puniÇÃo, retribuiÇÃo e comunicaÇÃo: contributo … · arrependimento, a reforma e a...

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1 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE DIREITO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS CRIMINAIS MESTRADO EM CIÊNCIAS CRIMINAIS DANIEL HENRIQUE SALDANHA CAVALCANTE PUNIÇÃO, RETRIBUIÇÃO E COMUNICAÇÃO: CONTRIBUTO AO ESTUDO DA TEORIA DA PENA CRIMINAL Porto Alegre 2011

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    PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE DIREITO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS CRIMINAIS MESTRADO EM CINCIAS CRIMINAIS

    DANIEL HENRIQUE SALDANHA CAVALCANTE

    PUNIO, RETRIBUIO E COMUNICAO: CONTRIBUTO AO ESTUDO DA TEORIA DA PENA

    CRIMINAL

    Porto Alegre

    2011

  • 2

    DANIEL HENRIQUE SALDANHA CAVALCANTE

    PUNIO, RETRIBUIO E COMUNICAO: CONTRIBUTO AO ESTUDO DA TEORIA DA PENA

    CRIMINAL

    Dissertao apresentada como requisito parcial para a obteno do grau de Mestre, pelo Programa de Ps-Graduao em Cincias Criminais da Faculdade de Direito da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul.

    Orientador: Prof. Dr. Fabio Roberto DAvila

    Porto Alegre

    2011

  • 3

    Ao meu tio, Luiz Olavo Motta Saldanha, o Maria, tambm conhecido como o homem mais bonito do Alegrete.

    minha v, Lula Motta Saldanha. Na casa do Pai h muitas moradas,

    e estou certo que ela reside em uma delas. Meu bisav, Alfredo Motta, na ocasio da morte de sua esposa, Luciana Theodora Motta,

    escreveu estas palavras, que agora dedico para minha v:

    Viver sem aquela a quem ama rolar sobre a terra j sem norte

    cumprir as leis de nosso Deus Desejando sem temor que venha a morte

    minha me, Lgia Saldanha Cavalcante, cuja bondade e retido so

    atestadas por todas as aes de sua vida. Para voc, me, queria dedicar palavras de conforto, mas no as tenho.

  • 4

    RESUMO

    O presente trabalho, vinculado Linha de Pesquisa Sistemas Jurdico-

    Penais Contemporneos, tem por objetivo analisar e estabelecer as bases para a

    compreenso do problema da punio criminal. Para tanto, pretende-se buscar um novo

    olhar sobre o tema, historicamente divido entre teorias preventivas e retributivas. Em

    primeiro lugar, busca-se o rigorismo nos conceitos trabalhados, assim evitando equvocos na

    anlise do objeto em questo. Em segundo lugar, analisam-se as teorias retributivas

    oriundas da common law, dentre as quais desponta a teoria comunicativa de Duff, estudada

    no terceiro captulo.

    Palavras-chave: punio criminal; retribuio negativa; retribuio positiva; teorias

    preventivas; teorias mistas; consequencialismo e no-consequencialismo; merecimento;

    teorias comunicativas; penitncia secular; arrependimento.

  • 5

    ABSTRACT

    This work, linked to the Research Line of Legal-Penal Contemporary

    Systems, aims to examine and establish the basis for understanding the problem of criminal

    punishment. To this end, intends to seek a new perspective on the subject, historically

    divided between preventive and retributive theories. Firstly, seeks to be rigorist in the

    concepts used, thus avoiding mistakes in the analysis of the object in question. Secondly,

    analyzes the retributive theories derived of the common law, among which stands out Duff's

    communicative theory, studied in the third chapter.

    Key-words: criminal punishment; negative retribution; positive retribution; preventive

    theories; mixed theories; consequentialism and non-consequentialism; desert; secular

    penance; repentance.

  • 6

    SUMRIO

    INTRODUO................................................................................................................... 08

    CAPTULO I BREVES APONTAMENTOS EM RELAO S TEORIAS PREVENTIVAS, MISTAS E RETRIBUTIVAS (NEGATIVAS).............................................................................. 10

    1.1 CONSEQUENCIALISMO E ANLISE DAS TEORIAS MISTAS (ROXIN)........................... 10

    1.2 A RETRIBUIO NEGATIVA E POSITIVA, DOIS EQUVOCOS E CARATERSTICAS GERAIS............................................................................................................................ 19

    1.2.1 Kant, o paradigma?........................................................................................... 25

    1.2.2 Neorretribucionismo de fundamento onto-antropolgico............................... 28

    CAPTULO II - AS TEORIAS RETRIBUTIVAS (POSITIVAS) CONTEMPORNEAS................... 32

    2.1 PUNIO COMO EQUIDADE (FAIRNESS)............................................................... 32

    2.1.1 Coero, autonomia e liberdade...................................................................... 34

    2.1.2 Crtica................................................................................................................ 35

    2.1.3 Formulao atual.............................................................................................. 37

    2.1.4 Consideraes finais......................................................................................... 39

    2.2 TEORIA PATERNALSTICA DE PUNIO E PUNIO COMO EDUCAO MORAL...... 41

    2.2.1 Crtica................................................................................................................ 47

    2.2.2 Consideraes finais......................................................................................... 51

    CAPTULO III - PUNIO, COMUNICAO E COMUNIDADE: A PERSPECTIVA DE DUFF... 53

    3.1 COMUNIDADE POLTICA........................................................................................... 53

    3.2 CENSURA E TRATAMENTO SEVERO (HARD TREATMENT).................................... 62

    3.2.1 Explicao de von Hirsch (expressionismo extrnseco)..................................... 65

    3.2.2 Como falar com as paredes? (expressionismo intrnseco)................................ 67

    3.2.3 Recapitulando................................................................................................... 70

    3.2.4 Prejuzos, erros (harms and wrongs) e a censura.......................................... 72

    3.3 PUNIO COMO PENITNCIA................................................................................... 76

  • 7

    3.3.1 Penitncia secular (arrependimento, autorreforma e reconciliao)............... 81

    3.3.2 Os j arrependidos e aqueles que no iro se arrepender............................... 86

    3.3.3 A penitncia e o Estado.................................................................................... 90

    CONCLUSO........................................................................................................................ 96

    REFERNCIAS...................................................................................................................... 99

  • 8

    INTRODUO

    Todos os dias, em razo dos mais variados crimes, pessoas so condenadas

    e punidas, seja para prestarem servios comunidade, pagarem multa, serem presas, etc.

    Crime e castigo historicamente esto conectados, e essa ligao sempre instigou o homem,

    nas mais variadas reas do conhecimento. Filsofos, juristas, polticos e pedagogos

    perguntam sobre o que justifica a punio criminal. O problema antigo, mas nunca perde a

    atualidade. Prises lotadas, polticas de encarceramento, novas condutas criminalizadas,

    formas alternativas de punir, tudo isso revela a dimenso e a importncia do tema que este

    estudo pretende analisar. A reflexo aqui, no obstante a transdisciplinariedade do assunto,

    principalmente filosfica e centrada nas teorias retributivas da pena.

    O presente estudo, tendo em vista o objetivo acima delineado, encontra-se

    divido em trs captulos. No primeiro, buscou-se rigorismo nos conceitos que sero

    manejados em todo o desenvolver da investigao, assim evitando um sem-nmero de

    problemas que decorrem da inobservncia desse cuidado. Com essa incurso pretendeu-se,

    mediante a experincia dos autores da common law, espao em que o desenvolvimento

    terico encontra-se em estgio avanado, contrastar distintas tradies jurdicas, colocando-

    se sobre o problema da punio um novo olhar crtico. Ento, as teorias preventivas e

    retributivas, contendedoras histricas acerca da justificao da pena criminal, so

    apresentadas com um enfoque indito, revisitado e reformulado com base no aporte dessas

    novas formulaes. O captulo comea com algumas linhas em relao denominao das

    teorias preventivas, avana em direo ao problema da punio dos inocentes e termina

    com um panorama dos equvocos associados s formulaes retributivas, geralmente

    trabalhadas como se fossem uma nica teoria.

    Esse novo olhar crtico informa todo o restante do presente estudo. Da

    porque, no segundo captulo, realiza-se um escoro sobre as teorias de destaque na

    common law, tradio em que avultam teorias eminentemente retributivas. Buscou-se

    propiciar elementos para uma tentativa de (re)leitura do conceito de merecimento, este

    utilizado pelos autores retributivitas como suposta conexo natural entre crime e castigo.

  • 9

    Para tanto, ofereceu-se uma exposio crtica das diversas propostas soluo da

    justificao criminal, informada por essa nova retribuio, denominada positiva, em

    contraste com as clssicas teorias retributivas, chamadas agora de negativas.

    Chegado at aqui, pretendeu-se ter exposto todas as dificuldades

    enfrentadas por ambas as teorias, preventivas e retributivas, na justificao da punio. O

    aparente impasse entre as antagnicas e provavelmente irreconciliveis posies serviu

    como contexto para o nascimento das teorias comunicativas, nas quais a questo sobre a

    pena criminal observada a partir de um prisma completamente diferente: nelas a punio

    vista como um processo de comunicao moral entre a comunidade, a vtima e o

    criminoso, sendo este o destinatrio de uma mensagem de reprovao ou condenao pela

    conduta tomada. Os elementos estudados anteriormente so retomados nesta discusso,

    mas com base em outras categorias. O problema, ento, reside nas classificaes de censura

    e tratamento severo, tomadas como funes caractersticas da pena criminal que reclamam

    justificao, a qual pode ser encontrada com base tanto de consideraes preventivas como

    retributivas. Para o desenvolvimento e compreenso da problemtica, as proeminentes

    elaboraes de Duff serviram como fio condutor, em razo da posio de destaque que o

    autor possui entre os filsofos da common law. Segundo ele, a pena criminal poderia ser

    justificada se entendida como forma de penitncia secular, cuja finalidade o

    arrependimento, a reforma e a reconciliao.

    Feitas essas anlises, espera-se contribuir, com o presente estudo, para

    uma nova e crtica reflexo sobre o antigo e instigante problema da punio criminal.

  • 10

    CAPTULO I - BREVES APONTAMENTOS EM RELAO S TEORIAS PREVENTIVAS, MISTAS E RETRIBUTIVAS (NEGATIVAS)

    1.1 CONSEQUENCIALISMO E ANLISE DAS TEORIAS MISTAS (ROXIN)

    O fim justifica os meios? possvel. Mas quem justificar o fim? A esta questo, que o pensamento histrico deixe pendente, a revolta responde: os meios. Albert Camus, O Homem Revoltado.

    Nenhuma formulao das teorias preventivas ser mostrada, embora seja

    imprescindvel conhecer as fortalezas e fraquezas de todas elas1. A ausncia justificvel,

    pois nem mesmo as mais variadas teorias retributivas, objeto central deste estudo,

    encontraro espao nas pginas deste trabalho. Mostrar-se-o aqui as crticas que as teorias

    preventivas enfrentam naquilo que tm de unidade: a busca por um bem que no est

    identificado na punio mesma.

