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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Lucas de Faria Rodrigues A Concretização da Constituição Ecológica: a Norma Ambiental e as Ciências Naturais MESTRADO EM DIREITO SÃO PAULO 2014

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Lucas de Faria Rodrigues

A Concretização da Constituição Ecológica: a Norma Ambiental e as

Ciências Naturais

MESTRADO EM DIREITO

SÃO PAULO

2014

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Lucas de Faria Rodrigues

A Concretização da Constituição Ecológica: a Norma Ambiental e as

Ciências Naturais

MESTRADO EM DIREITO

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Direitos Difusos e Coletivos, sob a orientação do Prof. Dr. Marcelo Gomes Sodré.

SÃO PAULO

2014

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BANCA EXAMINADORA

______________________________________

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DEDICATÓRIA

Ao já não mais tão pequeno Lucas e à amada Vivian.

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AGRADECIMENTOS

Agradecimentos costumam ser um espaço de palavras certas, em que, por medo de

omissões, costuma-se recorrer a frases feitas pelo “risco de se esquecer alguns nomes”. Claro,

não fugirei desta fórmula, já para possuir uma carta na manga se indagado no futuro. Por outro

lado, algumas pessoas (e instituições) devem ser lembradas, pois presentes desde o primeiro

momento de construção desta dissertação.

Inicio pela Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, por duas razões, uma bastante

evidente, outra nem tanto. A primeira, por ter sido a instituição responsável pelo apoio

financeiro relativo à participação no curso da PUC-SP. A segunda, e um pouco menos clara

para os que não me conhecem, por ter possibilitado o contato com o Direito Ambiental – um

campo absolutamente novo, mas profundamente estimulante –, desde o primeiro dia de ingresso

na carreira de Procurador do Estado.

Ao Professor Marcelo Sodré, por ter permitido que eu seguisse meu voo com

liberdade, sempre estimulando a busca pelo meu caminho, nunca deixando que dele eu

desistisse. Alguém que conheci como um mestre e termino – não só pela dissertação, por certo

– tendo como um amigo.

A Dra. Sílvia Helena – eterna chefe, mentora e amiga –, ainda nos idos de 2010, me

deu elementos para aquilo que veio a se transformar nesta dissertação: sua preocupação com a

ideia de um sistema nacional de proteção ambiental e em como isto deveria refletir no processo

de solução dos problemas postos ao operador do Direito. Este trabalho nasceu aí – e o projeto

é a prova cabal disto –, como uma tentativa de buscar justificativas dogmáticas para a concepção

deste sistema, que fossem não só jurídicas, mas igualmente “ambientais”. Claro, o estudo de

disciplinas ditas tão distintas, como a Ecologia e o Direito (que na prática mostraram possuir

pontos de interseção relevantes), acabou me guiando para um caminho diferente, mas sem

nunca esquecer as origens.

Amigos, que de um modo ou de outro, ao longo deste caminho, contribuíram com este

trabalho, por serem quem são ou em algum momento por terem emprestado seu tempo para

ouvirem algumas reflexões: ao grande marinheiro Sheik (que, tenho certeza, nestes anos de

convívio ajudou a transformar-me enquanto pessoa), aos amigos da Consultoria Jurídica da

Secretaria do Meio Ambiente – Thaís (a quem serei eternamente grato pelo grande auxílio na

fase final desta dissertação), Fábio, Renata, Jeane, Priscilla e Dalton –, ao Heitor, ao Rodrigo

(e seu sobrenome impronunciável), aos amigos da PGE-SP (Denis, Ricardo, Samuel, entre

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outros). Sem contar os amigos feitos durante as aulas (muitos e especiais, como Renan e

Marcelo) e outros nunca esquecidos (Gunther, Diego Goulart e todos os amigos guaçuanos).

Aos professores do Programa de Pós-Graduação da PUC-SP, todos de altíssima

qualificação e importantíssimos para a realização deste trabalho. Alguns, embora possam não

saber, tiveram grande importância no resultado agora apresentado: o próprio Prof. Marcelo

Gomes Sodré, Roberto Dias Baptista da Silva, Regina Vera Villas Boas, Flávia Piovesan.

Por fim, mas não menos importante, à minha família: meus pais – Patrícia e José

Donizete – e minha irmã – Giovanna. Dediquei este trabalho ao meu filho e minha esposa, tão

amados e importantes, mas não poderia deixar também de agradecê-los, sempre tão presentes,

mesmo nos momentos de distanciamento físico.

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Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer

entender. Entender é sempre limitado. Mas não entender

pode não ter fronteiras. Eu sinto que sou muito mais

completa quando não entendo. Não entender, do modo

como falo, é um dom. Não entender, mas não como um

simples estado de espírito. O bom é ser inteligente e não

entender. É uma benção estranha, como ter loucura sem

ser doida. É um desinteresse manso, é uma doçura de

burrice. Só que de vez em quando vem a inquietação: eu

quero entender um pouco. Não demais: mas pelo menos

entender que eu não entendo.

Clarice Lispector

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RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo buscar o sentido da Constituição Ecológica, definida

como o conjunto de normas constitucionais voltadas à tutela do meio ambiente, a partir de um

diálogo efetivo com as ciências naturais. A premissa fundamental, a partir da qual desenvolveu-

se a dissertação, é de que compreender as características do bem tutelado é essencial para o

pleno exercício desta tutela. A partir daí buscou-se as bases dogmáticas no Direito a permitir

um diálogo interdisciplinar efetivo. No Direito, o fundamento foi a Teoria Estruturante de

Friedrich Müller e sua ideia de concretização das normas. A partir desta teoria foi possível

extrair a estrutura da norma jurídica, que não é um dado prévio ao intérprete, constrói-se no

caso concreto, a partir do seu programa normativo e seu âmbito normativo. O texto é apenas

parte do processo, não contém em si a normatividade. Não existe norma jurídica (e também

norma ambiental) definida previamente. A escolha da Ecologia não foi arbitrária neste contexto

de diálogo, mas imposição do próprio âmbito normativo da norma ambiental. Desta disciplina

foi possível extrair elementos como o padrão de redes (ou a interconexão) e a cooperação. Só

a partir do instante em que se compreender adequadamente as relações da natureza, poder-se-á

ter consciência da tutela esperada. Estas constatações levam a uma atuação ordenada dos

poderes públicos, voltada à conjugação de esforços para salvaguardar um bem comum. Estas

características devem refletir no padrão de ação dos poderes constituídos, no momento da

concretização da norma ambiental, a partir de máximas como coordenação, coesão e

cooperação. Mostrou-se que a intensidade e o modo de influência destes elementos variarão

conforme o programa normativo requeira a busca de elementos extrajurídicos para delimitar o

respectivo âmbito normativo. Fugir destes elementos leva a um risco de simbolização da

Constituição. Há um reflexo prático no processo de concretização, com impactos na atividade

de todos os Poderes estatais envolvidos (Legislativo, Executivo e Judiciário). Assim, há

impactos na solução de casos concretos postos a exame do Judiciário, mas também na

formatação e execução de políticas públicas. É necessário se falar em uma verdadeira diretriz

de enfrentamento das questões ambientais.

Palavras-chave: Constituição Ecológica; Teoria Estruturante; Concretização;

Interdisciplinaridade; Norma ambiental; Ecologia.

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ABSTRACT

This work aims to seek the meaning of Ecological Constitution, defined as the set of

constitutional rules directed to protection of the environment, from an effective dialogue with

the natural sciences. The fundamental premise, from which developed the thesis, is that

understanding the characteristics of the good tutored is essential to the full exercise of

guardianship. From there we sought to dogmatic bases in Law to allow an effective

interdisciplinary dialogue. In Law, the foundation was the Structuring Theory of Friedrich

Müller and his idea of the rules concretization. From this theory was possible to extract the

structure of the legal norm, which is not given prior to the interpreter, is built in the case, from

its normative program and its normative ambit. The text is only part of the process, does not

contain in itself the normativity. There is no legal norm (and also environmental norm)

previously defined. The choice of Ecology was not arbitrary in this context of dialogue, but

enforcement of the normative ambit of environmental norm. From this discipline was possible

to extract elements as the network pattern (or the interconnection) and cooperation. Only from

the instant you properly understand the nature relationships, will be possible to realize the

expected protection. These findings lead to the orderly operation of government, focused on

joint efforts to safeguard the common good. These characteristics should reflect the pattern of

action of the constituted authorities, in the moment of the environmental norm concretization,

from maxims as coordination, cohesion and cooperation. It has been shown that the intensity

and mode of influence of these elements will vary as the normative program requires the search

for extra-legal elements to delimit the respective normative ambit. Escape of these elements

leads to a risk of Constitutional symbolization. There is a practical reflection in the process of

concretization, with impacts on the activity of all state powers involved (Legislative, Executive

and Judiciary). Thus, there are impacts on the solution of concrete cases placed to the

examination of the judiciary, but also in shaping and implementing public policies. It´s

necessary to speak in a guideline for dealing with the environmental issues.

Keywords: Ecological Constitution; Structuring Theory; Concretization; Interdisciplinarity; Environmental Norm; Ecology.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 11

1. DO DIREITO À ECOLOGIA .............................................................................................. 19

1.1. Constituição Ecológica e a proteção ambiental como direito fundamental ................... 19

1.1.1. Proteção ao meio ambiente como direito fundamental ............................................... 19

1.1.2. Busca de um conceito de Constituição Ecológica ...................................................... 27

1.2. Consequências de qualificar a proteção ao meio ambiente como direito fundamental . 30

1.2.1. Dimensão subjetiva ..................................................................................................... 32

1.2.2. Dimensão objetiva ...................................................................................................... 33

1.2.3. Onde o Direito Ambiental entra nisto? ....................................................................... 36

1.3. A concretização de direitos fundamentais e a construção da norma ambiental ............. 40

1.3.1. Hermenêutica dos direitos fundamentais em um contexto pós-positivista ................. 42

1.3.2. Interpretação ou concretização dos direitos fundamentais?........................................ 45

1.3.3. Método concretista-estruturante de Friedrich Müller ................................................. 49

1.3.4. Quem deve concretizar? .............................................................................................. 56

1.4. Por que a Ecologia? ....................................................................................................... 58

2. DA ECOLOGIA DE VOLTA AO DIREITO ...................................................................... 63

2.1. Conectividade nos ecossistemas- ................................................................................... 65

2.2. O padrão de rede no comportamento dos ecossistemas................................................. 66

2.3. Cadeias alimentares ....................................................................................................... 68

2.4. Fluxos e trocas entre os ecossistemas ............................................................................ 71

2.5. Relações de dependência: um indício de cooperação? .................................................. 74

2.6. Evidências da conectividade .......................................................................................... 77

2.7. Além de Gaia: não pela teoria, mas pelos seus desdobramentos ................................... 78

2.7.1. Compreendendo a biosfera: o surgimento de uma nova Ecologia .............................. 88

2.7.2. Alguns aspectos técnicos da interligação na biosfera ................................................. 91

2.8. Porque as fronteiras dos homens não respondem às demandas naturais? ..................... 93

2.9. Algumas notas sobre a evolução e a nova visão aplicável à vida .................................. 97

2.9.1. Seriam as mutações aleatórias e a seleção natural as únicas forças evolutivas? ...... 102

2.9.2. Olhares contemporâneos sobre a evolução ............................................................... 106

2.10. Notas conclusivas: eis a teia da vida? ........................................................................ 111

3. DIREITO, ECOLOGIA E A NORMA AMBIENTAL ...................................................... 118

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3.1. O que aprendemos com o meio ambiente? .................................................................. 120

3.2. Como aplicar o que aprendemos com o meio ambiente? ............................................ 124

3.3. Uma reflexão final ....................................................................................................... 141

CONCLUSÃO ........................................................................................................................ 144

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................... 150

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INTRODUÇÃO

Esta introdução começa com um parágrafo para os desavisados. Sim, todo trabalho

científico deve – ou ao menos deveria – ser iniciado com uma indagação: qual o seu objeto?

Sobre o que se debruçará? Todo trabalho que se pretende científico – na esfera jurídica e em

tantas outras – deve partir da fixação clara do seu objeto de perquirição, para que não se perca

em devaneios retóricos irrelevantes e não deixe de apresentar o caminho teórico a ser trilhado.

Faremos isso, por certo, porém não neste momento. Há reflexões essenciais – e iniciais – a

serem feitas, razão pela qual ficará para o final a descrição mais detalhada das suas bases1.

O motivo desta inversão é um só: este não é um trabalho sobre Direito, exclusivamente,

é um ensaio sobre a natureza, principalmente. As questões do Direito serão incidentes, como

não poderia deixar de ser, mas serão instrumentais – não como uma finalidade em si mesma.

Discutiremos a norma ambiental a partir das ciências naturais, pautados em um diálogo

interdisciplinar2 efetivo – “não no sentido habitual e simples de intercambiar informações entre

diversas disciplinas, mas no sentido de descobrir pautas comuns a muitas disciplinas”3. Antes,

porém, algumas histórias deste caminho.

Ao longo da pesquisa, dois textos emergiram e se mostraram fundamentais para o

resultado agora apresentado, um como vilão, outro como incentivador. Não são exatamente

eles que serão discutidos, mas estão eles por de trás de toda a discussão. Um foi importante

não porque tenha dado respostas, mas por ter nos feito questionar. O outro, por ter mostrado ser

possível – e desejável – sair das fronteiras impingidas ao Direito e pelo Direito.

O primeiro deles, de Kuhn, nos apresentou toda discussão sobre a estrutura das

revoluções científicas e deixou valiosíssimas lições. Uma delas é o próprio conceito – tão

1 Uma das lições do mestrado (e da orientação) é que a introdução não é um espaço de mera síntese – mais do que isto, é um espaço de apresentação, de direcionamento e, sobretudo, de pavimentação do caminho a ser trilhado. 2 Há diversos níveis de diálogo entre disciplinas. O vocábulo disciplina se refere a um conjunto isolado de conhecimento, visualizado isoladamente – o Direito, a Ecologia, a Economia, etc. As abordagens ditas multidisciplinares abrangem mais de uma disciplina, mas sem uma cooperação efetiva entre elas, pouca articulação. Em um estágio além encontra-se a interdisciplinaridade, quando reconhece-se uma cooperação efetiva, mas é mantida a feição de cada disciplina. Por fim, no estágio final, há a transdisciplinaridade, pela qual a abordagem é absolutamente integrativa, na qual praticamente se perdem as divisões disciplinares – uma grande e única disciplina (ODUM, Eugene P.; BARRET, Gary W. Fundamentos de Ecologia. São Paulo: Cengage Learning, 2011, p. 15-16). Verdadeiramente o que se busca neste trabalho é um diálogo interdisciplinar, ciente das dificuldades de se estabelecer um diálogo sólido, sobretudo com o estabelecimento de premissas dogmáticas que permitam o intercâmbio de informações e uma perspectiva teórica igualmente válida para as disciplinas abrangidas. 3 LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria Geral do Direito Ambiental. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 28.

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propalado – de paradigma, definido como as “realizações científicas universalmente

reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma

comunidade de praticantes de uma ciência”4. A ciência, porém, não é estática, está em constante

processo de transformação. E mais, não evolui a partir do mero acúmulo de conhecimento.

Métodos científicos ficam obsoletos e são deixados de lado, embora possam ter reconhecida

importância histórica5. É essencial reconhecer que “se elas [crenças obsoletas] devem ser

chamadas de ciência, então a ciência inclui conjuntos de crenças totalmente incompatíveis com

as que hoje mantemos”6. Assim, é possível identificar ao longo da história movimentos que

forçam “a comunidade a rejeitar a teoria científica anteriormente aceita em favor de outra

incompatível com aquela”7 – o que o autor convencionou chamar de revolução científica.

O modelo teórico destas revoluções passa por outras conceituações fundamentais. A

ciência normal é aquela executada sempre com os olhos no passado, tendo como referência

realizações já acabadas e tidas até aquele momento como paradigmas. Por esta razão, o conceito

de ciência normal vincula-se ao de paradigma8. É o “estudo dos paradigmas [...] que prepara

basicamente o estudante para ser membro da comunidade científica determinada na qual atuará

mais tarde”9, é ela formada por um “consenso estável na pesquisa”10. Em verdade, a construção

da ciência normal passa necessariamente por um jogo de convencimento. Uma teoria deve

“parecer melhor que suas competidoras”11 e mais, deve “atrair a maioria dos praticantes de

ciência da geração seguinte”12. A consequência deste processo é a extinção gradativa de teorias

ultrapassadas.

O estabelecimento de uma base sólida para a ciência normal, com um paradigma

inquestionável – sem críticas significativas até um determinado momento histórico – não

significa o completo esvaziamento do objeto de análise dos cientistas. Há problemas

demandando soluções mesmo em um cenário do que chamaríamos de estabilidade científica.

Segundo Kuhn, o paradigma nada mais é do que uma “promessa de sucesso que pode ser

descoberta em exemplos selecionados e ainda incompletos”13, enquanto a “ciência normal

4 KUHN, Thomas S. A Estrutura das Revoluções Científicas. 5ª ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 1998. 5ª ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 1998, p. 13. 5 Ibid., p. 21. 6 Ibid., p. 21. 7 Ibid., p. 25. 8 Ibid., p. 30. 9 Ibid., p. 30. 10 Ibid., p. 35. 11 Ibid., p. 38. 12 Ibid., p. 39. 13 Ibid., p. 44.

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consiste na atualização dessa promessa, [...] que se obtém ampliando-se o conhecimento

daqueles fatos que o paradigma apresenta como particularmente relevantes”14. Não é só: a

ciência normal ocupa-se, em alguma medida, da especialização do paradigma, investigando

pontos determinados com alto grau de profundidade e detalhamento15; e mais: servem para

“aumentar o alcance e a precisão com os quais o paradigma pode ser aplicado”16. Estes papéis

poderiam ser sintetizados, nas palavras de Kuhn, no enfrentamento de três problemas distintos:

“determinação do fato significativo, harmonização dos fatos com a teoria e articulação da

teoria”17. A ciência normal, portanto, é uma ciência do agora, com base nas experiências do

passado, voltada especialmente a manter os paradigmas vigentes.

Embora a ciência normal possa objetivar a eternidade, frequentemente, no curso da

história, paradigmas mostraram-se falíveis e demandaram mudanças. Com efeito, duas formas

básicas são reconhecidas nas mudanças de paradigma. A primeira decorre das descobertas, ou

“novidades relativas a fatos”18. Estes processos são caracterizados por três diferentes aspectos,

sempre identificados, embora em diferentes graus: i. consciência da anomalia, ou seja, o

“reconhecimento de que, de alguma maneira, a natureza violou as expectativas paradigmáticas

que governam a ciência normal”19; ii. a “emergência gradual e simultânea de um

reconhecimento tanto no plano conceitual como no plano da observação”20; iii. a “mudança das

categorias e procedimentos paradigmáticos”21.

A segunda forma de mudança de paradigma decorre das invenções, ou “novidades

concernentes à teoria”. Uma nova teoria surge diante do insucesso das regras até então

vigentes22, do “fracasso caracterizado na atividade normal de resolução de problemas”23. São

justamente as crises que conduzem a uma nova teoria – deixa-se de praticar a ciência normal e

passa-se a exercer uma ciência extraordinária (fora do paradigma anterior); porém, a noção de

que os antigos alicerces passaram a ser, em alguma medida inservíveis não conduz os cientistas

prontamente ao novo padrão.

A recusa de um paradigma já estabelecido só acontece quando há efetivamente uma

alternativa à qual os cientistas podem se filiar, pois “rejeitar um paradigma sem

14 KUHN, Thomas S. A Estrutura das Revoluções Científicas. 5ª ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 1998, p. 44. 15 Ibid., p. 45. 16 Ibid., p. 58. 17 Ibid., p. 55. 18 Ibid., p. 78. 19 Ibid., p. 78. 20 Ibid., p. 89. 21 Ibid., p. 89. 22 Ibid., p. 95. 23 Ibid., p. 89.

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simultaneamente substituí-lo por outro é rejeitar a própria ciência”24. Estas crises, porém, não

advêm de qualquer turbulência. As dificuldades devem ser significativas, insolúveis pelo

paradigma vigente25. Como identificar uma crise? Segundo Kuhn, a partir do seu ponto de

partida e do seu ponto de chegada. Todas elas se iniciam “com o obscurecimento de um

paradigma e o consequente relaxamento das regras que orientam a pesquisa normal”. Todas

elas terminam de um entre três modos possíveis: i. a ciência normal consegue solucionar os

problemas colocados; ii. o problema continua sem solução, pois as novas “abordagens” não são

capazes de resolvê-los (são relevados e deixados para o futuro); iii. da crise surge um novo

paradigma, que passa a brigar para ser aceito pela comunidade científica26.

A transição de um paradigma em crise para um novo, do qual pode surgir uma nova tradição de ciência normal, está longe de ser um processo cumulativo obtido através de uma articulação do velho paradigma. É antes uma reconstrução de área de estudos a partir de novos princípios, reconstrução que altera algumas das generalizações teóricas mais elementares do paradigma, bem como muitos de seus métodos e aplicações. Durante o período de transição haverá uma grande coincidência entre os problemas que podem ser resolvidos pelo antigo paradigma e os que podem ser resolvidos pelo novo. Haverá igualmente uma diferença decisiva no tocante aos modos de solucionar os problemas27.

Para autor é a “transição para um novo paradigma” que representa a revolução

científica28. Na conceituação apresentada, as revoluções científicas são “aqueles episódios de

desenvolvimento não cumulativo, nos quais um paradigma mais antigo é total ou parcialmente

substituído por um novo, incompatível com o anterior” 29.

As revoluções científicas representam mais do que a mera mudança de paradigma,

significam igualmente uma modificação no modo de olhar o mundo30 – “os cientistas adotam

novos instrumentos e orientam seu olhar em novas direções”31 –, pois aquilo “que um homem

vê depende tanto daquilo que ele olha como daquilo que sua experiência visual-conceitual

prévia o ensinou a ver”32. O contexto no qual o observador está inserido não é alterado com a

revolução científica, mas o modo de examinar este contexto é absolutamente distinto33.

Não é a resposta à pergunta que muito provavelmente se fará neste momento. Não

estamos propondo uma mudança de paradigma – primeiro porque seria estranho fazê-lo

conscientemente, segundo porque temos clareza do nosso trabalho e de nossas pretensões. Em

24 KUHN, Thomas S. A Estrutura das Revoluções Científicas. 5ª ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 1998, p. 110. 25 Ibid., p. 113. 26 Ibid., p. 116. 27 Ibid., p. 116. 28 Ibid., p. 122. 29 Ibid., p. 125. 30 Ibid., p. 145. 31 Ibid., p. 145. 32 Ibid., p. 148. 33 Ibid., p. 157.

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verdade, esta obra e os conceitos introduzidos nos serviram muito mais para questionar o

paradigma da ciência do Direito e indagar se um modelo “clássico” de leitura da norma – um

Direito simplesmente pelo Direito e a partir do Direito –, sem espaço para um olhar

interdisciplinar, é suficiente para responder grande parte das perguntas contemporâneas e das

demandas da sociedade. Em uma sociedade complexa, uma visão interdisciplinar, envolvendo

diversos conhecimentos distintos, não seria por si só uma mudança de paradigma? Um modo

diferente de enxergar o mundo?34

Se este texto apresentou questões, o outro, mencionado ainda no início da introdução,

indicou ser possível um pensar diferente e nos estimulou a buscar o novo. Mostrou que o olhar

sobre o mundo e, consequentemente, o olhar sobre o Direito, não precisa necessariamente ser

reducionista, vez que pode ser complexo. Trata-se da obra de Morin e dos alicerces lançados

sobre aquilo que ele denominou de pensamento complexo.

Para o autor, complexo é “aquilo que não pode se resumir numa palavra-chave, o que

não pode ser reduzido a uma lei nem a uma ideia simples”35. Pode-se dizer que “a ambição do

pensamento complexo é dar conta das articulações entre os campos disciplinares que são

desmembrados pelo pensamento disjuntivo”36. Aqui, importante se dizer, não se trata

simplesmente de vangloriar um olhar holístico em detrimento dos exames reducionistas: busca-

se, em verdade, “a ideia de unidade complexa, que liga o pensamento analítico-reducionista e

o pensamento da globalidade, numa dialetização [...]” 37. O pensamento complexo não propõe

o mero afastamento das leituras antecessoras amparadas no paradigma da redução – tal olhar

deve ter sua importância reconhecida, mas não como uma visão absoluta e única

(complementaridade)38.

O pensamento complexo de Morin não busca a completude, ou o conhecimento

completo. A complexidade é a abertura ao conhecimento multidimensional, que, de modo

algum, objetiva esgotar o conhecimento39. A reflexão a partir de um olhar multidimensional

34 Como se verá ao longo do trabalho, algumas perguntas serão efetuadas não para trazermos em seguida uma resposta, mas, em verdade, para apontarmos os caminhos a serem trilhados, ou, muitas vezes, para instigar o debate. As respostas costumam ser frias e duras, inflexíveis, pouco afeitas às discussões. As perguntas, ao contrário, são um chamado à reflexão; podem até traçar rotas, mas exigem que as percorramos, por nossos próprios meios. Ainda que ofereçamos algumas respostas ao longo do nosso caminho – o que acontecerá, por serem essenciais para formularmos uma proposta de enfrentamento dos dilemas da pesquisa – elas não serão e tampouco almejarão ser definitivas – será aquilo que nós julgamos adequado apresentar, à luz das premissas do trabalho. 35 MORIN, Edgar. Introdução ao Pensamento Complexo. 4ª ed. Porto Alegre: Sulina, 2011. 4ª ed. Porto Alegre: Sulina, 2011, p. 05. 36 Ibid., p. 06. 37 Ibid., p. 54. 38 Ibid., p. 54. 39 Ibid., p. 06.

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coloca em xeque as categorizações comumente efetuadas nos bancos da universidade40 – as

disciplinas não necessariamente refletem a realidade, pois os fatos sociais (não só eles, mas

aqui indicados em razão do objeto do trabalho), não são simplesmente econômicos, legais, ou

psicológicos, a depender do observador e do seu repertório teórico. Por isso Morin é categórico

ao dizer que “toda visão unidimensional é pobre”41, pois nenhum fato fica adstrito a um único

espaço do conhecimento (ao menos não nos moldes esculpidos tradicionalmente). Por isto

mesmo, os conceitos devem viajar (preferencialmente de forma clara), possibilitando às

“disciplinas respirar, se desobstruir”42.

Com base nestas premissas, Morin aponta três princípios para a complexidade. O

princípio dialógico: “permite manter a dualidade no seio da unidade”43, vale dizer “associa dois

termos ao mesmo tempo complementares e antagônicos”44. O princípio da recursão

organizacional: os produtos de determinados processos não são causa e consequência naquela

mecânica, influenciam e são influenciados45. Por fim, o princípio hologramático, as partes e o

todo se integram, à medida que a correta compreensão do todo passa pela compreensão das

partes e a compreensão das partes passa pela do todo.

Aproximando o pensamento complexo do Direito, podemos afirmar, sem sombra de

dúvidas, que o chamado à superação do paradigma da disjunção pelo paradigma da conjunção46

também deve ocorrer na ciência jurídica. A norma não se basta, o Direito não se basta, ele

demanda, em maior ou menor medida, a abertura para outros saberes, para outras ciências. O

pensamento complexo não só nos fez perceber que isto é possível, como também necessário.

