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QUADRINIZADA: A MULHER E AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS NA CONTEMPORANEIDADE Nataly Costa Fernandes Alves Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Escola de Belas Artes - EBA Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais - PPGAV [email protected] Produto da cultura de massa, denominada nona arte no mundo das artes, as histórias em quadrinhos (HQs) mobilizam cerca de 20 milhões de leitores brasileiros por mês, segundo dados divulgados pela Associação dos Cartunistas do Brasil (ACB) em 2018 (BRASIL). Nascidas das páginas de jornais no século XIX, as HQs desenvolveram, ao longo de sua existência, um mundo próprio com códigos bem definidos, criando o que Umberto Eco (2011) chamou de semântica dos quadrinhos. Através de convenções solidificadas a cada passar de década, as HQs criaram o seu próprio mundo artístico, que convenciona representações resistentes ao tempo graças às repetições de seus padrões. O conceito de convenção referido aqui é aquele visto em Howard Becker (1972), no qual as convenções são constituídas através de ações coordenadas pelos atores de um determinado mundo artístico. É nesse mundo artístico quadrinístico que se convencionou o homem como o herói protagonista, musculoso, altivo e poderoso. O personagem herói que referencia a masculinidade do leitor. Por sua vez, a mulher descrita pelas mãos dos quadrinistas, representa a feminilidade sensual, curvilínea e subserviente. Segundo o célebre e influente editor chefe da Marvel, Stan Lee (1922-2018), “Obviamente, não destacamos os músculos nas mulheres. Mesmo não sendo fraca, a mulher é desenhada para parecer mais delicada e suave, fazendo contraste com a versão masculina, muscular, angulosa” (LEE, 2014, p. 44). Segundo as instruções do manual, a mulher deve ser sempre menor que o homem nas HQs, exceto pelos seios. Embora essas orientações de Stan Lee para o desenho da personagem feminina tenham sido

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QUADRINIZADA:

A MULHER E AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS NA

CONTEMPORANEIDADE

Nataly Costa Fernandes Alves

Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ

Escola de Belas Artes - EBA

Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais - PPGAV

[email protected]

Produto da cultura de massa, denominada nona arte no mundo das artes, as

histórias em quadrinhos (HQs) mobilizam cerca de 20 milhões de leitores brasileiros

por mês, segundo dados divulgados pela Associação dos Cartunistas do Brasil (ACB)

em 2018 (BRASIL). Nascidas das páginas de jornais no século XIX, as HQs

desenvolveram, ao longo de sua existência, um mundo próprio com códigos bem

definidos, criando o que Umberto Eco (2011) chamou de semântica dos quadrinhos.

Através de convenções solidificadas a cada passar de década, as HQs criaram o seu

próprio mundo artístico, que convenciona representações resistentes ao tempo graças às

repetições de seus padrões. O conceito de convenção referido aqui é aquele visto em

Howard Becker (1972), no qual as convenções são constituídas através de ações

coordenadas pelos atores de um determinado mundo artístico.

É nesse mundo artístico quadrinístico que se convencionou o homem como o

herói protagonista, musculoso, altivo e poderoso. O personagem herói que referencia a

masculinidade do leitor. Por sua vez, a mulher descrita pelas mãos dos quadrinistas,

representa a feminilidade sensual, curvilínea e subserviente.

Segundo o célebre e influente editor chefe da Marvel, Stan Lee (1922-2018),

“Obviamente, não destacamos os músculos nas mulheres. Mesmo não sendo fraca, a

mulher é desenhada para parecer mais delicada e suave, fazendo contraste com a versão

masculina, muscular, angulosa” (LEE, 2014, p. 44). Segundo as instruções do manual, a

mulher deve ser sempre menor que o homem nas HQs, exceto pelos seios. Embora essas

orientações de Stan Lee para o desenho da personagem feminina tenham sido

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originalmente escritas em 1984, o manual “Como Desenhar Quadrinhos no Estilo

Marvel” (2014) foi traduzido e publicado no Brasil em 2014 e continua atuante como

guia para desenhistas de HQs.