    Pune-se, argumentam os tericos da preveno, e cada uma destas

    finalidades possui uma formulao prpria, para: incapacitar (preveno especial negativa)

    ou reformar o criminoso (preveno especial positiva); dissuadir potenciais criminosos

    (preveno geral negativa) ou reafirmar a confiana no ordenamento jurdico (preveno

    geral positiva). Em cada uma dessas propostas, h peculiaridades. Na teoria de preveno

    especial positiva, por exemplo, pune-se no para reformar o criminoso, mas para socializ-

    lo, ou melhor, para evitar que ocorra sua dessocializao2. Alm disso, existe uma

    miscelnea de combinaes entre cada um desses objetivos, bem como uma mistura destes

    com as teorias retributivas.

    O que deve ser dito inicialmente, no entanto, que chamar as teorias de

    preventivas ou relativas pouco nos diz sobre sua justificao. Em um dicionrio de filosofia,

    1 Cf. RAMREZ, Juan Bustos, et al. Prevencion y teoria de la pena. Santiago de Chile: Jurdica ConoSur, 1995, p. 21-72. E: FALCN Y TELLA, Maria Jos; FALCN Y TELLA, Fernando. Fundamento e finalidade da sano: existe um direito de castigar? So Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 203-236. MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Fundamentos da pena. So Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 79-161. 2 RODRIGUES, Anabela Miranda. Novo olhar sobre a questo penitenciria. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.

  • 11

    ou mesmo em um dicionrio comum, facilmente se sabe do que se trata a retribuio, ao

    lermos seu respectivo verbete3. No provvel, entretanto, que aqueles que buscam as

    palavras preveno e relativo tenham a mesma sorte. Na common law, utiliza-se o termo

    adequado para classificar as teorias que so conhecidas por preventivas ou relativas:

    consequencialismo4. Em filosofia, a palavra designa:

    A ideia de que o valor de uma ao provm inteiramente do valor de suas consequncias. Ope-se tanto noo de que o valor de uma ao pode derivar do valor do tipo de pessoa que a realiza (corajosa, justa, moderada, etc.), como ideia de que seu valor pode ser intrnseco, pertencendo-lhe unicamente como ato de dizer a verdade, de cumprir promessas etc. A primeira a opo explorada pela tica da virtude e a ltima pela tica deontolgica. O consequencialismo precisa identificar alguns tipos de consequncias cujo valor no seja derivado das aes, residindo antes, por exemplo, em estados de prazer ou de felicidade, considerados como fins para os quais as aes so meios. (...) Os crticos tambm fazem notar o modo como uma parte significativa da vida tica consiste em olhar para trs (vendo se a ao falta promessa, abusa do poder, trai a confiana de algum etc.) mais do que, exclusivamente, em olhar para a frente, como o consequencialismo implica.5

    A simples utilizao do termo correto j torna a controvrsia sobre a

    justificao da punio mais transparente. Imaginemos, por exemplo, que uma me castiga

    seu filho, trancando-o no quarto por ter batido em sua irmzinha. O pai da criana, ao saber

    de tudo isso, pergunta para sua esposa se ela acredita ter agido corretamente, ao que ela

    responde: no sei, depende, se ele no bater mais em nossa filha menor, se os irmos mais

    3 O debate da punio j est saturado de classificaes diferentes para o mesmo conceito, e, pior ainda, de conceitos que significam uma coisa distinta para cada autor. Mantm-se o termo retribuio, ao invs de substitu-lo por teoria deontolgica, porque aquele utilizado tanto na civil law quanto na common law e define adequadamente as teorias que designa. Por outro lado, o termo preveno, em regra, no usado em ambas as tradies jurdicas, nem designa corretamente as teorias que define, conforme explicado no corpo do texto. Ento, prope-se o termo consequencialismo. Esse rigorismo, acredita-se, s traz benefcios. 4 Conhecer as discusses entre consequencialismo e deontologismo, travadas no mbito da filosofia moral, essencial para a compreenso dos problemas que as teorias de punio enfrentam, sobretudo quando misturadas. No se ir falar das variantes de consequencialismo, das relaes deste com a moralidade e o senso da comum, das dificuldades da deontologia, das formas de no-consequencialismo, etc. Tais assuntos so importantes, mas no cabem neste trabalho. Nesse quadro, ver: CANTO-SPERBER, Monique (org.). Dicionrio de tica e filosofia moral. Edio brasileira. So Leopoldo: Unisinos, 2003. v. 1. p. 327-334 e 405-411. O consequencialismo tratado com profundidade em: MOORE, Michael S. Patrolling the borders of consequentialist justifications: the scope of agent-relative restrictions. Law and Philosophy, n. 27, p. 35-92, 2007. 5 BLACKBURN, Simon. Dicionrio Oxford de filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p. 73.

  • 12

    velhos perceberem que no devem fazer a mesma coisa, se eles acreditarem que ns

    estamos falando srio quando afirmamos que os castigaremos caso desobedeam a nossas

    ordens, ento fiz a escolha certa ao coloc-lo de castigo. Mas o genitor retruca: e se nada

    disso ocorrer? A genitora s pode responder desta forma: ento agi injustamente. No se

    trata, portanto, de asseverar que seria desejvel que a punio prevenisse crimes.

    Definitivamente no isso. O consequencialista v a justia da ao escolhida (punio)

    apenas na produo do bem almejado (preveno). Logo, o valor da punio criminal no

    estaria nela mesma, no seria intrnseco ele reside em bem identificado

    independentemente, cuja relao com a ao contingente ou instrumental. por essa

    razo, diga-se de passagem, que o argumento central dos abolicionistas formalmente

    correto: se no alcanamos ou no sabemos se alcanamos as finalidades boas que

    justificam a punio, ento ela no tem razo de ser, devemos substitu-la por outro meio.

    O problema das teorias preventivas, com base na considerao acima,

    torna-se claro: se justificamos a punio em razo de suas consequncias, por que no

    punimos, caso valha a pena, os inocentes? O exemplo poderia ser inteiramente ficcional, no

    caso em que, com o dom da prescincia, tivssemos a oportunidade de prevenir crimes que

    ainda estivessem dentro da esfera de cogitao do indivduo. Mas, saindo do absurdo,

    podemos pensar em uma situao bastante plausvel. Se tivssemos dados empricos que

    nos dessem a certeza cientfica de que determinados criminosos de carreira, aps tantos

    anos ou tantos crimes, no iriam parar de delinquir, por que no poderamos puni-los antes

    mesmo de o prximo crime ocorrer?6 Para ressaltar a questo, traz-se outro exemplo:

    Suponha que pudesse ser mostrado que um criminoso particular no foi melhorado pela punio e tambm que nenhum outro potencial criminoso tenha sido dissuadido por essa causa, isso provaria que a punio foi injusta? Suponha que fosse descoberto que um particular criminoso tenha levado uma vida muito melhor aps sua soltura e muitos potenciais criminosos acreditando que ele era culpado acabaram influenciados por seu

    6 Os ingleses e os norte-americanos tinham um grande interesse sobre o assunto da periculosidade (dangerousness). A literatura, alis, bastante extensa: BOTTOMS, A. E.; BROWNSWORD, Roger. The dangerousness debate after the floud report. Tambm: LACEY, Nicolas. Dangerousness and criminal justice: the justification of preventive detention. Ambos In: DUFF, Antony R (org.). Punishment. Dartmouth: Darmouth, 1993. p. 243-268 e 269-288. E ver: MORRIS, Norval. Dangerousness and incapacitation. In: DUFF, Antony R.; GARLAND, David (Comp.). A reader on punishment. New York: Oxford, 1994. p. 238-260.

  • 13

    destino, s que aquele criminoso foi punido por algo que ele nunca fez, esses excelentes resultados provariam que a punio foi justa?7

    So trs as respostas para a antiga questo. A primeira, de espanto, nega

    que exista a qualquer problema, pois as justificaes consequencialistas s entram em jogo

    dentro do contexto da lei criminal, depois de descoberto quem culpado e quem inocente

    (apenas punio aquilo que, por definio, recaia sobre os culpados). Mas uma resposta

    nesses termos, explicou Hart, impede-nos de investigar a racionalidade e as preocupaes

    morais que nos levaram a escolher uma instituio de punio que impe medidas dolorosas

    sobre os indivduos apenas quando eles cometeram uma ofensa8. Por que, indaga o autor,

    ns preferimos isso em detrimento de outras formas de higiene social que ns poderamos

    empregar para prevenir comportamentos antissociais e que ns realmente empregamos em

    algumas circunstncias especiais, algumas vezes com relutncia?9

    A segunda resposta, aparentemente tambm deixada para trs, que a

    punio dos inocentes seria inadequada, porque isso, feitas algumas pesquisas empricas,

    seria ao final das contas menos vantajoso. Assim proceder, diria um utilitarista, no

    maximizaria a felicidade global das pessoas. No entanto, convenhamos, h algo de errado

    em admitir a punio dos inocentes como uma possibilidade moral aberta10, sujeita

    verificao posterior de suas consequncias. -nos intuitivo, um senso comum de justia,

    que a punio de inocentes seja intrinsicamente inapropriada, independentemente de

    quaisquer efeitos benficos que possam da advir. Mas podero objetar no seria de

    todo injusto o ato daquele que, para salvar cem pessoas, mata um inocente. Isso pode ser

    verdade, no se sabe. Contudo algum duvidaria de que rejeitaramos in limine a proposta

    de uma instituio criminal que, vez por outra, arbitrariamente puniria inocentes em prol

    das consequncias? Acredita-se que ningum aceitaria tal proposta, por mais confiveis que

    fossem os dados apresentados.

    7 MABBOT, J. D. Punishment. Mind, New Series, v. 48, n. 190, p. 152-167, apr. 1939. p. 154. 8 HART, Herbert Lionel Adolphus. Punishment and responsibility: essays in the philosophy of Law. 2. ed. New York: Oxford, 2008, p. 6. 9 Ibidem, p. 6. 10 DUFF, Antony R. Punishment, communication, and community. New York: Oxford, 2001, p. 160.

  • 14

    A terceira resposta, que persiste at hoje, consiste em afirmar que outras

    consideraes podem servir na justificao da punio. Surgiram ento as teorias mistas,

    que incorporam a noo de merecimento s finalidades preventivas, pois assim no

    puniramos os inocentes (nem puniramos excessivamente ou minimamente). Em outras

    palavras, a razo positiva para punirmos ainda consequencialista, porm a busca pelos

    efeitos benficos limitada por uma restrio no-consequencialista a noo de

    merecimento das retribuies negativas11.