É justamente este o desafio deste trabalho – e agora retornamos ao início da introdução.

As características do bem tutelado – neste caso o meio ambiente – devem ter uma função de

relativa importância no processo de concretização da norma de tutela – o que aqui chamaremos

de “norma ambiental”. Este é o objeto da pesquisa. Há um papel específico das ciências naturais

no processo de concretização da norma ambiental? Se há, qual é o papel das ciências naturais?

Como este diálogo deve acontecer do ponto de vista dogmático, considerando, em especial, os

paradigmas do Direito? Por fim, o que é possível extrair desta integração e quais os resultados

deste processo?

40 MORIN, Edgar. Introdução ao Pensamento Complexo. 4ª ed. Porto Alegre: Sulina, 2011, p. 68. 41 Ibid., p. 69. 42 Ibid., p. 117. 43 Ibid., p. 74. 44 Ibid., p. 74. 45 Ibid., p. 74. 46 Ibid., p. 14/15.

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Nesta altura, já é possível ao menos imaginar grande parte das respostas às questões

apresentadas anteriormente. Se chegamos nesta parte, pressupor-se-á, corretamente, que este

diálogo foi efetuado, cabendo discutir mais a forma e as consequências dele. De fato, o estudo

da Ecologia mostrou ser possível extrair da natureza uma experiência positiva (a cooperação) e

uma certeza (o padrão de redes dos fenômenos naturais). Como e em que medida isso influirá

na definição da norma ambiental são perguntas a serem respondidas em seguida. Aqui também

cabe uma ressalva metodológica fundamental para a delimitação da exposição que se inicia:

embora as características do meio ambiente sejam de amplitude tal que permitam uma

abordagem mais expansiva, sobretudo nos aspectos internacionais, olharemos especificamente

para o processo de concretização da norma nacional, sem, por certo, perder de vista o

entrelaçamento necessário e invariável com sistemas de proteção internacionais.

Na busca do sentido da norma ambiental, o trabalho foi estruturado em três grandes

partes, como se verá a partir deste momento. Será possível notar uma ideia circular na

exposição, que partirá do Direito, buscando nele elementos para suportar o diálogo com a

Ecologia – o primeiro capítulo – e, em um segundo momento, a partir da Ecologia buscar-se-á

voltar ao Direito – segundo capítulo. A terceira parte ficará reservada a ser um tópico de

fechamento, mais voltado ao resultado da junção aqui proposta – com o aproveitamento de

elementos de uma disciplina pela outra. Neste processo – que inclui a superação do hermetismo

do Direito e do jurista – será necessário buscar um ponto de abertura, de modo a legitimar o

intercâmbio conceitual entre disciplinas tão distintas. Isto poderia ser efetuado de diversas

maneiras, porém optamos por recorrer à metódica47 estruturante (e a ideia de concretização) de

Müller e dela importarmos os instrumentais para tanto. Correndo o risco de sermos

demasiadamente simplistas ao tentar resumir esta teoria em breves linhas, diríamos que a

concretização é efetivamente um processo de construção da norma, que não existe previamente

definida, mas depende de um complexo – mas ainda assim metódico – processo, que tem no

texto apenas o ponto de partida, mas não o resultado. Para Müller a norma não é dada pelo

legislador, mas construída no caso.

Aqui estão algumas das inquietações que buscaremos enfrentar. É forçoso, porém,

deixar claro que uma das premissas é um diálogo efetivo com as ciências naturais48, não

47 A expressão metódica aqui será utilizada no sentido proposto por Müller: é a “[...] designação de uma concepção global sistematicamente reflexionante dos modos de trabalho do direito (constitucional), a ‘metódica’ no sentido aqui usado é o conceito abrangente de ‘hermenêutica’, ‘interpretação’, ‘métodos de interpretação’ e ‘metodologia’” (MÜLLER, Friedrich. Metodologia do Direito Constitucional. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 27). 48 Tampouco este será um trabalho voltado à filosofia. Por certo, será natural para alguns aproximá-lo da ecologia profunda e suas bases metafísicas. Embora a ecologia profunda tenha um viés científico inegável, acabou por se

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meramente formal e protocolar. A intenção será efetivamente beber em outra fonte, que não só

o Direito, ao contrário daquilo que faz grande parte da doutrina especializada. Se bem estamos

tutelando o meio ambiente, pois assim a Constituição Federal determinou, devemos

invariavelmente bem conhecê-lo – sob pena de se transformar em letra morta os comandos

constitucionais. Vale dizer: a proteção ambiental não existe per se, ela existe com uma

finalidade, com um propósito, o qual deverá sempre ser perseguido. Portanto, este é o objeto de

pesquisa: a construção da norma ambiental a partir das ciências naturais, pois o “bem a regular

é o que deve definir os instrumentos regulatórios e não o inverso”49.

desgarrar da dita Ecologia clássica, por assim dizer, à medida que voltou efetivamente ao questionamento do homem e seus comportamentos a partir de bases ecológicas. Aqui desejamos efetivamente partir de constatações concretas, ligadas às características do bem ambiental, para então indicar caminhos à sua tutela jurídica. 49 LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria Geral do Direito Ambiental. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 60.

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1. DO DIREITO À ECOLOGIA

1.1. Constituição Ecológica e a proteção ambiental como direito fundamental

Este primeiro capítulo comporta a busca de algumas respostas à luz da proposta fixada

ainda na introdução. Para tanto, buscaremos enfrentar as seguintes questões: O quê? – o

objetivo será apontar qual é especificamente nosso objeto de investigação, do ponto de vista da

Teoria do Direito, aproximando a proteção do meio ambiente ao conceito de direito

fundamental; Quais as consequências? – o fato de qualificar a proteção do meio ambiente como

um direito fundamental impõe alguns desdobramentos de significativa importância; Como? –

sendo um direito fundamental com as consequências daí advindas, neste tópico pretendemos

apontar uma forma para a leitura da norma ambiental, ou o seu processo de concretização; Por

quê? – Neste último tópico pretendemos apontar as razões por trás da escolha da Ecologia (que,

definitivamente, não é arbitrária). Comecemos então pela definição do objeto de investigação.

1.1.1. Proteção ao meio ambiente como direito fundamental

É preciso enfrentar uma questão tormentosa, porém elementar para o caminho a ser

trilhado de agora em diante: seria a proteção ao meio ambiente50 um direito fundamental? Esta

pergunta coloca em evidência o percurso teórico deste tópico. Mais do que isto, ela oferece um

grande desafio, o de buscar um sentido para o conceito de direitos fundamentais – sobretudo

por serem várias as acepções terminológicas utilizadas por diferentes autores51.

Há certo esforço doutrinário em diferenciar os sentidos de um direito fundamental – um

material e outro formal. O primeiro reconheceria um direito como fundamental pelo seu

50 Ao longo deste trabalho faremos referência a este direito fundamental de diversas maneiras, usando expressões que poderão variar, mas sempre referindo-se ao mesmo sentido – direito ao meio ambiente, meio ambiente ecologicamente equilibrado, proteção ao meio ambiente, etc. 51 Cf. SILVA, José Afonso da Silva. Curso de Direito Constitucional Positivo. 32ª. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 175; DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 38.

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conteúdo52. Os direitos fundamentais possuiriam certa “fundamentalidade material”53 – no

sentido de que buscam proteger “situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se

realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive”54. Seria, portanto, fundamental não

pela posição ostentada no ordenamento jurídico, em razão de sua positivação – haveria uma

“normatividade materialmente determinada”55, conforme os determinantes que se buscam

concretizar. Constituem, neste contexto, elementos constitutivos “das estruturas básicas do

Estado e da sociedade”56. Contudo, se examinarmos esta concepção de modo isolado,

poderemos chegar a um problema de difícil superação, pois, como aponta Dimoulis e Martins,

poder-se-ia levar à criação de um direito fundamental independentemente da forma do ato

normativo definidor – por uma lei ordinária, v.g., facilmente revogável57.

Por esta razão, a materialidade dos direitos fundamentais de nada adiantará se estes

direitos não forem garantidos pela ordem jurídica; se a eles não for atribuída uma proteção

igualmente especial. A positivação há de se efetivar de modo singular; vale dizer, “não basta

uma qualquer positivação. É necessário assinalar-lhes a dimensão de Fundamental Rights,

colocados no lugar cimeiro das fontes de direito: as normas constitucionais”58. Neste sentido

formal, os direitos fundamentais, como ensina Bonavides, são “todos os direitos ou garantias

nomeados e especificados no instrumento constitucional”59, que, ainda segundo o mesmo autor,

receberam “[...] um grau mais elevado de garantia ou de segurança; ou são imutáveis”60. Direito

fundamental, portanto, nesta acepção, será aquilo definido como tal pelo ordenamento

jurídico61.

Por certo, quando falamos do seu reconhecimento pelo ordenamento jurídico não

estamos restritos apenas àqueles expressamente afirmados pelo texto constitucional, mas

àqueles, de uma forma geral, reconhecidos pela Constituição, decorrentes do processo de

concretização da Carta. Como veremos adiante, o texto não é a única expressão da norma – no

52 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 379. 53 Ibid., p. 379. 54 SILVA, José Afonso da Silva. Curso de Direito Constitucional Positivo. 32ª. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 178. 55 MÜLLER, Friedrich. Teoria Estruturante do Direito. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 267. 56 CANOTILHO, J. J. Gomes. op. cit., p. 379. 57 Cf. DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 41. 58 CANOTILHO, J. J. Gomes. op. cit., p. 379. 59 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 28 ed. São Paulo Malheiros 2013, p. 579. 60 Ibid., p. 579 61 SILVA, Solange Teles. Direito Fundamental ao Meio Ambiente Ecologicamente Equilibrado: Avanços e Desafios. In: MILARÉ, Édis; MACHADO, Paulo Affonso Leme (Org..). Doutrinas Essenciais Direito Ambiental – Vol. I – Fundamentos do Direito Ambiental. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 1123.

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caso dos direitos fundamentais, o contato com elementos reais no momento da concretização62

torna-se ainda mais significativo. Não obstante um direito fundamental possa muitas vezes ser

mais facilmente alcançado a partir do texto, em outras situações demandará um trabalho mais

árduo do intérprete.

Esta dicotomia – entre sentidos formal e material – mostrar-se-á, para nosso fim,

desnecessária. Quer adotemos um, quer adotemos outro, a fundamentalidade do direito ao meio

ambiente está presente – e isto parece inquestionável, como veremos à frente. Ademais, não

vemos nestas duas acepções olhares excludentes, mas, ao contrário, complementares:

Prima facie, a fundamentalidade material poderá parecer desnecessária perante a constitucionalização e a fundamentalidade formal a ela associada. Mas não é assim. Por um lado, a fundamentalização pode não estar associada à constituição escrita e à idéia de fundamentalidade formal como o demonstra a tradição inglesa das Common-Law Liberties. Por outro lado, só a idéia de fundamentalidade material pode fornecer suporte para: (1) a abertura da constituição a outros direitos, também fundamentais, mas não constitucionalizados, isto é, direitos materialmente mas não formalmente fundamentais; (2) a aplicação a estes direitos só materialmente constitucionais de alguns aspectos do regime jurídico inerente à fundamentalidade formal; (3) a abertura a novos direitos fundamentais (Jorge Miranda). Daí o falar-se, nos sentidos (1) e (3), em cláusula aberta ou em princípio da não tipicidade dos direitos fundamentais. Preferimos chamar-lhe de “norma com fattispecieaberta” (Baldassare) que, juntamente com uma compreensão aberta do âmbito normativo das normas concretamente consagradoras de direitos fundamentais, possibilitará uma concretização e desenvolvimento plural de todo o sistema constitucional63.

Deste modo, voltando às questões iniciais deste item, para sabermos se a proteção ao

meio ambiente é tratada como direito fundamental é preciso recorrer ao seu regime jurídico.

Isto não significa negar que a proteção do meio ambiente possa estar ligada axiologicamente à

teoria dos direitos fundamentais (não há humanidade sem natureza), no seu viés material, como

afirmamos ainda no parágrafo anterior. Há uma opção – quase pragmática – de buscar esta

aproximação conceitual a partir da base normativa deste direito.

Embora estejamos a falar do regime jurídico constitucional, no caso do meio ambiente

é inviável não recorrer aos instrumentos internacionais, por terem influenciado sensivelmente

a Constituição Federal de 1988 e por serem a base para o seu reconhecimento como direito

fundamental64.

Neste contexto, a Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992

é bastante significativa, pois definitivamente incorporou tal aproximação em seu texto, ao

62 Discutiremos mais à frente o processo de construção da norma, com as premissas adotadas neste trabalho. 63 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 379-380. 64 Neste ponto já terá sido possível notar que utilizaremos a expressão direitos humanos, sobretudo quando fizermos referência aos documentos internacionais. Para os fins deste trabalho, direitos humanos serão associados a direitos suprapositivos (Cf. DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 39) e, portanto, disciplinados, muitas vezes por documentos internacionais. Quando estes direitos são constitucionalizados podemos nomeá-los como direitos fundamentais.

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atestar, no primeiro princípio, que os “seres humanos estão no centro das preocupações com o

desenvolvimento sustentável. Têm direito a uma vida saudável e produtiva, em harmonia com

a natureza”. Claro que a origem mais remota desta simbiose semântica (proteção do ser humano

e da natureza), pode ser atribuída à Conferência de Estocolmo.

Antes da Conferência de Estocolmo, o meio ambiente era tratado, em plano mundial, como algo dissociado da humanidade. A Declaração de Estocolmo de 1972 conseguiu, portanto, modificar o foco do pensamento ambiental do planeta, mesmo não se revestindo da qualidade de tratado internacional, enquadrando-se, ao lado das várias outras declarações memoráveis das Nações Unidas - de que são exemplos a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 (no campo dos direitos humanos) e a Declaração do Rio de Janeiro sobre meio ambiente e desenvolvimento de 1992 (na esfera da proteção internacional do meio ambiente) -, no âmbito daquilo que se convencionou chamar de soft law ou droitdoux (direito flexível), governado por um conjunto de sanções distintas das previstas nas normas tradicionais, em contraponto ao conhecido sistema do hard law ou droitdur (direito rígido)65.

A partir da Declaração de Estocolmo foi possível pensar no direito ao meio ambiente

(ou à sua proteção) como um direito humano (e, diante das premissas deste trabalho,

fundamental), em razão da redação conferida ao primeiro princípio daquele documento:

O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições de vida adequadas em um meio ambiente de qualidade tal que lhe permita levar uma vida digna e gozar de bem-estar, tendo a solene obrigação de proteger e melhorar o meio ambiente para as gerações presentes e futuras.

Não se pode olvidar que a proteção ambiental, neste cenário, está intimamente ligada à

proteção da vida – em todas suas formas, mas especialmente a dos seres humanos. O termo

específico é mencionado nos dois documentos aqui já referidos, mas também em outros de igual

importância, como a Convenção-quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima e a

Convenção sobre Diversidade Biológica66.

A Convenção Americana de Direitos Humanos foi bastante audaz com seu protocolo

adicional, estabelecendo no artigo 11 que “toda pessoa tem direito a viver em meio ambiente

sadio e a contar com os serviços públicos básicos”. Poderíamos citar inúmeros outros

documentos internacionais, demonstrando um claro viés de aproximação – que, diríamos, é

inevitável e sem volta. Veja o caso da Convenção sobre Acesso à Informação, Participação

65 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. A Proteção Internacional dos Direitos Humanos e o Direito Internacional do Meio Ambiente. In Revista dos Tribunais OnLine– Revista de Direito Ambiental. São Paulo: n. 34, abril-junho, 2004. Disponível em <http://www.rtonline.com.br>. Acesso em 22 de dezembro de 2013, p. 05. 66 Ibid., p. 07.

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Pública e Acesso à Justiça67; a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança68,

Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia69.

Este breve quadro é mais do que suficiente para demonstrar, com alguma facilidade, a

qualificação do direito ao meio ambiente como um direito humano e, portanto, fundamental à

sobrevivência da espécie humana.

Embora sejam fruto de um processo de construção histórica de raízes internacionais,

não se pode dizer que os direitos fundamentais tenham surgido ao mesmo tempo nas diversas

sociedades em que são protegidos. Entretanto, até por uma imposição didática, a doutrina

buscou classificá-los em grandes, sequenciais e não excludentes grupos. Ainda no século XVIII,

naqueles denominados direitos fundamentais de 1ª dimensão, viriam inicialmente a proteção de

direitos como liberdade, igualdade e fraternidade70. A estes seguiram os direitos fundamentais

de segunda dimensão, que apareceram no século XX e abrangem os “direitos sociais, culturais

e econômicos”71, formando a base para aquilo que se designou como modelo de Estado Social.

A preocupação com o meio ambiente está inserida entre os direitos fundamentais de terceira

dimensão – aquele que “se assenta sobre a fraternidade [...] e provida de uma latitude de sentido

que não parece compreender unicamente a proteção específica de direitos individuais ou

coletivos”72. São voltados à proteção da humanidade como um todo, da sua existência73-74

Seguindo esta tendência, a Constituição Federal de 1988 erigiu a proteção do meio

ambiente à condição de direito fundamental. No entanto, a gênese desta tutela em terras

67 Artigo 1º - De forma a contribuir para a protecção do direito que qualquer indivíduo, das gerações actuais ou futuras, tem de viver num ambiente adequado à sua saúde e bem-estar, cada Parte garantirá os direitos de acesso à informação, participação do público no processo de tomada de decisão e acesso à justiça em matéria de ambiente, de acordo com as disposições desta Convenção. 68 Artigo 24 1. Os Estados Partes reconhecem à criança o direito a gozar do melhor estado de saúde possível e a beneficiar de serviços médicos e de reeducação. Os Estados Partes velam pela garantia de que nenhuma criança seja privada do direito de acesso a tais serviços de saúde. 2. Os Estados Partes prosseguem a realização integral deste direito e, nomeadamente, tomam medidas adequadas para: [...] c) Combater a doença e a má nutrição, no quadro dos cuidados de saúde primários, graças nomeadamente à utilização de técnicas facilmente disponíveis e ao fornecimento de alimentos nutritivos e de água potável, tendo em consideração os perigos e riscos da poluição do ambiente; [...] 69 Artigo 37 Todas as políticas da União devem integrar um elevado nível de protecção do ambiente e a melhoria da sua qualidade, e assegurá-los de acordo com o princípio do desenvolvimento sustentável. 70 Cf. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 28 ed. São Paulo Malheiros 2013, p. 580-581. 71 Ibid., p. 582. 72 Ibid., p. 587. 73 Ibid., p. 588. 74 Há, ainda, os direitos fundamentais de quarta dimensão, vinculado à democracia, à informação e ao pluralismo, inerentes ao grande processo de globalização vivenciado pela sociedade mundial.

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brasileiras está na Lei Federal nº 6.938/1981 – Lei da Política Nacional do Meio Ambiente

(LPNMA). Esta norma foi responsável por pavimentar o caminho para o reconhecimento

alcançado com a Constituição Federal de 1988. O seu caráter revolucionário reside basicamente

em dois pontos.

A LPNMA marcou uma guinada do Brasil na abordagem da proteção ambiental, pois

até a Conferência de Estocolmo, já mencionada, o país “defendia o desenvolvimento a qualquer

custo, independentemente dos prejuízos causados ao meio ambiente. Com a lei, o Brasil passou

a defender o desenvolvimento econômico atrelado à ideia de sustentabilidade e de proteção do

meio ambiente”75.

Além disto, a legislação pátria até aquele momento histórico se limitava a pequenas e

pontuais ações de proteção ao meio ambiente. O Estado não possuía como meta o

estabelecimento de uma política voltada a questões de longo prazo, com o estabelecimento de

planos e projetos integrados e coordenados76. Benjamin denominou esta fase da legislação

como fragmentária, guiada pelo referencial do utilitarismo (o interesse econômico como

verdadeira razão para proteção do meio ambiente), pela fragmentação do seu objeto (questões

ambientais não eram enfrentadas de forma integrada) e pela fragmentação da legislação (várias

normas esparsas, igualmente sem um tratamento holístico)77. Foi somente com a Lei Federal nº

6.938/1981 que se deu “tratamento global e unitário à defesa da qualidade do meio ambiente

no país”78, a partir da articulação dos diversos atores políticos envolvidos (entenda: entes

federados) por meio da Política Nacional do Meio Ambiente. Ainda de acordo com Benjamin,

a Lei Federal nº 6.938/1981 inaugura uma nova fase no tratamento das questões ambientais,

chamada de holística, retratando o momento pelo qual o meio ambiente foi compreendido e,

principalmente, protegido, como um “sistema ecológico integrado”79.

A Lei n. 6.938 foi a primeira tentativa de sistematizar normativamente uma política nacional de meio ambiente, estabelecendo princípios e objetivos de ação, instituindo um sistema nacional e criando o respectivo conselho, consagrando a responsabilidade objetiva e enumerando instrumentos de ação. É o texto legal que, antecedendo à Constituição atual, serviu para lançar os alicerces normativos, que deveriam embasar toda ação executiva80.

75 RODRIGUES, Lucas de Faria. O Papel Normativo do Ibama na Gestão da Fauna e suas Implicações na Atuação do Estado de São Paulo. In: Revista de Direitos Difusos. São Paulo: v. 55, p. 43-72, setembro, 2011, p. 49. 76 MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 325. 77 BENJAMIN, Antônio V. Herman. Introdução ao Direito Ambiental Brasileiro. In Revista de Direito Ambiental. São Paulo: n. 14, p. 48-82, abril-junho, 1999, p. 51. 78 SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 9ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2011, p. 219. 79 BENJAMIN, Antônio V. Herman. op. cit., p. 52. 80 FELDMANN, Fábio José; CAMINO, Maria Ester Mena Barreto. O direito ambiental: da teoria à prática. In: Revista Forense. Rio de Janeiro: vol. 317, p. 89-113, janeiro/março, 1992, p. 107.

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Como afirmamos no início deste tópico “todo direito fundamental tem matriz

constitucional”81, daí ser relevante retomarmos a gênese daquilo que chamamos de Constituição

Ecológica82. Sendo a proteção ao meio ambiente parte do processo histórico de construção dos

direitos fundamentais, fica fácil perceber que a Constituição Federal de 1988, ao trazer um

conjunto de regras voltadas ao mesmo fim, encampou a ideia de modo inquestionável.

Os documentos internacionais serviram para demonstrar a grandeza do perigo ao qual a

humanidade estava e está exposta – deixando de lado qualquer discussão maniqueísta entre

biocêntricos e antropocêntricos83, inegável que a humanidade submete-se a riscos maiores se

não tutelar o meio ambiente. Em um determinado momento o homem foi obrigado a olhar para

suas relações com a natureza e direcionar as instituições para defendê-la – pouco importando,

neste ponto, os desígnios éticos desta escolha (a natureza pela natureza, ou a natureza pelo

homem).

O regime jurídico do meio ambiente – em um conjunto normativo que designamos como

Constituição Ecológica84 – demonstra não só a relevância da matéria, mas também o especial

grau de proteção que lhe foi conferido.

Assim, a consagração do direito fundamental ao meio ambiente, no art. 225 da CF/1988, tem um duplo significado: a) em primeiro lugar afirma o valor do meio ambiente para assegurar a dignidade humana. O fundamento da constitucionalização do direito ao meio ambiente é a própria dignidade da pessoa humana, das gerações presentes e futuras. De maneira mais abrangente é possível afirmar que o fundamento da consagração de um direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é a dignidade da vida em todas as suas formas. Trata-se de assegurar a continuidade da vida no planeta, fundada na solidariedade humana no tempo e no espaço; b) em segundo lugar, o direito ao meio ambiente é transformado em norma constitutiva fundamental da ordem jurídica, meio necessário para que o indivíduo e a coletividade, ambos possam desenvolver todas as suas potencialidades e enfim, para que a vida social possa ser conduzida para alcançar o desenvolvimento sustentável85.

Esta seria a “dimensão ecológica” dos direitos fundamentais86, que perpassa toda a

construção jurídico-dogmática voltada à proteção do meio ambiente e reflete uma nova

81 BELLO FILHO, Ney de Barros. Teoria do Direito e Ecologia: Apontamentos para um Direito Ambiental no Século XXI in FERREIRA, HelineSivini; LEITE, José Rubens Morato; BORATTI, Larissa Verri. Estado de Direito Ambiental: Tendências. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010, p. 312. 82 Conceituaremos mais à frente a Constituição Ecológica. 83 Em brevíssima síntese, o antropocentrismo parte do pressuposto de que o homem é o centro e que a natureza deve ser protegida para, em última análise, assegurar a própria existência humana. O biocentrismo tem os seres vivos, indistintamente, como o objeto central de tutela (Cf. MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente. 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 104-106). 84 O sentido da Constituição Ecológica será delimitado no próximo item. 85 SILVA, Solange Teles. Direito Fundamental ao Meio Ambiente Ecologicamente Equilibrado: Avanços e Desafios. In: MILARÉ, Édis; MACHADO, Paulo Affonso Leme (Org..). Doutrinas Essenciais Direito Ambiental – Vol. I – Fundamentos do Direito Ambiental. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 1123-1124. 86 SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Estado socioambiental e mínimo existencial (ecológico?): algumas aproximações in SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Estado Socioambiental e Direitos Fundamentais. Livraria do Advogado Porto Alegre, 2010, p. 12.

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dimensão ao Estado, como apontam Sarlet e Fensterseifer, um Estado Socioambiental87. A

fundamentalidade da proteção ao meio ambiente é clara quando o constituinte criou um

complexo emaranhado de normas ambientais – apresentado no próximo tópico – e, em especial,

inseriu um capítulo todo voltado exclusivamente para cuidar deste direito (artigo 225 da

Constituição Federal de 1988). Reconhece-se, nestas normas, uma “dupla funcionalidade da

proteção ambiental [...], a qual toma a forma simultaneamente de um objetivo e tarefa estatal e

de um direito (e dever) fundamental do indivíduo e da coletividade [...]”88.

A admissão deste direito como sendo fundamental é um marco do postulado da

solidariedade, pois esta proteção ambiental não se volta à salvaguarda de um direito puramente

individual, está igualmente a tutelar um direito de todos, não só hoje, mas também no futuro –

uma ética intergeracional –, à medida que se destina a garantir o meio ambiente para as

“presentes e futuras gerações” (artigo 225, caput, da Constituição Federal).

É, portanto, o próprio reflexo do meio ambiente na vida humana (e na sua existência)

que permite sua qualificação como direito fundamental89, ainda que com uma autonomia

reconhecida em relação a outros direitos igualmente fundamentais, como a vida90. Sua ligação

com a condição humana não serve para enfraquecê-lo, mas apenas para justificar o alto grau de

proteção que lhe é confiado – em um regime jurídico diferenciado, como é o dos direitos

fundamentais. Haveria para alguns um reflexo no próprio conteúdo da dignidade da pessoa

humana, na sua “ecologização”, pois “não se pode conceber a vida – com dignidade e saúde –

sem um ambiente natural saudável e equilibrado”91. Por tudo isto a proteção do meio ambiente,

na atual ordem constitucional, como um reflexo de movimento internacional, foi alçada à

condição de um direito fundamental, com todas as consequências daí advindas.

