punhalada no escuro

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Livro de Lawrence Block da Colecção Gato preto, publicado na Cotovia

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Page 1: Punhalada no escuro
Page 2: Punhalada no escuro

Lawrence Block

UMA PUNHALADA NO ESCURO

tradução de

Maria Helena Rodrigues de Souza

Cotovia

Page 3: Punhalada no escuro

Título original: A Stab in the dark

Copyright © Lawrence Block, 1981Publicado mediante acordo com o autor

(Baror International, Inc., Armonk, Nova Iorque, E.U.A.)© Edições Cotovia, Lisboa, 2011

Tradução: Maria Helena Rodrigues de SouzaRevisão e adaptação ao português de Portugal:

Isabel Lucas

ISBN 978-972-795-318-9

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Nem o vi chegar. Estava no Armstrong’s, na minha mesa desempre, lá atrás. A maioria dos clientes do almoço já tinha saídoe havia muito menos barulho. Podia-se ouvir sem esforço amúsica clássica transmitida pelo rádio. Lá fora estava um diacinzento, soprava um vento desagradável e havia no ar uma pro-messa de chuva. Um óptimo dia para nos enfiarmos num bar daNona Avenida a beber um café baptizado com bourbon en-quanto se lê uma reportagem no Post sobre um maluco que andaa cortar os transeuntes na Primeira Avenida.

— Senhor Scudder? Sessenta anos, por aí. Testa alta, óculos sem aros e olhos de

um azul-pálido. Cabelo louro já com brancas, penteado demaneira a ficar agarrado ao couro cabeludo. Mais ou menos ummetro e setenta e cinco. Digamos, uns setenta e sete quilos. Peleclara. Bem barbeado. Nariz afilado. Boca pequena de lábiosfinos. Fato cinzento, camisa branca, gravata às riscas vermelhas,azuis e douradas. Pasta numa mão, na outra um guarda-chuva.

— Posso-me sentar? Indiquei com a cabeça a cadeira em frente à minha. Ele acei-

tou, tirou uma carteira do bolso do casaco e entregou-me umcartão. Tinha mãos pequenas e usava um anel maçónico.

Dei uma olhadela no cartão e devolvi-o. — Não, obrigado— disse.

— Mas…

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— Não quero nenhum seguro — acrescentei. — E, alémdisso, não iria querer vender-me nenhum. Sou uma péssimaaposta.

Ele fez um ruído que poderia ser uma gargalhada nervosa.— Meu Deus! — disse. — Claro que era isso que o senhor iriapensar! Mas não lhe vim vender nada. Nem me consigo lembrarda última vez que preenchi uma apólice individual. A minhaárea é a de apólices para grandes empresas. — Pôs o cartão nomeio da mesa, sobre a toalha aos quadrados azuis e brancos.— Por favor — disse.

O cartão identificava-o como Charles F. London, agentegeral da companhia de seguros Mutual Life, de New Hamps-hire. O endereço fornecido era rua Pine, 42, no centro do bairrofinanceiro. Havia dois números de telefone, um local, o outrocom o código de área 914. Um subúrbio a norte, provavelmente.Talvez Westchester County.

Eu continuava com o cartão na mão quando a Trina apareceupara anotar os nossos pedidos. Ele pediu um Dewar com águacom gás. A minha chávena de café ainda estava meia. Quandoela se foi embora, ele disse: — O Francis Fitzroy recomendou--me os seus serviços.

— Francis Fitzroy? — Detective Fitzroy. Décimo terceiro bairro de polícia. — Ah, o Frank — respondi. — Há algum tempo que não vejo

o Frank. Nem sabia que ele agora estava no décimo terceiro. — Falei com ele ontem à tarde. — Tirou os óculos, limpou

as lentes com o guardanapo. — Como já disse, foi ele quem morecomendou e resolvi deixar passar uma noite para pensar etomar uma decisão. Não dormi muito. Tinha compromissos demanhã, depois fui ao seu hotel e lá disseram-me que o poderiaencontrar aqui.

Esperei que continuasse. — Sabe quem sou eu, senhor Scudder? — Não. — Sou o pai da Barbara Ettinger.