    Particularmente, acredita-se que costurar uma formulao na outra, ao

    invs de dissipar as complicaes, apenas as agrega. Assim o terico deve responder s

    objees costumeiras das teorias consequencialistas, deve conceituar o merecimento e deve

    explicar, em especial, como as duas coisas se ligam, submetendo-se uma outra12. Nesse

    sentido, para exemplificar, a teoria unificadora preventiva dialtica de Roxin13

    escorregadia, pois apertada de um lado, escora-se no outro. A crtica aqui ser bastante

    sucinta, parcial, porm servir para ressaltar mais uma objeo comum s teorias

    consequencialistas (consideraes ainda sero feitas sobre a teoria deste autor).

    Segundo ele, merecida s uma pena de acordo com a culpabilidade14

    do agente, e esta impe um limite superior punio: sejam quais forem as finalidades

    preventivas, elas no podem ultrapassar a culpabilidade. A punio, contudo, pode ser

    imposta aqum da culpabilidade, medida que atenda aos interesses preventivos especiais,

    desde que resguardado um mnimo preventivo geral15.

    Ora, a pena merecida varia de acordo com a gravidade do crime,

    entretanto o tempo e a qualidade da pena, quando se buscam interesses preventivos,

    variam conforme a maior ou menor chance de alcanar determinadas metas (no h relao

    direta com a gravidade do crime). Imaginemos agora dois homicidas, cujos crimes,

    11 STANFORD ENCYCLOPEDIA OF PHILOSOPHY. Legal Punishment. Disponvel em:< http://plato.stanford.edu/entries/legal-punishment/>. Acesso em: 15 dez. 2010. 12 Cf.: DOLINKO, David. Retributivism, consequentialism, and the intrinsic goodness of punishment. Law and Philosophy, n. 16, p. 507-528, 1997. 13 ROXIN, Claus. Derecho Penal: parte general, tomo I. Madrid: Civitas, 1997. 14 Ibidem, p. 100. 15 Ibidem, p. 96-97.

    http://plato.stanford.edu/entries/legal-punishment/

  • 15

    materialmente idnticos, delimitam uma pena mxima em dez anos. Ao primeiro, mediante

    clculos preventivos, recomenda-se a pena de um ano, a qual atender s finalidades

    preventivas especiais, sem, no entanto, ferir o mnimo preventivo geral. J o segundo no

    teve tamanha sorte com as estatsticas, e as contas determinam que sua pena fique mesmo

    em dez anos. Logo, a pena daquele imerecida, e a deste merecida, mas por razes que

    nada tem a ver com a culpabilidade no segundo caso houve apenas uma coincidncia.

    Roxin instrumentaliza a norma retributiva, tornando-a vazia de contedo, portanto (ver p. 85-

    86). Diz-se ento ao autor:

    A teoria humanitria remove da punio o conceito de merecimento. Mas o conceito de merecimento o nico elo entre a punio e a justia. apenas como merecida ou imerecida que uma sentena pode ser justa ou injusta. Eu no afirmo aqui que a questo merecida? a nica que ns razoavelmente possamos perguntar sobre a punio. Ns podemos apropriadamente perguntar se possvel que ira dissuadir outros e reformar o criminoso. Mas nenhuma destas duas ltimas questes uma questo sobre justia. No h nenhum sentido em falar sobre uma dissuaso justa ou cura justa. Ns demandamos de uma dissuaso no se ela vai ser justa, mas se ela vai dissuadir. Ns demandamos de uma cura no se ela vai ser justa, mas se ela vai ser bem-sucedida. Ento, quando ns deixamos de considerar o que o criminoso merece e consideramos s aquilo que ir cur-lo ou dissuadir outros, ns tacitamente removemos ele da esfera da justia de modo geral; ao invs de uma pessoa, sujeito de direitos, ns temos agora um mero objeto, um paciente, um caso.16

    Existem tantos outros exemplos, todos a indicar a artificialidade da teoria.

    Poderamos esperar, com a formulao de Roxin, que estupradores sejam punidos na

    mesma medida do que ladres de carteira, uma vez que a graduao inferior das penas nada

    tem a ver com a gravidade do crime, mas com a ateno aos interesses preventivos especiais

    e o mnimo preventivo geral. E a partir da retornam grande parte dos problemas

    direcionados s teorias consequencialistas, sobre instrumentalizar os indivduos, us-los

    como um meio para atingir determinados fins, etc. Alis, a retribuio ressurgiu nos Estados

    Unidos no apenas porque eles puniam as pessoas mais do que elas mereciam, mas porque

    tambm puniam muito menos do que elas mereciam, criando situaes insustentveis,

    16 C.S. Lewis. Humanitarian Theory of Punishment. Disponvel em:< http://www.angelfire.com/pro/lewiscs/humanitarian.html>. Acesso em: 15 dez. 2010.

    http://www.angelfire.com/pro/lewiscs/humanitarian.html

  • 16

    como as expostas, em que penas muito distintas recaam sobre crimes anlogos, ou penas

    anlogas que recaam sobre crimes muito distintos17.

    Feitos esses apontamentos, anota-se que as teorias mistas comportam

    outras variaes: ora a retribuio prepondera sobre preveno, ora esta prepondera sobre

    aquela e, por vezes, as duas so revestidas da mesma importncia, mas, para responder a

    diferentes perguntas em relao justificao da punio18. Nenhuma delas, entretanto, ao

    desmembrar partes da teoria antagnica, nos oferecem uma explicao coerente para a

    juno dos princpios que elas combinam. At em filosofia moral, rea em que o debate

    muito parecido, persiste, no entanto, uma certa irredutibilidade das posies19

    consequencialistas e deontolgicas.

    Encerrada a crtica teoria de Roxin no que ela tem de mista, agora sero

    feitos dois ligeiros, porm procedentes, comentrios ao que ela tem de preveno geral

    positiva.

    A objeo familiar que Roxin criou, ao final das contas e sem perceber,

    uma teoria retributiva disfarada20. Isso porque, embora sua teoria esteja assentada, entre

    outras coisas, na recusa da retribuio, o autor no deixou de continuar a ver, exatamente

    naquela mesma retribuio de culpa, contudo, o melhor meio para alcanar a preveno e,

    17 Tonry mostra a tabela original da sentencing guidelines de Minnesota, datada de 1980, em que, como exemplo, o cometimento de quatro crimes de menor potencial ofensivo contra a propriedade equivalia a um homicdio culposo. O autor apenas queria explicar como difcil estipular a igualdade horizontal cada criminoso, e cada crime, so to peculiares que a comparao entre eles complicada. Com base nessa interessante tabela pode-se demonstrar o problema que levar em conta, para alm da culpabilidade, metas preventivas. Isso porque, no caso, quatro condenaes anteriores em crimes leves equiparavam-se a um crime grave, sobretudo, para frear a escala delitiva. A culpabilidade e sua natural ligao com a gravidade do crime, em um modelo assim, evidentemente so deixadas de lado. Ver: TONRY, M. Proportionality, parsimony, and interchangeability of punishments. In: DUFF, Antony R.; GARLAND, David (Comp.). A reader on punishment. New York: Oxford, 1994. p. 133-160. 18 Cf.: WOOD, David. Retribution, crime reduction and the justification of punishment. Oxford Journal of Legal Studies, n. 2, v. 22, p. 301-321, 2002. 19 CANTO-SPERBER, Monique (org.), op cit. [n. 4], p. 409. 20 RODRIGUES, Anabela Miranda. A determinao da medida da pena privativa de liberdade. Coimbra: Coimbra, 1995, p. 335-347.

  • 17

    assim, a limitar21. Entretanto acredita-se que, sobre esse aspecto, a crtica no acerta o

    alvo. Lendo-se com ateno a teoria unificadora preventiva dialtica, percebe-se que toda

    ela orientada s consequncias, ao passo que, sentindo necessidade de restringir punies

    desmedidas, Roxin importa um elemento de fora, a noo de merecimento das teorias

    retributivas. Contudo, ao faz-lo, transfigura-a em uma figura desprovida de sentido,

    conforme explicado algures. Em outras palavras, a coerncia mesma da formulao

    encontra-se no que ela tem de preveno, sendo o elemento retributivo o que no se

    harmoniza ao conjunto; no ao contrrio, de acordo com a crtica de Anabela Miranda.

    Mas os apontamentos mais interessantes so os seguintes, porque, apesar

    de direcionados Roxin, servem para analisar qualquer teoria preventiva geral positiva, seja

    limitadora, seja fundamentadora. Dubber ressalta inicialmente que os autores norte-

    americanos, ao perceberam as falhas das teorias reabilitativas, retornaram ou reconstruram

    a retribuio; os alemes responderam mudando as perspectivas dentro dos objetivos de

    preveno, mas sem nunca deixar o consequencialismo de lado: se a punio no consegue

    incapacitar os criminosos, ao menos ela serve para reformar alguns deles; se isto no

    funciona, quem sabe potenciais ofensores so dissuadidos, porm, se no for assim,

    conseguiremos pelo menos reafirmar a confiana no ordenamento jurdico ou estabilizar

    nossa comunidade22. neste ltimo elo da sequncia que reside o problema, uma vez que,

    enquanto todos os outros so (e foram) suscetveis de pesquisa emprica, algo essencial para

    validar as teorias consequencialistas, os aspectos negativos e positivos da preveno geral,

    certamente so pouco claros empiricamente e difceis de determinar de forma confivel23.

    Palavras do prprio Roxin que, em vez de ver nisso uma falha, assevera: justamente por

    essa razo, a hiptese de que a prtica punitiva estatal executa um papel fundamental nele,

    apenas falsevel24. Ora, a crtica familiar retribuio no exatamente que ela no se

    importa com os fins? E no est o autor fundamentando sua teoria consequencialista a

    despeito da hiptese mesma de conseguirmos provar a preveno de crimes? Sendo assim,

    Dubber tem razo ao afirmar: no-falseabilidade pode aparecer como um estranho

    21 Ibidem, p. 337. 22 DUBBER, Markus Dirk. Theories of crime and punishment in german criminal law. Buffalo Legal Studies Research Paper, n. 2005-02, p. 18. 23 ROXIN, Claus, op cit. [n. 13], p. 91. 24 ROXIN, Claus, op cit. [n. 13], p. 93.

  • 18

    benefcio de uma teoria de punio que foi designada para combater a no-falseabilidade da

    metafsica da retribuio25. Nisto a teoria de Roxin assemelha-se retribuio (negativa),

    porm na parte em que ela realmente estava errada, aquela em que se punia para saciar

    uma justia em abstrato, sem qualquer interesse na experincia concreta.

