acór­dão assim julgou a causa:

"A questão está em saber se a intervenção no mercado promo­vida pela ré através de Ofício Cir­cular 055/89 encontra justifica­tiva perante as autoras, que se viram obrigadas a liquidar ante­cipada e prejudicialmente seus contratos de venda a futuro de Ibovespa.

A ré afirma seu poder e seu de­ver de intervenção em vista das condições anormais do mercado, quando do episódio Nagi Nahas, particularmente em vista da De­liberação n Q 80 da CVM, decre­tando o recesso das Bolsas de Va­lores no dia 12.06.89.

A razão está com as autoras.

Não se discute a existência do poder-dever de intervenção no mercado por parte da ré. Tem es­ta, pela própria natureza de sua atuação, o poder discricionário para regulamentar atividades e intervir nelas, se for o caso.

A discrição, contudo e como é sabido, não se confunde com o ar­bítrio, com a irresponsabilidade e a indenidade. Não há discrição, em favor de quem quer que seja, para a prática de ato precipitado e insensato que cause prejuízo a outrem.

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As autoras acautelaram-se através de operações de hedging quanto à posição de vendedor de contratos Ibovespa. Estavam elas, autoras, absolutamente adimplen­tes em relação a todos os seus con­tratos, que deveriam ser liquida­dos no momento próprio. Foram liquidados antecipadamente por força (é este o termo adequado) da intervenção da ré.

A entender o poder discricio­nário como quer a ré, era preciso que o investidor mais cauteloso buscasse alguma operação à se­melhança do hedging, para se ga­rantir não apenas dos azares do mercado, mas também da atua­ção arbitrária da própria Bolsa.

Veja-se que o tumulto verifi­cou-se nas Bolsas de Valores, no ambiente do objeto mediato, in­direto, dos contratos das autoras. Isto é, o tumulto poderia atingir o índice Bovespa, índice este que era o objeto dos contratos. As Bolsas de Valores podiam estar preocupadas. A preocupação da ré, que estava evidentemente mais distante do tumulto por isso que apenas admitia a negociação em torno dos índices daquelas Bolsas, não podia chegar ao pon­to de fulminar contratos legíti­mos, corretos, em plena vigência. Ainda mais quando se nota que o recesso determinado das Bolsas de Valores determinado pela CVM foi de um só dia.

Ocorresse o tumulto do merca­do de outra commodity, em razão de fenômeno natural, como gea­da, granizo, etc., por certo a ré

não iria impor a liquidação dos contratos dos hedgers, que se ga­rantem contra fenômenos impre­vistos, de qualquer natureza.

Na verdade, as autoras, como hedgers, cautelosas, inteiramen­te adimplentes, não podiam ser atropeladas pela ré em nome do que se passava na Bovespa, em recesso por um dia.

A causa direta, eficiente, do prejuízo suportado pelas autoras - conforme se vê dos docs. jun­tos à inicial - não foi a sorte ou o azar- foi o ato arbitrário e des­neces~ário praticado pela ré, a qual, assim, tem o dever de inde­nizar.

Por tais motivos e adotados os fundamentos do v. voto vencido, bem como as conclusões do lúci­do parecer do Dr. Nelson Eizirik, os embargos são recebidos, jul­gando-se procedente a ação e in­vertidos os ônus da sucumbên­cia". (fls. 7141716)

3. Nesse contexto, para acolher as teses apresentadas pela recor­rente deveria esta Turma interpre­tar a~ cláusulas estatutárias e exa­minar os fatos, assim como prova­dos, para concluir que a regra esta­tutária e as cláusulas contratuais assumidas pelos participantes da operação permitiam a intervenção da administração da Bolsa, através do seu Superintendente, naquela situação vivenciada pela Bolsa, pa­ra adotar as providências impostas às autoras, determinando-lhes uma operação e fixando a oscilação dos preços. Somente com o exame dos

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fatos seria possível definir se hou­ve negligência da Bolsa, em não impedir que um investidor assumis­se posição compradora em níveis que não podia cumprir, e imprudên­cia ao ordenar às autoras certo com­portamento negociaI que lhes impe­diu de obter os lucros possíveis, mantida a liberdade de mercado. O v. acórdão recorrido entendeu que a Bolsa atuou indevidamente, em favor dos seus associados e em des­favor do hedger, cuja posição fica­ria ainda mais desprotegida na me­dida em que a posição vendida ser­via, como ocorre com tal figura, para resguardá-lo de eventual prejuízo no mercado à vista.

4. Não há lei dispondo sobre as atividades de bolsas de futuros, ra­zão pela qual suas operações são ob­jeto de auto-regulação. Nesse pon­to, observo inexistir, na auto-regu­lação da BM&F, regra que permita sua intervenção no mercado diante da iminência de grandes lucros e conseqüentes perdas, por força de queda na cotação do mercado à vis­ta, com reflexos no mercado de fu­turos. Se pretendesse exercer esse papel, e intervir toda vez que se apresentasse uma situação de que­da nas cotações, com possibilidade de perdas generalizadas, essa hipó­tese deveria ficar claramente esta­belecida nos seus estatutos e no re­gulamento de operações, pois seria um marco definidor de toda a sua atividade. Isso, porém, penso eu, descaracterizaria a sua atual feição, que é a de uma atividade de risco, e eliminaria a segurança que o hedger nela procura, para compensar per­das no mercado à vista. Ainterven-

ção se explica para evitar o abuso na operação e há de ser eminente­mente preventiva. Sendo excepcio­nalmente repressiva, há de recair sobre quem teve o comportamento indevido; para atingir um terceiro, que seguiu rigorosamente as regras do jogo, modificando contratos já ce­lebrados, seria indispensável que tal possibilidade estivesse admitida pelas partes, como sendo uma das regras desse jogo.

5. No caso dos autos, o reconhe­cimento da existência de culpa da Bolsa, como afirmado no v. acórdão recorrido, leva necessariamente à sua responsabilização, pelo que ine­xistiu ofensa ao artigo 159 do CCi­vil. Se houve abuso, não incidiu o artigo 160, do mesmo diploma. Tudo está fundamentado, portanto, em matéria de fato, não reapreciável nesta instância (Súmula n 2 7).

Por tudo isso, não conheço do re­curso.

É o voto.

VOTO-VISTA

O SR. MINISTRO FONTES DE ALENCAR: A sentença de fls. 286/ 293 (22 voU dera pela improcedên­cia da ação, que Brascan Adminis­tração e Investimentos Ltda. Ticket Serviços, Comércio e Administração Ltda., Vereda S/A - Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários e Boavista Itatiaia Companhia de Seguros moveram contra Bolsa Mercantil & de Futuros.

A Oitava Câmara Civil do Tribu­nal de Justiça de São Paulo, por

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maioria de votos, negou provimen­to a apelo manifestado pelas venci­das em primeiro grau (fls. 605/628 - 4Q vol.).

Ao apreciar embargos infringen­tes por aquela decisão provocados, a Oitava Câmara Civil do Tribunal também por pluralidade de votos, o~ acolheu,

"julgando-se procedente a ação e invertidos os ônus da sucum­bência" (fls. 713 - 4Q vol.).

O recurso de que se ocupa a Cor­te é o de fls. 769/810 - 4Q vol., em que figuram a BM&F, como recor­rente, e Brascan Administração e Investimentos Ltda. e outros, como recorridos. Fundado na alínea a do inciso III do art. 105 da Constitui­ção Federal, traz ele a indicação de ofensa aos arts. 165, 458 II e 535 II, do Código de Processo'Ci~il, e d~ contrariedade aos arts. 159 160 I 965 e 1.058 do Código Civil Br;si~ leiro.

O eminente relator afastou, de início, a alegância de ofensa a dis­positivos processuais. Adiante, con­signou:

"No caso dos autos, o reconhe­cimento da existência de culpa da Bolsa, como afirmado no v. acór­dão recorrido, leva necessaria­mente a sua responsabilização, pelo que inexistiu ofensa ao art. 159 do C. Civil. Se houve abuso não incidiu o art. 160, do mesm~ diploma. Tudo está fundamenta­do, portanto, em matéria de fato ,

não reapreciável nesta instância (Súmula n Q 07)".

Qual o relator, não diviso nos acórdãos tomados nos embargos infringentes e nos declaratórios os senões de que se os acoima; e ado­to, a propósito, a fundamentação inaugural do seu voto.

Transcrevo do voto vencido quan­do da apelação, proporcionador dos embargos infringentes:

"A intervenção, em razão da li­quidação antecipada, causou pre­juízos descritos à fl. 16 dos au­tos, incontestados, em seu mon­tante, pela ré.

................. (omissis) ............. .

O comportamento da ré carac­teriza-se como antijurídico, dele tendo derivado dano às autoras que deve ser composto pela ré, n~ forma pleiteada na inicial" (fl. 627 - 4Q vol.).

Do voto norteador da decisão aco­lhedora dos embargos infringentes, reproduzo:

"A causa direta, eficiente, do prejuízo suportado pelas autoras - conforme se vê dos docs. jun­tos à inicial - não foi a sorte ou o azar; foi o ato arbitrário e des­necessário praticado pela ré, a qual, assim, tem o dever de inde­nizar.

Por tais motivos e adotados os fundamentos do v. voto vencido bem como as conclusões do lúci~

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do parecer do Dr. Nelson Eizirik, os embargos são recebidos, jul­gando-se procedente a ação e in­vertidos os ônus da sucumbência" (fl. 716 - 49 vol.).

Eis por que, acompanhando o em. relator, não conheço do recurso.

VOTO

O SR. MINISTRO BARROS MONTEIRO: Sr. Presidente. Estou de acordo com o Sr. Ministor-Rela­tor, porque entendo que, em subs­tância, se trata de aplicação, no caso, da Súmula n 9 7 desta Casa.

RECURSO ESPECIAL N9 73.865 - RS

(Registro n9 95.0434932-3)

Relator: O Sr. Ministro Fontes de Alencar

Recorrente: Caixa Econômica Federal - CEF

Advogados: Drs. Vera Lúcia Bicca Andujar e outros

Recorrido: Di Pinto Pancaro

Advogados: Drs. Nicolau Frederes e outros

EMENTA: Recurso especial.

- A parte não unânime da decisão em apelação não abre ensejo a recurso especial.