87 Sarlet e Fensterseifer propõem a superação do conceito de Estado Social para um modelo de Estado Socioambiental, que “não abandona as conquistas dos demais modelos de Estado de Direito em termo de salvaguarda da dignidade humana, mas apenas agrega a elas uma dimensão ecológica, comprometendo-se com a estabilização e prevenção do quadro de riscos e degradação ecológica” (SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito Constitucional Ambiental. Revista dos Tribunais 2ed, 2012, São Paulo, p. 44) 88 Idem. Estado socioambiental e mínimo existencial (ecológico?): algumas aproximações in SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Estado Socioambiental e Direitos Fundamentais. Livraria do Advogado Porto Alegre, 2010, p. 14. 89 Idem. Direito Constitucional Ambiental. Revista dos Tribunais 2ed, 2012, São Paulo, p. 44 90 José Afonso da Silva fala na proteção ao meio ambiente como “uma nova projeção do direito à vida, pois neste há de incluir-se a manutenção daquelas condições ambientais que são suporte à própria vida [...]” (SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 9ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2011, p. 60). 91 SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito Constitucional Ambiental. Revista dos Tribunais 2ed, 2012, São Paulo, p. 41.

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1.1.2. Busca de um conceito de Constituição Ecológica

Fixada a fundamentalidade da proteção do meio ambiente, é chegado o momento de nos

aprofundarmos um pouco mais no regime jurídico deste direito fundamental, delineado pela Lei

maior. Antes, porém, devemos indagar o que entendemos por Constituição Ecológica e,

principalmente, por que assim designá-la. Quando fazemos referência à Constituição Ecológica

não pretendemos qualificar desse modo a Constituição Federal como um todo – embora

reconheçamos, isto até poderia ser efetuado, como fazem Sarlet e Fensterseifer, ao defenderem

um movimento de esverdeamento da Carta92. Por outro lado, não queremos dizer que haveria

uma Constituição dentro da Constituição (um microcosmos dentro de um universo mais amplo)

– isto seria negar a ideia de unidade intrínseca ao regime constitucional e aos processos

hermenêuticos incidentes.

Falar de Constituição Ecológica é, para os fins deste trabalho, fazer referência –

simplesmente – ao conjunto de normas ambientais trazidos pela Constituição Federal de 1988,

que, no seu todo, dão o tom do direito fundamental ao meio ambiente. Há várias disposições na

Carta que, examinadas de forma estanque, apontam comandos relevantes. Propomos, porém,

um olhar holístico, que veja um sentido para este conjunto de dispositivos, para, a partir daí,

buscar os reflexos deste direito fundamental e extrair uma diretriz de concretização, presente

sempre que se pretender a aplicação de dispositivos voltados à proteção do meio ambiente, quer

na sua totalidade, quer nas suas partes.

Estamos diante da primeira Constituição brasileira a dispensar um tratamento especial

ao meio ambiente93, trazendo uma abordagem ampla, não só no capítulo específico, mas

também em diversos outros momentos:

Realmente, referindo-se expressamente ao meio ambiente, podem ser citados os seguintes dispositivos: artigo 5°, inciso LXXIII (ação popular que vise anular ato lesivo ao meio ambiente); artigo 20, inciso II (bens da União); artigo 23, incisos VI e VII (competências político-administrativas); artigo 24, incisos VI, VII e VIII (competência legislativa); artigo 129, inciso III (legitimidade do Ministério Público para promover o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção do meio ambiente); artigo 170, inciso VI (a defesa do meio ambiente constitui-se num dos princípios da atividade econômica); artigo 186, inciso II (função social da propriedade); artigo 200, inciso VIII (meio ambiente do trabalho); artigo 216 (meio

92 SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Estado socioambiental e mínimo existencial (ecológico?): algumas aproximações. In SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Estado Socioambiental e Direitos Fundamentais. Livraria do Advogado Porto Alegre, 2010, p. 25. 93 FREITAS, Gilberto Passos. A Constituição Brasileira de 1988: a Constituição Ecológica. In Revista do Advogado. São Paulo: n. 102, março, 2009 (ano XXIX), p. 53.

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ambiente cultural) e artigo 231, § 1° (terras ocupadas pelos índios imprescindíveis à preservação ambiental)94.

Nota-se que o texto constitucional é permeado de ponta a ponta pelo meio ambiente, de

modo que o restante da Carta deve influenciar a concretização das normas ambientais, como

estas devem influir no processo de concretização do restante da Carta. Reconhecemos, como

aponta José Afonso da Silva, que o “Direito Ambiental encontra seu núcleo normativo [...] no

Capítulo VI do Título VIII, que só contém o artigo 225, com seus parágrafos e incisos”95.

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. § 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas; II - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético; III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção; IV - exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade; V - controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente; VI - promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente; VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade. § 2º - Aquele que explorar recursos minerais fica obrigado a recuperar o meio ambiente degradado, de acordo com solução técnica exigida pelo órgão público competente, na forma da lei. § 3º - As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados. § 4º - A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais. § 5º - São indisponíveis as terras devolutas ou arrecadadas pelos Estados, por ações discriminatórias, necessárias à proteção dos ecossistemas naturais. § 6º - As usinas que operem com reator nuclear deverão ter sua localização definida em lei federal, sem o que não poderão ser instaladas.

José Afonso da Silva, ao retratar a estrutura deste artigo, o divide em três grupos de

normas: (i) caput: seria a matriz deste direito fundamental o texto base, “substancialmente

reveladora do direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”96. (ii) o parágrafo

primeiro, “que estatui sobre os instrumentos de garantia da efetividade do direito enunciado no

94 FREITAS, Gilberto Passos. A Constituição Brasileira de 1988: a Constituição Ecológica. In Revista do Advogado. São Paulo: n. 102, março, 2009 (ano XXIX), p. 54. 95 SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 9ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2011, p. 52. 96 Ibid., p. 54.

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‘caput’ do artigo”97 – é o dispositivo que, em verdade, materializa a norma matriz; (iii)

parágrafos segundo a sexto: trata-se de um “conjunto de determinações particulares”98, um

conjunto de dispositivos nos quais o constituinte, em razão do alto grau de importância dos

temas abrangidos, optou por dar especial tratamento e proteção.

Se olharmos atentamente, todos estes dispositivos voltam-se a um mesmo fim: proteger

o meio ambiente – não de forma inconsequente, mas em conjunto com outras disposições (e

bens jurídicos tutelados). A proteção do meio ambiente é, portanto, a essência da Constituição

Ecológica e constituiu o cerne deste direito fundamental. E não é só: a proteção do meio

ambiente, enquanto núcleo deste conjunto, permeia a Constituição Federal na sua integralidade,

da ordem social à ordem econômica, do princípio ao fim – e, por que não, do presente ao futuro.

É importante ter em mente, como aponta Milaré, que um grande passo da Constituição

brasileira de 1988 foi reconhecer certa autonomia no trato das questões ambientais – há uma

ligação com a saúde humana, mas o meio ambiente não depende mais dela, de forma exclusiva,

para ganhar voz99. Assim “o meio ambiente deixa de ser considerado um bem jurídico ‘per

accidens’ (causal, por uma razão extrínseca) e é elevado à categoria de bem ‘per se’, vale dizer,

dotado de um valor intrínseco e com autonomia em relação a outros bens protegidos [...]”100. O

próprio surgimento do Direito Ambiental (como disciplina autônoma) tem sua gênese temporal

na constitucionalização das questões ambientais101.

Quando nos aprofundamos no artigo 225, nos deparamos com um chamado à Ecologia.

Alguns desdobramentos do dispositivo merecem uma atenção maior até em razão do objeto de

estudo. Neste ponto pretendemos deixar mais perguntas do que respostas, que serão enfrentadas

nos próximos capítulos.

A primeira questão diz respeito à preservação e restauração dos processos ecológicos

essenciais. Embora esta definição não seja clara, Milaré os define como “aqueles que garantem

o funcionamento dos ecossistemas e contribuem para a salubridade e higidez do meio

ambiente”102. Para José Afonso da Silva, citando a IUCN103, são os processos “governados,

sustentados ou intensamente afetados pelos ecossistemas”104. Como estes processos

97 SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 9ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2011, p. 54. 98 Ibid., p. 54. 99 MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente. 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013,p. 160. 100 Ibid., p. 160. 101 BENJAMIN, Antônio Herman. Constitucionalização do Ambiente e Ecologização da Constituição Brasileira in CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (Org.). Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 84. 102 MILARÉ, Édis. Op. cit, p. 175. 103 International Union for Conservation of Nature. 104 SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 8ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 859.

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funcionam? Como podem impactar na construção da norma ambiental? Estas são apenas

algumas das perguntas mais inquietantes nesta matéria.

E não é só. Um segundo ponto diria respeito ao próprio conceito de meio ambiente. A

Lei Federal nº 6.938/1981, no artigo 3º, inciso I, nos dá uma indicação: “o conjunto de

condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite,

abriga e rege a vida em todas as suas formas”. Restam, porém, dúvidas: seria este conceito

suficiente para compreender o funcionamento do dito meio ambiente? Como concretizar as

normas ambientais diante destes conceitos? O que seria o equilíbrio mencionado pelo artigo

225 da Constituição Federal? Estas todas são questões que só a Ecologia pode responder.

Portanto, a Constituição Ecológica não é um produto acabado, cujas concepções são

“autoincidentes”105, pois o “conteúdo e o campo de aplicação do Direito Ambiental parecem

insuficientemente explorados na mesma proporção em que a disciplina aparenta se justificar e

se bastar em si mesma”106. Ainda como ensina Benjamin, o primado constitucional deve

determinar as normas infraconstitucionais e não servir como mero instrumento de confirmação

de normas já aplicadas.

1.2. Consequências de qualificar a proteção ao meio ambiente como direito fundamental

O reconhecimento de um direito fundamental não pode estar desacompanhado de uma

perquirição relacionada à sua dimensão normativa. A teoria geral que se construiu em torno

destes “direitos especiais” nos permite identificar traços característicos, que serão relevantes

mais à frente para demonstrar o exato sentido pretendido por este trabalho.

Basicamente, os direitos fundamentais possuem a mencionada dupla dimensão (ou

natureza), como reconhecido por diversos autores107 – uma objetiva e outra

subjetiva –, embora, como lembra Andrade, “estes surgem em lugares comuns, utilizados em

sentidos diversos e a variados propósitos, sem que o seu significado concreto esteja bem

105 BENJAMIN, Antônio Herman. Constitucionalização do Ambiente e Ecologização da Constituição Brasileira in CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (Org.). Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 85. 106 Ibid., p. 84. 107 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 5ª ed. Coimbra: Almedina, 2012, p. 108; DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 109.

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definido [...]”108. Por isto, novamente para não nos perdermos em longas e desnecessárias

discussões teóricas – pois não é este o propósito –, procuraremos bem delinear estes conceitos,

diante dos nossos objetivos, seguindo a linha de delimitar as premissas do trabalho109.

As teorias modernas sobre os direitos fundamentais propuseram uma classificação,

tendo em vista os efeitos deles advindos, sobretudo diante da percepção de uma mudança na

sua conceituação clássica. Como apontamos anteriormente, o sentido histórico dos direitos

fundamentais tem se alterado ao longo das décadas – originalmente vinculado à garantia de

liberdades, tendo evoluído para uma perspectiva mais geral, vinculada aos direitos sociais e de

solidariedade, nestes últimos incluídos o direito à proteção ao meio ambiente. Assim, embora

tradicionalmente tenha se reconhecido função subjetiva dos direitos fundamentais, as demandas

atuais impuseram um olhar sobre a função objetiva110.

Já tem sentido fazer a distinção para mostrar que os preceitos relativos aos direitos

fundamentais não podem ser pensados apenas do ponto de vista dos indivíduos,

enquanto posições jurídicas de que estes são titulares perante o Estado,

designadamente para dele se defenderem, antes valem juridicamente também do ponto

de vista da comunidade, como valores ou fins que esta se propõe prosseguir, em

grande medida através da ação estadual.

Por um lado, no âmbito de cada um dos direitos fundamentais, em volta deles ou nas

relações entre eles, os preceitos constitucionais determinam espaços normativos,

preenchidos por valores ou interesses humanos afirmados como bases objetivas de

ordenação da vida social111.

Como se verá ao longo desta exposição o direito ao meio ambiente, enquanto direito

fundamental, até mesmo em razão da sua posição, muitas vezes não vê associado uma dimensão

subjetiva propriamente dita, restando apenas a dimensão objetiva – que igualmente impõe uma

atuação estatal para sua observância e possibilita pretensões jurídicas voltadas à sua proteção.

Muitas vezes esta será a posição do meio ambiente, dado seu caráter absolutamente difuso. Por

certo, em determinados casos, violações a este direito fundamental poderão ensejar a

visualização da dimensão subjetiva, mas não como regra.

Poderá se questionar a relevância desta distinção para o deslinde do trabalho. Como

aponta Andrade, na Alemanha, esta diferenciação se mostra “crítica”, pois naquele país há uma

ação constitucional reservada para os titulares de “direitos subjetivos fundamentais”, atribuindo

108 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 5ª ed. Coimbra: Almedina, 2012, p. 108. 109 Os conceitos específicos sobre tais dimensões serão apresentados à frente. 110 DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 110. 111 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Op. cit., p. 109.

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muito mais importância a esta discussão112. Para nós (no Brasil), como também para Andrade

(no que toca ao regime português), a discussão tem um cunho dogmático claro, não negamos,

porém encontra importância no próprio reconhecimento do meio ambiente como direito

fundamental e nas consequências daí advindas. O sentido buscado para a norma ambiental, aqui

tão apregoado, terá relevância para delimitarmos como e em que medida esta construção poderá

ter efeitos no ordenamento jurídico. O reconhecimento da norma ambiental no seu viés

ecológico, enquanto direito fundamental, com sua dimensão objetiva (e até mesmo subjetiva

em determinados casos), servirá para apontamos as consequências da leitura aqui proposta.

Deixemos este exercício para o final. Cuidemos agora apenas de apresentar com mais detalhes

tais dimensões.

1.2.1. Dimensão subjetiva

A dimensão subjetiva está intrinsecamente ligada ao indivíduo: “um poder ou uma

faculdade para a realização efetiva de interesses que são reconhecidos por uma norma jurídica

como próprios do respectivo titular”113 (destaques do original) – diferencia-se da dimensão

objetiva, à medida que esta visa salvaguardar bens jurídicos que não são titularizados por

pessoas específicas nem a elas podem ser atribuídos114. Dias, amparado na lição de Alf Ross,

traz elementos que contribuem para esta conceituação: impõe um olhar para a estrutura do

direito subjetivo, identificando seu conteúdo – “que consiste na faculdade que o titular tem

contra as pessoas obrigadas”115 – e um olhar à “possibilidade de obter uma sentença judicial

para fazer valer esta faculdade”116. Em suma, esta dimensão resume-se em um direito

(fundamental) que pode ser exigido individualmente.

Trata-se da dimensão clássica dos direitos fundamentais, porque se encontra na sua

gênese – vale dizer, na origem referia-se “ao direito de seu titular de resistir à intervenção estatal

em sua esfera de liberdade individual”117. Por certo, a dimensão subjetiva ganha novos

112 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 5ª ed. Coimbra: Almedina, 2012, p. 110. 113 Ibid., p. 112. 114 Ibid.,, p. 112. 115 DIAS, Roberto. O Direito Fundamental à Morte Digna. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 62. 116 Ibid., p. 62. 117 DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 110.

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contornos conforme novos direitos impõem outro tipo de olhar, como, por exemplo, os direitos

sociais, que autorizam demandas individuais para se obter pretensões estatais positivas – fazer

algo. Esta discussão não é simples e instaura-se no âmbito de grandes debates acadêmicos e

judiciais: quando se fala em ações estatais positivas, as divergências são inúmeras, e vão desde

a sua aceitação até o limite de atuação jurisdicional.

Outro ponto a se destacar é a relativização cada vez maior de um dos seus elementos

característicos, que é a individualidade diante da “existência dos direitos de exercício coletivo

e, sobretudo, da titularidade de direitos fundamentais por pessoas coletivas”118. Não

pretendemos avançar nestas discussões, mas apenas apontar sua existência.

1.2.2. Dimensão objetiva

Se a dimensão subjetiva é aquela ligada ao sujeito de direitos, a dimensão objetiva é

aquela “cuja percepção independe de seus titulares”119.

Observe-se que todas as normas de direitos fundamentais possuem esta eficácia meramente objetiva, na medida em que estas normas jogam as funções de normas de garantia da unidade do sistema além de possuírem efeitos que desbordam da mera atribuição de subjetividade. Isto implica na constatação de que todas as normas de direitos fundamentais são normas de eficácia objetiva por que delas é possível extrair obrigações, deveres e proteção a outros direitos. A subjetividade é um plus que pode ou não estar adjungido à norma120.

Em verdade, a dimensão objetiva abarca outros efeitos que não são abrangidos pela

dimensão subjetiva – e que não podem ser deixados de lado quando se modela o regime jurídico

dos direitos fundamentais.

Segundo Dimoulis e Martins, quatro seriam os efeitos. Direitos fundamentais como

normas de competência negativa, vale dizer, retiram do campo de ação estatal determinadas

alternativas de atuação – “Aquilo que está sendo outorgado ao indivíduo, está sendo

objetivamente retirado do Estado”121. Direitos fundamentais como parte essencial no

processo de interpretação das demais normas, em especial das regras infraconstitucionais –

118 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 5ª ed. Coimbra: Almedina, 2012, p. 112. 119 DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 111. 120 BELLO FILHO, Ney de Barros. Pressupostos Sociológicos e Dogmáticos da Fundamentalidade do Direito ao Ambiente Sadio e Ecologicamente Equilibrado, p. 360. 121 DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Op. cit., p. 112.

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este processo ganhou corpo na doutrina e jurisprudência pátrias com o uso da técnica de

interpretação conforme a constituição122-123. A dimensão objetiva permitiria “limitar os

direitos fundamentais quando isso estiver no interesse de seus titulares” 124. E, por fim,

imporiam um “dever estatal de tutela dos direitos fundamentais”125 – caberia ao Estado

proteger os direitos fundamentais quando houvesse risco de violação, mesmo nas relações entre

particulares (os chamados efeitos horizontais dos direitos fundamentais).

Andrade126 enumera alguns aspectos da dimensão objetiva, em parte coincidentes com

os anteriormente mencionados. Aborda as garantias institucionais, quando a “Constituição

estabelece regras ou impõe deveres, designadamente às entidades públicas, com a função

principal de garantir, realizar e promover a dignidade da pessoa humana”127. Nestes casos,

embora o objetivo final seja a tutela do indivíduo, a Constituição não os investe “em situações

de poder ou disponibilidade com esse objeto específico”128. Trata-se de efeito eminentemente

voltado ao legislador, vinculando o seu processo de construção da realidade “jurídico-

normativa” ordinária, com variados espaços de conformação129. Este aspecto ganha especial

relevo no tocante à construção da norma ambiental, pois a respectiva concretização imporá, no

mais das vezes, a atuação do legislador infraconstitucional, que cria sistemas e apresenta

instrumentos para a efetivação do comando constitucional.

Andrade fala ainda na “eficácia externa” e no “dever estadual de proteção” como

efeitos ligados à dimensão objetiva dos direitos fundamentais, que se aproximam muito dos

aspectos já mencionados, referidos por Dimoulis e Martins. Enquanto a dimensão subjetiva

estaria adstrita à relação entre o indivíduo e o Estado, os efeitos para além deste binômio

representariam a própria materialização da dimensão objetiva dos direitos fundamentais – o que

incluiria o direito privado. Para o autor, a eficácia externa estaria intimamente ligada à relação

entre iguais (particulares) – daí a dita eficácia horizontal130.

122 DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 112. 123 Como veremos mais à frente, deve-se reconhecer este efeito como uma medida cogente no processo de concretização das normas constitucionais e infraconstitucionais. 124 DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 113. 125 Ibid., p. 114. 126 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 5ª ed. Coimbra: Almedina, 2012, p. 134 127 Ibid., p. 134. 128 Ibid., p. 134. 129 Ibid., p. 136-137. 130 Ibid., p. 137.

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Porém, como bem aponta Andrade, “não se pode limitar a irradiação e a eficácia dos

direitos fundamentais ao âmbito do direito privado”131, devendo, ao contrário, “repercutir em

toda a ordem jurídica, designadamente no direito administrativo, substantivo e procedimental,

bem como no direito criminal e no direito processual” 132. Andrade aponta uma suposta

desvalorização desta visão, de “irradiação objetiva”, em prol de uma visão mais ampla, que se

traduz no dever de tutela de direitos fundamentais colocado ao Estado – não seria mero dever

de abstenção ou de prestação positiva, mas também de proteção contra qualquer tipo de ameaça

– colocado a todas as esferas do Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário)133 – o denominado

dever estadual de proteção mencionado no parágrafo anterior. Podemos falar em modelo

optimo de atuação estatal, no qual todas as ações são guiadas para um único fim: realizar os

direitos fundamentais134. Neste aspecto, há também uma aproximação com o direito

fundamental ao meio ambiente, pois, aqui também há um caráter de vinculação à ação estatal,

essencial à preservação de todos os processos ecológicos.

Prosseguindo com a apresentação dos efeitos, Andrade fala no aspecto de organização

e processo, pois, para o autor, os direitos fundamentais seriam essenciais no estabelecimento

de “regras organizatórias e procedimentais”135 (ex. direito de acesso à justiça), ou estas regras

seriam igualmente essenciais para a garantia deles (ex. processo eleitoral, que assegura o

exercício do voto).

Por fim, Andrade traz mais dois aspectos da dimensão objetiva, ambos também já

mencionados anteriormente, quando apontamos a visão de Dimoulis e Martins, ainda que com

outros termos. Um deles relativo ao “efeito de inconstitucionalidade”136, quando a regra

infraconstitucional contrariar a norma constitucional. O outro, relativo à interpretação “do

direito ordinário”137.

Como já apontamos anteriormente, é cada vez mais difícil bem delinear as esferas

específicas das dimensões subjetiva e objetiva. Aliás, como toda classificação, esta também é

131 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 5ª ed. Coimbra: Almedina, 2012, p. 137. 132 Ibid., p. 138. 133 Ibid., p. 138-139. 134 Embora Dimoulis e Martins apontem esta vertente, o fazem para em seguida discordar, pois, no entendimento dos autores, “ao contrário do entendimento de grande parte da doutrina alemã, a dogmática do dever estatal de tutela com fulcro nos direitos fundamentais corresponde, no entendimento ora seguido, à dimensão subjetiva dos direitos fundamentais” (DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 4ª ed. São Paulo:Atlas, 2012, p. 119). 135 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Op. cit., p. 141. 136 Ibid., p. 149. 137 Ibid., p. 149.

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em certa medida impositiva e arbitrária138 e não soluciona todos os problemas do ponto de vista

da dogmática. Há certa “ressubjectivização das dimensões objetivas”139, como indica Andrade,

reconhecendo direito subjetivo – e, portanto, passível de ser demandado – onde antes reinava

tranquila uma acepção objetiva (aqui faz-se referência especialmente às prestações estatais).

Ainda nestes casos, o reconhecimento do viés subjetivo não afasta a existência da dimensão

objetiva, que continua a impor determinados comportamentos estatais e outros tantos efeitos

jurídicos para além de um titular de direitos específico. Este é um campo que renderia – ele só

– uma dissertação. Novamente, como não é nosso objeto de pesquisa, cabe apenas mencioná-

lo, certo das polêmicas a ele inerentes.

1.2.3. Onde o Direito Ambiental entra nisto?

Quando se fala na norma ambiental aqui mencionada, um direito fundamental à proteção

do meio ambiente, “percebe-se claramente a existência de dupla eficácia – objetiva e

subjetiva”140, isto porque “[...] o artigo 225 da Constituição Federal não impõe apenas deveres,

mas também direitos, garantindo a justiciabilidade àqueles legitimados que difusamente estão

indicados na norma expressa pela disposição de direito fundamental”141. Krell é de extrema

precisão quando reconhece não ser este um direito público subjetivo típico – embora, ainda

assim, subjetivo –, pois não seria “divisível, particularizável ou desfrutável

138 Diga-se, trata-se de resquício do pensamento racional, de uma visão mecanicista cuja origem remonta à obra de Descartes e que modelou todo o pensamento científico da modernidade. Esta é a base do pensamento racional, aquele “linear, concentrado, analítico. Pertence ao domínio do intelecto, cuja função é discriminar, medir e classificar”, de modo que o “conhecimento racional tende a ser fragmentado” (CAPRA, Fritjof. O Ponto de Mutação. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 35.). Há, ainda hoje, a imposição de um exame sobre a realidade que considere os objetos separadamente, em um claro movimento reducionista, gerando, no mais das vezes, problemas teóricos insuperáveis, pois a natureza das coisas não corresponde, necessariamente, à natureza que o homem delas espera. Apenas a título de reflexão, não seria mais racional apenas pensar nos efeitos dos direitos fundamentais, sem esta ânsia “classificatória”? Novamente, este tema não é, nem de longe, o objeto de estudo ora proposto. O trazemos apenas como forma de reflexão – e nada mais. 139 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 5ª ed. Coimbra: Almedina, 2012, p. 146. 140 BELLO FILHO, Ney de Barros. A Dimensão Subjetiva e a Dimensão Objetiva da Norma de Direito Fundamental ao Ambiente. Revista do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, Brasília, v. 19, n. 11/12, p. 37-43, nov./dez. 2007. Disponível em: <http://bdjur.stj.jus.br/dspace/handle/2011/60684> Acesso em: 17 de nov. de 2014, p. 40. 141 Ibid., p. 40.

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individualmente”142. Teria dupla função, uma negativa (“garante aos indivíduos a defesa contra

agressões ilegais no seu âmbito material”143) e uma positiva (“impõe ao poder público a atuar

em favor de sua efetivação”144)

Na sua dimensão subjetiva, a importância da proposta deste trabalho (de buscar um

sentido para a norma ambiental) resolve-se indubitavelmente no caso concreto – mais

precisamente na construção da norma de decisão, a partir dos elementos de concretização (como

exploraremos no próximo item). Caberá ao intérprete/aplicador buscar o correto sentido

daquele direito fundamental posto em questão – neste caso o direito à proteção do meio

ambiente. No complexo processo decisório, no qual manifesta-se a dimensão subjetiva deste

direito, buscar-se-á a correta norma ambiental – que imporá, como veremos, a aproximação

com as ciências naturais. Daí ser possível pensar na proteção do meio ambiente como um direito

de matriz também subjetiva:

Isto implica, necessariamente, em dizer que os direitos fundamentais, que são posições jurídicas, são posições jurídicas subjetivas, podendo ser individuais, coletivas ou difusas. Quando se está tratando da norma do artigo 225 da Constituição Federal que enuncia a norma de direito fundamental ao ambiente sadio e ecologicamente equilibrado percebe-se claramente a existência de dupla eficácia – objetiva e subjetiva. [...] Resta saber se tais normas de direito fundamental ao ambiente que impõe deveres ambientais traz consigo obrigações relativas a direitos. Resta saber se a eficácia da norma que é naturalmente objetiva comporta o plus da subjetividade, estabelecendo legitimados difusos para o direito que ela lhes atribui. A resposta deve ser afirmativa, na medida em que o artigo 225 da Constituição Federal não impõe apenas deveres, mas também direitos, garantindo a justiciabilidade àqueles legitimados que difusamente estão indicados na norma expressa pela disposição de direito fundamental145.