    O mais importante, contudo, ainda no foi dito. Uma vez que as teorias

    preventivas gerais positivas colocam menos nfase sobre os efeitos, insistindo justamente

    nas consequncias que dificilmente podem ser comprovadas empiricamente (o aprendizado,

    a confiana e a pacificao decorrentes da reafirmao da norma, ou seja, a chamada

    preveno integradora26), elas deixam de tentar justificar a punio, passando apenas para a

    anlise de uma de suas funes27. Nesse quadro, Dubber afirma:

    O problema com a preveno geral positiva como uma teoria expressiva de punio ento no apenas que elas no podem justificar a punio como um modo de expresso. Talvez o mais importante que elas podem justificar qualquer modo de expresso que por acaso ou na ausncia de falseabilidade emprica como dito significa solidariedade comunitria em sujeio a normas comuns por intermdio da condenao pblica.28

    Em outras palavras, a vindicao da lei, uma das funes da punio, pode

    ocorrer com qualquer coisa que seguir violao da norma. Se, por exemplo, eu prometer

    que darei um punhado de doces para quem cometer crime, e se eu cumprir minha promessa

    todas as vezes que algum comete um crime, ento a norma no cometa crimes se no

    voc receber doces ser reafirmada. A hiptese evidentemente absurda, mas serve para

    chamar ateno ao fato de que toda a problemtica, delineada no captulo terceiro deste

    trabalho, passa ao largo dos tericos da preveno geral positiva. Se no provado, nem

    mesmo, que a escolha da punio ocorreu por causa de esta ao ser a melhor para alcanar

    a consequncia benfica que a preveno, por que no utilizamos outros meios para

    garantir o aprendizado, a confiana e a pacificao que se seguem da reafirmao da norma

    violada? Nesse sentido, adianta-se, uma formulao consistente a de von Hirsch: ele diz

    que a punio serve a todas essas funes comuns s prevenes integradas, todavia,

    25 DUBBER, Markus Dirk, op cit. [n. 22], p. 19. 26 ROXIN, Claus, op cit. [n. 13], p. 91. 27 DUBBER, Markus Dirk, op cit. [n. 22], p. 20. 28 DUBBER, Markus Dirk, op cit. [n. 22], p. 22.

  • 19

    quando explica por que impomos o sofrimento, o tratamento severo e a privao material

    aos criminosos, afirma que, ao final das contas, provado que a punio tem um mnimo

    efeito preventivo. Mas o autor admite que, se isso no provado ou se no conseguimos

    prov-lo, poderamos abolir a punio como a conhecemos, mantendo-se apenas um

    sistema puramente simblico e formal de condenao (ver tpico 3.2.1).

    Para concluir, relembra-se que a ao justa, para um consequencialista,

    aquela que, dentre as escolhas, produz as melhores consequncias em relao ao bem

    identificado. Era isso, alis, que antigamente os tericos da preveno nos diziam: a punio

    justa porque, de tudo que poderamos fazer a um criminoso, esta a forma mais eficaz de

    prevenir crimes, seja reformando-o, intimidando potenciais ofensores, etc. A ideia, deve ser

    admitido, era bastante atraente. Hoje em dia, contudo, e foi isso que se pretendeu mostrar

    nas linhas desenvolvidas, os tericos da preveno nos pedem para aceitarmos que a

    punio justa porque ningum demonstrou que existe outra escolha de ao que atinja o

    bem preveno. Ou seja, antes a punio era justa, porque nenhuma ao era capaz de

    alcanar como ela os efeitos benficos; agora a punio justa, porque ningum provou que

    existe melhor meio para atingir o bem identificado (ou seja, a preveno atualmente wins by

    default, ganha por W.O.). Particularmente, acredita-se ser difcil que a instituio de crime e

    castigo tenha se desenvolvido com uma mentalidade desse tipo. Existem fortes argumentos

    para acreditarmos que a punio mesma tem algo de justo e moralmente adequado,

    independente de atingir um bem identificado fora dela, e isso que ser analisado neste

    trabalho.

    1.2 A RETRIBUIO NEGATIVA E POSITIVA, DOIS EQUVOCOS E CARATERSTICAS GERAIS

    Nekhludov no comeo teve esperanas de encontrar respostas nos livros, e comprou todas as obras que tratavam do assunto. Leu com ateno Lombroso, Garofalo, Ferri, Maudsley, Tarde e outros criminologistas

    conhecidos. Mas a leitura s lhe valeu amargas decepes.

    Entretanto a questo era a mais simples de todas. Ele perguntava-se como e com que direito alguns homens aprisionavam, torturavam, exilavam

  • 20

    batiam e executavam os outros homens, quando eles mesmos eram semelhantes queles a quem torturavam, batiam e matavam. Mas, em vez

    de responder a esta questo os criminologistas consultados indagavam uns, se a vontade humana seria livre ou no, outros, se um homem poderia

    ser declarado criminoso, simplesmente pela forma do crnio, e ainda outros, se o instinto da imitao no teria papel importante na

    criminalidade. Indagavam o que a moralidade, a degenerescncia, o temperamento, a sociedade e assim por diante.

    Todos estes trabalhos lembravam a Nekhludov a resposta de um garoto

    que voltava da escola. Nekhludov perguntou-lhe se sabia soletrar: Claro que sei, respondeu a criana. Ento soletre focinho. Mas, que

    focinho? Focinho de cachorro ou de boi? replicou o menino com ar entendido.

    Tolstoy, Ressurreio.

    Existem diversas teorias retributivas da punio. No o propsito deste

    estudo, todavia, apresent-las de forma exaustiva29. A preocupao principal consiste em

    apontar os temas recorrentes que as unem, expor as formulaes atuais, bem como

    delimitar algumas perguntas e problemas que elas enfrentam. Mas no se pode prosseguir

    sem antes apontar dois equvocos que a maioria dos autores comete ao analisar essas

    teorias.

    O primeiro deles considerar as teorias retributivas como se fossem uma

    nica. Decerto que sobre todas elas perpassa a ideia de que justo punir os culpados,

    porque eles merecem punio em razo do crime cometido, porm cada uma delas ir

    buscar uma fonte diferente para explicar o que justo, a funo do Estado, a natureza do

    crime, etc.30 Incorre nesse equvoco, por exemplo, Anabela Miranda, ao asseverar que as

    teorias da retribuio caram em declnio por causa da secularizao do direito penal ou da

    perda de um referencial metafsico, pois aquela causa s pode servir para confrontar as

    teorias retributivas que buscam a justia na lei divina, esta apenas se aplica, quando elas

    29 Cf.: DAVIS, Michael. Punishment theorys golden half century: a survey of developments from (about) 1957 to 2007. The Journal Ethics, v. 13, n. 1, p. 73-100, 2009. E: RODRIGUES, Anabela Miranda, op. cit. [n. 20], p. 157-235. 30 Hart cometera o primeiro equvoco, mas agora v que tambm necessrio atentar ao fato de que, ao menos no sentido mais amplo e moderno do termo retribuio, existem vrias respostas diferentes para cada uma dessas questes, que podem ser designadas retributiva e geralmente tem recebido o ttulo de retributiva em razo da teoria a qual elas fazem parte, mesmo se a teoria tambm contm elementos reformativos ou de deteno normalmente contrastados com a retribuio. HART, Herbert Lionel Adolphus, op. cit. [n. 8], p. 231.

  • 21

    remetem a uma justia que requer um elemento transcendente31. Como ser visto, algumas

    delas no se ancoram em nenhuma dessas fontes de justia.

    Para que a secularizao do direito penal tenha determinado a queda das

    teorias retributivas, pressuposto lgico que elas correspondam perspectiva religiosa

    sobre a punio. Marshall, nesse quadro, assevera que certamente existem temas

    retributivos na Bblia, porm isso no quer dizer que ela advoga uma teoria retributiva

    coerente, de pleno direito, ainda mais no sentido clssico ocidental. Vrias consideraes,

    bblicas e teolgicas, levaram-no a concluir que o retribucionismo inadequado para lidar

    com a profundidade e com a complexidade dos testemunhos bblicos em relao

    punio32. Por outro lado, tambm a doutrina da expiao, contida na obra Cur Deus Homo,

    de Santo Anselmo, to influente no direito penal, acabou sendo distorcida: tornou-se

    comum acreditar que a reparao do pecado original se aplicava a todo aquele que cometia

    um crime no reino temporal, no apenas a Ado e Eva. Ento, a pessoa que violou a justia

    em si (em abstrato) deveria ser submetida a uma punio, a fim de que a justia fosse

    restabelecida. Esse raciocnio, todavia, no condiz com a explicao de Santo Anselmo, pois

    s a morte expiatria de Jesus Cristo, Deus-Homem, poderia oferecer uma reparao digna

    em nome e no lugar do homem, pecador por natureza33.

    Contudo, em verdade, a Lei do Talio que usada para resumir a

    natureza retributiva da justia nas sagradas escrituras. Mas, embora parea chocante, as

    31 RODRIGUES, Anabela Miranda, op. cit. [n. 20], p. 218 et seq. Anabela Miranda serve como ilustrao de um equvoco cometido at mesmo em grandes obras. Ela admite, inicialmente, que existem diversas e variadas formulaes retributivas, entretanto acredita erroneamente que a ruptura com a transcendncia teolgica e metafsica, trazida pelo sculo iluminista, possa dar conta de solapar, de uma vez s, todas essas teorias. 32 MARSHALL. Christopher D. Beyond retribution: a testament vision for justice, crime and punishment. Grand Rapid: Eerdmans; Lime Grove House: Parnell, 2001, p. 122 et seq. A verso aqui apresentada apenas um recorte e no captura toda a riqueza do trabalho deste telogo. Em sntese, ele explica que a justia divina, conforme retratada por Paulo e encarnada por Jesus, essencialmente uma justia redentora. 33 WOODS JUNIOR, Thomas E. Como a igreja catlica construiu a civilizao ocidental. So Paulo: Quadrante, 2008. p. 85. Em relao adequada compreenso da doutrina de Santo Anselmo, ver: MARTINES, Paulo Ricardo. Por que um Deus-Homem? Liberdade e justia na cristologia de S. Anselmo. In: XAVIER, Maria Leonor L. O. (Coord.). A questo de Deus na histria da filosofia. Sintra: Zfiro, 2008. 2 v., p. 447-455.

  • 22

    aparncias enganam quando se trata de olho por olho34, uma vez que estamos tratando,

    provavelmente, do mais conhecido e incompreendido texto bblico sobre crime e punio35.

    Em sntese, na tradio judaica, pode-se dizer que, ao contrrio da percepo popular, a

    passagem nunca pretendeu sancionar vingana, pelo contrrio, pois era uma lei de

    proporo: s um olho por olho, nada mais do que isso. E mais, h fortes razes para duvidar

    que a lex talionis alguma vez fora entendida em sentido literal: no xodo 4:23, por exemplo, o

    marido da mulher, que sofreu aborto espontneo em razes de agresses, deveria exigir um

    recompensa monetria, no uma proibio que a parte culpada tivesse sua prxima

    gestao terminada, como um tratamento tit for tat exigiria. Parece claro que o talio

    sempre foi entendido no senso de vindicao moral, no sentido de que a punio fosse um

    equivalente moral e material proporcional ofensa cometida, no uma retribuio fsica36.