- Súmula n 9 83 do Superior Tribunal de Justiça.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos es­tes autos, acordam os Ministros da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos vo­tos e das notas taquigráficas a se­guir, por unanimidade, não conhecer do recurso. Votaram com o Relator os Srs. Ministros Sálvio de Figueiredo Teixeira, Barros Monteiro, Cesar As­for Rocha e Ruy Rosado de Aguiar.

Brasília, 10 de junho de 1997 (da­ta do julgamento).

Ministro SÁLVIO DE FIGUEI­REDO TEIXEIRA, Presidente. Mi­nistro FONTES DE ALENCAR, Re­lator.

Publicado no DJ de 25-08-97.

RELATÓRIO

O SR. MINISTRO FONTES DE ALENCAR: Trata-se de ação promo­vida por Di Pinto Pancaro contra União Federal, Caixa Econômica Federal, Banco Bradesco S/A, Ban-

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co Real S/A e Banco Meridional do Brasil S/A, objetivando diferença de correção monetária, em caderneta de poupança, relativa ao mês deja­neiro de 1989.

O Juiz Federal da Segunda Vara da Seção Judiciária do Rio Grande do Sul prolatou a sentença de fls. 132/141, com o seguinte dispositivo:

"Excluo da lide por manifesta ilegitimidade a União. Mantenho na lide a CEF na condição de ban­co depositário. Declino da compe­tência em favor da Justiça Esta­dual para apreciação do litígio es­tabelecido entre as pessoas não abrangidas no art. 109, I, da C.F. Julgo improcedente a demanda".

A autora apelou (fls. 143/152). O Tribunal Regional Federal da Quar­ta Região deu parcial provimento ao recurso, e o acórdão corresponden­te recebeu o seguinte sumário:

"Processo Civil. Cadernetas de poupança. Ilegitimidade passiva da União Federal. Incompetência da Justiça Federal para causas entre particulares. Rendimentos de fevereiro de 1989. Variação do IPC. Correção monetária.

1. A União Federal não está le­gitimada passivamente para res­ponder por diferenças de rendi­mentos objeto de contrato entre depositante e depositário, deven­do figurar como partes apenas aqueles que participam do con­trato de poupança.

2. É incompetente a Justiça Federal para as causas entre par-

ticulares, devendo o acionante li­tigar contra eles perante a Justi­ça comum.

3. Pelo ciclo mensal a que es­tão sujeitos, os depósitos de ca­derneta de poupança efetuados até 15.01.89 devem ter seus ren­dimentos calculados com base na variação do IPC.

4. Os reflexos e incidências de­verão ser calculados a contar da data do crédito. A correção mone­tária deverá ser apurada como se os valores em caderneta de pou­pança estivessem até a data do ajuizamento da ação, e, a partir daí, nos termos da Lei n 9 6.899/ 81.

5. Apelação parcialmente pro­vida" (fl. 181).

Caixa Econômica Federal mani­festou recurso especial com fulcro no art. 105, lII, a e c da Constitui­ção Federal, alegando ofensa aos arts. 19 , § 29 da Lei n 9 6.899/81 e 39

e 267, VI, do Código de Processo Civil; negativa de vigência do art. 17, da Lei n 9 7.730/89, e 19 , da Lei n 9 6.899/91, e dissídio jurispruden­cial (fls. 184/196).

. O recurso foi admitido na origem (fls. 206/208).

VOTO

O SR. MINISTRO FONTES DE ALENCAR (Relator): O acórdão bem afastou a preliminar de ilegi­timidade passiva da recorrente. Va­le anotado que se firmou ajurispru­dência desta Corte no sentido de que

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"a relação decorrente do con­trato de caderneta de poupança estabelece-se entre o poupador e o agente financeiro".

Pacífico, também, o entendimen­to do Superior Tribunal de Justiça de que o art. 17, da Lei nº 7.730/89 é inaplicável às contas de poupan­ça com período trintidial iniciado até 15 de janeiro de 1989.

A incidência da correção monetá­ria nos termos do voto da Juíza Tâ­nia Escobar, não abre ensejo ao re­curso especial, porquanto no ponto a deliberação não foi unânime.

Inapreciável é o dissídio jurispru­dencial, porque superado o dissen­so pretoriano (Súmula nº 983, do STJ).

Destarte, não conheço do presen­te recurso.

RECURSO ESPECIAL Nº 96.229 - AM

(Registro nº 96.0032169-8)

Relator Originário: O Sr. Ministro Barros Monteiro

Relator pl Acórdão: O Sr. Ministro Cesar Asfor Rocha

Recorrente: Banco da Amazônia SI A - BASA

Recorrida: Indústria Bortolli Ltda.

Advogados: Drs. João Bosco de Albuquerque Toledano e outros, e José Marconi Moreira e outros

EMENTA: Processual civil. Citação. Instituição financeira. Ge­rente.

Pelas peculiaridades da espécie, tem-se por válida a citação feita em gerente de instituição financeira, em que a pretensão resisti­da posta em desate decorreu de atos por ele praticados.

Recurso não conhecido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos es­tes autos, acordam os Srs. Ministros da Quarta Turma do Superior Tri­bunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por maioria, não conhecer

do recurso, vencido o Sr. Ministro­Relator. Votaram com o Sr. Minis­tro Cesar Asfor Rocha os Srs. Mi­nistros Ruy Rosado de Aguiar, Fon­tes de Alencar e Sálvio de Figueire­do Teixeira.

Brasília, 01 de abril de 1997 (data do julgamento).

362 R. Sup. Trib. Just., Brasília, a. 10, (102): 271-388, fevereiro 1998.

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Ministro SÁLVIO DE FIGUEI­REDO TEIXEIRA, Presidente. Mi­nistro CESARASFOR ROCHA, Re­lator p/acórdão.

Publicado no DJ de 29-09-97.

RELATÓRIO

O SR. MINISTRO BARROS MONTEIRO: Na ação ordinária de responsabilidade civil que lhe move "Indústrias Bortolli Ltda.", o "Ban­co da Amazônia S.A. - BASA" in­terpôs agravo de instrumento con­tra a decisão que lhe indeferiu o pedido de nulidade da citação, por efetuada na pessoa do gerente da agência de Manacapuru, que, além de não ser o seu representante le­gal, não tinha poderes para receber citação, nem havia participado dos atos ensejadores do litígio.

O Tribunal de Justiça do Amazo­nas negou provimento ao recurso com os seguintes fundamentos.

"Não assiste razão ao Agravante.

Com efeito, infere-se dos autos que a ação principal foi ajuizada no prazo legal, inexistindo, por­tanto, excesso de prazo da caute­lar, motivo pelo qual não vislum­bro a alegada 'caducidade' da me­dida, que inclusive transitou em julgado e, o Agravante apesar de regularmente citado não apre­sentou contestação, incorrendo em revelia e confissão sobre a ma­téria de fato, em conseqüência das quais o julgador monocrático estabeleceu as regras para a tu-

tela jurisdicional provocada, le­gitimando a Agência do BASA de Manacapuru para aquele ato e subseqüentes.

Também não lhe assiste razão quanto à argüição de nulidade da citação irregular.

Ora, em decorrência da revelia, a citação evidentemente teria que ser mesmo endereçada à Agência de Manacapuru, atendendo ao pedido inicial, além do fato da Di­retoria Agravante estar sediada na cidade de Belém-PA, e a prá­tica dos atos de negócios terem sido executados pela Agência lo­cal. Desse modo, desacolho a ar­güição da nulidade denunciada, por entender que não houve in­fringência aos princípios consti­tucionais do contraditório e da ampla defesa.

Assim, incensurável se apresen­ta a r. decisão hostilizada, conhe­ço do Agravo de Instrumento, mas nego-lhe provimento para man­ter por seus fundamentos a deci­são agravada" (fls. 211).

O agravante, com fundamento no art. 535-1 e II do CPC, opôs embar­gos de declaração, requerendo ma­nifestação expressa do Tribunal so­bre peças trasladadas nos autos -as quais, segundo ele, comprovavam que a ação principal fora ajuizada além do prazo previsto no art. 806 do CPC e atestavam a inexistência do trânsito em julgado da sentença proferida na medida cautelar pre­cedente. Pleiteou, também, que a origem debatesse sobre a possibili­dade de seu estatuto (o qual desig-

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na seu representante legal) e das normas federais que disciplinam a citação serem modificados, ex offi­cio, pelo Poder Judiciário. Final­mente, requereu que o Tribunal dis­cutisse a validade da citação efeti­vada em pessoa sem poderes para recebê-la e que não tenha partici­pado dos atos que originaram a ação, bem como a influência do de­cidido na ação cautelar em relação a ato irregular praticado no proces­so principal.

Rejeitaram-se os declaratórios.

Inconformado, o agravante mani­festou o presente recurso especial com arrimo nas alíneas a e c do per­missivo constitucional, apontando afronta aos arts. 5QCXXV e 93-IX da Constituição Federal, 19,29 , 12-VI, 125-1, 165, 215, 247, 535-1 e II e 458-II e III do CPC e 17 do CC, além de divergência jurisprudencial com julgados desta Corte e do Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo. Preliminarmente, alegando que o Tribunal a quo se recusou a debater os temas aventados nos embargos de declaração, requereu a decretação da nulidade do acór­dão recorrido. No mérito, susten­tando que o Poder Judiciário não pode modificar as disposições legais referentes à citação, insistiu na in­validade do ato citatório.

Contra-arrazoado, o apelo extre­mo foi admitido na origem.

É o relatório.

VOTO (VENCIDO)

O SR. MINISTRO BARROS MONTEIRO (Relator): 1. Inocorren-

te no caso a alegada negativa de prestação jurisdicional.

Nos embargos declaratórios opos­tos, pretendeu o banco recorrente rediscutir o thema decidendum, para o que, como é sabido, não se presta a via eleita. Bem precisa e delineada encontrava-se a funda­mentação expendida pelo julgado recorrido (fls. 211), pelo que pres­cindível era mesmo que o Eg. Tri­bunal de origem viesse a deduzir novas considerações sobre questões já decididas.

2. Tocante à questão de fundo ventilada no presente apelo excep­cional, assiste, porém, razão ao ora recorrente.

N a ação ordinária de reparação de danos (ação principal), a citação do réu operou-se na pessoa do Ge­rente da Agência de Manacapuru, Wilhame Maia da Gama, que, por sinal, na realização do ato, se recu­sara a exarar a nota de ciente, por não dispor dos poderes para rece­ber citação (fls. 34 vQ

).