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— Barbara Ettinger… espere um minuto. A Trina trouxe-lhe a bebida, pousou-a na mesa e afastou-se

sem dizer nada. Ele segurou o copo mas não o levantou. — O homem do picador de gelo. Será por isso que me lem-

bro do nome? — Por isso mesmo. — Mas isso deve ter sido há uns dez anos. — Nove. — Ela foi uma das vítimas. Naquela altura eu trabalhava em

Brooklyn. No septuagésimo oitavo bairro de polícia, Bergencom Flatbush. Esse caso foi nosso, não foi?

— Foi. Fechei os olhos e deixei as recordações fluírem. — Ela foi

uma das últimas vítimas. A quinta ou a sexta, deve ter sido. — A sexta. — Depois houve mais duas e aí o tipo parou. Barbara Ettin-

ger. Era professora. Não, não era bem isso. Uma creche… Tra-balhava numa creche.

— Vejo que tem boa memória. — Poderia ser melhor. Só fiquei com o caso o tempo sufi-

ciente para concluir que se tratava de outro crime do homem dopicador de gelo. Naquela altura limitámo-nos a enviar os dadospara o pessoal que estava a tratar do assunto desde o início. Mid-town North, acho que eram eles. Acho até que, na ocasião, oFrank Fitzroy estava na Midtown North.

— Estava, sim. De repente, a minha memória foi invadida por algumas sen-

sações. Lembrei-me de uma cozinha em Brooklyn, do cheiro decomida no ar, misturado ao odor de morte recente. Uma jovemestendida no linóleo, a roupa em desalinho, o corpo ferido porinúmeras perfurações. Não tinha nenhuma recordação do rostodela, só sei que estava morta.

Acabei o café, desejando que fosse puro Bourbon. Do outrolado da mesa, Charles London parecia experimentar um pe-queno gole do seu whisky. Olhei para os símbolos maçónicos

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no anel de ouro dele e fiquei a imaginar que significado teriame qual a sua importância para London.

— Ele matou oito mulheres num período de mais ou menosdois meses. Sempre o mesmo modus operandi: atacava as víti-mas na casa delas, durante o dia. Múltiplos ferimentos causa-dos por um picador de gelo. Cometeu oito crimes, depois parou.

Ele não disse nada. — E agora, nove anos depois, apanharam-no. Quando? Há

duas semanas? — Quase três. Eu não tinha prestado muita atenção ao que os jornais

escreveram. Dois polícias de patrulha do Upper West Sidepararam um indivíduo suspeito e, ao revistá-lo, encontraramum picador de gelo. Levaram-no para a esquadra, verificaramse tinha o registo criminal limpo e descobriram que voltara àsruas depois de um longo internamento no Hospital Estatal deManhattan. Alguém resolveu perguntar porque é que ele achavanecessário andar com um picador de gelo e teve sorte, o que àsvezes acontece. Antes de continuarem com as perguntas, ele con-fessou uma lista completa de homicídios por resolver.

— Publicaram o retrato dele — acrescentei. — Um tipofranzino, não é? Não me lembro do nome.

— Louis Pinell. Olhei-o de soslaio. Tinha as mãos em cima da mesa, as pon-

tas dos dedos apenas tocavam a toalha e ele observava-as. Co-mentei que devia estar imensamente aliviado agora que o ho-mem, depois de tantos anos, tinha sido preso.

— Não — respondeu. A música parou. O locutor do rádio apregoava assinaturas

para uma revista publicada pela Sociedade Audubon. Calado,esperei que London continuasse a falar.

— Eu quase preferia que ele não tivesse sido apanhado —disse Charles London.

— Porquê? — Porque ele não matou a Barbara.

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Mais tarde, li os três jornais e as reportagens diziam quePinell confessara sete assassínios, afirmando porém ser inocentedo oitavo, o sexto da série. Mesmo que tivesse reparado nessainformação da primeira vez, não lhe teria dado a mínima impor-tância. Quem sabe o que um assassino psicótico vai dizer noveanos depois dos crimes?

De acordo com London, o álibi de Pinell era muito consis-tente, ninguém se estava a basear apenas na memória. Na noiteanterior ao assassínio de Barbara Ettinger, Pinell fora apanhadopela polícia graças à denúncia de um empregado de balcão numcafé da rua vinte e poucos Leste. Levado para o Hospital Bel-levue para observação, lá ficara dois dias e depois fora solto.Tanto a polícia como os registos do hospital deixavam absolu-tamente claro que ele estava enfiado numa enfermaria no mo-mento do assassínio de Barbara Ettinger.