Assim, as mulheres desenhadas nas histórias em quadrinhos são frutos de

paráfrases, conforme observou a historiadora Selma Regina Nunes Oliveira (2007) em

seu livro “Mulher ao Quadrado”. Esbeltas, curvilíneas, possuidoras de seios fartos e

empinados, com pernas longas e pés, que mesmo descalços parecem sempre estar

calçados de salto alto, essas mulheres se convertem, essencialmente, em adornos para as

páginas de HQs. Entre permanências e ressonâncias essas personagens seguem se

repetindo através de representações que ecoam os modelos desenhados desde o

primórdio da nona arte. Seja mocinha, heroína ou vilã, a personagem mulher está

subordinada às expectativas de feminilidade compulsória. Segundo Oliveira “As curvas

dos seios, da cintura e das nádegas são combinadas no formato ampulheta, e esse

encadeamento de ondulações é a própria representação do sexo e, portanto, da

feminilidade.” (OLIVEIRA, 2007, p. 153). A feminilidade bem demarcada nos

quadrinhos serve como oposição e afirmação à masculinidade do herói viril e do leitor

modelo – ainda presumido como homem branco e heterossexual. Por tal, as orientações

para o desenho do corpo da mulher quadrinística conservam características que pouco

mudaram nesses quase 200 anos de existência das HQs.

Norteado pelas reflexões quadrinísticas de Selma Regina Nunes Oliveira (2007),

o presente artigo propõe uma análise na representação da mulher nos quadrinhos

nacionais, independentes ou de pequenas editoras, publicados na segunda década do

século XXI. A pesquisa aqui apresentada foca nas poéticas de auto-referenciação e,

portanto, dá maior atenção às produções quadrinísticas feitas por mulheres, sobretudo as

afro-brasileiras. Desse modo, a auto-referenciação surge aqui como uma maneira de

entender de que forma a mulher representa a mulher nos quadrinhos nacionais. A fim de

melhor analisar a situação da mulher no ambiente das histórias em quadrinhos, partimos

do paradigma do feminismo interseccional, observando de que modo a quarta onda do

feminismo influenciou na criação das personagens estudadas.

Os objetos desta pesquisa são as personagens Manuela, da HQ “Domingo tem

Macarrão”, da quadrinista maranhense Dika Araújo (2018); Luzia, da HQ “Quando

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Você Foi Embora”, da quadrinista mineira Ana Cardoso (2018) e Manuela, da HQ

“Maré Alta” (2018), da quadrinista paulista Flávia Borges (2018). É válido ressaltar que

as quadrinistas apresentadas se autodeclaram negras. As personagens analisadas

também são negras.

O presente estudo levanta o seguinte questionamento: A quarta onda do

feminismo influenciou na representação das personagens mulheres desenhadas por

quadrinistas mulheres nas HQs brasileiras independentes ou de pequenas editoras? Com

o objetivo que detectar as possíveis influências do feminismo interseccional, levantamos

a hipótese de que o conceito de interseccionalidade possibilitou a criação de

personagens que não só fogem dos padrões comumente encontrados nas HQs como

lançam luz a desenhos de corpos antes invisibilizados.

A abordagem metodológica aplicada neste artigo é qualitativa, porém, não deixa

de munir-se de dados quantitativos que embasem as reflexões apresentadas. O

procedimento metodológico aplicado nos desenhos das personagens é o da cultura

visual, campo de estudo de caráter multidisciplinar que foca no universo das imagens e,

por consequência, das representações. A teoria da cultura visual aplicada aqui não

exclui, no entanto, os apontamentos advindos da teoria da cultura de massa. A

finalidade dessa pesquisa é básica estratégica, uma vez que ela propõe recomendações

para a produção de quadrinhos mais plurais no que tange a representação das mulheres.

Para o embasamento teórico quadrinístico são aplicadas as reflexões da

historiadora Selma Regina Nunes Oliveira (2007) em seu livro “Mulher ao Quadrado -

As Representações Femininas nos Quadrinhos Norte-Americanos: Permanências e

Ressonâncias (1895-1990)”. Os axiomas da pesquisadora e ativista social estadunidense

Kimberlé Crenshaw (1989) a respeito da interseccionalidade embasam o artigo quando

o assunto são as questões de opressão de gênero, raça e seus entrecruzamentos. Por fim,

as teorias do filósofo e semiólogo italiano Umberto Eco dão suporte quando o tema é a

cultura de massa. Por sua diversidade de campos de estudos aplicados – como a

História, a Comunicação, a Filosofia, a Antropologia – a pesquisa assume caráter

multidisciplinar.

Apresentados os objetos de interesse e os métodos de pesquisa, este artigo

propõe uma reflexão sobre as questões das HQs enquanto arte e cultura de massa; as

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questões da mulher quadrinista e por fim, as questões da interseccionalidade. Para uma

reflexão em relação à presença da mulher no universo das HQs, propõe-se

primeiramente fazer uma reflexão sobre os conceitos de Arte, HQ e Cultura de Massa,

com o intuito de verificar as inconstâncias, os desdobramentos e as contradições

encontradas nas definições desses conceitos. Verificadas as possíveis indefinições dos

conceitos supracitados, pondera-se a possibilidade de se construir representações

polissêmicas no interior do mundo artístico quadrinístico, visto que, se o próprio

conceito que define HQ é maleável, é possível tornar também maleáveis suas

convenções representacionais da figura da mulher.