Tanto a sentença como o V. Acór­dão reportaram-se à antecedente medida cautelar requerida pela em­presa autora, na qual aflorara a mesma questão incidente e ainda na qual se decretara a revelia da insti­tuição bancária ante a ausência de contrariedade ao pedido inicial em tempo hábil. O Acórdão combatido aludiu, outrossim, ao fato de a Di­retoria do banco achar-se sediada na cidade de Belém-PA e pela cir­cunstãncia de terem sido os atos negociais em tela praticados pela agência local.

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Assim considerando, o decisório ora recorrido negou aplicação aos arts. 12, n Q VI, e 215 do Código de Processo Civil e 17 do Código Civil, pois a citação há de fazer-se a quem represente legalmente a pessoa ju­rídica. Em mais de uma oportuni­dade tem esta Eg. Turma proclama­do a inviabilidade da citação feita na pessoa do gerente sem poderes de representação. Confiram-se os julgados: REsp's n~ 6.607-MG; 7.088-RS; 20.071-8/RS; 22.487-5/ MG, relator Ministro Sálvio de Fi­gueiredo Teixeira; REsp n Q 1.253-RS, relator designado o Sr. Minis­tro Eduardo Ribeiro; REsp's n~ 5.061-MG; 7.082-RS e 9.109-SP, por mim relatados.

E. D. Moniz de Aragão lembra, a propósito do estatuído no art. 215, parágrafo 1 Q, do Código de Proces­so Civil, que "não basta que o citan­do não seja momentaneamente en­contrado e tampouco que não o seja por ter domicílio certo e conhecido em outro lugar" (Comentários ao Código de Processo Civil, voI. II, pág. 236, 7e ed.).

Ora, no caso em apreciação, o banco réu possui inegavelmente do­micílio certo e conhecido, sendo ma­nifesta a circunstância de que o ge­rente da agência local não detém poderes de representação.

Não era, pois, a hipótese de apli­car-se o disposto no supramencio­nado art. 215, § 1 Q, da lei processual civil, nem mesmo a denominada teo­ria da aparência, reservada para casos especialíssimos em que deve ser empregada com a necessária cautela (REsp n Q 26.610-9/SP, rela­tor Ministro Athos Carneiro).

Bem a propósito, vale salientar os fundamentos adotados pelo em. Ministro Eduardo Ribeiro em voto proferido no REsp n Q 1.253-RS, de que S. Exa. foi relator designado para lavrar o Acórdão, in verbis:

"Tenho dificuldade em aceitar, para ato de tal importância, en­tendimento que enseje dar-se por feita a citação quando, em verda­de, não o foi em forma regular. Não se ignora que conseqüências graves podem advir da revelia, em nosso vigente direito proces­sual. A contrapartida será a rigo­rosa observância das exigências legais, de maneira a que não se possa ter dúvida razoável de que o objetivo do ato foi alcançado.

O fato de alguém encontrar-se em situação tal que leve o Oficial à errônea convicção de que é repre­sentante da empresa não me pa­rece bastante. E de todo em todo irrelevante a boa ou ma-fé daque­le servidor. E não se evidencian­do que a ré procurou deliberada­mente enganá-lo, não se justifi­ca pague ela pelo erro. As pessoas jurídicas são representadas por quem os estatutos determinem e não por aqueles que simplesmen­te tenham a aparência de para isso estarem autorizados".

Não releva que in casu tenha ocorrido incidente semelhante na medida cautelar intentada anteri­ormente à ação indenizatória e que, ali, tenha sido declarada a revelia do banco-réu. Claro está que, no referido feito cautelar, o Magistra­do singular dera como legítima a

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agência de Manacapuru para res­ponder aos atos relativos àquele processo, inclusive os subseqüentes, "se houverem". A decisão ali havida não tinha como produzir efeitos em outra lide, ainda que instaurada entre as mesmas partes.

Não tendo o gerente da agência local poderes para receber citação, o julgado combatido efetivamente atentou contra as disposições insertas nos arts. 12, n 9 VI, e 215, do CPC, e 17 do Código Civil, acima mencionados. Apenas não é susce­tível de configurar-se na espécie o dissídio interpretativo, eis que o recorrente se cingiu a transcrever as ementas dos arestos paradigmá­ticos, sem mencionar, como de rigor, as circunstâncias que identifiquem ou assemelhem as hipóteses con­frontadas (arts. 541, § único, do CPC; 255, § 29 , do RISTJ).

Ante o exposto, conheço, em par­te, do recurso pela alínea a do ad­missivo constitucional e, nessa par­te, dou-lhe provimento, a fim de anular o processo a partir da cita­ção, inclusive, determinando que o recorrente seja intimado desta de­cisão e a partir daí apresente a con­testação que tiver, no prazo legal.

É o meu voto.

VOTO

O SR. MINISTRO CESAR AS­FOR ROCHA (Relator): Ousei, com o respeito devido, discordar do emi­nente Ministro Barros Monteiro, relator originário deste feito, tendo em conta as peculiaridades do caso.

A questão cuida de se saber da validade ou não da citação procedi­da na pessoa do gerente de agência bancária, originária de atos por ele executados, com a configuração de que a sede da instituição financei­ra situa-se em outra Comarca.

O eminente Relator, pelos judicio­sos fundamentos integrantes de seu douto voto, concluiu que não.

Entendo, contudo, que sim e o faço com esteio no disposto no § 19

do art. 215 do Código de Processo Civil, que assim dispõe:

"Estando o réu ausente, a ci­tação far-se-á na pessoa de seu mandatário, administrador ou ge­rente, quando a ação se originar de atos por eles praticados".

O comando aí contido objetiva fa­cilitar o acesso à jurisdição, na me­dida em que possibilita ao autor in­gressar em juízo para desembara­çar uma situação litigiosa na mes­ma localidade em que foram ocor­rentes os atos que lhe deram ensejo.

Devo consignar, que a expressão réu ausente, não se contém nos es­treitos limites do conceito expresso no Código Civil (art. 463).

É que, para essa hipótese, o § 19

do art. 215 do Código de Processo Civil não tem nenhuma aplicação, pois o art. 463 do Código Civil já estabelece que o ausente será re­presentado por procurador ou por curador, e o art. 12, IV, do Código de Processo Civil, pontifica que a herança jacente ou vacante, decor­rente da ausência, será represen­tada por seu curador.

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Por outro lado, a ausência do re­ferido § 1 Q do art. 215 não se encarta nas hipóteses enumeradas pelo art. 231 do Código de Processo Civil, quando cuida da citação por edital.

Com efeito, essa outra hipótese de "ausência" cogitada neste feito não está subsumida nem no concei­to de réu com paradeiro ignorado, incerto ou inacessível, nem no de réu desconhecido ou incerto.

Ao contrário, aqui se sabe inilu­divelmente quem é o réu e onde ele pode ser encontrado.

Apenas quis o legislador, e em boa hora, facilitar o acesso à juris­dição, diminuindo as dificuldades para a ela se chegar tendo em con­ta a vastidão do território nacional, os elevados custos processuais e as conhecidas dificuldades para prati­car atos judiciais fora da sede em que se desenvolva a causa, permi­tindo que as pessoas física e jurídi­ca, quando não estiverem - presen­tes por si ou por quem os seus esta­tutos indicarem - na comarca em que se tenha desenrolada a ação, possam ser citadas por seu manda­tário, administrador, feitor ou ge­rente, se estes lá estiverem e quan­do a ação se originar de atos por eles praticados.

Assim, o que o legislador proces­sual quis, em verdade, e fê-lo, foi conferir fictamente a esses manda­tário, administrador, feitor ou ge­rente, nas hipóteses acima cogita­das, poderes para receberem cita­ção pelas pessoas que eles represen­taram, quando a ação se originar de atos por eles praticados.

N a hipótese, o r. aresto hostiliza­do asseverou que a pretensão resis­tida posta em desate, decorreu de atos negociais executados pela agên­cia local de Manacapuru da institui­ção financeira, e a Diretoria da re­corrente tem sede na cidade de Be­lém, Estado do Pará.

Verifica-se, destarte, que a situa­ção em exame ajusta-se, com acu­rada harmonia, à hipótese prevista no referido § 1 Q do art. 215 do Códi­go de Processo Civil.

Por tais pressupostos, não conhe­ço do recurso.

VOTO- VOGAL

O SR. MINISTRO RUY ROSADO DE AGUIAR: Sr. Presidente, o es­tabelecimento que abre filiais e ins­tala sucursais em diversas cidades e, através dessas agências, realiza negócios por preposto lá estabeleci­do, autorizado a praticar atos da vida civil, recebe citação na pessoa desse preposto. Este, assim como age e se obriga do ponto de vista comercial e bancário, também há de estar habilitado a praticar atos e a se obrigar do ponto de vista proces­sual. No mais, é uma questão de organização da empresa: teve estas condições para se instalar e se ex­pandir; há de tê-las para receber oportuna comunicação do seu agen­te e assim exercer a sua defesa ade­quadamente.

Daí por que há de se aplicar, nes­sas hipóteses, a teoria da aparên­cia, como foi feito em caso preceden­te julgado nesta mesma sessão.

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Por isso, peço vênia ao Eminente Ministro-Relator para acompanhar o Eminente Ministro Cesar Asfor Rocha e não conhecer do recurso.

VOTO-VOGAL

O SR. MINISTRO FONTES DE ALENCAR: Sr. Presidente, peço vê­nia ao Sr. Ministro-Relator para acompanhar o Sr. Ministro Cesar Asfor Rocha.

VOTO

O SR. MINISTRO SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA: Peço vê­nia ao Ministro-Relator para dele também divergir, em face do aspec­to fático constante do relatório, res­saltado pelo Ministro Cesar Rocha, e da orientação que veio a ser ado­tada nesta Turma, de que incide a teoria da aparência em se cuidando de negócio envolvendo a própria agência bancária.

RECURSO ESPECIAL NQ 111.519 - RS

(Registro n Q 96.0067221-0)

Relator: O Sr. Ministro Fontes de Alencar

Recorrente: Maria Luiza Berizzi

Advogados: Drs. Maria Otilia Diehl e outros

Recorrida: Caixa Econômica Federal - CEF

Advogados: Drs. Vera Bicca Andujar e outros

EMENTA: Poupança. Diferença de correção monetária.