— Fiquei a repetir para mim mesmo que poderia haver umengano — disse London. — Um erro de um funcionário aoregistar uma data de admissão ou de alta. Mas não houve erros.E o Pinell foi inflexível, não mudou uma linha do seu depoi-mento. Estava perfeitamente disposto a admitir os outros setecrimes. Parecia ter, de algum modo, um certo orgulho no quefizera. Mas ficava genuinamente zangado quando pretendiamatribuir-lhe um crime que não cometera.

Pegou no copo mas voltou a pousá-lo na mesa sem beber. — Há vários anos que parei de pensar nisso — disse ele. —

Cheguei à conclusão de que o assassino da Barbara jamais seriaapanhado. Quando a série de crimes foi interrompida, assimde repente, deduzi que o assassino ou tinha morrido ou se tinhamudado para outra cidade. Na minha imaginação, ele tiveraum momento de terrível lucidez, dera-se conta do que fizera ematara-se. Para mim era mais fácil pensar assim e, numa con-versa que tive com um polícia, soube que essas coisas às vezesacontecem. Passei a imaginar que a Barbara tinha sido uma ví-tima das forças da natureza, como se tivesse morrido num ter-

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ramoto ou numa inundação. A morte dela era impessoal, equem a assassinara desconhecido e ignoto. Percebe?

— Acho que sim. — Agora tudo mudou. A Barbara não morreu devido a uma

força da natureza. Foi assassinada por alguém que tentou fazerparecer que a morte dela também devia ser atribuída ao homemdo picador de gelo. Quem a assassinou foi alguém muito frio ecalculista. — Fechou os olhos por momentos; um músculocomeçou a pulsar num dos lados do seu rosto. — Durante anospensei que ela tivesse sido assassinada sem motivo, à toa —continuou —, e isso era terrível, mas agora vejo que foi mortapor alguma razão, e isso é ainda pior.

— Sim. — Procurei o detective Fitzroy para saber o que ia fazer. Na

realidade, não fui directamente ter com ele. Fui passando deuma pessoa para outra. Sem dúvida que achavam que, às tan-tas, eu iria perder a coragem e acabaria por desistir, deixando--os em paz. Finalmente, fui atendido pelo detective Fitzroy,que me disse que a polícia não vai fazer nada para encontrar oassassino da Barbara.

— O que é que esperava que eles fizessem? — Que reabrissem o caso. Reiniciassem a investigação. O Fitz-

roy fez-me ver que as minhas expectativas eram estúpidas. Logode início fiquei zangado mas ele ajudou-me a reflectir e acabeipor me conformar. Lembrou-me que o caso já tinha nove anos.Não havia nem pistas nem suspeitos na ocasião. Quanto maisagora. Anos antes, eles desistiram de investigar os oito crimese o facto de agora poderem fechar os arquivos de sete dos oitocasos era simplesmente um presente do destino. Ele parecia nãoestar nada incomodado, nem os outros com quem falei, com ofacto de existir um assassino à solta. Imagino que haja um bomnúmero de assassinos em liberdade por aí.

— Infelizmente é verdade. — Mas é que eu tenho um interesse especial por este assas-

sino em particular. — Com aquelas suas mãos tão pequenas

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fechadas em punho, continuou: — Ela deve ter sido morta poralguém que a conhecia. Alguém que foi ao enterro, alguém quefingiu chorar por ela. Meu Deus, é isso que não posso tolerar!

Eu não disse nada durante uns minutos. Fiz sinal à Trina epedi uma bebida. Uma bebida a sério. Já estava farto de café.Quando ela a trouxe, bebi metade e senti o calor espalhar-se den-tro de mim, quebrando um pouco do gelo daquele dia.

— O que quer que eu faça? — Quero que descubra quem matou a minha filha. Até ali, nenhuma surpresa. — Isso vai ser praticamente

impossível — respondi. — Eu sei. — Se houve alguma vez uma pista, já está mais do que fria.

E que posso eu fazer que a bófia não possa? — O senhor pode tentar. Isso é o que eles não podem fazer

ou, pelo menos, é o que não querem fazer, o que vai dar ao mes-mo. Não estou a dizer que estão errados em não querer reabriro caso. Só que eu quero que reabram, porém não tenho voz acti-va. Mas com o senhor as coisas são diferentes, posso contratá-lo.