Em seu livro “What Art Is”, o filósofo Arthur Danto (2013) retornou a

inquietante pergunta “o que é arte?”, e desse modo abordou as tentativas de se criar um

conceito universal para essa categoria. Para outros filósofos como Morris Weitz, por

exemplo, arte ainda é um conceito aberto e passível de contradições:

Nenhum dos critérios de reconhecimento é um critério definidor, nenhum

deles é necessário ou suficiente, uma vez que podemos afirmar que algo é

uma obra de arte negando ao mesmo tempo qualquer uma dessas condições,

podemos mesmo negar aquela que tradicionalmente se tomou como básica,

nomeadamente, a condição de ser um artefacto. (WEITZ, 1956, p. 8)

Possuindo caráter transgressor, a arte, como vista em Weitz (1956), pode

assumir diversas faces, assim, uma obra de arte pode ser considerada como tal em uma

cultura e não ser reconhecida como arte em outra. O tema “o que arte é?”, dialoga com a

questão “as histórias em quadrinhos são arte?”, que por muito tempo permeou os

pensamentos dos estudiosos do mundo artístico. Houve um momento na história em que

as HQs foram relegadas ao título de kitsch, sendo distanciadas das artes ditas nobres,

para então, posteriormente, serem defendidas por autores como Umberto Eco, conforme

vemos em seu livro “Apocalípticos e Integrados” (2011). Hoje essa indagação já não

suscita tanta discussão. Um exemplo do fim dessa discussão é o espaço na lista das artes

conquistado pelas histórias em quadrinhos no século passado, ganhando o posto de

Nona Arte. No entanto, foi-se a dúvida sobre HQs serem ou não arte e ficou a dúvida do

que seriam exatamente as HQs.

Para o pesquisador de HQs Nobu Chinen nenhuma das tentativas de definir o

que são as histórias em quadrinhos foram bem-sucedidas. Arte sequencial é uma

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definição largamente utilizada, segundo Chinen (2011, p. 7). Mas não é o cinema

também arte sequencial? “Narrativas sequenciais desenhadas” também falha segundo

Chinen, porque os desenhos animados também se encaixariam nessa definição (2011, p.

7). Scott McCloud, influente pesquisador dos quadrinhos tentou, em seu livro

“Desvendando os Quadrinhos”, uma definição nem um pouco curta: “Imagens

pictóricas ou de outra espécie justapostas em uma sequência deliberada, com a intenção

de transmitir informações ou produzir uma reação estética no espectador/leitor”

(MCCLOUD apud CHINEN, 2011, p. 7), mas ele também falhou, segundo Chinen, já

que as fotonovelas se encaixariam perfeitamente nessa definição e elas não são

quadrinhos (2011, p. 7). Por fim, em seu livro “Linguagem HQ”, Chinen tenta dar a sua

contribuição ao escrever: “O importante é que todos [os quadrinhos], sem exceção,

contêm uma narrativa, e é isso que todo autor de quadrinhos precisa ter em mente”

(2011, p. 7).

Assim como a contradição e a amplitude do conceito de arte e a maleabilidade e

incerteza do conceito de HQ, o conceito de Cultura de Massa também apresentou

inconsistência, segundo alguns autores, chegando a ser considerado genérico, ambíguo e

até mesmo impróprio pelo teórico Umberto Eco (2011, p. 8). Contudo, é esse o conceito

que norteia sua obra “Apocalípticos e Integrados”, uma coletânea com diversos ensaios

do autor. Nascida na “presença das massas” (ECO, 2011, p. 8) a Cultura de Massa

dispõe abundantes quantidades de imagens, sons e objetos a todos e a todo o momento.

Afirmando a Cultura de Massa como nosso universo, Eco a caracterizou com

inexorável:

Ninguém foge a essas condições, nem mesmo o virtuoso, que, indignado com

a natureza inumana desse universo de informação, transmite o seu protesto

através dos canais de comunicação de massa, pelas colunas do grande diário,

ou nas páginas do volume em paperback, impresso em linotipo e difundido

nos quiosques das estações. (ECO, 2011, p. 11)

Eco se aprofunda ainda ao propor que a própria natureza imprecisa do conceito

de Cultura de Massa deriva da imprecisão da definição do que é Cultura. Assim, para o

autor, a Cultura de Massa representa um hibridismo onde não se tem certeza nem do que

seria cultura e nem do que seria massa (ECO, 2011, p. 15).