O mais intrigante, porém, é a relevância deste processo de concretização da norma

ambiental no caso da dimensão objetiva. Este sentido último do direito fundamental ao meio

ambiente, compreendido na sua intrínseca (e necessária) relação com o natural, seria essencial

nos processos de ação estatal anteriormente mencionados – seja na adoção de políticas públicas

pelo Estado, pela edição de leis pelo Legislativo, na interpretação conferida às demais regras

infraconstitucionais pelo Judiciário (na solução de demandas postas), etc. Nos direitos

fundamentais de terceira dimensão (e também nos de segunda dimensão), estes efeitos são

142 KRELL, Andreas Joachim. Comentários ao artigo 225, p. 2082 in CANOTILHO, J.J. Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lenio Luiz (Coord.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 2082. 143 Ibid., p. 2082. 144 Ibid., p. 2082. 145 BELLO FILHO, Ney de Barros. Pressupostos Sociológicos e Dogmáticos da Fundamentalidade do Direito ao Ambiente Sadio e Ecologicamente Equilibrado. Tese de Doutorado. Curso de Pós-Graduação em Direito do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2006. Disponível em http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/33948-44718-1-PB.pdf. Acesso 17 de nov. 2014, p. 368-370.

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relevantes em razão do maior espaço de conformação atribuído ao legislador ordinário146.

Nestes casos, a “densidade mandamental é menos expressiva do que a dos direitos fundamentais

individuais de liberdade”147.

Esta irradiação de efeitos, no caso específico do legislador, merece um destaque

especial, pois a Constituição Ecológica, assim denominada neste trabalho, impõe seu

adensamento pelo legislador infraconstitucional. Pai e filho – José Afonso da Silva148 e Virgílio

Afonso da Silva149 – já travaram um debate acadêmico sobre o tema da eficácia das normas

constitucionais. José Afonso da Silva parte de uma premissa muito clara, ao assegurar que “não

há norma constitucional alguma destituída de eficácia”150 – o que variará é o grau e a forma

destes efeitos. Propõe então a categorização tão difundida no meio acadêmico: podem ser de

eficácia plena (produzem todos os seus efeitos desde logo); de eficácia contida (produzem seus

efeitos desde logo, mas admitem mecanismos de temperamento); de eficácia limitada (não

produzem seus efeitos fundamentais – ou plenos – desde logo, exigindo uma atuação

infraconstitucional para atingirem sua plenitude)151. Por certo, neste último caso, estará

assegurada uma eficácia mínima – “cada norma constitucional é sempre executável por si

mesma, até onde possa, até onde seja suscetível de execução”152, porém, o “problema situa-se,

justamente, na determinação desse limite, na verificação de quais os efeitos parciais e possíveis

de cada uma”153.

Virgílio Afonso da Silva, por seu turno, ao apresentar uma crítica à classificação de José

Afonso da Silva, aponta um “problema existencial”154. Para o autor, as normas constitucionais,

independentemente da sua natureza ou da classificação a elas atribuídas, “podem ser

restringidas pela legislação ordinária”, ainda que da norma não conste uma determinação

expressa para assim o legislador proceder (o que, nesta leitura, dificultaria qualquer distinção

entre normas de eficácia plena e normas de eficácia contida). E mais, toda norma constitucional,

igualmente, depende de algum tipo de regulamentação para que possa produzir seus efeitos (o

que, nesta leitura, dificultaria qualquer distinção entre normas de eficácia plena e normas de

146 KRELL, Andreas Joachim. Comentários ao artigo 225, p. 2082 in CANOTILHO, J.J. Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lenio Luiz (Coord.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 2082. 147 Ibid., p. 2083. 148 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. São Paulo: Malheiros, 2012 8ª ed. 149 SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos Fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2011. 150 SILVA, José Afonso da. Op. cit, p. 81 151 Ibid., p. 82-83. 152 Ibid., p. 76. 153 Ibid., p. 76. 154 SILVA, Virgílio Afonso da. Op. cit, p. 223.

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eficácia limitada)155. Neste último caso, defende que todos os direitos fundamentais – até

aqueles tradicionalmente vinculados a uma abstenção – demandam a atuação do aparato estatal

e o dispêndio de recursos públicos, o que sempre será efetuado segundo regras postas (daí a

regulamentação possível)156. Assim, “toda norma, a partir deste ponto de vista, tem eficácia

limitada – mas algumas delas, por razões extrínsecas, têm melhores condições de produzir

efeitos”157-158.

Independentemente da corrente à qual nos filiemos, a proteção ao meio ambiente imporá

– como decorrência desta dimensão objetiva – uma atuação estatal para sua implementação. Ou

bem esta é uma norma de eficácia limitada, por ser programática159 e, portanto, a exigir uma

atuação legislativa para a plenitude de seus efeitos, ou bem pelo simples fato de ser uma norma

constitucional, como qualquer outra, demandando sua regulamentação para que possa produzir

seus efeitos.

Fato é que a Constituição Federal possui “normas que, em virtude de sua natureza

(forma de positivação, função e finalidade), reclamam uma atuação concretizadora dos órgãos

estatais, especialmente do legislador”160. Esta exigência de normas constitucionais “que

reclamam uma mediação legislativa (queiramos, ou não, chamá-las de programáticas)

corresponde, em verdade, a uma exigência do Estado Social de Direito, regra à qual não foge a

Constituição”161. No mesmo sentido, Virgílio Afonso da Silva, amparado na lição de Häberle,

reconhece uma dupla finalidade dos direitos fundamentais enquanto mandamentos voltados aos

155 SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos Fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 230. 156 Ibid., p. 230. 157 Ibid., p. 232. 158 Virgílio Afonso da Silva menciona alguns exemplos ilustrativos. Um é o direito ao sufrágio, que depende de uma ação estatal para produzir seus efeitos (a manutenção e o funcionamento de todo o aparato colocado à disposição para realização de uma eleição) – neste ponto, portanto, não se diferenciaria do direito à saúde (SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos Fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 232-232). Outro exemplo cuidaria das normas relativas às liberdades públicas, pois “a eficácia plena só poderá surgir a partir do momento em que a proteção estatal é efetiva e as organizações e os procedimentos necessários forem estabelecidos” (SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos Fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 236). 159 Conceituadas como aquelas “através das quais o constituinte, em vez de regular, direta e imediatamente, determinados interesses, limitou-se a traçar-lhes princípios para serem cumpridos pelos seus órgãos (legislativos, executivos, jurisdicionais e administrativos), como programas das respectivas atividades, visando à realização dos fins sociais do Estado” (SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. São Paulo: Malheiros, 2012 8ª ed, p. 135). 160 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 11ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, p. 266. 161 Ibid., p. 266.

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legisladores: de um lado, eles não podem contrariar os direitos fundamentais, de outro, devem

promover os direitos fundamentais162.

Assim, por ser inerente ao direito fundamental em questão, a concretização da norma

ambiental é relevante nas suas dimensões objetiva e subjetiva, com implicações relevantíssimas

no enfretamento dos problemas ambientais da atualidade. Isto importa para, ao final, podermos

tranquilamente responder à pergunta: do que serviu este trabalho? Não se trata de questão

meramente dogmática, sem aplicações práticas. A relevância de se buscar o verdadeiro sentido

da norma ambiental reside, em certa medida, nas próprias consequências decorrentes do fato de

estarmos enfrentando um direito fundamental.

1.3. A concretização de direitos fundamentais e a construção da norma ambiental

Se delimitamos nos itens anteriores nosso objeto de perquirição, a Constituição

Ecológica enquanto conjunto específico de comandos constitucionais voltados à tutela do meio

ambiente – vale dizer, o “o que” –, agora voltaremos nosso olhar para o “como”. Ao definirmos

nosso ponto de exame é essencial mostrarmos como esta análise será efetivada, delimitando os

métodos que nos são caros para ser possível a execução do plano inicial de trabalho. E isto

passa pela resposta de outra indagação: se falamos de direitos fundamentais, como deve ser a

leitura sobre eles? Como interpretá-los? São as respostas a estas perguntas que buscaremos a

partir de agora, não sem algumas ressalvas.

O que é interpretar? Não parece ser difícil propor uma resposta. Se examinarmos

determinados número de autores, obteremos diferentes conceitos. Ficamos com o de Bastos

pela sua singeleza: “interpretar é atribuir um sentido ou um significado ao texto”163. Por outro

lado, a hermenêutica – para aqueles que aceitam uma diferenciação164 – é uma “ciência que

engloba o estudo da atividade humana de interpretar”, investiga as regras sobre interpretação.

Nota-se, neste ponto, que a atividade interpretativa é concreta, praticada diante de uma situação

específica a demandar uma decisão. A interpretação é, portanto, a aplicação da

162 SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos Fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 237. 163 BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e interpretação constitucional. 3ª ed. São Paulo: Celso Bastos Editor, 2002, p. 37. 164 Segundo BASTOS, há autores que consideram despicienda tal diferenciação conceitual, corrente à qual não nos filiamos (cf. BASTOS, Celso Ribeiro. Op. cit, p. 30).

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hermenêutica165. Embora de simplicidade sensível, esta distinção serve para evidenciar o intuito

de não discutir essencialmente questões concretas – embora a elas iremos recorrer

posteriormente, para ilustrar determinados pontos. Pretendemos verdadeiramente discutir um

aspecto específico da hermenêutica relacionada aos direitos fundamentais, aplicável, portanto,

à proteção do meio ambiente enquanto tal.

Por certo, a hermenêutica dos direitos fundamentais não se encontra assim sistematizada

pela doutrina. Tem lastro, já há muito tempo, na verdade, em uma teoria sobre hermenêutica

constitucional. Tamanha é a amplitude da Carta Federal em matéria de direitos fundamentais,

que todos se encontram implícita ou explicitamente estabelecidos constitucionalmente – o que

decorre da própria acepção formal mencionada anteriormente, ao conceituar os direitos

fundamentais. Interpretar os direitos fundamentais é, em última análise, interpretar a própria

Constituição.

Neste ponto é essencial trazer a lume a existência de certa controvérsia doutrinária, cuja

menção – ainda que breve – se faz necessária para dela nos afastarmos. Militam de um lado os

defensores de uma hermenêutica tipicamente constitucional, singular, possuidora de inúmeras

peculiaridades que justificariam seu tratamento autônomo. Para esta corrente, os métodos

clássicos de interpretação não seriam suficientes para abranger a complexidade das questões

envolvidas pela Constituição. Haveria, portanto, princípios e regras específicos de interpretação

constitucional166. Por outro lado, começam a surgir autores que, embora reconheçam a diferença

entre normas constitucionais e normas infraconstitucionais, enxergam a proposta de princípios

e métodos específicos como um grande sincretismo metodológico, seja por se tratar “de

métodos civilistas rebatizados, ou de meras reações a situações históricas passadas ou, por fim,

de máximas sem maiores significados além daqueles que o simples bom senso do intérprete já

requeira”167-168. Porém, se vamos abordar a hermenêutica dos direitos fundamentais – e, por

conseguinte, da própria Constituição – é possível transpor esta discussão sem tocá-la? Parece-

nos que sim. Os métodos de interpretação são relevantes e serão abordados, pois

165 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 19ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 02. 166 Dentre outros: BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro (Pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo). Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ - Centro de Atualização Jurídica, v. I, nº. 6, setembro, 2001. Disponível em: <http://www.direitopublico.com.br>. Acesso em 18 de junho de 2013; BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e interpretação constitucional. 3ª ed. São Paulo: Celso Bastos Editor, 2002. 167 SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação constitucional e sincretismo metodológico. In SILVA, Virgílio Afonso da (Org..). Interpretação constitucional. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 115-143, p. 140. 168 Segundo Müller, “os princípios da interpretação da constituição desenvolvidos pela doutrina e pela jurisprudência só são autônomos em grau reduzido. Na sua maior parte eles configuram subcasos dos aspectos linguísticos, histórico, genético, sistemático e ‘teleológico’ da concretização” (MÜLLER, Friedrich. Metodologia do Direito Constitucional. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 79)

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independentemente destas divergências, são aplicados e largamente utilizados por doutrina e

jurisprudência (esta divergência fica mais no campo doutrinário).

Além disso, propomos também uma discussão que supere o mero exame de métodos de

interpretação e alcance também os atores envolvidos no processo. Quando mencionamos atores,

o fazemos de forma ampla para abranger não só atores sociais, mas também atores que

incorporem no processo interpretativo outros conhecimentos (de outras ciências, quando a

norma assim exigir), transformando-o em um processo complexo, que bem reflita as demandas

da sociedade atual. Vale salientar que este movimento ganha corpo e importância em um

contexto no qual a Constituição se vale – sobretudo quanto aos direitos fundamentais – de

normas abertas, a exigir uma ampla densificação. Ora, uma Carta que se pretende eficaz deve

estar vinculada à realidade. “A leitura da realidade somente será completa com a participação

das outras ciências. O prisma jurídico é um prisma parcial e imperfeito. E seria hipocrisia dizer

que não”169. Antes, porém, cabe contextualizar este processo.

1.3.1. Hermenêutica dos direitos fundamentais em um contexto pós-positivista

Antes de avançarmos no estudo mais detido da hermenêutica dos direitos fundamentais,

forçoso contextualizá-la, demonstrando o cenário no qual os processos interpretativos estão

inseridos e, sobretudo, em qual fonte buscaremos o já mencionado contato com a realidade. A

mudança para o paradigma do intérprete-concretizador, com um papel de destaque na

construção do sentido último da norma (que será mais bem desenvolvido nos próximos tópicos),

passa pela superação de uma matriz normativa extremamente formalista, chegando àquilo que

Tavares denomina de “abertura epistemológica do Direito Constitucional”170, típica de um

cenário que se pode chamar de pós-positivista.

A confiança no direito natural – como “um conjunto de valores e de pretensões humanas

legítimas que não decorrem de uma norma jurídica emanada do Estado”171 – foi inicialmente

169 TAVARES, André Ramos. Fronteiras da Hermenêutica Constitucional. São Paulo: Editora Método, 2006, p. 51. 170 Ibid., p. 19. 171 BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro (Pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo). Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ - Centro de Atualização Jurídica, v. I, nº. 6, setembro, 2001. Disponível em: <http://www.direitopublico.com.br>. Acesso em 18 de junho de 2013, p. 19.

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suplantada pelas revoluções liberais, que, mesmo inspiradas até certo ponto no movimento

anterior, acabaram por dogmatizar o direito, transpondo-o para códigos:

O advento do Estado liberal, a consolidação dos ideais constitucionais em textos escritos e o êxito do movimento de codificação simbolizaram a vitória do direito natural, o seu apogeu. Paradoxalmente, representaram, também, a sua superação histórica. No início do século XIX, os direitos naturais, cultivados e desenvolvidos ao longo de mais de dois milênios, haviam se incorporado de forma generalizada aos ordenamentos positivos. Já não traziam a revolução, mas a conservação. Considerado metafísico e anticientífico, o direito natural é empurrado para a margem da história pela onipotência positivista do século XIX172.

Este rompimento é visualizado pelo surgimento do positivismo jurídico, enquanto

tentativa de se criar uma ciência do Direito. O movimento de codificação passou a identificar o

Direito como a lei, em razão de uma demanda burguesa de segurança em face das

arbitrariedades do Estado173. O resultado disto foi o afastamento dos elementos exteriores ao

Direito – o ordenamento jurídico, no positivismo, “contém conceitos e instrumentos suficientes

e adequados para solução de qualquer caso”174.

Se o positivismo alçou a lei à condição de fonte primária – senão única – do Direito, é

igualmente marcante o papel atribuído ao intérprete, despido de qualquer viés criador,

vinculado estritamente ao texto escrito. O positivismo, como aponta Tavares, trouxe à ciência

jurídica um aspecto de unidisciplinaridade e de fechamento175, afastando-a assim de outras

ciências – como se a norma, per se, fosse capaz de trazer soluções aos casos a ela submetidos.

O ápice deste movimento se deu com a Teoria Pura de Kelsen – pura justamente por prever a

compreensão do Direito apenas pelo Direito.

A derrocada do positivismo vem como consequência dos regimes totalitários da metade

do século XX, como o nazismo alemão. A norma foi utilizada para justificar inúmeras condutas

cruéis praticadas contra seres humanos. “O fetiche da lei e o legalismo acrítico, subprodutos do

positivismo jurídico, serviram de disfarce para autoritarismos de matizes variados”176. O Direito

como sinônimo de lei – o próprio positivismo – foi de herói (dada sua origem nas revoluções

liberais) a vilão, pois era insuficiente para dar as repostas necessárias à sociedade emergente do

pós-guerra (Segunda Guerra Mundial). “A superação histórica do jusnaturalismo e o fracasso

político do positivismo abriram caminho para um conjunto amplo e ainda inacabado de

172 BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro (Pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo). Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ - Centro de Atualização Jurídica, v. I, nº. 6, setembro, 2001. Disponível em: <http://www.direitopublico.com.br>. Acesso em 18 de junho de 2013, p. 15-16. 173 TAVARES, André Ramos. Fronteiras da Hermenêutica Constitucional. São Paulo: Editora Método, 2006, p. 23. 174 BARROSO, Luís Roberto. Op. cit., p. 25. 175 TAVARES, André Ramos. Op. cit., p. 28. 176 BARROSO, Luís Roberto. Op. cit., p. 26.

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reflexões acerca do Direito, sua função social e sua interpretação”177 – momento este que vem

sendo denominado como pós-positivismo.

Não pretendemos aqui, definitivamente, afirmar que a indicação deste período como

pós-positivista é inequívoca, nem mesmo que suas características são igualmente

inquestionáveis. Pelo contrário, o objetivo é apresentar particularidades do atual momento

histórico vivido pelo Direito para, em seguida, termos algumas premissas solidificadas e aptas

a estruturar uma exploração interdisciplinar dos direitos fundamentais.

Para nós, um dos principais pontos a ser destacado, reiteramos, é a superação da

legalidade pura e simples. Neste contexto, um dos movimentos responsáveis por este passo de

transformação é o constitucionalismo, que concebe a Constituição – e a normatividade a ela

atribuível – como um documento permeável a influxos da mais variada ordem, compreendendo

“valores jurídicos suprapositivos”178, ou mesmo elementos de outras ciências e áreas do

conhecimento. Dentre várias coisas, o constitucionalismo impôs ao Direito a absorção de outros

saberes179, seja como instrumento para a compreensão de sentidos normativos da própria

Constituição, seja para legitimá-la como um conjunto de regras a regular a vida social. Este

cenário permite o desenvolvimento de um novo modelo, bem definido por Bonavides:

O novo método é pluridimensional: abre-se aos valores, aos fins, às razões históricas, aos interesses, a tudo enfim que possa ser conteúdo e pressuposto da norma. O sistema constitucional já não é tão-somente o sistema da Constituição normativa, mas está acrescido de todo aquele complexo de forças, relações e valores, que o positivismo formalista deliberadamente excluía ou ignorava e cuja totalidade, compõe a ordem material da Constituição, formando um núcleo ou círculo mais largo e compreensivo, excepcionalmente rico de conteúdo180-181.

O Direito deixa de ser unidisciplinar, passando a aceitar como elemento básico a

multidisciplinaridade. Esta abertura, em termos práticos, se dá com a utilização de fórmulas

textuais carregadas de abstração e generalidade182. O Direito não é mais visto como uma ciência

fechada em razão destas características – não mais um Direito puro, ao contrário do diagnóstico

de Kelsen. E não é só: “a abertura das normas constitucionais [...] possibilita a evolução do

177 BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro (Pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo). Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ - Centro de Atualização Jurídica, v. I, nº. 6, setembro, 2001. Disponível em: <http://www.direitopublico.com.br>. Acesso em 18 de junho de 2013, p. 27. 178 Ibid., p. 30. 179 TAVARES, André Ramos. Fronteiras da Hermenêutica Constitucional. São Paulo: Editora Método, 2006, p. 41. 180 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 28 ed. São Paulo Malheiros 2013, p. 141. 181 É bom que se diga, até por honestidade acadêmica, que esta mesma passagem foi por nós identificada no livro de Bastos e, em seguida, fomos buscar no original (Cf. BASTOS, Juliana Cardoso Ribeiro. Constituição Econômica e a Sociedade Aberta dos Intérpretes. São Paulo: Verbatim, 2013). 182 TAVARES, André Ramos. Op. cit., p. 41.

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Texto Constitucional, o acompanhamento do desenvolvimento da realidade, superando-se,

assim, a mentalidade que se tinha acerca do sistema jurídico [...]”183.

1.3.2. Interpretação ou concretização dos direitos fundamentais?

Antes de avançarmos no exame definitivo do objeto deste trabalho, parece-nos essencial

passar por uma distinção conceitual relevante para a construção do sentido último dos direitos

fundamentais. Estamos examinando realmente a interpretação constitucional ou estamos

falando de algo que vai além da mera busca de um sentido para o texto normativo?

Como aponta Tavares, o ato de interpretar sempre esteve associado à descoberta do

conteúdo da norma, algo extraível do texto colocado pelo legislador, em uma visão

extremamente constritora da atividade interpretativa184. Há, porém, um movimento contrário,

tendo como parte integrante um aspecto criativo , vale dizer, o intérprete passa a construir a

norma, atribuindo sentido a ela185 – “não existe norma jurídica, senão norma jurídica

interpretada”186.

É justamente diante desta acepção que passa a ser possível se falar em concretização.

Concretizar a Constituição traduz-se, fundamentalmente, no processo de densificação de regras e princípios constitucionais. A concretização das normas constitucionais implica um processo que vai do texto da norma (do seu enunciado) para uma norma concreta – norma jurídica – que, por sua vez, será apenas um resultado intermediário, pois só com a descoberta da norma de decisão para a solução dos casos jurídico-constitucionais teremos o resultado final da concretização187.

Seguindo ainda com a lição de Canotilho, um ponto merece destaque para possibilitar o

fechamento deste conceito. A densificação mencionada é o preenchimento “do espaço

normativo de um preceito constitucional”188. Por esta razão as “tarefas de concretização e de

densificação de normas andam, pois, associadas: densifica-se um espaço normativo [...] para

183 TAVARES, André Ramos. Fronteiras da Hermenêutica Constitucional. São Paulo: Editora Método, 2006, p. 43. 184 Ibid., p. 60. 185 Ibid., p. 60. 186 MENDES, Gilmar Ferreira; VALE, André Rufino do. A influência do pensamento de Peter Häberle no STF. Consultor Jurídico, São Paulo, 10 abr. 2009. Disponível em <http://www.conjur.com.br/2009-abr-10/pensamento-peter-haberle-jurisprudencia-supremo-tribunal-federal> Acesso em 17 de nov. 2014, p. 7. 187 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 1201. 188 Ibid., p. 1201.

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tronar possível a sua concretização e a consequente aplicação a um caso concreto”189. A

concretização, então, “começa com a atribuição de um significado aos enunciados linguísticos

do texto constitucional”190.

Embora alguns autores defendam que a concretização é sucessora e substituta do

conceito de interpretação – como o próprio autor da tese, Müller191 –, Tavares aponta para a

concretização como um moderno conceito de interpretação192. E esta tradução (moderna) de

interpretação afasta-se da já mencionada ideia de pré-compreensão do texto normativo, ligada

ao mero processo de descoberta (conceito tradicional de interpretação), pois a concretização,

como o próprio nome induz, exige a construção de um sentido para a norma a partir de um

problema concreto193.

Em uma tentativa de sistematização, Tavares oferece uma síntese do processo de

concretização, que engloba, em verdade, “dois processos parciais”194 – embora reconheça serem

tais etapas “não-sequenciais nem totalmente discerníveis como individualidades”195. Uma etapa

pode ser traduzida como a atribuição de significado ao texto normativo. Na outra, o intérprete

vai até a realidade para captar elementos que influenciarão na formação final da norma196. Em

razão destes processos diferenciados, há, como aponta Canotilho197, dois componentes de uma

norma jurídica. O primeiro, nomeado como programa normativo, é aquele resultante da

interpretação do texto; o segundo, nomeado como domínio (ou âmbito) normativo, é fruto da

etapa seguinte, “assente sobretudo na análise dos elementos empíricos (dados reais, ou seja,

dados da realidade recortados pela norma)”198.

189 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 1201. 190 Ibid., p. 1201. 191 Segundo Müller, a interpretação “é um dos elementos mais importantes no processo da concretização, mas somente um elemento”. Ainda segundo o autor, a concretização “não pode ser um procedimento meramente cognitivo” (todas as citações de MÜLLER, Friedrich. Metodologia do Direito Constitucional. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 61-62). 192 TAVARES, André Ramos. Fronteiras da Hermenêutica Constitucional. São Paulo: Editora Método, 2006, p. 62. 193 Bonavides caminha no mesmo sentido ao afirmar que a “interpretação em Müller, tanto quanto nos demais concretistas (Konrad Hesse e Ehmke, por exemplo), se qualifica como concretização e a concretização, vice-versa, como interpretação” (BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 28 ed. São Paulo Malheiros 2013, p. 514). Também por isto, ao longo do trabalho faremos referência ao intérprete, que sempre deverá ser compreendido no sentido aqui proposto, um ator cujo mote seja a concretização das normas. 194 TAVARES, André Ramos. Op. cit., p. 62. 195 Ibid., p. 62. 196 Ibid., p. 62. 197 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 1216. 198 Ibid., p. 1216.

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Ainda segundo Canotilho, este programa normativo “não resulta apenas de mediação

semântica dos enunciados linguísticos do texto”199. Entender este postulado é fundamental para

enxergar a completude da concretização, pois o intérprete deve buscar, segundo o autor, quatro

características do texto: a sistemática, a genética, a história e a teleologia200. Por outro lado,

como o processo de concretização não se limita a um aspecto meramente formal por trazer na

sua base conceitual a noção de que o texto aponta para um referencial concreto (da realidade

colocada externamente ao texto da norma)201, pressupõe então uma “racionalidade material”202.

Assim, o âmbito normativo, segundo o autor, impõe a sua delimitação a partir de dados da

realidade da mais variada natureza e – para não citar os mesmos exemplos de Canotilho –,

podemos falar em elementos antropológicos, biológicos, ecológicos (ou nos tradicionais

“jurídicos, sociais, psicológicos, sociológicos”203)204. O exame deste último elemento – âmbito

normativo – ganhará importância quando o texto da norma fizer menção a elementos

pertencentes a ciências não jurídicas e quando a construção normativa for aberta205 – vale dizer

que o texto, nestes casos, determinará apenas minimamente o intérprete, ao contrário dos

dispositivos em que o “imperativo linguístico do texto é forte (ex.: prazos, definições, normas

de organização e de competência)”206.