- Súmula 43 do STJ.

- Recurso especial atendido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos es­tes autos, acordam os Ministros da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos vo­tos e das notas taquigráficas a se­guir, por unanimidade, conhecer do recurso e lhe dar provimento. Vota­ram com o Relator os Srs. Ministros

Sálvio de Figueiredo Teixeira, Bar­ros Monteiro, Cesar Asfor Rocha e Ruy Rosado de Aguiar.

Brasília, 28 de abril de 1997 (data do julgamento).

Ministro SÁLVIO DE FIGUEIRE­DO TEIXEIRA, Presidente. Ministro FONTES DE ALENCAR, Relator.

Publicado no DJ de 10-11-97.

368 R. Sup. Trib. Just., Brasília, a. 10, (102): 271-388, fevereiro 1998.

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RELATÓRIO

O SR. MINISTRO FONTES E ALENCAR: Trata-se de ação ordi­nária promovida por Maria Luiza Berizzi contra a Caixa Econômica Federal objetivando complementa­ção da correção monetária em ca­derneta de poupança referente ao mês de junho de 1987.

A sentença de fls. 48/54 repeliu a argüição de ilegitimidade passiva ad causam, rejeitou o pleito de de­nunciação da lide, e julgou impro­cedente a ação.

A Terceira Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, à unanimidade, deu parcial provi­mento ao apelo da demandada, nos termos expressos no acórdão de fls. 95/100.

A autora manifestou recurso es­pecial (fls. 102/106) com fulcro no art. 105, lII, a e c, da Constituição Federal, dizendo que sua irresigna­ção

"está sobre o marco inicial da correção monetária, incidente so­bre o seu crédito, no sentido de que seja delimitado a partir da

data da lesão a seu patrimônio, ou seja, julho de 1987 e não so­mente a contar do ajuizamento do feito"

Afirma a recorrente que o acór­dão violou a Lei 4.357/67 e a Lei 4.535/64; e alega dissídio jurispru­dencial.

O recurso foi admitido à fl. 142.

VOTO

O SR. MINISTRO FONTES DE ALENCAR (Relator): A alegação ge­nérica de violação das leis federais que a recorrente menciona é impró­pria do recurso especial.

A discrepância de jurisprudência por demonstrada a tenho em rela­ção ao precedente do Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul.

Dessarte, e atento ao que na Sú­mula 43 do STJ se contém, do re­curso conheço e provimento lhe dou, para que o valor devido seja corri­gido

"desde julho de 1987 até a data do seu efetivo pagamento".

RECURSO ESPECIAL NQ 112.236 - RJ (Registro nQ 96.0069059-6)

Relator: O Sr. Ministro Ruy Rosado de Aguiar Recorrente: Banco Real S/A Recorrido: MFG Comercial de Presentes Ltda. Advogados: Vinicius Mari e outros, e Roberto Alves dos Reis e outros

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EMENTA: Duplicata. Protesto. Cancelamento. Dano moral. Res­ponsabilidade do banco.

- A jurisprudência predominante no STJ admite o cancelamento do protesto de duplicata sem causa.

- A responsabilidade pela indenização dos danos é do banco que levou o título sem causa ao cartório.

- A pessoa jurídica pode sofrer dano à sua honra objetiva.

Precedentes.

Recurso conhecido em parte, pela divergência, mas improvido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos es­tes autos, acordam os Ministros da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos vo­tos e das notas taquigráficas a se­guir, por unanimidade, conhecer em parte do recurso, mas lhe negar pro­vimento. Votaram com o Relatar os Srs. Ministros Fontes de Alencar, Sálvio de Figueiredo Teixeira, Bar­ros Monteiro e Cesar Asfor Rocha.

Brasília, 28 de abril de 1997 (data do julgamento).

Ministro SÁLVIO DE FIGUEI­REDO TEIXEIRA, Presidente. Mi­nistro RUY ROSADO DE AGUIAR, Relator.

Publicado no DJ de 25-08-97.

RELATÓRIO

O SR. MINISTRO RUY ROSADO DE AGUIAR: Adoto O relatório do v. aresto de fls. 114/115, verbis:

"A empresa Meridional S/A Co­mércio e Indústria após emitir duplicatas frias contra a segun-

da apelante, (MFG Comercial de Presentes Ltda.), transacionou esses títulos simulados com o Banco Real S/A e Banco Noroes­te S/A, que os levaram a protes­to, causando danos materiais e morais à autora, conforme cons­ta da inicial. O objetivo da pre­sente ação é não só o cancelamen­to dos protestos desses títulos como ainda o ressarcimento dos danos sofridos pela autora.

A sentença (fls. 363/366) julgou improcedente o pedido por enten­der, o seu douto prolator, que o protesto foi legítimo posto que, em se tratando de cambiariforme, o endossante garante ao endos­satário a legitin::idade do título e a esse não cabe verificá-la. Aduz que aos réus outra conduta não cabia, para conservar seus direi­tos, senão a que tiveram, e que a responsabilidade pela composi­ção dos prejuízos é de quem ile­gitimamente sacou as duplicatas.

Recorreu primeiramente o Ban­co Real S/A apenas contra a parte da sentença que o condenou a pa­gar honorários à denunciada, já que deu causa a que o Banco, em

370 R. Sup. Trib. Just., Brasília, a. 10, (102): 271-388, fevereiro 1998.

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sua defesa, a denunciasse à lide (fls. 368/372).

Recorreu também a autora (fls. 373/376) insistindo que os réus eram sabedores de que estavam diante de títulos simulados, que não correspondiam a qualquer compra e venda mercantil, pelo que indevido o protesto. Pede a reforma da sentença para o fim de ser julgado procedente o pedi­do."

A ego 2ª Câmara Cível do Tribu­nal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, por votação majoritária, deu provimento parcial ao recurso de MFG Comercial de Presentes Ltda. e denegou o apelo do Banco Real S/A, contra o voto do em. Des. Relator, que negava provimento a ambos os recursos. Eis a ementa:

"Duplicata. Causa debendi inexistente. Nulidade do título. Inaplicação das regras do Direi­to Cartular.

Sendo título causal, não pode ser tida como duplicata a que é emitida sem efetiva correspon­dência a uma venda de mercado­ria ou prestação de serviço, pres­suposto econômico e legal para a sua existência. Saque sem causa, além de não produzir efeito no campo do direito cartular, em face da absoluta nulidade do tí­tulo, caracteriza ainda ilícito pe­nal. Conseqüentemente, não po­de o suposto endossatário, mes­mo que de boa-fé, invocar os prin­cípios pertinentes ao endosso pa­ra excluir a sua responsabilida-

de pelo indevido protesto do fal­so título. Pode o endossatário de duplicata fria, ilaqueado em sua boa-fé, apenas voltar-se contra o falso sacador-endossante, jamais contra terceiro que não teve qual­quer participação na fraude, por não serem aplicáveis ao fato de­corrente de ilícito penal os prin­cípios do direito cartular.

Responsabilidade civil. Dano moral à pessoa jurídica. Ressar­cimento.

A pessoa jurídica, embora não seja titular de honra subjetiva, que se caracteriza pela dignida­de, decoro e auto-estima, exclu­siva do ser humano, é detentora de honra objetiva, fazendo jus à indenização por dano moral sem­pre que o seu bom nome, reputa­ção ou imagem forem atingidos no meio comercial por algum ato ilícito.

Ademais, após a Constituição de 1988, a noção do dano moral não mais se restringe ao pre­tium doloris, abrangendo tam­bém qualquer ataque ao nome ou imagem da pessoa, física oujurí­dica, com vistas a resguardar a sua credibilidade e respeitabili­dade.

Provimento parcial do segun­do recurso." (f1. 113)

Opostos embargos infringentes, o ego 32 Grupo de Câmaras Cíveis do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, por maioria, negou provimento ao recurso, em acórdão assim sumulado:

R. Sup. Trib. Just., Brasília, a. 10, (102): 271-388, fevereiro 1998. 371

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"Título de crédito. Duplicata. Nulidade por ausência de causa. Protesto e direito regressivo. Con­seqüências do ato indevido. Res­ponsabilidade civil. Ato ilícito. Protesto injusto. Pessoa jurídica, dano moral, abalo de crédito e ofensa ao bom nome comercial. Caráter, não apenas compensa­dor da indenização, no seu aspec­to patrimonial, mas também san­cionador (punitivo) da injusta ofensa. Honra objetiva. Embar­gos rejeitados." (fi. 165)

o Banco Real S/A ingressou com recurso especial (alíneas a e c), ale­gando afronta aos artigos 13, § 4º, da Lei nº 5.474/68 e 160, I, do CC, bem como dissídio jurisprudencial. Sustenta: a) - necessidade do pro­testo para o exercício do direito de regresso contra endossantes e ava­listas; b) - o banco endossatário não teve ciência de que o título era "frio", daí não lhe incumbir a responsabi­lidade pelos possíveis danos conse­qüentes da cobrança; c) - afirma sua boa-fé; d) - diz que protestar os títulos nada mais foi que o exer­cício de um direito previsto em lei.

Com as contra-razões, o Tribunal de origem negou seguimento ao re­curso especial por intempestivo.

Interposto agravo de instrumen­to, este foi por mim provido e pro­cessado como REsp.

É o relatório.

VOTO

O SR. MINISTRO RUY ROSADO DE AGUIAR (Relator): 1. A dupli­cata é um título causal:

"Sendo então um título causal, a duplicata se distingue funda­mentalmente dos cambiais, pois estas podem ser emitidas em vir­tude de qualquer relação funda­mental, enquanto que a duplica­ta em virtude de uma compra e venda determinada.

Se a duplicata não correspon­der a uma compra e venda, o emi­tente ou o aceitante serão passí­veis de pena de detenção de um a cinco anos, além da multa equi­valente a 20% sobre o valor da duplicata, de acordo com a nova redação dada ao art. 172 do Có­digo Penal, pelo art. 26 da Lei nº 5.4 7 4." (Ayres Antonio Perei­ra Carollo, Duplicata da Origem à Atualidade, pág. 51)

2. Sendo assim, o protesto de du­plicata sem causa, pelo banco-en­dossatário, pode ser sustado por ordem judicial, como ordinariamen­te tem sido decidido:

"Duplicata. Nulidade em virtu­de de derivar de negócio que não autoriza a emissão desse título.