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Considerando os apontamentos do antropólogo sueco Ulf Hannerz (1997) em

seu artigo “Fluxos, Fronteiras, Híbridos: Palavras-chaves da Antropologia

Transnacional”, é possível pensar a Cultura como possuidora de fluxos que perpassam

as diversas culturas, se deslocando no tempo, alterando o espaço, sendo capazes de

gerar confusões e inovações (1997 p. 15). Ultrapassados os limites – as

descontinuidades e obstáculos – que se desenham às margens dos fluxos culturais,

observa-se a ocorrência dos hibridismos, onde as culturas se fundem numa amalgama de

experiências e objetos que desafia as tentativas de defini-las completamente.

No livro “Problemas de Gênero - Feminismo e Subversão de Identidade”, a

filósofa estadunidense pós-estruturalista Judith Butler (1990) aponta o caráter

performático do gênero denunciando-o como um produto cultural e não natural. Assim,

a autora afirma o gênero como um constructo cultural, sendo a mulher ou o homem um

processo, um devir, uma fantasia, passível de reformulações. O intuito da crítica de

Butler, porém, não é negar a política representacional, mas sim “[...] formular, no

interior dessa estrutura constituída, uma crítica às categorias de identidades” (BUTLER,

1990, p. 22).

Em uma sociedade como a brasileira, permeada pela cultura patriarcal e pelo

racismo, ainda é necessário que se afirmem representações e identidades, para que se

tracem estratégias de enfrentamento às opressões de gênero e de raça. Contudo, partir

do pressuposto de que a feminilidade é uma atuação cultural, permite que se desconfie

das convenções que estruturam e normatizam a figura da mulher.

Quando em 1851 a abolicionista negra, escritora e ativista dos direitos das

mulheres Sojourner Truth (1797-1883) fez seu célebre discurso “Não sou eu uma

mulher?” ela lançou luz às diferenças entre ser uma mulher negra e ser uma mulher

branca nos EUA do século XIX. Para os homens resistentes ao sufrágio feminino, as

mulheres não deveriam votar por não serem capazes sequer de subir em uma carruagem

sem que fossem auxiliadas por eles. Logo, segundo os mesmos, o mundo da política

seria muito duro para as mulheres. Em resposta Truth proferiu seu notável discurso:

Aqueles homens ali dizem que as mulheres precisam de ajuda para subir em

carruagens, serem levantadas sobre valas e ter o melhor lugar onde quer que

estejam. Ninguém jamais me ajudou a subir em carruagens, ou a saltar sobre

poças de lama, ou me deu qualquer “melhor lugar”! E não sou uma mulher?

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Olhem para mim! Olhem para meus braços! Arei a terra, plantei, juntei a

colheita nos celeiros, e nenhum homem podia se igualar a mim! E não sou eu

uma mulher? Eu podia trabalhar tanto e comer tanto quanto um homem –

quando eu conseguia comida – e suportar o chicote também! E não sou uma

mulher? Eu pari treze filhos e vi a maioria deles ser vendida para a

escravidão, e quando eu chorei meu luto de mãe, ninguém, a não ser Jesus,

me ouviu! E não sou uma mulher? (TRUTH, 1851)

Ponderando as palavras de Truth é possível concluir que características

atribuídas à natureza feminina, como a fragilidade e a inabilidade, não tinha a ver com a

natureza do corpo da mulher, mas sim com uma construção cultural onde a mulher é

frágil e inapta. Vale ressaltar que a mulher frágil era, especificamente, a mulher branca,

pois à mulher negra não eram reservados quaisquer tratos de amabilidade.

Quando transpassada pela opressão de raça, a feminilidade é esvaziada de suas

características tidas como naturais. A delicadeza e a fragilidade deixam de ser

consideradas inatas quando se trata da mulher negra. Desse modo, uma vez revelado o

caráter performático da feminilidade, é possível duvidar do conceito que define o que é

ser mulher. É nessa possibilidade de desconfiança, que se torna possível pensar uma

mulher quadrinística que foge às regras de feminilidade compulsória.

Assim, em 1851, Truth mostrou como o conceito de mulher era branco. Em

1988, no texto “O Corpo e a Reprodução da Feminilidade: Uma Apropriação Feminista

de Foucault”, Susan Bordo (1988) mostrou como o conceito de mulher é gordofóbico.

Atualmente, o lesbofeminismo mostra como o conceito de mulher é heteronormativo, e

assim seguem-se os vários apontamentos que demonstram a inconsistência do conceito

de feminilidade.

