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Qual o futuro da Espiritualidade?
Gilbraz Arago1
Resumo: Muitas religies, e o prprio cristianismo majoritrio no mundo, revestiram-se
de formalidade e distanciaram-se da experincia espiritual, necessitando hoje de uma
nova plataforma lgica para tematizar a espiritualidade e para oferecer o seu testemunho
espiritual ao mundo. A nossa reflexo, pois, buscar apresentar uma Abordagem
Integral do conhecimento, que associa tanto as crenas mais tradicionais das religies,
quanto os princpios culturais e cientficos modernos e ps-modernos, mostrando um
novo lugar para a religiosidade no mundo: o de uma espiritualidade que vai para alm
da religio formal e/ou se organiza por caminhos transreligiosos em dilogo com uma
cincia transdisciplinar.
Palavras-chave: Religies, Espiritualidade, Transdisciplinaridade.
Outro dia, um estudante de teologia na Catlica de Pernambuco me perguntou como se
tornar um mstico. Eu pensei que era brincadeira, mas acabei lhe dando uns conselhos:
faa silncio e respire direito em um cantinho todo dia, para colocas as coisas em
perspectiva e despertar uma atitude de venerao e ligao com o mistrio da realidade,
para cultivar fineza de esprito e leveza perante a vida: assim que nem os urubus, que
metabolizam a carnia porque voam alto e respiram oznio; medite sobre a tradio do
nosso povo, suas escrituras e a histria da Igreja, sobretudo dos santos, para aprender a
discernir e escolher com base na tradio: faa como a girafa, que enxerga longe mas
tem um grande corao; estude histria e cincia, mas estude mesmo e com esprito de
minhoca (ele estranhou um pouco!): porque a minhoca est sempre escavando o subsolo
e relacionando tneis, antes que a superfcie seja atingida. Quer dizer, no se contente
com as solues meramente visveis, faa esforo de ir s razes dos problemas, de
atingir uma lgica complexa e dialogal.
1 Doutor em Teologia. Professor e Pesquisador na UNICAP, onde trabalha no Programa de Ps-
graduao em Cincias da Religio. E-mail: [email protected]
mailto:[email protected]
O que eu vou falar agora vai nessa mesma linha, de situar um problema (nossa Igreja
catlica se esqueceu do Esprito e sua teologia perdeu em espiritualidade) e apontar uma
plataforma lgica (uma abordagem integral da realidade) pra gente comear a enfrentar
o desafio de relacionar as coisas. O nimo para tal empreitada vem da definio paulina
da vida crist: viver e andar segundo o Esprito. E Esprito no calmaria mas vendaval,
o mistrio presente em tudo e que tudo move para recriar vida, o vento forte que
desestrutura e cria o novo. Segundo o captulo 8 da Carta aos Romanos, verdadeiro
tratado de espiritualidade, o ser humano carnal aquele que est orientado em corpo e
alma morte, e o ser humano espiritual aquele que est orientado em corpo e alma
para a vida. O ser humano espiritual no aquele que busca a Deus afastado de sua
realidade, mas o que experimenta o divino na construo da vida e se une ao
transformadora do Esprito de Cristo no mundo.
De como nos perdemos do Esprito
Pergunte, contudo, a um cristo, quem o seu Deus, e o smbolo bsico da nossa f, a
Trindade Santa, que ritualmente lembrada cada vez que algum se benze, logo
desaparece da mente: fala-se de Deus no abstrato, at recordado como Criador do
Mundo; ou ento sobre Jesus, esse judeu Nosso Senhor ao menos no seu nascimento e
no seu padecimento, quase que sem nenhuma referncia sua misso e ao seu
seguimento. Mas, ao menos do Cristo Redentor, as pessoas se lembram. Agora, sobre
o Esprito, nada se sabe dizer, alm de que uma pomba... No entra na Imagem de
Deus mesmo. O povo acha difcil falar sobre a Terceira Pessoa da Santssima Trindade.
Perdeu-se o elemento experiencial-afetivo e o gracioso-criativo em nossa reflexo
teolgica e o povo anda perdido na sua reflexo sobre o Esprito... Menos quando o
percebe, s vezes, como doador da vida. Parece at que, feito o do antigo Israel, nosso
povo continua reconhecendo em Deus um poder do cu (vento ou fogo), absoluto e
livre, que insufla a Vida. Mas da a relacion-lo com o Criador e com o Redentor do
cristianismo... Da a relacion-lo com a criao material e a nossa ressurreio... Da a
traz-lo para a nossa vida de Igreja...