Divergência não configurada com ocórdãos que afirmam, gene­ricamente, resultar do aceite a abstração e desvinculação da cau­sa, sem que estivesse em questão a invalidade original do título." (REsp 6.004-PR, 3" Turma, reI. o em. Min. Eduardo Ribeiro, DJ 05/ 08/91)

"Direitos comercial e proces­sual civil. Duplicata. Pretensão de declaração de nulidade. Banco endossatário. Ilegitimidade pas-

372 R. Sup. Trib. Just., Brasília, a. 10, (102): 271-388, fevereiro 1998.

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siva. Protesto. Cancelamento. Mas com ressalva de possibilidade de intentar ação de regresso. Recur­so provido.

I - Não sendo oponíveis exce­ções de direito pessoal, existen­tes entre credor e devedor, a en­dossatária de boa-fé, instituição financeira que descontou o títu­lo, injustificável tê-la como par­te no processo.

II - Declarada nula duplica­ta sem lastro, com sustação defi­nitiva do pretenso protesto da mesma, faz-se necessário constar ressalva à endossatária da pos­sibilidade de exercer seu direito de regresso contra endossantes e avalistas, uma vez que impres­cindível o protesto para tal mis­ter." (REsp 38.517 -MG, 4i! Turma, reI. o em. Min. Sálvio de Figuei­redo Teixeira, DJ 10/06/96)

"Comercial. Duplicata sem aceite. Protesto. Direito de re­gresso do endossatário.

I - A jurisprudência do STJ acolhe entendimento no sentido de que a duplicata sem aceite, posto que esvaziada de seu con­teúdo causal, uma vez endossa­da, o endossatário, mesmo sem protesto, poderá exercer o direi­to de regresso, mormente quan­do, no título dado em garantia, firma-se também aval e avença­se cláusula, dispensando-se o pro­testo.

II - Matéria de prova não se reexamina em especial (Súmula n Q 07/STJ).

III - Recurso não conhecido." (REsp 57.249-MG, 3i! Turma, reI.

o em. Min. Waldemar Zveiter, DJ 22/05/95)

3. Tem sido ressalvado o direito de o banco-endossatário agir contra o endossante:

"Tratando-se de duplicata não aceita que circula, a força cam­biária do título pode ser exercida "somente contra quem se houver vinculado cambialmente" (REsp 10.542, da ego 3i! Turma, reI. em. Min. Eduardo Ribeiro).

Sendo assim, o sacado que não aceita a duplicata porque a dívi­da que ela representa já fora paga, pode obter do Juízo senten­ça que reconheça a ineficácia do título em relação a ele, ação essa que deve ser promovida tanto contra o sacador, responsável pe­la sua criação, como contra o Ban­co endossatário, que detém a pos­se do documento de dívida em razão de negócio cambiário esta­belecido entre o sacador e o ban­co, através de endosso pleno. A pretensão do sacado é impedir a eventual cobrança do título e me­didas outras que decorram da mora, como o protesto, pleito que deve ser ajuizado também contra o endossatário, pois é dele, como portador, o direito de exigir o pa­gamento:

- "Processo Civil. Direito comercial. Legitimidade passi­va ad causam do endossatá­rio de duplicata não aceita para as ações de inexistência de débito e de sustação de pro­testo. Agravo desprovido.

R. Sup. Trib. Just., Brasília, a. 10, (102): 271-388, fevereiro 1998. 373

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Se a instituição financeira figura no título como endossa­tária, não se arreda sua legiti­midade passiva para a ação declaratória de inexistência de débito e de sustação dos pro­testos, que levar a efeito jun­tamente com os outros inte­grantes da cadeia cambial." (AgRg no Agn9 37.132-RS, reI. em. Min. Sálvio de Figueiredo, 4ª Turma, DJU 06/09/93)

Para resguardar o direito do endossatário frente ao endossan­te, regulado no art. 13, parágra­fo quarto, da Lei 5.474/68, basta fique explicitada a ressalva de que permanecia o direito de re­gresso do endossatário. Com isso se compõe tanto o direito do de­vedor-sacado, de não ser objeto de protesto pelo Oficial público (com os gravíssimos efeitos co­merciais daí decorrentes, que não se limitam à simples relação cam­bial), em razão de uma dívida já paga, como o do endossatário, que não pode ficar desprotegido fren­te ao endossante e avalistas:

- "Comercial. Duplicata não aceita. Ausência de negócio subjacente. Endosso. Descons­tituição do título. Efeitos cam­biais entre endossante e en­dossatário. Ressalva.

Ressalvando os efeitos cam­biais do endosso o acórdão que desconstitui o título não acei­to, por falta de negócio subja­cente, não contraria as regras, que autorizam o protesto da duplicata não aceita." (REsp

20.530-SP, reI. em. Min. Dias Trindade, 4ª Turma, DJU 08/ 11/93)

- "Protesto. Duplicata não aceita. Endosso.

Ressalvado o direto do ban­ca endossatário, não viola a lei a sentença que julga proceden­te a ação anulatória de dupli­catas não aceitas e torna defi­nitiva a sustação do protesto." (REsp 15.772-RS, de minha relatoria, 4ª Turma, DJU 20/ 06/94)

Assim posta a questão, inexis­te violação aos artigos de lei ci­tados nas razões de recurso.

A divergência, sim, existe e fi­cou bem exposta nas razões de re­curso, mas a mim parece melhor a orientação adotada no r. julga­do da ego 3ª Turma, acima citado:

- "Duplicata não aceita -circulação.

Endossada a duplicata, apli­cam-se as normas reguladoras das relações de natureza cam­bial, podendo o endossatário exercer todos os direitos emer­gentes do título. Isso, entre­tanto, contra quem se houver vinculado cambialmente. O sacado, só por sê-lo, não assu­me obrigação cambial que exis­tirá caso lance seu aceite.

Protesto - Direito de re­gresso.

A posição do sacado que não aceitou não é afetadajuridica­mente pelo protesto. Em vis-

374 R. Sup. Trib. Just., Brasília, a. 10, (102): 271-388, fevereiro 1998.

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ta, entretanto, das enormes conseqüências que o comércio empresta ao ato, admissível seja impedido aquele ato, com ressalva expressa do direito de regresso do endossatário." CREsp 10.542-SC, reI. em. Min. Eduardo Ribeiro, 3ª Turma, DJU 12.08.91)." CREsp 55.072-MG, 4ª Turma, de minha rela­toria)

Legítimo, portanto, o comporta­mento do sacado, pois pelo dano que sofreu responde o banco que levou o título a protesto, com direito des­te de ressarcir-se contra o endossan­te, criador do título sem causa.

4. Os precedentes desta 4ª Tur­ma admitem o dano moral causado à pessoa jurídica:

"Quando se trata de pessoaju­rídica, o tema da ofensa à honra propõe uma distinção inicial: a honra subjetiva, inerente à pes­soa física, que está no psiquismo de cada um e pode ser ofendida com atos que atinjam a sua dig­nidade, respeito próprio, auto­estima, etc., causadores de dor, humilhação, vexame; a honra ob­jetiva, externa ao sujeito, que consiste no respeito, admiração, apreço, consideração que os ou­tros dispensam à pessoa. Por isso se diz ser a injúria um ataque à honra subjetiva, à dignidade da pessoa, enquanto que a difama­ção é ofensa à reputação que o ofendido goza no âmbito social onde vive. A pessoa jurídica, cria­ção da ordem legal, não tem ca­pacidade de sentir emoção e dor,

estando por isso desprovida de honra subjetiva e imune à injú­ria. Pode padecer, porém, de ata­que à honra objetiva, pois goza de uma reputação junto a tercei­ros, passível de ficar abalada por atos que afetam o seu bom nome no mundo civil ou comercial onde atua.

Esta ofensa pode ter seu efei­to limitado à diminuição do con­ceito público de que goza no seic da comunidade, sem repercussão direta e imediata sobre o seu pa­trimônio. Assim, embora a lição em sentido contrário de ilustres doutores CHoracio Roitman e Ramon Daniel Pizarro, EI Dano Moral y La Persona Juridi­ca, RDPC, pág. 215) trata-se de verdadeiro dano extrapatrimo­nial, que existe e pode ser men­surado através de arbitramento. É certo, que, além disso, o dano à reputação da pessoa jurídica pode causar-lhe dano patrimo­nial, através do abalo de crédito, perda efetiva de chances de ne­gócios e de celebração de contra­tos, diminuição de clientela, etc., donde concluo que as duas espé­cies de danos podem ser cumula­tivas, não excludentes.

Pierre Kayser, no seu clássi­co trabalho sobre os direitos da personalidade, observou:

"As pessoas morais são tam­bém investidas de direitos aná­logos aos direitos da persona­lidade. Elas são somente pri­vadas dos direitos cuja existên-

R. Sup. Trib. Just., Brasília, a. 10, (102): 271-388, fevereiro 1998. 375

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cia está ligada necessariamen­te à personalidade humana". (Revue Trimestrielle de Droit Civil, 1971, v. 69, pág. 445).

E a moderna doutrina france­sa recomenda a utilização da via indenizatória para a sua prote­ção:

"A proteção dos atributos morais da personalidade para a propositura de ação de res­ponsabilidade não está reser­vada somente às pessoas físi­cas. Aos grupos personalizados tem sido admitido o uso dessa via para proteger seu direito ao nome ou para obter a con­denação de autores de propos­tas escritas ou atos tendentes à ruína de sua reputação. A pessoa moral pode mesmo rei­vindicar a proteção, senão de sua vida privada, ao menos do segredo dos negócios." (Traité de Droit Civil, Viney, Les Obli­gations, La responsabilité, 1982, voI. lI, pág. 321).

No Brasil, está hoje assegura­do constitucionalmente a indeni­zabilidade do dano moral à pes­soa (art. 5Q

, X, da CR). Para dar efetiva aplicação ao preceito, pode ser utilizado a "regra expos­ta pelo art. 1.553 do CCivil, se­gundo o qual, 'nos casos não pre­vistos neste capítulo, se fixará por arbitragem a indenização'. Esta disposição permite a inde-

nização dos danos morais e cons­titui uma cláusula geral dessa matéria" (Clóvis do Couto e Silva, "O Conceito de dano no Direito brasileiro e comparado", Rev. dos Tribunais, 667/7). O mesmo dano moral, de que pode ser vítima também a pessoajurí­dica, é reparável através da ação de indenização, avaliado o prejuí­zo por arbitramento.