Baseando-se no discurso de Truth e nas reflexões de Danto, Chinen, Eco,

Hannerz e Butler, é possível desconfiar dos conceitos e definições que se mostrem

cristalizados. Então, uma vez que seja possível suspeitar dos conceitos que representam

todo um mundo artístico é plausível suspeitar também de suas convenções, inclusive

aquelas que definem os corpos e as narrativas das mulheres nas HQs.

Embora em menor número e raramente gozando de visibilidade, as mulheres

produzem HQs desde o século XIX. Trina Robbins (2013), uma quadrinista pioneira no

movimento underground comix nos EUA, defendeu essa tese em seu ensaio “Women in

Comics - An Introductory Guide”. De acordo com Robbins havia uma quantidade

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significante de mulheres estadunidenses desenhando quadrinhos ainda no início do

século XX (2013. p. 1). Rose O’Neill desenhava quadrinhos já em 1896; Dale Messick

foi a criadora do bem sucedido quadrinho Brenda Starr, de 1940; Tarpé Mills foi a

criadora da super-heroína Miss Fury em 1941 e, por fim, Jackie Ormes foi a primeira

mulher negra a desenhar uma história em quadrinhos em um jornal sindicalizado, em

1937. Rose O’Neill conseguiu um feito excepcional ao se tornar uma quadrinista de

destaque no começo do século XX. Entretanto, apesar do sucesso de O’Neill, o mundo

das HQs continuou avesso às mulheres, o que levou Dalia Messick e June Tarpe Mills a

usarem pseudônimos masculinos para ingressarem no mercado de HQ daquela época.

Dalia Messick tornou-se Dale Messick, June Tarpe Mills tornou-se Tarpé Mills. No

Brasil a caricaturista Nair de Teffé também recorreu a um pseudônimo aparentemente

masculino a fim de publicar suas charges provocativas. Nair então se tornou Rian.

Os nomes masculinos atuavam como uma solução para essas mulheres

ingressarem no mundo das histórias em quadrinhos. O nome masculino era um

validador, que possibilitava a publicação de obras, que do contrário jamais seriam vistas

pelo grande público.

Jackie Ormes, por sua vez, correu o risco de ser excluída desse mundo artístico

quadrinístico por experienciar ao mesmo tempo o intercruzamento de dois preconceitos:

o de gênero e o de raça. Felizmente essa exclusão não ocorreu, e Ormes publicou

quadrinhos em dois jornais sindicalizados de sua época: o Pittsburgh Courier e o

Chicago Defender. No entanto, a publicação de suas tirinhas só foi possível através

desses jornais, porque eram dirigidos à população afrodescendente dos EUA.

Porém, ainda que algumas dessas artistas tenham quebrado as barreiras sexistas

e racistas do mundo das HQs, ainda se nota uma aparente escassez de mulheres nesse

mundo artístico em específico. Tomando como exemplo um livro de mais de 500

páginas, a “Enciclopédia dos Quadrinhos” de Goida e André Kleinert (2014), é possível

notar a disparidade enorme entre a quantidade de homens citados e a quantidade de

mulheres citadas. Elas não chegam sequer a um terço dos nomes mencionados ali. Ao

fazer referência a quadrinista italiana Lina Buffolente, Goida e André Kleinert

comentam brevemente a dificuldade que é encontrar mulheres quadrinistas (2014, p.

72). É possível que essa escassez se deva tanto às questões sexistas, o que faria as

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mulheres não conseguirem êxito ao tentar ingressar no mundo das HQs, quanto as

questões de invisibilidade, onde algumas quadrinistas usaram pseudônimos masculinos

ou inevitavelmente não alcançavam notoriedade nesse espaço artístico ainda engessado

por preconceitos.

Foi a historiadora estadunidense Linda Nochlin (1971) quem discutiu em seu

ensaio “Por que não houve grandes mulheres artistas?” a questão do conceito de

genialidade. Segundo Nochlin (1971) o conceito de gênio artístico foi moldado

majoritariamente sob a ótica androcêntrica, portanto, tentar discutir genialidade

feminina ou masculina é debater, inevitavelmente, sob os termos androcêntricos do

conceito de gênio (NOCHLIN, 1971, p. 8). Esforçar-se para listar as mulheres que

quebraram as barreiras sexistas, seria também submeter-se a um julgamento de

qualidade onde o validador ainda é padronizado conforme a ótica masculina. Esse

apontamento de Nochlin, ainda que feito em 1971, é facilmente observado na

contemporaneidade. Focando no mundo das HQs, vale citar três exemplos onde sexismo

e/ou invisibilidade ocorreram: o caso do Festival de Angoulême, em 2016; as listas que

elencam os grandes quadrinistas e o caso da “Graphic MSP Tina - Respeito” (2019), de

Fefê Torquato, em 2019.