Canotilho foi muito preciso quanto atribuiu ao programa normativo a qualidade de

duplo filtro ao âmbito normativo. Em primeiro lugar, serve como um filtro positivo (ou “função

positiva”) – “significa que é ele que separa os factos com efeitos normativos dos factos que,

por extravasarem desse programa, não pertencem ao sector ou domínio normativo”207. Em

segundo lugar, por partir a concretização do texto da norma (dados linguísticos), o programa

normativo serve como um filtro negativo (ou “limite negativo do texto da norma”208). De todos

os elementos de concretização – que serão mais bem explorados adiante – aqueles ligados ao

texto da norma prevalecem em caso de “embate” entre os diversos outros elementos209. Vale

dizer que “só os programas normativos que se consideram compatíveis com o texto da norma

199 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 1218. 200 Ibid., p. 1219. 201 Ibid., p. 1219. 202 Ibid., p. 1219. 203 Ibid., p. 1219. 204 Ibid., p. 1219. 205 Ibid., p. 1219. 206 Ibid., p. 1220. 207 Ibid., p. 1220. 208 Ibid., p. 1220. 209 Ibid., p. 1220.

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constitucional podem ser admitidos como resultados constitucionalmente aceitáveis derivados

de interpretação do texto da norma”210-211.

Em síntese, a ideia de concretização – ou a metódica estruturante – pressupõe um novo

conceito de norma jurídica, que deixe de compreendê-la como um “comando pronto”212 – que,

ainda nas palavras de Müller, traz o “risco de confundir norma e texto normativo”213. A Teoria

Estruturante214 reconhece, ao contrário, que a norma é formada pelo seu programa e âmbito

normativos. Incorpora o fático ao texto, com a complexidade que lhe é inerente – a norma é

uma junção de elementos linguísticos e extralinguísticos. O texto é só o início do processo de

concretização, embora tenha consequências relevantes para a compreensão deste processo.

Disposições textuais podem, por exemplo, exprimir “várias normas conjuntamente”215;

“normas sem disposição” (geralmente quando se adota enunciados linguísticos abertos, caso

em que “poderemos ter muitas vezes normas sem formulação ou enunciado linguístico”216-217);

mais de uma disposição pode gerar uma única norma.

Diante deste breve quadro é possível identificar outra superação teórica promovida pela

ideia de concretização. Admiti-la como parte do processo de construção normativa nos opõe à

velha separação entre o fato e a norma, cujas bases estão firmadas, também, na Teoria Pura do

Direito, de Hans Kelsen. A inteligência do concreto – mesmo de forma hipotética – é essencial

à compreensão do texto normativo218.

A separação entre o mundo dos fatos e o mundo das normas constitui, como se sabe, uma das bases da teoria de Kelsen (embora essa incomunicabilidade seja excluída ao menos quanto à efetividade mínima necessária para o reconhecimento normativo de uma nova Constituição e de um novo ordenamento jurídico). Daí a ideia de um “pós-positivismo”, representado, dentre outras Escolas, na da concretização, que pretende superar essa frágil separação219.

210 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 1220. 211 Como bem aponta Canotilho, uma das grandes dificuldades da concretização advém do seu próprio ponto de partida: o texto da norma e a sua exigida densificação. Há no Direito Constitucional, sobretudo no tocante aos direitos fundamentais, a utilização de conceitos polissêmicos, por meio de enunciados linguísticos muitas vezes vagos, outras vezes inerente a valores, ou, por fim, relacionados à prognose – verificação de consequências futuras e até certo ponto incertas (Cf. CANOTILHO, J. J. Gomes. Op. cit, p. 1217). 212 MÜLLER, Friedrich. Teoria Estruturante do Direito. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 187. 213 Ibid., p. 187. 214 Avançaremos mais nos aspectos desta teoria, mas no momento basta saber que ela contém, na sua essência, a base para a concretização das normas ambientais. 215 CANOTILHO, J. J. Gomes. Op. cit., p. 1204. 216 Ibid., p. 1205. 217 Um exemplo dado por Canotilho é o “princípio do processo justo”. 218 TAVARES, André Ramos. Fronteiras da Hermenêutica Constitucional. São Paulo: Editora Método, 2006, p. 63. 219 Ibid., p. 74.

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Temos assim que o texto da Constituição, embora reconhecidamente o ponto de partida

de todo processo interpretativo, não esgota as possibilidades hermenêuticas. Texto e norma,

neste ponto, são conceitos absolutamente distintos. A norma constitucional somente será

atingida por meio de um processo de concretização220, que vá beber na fonte do âmbito

normativo. Com base nesta teoria, Müller critica a clássica associação da norma com o dever-

ser, pois esta noção parte do pressuposto de que a norma nada tem com o ser, ou o mundo

fático. “Eu, então, abandonei o velho paradigma e comecei a elaborar, sempre com casos

práticos, uma nova noção da norma jurídica: como uma noção composta (de ser e de dever-

ser, de campo normativo e campo factual, de dados linguísticos e dados reais [...]”221. Trata-se

portanto da incorporação de um modelo de norma jurídica por excelência dinâmico (que não é

dado estaticamente pelo legislador) – a norma decorre de um processo de concretização, que

vai do texto ao recorte da realidade delimitado pela norma222. A norma decorre de um processo

criativo223 do aplicador, não é preexistente, portanto a metódica estruturante, nas palavras de

Jouanjan é eminentemente impura, mostrando que a Teoria Pura de Kelsen encontra-se em

verdadeiro colapso224.

Concretizar não significa aqui, portanto, à maneira do positivismo antigo, interpretar, aplicar, subsumir silogisticamente e concluir. E também não, como no positivismo sistematizado da última fase de Kelsen, ‘individualizar’ uma norma jurídica genérica codificada na direção do caso individual ‘mais restrito’. Muito pelo contrário, ‘concretizar’ significa: produzir diante da provocação pelo caso de conflito social, que exige uma solução jurídica, a norma jurídica defensável para esse caso no quadro de uma democracia e de um Estado de Direito. Para tal fim existem dados de entrada – o caso e os ‘pertinentes´ textos de norma – e os meios de trabalho, sobre os quais ainda haveremos de falar225.

1.3.3. Método concretista-estruturante de Friedrich Müller

220 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 1216. 221 MÜLLER, Friedrich. O Novo Paradigma do Direito: Introdução à teoria e metódica estruturantes. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 235. 222 Ibid., p. 235. 223 O uso do vocábulo “criativo” aqui não deve ser visto com a atribuição de uma carta branca ao intérprete. Ela é, nesta leitura, criada no momento de aplicação, porém, observadas determinadas regras de concretização, como veremos mais à frente. 224 Cf. JOUANJAN, Olivier. De Hans Kelsen a Friedrich Müller – Método Jurídico Sob o Paradigma Pós-Positivista. In MÜLLER, Friedrich. O Novo Paradigma do Direito: Introdução à teoria e metódica estruturantes. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 213. 225 MÜLLER, Friedrich. Metodologia do Direito Constitucional. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 130.

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Ao fazermos uma opção metodológica pela ideia de concretização, devemos

necessariamente recorrer – nas suas minúcias – a Müller – e sua Teoria Estruturante (ou

Metódica Estruturante). Müller é um daqueles autores chamados de concretistas, que

desenvolveu

[...] um método racionalista de interpretação constitucional, em que procura deixar estruturada uma hermenêutica que permita explicar a Constituição, sem perda de sua eficácia, e como ela realmente se apresenta, com vínculos materiais indissolúveis, fora da própria antinomia tradicional por onde se operava a separação irremediável entre a Constituição formal e a Constituição material"226

Antes de avançarmos, convém fixarmos uma premissa: este trabalho não é voltado à

discussão da metódica de Müller per se. O uso da teoria é meramente instrumental e serve para

permitir a leitura diferenciada da norma ambiental aqui tão propalada. Assim, a metódica

estruturante possui alguns elementos fundantes, parte deles já mencionados, mas que pela

importância estão a merecer um olhar mais cuidadoso.

Um deles diz respeito ao texto da norma. Para esta teoria, a normatividade não estaria

no texto227, embora possua um papel relevante no processo de concretização – “ele dirige e

limita as possibilidades legítimas e legais da concretização materialmente determinada do

direito no âmbito do seu quadro”228. O texto, como já assinalamos alhures, determinará o

chamado programa da norma e guiará o processo de delimitação do âmbito da norma. Por esta

razão, a norma não decorre simplesmente do texto, dependerá também do respectivo âmbito

normativo – “o recorte da realidade social na sua estrutura básica, que o programa da norma

“escolheu” para si ou em parte criou para si como seu âmbito de regulamentação”229. Neste

sentido, pode ocorrer de o âmbito normativo ser definido apenas pelo Direito (como são as

normas meramente procedimentais, normas de prazos, etc.), porém muitas vezes possuirá

elementos “extrajurídicos” – fenômeno comumente identificado com a concretização dos

direitos fundamentais, em razão da abertura intrínseca a eles (estes direitos nunca serão,

portanto, descolados da realidade factual)230.

A identificação desta característica nos leva à formulação de uma questão, cuja resposta

aponta outro pilar da metódica estruturante: se o âmbito normativo implica um recorte da

realidade, quais fatos ele abrange? Não quaisquer fatos, mas aqueles fatos refletidos, como

226 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 28 ed. São Paulo Malheiros 2013, p. 514. 227 MÜLLER, Friedrich. Metodologia do Direito Constitucional. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 57. 228 Ibid., p. 57. 229 Ibid., p. 58. 230 Neste contexto, para bem ilustrar o quanto afirmado, deve-se indagar: o que é meio ambiente ecologicamente equilibrado? O que são processos ecológicos essenciais? Isto para ficar em exemplos retirados do artigo 225 da Constituição Federal.

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dito por Müller; vale dizer, “forçosamente expressos em linguagem”231. São os fatos

delimitados pelo domínio da norma e “parte integrante material da própria prescrição

jurídica”232. Por esta razão, o exame do âmbito da norma é tão maior quanto maior for a sua

vinculação material233, “quanto mais partes integrantes não gerados pelo direito contiver o seu

âmbito da norma”234. Assim é possível assegurar a proximidade entre norma e realidade, uma

está contida na outra, em graus que variam conforme o texto normativo que se procura

concretizar. Contudo, a adoção desta teoria não implica em aceitar a chamada força normativa

dos fatos, pois os fatos não emanam normatividade por si, dependem sempre de um recorte

prévio, conferido em diferentes medidas pelo programa da norma – assim, como veremos

adiante, em caso de choque entre os elementos de concretização, prevalecerá o sentido que mais

se aproxime do texto da norma235.

Por causa da formação jurídica existente, o âmbito normativo não se limita ao puro empirismo de um recorte da realidade. Ele não engloba a totalidade absoluta dos fatos a serem concretamente inseridos nesse recorte, porque, como parte integrante da norma estruturante vista, ele só aparece quando o programa normativo assinala, no processo da interpretação prática e na aplicação de normas jurídicas, as estruturas básicas relevantes desse âmbito normativo, considerando o caso particular. É também no sentido dessa abordagem metódica (senão na apreensão de sentido perfeita e passível de ser isolada) que o programa normativo indica se e em que medida essas estruturas básicas devem ser deixadas como estão e protegidas ou alteradas em seu resultado. Um “poder normativo do fático” não é expresso nessa concepção. Enquanto na esfera dos dados fáticos elementos bem embasados, metodicamente comprovados e colocados em prática desenvolvem legitimamente poder normativo, eles só são capazes disso na medida em que tiverem se mostrado racionalmente como integrantes da normatividade jurídica, na concretização da norma; ou seja, na medida em que não são mais permeados pelos “fatos”, mas pela formação normativa e pela reflexão jurídica, tornando os fatores internos dos direitos fatores concretos dele236. (grifo nosso)

Por tudo isto, texto e norma não são coincidentes; a norma não existe previamente ao

processo de concretização. Ela é sempre posterior, dependente do caso analisado e, portanto,

de um sujeito apto a executar o processo de concretização (observando, por certo, a sequência

metodológica necessária, neste caso aquela apresentada por Müller).

Para além de uma discussão mais teórica, Müller apresenta, no processo de delimitação

da sua metódica, os denominados “elementos” de concretização. Para defini-los, Müller recorre

à Savigny, conceituando-os como “momentos de um processo unitário de interpretação, e que

a sua relação somente pode ser determinada com vistas à estrutura material do caso jurídico

231 MÜLLER, Friedrich. O Novo Paradigma do Direito: Introdução à teoria e metódica estruturantes. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 236. 232 Idem. Metodologia do Direito Constitucional. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 59. 233 Ibid., p. 60. 234 Ibid., p. 60. 235 Ibid., p. 128. 236 Idem. Teoria Estruturante do Direito. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 242.

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individual”237. Para Müller, os elementos de concretização da norma podem ser separados em

dois grandes grupos.

O primeiro “abrange os recursos do tratamento da norma no sentido tradicional”238-239,

e seriam (i) a interpretação gramatical; (ii) os elementos históricos, genéticos, sistemáticos

e teleológicos; e, por fim, (iii) os princípios de interpretação da Constituição (estes seriam,

na visão do autor, “autônomos em grau reduzido”240 pois, na maior parte, “configuram subcasos

dos aspectos linguísticos, histórico, genético, sistemático e ´teleológico´ da concretização”)241.

Estes elementos podem ser sinteticamente denominados, para Müller, como elementos

metodológicos ´strictiore sensu’.

O segundo grupo abrange os “passos de concretização, por meio dos quais são

aproveitados os pontos de vista com teores materiais, que resultam da análise do âmbito da

norma da prescrição implementada e da análise dos elementos do conjunto de fatos destacados

como relevantes [...]”242. Deste podemos citar, sem adentrar nas suas minúcias, os (i) elementos

de concretização a partir do âmbito da norma; (ii) elementos dogmáticos; (iii) elementos de

técnica de solução; (iv) elementos de teoria; e, por fim, (v) elementos de política constitucional.

Não iremos discorrer obstinadamente sobre cada um deles, porém destacaremos aquilo

que é mais relevante. Quanto ao primeiro grupo (elementos metodológicos strictiore sensu),

a interpretação gramatical merece um destaque especial. Não obstante tenhamos efetuado um

esforço argumentativo significativo para afastar os conceitos de texto e norma, não podemos

deixar de assinalar a importância do teor linguístico das prescrições normativas. O texto sempre

será o ponto de partida do processo de concretização e nunca pode ser perdido de vista – possui

papel significativo, também, na própria delimitação do âmbito normativo (no recorte da

realidade relevante para a formatação da norma). Igualmente, como já tivemos oportunidade de

assinalar, a importância do teor literal variará conforme o tipo de norma243 (e até mesmo

conforme a capacidade de o próprio Direito delimitar o âmbito normativo) – direitos

237 MÜLLER, Friedrich. Metodologia do Direito Constitucional. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 69. 238 Ibid., p. 70. 239 Cuidam, em especial, do “tratamento do texto da norma”, mas se referem “também à formulação de não normas em linguagem” (MÜLLER, Friedrich. Metodologia do Direito Constitucional. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 79). 240 Ibid., p. 79. 241 Ibid., p. 79. 242 Ibid., p. 70. 243 Ibid., p. 72.

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fundamentais, por exemplo, tendem a ter, no texto, um indicativo muito pequeno para a busca

da normatividade inerente àquela norma244.

Em tudo isso a interpretação gramatical evidencia depender da estrutura da norma. Isso não se deve ao fato da norma estar substancialmente presente no texto da norma. Os teores materiais jurídicos não estão “contidos” nos elementos linguísticos dos enunciados jurídicos. Conceitos jurídicos não coisificam enunciados. O conceito jurídico dogmático só tem valor de signo. Além disso, o aspecto gramatical (só aparentemente unívoco) frequentemente obriga a decidir-se por um entre vários modos de utilização dos conceitos usados, entre significados na linguagem cotidiana e na linguagem jurídica e em parte também entre diferentes significados jurídicos. Isso somente é possível porque também o “método” gramatical não diz respeito ao texto da norma, mas à norma. Já aqui o possível sentido da norma deve ser interpretado por antecipação, o que implica o abandono da esfera da interpretação literal de cunho filológico245.

O teor literal de um dispositivo delimita o processo de concretização, apontando os

limites para atuação do intérprete. “O teor literal demarca as fronteiras extremas das possíveis

variantes de sentido, i. e., funcionalmente defensáveis e constitucionalmente admissíveis”246.

Por esta razão, a concretização de uma norma (ou a interpretação, se utilizarmos o sentido

amplo de Tavares, mencionado anteriormente) nunca poderá desrespeitar os limites impostos

pelo teor literal. Este espaço de concretização juridicamente possível irá variar conforme os

limites impostos pelo texto e consequentemente as possibilidades de ação do intérprete. A

interpretação gramatical, porém, não terá como produzir a norma por si mesma, sempre

recorrerá a outros elementos (em graus distintos) – nem mesmo que seja para buscar as

“variantes linguísticas de sentido que o texto da norma indica com referência ao caso”247.

Os elementos do primeiro grupo não parecem merecer um destaque maior (os elementos

históricos, genéticos, sistemáticos e teleológicos, além dos princípios de interpretação da

Constituição), pois são menos relevantes para o objetivo do trabalho, embora tenham sensível

importância na compreensão da metódica estruturante – que, como já dissemos, não constitui,

per se, nossa pesquisa248.

244 Não pretendemos com isto reduzir a distinção entre direitos fundamentais e as demais normas a uma questão linguística. Para Müller há uma “diferença estrutural” que permite a qualificação dos direitos fundamentais como tal – há uma diferença quanto à “eficácia da pré-compreensão (jurídica)”, da “pré-compreensão materialmente informada e orientada dos problemas jurídicos e das normas” (todas as passagens de MÜLLER, Friedrich. Metodologia do Direito Constitucional. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 72). Para o autor, o que efetivamente diferencia uma norma de outra, neste quesito, são os respectivos âmbitos das normas – o que gerará consequências na abrangência da interpretação gramatical. Vale lembrar que para os fins deste trabalho, ficamos com o conceito formal de Direitos Fundamentais. 245 MÜLLER, Friedrich. Metodologia do Direito Constitucional. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 73. 246 Ibid., p. 74. 247 Ibid., p. 75. 248 Demais disto, são elementos clássicos, cuja compreensão pode facilmente ser suprida com qualquer consulta aos manuais de interpretação clássicos disponíveis.

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Quanto ao segundo grupo (resultado da análise do âmbito da norma), faremos o

mesmo. Tampouco vamos esmiuçar cada um dos elementos. Destacaremos com mais cuidado

um deles, por representar a porta para a multidisciplinaridade aplicada ao Direito. Trata-se dos

elementos de concretização a partir do âmbito da norma, de especial importância no processo

de concretização, assim definidos por Peixinho:

Esses mecanismos são perceptíveis na integração de conceitos jurídicos agregados aos contributos da sociologia, ciência política, economia e outros dados exigidos pela concretização, ou seja, a criação de uma cultura jurídica capaz de perceber o fenômeno jurídico de acordo com um viés multidisciplinar”249.

Para Müller, a utilização de elementos de outros saberes, como “dados exigidos pelo

âmbito normativo da prescrição concretizanda [...], coloca-se primacialmente para os juristas

como uma tarefa”250. A “cooperação interdisciplinar”251, para o teórico, é essencial no processo

de concretização da norma. A partir do momento em que se integra à norma um recorte

específico da realidade, ressaltado pelo seu caráter material, há de se buscar em outras ciências

elementos para possibilitar a sua correta compreensão. A interdisciplinaridade “aparece como

um elemento que se mostra incontornável na concretização do direito”252

No âmbito do Direito Constitucional os elementos de concretização a partir do âmbito

da norma ganham especial relevo em razão do alto grau de abstração e generalidade de alguns

dispositivos – aqui já mencionados – e por ser a Carta responsável por regular a vida em

sociedade nos seus mais variados âmbitos. Há inúmeros assuntos e temas abarcados pela

Constituição, o que requer para sua compreensão conhecimentos não somente restritos ao

Direito. É, em muitas partes, norma de conteúdo programático, de precisão limitada. Como

afirma Tavares, “a Constituição e a abertura de suas disposições permitem que haja uma

conjugação entre o real e o normativo, que finda por evitar que a Constituição e suas normas se

tornem letra morta”253. Isto é especialmente destacado quando nossa matriz referencial são as

normas ambientais (ou a Constituição Ecológica), que impõem o recurso às ciências naturais

para bem as delineamos, como abordaremos mais adiante. Ainda segundo Tavares, este

elemento representa um (entre dois) dos momentos de abertura da norma para o fático – o outro

249 PEIXINHO, Manoel Messias. As Teorias e os Métodos de Interpretação Aplicados aos Direitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 191. 250 MÜLLER, Friedrich. Metodologia do Direito Constitucional. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 87. 251 Ibid., 2010, p. 87. 252 Idem. O Novo Paradigma do Direito: Introdução à teoria e metódica estruturantes. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 250. 253 TAVARES, André Ramos. Fronteiras da Hermenêutica Constitucional. São Paulo: Editora Método, 2006, p. 44.

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seria quando da própria produção da norma de decisão, no instante de exame do caso

concreto254.

Há ainda os demais elementos deste segundo grupo, também não tão relevantes para o

desenrolar do trabalho, mas dignos de nota: os elementos dogmáticos (“correspondem à

jurisprudência e às opiniões doutrinárias que visam ao conhecimento dos fundamentos

divergentes de casos símiles”255); os elementos de técnica de solução(são vetores exteriores [à

metódica] e orientam o intérprete na solução dos problemas, sem funcionar, contudo,

independentemente das normas”256); elementos de teoria (“são reservados ao emprego de

contributos da teoria geral do Estado e da teoria da Constituição, mormente quando está em

jogo a concretização de direitos fundamentais”257); e, por fim, elementos de política

constitucional (“leva em consideração a ponderação das consequências e dos conteúdos

valorativos, sem, contudo, detalhar modos de atuação metódica”258).

Por fim, para fecharmos este tópico, deixamos como nota o reconhecimento, por parte

de quem estuda a obra de Müller – e, em certa medida, por ele mesmo –, da existência de certa

hierarquização neste processo. Peixinho, por exemplo, afirma que a “listagem proposta é, na

verdade, uma pirâmide de elementos que estabelecem uma verdadeira hierarquia no

procedimento de concretização”259. Nos termos da lição de Müller, os elementos

metodológicos, os elementos do âmbito da norma e parte dos aspectos dogmáticos “têm

precedência sobre os componentes restantes do processo de concretização”260. E mais, “dentre

os aspectos diretamente referidos às normas, os referentes à interpretação gramatical e

sistemática têm preferência em caso de conflito”261. Em especial, quanto ao texto da norma,

afirma Müller:

Além disso, os elementos de trabalho são hierarquizados: no caso do conflito entre eles, impõe-se por razões ligadas à democracia ou ao Estado de Direito os dados linguísticos; não deve existir nenhuma "força normativa do fático" (G. Jellinek). Em casos de conflito metodológico entre os elementos individuais da concretização temos à disposição um catálogo de regras de preferência. O primado cabe aqui grosso modo aos respectivos argumentos mais próximos do texto da norma.

254 TAVARES, André Ramos. Fronteiras da Hermenêutica Constitucional. São Paulo: Editora Método, 2006, p. 64. 255 PEIXINHO, Manoel Messias. As Teorias e os Métodos de Interpretação Aplicados aos Direitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 191. 256 Ibid., p. 191. 257 Ibid., p. 191. 258 Ibid., p. 191. 259 Ibid., p. 189. 260 MÜLLER, Friedrich. Metodologia do Direito Constitucional. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 106. 261 Ibid., p. 106.

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Falamos acima que Müller concorda em certa medida com esta posição por afirmar,

anteriormente na sua obra, que “em virtude da sua não normatividade, nunca se poderá

estabelecer uma ordem hierárquica vinculante entre os elementos metódicos”262. Como

conciliar esta passagem com o quanto afirmado posteriormente, na mesma obra? Parece-nos

não haver contrariedade. O que Müller condena é uma ordem vinculante, mas não o completo

afastamento da existência de uma ordem hierárquica. De fato, não há como se falar em uma

ordem vinculativa, pois os critérios utilizados e a intensidade de cada um deles variarão

conforme a norma que se pretende concretizar, a depender do seu programa normativo e do seu

âmbito normativo. Porém, diante de um conflito, inegável a possibilidade de se buscar uma

ordem para concretização.

1.3.4. Quem deve concretizar?

Mencionamos, a partir de uma citação de Canotilho263, que a metódica estruturante

prevê dois momentos distintos para a concretização. Um, a partir do texto, de criação da norma

jurídica (uma norma geral) – que seria, um “resultado intermediário”264 (âmbito normativo e

programa normativo). O outro, referente ao processo de criação da norma de decisão (uma

norma individual, relacionada ao caso concreto), momento no qual a norma passa a possuir a

normatividade e vai decidir casos jurídicos265-266. A concretização para Müller estaria, portanto,

na “produção da ‘norma jurídica’ (geral) e da ‘norma de decisão’ (individual) na resolução de

um caso determinado”267-268.

262 MÜLLER, Friedrich. Metodologia do Direito Constitucional. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 69. 263 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 1201. 264 Ibid., p. 1201. 265 Ibid., p. 1221. 266 O que regulamenta o caso não é a o texto de determinada norma, mas a norma de decisão, que é resultado do processo de concretização. Desde modo, quem vive o Direito é figura central no processo de definição da norma (quem concretiza efetivamente) – não o legislador propriamente dito (embora este tenha alguma relevância, não é ele detentor do monopólio da criação da norma, jurídica ou de decisão). 267 NEVES, Marcelo. A Constitucionalização Simbólica. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. 47. 268 Também por isto não há que se falar, no tocante à Teoria Estruturante, em ponderação, definida, muito simplistamente, como um mecanismo para resolução de conflitos entre princípios (enquanto categoria de norma jurídica, distinta das regras). Segundo Virgílio Afonso Silva, fazendo referência à lição de Müller, “[...] a racionalidade e a possibilidade de controle intersubjetivo na interpretação e na aplicação do direito só é possível por intermédio de uma concretização da norma jurídica após árdua análise e delimitação do âmbito de cada norma. Depois desta árdua tarefa não há espaço para colisões, porque a norma simplesmente se revela como não-aplicável ao caso concreto e não se vê envolvida, portanto, em nenhuma colisão jurídica relevante. Logo, sem colisão não

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O esclarecimento destas premissas nos remete à solução da indagação proposta no título

deste tópico. Quem concretiza?

Neste ponto não podemos imaginar que, por ser a norma de decisão voltada a um caso

específico, estaria a concretização limitada ao Judiciário. Esta não nos parece a melhor leitura.

Canotilho identifica três formas de concretização, a “concretização legislativa”, a

“concretização judicial” e a “concretização administrativa”269. As funções concretizadoras

serão delimitadas, em última análise, pela própria Constituição. A ideia central é que o

Legislativo concretize as disposições constitucionais, através de atos próprios (como as leis),

enquanto o Executivo e o Judiciário, com fundamento tanto no texto constitucional (até mesmo

autonomamente), como nos resultados da concretização legislativa, vão novamente proceder à

concretização, desta feita voltada à solução de casos concretos colocados ao seu exame270.