No caso dos autos, a v. senten­ça, depois confirmada pelo v. acórdão, cujos fundamentos estão transcritos no relatório, além de admitir a existência de dano ex­trapatrimonial, também reconhe­ceu a presença de dano patrimo­nial, diretamente derivada da con­duta culposa do banco. Tanto por um fundamento, quanto pelo ou­tro, cabível o deferimento do pe­dido indenizatório.

Isto posto, conhecendo do re­curso pela divergência, nego-lhe provimento." (REsp 60.033-MG, 4ª Turma, de minha relatoria)

5. O tema sobre a existência dos prejuízos versa sobre matéria de fato, excluída desta via.

6. Posto isso, não conheço do re­curso pela alínea a, por inexistên­cia de violação à lei, mas conheço, em parte, pela divergência, que fi­cou bem demonstrada quanto à pos­sibilidade do protesto, mas lhe nego provimento.

É o voto.

376 R. Sup. Trib. Just., Brasília, a. 10, (102): 271-388, fevereiro 1998.

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RECURSO ESPECIAL NQ 121.634 - MG

(Registro n Q 97.0014548-4)

Relator: O Sr. Ministro Fontes de Alencar

Recorrentes: José Carlos Domingues Azevedo e cônjuge

Advogados: Drs. José Justiniano Ribeiro da Silva e outros

Recorrido: Banco do Estado de Minas Gerais S/A - BEMGE

Advogados: Drs. Carlos Peixoto de Mello e outros

EMENTA: Impenhorabilidade. Direito ao terminal telefônico.

- A impenhorabilidade estabelecida pela Lei n Q 8.009/90 alcan­ça os móveis que guarnecem, sem exorbitância, a casa. No caso, tendo a penhora recaído sobre três bens da mesma natureza, ape­nas o direito ao uso de um terminal telefônico é impenhorável.

- Recurso atendido em parte.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos es­tes autos, acordam os Ministros da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos vo­tos e das notas taquigráficas a se­guir, por unanimidade, conhecer do recurso e lhe dar provimento par­cial. Votaram com o Relator os Srs. Ministros Sálvio de Figueiredo Tei­xeira, Barros Monteiro, Cesar As­for Rocha e Ruy Rosado de Aguiar.

Brasília, 17 de junho de 1997 (da­ta do julgamento).

Ministro SÁLVIO DE FIGUEI­REDO TEIXEIRA, Presidente. Mi­nistro FONTES DE ALENCAR, Re­lator.

Publicado no DJ de 06-10-97.

RELATÓRIO

O SR. MINISTRO FONTES DE ALENCAR: Trata-se de recurso es­pecial com fulcro no art. 105, III, a da Constituição Federal contra de­cisão proferida pela Segunda Câma­ra Civil do Tribunal de Alçada do Estado de Minas Gerais, de aresto assim ementado:

"Embargos do devedor. Penho­ra. Linha telefônica. Lei n Q 8.009/ 90. Inaplicabilidade. Recurso não provido.

1. O direito de uso de linha te­lefônica não se enquadra no con­ceito de bem de família instituí­do pela Lei n Q 8.009/90.

2. A impenhorabilidade refere­se aos bens primordiais para o funcionamento de uma residên-

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cia. A linha telefônica, embora útil, não se reveste de impres­cindibilidade para as atividades normais do lar.

3. O direito de uso em questão só é impenhorável quando cons­tituir instrumento de trabalho (art. 649, VI, do CPC).

4. Apelação conhecida e não provida" (fl. 40)

José Carlos Domingues Azevedo e sua mulher alegam violação do art. 1 Q da Lei n Q 8.009/90, além de dissídio jurisprudencial (fls. 46/56).

O recurso foi admitido na origem (fls. 64/65).

VOTO

O SR. MINISTRO FONTES DE ALENCAR (Relator): Firmou-se a jurisprudência de ambas as Turmas integrantes da Segunda Seção des­ta Corte no sentido da impenho­rabilidade da linha telefônica que guarnece o imóvel residencial do executado, pois tal bem não pode ser considerado um adorno suntuoso, mas sim, um equipamento necessá­rio ao lar.

N esta linha posicionou-se a Ter­ceira Turma, em aresto da lavra do Ministro Eduardo Ribeiro, no REsp n Q 64.629, verbis:

"Impenhorabilidade. Lei n Q

8.009/90. Direito ao uso de ter­minal telefônico.

A impenhorabilidade compre­ende tudo o que, usualmente, se mantém em sua residência e não

apenas o indispensável para fa­zê-la habitável. Excluem-se ape­nas objetos e adornos suntuosos, além de veículos.

O direito ao uso de terminal te­lefônico há de entender-se como compreendido entre os equipa­mentos, não sendo, pois, passível de penhora".

De igual diretriz o REsp n. 74.163, por mim relatado nesta Turma:

"Terminal telefônico. Impenho­rabilidade.

- O telefone que não é ador­no, é alcançado pela impenho­rabilidade estatuída pela Lei n Q

8.009/90.

Recurso conhecido, mas não atendido".

Todavia, a espécie diz com o di­reito ao uso de três terminais tele­fônicos (fls. 24 e 26 do apenso). Para o caso, o conselho de Horácio é apropriado:

"Est modus in rebus, sunt certi denique fines" (Sátiras, Livro I, 1.106).

Esta Corte j á deliberou que a impenhorabilidade estabelecida pe­la Lei n Q 8.009/90 alcança os bens móveis que, sem exorbitância, guar­necem a casa (REsp n Q 14.598, por mim relatado).

Posto isso, conheço do recurso mas lhe dou provimento em parte para afastar da constrição judicial uma das linhas telefônicas penho­radas.

378 R. Sup. Trib. Just., Brasília, a. 10, (102): 271-388, fevereiro 1998.

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RECURSO ESPECIAL Nº 123.550 - RJ

(Registro nº 97.0018002-6)

Relator: O Sr. Ministro Ruy Rosado de Aguiar

Recorrentes: Alexandre Pastura Bouças e outros

Recorridos: Sind. Empreg. Empr. de Sego Privo e Capit. e Ag. Aut. Sego Privo e de Credo em Emp. de Prev. Privo Corro de Sego Privo e Corro de Fundos Públicos e Câmbio e de Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliários do Estado do Rio de Ja­neiro e Sindicato das Empresas de Seguros Privados e Ca­pitalização no Estado do Rio de Janeiro - SERJ

Advogados: Waldyr Versiani dos Santos, Maria Ines Câmara de Araú­jo e Ricardo Bechara Santos

EMENTA: Sindicato. Contribuição confederativa. Competência da Justiça do Trabalho.

Depois da edição da Lei 8.984/95, é da Justiça do Trabalho a com­petência para processar e julgar as ações fundadas em conven­ção coletiva do trabalho.

A instituição da contribuição confederativa, prevista no art. 8º, inc. IV da CR, depende da deliberação da assembléia geral; po­rém, inserida em cláusula de acordo coletivo do trabalho, está preenchido o suporte de fato para a incidência da Lei 8.984/95.

Ação de inexigibilidade de cobrança de contribuição confedera­tiva prevista em convenção coletiva julgada procedente pelo Juiz de Direito, ao tempo em que a competência era da Justiça Co­mum. O recurso, já agora na vigência da nova lei, deve ser aprecia­do pelo Tribunal Regional do Trabalho.

Precedentes.

Recurso não conhecido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos es­tes autos, acordam os Ministros da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos vo­tos e das notas taquigráficas a se­guir, por unanimidade, não conhe-

cer do recurso. Votaram com o Re­lator os Srs. Ministros Sálvio de Fi­gueiredo Teixeira, Barros Monteiro e Cesar Asfor Rocha. Ausente, jus­tificadamente, o Sr. Ministro Bue­no de Souza.

Brasília, 12 de agosto de 1997 (data do julgamento).

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Ministro BARROS MONTEIRO, Presidente. Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, Relator.

Publicado no DJ de 22·09-97.

RELATÓRIO

O SR. MINISTRO RUY ROSADO DE AGUIAR: Adoto O relatório in­tegrante da r. sentença de fls. 202/ 205, verbis:

"Alexandre Pastura Bouças e demais autores qualificados na inicial propuseram ação ordiná­ria em face do Sindicato dos em­pregados em empresas de segu­ros privados e capitalização e de agentes autônomos de seguros privados e corretoras de fundos públicos e câmbio e de distribui­doras de títulos e valores mobi­liários do Estado do Rio de J anei­ro e Sindicato das empresas de seguros privados e capitalização do Estado do Rio de Janeiro, ale­gando, em síntese, que as cláu­sulas 45 e 36 do acordo coletivo celebrado entre os Réus, o pri­meiro na qualidade de Sindicato representativo dos Autores e o se­gundo como Sindicato patronal respectivo, instituíram percen­tuais de desconto do salário bru­to dos Autores, a título de contri­buição assistencial, e que, no to­cante à primeira, o preceito cons­titucional que a instituiu não é auto-aplicável e necessita de re­gulamentação específica, e, no to­cante à segunda, é arbitrária, ile­gal e abusiva, admitida em As­sembléia, não podendo aquelas cláusulas gerarem seus efeitos.

Regularmente citados, ofere­.ceu o segundo Réu contestação de fls. 89/99, afirmando que a cláu­sula 35 e o § 1 º da cláusula 36 do mencionado acordo coletivo dita­vam a responsabilidade exclusi­va do primeiro Réu, pelo que re­quer a sua exclusão da lide, jun­tando os documentos de fls. 101 e seguintes.

Às fls. 128/138, vê-se a contes­tação do primeiro Réu, afirman­do a incompetência deste Juízo, em razão do disposto no artigo 611 e 625 da CLT e artigo 114 da Constituição Federal; que os Au­tores são carecedores do direito de ação; que o inconformismo é intempestivo, bem como nada im­pede que os descontos sejam fei­tos de forma diversa para sócios e não sócios; que os Sindicatos têm direito a proceder ao descon­to dos valores em questão, para atender seus objetivos sociais, não discordando os Autores das outras vantagens obtidas pelo Sindicato Réu na Convenção Co­letiva em tela, acompanhando os documentos de fls. 140/158.

Às fls. 167/170, nova manifes­tação dos Autores, contrariando as preliminares e reprisando os argumentos contidos na inicial.