Em 2016 aconteceu a quadragésima terceira edição do Festival de Angoulême,

estimado evento de HQs. Extremamente respeitado no meio quadrinístico, o festival foi

atingido por uma polêmica: apenas quadrinistas homens haviam sido indicados ao

prêmio máximo daquela edição e isso havia gerado um boicote fomentado pelo grupo

BD Égalité (ativistas pela igualdade de gênero nas histórias em quadrinhos). Vários

artistas indicados ao prêmio aderiram ao boicote, entre eles o cartunista francês Sattouf,

ex-Charlie Hebdo e o quadrinista estadunidense Chris Ware. Na ocasião, a ausência de

mulheres na indicação, causou indignação até em figuras políticas, como a da então

Ministra da Cultura da França, Fleur Pellerin que explanou: “Il existe des dessinatrices

de talent et ce serait injuste, immoral, qu'elles soient mises de côté en raison de leur

sexe.” (PELLERIN, 2016), segundo a publicação “Angoulême 2016: pluie, polémique et

bousculade” do jornal Le Figaro on-line. Conforme consta na lista, de todos os

vencedores do Grand Prix do Festival de Angoulême, até 2019, apenas duas mulheres

foram contempladas com a premiação máxima: a francesa Florence Cestac, em 2000, e

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a japonesa Rumiko Takahashi, em 2019. A também francesa Claire Bretécher recebeu

uma variação do grande prémio em 1983, o chamado Grand Prix Anniversary. O

Grands Prix do festival vem premiando quadrinistas desde 1974.

A invisibilidade que assola obras produzidas por mulheres, também é observada

nas listas que elencam os ditos bons artistas. Em 2017, a revista “Super Interessante

publicou uma matéria listando os 13 quadrinistas brasileiros com maior sucesso no

exterior”. Dentre eles, nenhum era mulher. Nem mesmo a experiente Adriana Melo,

com suas inúmeras passagens pela gigante DC e pela Editora Titan, foi citada. Em outra

lista, também da Super Interessante, intitulada “10 Quadrinistas Brasileiros para Ler

Agora”, apenas Sirlene Barbosa (2016), roteirista da HQ “Carolina”, foi brevemente

citada. Dos quadrinistas listados na matéria “Treze Quadrinistas Brasileiros Que Você

Precisa Conhecer”, feita pela revista Galileu em 2016, apenas três artistas eram

mulheres e dentre essas três mulheres nenhuma era negra.

O terceiro caso a ser exposto aqui é o da HQ Graphic MSP “Tina - Respeito”,

fruto do selo MSP, de Maurício de Souza. “Tina - Respeito” foi escrita e desenhada pela

catarinense Fefê Torquato (2019). A polêmica que envolveu a revista começou antes

mesmo da mesma ser lançada. Tão logo o editor Sidney Gusman publicou a capa da

edição, vieram as críticas que atacavam o traço da desenhista Torquato, reclamando da

falta de sensualidade na personagem. Através das redes sociais, leitores de HQs se

mostraram inconformados com as formas da personagem, com sua postura e com suas

roupas. Culparam o movimento feminista por Tina não atender mais a expectativa de

feminilidade e sensualidade. Abordando um tema pouco retratado nas HQs, o do

assédio sexual no trabalho, “Tina - Respeito” trouxe uma reflexão sobre a realidade de

muitas mulheres. Vale citar que, segundo pesquisa do Instituto de Pesquisa Datafolha

em 2018, 42 % das mulheres brasileiras declaram terem sido vítimas de assédio sexual.

Ainda com um longo percurso a percorrer para se tornar mais inclusivo, o

mundo das HQs ainda é palco de confrontos entre as representações engessadas e as

novas significações e abordagens propostas. É nesse cenário, onde até a mulher branca

ainda encontra dificuldade para se afirmar, que as mulheres negras se veem duplamente

afetadas. Portanto, nas observações adiante, o mundo das HQs é analisado conforme a

ótica da interseccionalidade.

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Em 1984 a antropóloga, filósofa e intelectual belo-horizontina Lélia Gonzales já

denunciava o duplo fenômeno do racismo e do sexismo dirigido à mulher negra. Em seu

artigo “Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira”, Gonzalez (1984) assume seu lugar de

fala como mulher negra e denuncia a naturalização do racismo velado pelo mito da

democracia racial brasileira. Ainda que o conceito de interseccionalidade ainda não

tivesse sido cunhado naquela época, era dele que Gonzalez falava ao denunciar a dupla

opressão vivida pela mulher negra. Nesse país, crente de sua democracia racial, a

afrodescendente era vista apenas como a “[...] cozinheira, faxineira, servente, trocadora

de ônibus ou prostituta.” (GONZALEZ, 1984, p. 226).