    Vale lembrar tambm que a percepo comum da lex contraria, simplesmente, toda a

    narrativa contida no Antigo Testamento sobre o Deus de amor, piedade e misericrdia. J no

    tocante tradio crist, nada precisa ser explicado: Ouviste o que foi dito: olho por olho e

    dente por dente. Eu, porm, vos digo que no resistais ao mal; mas, se qualquer bater na tua

    face direita, oferece-lhe tambm a outra (Mateus 5; 38-39).

    Acrescenta-se que essa interpretao em relao ao olho por olho,

    embora mostrada com base em trabalhos recentes37, de forma alguma novidade. Santo

    Agostinho explicou que no fcil achar quem, recebendo um golpe, se contente apenas a

    com o retorno do golpe, porque aquele que ofendido agir desmedidamente, em razo da

    raiva ou por entender justo que o primeiro a agredir sofra uma agresso maior do que

    aquela que causou. E a lei restringiu esse esprito de vingana, servindo como um 34 ZEHR, HOWARD. Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a justia. So Paulo: Palas Athena, 2008, p. 120 et seq. Segundo o autor, a rejeio da justia do olho por olho perpassa todo o relato da Bblia. Ele explica que o erro no entendimento da justia bblica deu-se em razo de um curto-circuito histrico, no qual os autores misturavam conceitos greco-romanos ao invs de contextualizar os significados de shalom (as coisas como Deus pretendem que elas sejam) e aliana. 35 MARSHALL, Christopher D., op. cit. [n. 32], p. 78. 36 MARSHALL, Christopher D., op. cit. [n. 32], p. 80 et seq. 37 Cf.: FISH, Morris J. An eye for an eye: proportionality as moral principle of punishment. Oxford Journal of Legal Studies, v. 28, n. 1, p. 5771, 2008. Alis, interessante notar que uma retribuio adequadamente compreendida, ou seja, diferente do ataque fsico, da mutilao ou da vingana, a principal motivao que as pessoas leigas do para a punio. Nesse sentido, ver esta detalhada e recente pesquisa: KELLER, Livia B.; et al. A closer look at an eye for an eye: laypersons punishment decisions are primarily driven by retributive motives. Social Justice Research, v. 23, n. 2-3, p. 99-116, 2010.

  • 23

    importante passo, embora seja apenas um caminho intermedirio, em direo paz38. Isso

    porque aquele que paga de volta apenas medida que recebeu j perdoa alguma coisa:

    porque a pessoa que ofendeu no merece como punio apenas a medida que o homem

    ofendido inocentemente sofreu.39

    Enfim, so por esses motivos que tantas vezes as teorias retributivas

    sofreram m publicidade ou foram confundidas por no mais que um apelo vingana,

    incompreendida Lei do Talio, ao desapego com a dignidade humana. Roxin, imbudo dessa

    racionalidade, nos diz que o atraso do sistema da execuo penal alemo reside na longa e

    dominante influncia da teoria da retribuio40. Verdade seja dita, ele reconhece um ou

    outro avano que essas formulaes trouxeram s cincias criminais, todavia descarta-os

    como algo do passado, assim como tantos outros doutrinadores. Mas no se pode aceitar

    essa afirmao, que carece de qualquer fundamentao ou dado emprico comprobatrio,

    pois a maioria das teorias retributivas sequer nos diz como a execuo penal deve ser

    administrada.

    Esse equvoco j foi denunciado com preciso por Cottingham. Pensa-se

    que o trecho a seguir transcrito deve servir de lembrete para todos aqueles que analisam o

    tema e utilizam a palavra retribuio:

    Uma das funes da filosofia combater ambiguidade e confuso. Contudo nas discusses sobre a justificao da punio, filsofos continuam falando de retribuio e teoria da retribuio como se esses rtulos significassem algo simples e direto. O fato que o termo retributivo como usado em filosofia tornou-se to impreciso e multivocal que duvidoso se ainda serve a algum propsito vantajoso.41

    O segundo equvoco consiste no que Hart chamou de retribuio na

    distribuio. Segundo ele, uma coisa explicar a Retribuio como meta-geral justificante da

    punio Retribuio, nesse sentido, com R maisculo ; outra, completamente diferente,

    38 AUGUSTINE. On the sermon of the mountain. Book I. Disponvel em:< http://www.newadvent.org/fathers/16011.htm>. Acesso em: 23 dez. 2010. 39 Ibidem. No paginado. 40 ROXIN, Claus, op. cit. [n. 13], p. 85. 41 COTTINGHAM, John. Varieties of Retribution. In: DUFF, Antony R (org.). Punishment. Dartmouth: Darmouth, 1993, p. 238.

    http://www.newadvent.org/fathers/16011.htm

  • 24

    usar a palavra para responder pergunta para quem a punio pode ser aplicada?,

    apenas para um criminoso em razo do crime cometido a resposta dada. Ou seja, da

    admisso do princpio de retribuio na distribuio no se retira o porqu da punio nem a

    sua severidade ou quantidade42. Pode ser reconhecido, como a maioria dos autores o faz,

    que desde dentro dos limites traados pela retribuio na distribuio vicejem metas

    preventivas. De qualquer forma, grande parte dos autores no consegue reconhecer que, do

    cometimento ao princpio de retribuio na distribuio, no decorre que a Retribuio seja

    a meta-geral justificante da punio.

    Acima se percebe aspirao aristotlica, e a analogia facilita a

    compreenso das categorias delimitadas por Hart. De acordo com Aristteles, na

    interpretao dada por Villey, a primeira funo da justia, para alcanar a igualdade,

    distribuir as coisas entre os membros da polis: uma distribuio que resguarda uma

    igualdade geomtrica, uma proporo entre fraes. Depois de distribudas as coisas

    previamente estabelecidas, a justia deve zelar pela retido das trocas: uma troca

    equivalente, uma comutao. Nesta etapa, a funo do juiz estabelecer a igualdade

    aritmtica, para que senhor seja restitudo do dano que sofreu43. No caso, ento, conclui-se

    que a maioria das teorias retributivas pressupe injustificadamente que a punio seria a

    coisa devida aos criminosos em razo do crime cometido. Falta a elas uma explicao

    positiva para assumirmos que a punio esta coisa previamente estabelecida e distribuda,

    que posteriormente ser comutada.

    At o renascimento das teorias retributivas, ocorrido na dcada de setenta,

    a maioria delas era incompleta sobre certo aspecto. Elas nos diziam que ns poderamos

    punir ou que no era injusto punir, mas no nos davam uma razo positiva para faz-lo.

    Funcionavam, portanto, como uma restrio lateral (side-constraint) ao poder punitivo, ou

    mesmo como parte da lgica interna do sistema de punio. dizer, uma retribuio

    42 HART, Herbert Lionel Adolphus, op. cit. [n. 8], p. 7 et seq. A lio principal a ser apreendida explica Hart que depois de afirmar quais so as metas-gerais ou valores que a manuteno de uma determinada instituio social fomenta, ns devemos perquirir se existem e quais so os princpios que limitam a busca desqualificada dessa meta ou valor. 43 VILLEY, Michel. A formao do pensamento jurdico moderno. So Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 38-62.

  • 25

    negativa. Atualmente, entretanto, nasceram retribuies positivas, as quais afirmam nosso

    dever de punir (ought punish) os culpados, porque eles merecem: seja para restaurar a

    balana de benefcios e fardos que o crime perturba; expressar a censura devida ao

    criminoso em razo do crime cometido; ou induzir o arrependimento mediante um processo

    de comunicao moral. Seja como for, o fundamental para qualquer uma das teorias

    retributivas - negativas ou positivas - explicar a suposta conexo moral entre crime e

    castigo que o merecimento pretende capturar44. Nas palavras de Hart: a alquimia moral

    pela qual a combinao dos dois males de perverso moral e sofrimento so transmutados

    em um bem.45

    Esclarecidos os dois equvocos, Hart mostra os trs requisitos que unificam

    as teorias que se pretendem retributivas: (I) que uma pessoa seja punida se, e apenas se, ela

    voluntariamente cometeu algo moralmente errado; (II) que a severidade da sua punio

    corresponda, ou equivalha, de alguma maneira perversidade de sua ofensa; (III) que a

    justificao para punir os homens sobre essas condies aquela em que o retorno do

    sofrimento pelo mau moral voluntariamente cometido, seja em si mesmo justo ou

    moralmente bom46. A caracterstica geral das vises retributivas, ento, que a justificativa

    e o sentido de punir ocorrem em relao com uma ofensa passada. Assim, responde-se no

    s sobre quem a punio pode ser aplicada, mas tambm o porqu da punio, bem como a

    sua severidade e quantidade. Acrescenta-se que, geralmente, as consequncias sociais

    benficas no fazem parte ou tm um papel reduzido nas teorias retributivas, razo pela

    qual, entre os autores da civil law, elas so conhecidas como absolutas.

    1.2.1 Kant, o paradigma?

    Kant sempre foi o paradigma para os autores retribucionistas. Atualmente,

    neste campo, a repercusso de suas ideias ocorre menos pelo contedo especfico do que

    44 DUFF, Antony R., op. cit. [n. 10], p. 12. 45 HART, Herbert Lionel Adolphus, op. cit. [n. 8], p. 234. 46 HART, Herbert Lionel Adolphus, op. cit. [n. 8], p. 235.

  • 26

    pela influncia do prprio autor no pensamento jurdico moderno. No h como negar,

    todavia, que algumas de suas formulaes facilitaram aos autores de hoje a compreenso

    adequada da punio criminal.

    Mas no se pode deixar de assinalar que mesmo antigos defensores da

    teoria de punio desse autor dificilmente ainda a classificam como retributiva. Murphy, por

    exemplo, afirmou que no mais claro para mim at que extenso apropriado continuar

    pensando sobre Kant como um paradigma retributivista na teoria da punio47. Segundo

    ele, o motivo simples: em alguns momentos, ao expor sua teoria de punio na Doutrina

    do direito (Rechtslehre), parece que Kant simplesmente se esqueceu da essncia de suas

    prprias doutrinas em filosofia moral, filosofia da mente e epistemologia48. O autor faz uma

    minuciosa anlise de toda a obra do filsofo prussiano, porm, para exemplificar,

    transcreve-se apenas um dos argumentos:

    Dada a radical (e, em minha viso, indefensvel) distino que Kant pretende delinear entre ao externa (interesse da justia) e motivo interno (interesse da virtude), e dada a fundao dessa distino em sua sombria metafsica e epistemolgica doutrina de phenomena e noumena, torna-se difcil se no impossvel enxergar como qualquer significativa doutrina de merecimento pode entrar em sua teoria.49

    De qualquer sorte, Kant deixou importantes consideraes a respeito da

    punio, independente da maneira como pretendemos classific-las. Uma passagem

    bastante famosa a seguinte: a pena (...) no pode nunca ser aplicada como um simples

    meio de se obter um outro bem, nem ainda em benefcio do culpado ou da sociedade50.

    Tradicionalmente, usou-se dessa argumentao contra as teorias consequencialistas, no

    entanto h quem defenda que teorias preventivas possam ser construdas desde uma

    perspectiva kantiana, e sem infringir tal postulado51.