Não são só atores institucionais, porém, que participam deste processo, como aponta o

próprio Müller:

Também os atingidos que participam da vida política e da vida da constituição desempenham funções efetivas de concretização das normas constitucionais em uma abrangência praticamente não superestimável, ainda que apareçam menos e costumem ser ignorados metodologicamente: por meio da observância da norma, da obediência a ela, de soluções de meio termo e arranjo no quadro do que ainda é admissível ou defensável no direito constitucional, e assim por diante. Se a constituição deve desenvolver força normativa, a “vontade da constituição”, que é uma vontade para seguir ou concretizar e atualizar a mesma, não pode permanecer restrita à ciência jurídica [...]271.

Embora a extensão da concretização possa variar conforme o autor ao qual recorramos,

ficamos com aqueles que enxergam este processo complexo de forma mais ampla, para

abranger não só os legitimados clássicos, mas também o “público”272. Todos são sujeitos neste

intrincado processo, cada um à sua forma, cada um à sua medida.

Neste ponto, devemos mencionar a obra de outro autor concretista, por sua inegável

contribuição para a compreensão da Constituição na sua proximidade com o real. Häberle

propôs na sua obra Hermenêutica Constitucional a ampliação do rol de intérpretes

legitimados273. Segundo o autor, não só os operadores do Direito estão aptos – e devem estar

há razão para sopesamento” (SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação constitucional e sincretismo metodológico. In SILVA, Virgílio Afonso da (Org..). Interpretação constitucional. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 137-140). 269 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 1221. 270 Ibid., p. 1222. 271 MÜLLER, Friedrich. Metodologia do Direito Constitucional. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 52-53. 272 NEVES, Marcelo. A Constitucionalização Simbólica. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. 91. 273 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional – A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição: Contribuição para a Interpretação Pluralista e “Procedimental” da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1997.

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aptos – a interpretar a Constituição. É forçoso trazer os demais atores sociais para o processo,

não os tratando como meros objetos, sob pena de a Constituição perder sua força normativa.

Este chamado de Häberle deve ser compreendido amplamente, não só como um chamado de

atores igualmente legitimados, mas também um chamado de outras ciências para a

concretização da norma.

Classicamente, a “teoria da interpretação constitucional esteve muito vinculada a um

modelo de interpretação de uma ‘sociedade fechada’”274 – um círculo absolutamente limitado

de intérpretes. Häberle propõe a superação deste conceito para aceitarmos uma sociedade aberta

de intérpretes – na qual estão vinculados “todos os órgãos estatais, todas as potências públicas,

todos os cidadãos e grupos, não sendo possível estabelecer-se um elenco cerrado ou fixado com

numerus clausus de intérpretes da Constituição”275. Quem vive a norma na sua essência, a

interpreta em alguma medida. Se a Constituição dispõe sobre a sociedade, não pode tratá-la

como mero objeto – deve integrar estes atores como sujeitos legítimos no processo de

concretização. Daí, igualmente, que o Direito deve ser “co-interpretado”276 também pelas

demais ciências, além de impor a formação de operadores mais abertos ao diálogo

interdisciplinar. Em um contexto no qual a sociedade é cada vez mais complexa, um direito

simplista e fechado não atenderá às demandas contemporâneas.

1.4. Por que a Ecologia?

A resposta à indagação trazida no título deste tópico é em certa medida intuitiva. Antes

de enfrentá-la, porém, façamos algumas referências a fragmentos textuais contidos na

mencionada Constituição Ecológica. Meio ambiente? Meio ambiente ecologicamente

equilibrado? Processos ecológicos essenciais? Manejo ecológico das espécies e ecossistemas?

Diversidade? Patrimônio genético? Fauna e flora? Função ecológica?

Estes são alguns exemplos de elementos contidos na Constituição Ecológica e que

demonstram, indubitavelmente, ser o conhecimento da Ecologia essencial para a delimitação

do âmbito normativo das normas de proteção ambiental. Como já assinalamos – e agora tal

274 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional – A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição: Contribuição para a Interpretação Pluralista e “Procedimental” da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1997, p. 12. 275 Ibid., p. 13. 276 Ibid., p. 16.

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posição está mais clara – serão tantas normas quanto os casos jurídicos e situações concretas a

exigir concretização. Porém, em maior ou menor medida, todas elas passarão por esta ciência

natural. Em suma, a resposta à indagação inicial está na própria concepção da Constituição

Ecológica, que para ser concretizada impõe tal abertura.

O uso da Ecologia, como um instrumento parcial – porque não é o único – de

concretização vai ao encontro da ideia anteriormente apresentada, de cooperação

interdisciplinar. Neste ponto, não como mais um mecanismo retórico do processo de decisão,

mas como parte de uma metódica claramente definida, que reconhece, a partir de determinados

critérios, a essencialidade de uma aproximação com a realidade. Chegar à Ecologia não é uma

escolha arbitrária, é decorrência de um recorte efetuado pelo próprio programa da norma. Trata-

se de verdadeira hipótese de utilização dos já mencionados elementos de concretização a partir

do âmbito da norma.

Autores clássicos já tiveram êxito em demonstrar tal proximidade, embora não

necessariamente utilizando a metódica estruturante, como fazemos – o que não pode ser taxado

como pior, ou melhor, apenas como diferente. Garcia, por exemplo, afirma que, em princípio,

determinadas questões ecológicas (como o aquecimento global, por exemplo) são solucionadas

por ciências outras que não o Direito277. “Torna-se, no entanto, um problema para o direito a

partir do momento em que adquire conotações éticas e, por essa via, se esboça uma

responsabilidade ecológica”278. E continua a autora:

As conotações éticas não são, pois, suficientes para que o aquecimento global e o efeito de estufa se tornem um problema para o direito. Isso só acontece quando o dever de agir que a situação convoca e a respectiva definição da decisão individual se imponham imperativamente, porque a comunidade entende que aquele é um problema que lhe pertence e se lhe impõe em termos de resposta. [...]. A decisiva importância do direito neste horizonte de reflexão reside no facto de se ter como evidencia que sem o direito e a confiança que se transmite serão poucos os que decidem unilateralmente alterar os respectivos comportamentos, sacrificando-se por aquilo que entendem ser justo279.

A autora reconhece ainda que o Direito, no tocante às questões ambientais, se viu

obrigado a incorporar nas normas elementos científicos e técnicos, o que teria transformado a

estrutura “normativa do direito em invólucro de comandos orientados por peritos de diferentes

áreas”280. Por fim, o próprio reconhecimento – no caso brasileiro por meio da Constituição –

277 GARCIA, Maria da Glória F. P. D. O Lugar do Direito na Protecção do Ambiente. Coimbra: Almedina, 2007, p. 396. 278 Ibid., p. 396. 279 Ibid., p. 396. 280 Ibid., p. 401-402.

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do meio ambiente como um bem digno de tutela – efetivamente um bem jurídico – impôs a

atuação normativa do Estado281, disciplinando, sobretudo, a atuação em áreas sensíveis.

Na essência, parece-nos acertada a observação da doutrinadora portuguesa, porém, dela

discordamos quando retrata esta modificação da estrutura normativa como se decorrente da

incorporação, pelo Direito, da preocupação com o meio ambiente. Para nós não é a natureza –

enquanto bem tutelado – que impõe esta mudança. Ela ocorre como força de um movimento

mais amplo de abertura do Direito, como assinalamos anteriormente, que encontra guarida – e

aplicação prática – na proteção do meio ambiente, mas não só nela (vide, por exemplo, a

necessária abertura às ciências econômicas quando pensamos na concretização da Constituição

Econômica282). Dito isto, inegável a influência da ciência ecológica na formatação de um direito

voltado à proteção do meio ambiente.

Para não dizer que deixamos de lado autores mais conhecidos no Brasil, vários fazem

referência a tal proximidade – até pela sua inafastabilidade. Para ficarmos com dois, Granziera,

ainda que brevemente, atesta que a “relação da Ecologia com o Direito Ambiental dá-se quando

o conhecimento do ambiente natural e das relações de seus componentes entre si subsidia a

construção da tutela jurídica desses bens”283. No mesmo sentido, José Afonso da Silva,

comentando o artigo 225 da Constituição Federal, reconhece que o “contexto interno do

dispositivo revela um esquema normativo rico em manifestações ecológicas”284 e mais à frente

complementa, ao afirmar que

A Constituição usa vários conceitos ecológicos, que demandam esclarecimentos, a fim de se circunscrever com a precisão possível suas provisões sobre a matéria. Assim, quando diz que os sítios de valor ecológico se incluem no patrimônio cultural brasileiro (Art. 216, V), que ao Poder Público incumbe preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas, assim como preservar o patrimônio genético do país, só compreenderemos o sentido jurídico dessas expressões se definirmos adequadamente seu conceito ecológico285.

Outros autores mencionam uma necessária ecologização do Direito, a partir de um olhar

que assuma uma perspectiva ecológica. Sarlet e Fensterseifer falam em um constitucionalismo

ecológico, que acolha “os novos conceitos e valores ecológicos, especialmente no sentido de

uma Teoria Constitucional e dos Direitos Fundamentais ‘ecologicamente’ adequada e

281 GARCIA, Maria da Glória F. P. D. O Lugar do Direito na Protecção do Ambiente. Coimbra: Almedina, 2007, p. 404. 282 Indicamos, neste particular, a obra de Bastos (cf. BASTOS, Juliana Cardoso Ribeiro. Constituição Econômica e a Sociedade Aberta dos Intérpretes. São Paulo: Verbatim, 2013) 283 GRANZIERA, Maria Luiza Machado. Direito Ambiental. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 13-14. 284 SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 8ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 856. 285 Ibid., p. 857.

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comprometida”286. E não é só, quando propõem a superação do Estado Social para um Estado

Socioambiental advogam a agregação da dimensão ecológica ao modelo de Estado.

Não podemos fugir desta realidade concreta que nos é colocada para confrontação. O

intérprete deverá, cedo ou tarde, reconhecer esta complementaridade e passar ao processo de

concretização despido de qualquer visão unidimensional do direito – para não dizer,

efetivamente, com um pré-conceito. Deve deixar-se tomar pela Ecologia, certo dos limites

ditados pelo programa da norma. Esta é justamente uma busca pela efetiva incorporação da

dimensão ecológica ao Direito – um processo tão alardeado, mas pouco efetivado –, pois, como

aponta Villas Boas, “salvaguardar o dever de respeito à ecologia é garantir o direito

fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e à sadia qualidade de vida às

presentes e futuras gerações [...]”287.

É com base nestes pressupostos teóricos que pensamos ser imprescindível um olhar mais

cuidadoso sobre a Ecologia e os seus reflexos sobre a ordem jurídica brasileira. Veja que não

iremos percorrer um caminho tradicional, limitado a buscar o conteúdo específico das

disposições normativas trazidas pela Constituição (simplesmente definir os vocábulos

indicados no parágrafo inicial deste tópico288) – isto fugiria da ideia central da dissertação, sem

prejuízo do trabalho de investigação já efetuado por outros juristas neste campo289. Queremos

mostrar aquilo que se encontra por trás da ideia de Constituição Ecológica e o reflexo na

concretização das normas de proteção ambiental. O referencial material (concreto), dado pelo

âmbito normativo das normas ambientais, é muito mais complexo do que o mero exame –

também importante, reconhecemos – do valor linguístico de cada expressão trazida pelo artigo

225 da Constituição Federal.

Quando a Constituição Federal incorpora no seu texto a preocupação com a tutela do

meio ambiente, ela traz para o seio da sociedade a preocupação com as questões ambientais.

Ao fazê-lo, atende a um chamado da própria Ecologia, pois esta “não se reduz a uma

especialidade da biologia: é uma especialidade que cobre o conjunto das ciências da natureza e

286 SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito Constitucional Ambiental. Revista dos Tribunais 2ed, 2012, São Paulo, p. 36. 287 VILLAS BOAS, Regina Vera. Um Olhar Transverso e Difuso aos Direitos Humanos de Terceira Dimensão – A Solidariedade Concretizando o Dever de Respeito à Ecologia e Efetivando o Postulado da Dignidade da Condição Humana. In Revista dos Tribunais OnLine - Revista de Direito Privado. São Paulo: n. 51, julho-2012. Disponível em <http://www.rtonline.com.br>. Acesso em 19deagosto de 2014, p. 2. 288 Meio ambiente; meio ambiente ecologicamente equilibrado; processos ecológicos essenciais; manejo ecológico das espécies e ecossistemas; diversidade; patrimônio genético; fauna e flora; função ecológica. 289 Por exemplo, José Afonso da Silva, em duas obras aqui estudadas (Cf. SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 8ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012 e SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 9ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2011).

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que se estende até as ciências sociais”290 – a disciplina cuida não dos ecossistemas isolados,

mas da sua dinâmica, que pressupõe sua inserção e sua relação com o meio externo,

considerados, sobretudo, os problemas aos quais o meio ambiente está submetido. A Ecologia

apresenta constantemente desafios à humanidade, pois aborda problemas ambientais afetos aos

seres humanos, o que faz dela inerente ao social.

Milaré, na sua obra, indaga se é possível um diálogo entre Ecologia e Direito, uma

“pergunta que inquieta o jurista ambiental”291. A resposta nos parece muito clara: não só é

possível, como é essencial. Somente será possível compreender adequadamente a tutela

ambiental, quando compreendermos o objeto de tutela. Se objetivamos proteger o meio

ambiente, precisamos indagar que meio ambiente é este e como as relações naturais são

estabelecidas. Negar a essencialidade da natureza é, em última análise, afastar-se de um

postulado de concretização deste direito fundamental, é retirar da norma sua normatividade,

pois fica excluído seu âmbito normativo (ou ao menos parcela dele). A Ecologia é intrínseca ao

direito fundamental ao meio ambiente, é elemento formador da norma, em maior ou menor

medida, conforme o caso concreto ao qual é direcionada. O que faremos aqui é justamente

buscar este sentido ecológico da norma ambiental, na própria Ecologia, apontando, ao final,

diretrizes de concretização da norma ambiental.

290 BARBAULT, Robert. Ecologia Geral: Estrutura e Funcionamento da Biosfera. Petrópolis: Vozes, 2011. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 17. 291 MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente. 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 298.

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2. DA ECOLOGIA DE VOLTA AO DIREITO

Como olhar para as relações da vida? Muitos autores se debruçaram sobre esta questão,

direta ou indiretamente. Este tema, aliás, ganhou em determinados momentos contornos

metafísicos. Não pretendemos, como deixamos claro na introdução, partir para este caminho.

Queremos, sim, enfrentar esta questão, mas com um olhar estritamente científico – embora,

reconhecemos, a dinâmica da vida coloca indagações que superam muitas vezes as fronteiras

da ciência.

A base do pensamento racional292 e suas máximas deram suporte, por longas décadas, à

compreensão das relações presentes no planeta. A obra de Descartes é o alicerce deste pensar

fundado em alguns clássicos vetores, como a “crença de que o método científico é a única

abordagem válida do conhecimento”, uma percepção segundo a qual o universo é visto “como

um sistema mecânico composto de unidades materiais elementares”; a “concepção da vida em

sociedade como uma luta competitiva pela existência”; e a “crença no progresso material

ilimitado”293. Descartes impôs um exame desintegrativo sobre a realidade, que encarava os

objetos separadamente, em um claro movimento reducionista, considerado à sua época como a

única forma de se alcançar verdadeiramente a compreensão sobre qualquer evento. E esta

concepção mecanicista acabou transportada para a análise dos organismos vivos – também

percebidos separadamente – e até mesmo para a formulação das disciplinas do conhecimento –

formatadas de modo absolutamente fragmentado294.

Em certa medida, este pensamento puramente racional acabou ocasionando uma crise

ecológica, pois a Ecologia – nas suas bases dogmáticas – não aceita tal acepção. Ora, “o

pensamento racional é linear, ao passo que a consciência ecológica decorre de uma intuição de

sistemas não-lineares”295. Os ecossistemas são considerados não lineares por serem baseados

em “ciclos e flutuações”296, ao contrário dos sistemas lineares, que trabalham com conceitos de

expansão indefinidos, como é o caso da economia – o crescimento econômico (linear), tende a

interferir no equilíbrio da natureza (não linear)297, por exemplo.

292 Capra define o pensamento racional como aquele “linear, concentrado, analítico. Pertence ao domínio do intelecto, cuja função é discriminar, medir e classificar”, de modo que o “conhecimento racional tende a ser fragmentado” (CAPRA, Fritjof. O Ponto de Mutação. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 35). 293 Ibid., p. 28 (todas as citações). 294 CAPRA, Fritjof. O Ponto de Mutação. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 37. 295 Ibid., p. 38. 296 Ibid., p. 38 297 Ibid., p. 38

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Ao buscar a conformação dos organismos vivos, devemos, ao contrário, partir de uma

visão capaz de superar esta acepção mecanicista, por meio da aproximação à teoria sistêmica,

que “considera o mundo em função da inter-relação e interdependência de todos os

fenômenos”298. Ao contrário da proposta de fragmentação típica do pensamento racional, o

pensamento sistêmico tem como pressuposto a totalidade, salientando que seus atributos não

podem ser limitados aos de suas frações299. Há, em toda organização viva, uma sobreposição

de sistemas, formando “estruturas de múltiplos níveis”300. Cada conjunto das partes forma um

sistema, que por sua vez é parte de outro sistema maior, e assim sucessivamente – há, como

ensina Capra, ao mesmo tempo uma tendência integrativa e uma tendência autoafirmativa, por

pertencerem a algo maior e simultaneamente preservarem certa autonomia301.

A percepção desta incompatibilidade está diretamente relacionada com a emergência de

uma nova disciplina: a Ecologia. O termo Ecologia302 foi utilizado pela primeira vez no ano de

1866, por Ernst Haeckel, definindo-a como “a ciência das relações dos organismos com o

mundo exterior, no qual podemos reconhecer de forma mais ampla os factores da luta pela

existência”303. Contemporaneamente podemos definir a Ecologia como o “estudo das relações

dos organismos com seu meio ambiente, ou como o estudo das interações que determinam a

distribuição e a abundância dos organismos, ou ainda como o estudo dos ecossistemas [...]”304.

É por excelência uma das disciplinas mais abrangentes e completas das ciências biológicas,

justamente por ter como objeto de estudos uma ampla gama de interações entre organismos e o

meio ambiente305.

A Ecologia evoluiu e com ela o seu próprio conceito. Barbault, amparado em Kingsland,

propõe caracterizá-la como uma ciência subversiva – pois oferece “as bases que permitem

balizar uma crítica incessante às intervenções humanas nos ecossistemas do planeta [...]”306.

Ela subverte a ordem imposta pelos sistemas políticos e econômicos, a partir da demonstração

de que a lógica capitalista não se sustentará em longo prazo. A natureza não aceita os padrões

298 CAPRA, Fritjof. O Ponto de Mutação. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 40. 299 Ibid., p. 40. 300 Ibid., p. 40. 301 Ibid., p. 40. 302 A palavra ecologia tem a mesma raiz lexiológica da palavra economia. Ambas derivam do grego oikos, cujo significado pode ser aproximado de “casa”. Do lado da ecologia, “logos” significa “estudo”, enquanto do lado da economia “nomia” significa “gerenciamento” (Cf. ODUM, Eugene P.; BARRET, Gary W. Fundamentos de Ecologia. São Paulo: Cengage Learning, 2011, p. 311). Interessante notar como disciplinas conceitualmente próxima tomaram caminhos tão distintos. 303 LÉVÊQUE, Christian. Ecologia: Do Ecossistema à Biosfera. Lisboa: Instituto Piaget, 2001, p. 13-14. 304 BARBAULT, Robert. Ecologia Geral: Estrutura e Funcionamento da Biosfera. Petrópolis: Vozes, 2011. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 9. 305 MAYR, Ernst. Isto é Biologia. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 278. 306 BARBAULT, Robert. Op. cit, p. 417

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de exploração à qual foi submetida pelo homem. Por esta razão, a Ecologia enquanto ciência

expandiu suas fronteiras, alcançando demandas de outras disciplinas – sobretudo das ciências

ditas sociais –, fazendo nascer uma de suas principais características – a interdisciplinaridade307.

“Como ecólogos e ambientalistas já ressaltaram, o futuro da humanidade é, em última análise,

um problema ecológico”308

Independentemente de outras tantas características e controvérsias da Ecologia, ela é

relevante também por se fundar em estudos sobre inter-relações – no mais das vezes complexas.

“É preciso lembrar que raros são os casos que permitem uma receita simples. As interações

ecológicas são frequentes reações em cadeia, cujo resultado só se torna aparente após análises

sofisticadas e minuciosas”309.

2.1. Conectividade nos ecossistemas310-311

Pensar na vida em todas suas formas e seus estágios evolutivos passa pela compreensão

de que, em termos organizacionais, todos os sistemas vivos estão interconectados – a conhecida

metáfora da teia da vida312. Vale dizer: “uma complexa rede de partes em interação, [...],

possibilitando restrições e oportunidades para o comportamento futuro, na qual o todo é maior

do que a soma das partes”313. As ciências naturais vêm explorando este campo de estudos como

um viés altamente diferenciado, que prevê o uso de técnicas específicas para aquilo que

307 BARBAULT, Robert. Ecologia Geral: Estrutura e Funcionamento da Biosfera. Petrópolis: Vozes, 2011. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 418. 308 MAYR, Ernst. Isto é Biologia. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 302. 309 Ibid., p. 301. 310 Ecossistema é “qualquer unidade que inclui todos os organismos (a comunidade biótica) em uma dada área interagindo com o ambiente físico de modo que um fluxo de energia leve a estruturas bióticas claramente definidas e à ciclagem de materiais entre componentes vivos e não vivos. É mais que uma unidade geográfica (ou ecorregião): é uma unidade de sistema, com entradas e saídas, e fronteiras que podem ser tanto naturais quanto arbitrárias” (ODUM, Eugene P.; BARRET, Gary W. Fundamentos de Ecologia. São Paulo: Cengage Learning, 2011, p. 18). É verdade que os cientistas tentam insistentemente definir os limites de um ecossistema, mas tais definições são, aqui também, arbitrárias. “As fronteiras de um sistema são desenhadas pelo observador. Com muita frequência elas correspondem a descontinuidades espaço-temporais na escala de interesse” (BURNS, T. P.; PATTEN, B. C.; HIGASHI, M. Hierarchical Evolution in ecological networks. In: HIGASHI, M.; BURNS, T. P. (Coord.). Theoretical Studies of Ecosystems: The Network Perspective. New York: Cambridge University Press: 2009, p. 218). Isto serve, igualmente, para demonstrar a conexão entre os ecossistemas, que não existem isoladamente – se integram, em alguma medida, uns aos outros nestas zonas de transição entre eles (chamadas de ecótonos). 311 Todas as citações originais em língua inglesa foram livremente por nós traduzidas. 312 CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida. São Paulo: Cultrix, 2006. São Paulo: Cultrix, 2006. 313 JØRGENSEN, Sven Erik et. al. A New Ecology: Systems Perspective. 1ª ed. Amsterdamm: Elsevier, 2007, p. 79.

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denominam de “análise de redes ecológicas” (ENA, em inglês)314. Em verdade, os adeptos desta

linha vêm, em alguma medida, investigando de forma criteriosa tal conectividade, a partir de

compreensões comuns (usuais) decorrentes deste olhar diferenciado sobre as relações

naturais315. A proposta é basicamente complementar o tradicional olhar reducionista, com um

exame holístico. A ciência tradicional sempre teve como mote a fragmentação do seu objeto de

análise – o olhar sobre partes, fragmentando a realidade316. O que faz a ecologia das redes é a

solução intermediária: “não abandona objetos, [...]. Porém, dá um passo em direção à totalidade

a partir da investigação das propriedades dos conjuntos de coisas complexamente

interconectadas em teias de relações de dependência mútua”317.

2.2. O padrão de rede no comportamento dos ecossistemas

Se há uma palavra que define as relações existentes em um ecossistema, esta pode ser

interação. Há um contínuo fluxo entre as partes vivas e não vivas – o mundo vivo (biótico)

busca no mundo não vivo (abiótico) – “energia, nutrientes, água e espaço físico para formar [...]

seu habitat”318. Internamente, um ecossistema possui “interações entre populações (ex.,

acasalamento), entre indivíduos de diferentes espécies (ex., alimentação), e interações passivas

e ativas entre os indivíduos e o seu ambiente (ex., captação de água e nutrientes, excreção, e

morte)”319.

Não há “componentes isolados em um ecossistema”320. Fazendo uma analogia com a

teia de aranha, quando tiramos uma espécie do ecossistema, é como se puxássemos uma

intersecção da teia, tencionando-a e gerando reflexos em toda a teia. O resultado, no limite, será

314 Como leciona Jorgensen há na literatura basicamente duas formas de se analisar ecossistemas. A primeira, denominada como “black-box” (caixa preta), foca especialmente nas “entradas e saídas, sem elucidar os processos que os geram”. Outra forma é a ENA, uma “contabilidade detalhada do fluxo de energia e nutrientes dentro do ecossistema”, concentrando seu exame em como indivíduos de diferentes espécies interagem entre eles. A ENA examina como relações (diretas ou indiretas) impactam em uma rede interconectada de organismos vivos, a partir de um olhar mais amplo, que supera exames limitados de parte de um sistema ou de uma interação específica (todas as citações de JØRGENSEN, Sven Erik et. al. A New Ecology: Systems Perspective. 1ª ed. Amsterdamm: Elsevier, 2007, p. 81). 315 Ibid., p. 80. 316 Cf. PATTEN, Bernard C. Network ecology: indirect determination of the life-environment relationship in ecosystems. In: HIGASHI, M.; BURNS, T. P. (Coord.). Theoretical Studies of Ecosystems: The Network Perspective. New York: Cambridge University Press: 2009, p. 288. 317 Ibid., p. 288. 318 JØRGENSEN, Sven Erik et. al. A New Ecology: Systems Perspective. 1ª ed. Amsterdam: Elsevier, 2007, p. 81. 319 Ibid., p. 81. 320 Ibid., p. 81.

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a desordem, a perturbação ao sistema321. Por certo, o grau de afetação da teia, nesta analogia,

variará conforme a distância da intervenção. Nódulos mais próximos sofrerão piores

consequência, mas todo o sistema, em maior, ou menor medida, será afetado.

Um dos aspectos que garantem esta conectividade dos ecossistemas (ou a demonstra)

são os efeitos indiretos – “o que acontece quando A influencia B através de C e suas

subsequentes consequências ramificadas nas redes invisíveis da natureza”322. Em certa medida,

as redes nada mais são do que abstrações – pois não as enxergamos –, porém sua existência é

inegável a partir dos seus efeitos. As redes vão “descrever os caminhos seguidos pela matéria,

elementos químicos singulares, ou energia”323. Nas palavras de Margalef, “a rede principal é

incorporada em outra rede de fluxos de energia e matéria (ex. ar, água) em torno dos

organismos, o que é essencial para a manutenção da vida e deve ser incluído em qualquer

imagem da biosfera”324 – daí que uma das principais características da rede é a influência325. O

grande dilema decorrente dos efeitos indiretos, – como veremos destacadamente mais adiante

–, é que eles atingem todos os lugares, indistintamente. Os efeitos primários são sempre

relevantes e impactantes. Ademais, são mais facilmente perceptíveis, mais suscetíveis aos

estudos científicos – vêm primeiro e possuem uma menor variedade326. Os efeitos secundários

podem, porém, superar os primários em magnitude327.