— Não é bem assim. — Não entendo. — O senhor não me pode contratar — expliquei. — Não

sou um investigador particular.— O Fitzroy afirmou...— Os investigadores particulares têm licenças — continuei.

— Eu não. Preenchem formulários, fazem relatórios em tripli-cado, apresentam recibos de despesas, pagam impostos na fonte,fazem todas essas coisas que eu não faço.

— O que faz então, senhor Scudder? Encolhi os ombros. — Às vezes faço um favor a alguém, e às

vezes essa pessoa dá-me algum dinheiro. Como favor também. — Acho que estou a perceber. — Percebe? — Bebi o resto da minha bebida. Lembrei-me

do cadáver naquela cozinha de Brooklyn. Pele branca, peque-nas gotas de sangue coagulado à volta das feridas. — O senhor

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quer apanhar um assassino e levá-lo perante a Justiça — disseeu. — O melhor é convencer-se de que isso é impossível. Mesmoque haja um assassino à solta, mesmo que haja um modo de des-cobrir quem ele é, não vamos encontrar provas por aí, depoisde todos estes anos. Nenhum picador de gelo guardado nagaveta de ferramentas de alguém. Eu poderia ter sorte e encon-trar uma pista, mas nada que se pudesse argumentar diante deum juiz. Alguém matou a sua filha e conseguiu escapar, e issodeixa-o indignado. Não será ainda mais frustrante saber quemele é e, ainda assim, não poder fazer nada?

— Continuo a querer saber. — O senhor pode vir a descobrir coisas que o irão magoar.

O senhor mesmo disse: alguém provavelmente a matou por ummotivo específico. Talvez lhe faça menos mal não saber quemotivo é esse.

— É possível. — Mas quer correr esse risco… — Quero. — Bem, talvez eu possa começar a conversar com algumas

pessoas. — Tirei a caneta do meu bloco de notas do bolso, abrinuma página em branco, retirei a tampa da caneta. — Possomuito bem começar por si.

Falámos durante quase uma hora e tirei muitas notas. Pedi outro Bourbon, mas tentei que este durasse. Ele pediu

à Trina que levasse a bebida dele e lhe trouxesse um café. Elavoltou para lhe servir mais duas chávenas antes de terminar-mos a nossa conversa.

Ele morava em Hastings-on-Hudson, no Westchester County.Tinha-se mudado da cidade para lá quando a Barbara tinha cincoanos e a sua irmã mais nova, Lynn, três. Uns seis anos depoisda morte da Barbara a mulher dele, Helen, morrera de cancro.Agora vivia sozinho. De vez em quando pensava em vender acasa mas ainda não tinha contactado nenhuma imobiliária. Su-punha que era uma coisa que iria fazer mais tarde ou mais

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cedo. E, então, ou se mudava para a cidade ou compraria oúltimo andar de um prédio algures, mesmo em Westchester.

A Barbara tinha vinte e seis anos; se estivesse viva estariacom trinta e cinco. Não tinha filhos. Estava grávida de poucosmeses quando morreu e London só soube disso após a mortedela. Ao falar sobre a gravidez, a voz tremeu-lhe.

Douglas Ettinger casara-se novamente uns dois anos depoisda morte da mulher. Enquanto foi casado com a Barbara, eraassistente da segurança social, mas deixou esse emprego logoapós o crime e foi trabalhar como vendedor. O pai da sua se-gunda mulher era dono de uma loja de artigos desportivos emLong Island e, depois de Ettinger se ter casado com a filha,tornara-o sócio. Ettinger morava em Mineola com a mulher edois ou três filhos — London não sabia ao certo quantos. Apa-recera sozinho no enterro de Helen London e, desde então,London não tivera mais nenhum contacto com ele, nem conhe-cia a segunda mulher dele.

Lynn London ia fazer trinta e três anos dali a um mês. Mo-rava em Chelsea e ensinava no quarto ano de uma escola parti-cular progressista, no Village. Casara-se logo depois da mortede Barbara e separara-se com dois anos e pouco de casamento,vindo a divorciar-se quase em seguida. Não teve filhos.