    47 MURPHY. Jeffrie G. Does Kant have a theory of punishment? Columbia Law Review, n. 87, p. 509. 48 Ibidem, p. 512 et seq. 49 Ibidem, p. 523. 50 KANT, Immanuel. Doutrina do direito. So Paulo: cone, 2003, p. 176. 51 Cf.: MERLE, Jean-Christophe. Uma alternativa kantiana para a preveno geral e a retribuio. Veritas, v. 47, n. 2, p. 237-247, jun. 2002; Cf. CHIAVERINI, Tatiana. Apontamentos sobre a pena em Immanuel Kant. Phrnesis. v. 8, n. 2, jul. - dez., 2006.

  • 27

    Outra passagem bem conhecida, que explica a razo pela qual as teorias

    retributivas so chamadas de absolutas, da eventual dissoluo da sociedade civil.

    Segundo Kant, se um povo debandasse de uma ilha, o ltimo assassino preso deveria ser

    morto, para que sobre o povo no recasse o crime de homicdio: (...) porque ento poderia

    ser considerado como cmplice de tal violao pblica da justia52. Retira-se desse exemplo

    um desligamento dos impactos que a punio possa ter sobre o prprio homem e a

    sociedade, apenas para que se restaure a justia assim como ela entendida pelo filsofo.

    difcil sustentar, todavia, que ns temos que punir (must punish) todos os culpados, custe

    o que custar: essa uma imposio irreal para colocarmos sobre qualquer sistema penal

    humano, pois devemos lembrar que nenhuma instituio de punio criminal conseguir

    evitar a punio de alguns inocentes nem alcanar a punio de todos os culpados53. Alm

    disso, a passagem supracitada tambm reflete, ainda que em germe, a intuio embebida

    em nosso senso comum de que a punio tem uma funo simblica. Feinberg credita Kant

    esse avano, embora ressalte que ele tenha exagerado sua importncia. Conforme ser

    visto, o primeiro afirma que uma das funes expressivas da punio a no-aquiescncia

    simblica: a lei, ao condenar, fala em nome de todos os cidados ao expressar que os

    culpados merecem ser condenados, portanto no nos tornamos cmplices, ou melhor, no

    aquiescemos com a conduta criminosa (ver tpico 3.2).

    Acredita-se, no entanto, que uma das principais contribuies kantianas - a

    demanda que respeitemos uns aos outros como agentes morais racionais - floresceu na obra

    de Duff, conforme ser visto no terceiro captulo. Ainda que no saibamos o exato alcance

    da afirmao de no tratar os homens como simples meio, ou ainda que no capturemos a

    prpria viso de Kant sobre noes de autonomia e dignidade, permaneceu a lio de que

    no devemos manipular os culpados. Em Duff, essa lio vai traduzir-se no insight de que o

    sentido da punio deve ser contnuo com o sentido que norteia a lei penal e a lei processual

    penal: empreendimentos comunicativos, os quais buscam a participao e o consentimento

    daqueles a que elas se dirigem, sendo que a lei deveria buscar a aliana dos cidados como

    agentes morais racionais, pelo apelo s razes morais relevantes que justificam suas

    52 KANT, Immanuel, op. cit. [n. 50], p. 178. 53 DUFF, Antony R., op. cit. [n. 10], p. XII-XIX.

  • 28

    demandas54. dizer, quaisquer que sejam os motivos que orientem e justifiquem a punio,

    eles devem ser os mesmos que orientam e justificam as razes pelas quais uma conduta se

    torna crime, e por que julgamos as pessoas por intermdio do processo penal como o

    conhecemos.

    1.2.2 Neorretribucionismo de fundamento onto-antropolgico

    Para Faria Costa, inicialmente, temos que escapar dos chaves do

    pensamento, que nada explicam e embotam a discusso: que retribuio representa

    tradio, passado e conservadorismo; que preveno futuro, progresso e mente aberta55.

    Vencido esse obstculo, ento, ele nos apresenta sua defesa por um neorretribucionismo de

    fundamento onto-antropolgico. Em sua argumentao, assevera que o direito a uma pena

    justa, fundada na retribuio, em nada se confunde com as formulaes clssicas, seja do

    dialtico direito pena de Hegel, ou de uma manifestao do imperativo categrico

    kantiano56. Aqui, esta neorretribuio diferente da percepo arcaica, de correspondncia

    entre o mal do crime e o mal da pena, que s demonstra o paradoxo geneticamente ligado

    ao direito penal assume a caracterstica de um bem e, por conseguinte, acerta-se

    racionalmente em horizontes onto-antropolgicos.

    O direito penal nasce como ordem relacional, fundado na primeira relao

    de cuidado-de-perigo de matriz onto-antropolgica; e o crime uma perverso desta. Ns,

    seres humanos, por sermos frgeis, devemos cuidar uns dos outros. Assim, eu, ao cuidar

    do outro, estou cuidando de mim mesmo57. Essa relao, justamente em razo de sua

    fragilidade, pode romper-se e, muitas vezes, se rompe. A pena, nesse nterim, repe o

    sentido primevo da relao de cuidado-de-perigo, assim d-se o desnudamento que exige a

    54 DUFF, Antony R. Trials and punishments. New York: Cambridge, 1986, passim. 55 FARIA COSTA, Jos Francisco de. Uma ponte entre o direito penal e a filosofia penal: lugar de encontro sobre o sentido da pena. In: FARIA COSTA, Jos Francisco de. Linhas de direito penal e de filosofia: alguns cruzamentos reflexivos. Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 205-235. 56 Ibidem, p. 231-233. 57 FARIA COSTA. Noes fundamentais de direito penal (fragmenta iuris poenalis): introduo. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 20.

  • 29

    compensao de uma pena para que o equilbrio se refaa. Porque tambm s desse jeito

    eu posso ver, olhar e amar o outro58. Por consequncia, conclui o autor que h,

    realmente, um direito a uma pena justa, que adequadamente encontrado na

    neorretribuio de fundamento onto-antropolgico, meio pelo qual tambm se realizam os

    ideais de responsabilidade e igualdade, baluartes onde se assentam qualquer comunidade

    poltica.

    Responsabilidade, porque a pena aplicada, ao recair sobre um indivduo

    livre e autnomo, o qual ainda consegue distinguir entre justo e injusto, lcito e ilcito, tem

    que ser envolvida por um olhar ao pretrito, uma vez que ela indiscutivelmente uma

    manifestao de sua responsabilidade59. O fundamento da punio, ento, encontrado na

    culpa daquele que, no lugar passado, rompeu a relao de cuidado-de-perigo. Sendo assim,

    as teorias que tratam a culpa como mero limite ao poder punitivo deveriam admitir a

    punio de inocentes, bem como deveriam admitir penas concretas que, com intuito de

    alcanar tal ou qual efeito preventivo, ultrapassem efetivamente o limite da culpa60.

    Igualdade, porque seria absurdo conceber, na adjudicao e distribuio,

    que possam recair, sobre comportamentos materialmente idnticos, penas diferentes em

    grau e qualidade. Isso porque, como indivduos, nossa comunidade de homens e mulheres

    s adquire um sentido comunitrio se assentada na ideia forte da confiana que sejamos

    iguais, na dimenso da igualdade horizontal, uns aos outros; que aos nossos atos iguais ou

    semelhantes, agora na assuno vertical, seja aplicado tratamento igual ou semelhante61.

    Prosseguindo nesse raciocnio, indaga o autor se os cidados no tm direito a serem

    punidos com uma pena justa62. Mas um direito no no sentido hegeliano, ao revs, um

    58 FARIA COSTA, op. cit. [n. 55], p. 224 et seq. 59 FARIA COSTA, op. cit. [n. 55], p. 226. 60 FARIA COSTA, op. cit. [n. 55], p. 227. 61 FARIA COSTA, op. cit. [n. 55], p. 228-229. 62 difcil acreditar que as pessoas tenham direito de serem punidas (right to be punished). A afirmao pode ser verdadeira, mas no sentido que as pessoas tenham direito a punio (right to punishment), isto , uma instituio justa, que no as manipule. Para o primeiro ser verdadeiro, deve ser argumentado que o criminoso possa requerer a punio, mesmo que o Estado tenha lhe concedido o perdo. Ou seja, que o perdo iria ferir algum direito fundamental do criminoso, sua dignidade por exemplo. Ver: DEIGH, John. On the right to be punished: some doubts. Ethics, v. 94, n. 2, p. 191-211, jan. 1984.

  • 30

    decorrente daquilo que o Estado Democrtico de Direito e assentado na dignidade da

    pessoa humana. Um direito pena que indisponvel, que encontra seu sentido no bem que

    a execuo concreta da pena, proporcional e cumprida integralmente, pode propiciar63.

    Feitos esses apontamentos, percebe-se que o neorretribucionismo de

    fundamentao onto-antropolgica refora alguns dos alicerces do presente estudo,

    nomeadamente, na noo de que no se capta a natureza da punio deslocando-se a culpa

    para segundo plano.

    Falta formulao, no entanto, explicao fundamental a qualquer teoria

    retributiva: por que o sofrimento da punio que restaura a relao de cuidado-de-perigo?

    No poderia ser outra coisa? A relao de cuidado-de-perigo no poderia ser restaurada

    com uma resposta puramente verbal ou formal, que comunicasse a censura merecida pelo

    crime, porm no envolvesse a privao material caracterstica da punio? (ver p. 64) essa

    ausncia de explicao, da alquimia moral entre culpa, merecimento e castigo, que

    diferencia as retribuies negativas das retribuies positivas. As primeiras, embora sirvam

    de crtica para as teorias consequencialistas, como o caso da teoria de Faria Costa, no

    explicam por que retribumos punio. Nas segundas, por outro lado, conforme ser visto

    nos dois prximos captulos, os autores oferecem razes positivas para afirmarmos que a

    coisa retribuda deve ser punio.

    Contudo no se pode olvidar que o autor at apresente tal questo. Ele

    reconhece que seria um absurdo e um paradoxo se as comunidades humanas, com o intuito

    de evitar o mal do crime, impusessem o mal da pena, sem justific-la tambm, sobre certo

    aspecto, como um bem64. Nesse quadro, indaga-se se no estranho educar para o exerccio

    da liberdade justamente com a privao da liberdade: que metfora argumentativa est

    63 FARIA COSTA, op. cit. [n. 55], p. 230 et seq. 64 FARIA COSTA, Jos Francisco de. Um olhar doloroso sobre o direito penal (ou o encontro inescapvel do homo dolens, enquanto corpo-prprio, com o direito penal). In: FARIA COSTA, Jos Francisco de. Linhas de direito penal e de filosofia: alguns cruzamentos reflexivos. Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 69-91.