Em apenso, Medida Cautelar Inominada proposta pelos Auto­res, tendo a liminar sido deferi­da em razão do evidente pericu­lum in mora.

Às fls. 1.643/1.644 petição dos Autores.

Às fls. 1.487 postularam Davi Saraiva da Silva e outros, sua in-

380 R. Sup. Trib. Just., Brasília, a. 10, (102): 271-388, fevereiro 1998.

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clusão no pólo ativo da demanda, o que foi deferido pelo Juízo, o mesmo ocorrendo em relação aos Autores de fls. 1.646 e seguintes.

Contestação do primeiro Réu repetindo os argumentos da ação ordinária, com documentos.

O segundo Réu contestou o pe­dido às fls. 1.590/1.600."

A sentença rejeitou as prelimina­res de incompetência absoluta, de carência de ação e de ilegitimidade e, no mérito, julgou procedente a ação ordinária, decretando a ilega­lidade dos descontos e a invalidade do estabelecido nas cláusulas 35 e 36 do acordo coletivo de fls. 172/183, e também procedente a medida cau­telar, consolidando a liminar. Con­denou o primeiro réu a devolver os valores arrecadados dos autores e descontados de seus salários brutos, no prazo de 72 horas, acrescidos de juros e correção monetária a partir da data dos referidos descontos, condenando-o, ainda, ao pagamen­to das custas e honorários de 10% (dez por cento) sobre o valor que for apurado em execução, para efeito de devolução daqueles valores descon­tados. Quanto ao segundo réu, jul­gou parcialmente procedente a ação para condená-lo, apenas, ao paga­mento das custas e honorários, que fixou em 10% (dez por cento) sobre o valor atribuído à causa. Tocante à medida cautelar, impôs aos réus o pagamento das custas e honorários advocatícios.

Os réus apelaram e a ego 3ê Câ­mara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, por

votação majoritária, declinou de sua competência para a Justiça do Tra­balho, reconhecida como competen­te para conhecer e julgar a lide. Eis a ementa:

"Ação Ordinária - Visando-se com a ação o reconhecimento e prevalência de direito frente a ato praticado e exigência feita com base em 'Convenção Coleti­vo de Trabalho' firmada entre Sindicatos de classe, por compe­tente, no campo jurisdicional pa­ra dirimir a quaestio há de ser a Justiça do Trabalho, face o dis­posto no artigo 1 Q da Lei 8.984, de 07.02.95, de aplicação imedia­ta e abrangente." (fl. 276)

Opostos embargos infringentes, o ego 1 Q Grupo de Câmaras Cíveis do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro negou provimento ao recurso.

Os autores ingressaram com re­cursos extraordinário e especial, este por ambas as alíneas, alegan­do afronta aos artigos 114 da CR e 1 Q da Lei n Q 8.984/95, além de dissí­dio jurisprudencial. Sustentam que os acórdãos recorridos contrariaram os ditames da Lei 8.984/95, extra­polando "sem qualquer fundamen­to, a competência determinada no art. 114 da CR". E prosseguem: "O fato de ter sido a convenção pactua­da entre sindicatos, não deixa cami­nho para a aplicação da Lei 8.984/ 95, porque o litígio não versa entre sindicatos e sim por parte de secu­ritários que não aceitam aqueles descontos." Mencionam a Súmula 57/ STJ que confere à Justiça Comum

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Estadual a competência para pro­cessar e julgar ação de cumprimen­to fundada em acordo ou convenção coletiva não homologados pela Jus­tiça do Trabalho.

Com as contra-razões, o Tribunal de origem negou seguimento ao re­curso extraordinário e admitiu o es­pecial, subindo os autos a este ego STJ.

É o relatório.

VOTO

O SR. MINISTRO RUY ROSADO DE AGUIAR (Relator): I - Esta 42 Turma já assim decidiu o REsp 110.366/SP, versando sobre matéria assemelhada:

"1. Tem sido admitido, com predominância, que três são as espécies de contribuição devidas a sindicados: "São no mínimo três as espécies de contribuições hoje existentes no nosso ordenamen­to: (1) Contribuição Sindical, pre­vista em lei (arts. 578 e seguin­tes da CLT), de natureza panfis­cal ("CLT Comentada", Eduardo Saad, p. 432), antigo imposto sin-

'\ dicaI, obrigatória para todos os que participam da categoria; (2) Contribuição Assistencial, esta­belecida em dissídio, convenção ou acordo coletivos, cobrada para "custear a participação do sindi­cato nas negociações coletivas pa­ra obter novas condições de tra­balho para a categoria e também da prestação de assistência, jurí­dica, médica e dentária" ("Contri­buição Confederativa", Sérgio

Pinto Martins, pág. 125). A sua fonte é a convenção ou o acordo, não a lei, embora prevista no art. 513, e, da CLT; (3) Contribuição Confederativa, mencionada no art. 8Q

, inc. IV da CR, que é "pres­tação pecuniária, espontânea, fi­xada pela assembléia geral do sindicato, tendo por finalidade custear o sistema confederativo" (Martins, op. cit., pág. 114), isto é, destinada a custear as despe­sas gerais do sindicato, da fede­ração e da confederação, sendo paga tanto pelos empregados como pelos empregadores, para o respectivo sistema. Além dessas, ainda podem ser referidas as con­tribuições de solidariedade (rece­bidas dos não associados do sin­dicato, pelo êxito que este obte­ve), a contribuição social (art. 149 da CR) e outra contribuição es­tatutária, porventura criada (art. 548, b, da CLT)." CEdc. CC 17.144-MG, 22 Seção, de minha relatoria).

"2. Naquele julgado, assim foi examinada a questão da compe­tência:

"Tocante à cobrança das contribuições previstas em dis­sídios ou acordos coletivos, dis­cutiu-se sobre a competência da Justiça do Trabalho, diante dos novos termos da Constitui­ção (art. 114), que estendeu a competência da Justiça espe­cializada para as ações origi­nadas do cumprimento de suas próprias sentenças, inclusive coletivas. Predominou, porém, a tese da competência da Jus-

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tiça Comum, para as ações fundadas em convenções ou acordos não homologados (RE 130.555-SP), sendo da Justiça do Trabalho quando homologa­dos.

Com a superveniência da Lei 8.984/95, ficou resolvida a questão antiga: a ação para a cobrança da contribuição ins­tituída em acordo ou conven­ção, com ou sem homologação é da competência da Justiça do Trabalho."

"3. No caso dos autos, trata­se de contribuição confederativa que, embora dependente de au­torização da assembléia geral, está prevista no acordo coletivo do trabalho, firmado entre as en­tidades sindicais de empregados e empregadores da categoria, conforme constou no item 23: "Contribuição confederativa. As empresas ficam obrigadas a des­contar em folha de pagamento de todos os seus empregados, as­sociados ou não, uma contribui­ção de 12% para custeio do siste­ma confederativo de que trata o art. 8Q

, inc. IV, da Constituição Federal, de conformidade com os critérios abaixo relacionados (fl. 23)".

Sendo assim, incide a regra do art. 1Q da Lei 8.984, de 7.2.95, do seguinte teor:

"Art. 1 Q - Compete à Justi­ça do Trabalho conciliar e jul­gar os dissídios que tenham origem no cumprimento de

convenções coletivas de traba­lho ou acordos coletivos de tra­balho, mesmo quando ocorram entre sindicatos ou entre sin­dicato de trabalhadores e em­pregado~"(fl. 146)

"4. Ao tempo em que foi profe­rida a sentença, em 1994, a com­petência era da Justiça Estadual, porém, quando julgada a apela­ção, em 19 de março de 1996, já estava em vigor a nova lei e a competência se inseria no âmbi­to da Justiça do Trabalho, caben­do ao Tribunal Regional o julga­mento do recurso interposto da sentença de procedência da ação, conforme tem sido reiteradamen­te decidido pela ego 2ª Seção, em situações assemelhadas:

"Competência. Conflito. Ação fundada no cumprimen­to de convenção coletiva de tra­balho. Lei 8.984/95. Competên­cia da Justiça do Trabalho. Sentença proferida pelo Juiz de Direito antes da vigência da lei. Tribunal de Justiça que se declara incompetente para co­nhecer dos recursos posto que já vigente aquela norma.

Remessa dos autos ao órgão de segundo grau da Justiça do Trabalho para conhecer e jul­gar os recursos:

I - Com o advento da Lei 8.984/95, compete à Justiça do Trabalho processar ejul­gar as ações concernentes ao cumprimento de cláusula re-

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ferente à convenção ou acor­do coletivo de trabalho, mes­mo que não tenha havido ho­mologação;

II - Proferidas as sen­tenças pelo Juiz de Direito, antes da vigência da Lei 8.984/95, e declarada a in­competência ratione mate­riae do Tribunal de Justiça para conhecer dos recursos, posto que já vigente aquela norma, compete ao órgão de segundo grau da Justiça do Trabalho conhecer e julgar as impugnações recursais" (CC 15.472-SP, 2ª Seção, reI. o em. Min. Sálvio de Figuei­redo Teixeira, DJ 26/02/96).

"Conflito de competência. Sin­dicato. Lei nº 8.984/95. Compe­tência recursal.

É do TRT a competência para julgar recurso de sentença pro-

ferida pelo Juiz de Direito, antes da vigência da Lei 8.984/95, em ação de cumprimento de acordo coletivo de trabalho." (CC 16.822-SP, 2ª Seção, de minha relatoria, DJ 02/09/96)

"Posto isso, conheço do recur­so, por ambas as alíneas, pois re­conheço violado o disposto no art. 1 º da Lei 8.984/95, e a divergên­cia assim como exposta nas ra­zões de recurso, e lhe dou provi­mento, para cassar o r. julgado e determinar a remessa dos autos ao ego TRT da respectiva Região, onde será renovado o julgamen­to do recurso."

II - Na espécie, o ego Primeiro Grupo de Câmaras Cíveis declinou da competência para a Justiça do Trabalho, com o que decidiu em har­monia com a orientação adotada neste Tribunal, razão pela qual não conheço do recurso.

É o voto.

RECURSO ESPECIAL Nº 130.394 - RJ

(Registro nº 97.0030817-0)

Relator: O Sr. Ministro Barros Monteiro

Recorrente: B.G. Ribeiro Construções Ltda.

Recorrida: Maria de Lourdes D'Elia

Advogados: Drs. William Chieza e Lauro Mario Perdigão Schuch

EMENTA: Promessa de venda e compra. Ineficácia da interpe­lação prévia. Indicação do montante preciso do débito. Ato que satisfaz o requisito.