Ponha material radioativo ou tóxico, ou patógeno, no meio ambiente e isso irá traçar prolongados caminhos tortuosos através de organismos e compartimentos não vivos até que seja dissipada de modo assimptótico ou se transforma em outra coisa irreconhecível [...]. Esta é a pedra de toque; não há final à interconexão e às consequências na natureza real. Os agentes causais podem alterar e ser alterados quanto ao tipo, ou retardado por descontinuidades do sistema ou outro fenômeno interruptivo ou responsável por atraso, mas o impulso causal inevitavelmente deve viajar interminavelmente nas redes invisíveis da natureza, cujo último estado da história é o estado inicial do futuro328.

321 JØRGENSEN, Sven Erik et. al. A New Ecology: Systems Perspective. 1ª ed. Amsterdam: Elsevier, 2007, p. 81-82. 322 PATTEN, Bernard C. Network ecology: indirect determination of the life-environment relationship in ecosystems. In: HIGASHI, M.; BURNS, T. P. (Coord.). Theoretical Studies of Ecosystems: The Network Perspective. New York: Cambridge University Press: 2009, p. 290. 323 MARGALEF, Ramon. Networks in Ecology. In: HIGASHI, M.; BURNS, T. P. (Coord.). Theoretical Studies of Ecosystems: The Network Perspective. New York: Cambridge University Press: 2009, p. 43. 324 Ibid., p. 45. 325 PATTEN, Bernard C. Network ecology: indirect determination of the life-environment relationship in ecosystems. In: HIGASHI, M.; BURNS, T. P. (Coord.). Theoretical Studies of Ecosystems: The Network Perspective. New York: Cambridge University Press: 2009, p. 292. 326 Ibid., p. 294 327 Ibid., p. 294 328 Ibid., p. 340-341.

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Podemos afirmar, seguindo Patten, que “Ecologia é rede”329 – vale dizer: para a perfeita

compreensão de um ecossistema é essencial igualmente a compreensão das redes330. Daí que,

uma vez alterada a rede, restará alterado todo o sistema331.

2.3. Cadeias alimentares

Uma das formas de se pensar as interconexões aqui tão faladas é analisando as interações

entre espécies distintas. Estas relações servem para controlar questões inerentes à “diversidade,

estabilidade e comportamento”332 destas espécies. Basicamente, discutir cadeia alimentar é

dizer, grosso modo, “quem come quem”333. Nelas, “o fluxo de energia entra nos

compartimentos do produtor primário e é transferido acima na cadeia trófica por interações

alimentares, pastagem e, em seguida, a predação”334. Claro que a este quadro devemos somar

outros fatores, como o papel de organismos decompositores, o consumo da energia dos

predadores ocupantes do topo da cadeia alimentar335, etc.

Por certo, esta acepção sobre quem come quem é uma forma simplista de resumir a

principal característica da cadeia alimentar, que é efetivamente a transferência de energia entre

os organismos envolvidos. As plantas estão no chamado primeiro nível trófico, pois fixam a

energia solar. No segundo nível trófico encontram-se os herbívoros, que se alimentam das

plantas (consumidores primários). Por fim, os carnívoros ocupam o terceiro e o quarto níveis

tróficos, conforme sejam primários ou secundários, respectivamente336. Denominar este

processo de “teia” não é sem sentido, por se tratar de uma cadeia altamente interligada, cuja

intervenção em uma parte gera efeitos no todo.

A complexidade destas conexões é tamanha que é possível identificar a retroalimentação

nas cadeias alimentares – “quando um organismo ‘a jusante’ no fluxo de energia tem um efeito

329 PATTEN, Bernard C. Network ecology: indirect determination of the life-environment relationship in ecosystems. In: HIGASHI, M.; BURNS, T. P. (Coord.). Theoretical Studies of Ecosystems: The Network Perspective. New York: Cambridge University Press: 2009, p. 292. 330 Ibid., p. 292. 331 Ibid., p. 292. 332 JØRGENSEN, Sven Erik et. al. A New Ecology: Systems Perspective. 1ª ed. Amsterdam: Elsevier, 2007, p. 82. 333 Ibid., p. 82. 334 Ibid., p. 82. 335 Ibid., p. 83. 336 ODUM, Eugene P.; BARRET, Gary W. Fundamentos de Ecologia. São Paulo: Cengage Learning, 2011, p. 108.

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positivo em seu fornecimento alimentar ‘a montante’ [...], no sentido de que um organismo

consumidor [...] faz algo para sustentar a sobrevivência de seus recursos alimentares [...]”337.

Um exemplo são os antílopes em regiões da África ou os bisões na América do Norte, que com

o seu pastejo aumentam a produção de determinadas plantas – as gramíneas338. Imagina-se,

como uma hipótese, que a saliva destes animais possua “hormônios do crescimento [...] que

estimulam o crescimento da raiz e a capacidade das plantas de regenerar novas folhas,

fornecendo um mecanismo para esse efeito de retroalimentação positiva”339.

Nas teias alimentares, um dos efeitos indiretos identificados é a denominada cascata

trófica. “Ela ocorre quando um predador reduz a abundância da sua presa, o que tem efeito

cascata no nível trófico abaixo, de modo que os recursos da própria presa (tipicamente plantas)

aumentam em abundância”340. O aumento na biomassa de predadores tem efeitos reflexos em

toda a cadeia341– este efeito é também chamado de controle de cima para baixo, ou seja, quem

está acima na teia alimentar (consumidor) impacta na produção de quem está abaixo (produtores

primários)342.

A ciência tem mostrado, porém, que esta hipótese convive com outra: o controle de

baixo para cima – “sustenta que a produção é regulada por fatores a montante, como

disponibilidade de nutrientes”343. Neste cenário, “o recurso controla a abundância do

consumidor”344. Se os recursos são escassos, os herbívoros podem competir pelas plantas345,

v.g.; se os herbívoros são escassos, os predadores podem competir entre si. Algumas

comunidades “tendem, inevitavelmente, a ser dominadas pelo controle de baixo para cima,

porque os consumidores têm pouca ou nenhuma influência sobre o fornecimento do seu

recurso”346. Veja, por exemplo, as espécies que são consumidoras de néctar ou sementes (a

planta restaria preservada nesta modalidade de consumo).

337 ODUM, Eugene P.; BARRET, Gary W. Fundamentos de Ecologia. São Paulo: Cengage Learning, 2011, p. 117. 338 Ibid., p. 117. 339 Ibid., p. 117. 340 BEGON, Michael; TOWNSEND, Colin R.; HARPER, John L. Ecologia: De Indivíduos a Ecossistemas. 4ª ed. Porto Alegre: Artmed, 2007, p. 580. 341 LÉVÊQUE, Christian. Ecologia: Do Ecossistema à Biosfera. Lisboa: Instituto Piaget, 2001, p. 341. 342 ODUM, Eugene P.; BARRET, Gary W. Op. cit., p. 120. 343 Ibid., p. 120. 344 BEGON, Michael; TOWNSEND, Colin R.; HARPER, John L. Ecologia: De Indivíduos a Ecossistemas. 4ª ed. Porto Alegre: Artmed, 2007, p. 583. 345 “Muitas plantas desenvolveram defesas físicas e químicas que tornam a vida difícil para os herbívoros” (BEGON, Michael; TOWNSEND, Colin R.; HARPER, John L. Op. cit., p. 584). Por outro lado, herbívoros não são necessariamente vulneráveis, tornando a vida de carnívoros igualmente difícil. 346 BEGON, Michael; TOWNSEND, Colin R.; HARPER, John L. Op. cit., p. 584.

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Não importa a forma de controle, todas estas relações servem para demonstrar a conexão

existente entre organismos vivos no planeta: “os ecólogos debatem qual o tipo de controle é

mais importante em dada situação, mas a maioria concorda, hoje, que ambos estão envolvidos

em graus variados em toda e qualquer situação natural”347. A descrição das cadeias alimentares

é absolutamente relevante, pois matéria e energia são constantemente transformadas,

transferidas e posteriormente recicladas. Se os autótrofos348, enquanto produtores primários

fixam a energia que servirá (ao menos parcialmente349) para o funcionamento de ecossistemas,

esta energia será transferida pela cadeia alimentar, com perdas neste processo, até a morte do

organismo e sua decomposição (a matéria será reciclada e voltará ao processo)350.

As peças estão absolutamente encaixadas e a retirada de uma delas do seu ponto de

encaixe pode impactar na “dinâmica global do sistema”351. Vale dizer, “a introdução ou a perda

de uma espécie pode modificar a disponibilidade de recursos de outras espécies”352. Os efeitos

variam, porém, muitas vezes, são devastadores. Há certas “espécies-chave”, com maior

importância dentro de uma cadeia alimentar específica. Basicamente, “a perda desta espécie

provocaria alterações maciças na estrutura e nos processos do ecossistema e poderia precipitar

outras extinções”353. Por esta razão são definidas como aquelas cuja “atividade e abundância

determinam ‘a integridade da comunidade e sua subsistência inalterada ao longo do tempo, isto

é, sua estabilidade”354.

Estas espécies-chave podem, basicamente, ser de dois tipos. Os predadores-chave –

“espécies cuja presença limita fortemente a de outras espécies”355 – e organismos engenheiros

– “modulam directa ou indirectamente a disponibilidade dos recursos para as outras espécies

ao provocar alterações no estado físico do seu ambiente”356.

347 ODUM, Eugene P.; BARRET, Gary W. Fundamentos de Ecologia. São Paulo: Cengage Learning, 2011, p. 311. 348 Trata-se do “organismo que pode fabricar seu próprio alimento a partir de compostos inorgânicos através da fotossíntese ou da quimiossíntese” (ART, Henry W. Dicionário de Ecologia e Ciências Ambientais. 2ª ed. São Paulo: Editora UNESP. 2ª ed. São Paulo: Editora UNESP, p. 48). 349 A utilização do termo “parcialmente” se deve ao fato de que, embora haja transferência de energia entre os níveis tróficos, há, igualmente, perda de energia. Ademais, nem toda a produção vegetal é consumida pelos herbívoros (LÉVÊQUE, Christian. Ecologia: Do Ecossistema à Biosfera. Lisboa: Instituto Piaget, 2001, p. 347). 350 Ibid., p. 309. 351 Ibid., p. 344. 352 Ibid., p. 367. 353 Ibid., p. 367. 354 BARBAULT, Robert. Ecologia Geral: Estrutura e Funcionamento da Biosfera. Petrópolis: Vozes, 2011. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 271. 355 LÉVÊQUE, Christian. Op. cit., p. 367. 356 Ibid., p. 367.

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Neste último caso temos, como exemplo, as árvores e os corais (chamados de

engenheiros autógenos357), que impactam diretamente na formação de habitat para outras

espécies, sobre ciclos de determinados elementos, na temperatura dos locais onde se encontram

inseridas, na disponibilidade da luz solar, nas características do solo, etc.358 Os corais, por sua

vez, além de servirem para outras espécies instalarem-se, impactam na velocidade das correntes

incidentes em um espaço específico e também em questões ligadas à sedimentação359. Há

também os denominados engenheiros alógenos, “que modificam o ambiente transformando o

seu material vivo ou não, de um estado físico para outro”360.

Quanto aos alógenos, há vários interessantes exemplos. Os castores fazem barragens,

afetando diretamente o fluxo das águas em regatos e impactando no acúmulo de sedimentos e

outras matérias orgânicas361. “Os castores alteram assim indiretamente a composição das

comunidades bênticas ao favorecer o desenvolvimento de espécies de água calma em

detrimento de espécies de água corrente”362. Outro exemplo são as minhocas, que “atravessam

e misturam os solos, modificam a sua composição orgânica e mineral, assim como o ciclo dos

elementos nutritivos e a drenagem”363 – basicamente, a ação das minhocas favorece a vida de

outras espécies, em especial as microbianas e aquelas que, com suas raízes, dependem do solo

para extrair seus nutrientes364.

Em suma, a extinção de uma destas espécies ditas como chave, acima exemplificadas,

gerará impactos relevantes no meio ambiente no qual estão inseridas.

2.4. Fluxos e trocas entre os ecossistemas

Discutiremos mais à frente um conceito elementar nesta busca pela interconexão que é

a biosfera365. Porém, quando dela tratarmos, veremos que se estará pressupondo certa unidade

357 São aqueles que, segundo Lévêque, “modificam o ambiente pela sua própria estrutura física” (LÉVÊQUE, Christian. Ecologia: Do Ecossistema à Biosfera. Lisboa: Instituto Piaget, 2001, p. 368). 358 Ibid., p. 368. 359 Ibid., p. 368. 360 Ibid., p. 369. 361 Ibid., p. 369. 362 Ibid., p. 369. 363 Ibid., p. 369. 364 Ibid., p. 369. 365 Trata-se da “parte do planeta capaz de sustentar a vida. Vai desde elevações de aproximadamente 10.000 metros acima do nível do mar até o fundo do oceano, e algumas centenas de metros abaixo da superfície da Terra” (ART, Henry W. Dicionário de Ecologia e Ciências Ambientais. 2ª ed. São Paulo: Editora UNESP, p. 60).

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mais ampla de todas as partes vivas e não vivas da Terra. Daí ser relevante trazermos para a

discussão a própria ideia de unidade. O que faz a biosfera como tal, uma unidade?

É primeiramente o fluxo das águas e dos gases – os ciclos biogeoquímicos que sabemos analisar em escala planetária. Mas também os fluxos de partículas, de moléculas, de seres vivos que isso implica. Enfim, o homem, por sua onipresença, pelo poderio de seus efeitos sobre o planeta (dispersão de espécies, emissão e propagação de poluentes, gás e produtos diversos), faz da Terra uma entidade que merece ser apreendida enquanto tal. Uma entidade viva cujos equilíbrios ele ameaça e dos quais ele depende366.

A vida no planeta está estruturada (e, em certa medida, viabilizada) em um complexo

fluxo de energia367. A fonte primária de energia é o sol. Esta energia é captada, grosso modo,

pelas plantas clorofilianas, chamadas de produtores primários – conceitos já apresentados

quando enfrentamos as cadeias alimentares. Esta energia será utilizada pelos animais chamados

de consumidores primários e, posteriormente, pelos consumidores secundários368. “Do sol ao

consumidor de quarta ou quinta ordem, a energia se esgota assim de nível trófico em nível

trófico, diminuindo a cada transferência de um elo ao outro. Falamos então de fluxo de energia,

noção indissociável daquela de cadeia alimentar”369.

Os ecossistemas não existem enquanto entidades isoladas, fechadas a conexões com o

mundo exterior. Os processos de transferência de elementos para fora de um ecossistema e para

dentro dele são muito bem descritos pela Ecologia370. A entrada é também chamada de import,

geralmente se dá por meio da atmosfera – “transporte pelo vento ou pela chuva”371. A saída,

também chamada de export, geralmente se dá pelas “águas de drenagem e as perdas pela

exploração humana”372

O fluxo de matéria entre ecossistemas é igualmente relevante como fator de

interconexão. “Os nutrientes são transportados por grandes distâncias pelos ventos na atmosfera

e pelo movimento das águas de cursos d'água e de correntes oceânicas. Nesses movimentos não

há limites, nem naturais nem políticos”373. Neste contexto, destacam-se os grandes ciclos

biogeoquímicos:

Os elementos químicos, incluindo todos os elementos essenciais para a vida, tendem a circular na biosfera em caminhos característicos, que vão do ambiente para o

366 BARBAULT, Robert. Ecologia Geral: Estrutura e Funcionamento da Biosfera. Petrópolis: Vozes, 2011. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 57. 367 Ibid., p. 232. 368 Ibid., p. 233. 369 Ibid., p. 233. 370 Ibid., p. 250. 371 Ibid., p. 250. 372 Ibid., p. 251. 373 BEGON, Michael; TOWNSEND, Colin R.; HARPER, John L. Ecologia: De Indivíduos a Ecossistemas. 4ª ed. Porto Alegre: Artmed, 2007, p. 541.

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organismo e de volta para o ambiente. Esses caminhos mais ou menos circulares são conhecidos como ciclos biogeoquímicos374.

O ciclo hidrológico, de todos, é o mais conhecido e de mais fácil compreensão. A

energia proveniente do Sol evapora a água presente na terra – em especial dos oceanos –, o

vapor decorrente atinge a atmosfera e, por fim, a água é devolvida em forma de precipitação375.

Não importa o local de onde esta água é evaporada, pois os ventos a distribuem por todo o

planeta376. Diga-se que a maior parte das águas provenientes da precipitação decorre dos

oceanos377, que possuem 97,3% da reserva de água da Terra378. Veja que este caminho das

águas não se limita ao processo evaporação-precipitação, pois há também o “fluxo líquido pelos

canais dos cursos d’água ou pelos aquíferos subterrâneos”379, retornando aos oceanos. A

vegetação impacta sensivelmente neste processo. Em uma das formas, a partir do próprio

sistema de transpiração (vapor), quando as plantas absorvem água presente no solo, que

posteriormente é expelida, em parte, na forma de vapor pelas folhas. Na outra forma, a água é

“depositada sobre o dossel como precipitação; a partir dele, ela pode evaporar ou gotejar pelas

folhas ou descer pelos caules até o solo”380. Deste modo, a vegetação impede que parcela das

águas decorrentes da chuva alcance os cursos d’água (quando retém parte na folhagem ou com

relação à parte que é utilizada no processo de transpiração das plantas)381. Disto, podemos

extrair as consequências do desflorestamento: aumento no fluxo de água para os cursos d’água,

“juntamente com sua carga de matéria dissolvida e particulada”382 (em termos práticos, a perda

de grandes áreas de florestas, além de impactar no próprio regime de chuvas, pode ocasionar o

aumento das inundações e o empobrecimento do solo).

Embora o ciclo da água seja o mais conhecido – ao menos do público leigo –, há outros

grandes e importantes ciclos, que demonstram, na mesma proporção, a mais absoluta

interconexão entre ecossistemas e a impossibilidade de se impor à natureza fronteiras e limites

humanos. Junto com a água, o ciclo do carbono se destaca em nível global, pois a água e o

carbono são essenciais para toda a vida. Além disto, ambos são “vulneráveis às perturbações

374 ODUM, Eugene P.; BARRET, Gary W. Fundamentos de Ecologia. São Paulo: Cengage Learning, 2011, p. 141. 375 BEGON, Michael; TOWNSEND, Colin R.; HARPER, John L. Ecologia: De Indivíduos a Ecossistemas. 4ª ed. Porto Alegre: Artmed, 2007, p. 541. 376 Ibid., p. 541. 377 ODUM, Eugene P.; BARRET, Gary W. Op. cit., p. 157. 378 BEGON, Michael; TOWNSEND, Colin R.; HARPER, John L. Op. cit., p. 541. 379 Ibid., p. 541. 380 Ibid., p. 542. 381 Ibid., p. 542. 382 Ibid., p. 542.

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produzidas pelo homem, podem modificar o tempo meteorológico e o clima, deforma a afetar

muito a vida no planeta”383.

O ciclo do carbono está intimamente ligado à fotossíntese das plantas. As plantas

utilizam o dióxido de carbono no processo de fotossíntese, obtendo como produto o oxigênio

(em uma fórmula bem simplificada do processo). Ao respirarem, “as plantas, os animais e os

microrganismos [...] liberam o carbono retido nos produtos fotossintéticos de volta aos

compartimentos de carbono da atmosfera e da hidrosfera”384. Nisto não haveria problemas se

as reservas de carbono se mantivessem estáveis. Entretanto, a concentração do dióxido de

carbono tem aumentado sensivelmente na atmosfera nos últimos anos, causando consequências

danosas, como o efeito estufa. Basicamente, o dióxido de carbono possui várias formas normais

de armazenamento na natureza – na própria atmosfera, dissolvido nos sistemas aquáticos, na

biomassa viva ou morta, etc. Nas últimas décadas, a humanidade tem comprometido estes

reservatórios, por exemplo, a partir da modificação no uso da terra, do desmatamento, do uso

de combustíveis fósseis, etc. Por que isto importa para as características que buscamos extrair

da natureza neste trabalho? Simplesmente porque as consequências do aumento do dióxido de

carbono não são locais, são efetivamente globais – como exploraremos um pouco melhor à

frente.

Há, por certo, outros tantos ciclos relevantes, como o nitrogênio, o enxofre, o fósforo –

todos de caráter global e de grande importância para o desenho deste olhar holístico, interligado.

Não vemos razão para avançar no detalhamento de cada um deles, pois o espaço não é próprio

para descermos a minúcias como esta. Basta mencionarmos a sua existência e sabermos que a

“rede funcional de base em um ecossistema é a que diz respeito aos fluxos de energia (as

relações tróficas) e à reciclagem da matéria (os processos de remineralização)”385.

2.5. Relações de dependência: um indício de cooperação?

Um olhar mais acurado sobre a natureza expõe a existência de diversas relações entre

espécies a demonstrar a mais ampla conexão presente no meio ambiente. Os exemplos são

383 ODUM, Eugene P.; BARRET, Gary W. Fundamentos de Ecologia. São Paulo: Cengage Learning, 2011, p. 154. 384 BEGON, Michael; TOWNSEND, Colin R.; HARPER, John L. Ecologia: De Indivíduos a Ecossistemas. 4ª ed. Porto Alegre: Artmed, 2007, p. 547. 385 LÉVÊQUE, Christian. Ecologia: Do Ecossistema à Biosfera. Lisboa: Instituto Piaget, 2001, p. 126.

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fartos. Há diversas formas de interação entre as espécies, classificadas segundo os efeitos: (i)

neutralismo: quando não há afetação mútua; (ii) competição por interferência direta: quando

duas espécies ou populações atuam uma contra a outra; (iii) competição por uso de recurso:

quando a afetação entre as espécies ou populações é indireta, o que define são os recursos

escassos; (iv) amensalismo: quando “uma população é inibida e a outra não é afetada”386; (v)

comensalismo: quando “uma população é beneficiada, mas a outra não é afetada”387; (vi)

parasitismo: quando um organismo “[...] vive em outro organismo (hospedeiro) ou no seu

interior, dele retirando seu alimento”388; (vii) predação: quando “uma população afeta a outra

de forma adversa por ataques diretos”389; (viii) protocooperação: quando há um vínculo não

obrigatório, mas quando existente, ambos se beneficiam; (ix) mutualismo: quando há

coexistência necessária, resultado favorável para ambos390.

Alguns destes pontos mencionados no parágrafo anterior merecem um destaque

especial. A competição “entre dois organismos que disputam o mesmo recurso”391 é chamada

de interespecífica quando “afeta adversamente o crescimento e a sobrevivência de populações

de duas ou mais espécies”392. Podem se dar de duas formas, ambas acima referidas. Na

competição por interferência “duas espécies entram em contato uma com a outra”393, já na

competição por exploração duas espécies exploram o mesmo recurso, no entanto, sem contato

direto394.

No comensalismo, podemos mencionar como exemplo as esponjas, que servem de

abrigo para hospedeiros, que não as prejudicam e igualmente não geram qualquer utilidade395.

Na protocooperação, há o exemplo dos caranguejos e os celenterados: “os celenterados crescem

nas costas dos caranguejos [...], fornecendo camuflagem e proteção [...]. Os celenterados, por

sua vez, são transportados e obtêm partículas de alimentos quando os caranguejos capturam e

comem outros animais”396. Já do mutualismo extraímos o exemplo do gado e das bactérias

presentes no seu organismo, mais precisamente no “sistema do rume”397. As bactérias permitem

386 ODUM, Eugene P.; BARRET, Gary W. Fundamentos de Ecologia. São Paulo: Cengage Learning, 2011, p. 283. 387 Ibid., p. 283. 388 ART, Henry W. Dicionário de Ecologia e Ciências Ambientais. 2ª ed. São Paulo: Editora UNESP, p. 393. 389 ODUM, Eugene P.; BARRET, Gary W. Op. cit., p. 283. 390 Classificação extraída de ODUM, Eugene P.; BARRET, Gary W. Op. cit., p. 283. 391 Ibid., p. 289. 392 Ibid., p. 290. 393 Ibid., p. 290. 394 Ibid., p. 290. 395 Ibid., p. 305. 396 Ibid., p. 306. 397 Ibid., p. 306.

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ao gado a obtenção de energia a partir da celulose, o que seria inviável sem elas. Paralelamente,

as bactérias obtêm um “meio de cultura com temperatura controlada”398.

Relações absolutamente relevantes são a polinização de plantas e a dispersão de

sementes por animais diversos399. O ganho é mútuo em ambas as situações, à medida que há o

néctar ou frutas para os animais e as plantas têm os processos de reprodução e dispersão de

sementes garantidos400. São chamados de mutualistas-chave, pois são “directa ou

indirectamente necessários à manutenção de outras populações associadas”401.

O caso da dispersão de sementes, por meio de animais, é exemplo das relações de

dependência na natureza que merece ser especialmente destacado. “As aves, os morcegos, os

mamíferos asseguram assim uma disseminação dos grãos indispensáveis à regeneração das

plantas nos sistemas florestais”402. Em notícia do Jornal Folha de S. Paulo, de 31/05/2013, foi

publicada pesquisa que havia demonstrado o impacto causado pelo desaparecimento de grandes

pássaros, como o tucano, para a Mata Atlântica. A formação das árvores é afetada, à medida

que as aves de bico grande se alimentam de sementes maiores, dispersando-as. As aves de bico

menor, ao buscarem as sementes menores, acabarão por espalhar tão somente esta espécie de

sementes. Por outro lado, sementes menores apresentaram menor resistência à seca e, em

determinadas circunstâncias de redução da umidade, podem não geminar403. Em sentido

semelhante, os muriquis, espécie já com número reduzido na Mata Atlântica, mostrou-se

essencial para a dispersão de sementes de inúmeras espécies arbóreas, a partir de suas fezes,

como resultado da ingestão de frutas e das respectivas sementes404.

Podemos chamar estas relações de cooperação? Tudo dependerá do sentido que

conferirmos ao termo. O dicionário nos apresenta duas possíveis variáveis. Se compreendermos

cooperação como “agir ou trabalhar junto com outro ou outros para um fim comum;

colaborar”405, talvez tenhamos dificuldade em sempre aproximá-la das relações naturais.

398 ODUM, Eugene P.; BARRET, Gary W. Fundamentos de Ecologia. São Paulo: Cengage Learning, 2011, p. 306. 399 DEANGELIS, D.L.; POST, W. M. Positive feedback andecosystemorganization. In: HIGASHI, M.; BURNS, T. P. (Coord.). Theoretical Studies of Ecosystems: The Network Perspective. New York: Cambridge University Press, 2009, 159. 400 Ibid., 160. 401 LÉVÊQUE, Christian. Ecologia: Do Ecossistema à Biosfera. Lisboa: Instituto Piaget, 2001, p. 370. 402 Ibid., p. 370. 403 MIRANDA, Giuliana. Sumiço de tucano prejudica árvores da mata atlântica. Jornal Folha de S.. Paulo, São Paulo, 31 mai. 2013. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2013/05/1287620-sumico-de-tucano-prejudica-arvores-da-mata-atlantica.shtml>. Acesso em25 out. 2014. 404 LOPES, Reinaldo José. Máquina de semear. Revista Unesp Ciência, São Paulo, abr. 2013. Disponível em <http://www.unesp.br/aci_ses/revista_unespciencia/acervo/40/maquina-de-semear>. Acesso em 25 out. 2014. 405 COOPERAR. In: DICIONÁRIO de Português Online Michaelis. São Paulo: Editora Melhoramentos Ltda, 2009. Disponível em <http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=cooperar>. Acesso em 21 nov. 2014.