  • 31

    por detrs de tudo isto?65 Prossegue, ento, e pergunta: ou no ser o prprio paradoxo

    uma forma de pensar e aprofundar a vida vivida?66

    Ao que parece, Faria Costa rascunha uma resposta. Diz que, quando nos

    movemos, amamos, quando realizamos qualquer ato de liberdade, ns o realizamos por

    inteiro, com todo nosso corpo-prprio e nosso tempo-com67. E isso que a priso, ainda

    a pena principal dos sistemas europeus, tira68. Mas da no se infere, de forma alguma, o

    porqu de retirarmos a liberdade daquele que cometeu o crime, menos ainda, qual o motivo

    de essa ser a forma de restaurar os laos comunitrios, a relao de cuidado-de-perigo. O

    mximo que se pode dizer, com base nessa fundamentao, que o criminoso, por ter

    livremente escolhido cometer o crime, subordinou sua pessoa a qualquer resposta estatal

    que calhasse restaurar o equilbrio. Ou ainda, agora especulando, poderia ser argumentado

    que a presente formulao assemelha-se teoria de punio como equidade, entretanto

    esta tambm no nos confere uma justificao convincente para retribuirmos punio (ver

    tpico 2.1.4). Mas os tericos eminentemente retributivos oferecem algumas razes positivas

    para a imposio do sofrimento, da privao material, do tratamento severo, caracterstico

    da punio. isso que ser analisado nos prximos captulos.

    65 Ibidem, p. 79. 66 Ibidem, p. 79. 67 Ibidem, p. 87 et seq. 68 Ibidem, p. 89.

  • 32

    CAPTULO II - AS RETRIBUIES (POSITIVAS) CONTEMPORNEAS

    2.1 PUNIO COMO EQUIDADE (FAIRNESS)

    Todos os delitos, e talvez os crimes, tm por princpio um raciocnio incorreto ou o excesso de egosmo. A sociedade s pode existir graas aos sacrifcios individuais exigidos pelas leis. Aceitar suas vantagens no se

    comprometer a manter as condies que a fazem subsistir? Ora, os infelizes sem po, obrigados a respeitar a propriedade no devem ser menos

    lamentados que as mulheres feridas em seus desejos e na sensibilidade de sua natureza.

    Honor de Balzac, A mulher de 30 anos.

    Examina-se agora a teoria de punio conhecida como equidade

    (fairness), a qual nos oferece uma justificao retributiva: a punio devida porque

    restaura a balana de benefcios e fardos (benefits and burdens) perturbada pelo crime.

    Vrios foram os autores que a desenvolveram, sendo tambm diversas as crticas

    enfrentadas por ela, inclusive por seus proponentes iniciais69. Entretanto sero analisadas

    apenas as formulaes de Murphy, um dos criadores da teoria, e Dagger, um de seus atuais

    defensores.

    Murphy nos aponta para algo que muitos comentadores sobre a punio

    falharam em enxergar: que os problemas enfrentados pelas teorias utilitaristas, no tpico

    sobre a punio dos inocentes, surgem do mesmo modo no que diz respeito punio dos

    culpados. Para um consequencialista a punio justificada com base nos resultados sociais

    (preveno de crimes). Os homens culpados so punidos pelo valor instrumental que se

    retira de sua punio, ou seja, so utilizados como meio para obteno de um bem futuro.

    Aqueles de orientao kantiana objetam, ento, que, embora sejam importantes essas

    consequncias benficas, no se est vislumbrando o ponto moralmente crucial: a questo

    dos direitos70. Tem o Estado o direito de punir?

    69 MURPHY, Jeffrie G. Marxism and Retribution. In: DUFF, Antony R.; GARLAND, David (Comp.). A reader on punishment. New York: Oxford, 1994, p. 44-71. 70 Ibidem, p. 48 et seq.

  • 33

    Tal indagao deve ser respondida pelos retribucionistas. Tendo em vista

    que a punio entendida como ao moralmente adequada, sem ser feita meno sobre

    suas consequncias, sua justificao s pode ocorrer se for mostrado que a coero

    consistente com o respeito pela autonomia e pela liberdade do ofensor. Como reconciliar a

    autonomia individual com a coero estatal legtima? Dito de outro modo: ainda que a

    punio tenha maravilhosas consequncias sociais, o qu d a qualquer um o direito de

    infringi-la sobre mim? 71 Esse ponto ser deixado de lado por enquanto, mas ser retomado

    aps a explicao do conceito de fair balance.

    A lei permite que vivamos em sociedade. A lei criminal confere aos

    cidados uma proteo aos bens jurdicos mais relevantes, oferece-lhes, portanto, o

    benefcio da segurana, da paz e da liberdade. Ao mesmo tempo, ela coloca sobre cada

    indivduo um fardo de autoconstrio (self-constraint): que os benefcios providos por ela

    apenas so alcanados quando cada um se abstm de realizar condutas prejudiciais aos

    outros. Em uma sociedade justa os benefcios e os fardos esto igualitariamente distribudos

    - a todos concedida a proteo, e sobre todos recai o fardo de autoconstrio, o qual

    possibilita, em primeiro lugar, essa proteo72.

    Nesse esquema, aquele que infringe a lei obtm uma vantagem indevida

    (unfair advantage), pois recebe os benefcios que fluem do fardo de autoconstrio dos

    outros, sem, entretanto, pagar o preo devido por eles; o criminoso torna-se, ento, um

    parasita (free-rider). Mas a vantagem indevida que esse indivduo recebe no decorre de

    qualquer ganho material, produto de seu crime; ela consiste na prpria escusa em aceitar o

    fardo de autoconstrio. Algo como uma carga maior de liberdade obtida custa dos

    outros, aqueles que respeitam a lei. Ou seja, o crime perturba a balana entre benefcios e

    fardos. O propsito da punio, ento, restaurar o equilbrio: uma carga extra de

    constrio imposta ao criminoso, um impedimento a sua liberdade, para que agora ele

    cumpra o fardo que havia evitado. Ao proceder assim, a punio retira a vantagem indevida

    obtida pelo descumprimento da lei. De certa forma, ela funciona como uma cobrana do

    71 Ibidem, p. 51. 72 MURPHY, Jeffrie G. Legal moralism and retribution revisited. Criminal Law and Philosophy. v. 1, n. 5, p. 5-20, 2007.

  • 34

    dbito devido para com os outros cidados. Consumada a punio, restaura-se a fair

    balance73.

    2.1.1 Coero, autonomia e liberdade.

    No h como formar um Estado sem o uso da coero. Uma das primeiras

    tarefas a serem cumpridas - e sem ela no h Estado - estabelecer quem manda e quem

    obedece, esse um princpio de ordem74. Mas isso coloca um problema para aqueles

    ligados a uma tradio individualista que, como Kant, valorizam liberdade humana como um

    valor primordial. Retomemos a pergunta: de que forma pode ser reconciliada a autonomia

    individual e a coero estatal legtima? A resposta, resumidamente, que a coero pode

    ser moralmente justificada, sem violar a autonomia individual, se puder ser mostrado que o

    criminoso racionalmente desejou sua prpria punio, a despeito de seu dissenso atual em

    ser punido.

    A ideia remete inicialmente s teorias do contrato social - de que o

    indivduo contratou com seus pares, no momento da transio do estado de natureza para o

    estado civil, as regras que iriam estabelecer a convivncia e consentiu, no ponto que nos

    importa, com a eventual interveno em sua liberdade. Em razo de essas teorias serem

    bem conhecidas, e fortemente criticadas, abstm-se de analis-las para dar maior ateno

    aos desenvolvimentos dados por Kant e Rawls75. O segundo explica que a invaso violenta

    contra a liberdade individual justificada, porque cada um, na posio original detrs do vu

    da ignorncia, acordou sobre uma rule of law que poder verter futuramente contra sua

    prpria vontade manifesta. O primeiro, anteriormente e em sentido parecido, aponta que a

    73 Ibidem, p. 13. 74 ORTEGA Y GASSET. Del Imperio Romano. Obras Complestas. Tomo VI. 75 Os contratualistas, Kant e Rawls diferem em alguns aspectos, e no propsito deste estudo estabelecer uma distino exata de cada um deles. Rawls, por exemplo, explica que de sua posio original retiram-se os princpios primeiros de justia, no uma forma de governo, como em Locke. A posio original dele tambm mais abstrata, pois o acordo deve ser visto como hipottico e ahistrico. RAWLS, John. Justia como equidade: uma reformulao. So Paulo: Martins Fontes, p. 20-25. Por outro lado, entre esses autores existe uma continuidade e convergncia, e isso que se tentou expor em poucas linhas.

  • 35

    justia a agregao das foras em que a vontade de todos regida de acordo com uma lei

    universal de liberdade - um imperativo categrico. O que importa, nesses dois modelos, a

    deciso racional: respeitar a autonomia de um homem, ao menos nesta perspectiva, no

    respeitar o que agora ele, acriticamente, deseja; ao invs, respeitar o que ele deseja (ou

    desejaria) como um homem racional76. Assim, pode-se dizer que eu desejei a minha prpria

    punio, porque, em uma posio antecedente, eu e meus companheiros teramos escolhido

    a instituio de punio como a coisa mais racional a ser feita, quando forem quebradas as

    outras leis sociais adotadas77.

    Murphy, no entanto, conclui que, embora esse esquema retributivo seja

    formalmente correto, ele materialmente inadequado - e aqui so levantados temas

    marxistas, como a luta econmica de classes. A teoria exposta necessita de que a relao

    entre homem e sociedade funcione como um clube de cavalheiros, em que as regras

    sociais beneficiam todos os participantes igualmente, e eles compartilham valores da mesma

    forma. Na realidade, como poderamos insistir em falar no pagamento de um dbito para

    com a sociedade? Muitos dos criminosos jamais receberam os tais benefcios que advm da

    obedincia das regras e, portanto, no poderiam escolher, na posio inicial, em consentir

    com sua prpria punio. A concordncia racional com a obedincia das regras - no caso, de

    no cometer crimes - pressupe o recebimento dos benefcios. Talvez, finaliza o autor, s

    poderamos justificar a punio, quando tivssemos uma sociedade melhor, reestruturada

    de uma forma que os criminosos correspondessem ao modelo proposto: que fossem

    homens autnomos e recebessem os benefcios alardeados78.

    2.1.2 Crtica

    O problema da inadequao material necessita de uma investigao

    emprica para ser trabalhado adequadamente. Decerto que a maioria das pessoas,

    76 MURPHY, Jeffrie G., op. cit. [n. 69], p. 55. 77 MURPHY, Jeffrie G., op. cit. [n. 69], p. 56. 78 MURPHY, Jeffrie G., op. cit. [n. 69], p. 62 et seq.

  • 36

    principalmente no Brasil, encontra-se privada dos benefcios que a obedincia lei concede,

    e, justamente por isso, suas escolhas no seriam feitas de forma autnoma - e.g. moradores

    de rua e habitantes de favela. Entretanto poder-se-ia objetar que, apesar da situao de

    privao, a escolha dessas pessoas continua livre; e de alguma forma elas sempre acabam

    recebendo um ou outro benefcio do Estado cuja lei as vincula - seja um auxlio-doena, um

    bolsa-famlia, o devido processo legal, etc. Alm do levante de dados, a incurso nesse

    caminho levaria necessariamente discusso sobre livre-arbtrio e determinismo, que no

    interessa ao estudo. Outras crticas so feitas teoria da punio como equidade.