London mencionou outras pessoas. Vizinhos, amigos. A di-rectora da creche onde a Barbara trabalhava. Uma colega de tra-balho. A melhor amiga dela dos tempos de escola. Algumas vezesrecordava os nomes, outras não, mas foi relatando uma miscelâ-nea de factos que podiam servir como ponto de partida. Não quealgum deles pudesse necessariamente levar-me a alguma pista.

Muitas vezes, saía pela tangente. Deixei-o à vontade. Acheique poderia ter um retrato mais nítido deixando-o divagar,mas nem assim consegui uma imagem completa. Soube que elaera atraente, que fora uma adolescente de sucesso, que tinhasido boa aluna. Interessava-se por ajudar as pessoas, gostava detrabalhar com crianças e estava ansiosa para ter a sua própriafamília. A imagem que passava era a de uma mulher sem vícios

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e de virtudes delicadas, ainda entre a infância e a idade quejamais alcançaria. Tive a sensação de que ele não a conhecerarealmente bem, que sempre estivera envolvido no seu trabalhoe no seu papel de pai, sem chegar a ter uma verdadeira percep-ção dela como pessoa.

O que não é de todo invulgar. A maioria das pessoas nãoconhece realmente os filhos enquanto estes não se tornam, porsua vez, pais. E a Barbara não viveu até esse momento.

Quando ele não tinha mais nada para contar, folheei as mi-nhas notas e fechei o bloco. Disse-lhe que ia ver o que podiafazer.

— Vou precisar de algum dinheiro. — Quanto? Nunca sei quanto cobrar. O que é pouco e o que é muito?

Sabia que precisava de dinheiro — condição crónica — e queele provavelmente tinha bastante. Os agentes de seguros podemganhar muito ou pouco, mas tenho a impressão de que venderapólices em grupo para empresas é, possivelmente, muitolucrativo. Mentalmente atirei ao ar uma moeda e ela caiu reve-lando mil e quinhentos dólares.

— E o que é que isso compra, senhor Scudder? Disse-lhe que realmente não sabia. — Comprará o meu em-

penho — acrescentei. — Trabalharei nisto até descobrir algumacoisa ou até que fique bem evidente para mim que não há nadapara descobrir. Se isso acontecer antes de eu achar que merecio seu dinheiro, terá parte dele de volta. Se sentir que devo ganharmais, digo-lhe e logo decide se quer ou não pagar.

— Isso é bastante irregular, não é? — Talvez não se sinta à vontade com este meu modo de

actuar. Ficou pensativo mas não disse nada. Em vez disso, pegou no

livro de cheques e perguntou em que nome deveria passar. Mat-thew Scudder, respondi, e ele escreveu o meu nome, arrancouo cheque do livro e colocou-o na mesa entre nós os dois.

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Não peguei logo no cheque. Antes disse: — Sabe que nãosou a única alternativa à polícia. Há agências grandes, com mui-tos funcionários, que operam de um modo muito mais conven-cional. Fazem relatórios detalhados, prestam contas de cadacentavo de honorários e despesas. Além disso, têm mais recur-sos do que eu.

— O detective Fitzroy disse o mesmo. Disse-me que há umasduas grandes agências que me poderia recomendar.

— Mas recomendou o meu nome? — Sim. — Porquê? — Eu sabia de um motivo, claro, mas não seria

esse o que Fitzroy teria revelado a London. London sorriu pela primeira vez. — Ele disse que o senhor

é um filho-da-puta maluco. São palavras dele, não minhas. — Sim, e então? — Disse que o seu envolvimento seria muito maior do que o

de uma grande agência qualquer. Que, quando o senhor enfiaos dentes numa presa, é muito difícil que largue. Disse tambémque, apesar de estar tudo contra, o senhor é muito capaz de con-seguir descobrir quem matou a Barbara.

— Ele disse isso? — Peguei no cheque, examinei-o, dobrei-oao meio e disse: — Sabe, ele tem razão. Sou mesmo.

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Já era tarde para ir ao banco. Depois de London sair, acerteias minhas contas e descontei um vale no bar. A minha primeiraparagem seria no décimo oitavo bairro de polícia, e é conside-rado falta de educação aparecer de mãos a abanar.