Mas no se deveria falar do Criador, sem ligao direta com o Esprito. Deus criou e
cria! cuida! gratuitamente o mundo para o seu amor, as criaturas todas existem e agem
possibilitadas por Deus. A ao humana, que organiza cultura para defender e criar vida,
, portanto, mediao para a ao de Deus, de sorte que as culturas todas devem ser
tomadas como locais da fala de Deus, dos sinais dos tempos, da atuao do Esprito
Santo. Por mais desfigurada que esteja, toda cultura tem a ver com o desejo de Deus,
deve-se considerar nela uma Palavra de Deus e algum nvel de f, de abertura
espiritual para a transcendncia. Tambm no se deveria tratar de Cristo, Filho de
Deus, sem relacion-lo com o Esprito Santo: so as duas mos do Pai. Se por um
lado a Sabedoria do Esprito a Palavra do Filho, da qual sempre se dispe a recordar
(cf. Jo 14, 26), a vitalidade do Filho a Liberdade e o Impulso do Esprito, com que
estabelece os desejos do Pai (cf. Jo 6,63). Mas quem que fala do Esprito? E como
que se fala de espiritualidade?
Nem se deveria tratar de Igreja sem relacion-la com o Esprito Santo: normalmente
pensamos na Igreja como uma mistura de poderes divinos (apresentados como
prolongamentos diretos imutveis dos poderes do Cristo) e de pecados ou de
fraquezas humanas dos seus ministros. Mas a Igreja feita por humanos mesmo o
Povo de Deus e por isso diferente do Cristo ao qual est unida pela fora e ao do
Esprito, que convoca esse novo Corpo de Cristo. De forma que os ministrios,
catequeses e liturgias da Igreja no derivam diretamente do Cristo e podem e devem
sempre se transformar, de modo a melhor sacramentalizar a misso do Esprito no
mundo. Devemos perceber, ao mesmo tempo, que a Igreja humana, no apenas em
suas fraquezas, mas, antes de tudo, nas foras humanas com as quais o Esprito vai
justamente encarnando o Governo de Deus na histria e na sociedade. Os nossos corpos
- e a nossa ao no mundo - no devem ser encarados como lama passageira: somos
templos do Esprito. Apesar de todas as fraquezas, podemos expressar o Esprito,
tomando conscincia da sua ao em toda a matria que evolui e se torna relacional e
amorosa, e sendo consequentes com essa ao em nossos relacionamentos econmico-
polticos, ertico-pedaggicos, artstico-cientficos. Tudo isso espiritual quando feito
com amor. Toda bondade e toda beleza no mundo so expresses da vida que o Esprito
sopra, Reinado de Deus, em todo canto.
A referncia Igreja no Credo apostlico feita precisamente no captulo do Esprito
Santo: Crs no Esprito Santo, (presente) na santa Igreja para a ressurreio da carne?.
Vejam bem o que diz o credo: o Esprito existe, especialmente na Igreja e atravs dela,
para espiritualizar e ressuscitar a carne, o mundo, os nossos corpos. Ele no contra a
nossa humanidade e sim a favor da nossa divinizao. Mas quem que fala do Esprito
hoje? E para qu que se fala muitas vezes de espiritualidade? Quando se fala em
esprito entre ns a ideia de algo substancial, porm, invisvel, capaz de vida
prpria, em oposio matria e, portanto, ao corpo. Essa atitude (pseudo) teolgica
afeta a antropologia religiosa, visto que divide o ser humano, criado integralmente
imagem e semelhana de Deus, numa entidade dupla, composta de corpo e alma,
destinado a transcender o mundo material e, portanto, o corpo, na direo de um outro
mundo, puramente espiritual. Acredita-se que quando as pessoas morrem, o esprito
ou alma sai do corpo e fica vagando por a at encontrar o seu lugar, nem sempre
definitivo, na economia do mundo sobrenatural.
Quando se aplica a essa metafsica popular o conceito cristo de salvao, a mensagem
do evangelho fica reduzida ordem salva a tua alma. No entram a dimenso da
sociedade e da poltica. No existe geralmente em nossa mstica a percepo da unidade
entre a forma material do humano e o divino e espiritual hlito de vida. Mas as
Escrituras nos mostram a pessoa de Jesus, o Cristo, na mais plena humanidade. Sua
ressurreio no a sobrevivncia de um esprito ou de uma alma, mas a
ressurreio do corpo. Depois de ressuscitado, Jesus aparece sempre para comer e
passear: vejam os Evangelhos. E se os nossos corpos so para a ressurreio, deve haver
neles as marcas da alegria criada por Deus. Os frutos do Esprito Santo, inclusive, so
amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, mansido, autodomnio (Gl
5, 22-23), justia e verdade (Ef 5,9). Coisas mais telricas e animadas no pode
haver!
Mas a tradio teolgica da Igreja latina no faz muito bem essas relaes com o
Esprito. Quando dizemos tradio, estamos tratando na verdade da tendncia
predominante at o Vaticano II e que no , alis, a mais tradicional ou originria do
cristianismo: reflete a situao de insero da Igreja no mundo poltico do Imprio
Romano, des