    A teoria mostrada retributiva, pois apela para a noo de que o criminoso

    merece a punio em razo do crime cometido: o crime lhe concede uma vantagem

    indevida, e a punio a retira. Conforme foi anteriormente exposto, percebe-se que a

    essncia do crime como algo errado dada pela obteno de uma vantagem indevida sobre

    os cidados que respeitam a lei; o criminoso se esquiva em aceitar o fardo de autoconstrio

    que os outros aceitam, ele no paga o preo pelo benefcio recebido. Mas ser que

    realmente podemos ver o crime dessa forma?

    A figura encaixa-se naquelas condutas em que nos perguntamos: e se

    todos ns fizssemos isto? O que errado nos crimes de sonegao fiscal, por exemplo,

    no propriamente o dano aos outros, mas a vantagem indevida que um indivduo recebe

    sobre eles: aquele que se evade do pagamento de taxas ainda assim recebe os benefcios

    que fluem dela, os quais s so possveis de serem custeados pelo Estado, porque a maioria

    das pessoas contribui corretamente. A obedincia lei, nesses casos, deve ocorrer por que

    eu aceito o fardo de autoconstrio como um preo justo pelos benefcios que recebo do

    sistema. Enfim, a concepo mostrada at descreve a natureza de grande parte dos mala

    prohibita: aes que so erradas, porque a lei assim as define; que so crimes para assegurar

    algum benefcio social79. Agora, poderamos dizer o mesmo sobre o crime de estupro, que

    constitui verdadeiro mala in se?

    79 DUFF, Antony R. Trials and punishments. New York: Cambridge, 1986, p. 211.

  • 37

    Ora, o que errado no crime de estupro o ataque injustificado

    integridade sexual da vtima, no um recebimento de uma vantagem indevida sobre

    terceiros. Ningum explicaria ao estuprador a natureza de sua conduta nestes termos:

    estuprar errado, porque voc recebe uma vantagem indevida sobre ns, que refreamos

    nossos impulsos de cometer este crime; ao contrrio, chamaramos a ateno dele para a

    natureza moralmente errada da ao, bem como para o sofrimento injustificado que a

    vtima sofreu80.

    Por um lado, a teoria nos d uma explicao implausvel das razes pelas

    quais esta conduta passa de um erro moral para um crime. Por outro, ela pressupe um

    consenso inatingvel sobre a natureza humana e suas inclinaes, pois difcil crer que a

    maioria das pessoas ache um fardo respeitar a lei que probe o estupro, ou tenha que se

    constranger de tal crime81. , portanto, um contrassenso afirmar que o criminoso recebe

    uma vantagem indevida justamente no momento em que ele contraria aqueles valores que

    nos so mais caros, aqueles que esto inscritos na lei criminal.

    Ademais, como aceitaramos, conforme nos foi proposto, que o criminoso

    consentiu racionalmente com a sua prpria punio? Se ele realmente obtm uma

    vantagem com sua conduta, por que ele escolheria, na posio inicial, uma instituio de

    crime e castigo como a que ns temos? Se uma determinada lei criminal foi racionalmente

    querida pelo agente, seria mais correto dizer que ele no obtm uma vantagem indevida

    com o crime, tendo em vista que ele est contrariando sua prpria vontade racional82. Em

    verdade, a teoria de punio como equidade nos mostra que alguma coisa deve ser feita

    com aqueles que violam a lei, porm ela nos d uma explicao tortuosa sobre o porqu de

    essa coisa ser a punio.

    2.1.3 Formulao Atual

    80 Ibidem, p. 212 81 Ibidem, p. 213. 82 Ibidem, p. 217 et seq.

  • 38

    Dagger atualiza a teoria e a defende das objees tradicionais.

    Inicialmente, ele nos direciona para o ponto em conjuno de alguns autores que utilizam o

    conceito de equidade: sob todas estas afirmaes - de Hart, de Rawls, e de Morris - jaz a

    ideia de que a sociedade, ou a ordem poltica ou legal, um empenho cooperativo. Isto , o

    dever de fair play s se aplica queles engajados no que Hart chama de iniciativa-conjunta

    e Rawls de sistema de cooperao. 83 Para o primeiro, quando um nmero de pessoas, em

    uma iniciativa-conjunta, se submete a algumas regras de restrio de liberdade, elas podem

    esperar a mesma submisso daqueles que se beneficiam com sua submisso. Para o

    segundo, em um sistema de cooperao, no qual requerido de cada um dos participantes

    um pouco de restrio de liberdade, os benefcios mtuos s sero mantidos se cada pessoa

    beneficiada estiver ligada por um dever de fair play, que consiste em fazer sua parte e no

    levar vantagem dos outros ao no cooperar84.

    O autor faz essa retomada com um propsito especfico: combater a

    argumentao de que a teoria trata indistintamente crimes de natureza diversa. Segundo

    ele, todos os crimes, de certa forma, so crimes de iniquidade (unfairness). Um estupro,

    nesse sentido, difere dos crimes de sonegao fiscal, porque, alm de ser um crime de

    iniquidade, tambm constitui uma ofensa pessoa violentada. O princpio da equidade, de

    benefcios e fardos, diz respeito ao sistema de leis, no de uma ou outra lei em particular.

    Em um sistema de cooperao, todos recebem os benefcios viver sob a gide de leis justas

    , e todos compartilham o dever de obedecer lei, quando a obedincia requer a

    autoconstrio85. No importa, ento, que os indivduos no achem um fardo respeitar

    determinadas leis, pois a obedincia de uma ou outra lei acabar sendo um fardo para eles;

    e os benefcios totais, por sua vez, ainda assim sero usufrudos por todos.

    Alm disso, ele esclarece que a teoria prescinde das perquiries de se o

    indivduo consentiu com a prpria punio, ou se as leis criminais foram racionalmente

    escolhidas. O importante que o dever de fair play pressupe a comunidade, e,

    83 DAGGER, Richard. Punishment as fair play. Res Publica. n. 14, p. 259-275, Nov. 2008. 84 Ibidem, p. 260. 85 Ibidem, p. 263 et seq.

  • 39

    reconhecendo isso, ns devemos tambm reconhecer que a comunidade ou o sentimento

    de companheirismo que faz o verdadeiro trabalho de justificar a obedincia lei e a punio

    daqueles que no obedecem.86

    Para exemplificar, Dagger nos pede para considerar casos de inequidade

    em um jogo87. No futebol, por exemplo, existem vrias formas pelas quais um jogador pode

    quebrar as regras para receber uma vantagem indevida. Ele pode estar impedido para

    marcar um gol, ou pode dar um carrinho violento para arrancar a bola do adversrio: em

    qualquer dos casos estamos defronte a violaes ao fair play. No segundo caso, a violao a

    regra mais severa, e atenta diretamente contra a integridade fsica do outro jogador. O

    mesmo se passa com os crimes mala in se. Todos os jogadores recebem o mesmo benefcio -

    de um jogo seguro -, e todos so submetidos ao mesmo fardo - de no cometer faltas. Assim

    como os jogadores so iguais no futebol, os membros da comunidade so iguais perante a

    lei, e justamente por isso que toda a ofensa criminal um crime de iniquidade: umas mais

    severas, outras menos. Depois de fixado que todos os crimes so de iniquidade, outras

    consideraes podem influenciar na determinao da gravidade da conduta e, por

    conseguinte, da correspondente severidade da punio. Portanto, conclui o autor, a teoria

    da punio como equidade captura a essncia da instituio crime e castigo tal qual a

    conhecemos: seja mostrando como alguns crimes violam mais o dever de fair play do que

    outros, seja permitindo que os membros de uma comunidade possam garantir a ordem e,

    doravante, possam comunicar o senso de variao na gravidade de cada crime88.

    2.1.4 Consideraes finais

    86 Ibidem, p. 267. A posio do autor, sobre o dever de obedincia decorrer exclusivamente do sentido de fair play, parece no ser muito clara, pois o prprio Rawls esclarece que: (...) seria incorreto dizer que o nosso dever em no cometer qualquer das ofensas legais, especificamente crimes de violncia, baseado no dever de fair play, ao menos inteiramente. (...) nosso faz-los errado independente da existncia de um sistema legal de benefcios o qual ns aceitamos voluntariamente. RAWLS, John. Legal obligation and the duty of fair play. In: RAWLS, John. Collected Papers. 3. ed. Massachusetts: Harvard, 1999, p. 118. 87 DAGGER, Richard, op. cit. [n. 83], p. 270. No original, o jogo exemplificado o baseball. 88 DAGGER, Richard, op. cit. [n. 83], p. 272.

  • 40

    A teoria de punio como equidade, mesmo em sua formulao atual, no

    consegue capturar, em sua essncia, o que existe de to especial na punio que a ligue com

    o crime. No o caso, entretanto, de ela incorrer no segundo equvoco das teorias

    retributivas, pois efetivamente nos mostrada uma razo positiva para punirmos. Mas, para

    fazer isso, a explicao dada distorce e no captura corretamente a natureza dos mais

    variados tipos de crimes.

    Dagger tenta nos mostrar que todos os crimes so crimes de iniquidade,

    porm no h razes para aceitar essa planificao, que engloba tanto mala in se quanto

    mala prohibita. Isso porque esses dois tipos de ofensa diferem radicalmente em sua

    natureza: na primeira, ns j sabemos que algumas coisas so erradas, e devemos decidir

    quais delas passaro a ser crimes; na segunda, ns comeamos com a necessidade de regras

    ou convenes para que possamos viver em sociedade e, doravante, escolhemos se

    violaes a elas so erros que devem contar como crimes89. No se precisa de regras ou

    convenes para determinar que o estupro e o homicdio sejam crimes, ao passo que

    precisamos fazer um esforo considervel para saber, por exemplo, quais condutas devem

    ser criminalizadas para protegermos o meio ambiente. Em outras palavras, essa simples

    distino mais afinada com a natureza pluralstica dos diversos crimes existentes do que a

    verso apresentada pela teoria de punio como equidade.

    Por outro lado, o maior trunfo da teoria - de tentar explicar a complexa

    relao normativa entre crime, merecimento e castigo - tambm carece de explicaes

    convincentes. Para aceitarmos a teoria em sua integralidade, deveramos entender que um

    estuprador deve ser punido mais severamente do que um sonegador, porque, em princpio,

    o primeiro recebe uma vantagem indevida maior em relao ao segundo90. Novamente

    estaramos, ento, dando uma justificao tortuosa sobre a gravidade das condutas e a

    consequente severidade da punio, pois a descrio desses dois elementos pode ser dada

    mais naturalmente, se apelarmos para a perversidade de cada