Telefonei antes, para ter a certeza de que ele estaria lá. Depois,apanhei um autocarro para leste e outro para o centro. O Arms-

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trong’s fica na Nona Avenida, quase na esquina da rua 57, a domeu hotel. O décimo oitavo bairro fica no rés-do-chão da aca-demia de polícia, num edifício moderno de oito andares, comsalas de aula para recrutas e cursos de preparação para os exa-mes de acesso a sargentos e a tenentes. Tem uma piscina, umginásio equipado com aparelhos de ginástica e uma esteiraergométrica. Quem quiser pode frequentar aulas de artes mar-ciais ou ficar surdo nos exercícios de tiro.

Senti-me como me sinto sempre que entro numa esquadra.Como um impostor, creio, e um impostor fracassado. Parei naportaria e disse que tinha assuntos a tratar com o detective Fitz-roy. O sargento fardado fez-me sinal para passar. Provavel-mente pensou que eu era alguém importante. Certamente aindapareço um polícia, ou ando como um ou qualquer coisa seme-lhante. É assim que me encaram. Até os bófias.

Dirigi-me à sala e encontrei o Fitzroy a escrever à máquinanuma escrivaninha de canto. Em cima da mesa havia meiadúzia de pequenas chávenas de plástico, cada uma com restosde café muito fraco no fundo. O Fitzroy apontou-me umacadeira e sentei-me, enquanto ele acabava de dactilografar orelatório. Algumas mesas à frente, dois bófias atormentavam ummiúdo preto, magricela, de olhos de sapo. Deduzi que tinha sidoapanhado a roubar carteiras. Não é que eles estivessem a maltra-tar o miúdo, mas também o delito dele não era o crime do século.

O Fitzroy continuava o mesmo, talvez um pouco mais pesadoe mais velho. Calculo que não dedicasse muitas horas à cama.Tinha o rosto avermelhado dos irlandeses e cabelo grisalho cor-tado à escovinha, muito curto, e pouquíssimas pessoas no mundoo confundiriam com um contabilista ou com um maestro ou comum motorista de táxi. Ou com um dactilógrafo, apesar de ele sermuito rápido a teclar só com dois dedos.

Finalmente, ele terminou e empurrou a máquina para o lado.— Juro que, no fundo, é tudo papelada. Isso e comparecer emtribunal. Quem é que tem tempo para investigar alguma coisa?

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Olá, Matt. — Demos um aperto de mão. — Há quanto tempo,não é? Não estás nada mal.

— Por quê? Devia estar? — Não, claro que não. Que tal um café? Leite e açúcar? — Prefiro simples. Atravessou a sala até à máquina de café e voltou com mais

um par de chávenas de plástico. Os dois detectives continuavama chatear o vigarista dos truques de cartas, a dizer que achavamque era ele o esfaqueador da Primeira Avenida. O miúdo até sedefendia muito bem da brincadeira.

O Fitzroy sentou-se, soprou o café, bebeu um gole, fez umacareta. Acendeu um cigarro e encostou-se na cadeira giratória.— E o tal London? — perguntou. — Estiveste com ele?

— Mesmo agora. — O que é que achas? Vais ajudá-lo a resolver o problema? — Não sei se essa é a palavra certa. Disse-lhe que ia tentar. — Pois é, imaginei que o caso pudesse ser bom para ti, Matt.

Ele é um tipo com dinheiro. Sabes como são essas coisas, é comose a filha dele morresse outra vez e ele precisa de pensar queestá a fazer qualquer coisa. Não há nada que ele possa fazer mas,se gastar uns dólares, talvez se sinta melhor, e porque é que essedinheiro não havia de ir parar às mãos de um homem bom, aquem esse dinheiro não faria mal nenhum? Ele tem dinheiro,sabes? Não é como tirar dinheiro a um vendedor de jornais alei-jadinho.

— Foi o que pensei. — Então vais tentar — continuou. — Isso é bom. Ele queria

que eu lhe recomendasse alguém e pensei logo em ti. Por quenão entregar o caso a um amigo, não é? As pessoas cuidam umasdas outras e é isso o que faz o mundo continuar a girar. Não éo que dizem?

Eu tinha junto cinco notas de vinte quando ele foi buscar ocafé. De repente, inclinei-me para a frente e enfiei-lhas na mão.— Um par de dias a trabalhar vai-me fazer bem — disse-lhe.— Obrigado.

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