Embora já fosse apontado por ativistas dos direitos das mulheres negras antes de

receber esse nome, o conceito de interseccionalidade só passou a ser chamado dessa

forma a partir do artigo “Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black

Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist

Politics” escrito pela pesquisadora e ativista estadunidense Kimberlé Crenshaw (1989).

No texto, Crenshaw usa os exemplos de casos de afrodescendentes que ao denunciarem

o racismo e o sexismo de empresas como a General Motors Corp. tiveram seus pleitos

indeferidos pelo fato de as cortes estadunidenses serem incapazes de reconhecerem a

junção do sexismo e do racismo (CRENSHAW, 1989, p. 141). Quando aplicada ao

mundo das HQs, a interseccionalidade possibilita a observação de detalhes como a

ausência de mulheres negras nas listas dos grandes desenhistas brasileiros, a escassez de

personagens negras protagonistas, ou a estereotipização da afrodescendente.

Ainda que existam em pequeno número, e que só atualmente algumas

quadrinistas negras tenham alcançado alguma notoriedade no mundo das HQs

nacionais, essas artistas autodeclaradas afrodescendentes, têm aparecido cada vez mais

na internet. Poderoso instrumento da quarta onda do feminismo, as redes sociais

possibilitam a autonomia de seus usuários dando voz e visibilidade a grupos antes

relegados a invisibilidade. Os grupos de financiamento coletivo, como o Catarse, e a

possibilidade de imprimir e distribuir HQs de forma autônoma, são outros facilitadores

que contribuem para a divulgação de quadrinhos feitos por pessoas distantes do

mercado mainstream, como as mulheres negras. É nesse cenário que mulheres jovens,

como as quadrinistas Ana Cardoso, Dika Araújo e Flávia Borges, despontam com suas

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artes, que representam as mulheres negras como protagonistas não estereotipadas. A

seguir, estão algumas considerações feitas por essas quadrinistas em entrevista

concedida a autora deste artigo no ano de 2018.

Figura 1: À esquerda, Luzia, de Cardoso; no meio Manuela, de Araújo; à direita Manuela, de Borges.

Fontes: “Quando Você foi Embora” (2018), “Domingo tem Macarrão” (2018), “Maré Alta” (2018).

A quadrinista mineira Ana Flávia Cardoso (nascida em 1987) é formada pela

Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Artista gráfica, ilustradora, sócia-

diretora do Estúdio e Escola de Desenho Black Inc, em Belo Horizonte, ela é autora da

HQ “Quando Você Foi Embora” (2018). Para Ana Cardoso a mulher negra ainda é

apresentada de forma estereotipada nas HQs. Segundo a quadrinista, esse problema de

representatividade se deve ao baixo número de artistas negras e negros no mercado das

HQs. Apesar de estar inserida no meio quadrinístico e ter relativo êxito como artista,

Cardoso acredita que esse espaço ainda carrega características sexistas, elitistas e

eurocêntricas. Sua personagem, Luzia, é uma jovem mulher negra que trabalha como

confeiteira e vive sozinha em uma zona urbanizada. Desenhada no estilo cartoon, essa

protagonista tem a pele escura, nariz largo, cabelo cheio e lábios grossos. Seu corpo não

é curvilíneo e tão pouco tem formato em ampulheta. Luzia é retratada como uma pessoa

dinâmica, empenhada no trabalho, que faz uso de bicicleta para se locomover pela

cidade, tem afinidade com animais e é cercada de amigos. Porém, a questão que se

destaca em sua narrativa é o êxito intelectual, pois durante o decorrer de sua história, a

personagem recebe uma bolsa de estudos para instruir-se em outro país. O sucesso da

personagem na narrativa suscita um discurso empoderador. Não se trata apenas de uma

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mulher negra independente, trata-se também de uma afrodescendente com êxito

intelectual e profissional. E isso, por si só, é uma demonstração de empoderamento.

A ilustradora e quadrinista maranhense Diane Araújo (nascida em 1993),

conhecida no meio artístico como Dika Araújo, é formada em Design Gráfico pela

Universidade Estadual Paulista (Unesp). Como quadrinista ela desenhou e arte-finalizou

a HQ “Quimera” (2016), do extinto selo Pagu Comics, participou da produção da HQ

“Amor em Quadrinhos” (2017) e é autora do quadrinho “Domingo tem Macarrão”

(2018), publicado na coetânea de histórias românticas lésbicas “Melaço” (2018).