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- É válida e eficaz a interpelação prévia que menciona o mon­tante original da dívida (atualizável mediante operação aritméti­ca), de molde a permitir ao devedor, acaso pretendesse, resgatar o débito pendente.

- Segundo orientação firmada pela Quarta Turma do STJ, o escopo perseguido pelo ato interpelatório é o de despertar o de­vedor em atraso, concedendo-lhe prazo para que cumpra a obri­gação assumida. Objetivo alcançado no caso.

Recurso especial conhecido e provido para afastar a carência.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas:

Decide a Quarta Turma do Supe­rior Tribunal de Justiça, por unani­midade, conhecer do recurso e dar­lhe provimento, na forma do rela­tório e notas taquigráficas prece­dentes que integram o presentejul­gado. Votaram com o Relator os Srs. Ministros Cesar Asfor Rocha, Ruy Rosado de Aguiar e Sálvio de Figuei­redo Teixeira.

Brasília, 23 de setembro de 1997 (data do julgamento).

Ministro BARROS MONTEIRO, Presidente e Relator.

Publicado no DJ de 20-10-97.

RELATÓRIO

O SR. MINISTRO BARROS MONTEIRO: B.G. Ribeiro Constru­ções Ltda. ajuizou ação de rescisão de escritura de promessa de compra e venda de imóvel, cumulada com reintegração de posse e perdas e danos, contra Maria de Lourdes D' Elia.

A MM. Juíza de Direito julgou a ação parcialmente procedente para "declarar rescindida a promessa la­vrada em 10/07/88, às fls. 19, do li­vro 2.922592 do 16Q Ofício de Notas e em conseqüência reintegrar aAu­tora na posse do imóvel de que co­gita, mediante prévia comprovação da devolução das prestações efeti­vamente pagas por conta do negó­cio jurídico exteriorizado, tanto pela promessa ora rescindida como pelo anterior pré-contrato, quantitativo esse que deverá ser corrigido até o efetivo depósito pelos índices que realmente reflitam a corrosão mo­netária do período considerado".

O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro deu provimento à apelação da ré para extinguir o processo sem julgamento do mérito por impossi­bilidade jurídica do pedido, provo­cada pela ineficácia da notificação, e julgou prejudicado o recurso ade­sivo da autora. Eis os fundamentos do acórdão:

"E assim decidem porque a no­tificação deve indicar o valor de­vido, e não apenas enunciar a existência de débito, pois a fina­lidade é constituir o devedor em

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mora, satisfazendo condição de procedibilidade, necessária para tornar possível o pedido de resci­são, com reintegração na posse do apartamento prometido vender." (fls. 487)

Rejeitados os embargos de decla­ração, a autora manifestou o pre­sente recurso especial com arrimo nas alíneas a e c do permissor cons­titucional, apontando afronta ao art. lº do Dec.-Lei 745/69, além de dissenso pretoriano com julgados do Supremo Tribunal Federal. Afirmou que, ao contrário do asseverado no acórdão recorrido, a notificação in­dicou o valor do débito na confor­midade do pactuado na promessa de compra e venda. De todo modo, sus­tentou que foi atendido o objetivo do legislador, pois a ré foi cientifi­cada de que estava em mora e de que o contrato estaria rescindido se não pagasse a dívida em quinze dias. Ainda, defendendo a inexistên­cia de dúvidas da ré no que se refe­re ao conteúdo da notificação, disse que a mesma, ao ser notificada, se limitou a apresentar contranoti­ficação, na qual alegava ter pago in­tegralmente o preço do imóvel. As­severou também que a ré, ao con­testar a ação, não argüiu a ineficá­cia da notificação por falta de cla­reza e precisão - tese que só aven­tou extemporaneamente na apela­ção - e, sim, por exigir mais do que o valor devido. Por fim, lembrou que a notificação só foi realizada após o trânsito em julgado da sentença que julgou improcedentes as ações cau­telar e ordinária ajuizadas pela ré, envolvendo, exatamente, as presta­ções reclamadas.

Contra-arrazoado, o apelo extre­mo foi admitido na origem.

É o relatório.

VOTO

O SR. MINISTRO BARROS MONTEIRO (Relator): 1. Não co­lhem as objeções preliminares aven­tadas pela recorrida em suas con­tra-razões de recurso.

Em primeiro lugar, afigura-se extemporânea e superada a argüi­ção de defeito na representação da recorrente. O ilustre patrono da autora, que subscreve o apelo espe­cial, Dr. William Chieza, acha-se constituído procurador da parte desde a propositura da presente demanda (fls. 2/6). Saneada a cau­sa e, conseqüentemente, admitido como satisfeitos os pressupostos de constituição e de desenvolvimento válido do processo, a matéria susci­tada acha-se de há muito coberta pelo manto da preclusão.

Ao depois, o requisito do preques­tionamento vem plenamente preen­chido na espécie em apreciação, des­de que o tema controvertido diz com a ineficácia da interpelação prévia, o qual foi expressamente ventilado pelo decisório ora recorrido.

2. A sentença reputou eficaz a no­tificação promovida pela promiten­te-vendedora, aduzindo os seguin­tes fundamentos primordiais:

"Válida e eficaz a notificação premonitória que bem demons­trou a intenção da A. de fazer valer a cláusula resolutória ex-

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pressa do contrato que vincula as partes. Com efeito, os dizeres da notificação, aliados ao fato de que, à época, a totalidade das prestações já estavam vencidas, atestam que a mens legis da norma foi cumprida a contento, qual seja permitir à devedora, acaso pretendesse, resgatar a obrigação pendente. In casu, a Ré ao invocar, na parte meritó­ria da contestação, pretéritos pa­gamentos implicitamente se re­cusou a acatar os termos da co­brança então ultimada, não po­dendo pois alegar invalidade des­se ato jurídico" (fls. 427).

o V. Acórdão hostilizado refor­mou o entendimento manifestado pelo Juiz singular pela razão de que a interpelação deve indicar o valor devido e não apenas enunciar a existência de débito.

A interpelação procedida pela credora, entretanto, mencionou quantum satis o montante da dí­vida e sobretudo atinge a finalida­de para a qual foi instituída pela lei. Assim se acha redigida no ponto em que interessa:

"Dessa forma, a referida dívi­da representada por 11 (onze) notas promissórias, cada uma no valor de Cz$ 335.634,60 (trezen­tos e trinta e cinco mil, seiscen­tos e trinta e quatro cruzados e sessenta centavos) equivalente a 210,00 OTN's à época de sua emissão, deverá ser paga, devi­damente acrescida de correção monetária, juros de 1% ao mês, multa contratual de 10%, tudo

conforme estabelecido na Cláusu­la IV da referida promessa de compra e venda" (fls. 28/29).

Consoante se pode notar, os ele­mentos necessários à constituição em mora do devedor encontram-se referidos na supra-aludida peça, com a expressa menção do valor equivalente em OTNS à época da emissão. Claro está que inexigível era, ao tempo da prévia interpela­ção, propor-se desde logo a discep­tação sobre a quaestio iuris rela­tiva ao critério novo de atualização do débito em virtude da extinção das mesmas OTNS.

Sem nenhuma razão, portanto, o julgado recorrido ao concluir pela ineficácia da interpelação no caso em exame. Contém ela, como veri­ficado, a clareza mínima necessária para os fins de constituição em mora do devedor. Tanto isto é certo que a ré - ora recorrida - se apressou em contranotificar a parte ex ad­versa, sustentando a solução inte­gral da dívida, assim como a efeti­vação das providências necessárias à pronta obtenção da escritura de­finitiva de venda e compra.

Sobreleva, como já assinalado, que o escopo perseguido pelo ato interpelatório é o de despertar a atenção do devedor em atraso, con­cedendo-lhe prazo para que cumpra as obrigações assumidas. Nesse sen­tido já decidiu esta C. Quarta Tur­ma em mais de uma oportunidade (REsp's nl!:i 2.235-SP e 14.306-0/SP, ambos de relatoria do em. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira; REsp n Q 9.602-SP, relator il. Ministro Athos Carneiro).

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Há, na espeCle, mais uma cir­cunstância a abonar a insurgência manifestada pela autora em seu apelo excepcional. O fato de não haver sido indicado o importe exa­to da dívida na interpelação prévia (porque dependente de operação aritmética) não foi o que constituiu o único motivo impeditivo da pur­gação da mora pela ré. Elajá havia ingressado anteriormente e sem êxito com uma ação cautelar de de­pósito e com uma ação ordinária contra a promitente-vendedora. N essa hipótese, este órgão fracioná­rio do Tribunal tem considerado até mesmo dispensável a efetivação da prévia interpelação (cfr. REsp's nll.> 26.830-RS, relator Ministro Cesar Asfor Rocha e 33.655-0/RS, relator Ministro Antônio Torreão Braz).

Nessas condições, tenho que o V. Acórdão, ao dar pela ineficácia da citada notificação, não só contrariou o art. 1Q do Dec.-Lei n Q 745, de 7.8.69, mas também dissentiu da orientação jurisprudencial imprimi­da pela Suprema Corte quando do

julgamento do RE 106.189-RJ, re­lator Ministro Octavio Gallotti, que versou sobre idêntica questão jurí­dica. Naquele precedente do Augus­to Pretório, as partes haviam pac­tuado a variação das parcelas tam­bém segundo escala móvel, propor­cionada pelos índices de reajusta­mento das ORTNS. Entendeu-se ali que tal fato em nada comprometia a liquidez do débito (voto do Sr. Mi­nistro-Relator), enquanto que, de outro lado, o voto prolatado pelo Sr. Ministro Néri da Silveira destaca­ra o objetivo da lei (Dec.-Lei n Q 745/ 69), que é o de despertar a atenção do devedor em mora, dando-lhe pra­zo para cumprimento da obrigação, sem qualquer exigência expressa (cfr. RTJ vol. 120, pág. 798).

3. Ante o exposto, conheço do re­curso por ambas as alíneas do per­missor constitucional e dou-lhe pro­vimento, a fim de que, afastada a carência, prossiga o Eg. Tribunal a quo no julgamento da apelação com o exame das demais questões.

É como voto.

388 R. sup. Trib. Just., Brasília, a. 10, (102): 271-388, fevereiro 1998.