Quando questionada acerca da representação da mulher negra nos quadrinhos, Dika,

assim com Ana Cardoso, considera as representações insuficientes, pois quando é

representada, essa mulher é construída através da ótica de um homem branco. Ela

pondera que, nessas representações feitas sob a ótica androcêntrica branca, a mulher

negra raramente tem pele retinta e geralmente é hipersexualizada. Porém, ela acredita

que as recentes ondas de problematização possam frear a constante enxurrada de

imagens que representam mulheres brasileiras como objetos. A personagem Manuela,

de Dika Araújo, é uma jovem mãe solo, lésbica, que mora com sua mãe e sua filha e

está começando um novo relacionamento amoroso. Ela tem cabelos levemente

cacheados, nariz largo e arrebitado, e pele negra. A inovação no desenho de Manuela

acontece na representação da mulher negra corpulenta. Com formas arredondadas,

braços grossos e volume na região abdominal, ela representa as formas corporais de

grande parte das mulheres brasileiras. Manuela é apresentada como uma jovem agitada,

bem humorada e com forte aspiração familiar. No papel de mãe solo Manuela

representa uma parcela considerável de mães brasileiras.

A quadrinista e ilustradora freelancer paulistana Flávia Borges (nascida em

1996), também conhecida com Breeze Spacegirl no meio virtual, estreou no mundo dos

quadrinhos com a HQ “Maré Alta” (2018). Para Borges, embora haja avanços no

tocante à representação da mulher negra nas HQs, ainda há um longo percurso a ser

percorrido para que a afrodescendente possa experienciar alguma paridade

representacional. A artista acredita que esse problema decorre do senso comum de que

mulheres, principalmente as negras, não consomem quadrinhos. Sua personagem,

Manuela, apelidada Manu, é apresentada como uma jovem lésbica, negra e corpulenta.

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Seu cabelo, de cor preta, é farto e está sempre solto. Seu nariz é largo, sua pele é

colorida num tom de marrom levemente avermelhado. Ela possui, ainda, manchas de

concentração de melanina nos cotovelos. Assim como a Manuela de “Domingo tem

Macarrão” (2018), a Manu de “Maré Alta” (2018) é ágil, animada e sorridente. Tendo

seu corpo e roupas coloridos em tons quentes, essa personagem se destaca nas páginas

de tons frios dessa HQ que aborda a depressão.

Cada uma das personagens apresentadas foge às convenções representacionais

comuns nos corpos e narrativas das mulheres quadrinizadas. Tanto Dika Araújo quanto

Flávia Borges optaram por representar personagens protagonistas gordas, que se

distanciam da esbelteza compulsória observada nas HQs em geral. Já Ana Cardoso

optou por representar uma mulher negra com êxito profissional e intelectual. Em um

produto da cultura de massa, que no começo do século XX ainda representava

afrodescendentes com ares de blackface (rostos pintados de preto, olhos esbugalhados e

lábios enormes e vermelhos), e que ainda os descrevia como sendo, em sua maioria,

malandros preguiçosos, coadjuvantes ou vilões, as artes das quadrinistas aqui

apresentadas representam a construção de novas significâncias do negro nas HQs.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A quarta onda do feminismo, iniciada no começo do século XXI, foi

impulsionada pela popularização das redes sociais, como o Facebook (criado em 2004),

e trouxe consigo maior divulgação dos diferentes feminismos, como o feminismo negro

e o feminismo interseccional. Nesse cenário de nova efervescência do movimento,

difundiu-se o discurso de empoderamento que chegou até quadrinistas como Ana

Cardoso, Dika Araújo e Flávia Borges. Quando essas quadrinistas negras desenham e

escrevem mulheres também negras, elas fazem uma auto-referenciação que afasta suas

personagens dos estereótipos, dando-lhes, além disso, o protagonismo. Entretanto, para

que tais mudanças tenham ocorrido tanto na sociedade quanto no mundo específico das

HQs, convenções foram quebradas e conceitos foram questionados. Selma Regina

Nunes Oliveira, ao analisar as paráfrases observadas nas HQs, postulou a polissemia

como aquela que “[...] traz o deslocamento e a ruptura de processos de significação.”

(OLIVEIRA, 2007, p. 183). Desse modo, de forma indireta ou direta, são essas

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desestabilizações das significâncias, das convenções, e dos conceitos que se convertem

nos mecanismos que movimentam as representações em direção às mudanças.

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