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Porém, a cooperação pode ser encarada por outro viés, de sutil diferença, mas muito relevante

para a finalidade buscada neste trabalho: “Agir conjuntamente para produzir um efeito;

contribuir”406. Neste último sentido, parece-nos que a cooperação tem guarida na Ecologia –

para existir cooperação, não se exige necessariamente um fim comum. Cooperar é a demanda

da natureza por um agir conjunto, para fins que muitas vezes não são diretamente afeitos aos

“cooperados” (seres engajados em um determinado agir conjunto), mas que, indiretamente (até

em razão da mais absoluta conexão existente no planeta), servem a todos.

O paradoxo está no fato de que na natureza, muitas vezes, a cooperação não objetiva um

fim comum imediato407, mas apenas produzir um efeito – um trabalhar conjuntamente para se

alcançar determinado resultado. Demais disto, a interação poderá ser vista como um sentido

desta cooperação aqui propalada. A interconexão dos ecossistemas pressupõe, em alguma

medida, a interação entre organismos – que é, na acepção empregada por nós, um sentido da

cooperação. Há uma tríade, portanto, a pautar as relações naturais (interconexão; inter-relação;

cooperação), que deverá ser refletida pelo Direito. Voltaremos a este ponto.

2.6. Evidências da conectividade

A ciência nos proporcionou diversas descobertas que subsidiam a análise em rede dos

ecossistemas. Autores já demonstraram, por exemplo, que “substâncias introduzidas em um

compartimento na fronteira [de ecossistemas] irá aparecer mais de uma vez em outro

compartimento [...]”408. Este fato se deve à reciclagem e mostra que pequenas quantidades de

uma unidade qualquer podem, ao longo do tempo, gerar o acúmulo destas substâncias, em

quantidades maiores do que aquelas inseridas inicialmente, se vistas isoladamente409.

Um efeito, de alguma relevância, que serve, igualmente, à demonstração da

conectividade, é a chamada amplificação de fronteiras decorrente de redes (network boundary

amplification). Dentro de sistemas naturais há muitas vezes um compartimento voltado à

importação de substância de fora do sistema para dentro do sistema. Dentro deste sistema

406 COOPERAR. In: DICIONÁRIO de Português Online Michaelis. São Paulo: Editora Melhoramentos Ltda, 2009. Disponível em <http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=cooperar>. Acesso em 21 nov. 2014 407 Talvez um fim mediato seja a própria existência do planeta vivo e apto a congregar toda a biodiversidade. 408 JØRGENSEN, Sven Erik et. al. A New Ecology: Systems Perspective. 1ª ed. Amsterdamm: Elsevier, 2007, p. 93. 409 Ibid., p. 93.

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natural há outros tantos compartimentos que não possuem esta “especialização”. Assim, muitos

destes compartimentos “não recebem um impacto inicial pela entrada realizada na fronteira” do

ecossistema, pois não são formatados para tanto, porém, recebem um impacto reflexo de

compartimentos especializados. Um exemplo são os fótons solares, elementos externos aos

ecossistemas, que encontram sua porta de entrada por meio das plantas verdes – os produtores

primários (a luz solar é fonte de energia para os processos produtivos das plantas, como é a

fotossíntese). A partir daí, a biomassa gerada pelas plantas servirá a outros incontáveis

processos dentro de um ecossistema (serve para alimentação de herbívoros, que, por sua vez,

servirão aos carnívoros, além dos resíduos orgânicos resultantes de cada um destes processos e

os efeitos para eucariontes410 e procariontes411). Alguns compartimentos que não tiveram o

efeito direto da energia solar, indiretamente viram-se afetados por ela, ainda que em um

segundo momento412.

2.7. Além de Gaia: não pela teoria, mas pelos seus desdobramentos

Neste processo de busca pelas relações de conectividade na natureza, é inquestionável

a importância da Teoria de Gaia, não obstante existam tanto defensores como críticos, conforme

passaremos a expor. Todavia, é relevante passar por ela, não especificamente nos seus

componentes técnicos, enquanto tese científica, mas buscar elementos que possam ser úteis em

razão do nosso objeto de perquirição. Reiteramos que não pretendemos discutir a essência da

Teoria de Gaia – reconhecemos a controvérsia –, mas retirar dela a ideia de conectividade tão

defendida neste trabalho, discutindo alguns desdobramentos e até mesmo buscado amparo em

outros autores.

Para a Teoria de Gaia formulada por Lovelock, o Planeta Terra seria um gigante

organismo vivo, capaz de autorregular sua temperatura e manter-se estável ao longo de milhares

410 Eucariontes são “organismos cuja célula ou células têm um núcleo distinto rodeado por uma membrana, bem como certa quantidade de organelas distintas dentro do citoplasma. Todos os superiores, unicelulares e multicelulares, são eucariotes” (ART, Henry W. Dicionário de Ecologia e Ciências Ambientais. 2ª ed. São Paulo: Editora UNESP, p. 219) 411 Procarionte pode ser definido como “célula ou organismo destituído de um núcleo distinto. Os procariotes incluem as bactérias, as algas-verde-azuladas e os actionomicetos” (ART, Henry W. Dicionário de Ecologia e Ciências Ambientais. 2ª ed. São Paulo: Editora UNESP, p. 428) 412 JØRGENSEN, Sven Erik et. al. A New Ecology: Systems Perspective. 1ª ed. Amsterdam: Elsevier, 2007, p. 96.

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de anos – mesmo diante de significativas mudanças na temperatura do Sol, as da Terra

permaneceram constantes ao longo do tempo. A Terra é um “sistema fisiológico único, uma

entidade que é viva pelo menos até o ponto em que, assim como os outros organismos vivos,

os seus processos químicos e sua temperatura regulam-se automaticamente em um estado

favorável aos seus habitantes”413. Esta constatação só foi possível porquanto seus autores

partiram da existência de uma interligação entre as partes vivas e não vivas da Terra414 – a vida

altera e influi na modelagem do meio ambiente no qual está inserida e este nutre todos os

processos vivos da biosfera415. O planeta é um sistema único, no qual todos os organismos vivos

e o seu entorno (não-vivo) estão acoplados, de modo que “o todo é maior do que a soma das

partes”416 e as “interações são o que fazem da comunidade mais do que a soma de suas

partes”417.

Segundo Capra, reproduzindo a teoria de Lovelock, a Terra é viva porque atenderia a

três critérios. O planeta é autolimitado, tendo como fronteira a atmosfera terrestre. O planeta

é autogerador, pois “todos os componentes da rede Gaia, incluindo aqueles de sua fronteira

atmosférica, são produzidos por processos internos à rede”418. Por fim, o planeta é

autoperpetuante, pois todos seus componentes são “repostos pelos processos planetários de

produção e transformação”419. Importante ressaltar, apenas, que ao compreender a Terra como

viva, Lovelock não pensa “de maneira animista, considerando um planeta com sensibilidade,

ou rochas que podem se mover por sua própria volição e propósito”420. Ao contrário, pensa

Gaia “dentro dos limites da ciência”421-422.

Dito isto, e considerando a premissa deste tópico – a de que não estamos obcecados pela

teoria em si –, cabe questionar o que realmente se mostra relevante na Teoria de Gaia. A grande

mensagem que pretendemos transpor para o Direito Ambiental é a visão de cima para baixo,

um olhar sobre o planeta “como um sistema total”423, contrapondo-se a uma visão reducionista,

413 LOVELOCK, James. Gaia: cura para um planeta doente. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 12. 414 CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida. São Paulo: Cultrix, 2006. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 93. 415 Ibid., p. 94. 416 LOVELOCK, James. Op. cit., p. 68. 417 BEGON, Michael; TOWNSEND, Colin R.; HARPER, John L. Ecologia: De Indivíduos a Ecossistemas. 4ª ed. Porto Alegre: Artmed, 2007, p. 467. 418 CAPRA, Fritjof. Op. cit., p. 174. 419 Ibid., p. 174. 420 LOVELOCK, James. Op. cit, p. 31. 421 Ibid., p. 31. 422 A ideia sobre a Terra como organismo vivo não é nova. James Hutton, em 1785, já fazia esta analogia, comparando o planeta a um superorganismo (Cf. LOVELOCK, James. Op. cit., p. 69). 423 Ibid., p. 15.

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de baixo para cima, pois este olhar mais amplo pressupõe o que temos discutido neste trabalho

– a conectividade presente no ambiente.

A Teoria de Gaia mostra-nos, por exemplo, a importância das florestas e seu impacto

no clima “graças à sua capacidade de evapotranspirar vapor de água e assim sustentar o clima

chuvoso”424 nas regiões onde estão inseridas. As pequenas bactérias, por outro lado,

transformam o dióxido de carbono (com a água e a energia solar) em açúcar e oxigênio (liberado

no ar)425. A Teoria de Gaia é relevante também por apontar a estreita relação entre a matéria

viva e a matéria não-viva – organismos e matéria “estão estreitamente acoplados em pelo menos

uma variável ambiental”426. Gaia ressaltou a intrínseca ligação evolutiva entres estes

componentes, formando um “único processo evolutivo”427.

Lovelock apontou na sua obra o impacto dos seres humanos sobre Gaia, pois a espécie

humana povoa completamente o planeta, estando presente em todos os cantos da Terra. Neste

ponto, faz uma analogia interessante. Se a presença humana pode ser considerada patogênica –

em razão do seu comportamento perante o planeta – a solução do “organismo” Terra seria uma

dentre quatro possíveis: “destruição dos organismos patogênicos invasores; infecção crônica;

destruição do hospedeiro; ou simbioses – um relacionamento duradouro de benefício mútuo

entre o hospedeiro e o invasor”428.

Para nós, diga-se, a simples presença humana maciça e dinâmica (dado o trânsito cada

vez mais facilitado) acaba sendo um fator de interligação, que nem sempre é positivo. O

impacto gerado pelos seres humanos eleva as discussões para uma escala de globalidade, que

exige olhares e soluções diferenciadas. A elevação da população mundial (em número) e a

respectiva disseminação têm colocado em risco todo o planeta e, especialmente, a sua

sobrevivência.

Porém, esta dimensão (global) só é perceptível quando ilustramos concretamente a

importância de alguns elementos de Gaia. E isto nos leva, invariavelmente, às chamadas

alterações globais – “modificações que dizem respeito às características do ambiente global”429.

Destas podemos destacar questões relacionadas ao uso da terra (e o consequente

desmatamento), à atmosfera, ao clima, à perda da biodiversidade430.

424 LOVELOCK, James. Gaia: cura para um planeta doente. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 55. 425 Ibid., p. 55. 426 Ibid., p. 64. 427 Ibid., p. 68. 428 Ibid., p. 153. 429 LÉVÊQUE, Christian. Ecologia: Do Ecossistema à Biosfera. Lisboa: Instituto Piaget, 2001, p. 449. 430 Ibid., p. 449.

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Quanto ao desmatamento, estima-se que nos últimos oito mil anos, o Planeta Terra

perdeu boa parte das florestas existentes – algo em torno de 40%431. O processo de deterioração

segue em ritmo acelerado432 e pode decorrer de motivos naturais ou, como ocorre

principalmente, pela intervenção humana.

O desmatamento tem como origem fatores diretos ou indiretos. Os diretos advêm

essencialmente das atividades humanas, sobretudo pela expansão das fronteiras agrícolas em

países tropicais433. Outros fatores diretos, porém menos relevantes, também podem ser

destacados, como o fogo e os danos causados por insetos. Os efeitos indiretos, por sua vez,

decorrem de “processos sociais fundamentais que são revelados como uma sofisticada ação de

fatores de diferentes naturezas”434 – podemos citar como exemplo os fatores econômicos, a

urbanização crescente, fatores culturais, fatores políticos, etc.

Embora estes dados sejam relevantes para compreendermos o pano de fundo desta

discussão, não é aquilo que mais importa diante do objeto do trabalho. A indagação a ser feita

é: quais são as consequências, sobretudo em nível global, do desmatamento? Por que ações

degradadoras locais geram efeitos globais?

Como se sabe, inúmeros são os resultados prejudiciais ao meio ambiente em âmbito

local, como o “declínio da biodiversidade, invasão de espécies exóticas, destruição do ciclo

hidrológico, aumento no escoamento da água, diminuição da qualidade da água, e aceleração

da erosão do solo”435.

São as florestas que possibilitam a manutenção do clima chuvoso (em especial nos

trópicos) e estas chuvas ajudam a mantê-las, fechando um ciclo harmonioso436. As árvores são

responsáveis pela evaporação de grande volume de água, por meio das folhas, e o vapor segue

aquele roteiro clássico – é condensado, forma nuvens e, por fim, vêm as chuvas437. Trata-se da

função de retorno da água à atmosfera – antes de evaporar, as raízes captam a água presente no

solo e por seus canais sobem até as folhas (funcionam como verdadeiras bombas de água do

solo para os céus). Aproximadamente 90% (noventa por cento) da água presente na atmosfera

431 SCHVIDENKO, A. Deforestation. In: JORGENSEN, Sven Erik (edit). Global Ecology: derivative of encyclopedia of ecology. Amsterdam: Elsevier, 2010, p. 27. 432 No Brasil, para se ter um exemplo, o desmatamento da Amazônia aumentou 28% entre agosto de 2012 e julho de 2013 (cf. DADOS do Inpe mostram que desmatamento da Amazônia aumentou 28%. Portal Terra. São Paulo, 14 nov. 2013. Disponível em <http://noticias.terra.com.br/ciencia/sustentabilidade/dados-do-inpe-mostram-que-desmatamento-da-amazonia-aumentou-28,8ae6edf6cad42410VgnCLD2000000ec6eb0aRCRD.html>. Acesso em 28 de outubro de 2014). 433 SCHVIDENKO, A. Deforestation. In: JORGENSEN, Sven Erik (edit). Op. cit., p. 29. 434 Ibid., p. 29. 435 Ibid., p. 29. 436 LÉVÊQUE, Christian. Ecologia: Do Ecossistema à Biosfera. Lisboa: Instituto Piaget, 2001, p. 157. 437 Ibid., p. 157.

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advém deste processo de transpiração e só 10% (dez por cento) de outros meios438. É intuitiva

a percepção de que a redução das florestas traz um impacto significativo no regime de chuvas

planetário.

Em recente estudo amplamente divulgado na comunidade científica (“O Futuro

Climático da Amazônia”), Nobre439 catalogou diversas consequências do desmatamento na

floresta amazônica. Além da “reciclagem da umidade”, já mencionada no parágrafo anterior,

Nobre aponta estudos que demonstram ser a floresta amazônica um mecanismo de limpeza do

ar: determinados compostos orgânicos produzidos ali atuam removendo poluentes, como o

ozônio. Estes mesmos compostos orgânicos – chamados tecnicamente de compostos orgânicos

voláteis – “numa atmosfera úmida e na presença da radiação solar, oxidam-se e precipitam-se,

formando uma poeira finíssima com afinidade pela água [...] gerando eficientes núcleos de

condensação das nuvens”440 – estes elementos são responsáveis por provocar as chuvas relativas

às nuvens baixas.

E não é só, estudos mostraram que a “condensação do vapor d´água na atmosfera gera

uma redução localizada de pressão e produz potência dinâmica que acelera os ventos ao longo

do resultante gradiente de pressão”441 – em outras palavras, a evaporação de água nas regiões

de florestas puxam dos oceanos correntes de ar carregadas de umidade (isso porque uma “região

florestada evapora tanta ou mais água que uma superfície oceânica contígua”442). Retirar a

cobertura vegetal, neste quadro, representa uma redução da evaporação no continente, se

comparada àquela ocorrida nos oceanos, alterando o fluxo das correntes úmidas, que passarão

a ir da terra para o mar443. Diga-se, ainda, que robustos estudos demonstram que vapor pode ser

transportado por grandes distâncias e que, mais precisamente no caso da floresta amazônica, é

possível atribuir a ela a responsabilidade por grande parcela das chuvas na América do Sul444.

Por fim, as florestas tendem a diminuir a ocorrência de eventos climáticos anômalos, como

furacões, secas e enchentes445. É possível afirmar, portanto, que o desmatamento leva a

anomalias regionais, ocasionando alterações de temperatura e nos regimes de chuvas446 –

438 NOBRE, Antonio Donato. O Futuro Climático da Amazônia: relatório de avaliação científica. Articulación Regional Amazónica (ARA). Disponível em <http://araamazonia.org/arquivos/futuroclimaticodaamazonianova versao.pdf>. Acesso em 21 nov. 2014, p. 13-14. 439 Ibid., p. 13-14 440 Ibid., p. 15. 441 Ibid., p. 16. 442 Ibid., p. 16. 443 Ibid., p. 16. 444 Ibid., p. 19. 445 Ibid.,, p. 19. 446 SCHVIDENKO, A. Deforestation. In: JORGENSEN, Sven Erik (edit). Global Ecology: derivative of encyclopedia of ecology. Amsterdam: Elsevier, 2010, p. 29.

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impactos que transpassam o âmbito local. “O declínio da cobertura vegetal altera o sistema

climático regional e potencialmente o global, afetando os fluxos de energia na superfície, de

água e de gases de efeito estufa”447.

Sobre o efeito estufa cabem alguns breves apontamentos. As florestas, por meio da

vegetação e do solo que encobrem, retêm “grande quantidade de carbono orgânico”448. Intervir

nesta cobertura vegetal significa desestabilizar “reservatórios de carbono”449, aumentando a

concentração de gases de efeito estufa na atmosfera. Na prática, a atmosfera funciona realmente

como um vidro (de uma estufa, daí o nome), que possibilita a entrada de luz solar e retenção de

parte da radiação infravermelha que advém da superfície. Este fenômeno é responsável por

manter a temperatura da Terra em patamares aptos a acolher a vida. Um “efeito estufa” natural

não só é desejável, como também é essencial para manter a temperatura nos patamares atuais

(sem isto a Terra seria sensivelmente mais gelada). O grande problema surge quando estes

gases, decorrentes da ação humana, são encontrados cada vez em maior quantidade, o que pode

aumentar a retenção de calor na superfície e, consequentemente, o aumento da temperatura – o

que, frisamos, terá efeito em todos o globo indistintamente450.

O fato descrito neste último parágrafo está ligado àquilo que se convencionou chamar

de aquecimento global. Alguns gases poluentes, emitidos em maior escala em tempos atuais,

“são poderosos absorventes de radiação infravermelha e, por reterem mais calor, podem

aumentar o aquecimento da Terra”451. Dentre estes gases há não só dióxido de carbono

(vinculado, sobretudo, à queima de biomassa e de combustíveis fósseis e ao desmatamento),

mas também o metano (vinculado à agricultura, queima de biomassa, vazamentos em locais

destinados ao processamento de gás e petróleo), os CFCs (identificados em equipamentos de

refrigeração, como solvente) e o óxido nitroso (queima de biomassa, uso de fertilizantes,

queima de combustíveis fósseis)452.

A própria noção de um sistema climático é, per se, capaz de mostrar a importância desta

análise ampla, global, da biosfera – isto porque o

“[...] clima é o principal determinante da dinâmica da biosfera (sensu lato). Se o Sol é a fonte essencial de energia, o sistema climático da Terra constitui um sistema extremamente complexo, regido por um conjunto de processos de natureza física, química e biológica que opera numa vasta gama de escalas espacial e temporal, com

447 SCHVIDENKO, A. Deforestation. In: JORGENSEN, Sven Erik (edit). Global Ecology: derivative of encyclopedia of ecology. Amsterdam: Elsevier, 2010, p. 30. 448 Ibid., p. 30. 449 Ibid., p. 30. 450 LÉVÊQUE, Christian. Ecologia: Do Ecossistema à Biosfera. Lisboa: Instituto Piaget, 2001, p. 461-462. 451 LOVELOCK, James. Gaia: cura para um planeta doente. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 166. 452 Ibid., p. 169.

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múltiplas interacções entre a biosfera (sensustricto), a litosfera, a atmosfera, a criosfera e a hidrosfera”453

Neste contexto, a Terra funciona como uma “máquina térmica”. Embora a energia não

seja fornecida uniformemente ao Planeta (conforme a latitude e o balanço oceano/superfície

terrestre do local)454. Estes “desequilíbrios locais dos balanços energéticos [...] são

compensados pelas deslocações de massas de ar e de água que tendem a homogeneizar a

repartição de calor”455.

Outras diversas consequências da ação do homem são palpáveis no “nível de Gaia”.

Como as chuvas ácidas, causadas pela alta concentração de poluentes no ar – como o ácido

nítrico, o ácido carbônico, o ácido fórmico, o ácido sulfúrico e os ácidos de enxofre.

Tecnicamente, como aponta Lovelock, “desde que o oxigênio se tornou o gás dominante da

atmosfera, a chuva passou a ser ácida”456 – vale dizer, possui esta característica há pelo menos

2,5 bilhões de anos. O problema são os compostos que têm sido adicionados à chuva ou o

aumento de concentração de tantos outros, em escalas cada vez maiores. Estas chuvas tóxicas

são altamente prejudiciais aos organismos vivos e aos ecossistemas estabelecidos457. O grande

dilema que a chuva ácida nos apresenta é a amplitude de seus efeitos, pois seu alcance é

incontrolável. Por vezes os efeitos são sentidos longe dos locais onde foram causados – cidades,

estados e países458.

O próprio Lovelock foi um dos pesquisadores a atestar a ampla presença dos

clorofluorocarbonetos (CFCs) na atmosfera – que são indubitavelmente resultantes da ação

humana, decorrentes de processos industriais. As consequências foram estudos alertando para

os danos causados pelos CFCs, pois ao liberarem o cloro, levariam à destruição do ozônio –

“aumentando o fluxo de radiação ultravioleta incidente sobre a superfície da Terra”459.

Posteriormente descobriu-se um verdadeiro buraco na camada de ozônio, o que só serviu para

alarmar ainda mais o mundo. Como aponta Lovelock, hoje coloca-se em dúvida os verdadeiros

riscos aos quais estávamos submetidos460. E mais, segundo o “autor os perigos do ultravioleta

ameaçam mais as pessoas, em particular que têm pele clara, do que o planeta”461. Não há

453 LÉVÊQUE, Christian. Ecologia: Do Ecossistema à Biosfera. Lisboa: Instituto Piaget, 2001, p. 457. 454 Ibid., , p. 463. 455 Ibid., p. 463. 456 LOVELOCK, James. Gaia: cura para um planeta doente. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 159. 457 Ibid., p. 159. 458 As chuvas livres de poluentes são também um pouco ácidas, em razão da presença de dióxido de carbono e alguns outros ácidos. Entretanto, quando falamos em chuva ácida, falamos daquela cuja acidez foi potencializada em razão da ação antrópica. 459 LOVELOCK, James. Op. cit., p. 163. 460 LOVELOCK, James. Gaia: cura para um planeta doente. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 164. 461 Ibid., p. 163.

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dúvidas que a redução da emissão dos CFCs foi relevante, sobretudo após a conferência de

Montreal462. Porém, o problema da camada de ozônio serviu para mostrar como ações locais

geram consequências globais, muito mais amplas do que se podia imaginar inicialmente – aí,

novamente, a conectividade se apresenta.

Voltemos à hipótese de Gaia. Tyrrell é um dos que dedicou uma obra a refutá-la: On

Gaia: A Critical Investigation of the Relationship between Life and Earth463. Não queremos (e

nem possuímos suporte teórico para isto) contrapor argumentos contra e favoráveis. Tyrrell

conclui que a hipótese não é tão robusta assim (ao menos do ponto de vista científico), mas não

nega sua contribuição para a abordagem do planeta na sua integralidade, além dos próprios

estudos sobre a relação vida/planeta que acabou por gerar ou estimular.

Tyrrell rejeita a ideia de um superorganismo – pois não há “sugestões, a partir das

evidências disponíveis, de homeostase no meio ambiente ou controle sendo produzido por

organismos não relacionados ou moderadamente relacionados”464. Para o autor, Gaia como um

superorganismo não é totalmente verdadeiro do ponto de vista evolucionário465. Reconhece,

entretanto, que a vida influiu na formatação da Terra tal qual a conhecemos hoje. “Várias

importantes propriedades do meio ambiente planetário foram deslocadas a valores diferentes

do que seriam encontrados em um Planeta Terra sem vida”466.

Para Tyrrell, a hipótese da coevolução “é menos ousada e uma visão menor do que

Gaia”467, mas assume que a vida teve significativo impacto no ambiente e este teve grande

impacto na evolução da vida – assume uma interação bidirecional, mas somente isto (não

avança aos demais desdobramentos de Gaia)468.

462 O Protocolo de Montreal sobre Substâncias que Destroem a Camada de Ozônio e seu 1º Aditivo, que “exigiu cortes de 50% em relação aos níveis de 1986 tanto na produção quanto no consumo de cinco principais CFCs até 1999, com reduções interinas. A produção e o consumo de três halons principais foram congelados nos níveis de 1986 em 1993.” (Cf. CETESB. O Protocolo de Montreal sobre Substâncias que Destroem a Camada de Ozônio. Disponível em <http://www.cetesb.sp.gov.br/mudancas-climaticas/prozonesp/fundamentos-da-preservacao/195-o-protocolo-de-montreal-sobre-substancias-que-destroem-a-camada-de-ozonio>. Acesso em 29 de outubro de 2014). 463 TYRRELL, Toby. On Gaia: A Critical Investigation of the Relationship between Life and Earth. Princeton: Princeton University Press, 2013. 464 Ibid., p. 201. 465 É importante ressaltar que o próprio Lovelock reconhece que sua tese teria alguma dificuldade de se enquadrar no conceito de vida de um biólogo neodarwinista, pois eles partiriam de um determinado conceito que não aquele adotado pelo autor. Para estes cientistas, um organismo vivo “é aquele capaz de se reproduzir e de corrigir os erros de reprodução por meio da seleção natural entre a sua progênie”. Neste ponto, é bom que se diga, Lovelock reconhece o grande problema conceitual no qual se envolveu: definir vida. Assim, afirma que “Gaia seria um organismo vivo sob as definições do físico ou do bioquímico. A Terra certamente utiliza a energia solar e rege uma espécie de metabolismo em uma escala planetária [...]” (todas as citações de LOVELOCK, James. Gaia: cura para um planeta doente. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 29). 466 TYRRELL, Toby. Op. cit., p. 202. 467 Ibid., p. 206. 468 Avançaremos sobre questões mais específicas da coevolução à frente.

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Tyrrell, citando Kirchner (The Gaia Hypotheses: Are They Testable?), afirma que

diferentes autores usaram a expressão “Hipótese de Gaia” em vários sentidos distintos. Ele

reconhece ao menos cinco variantes principais: i. “Gaia Influente”: nesta acepção afirma-se,

apenas, que o meio biológico afeta o meio físico e químico; ii. “Gaia coevolucionária”: se pauta

nos elementos da coevolução mencionados anteriormente; iii. “Gaia Homeostática”: sentido

utilizado para se referir à capacidade de estabilização da biota sobre a biosfera; iv. “Gaia

Teleológica”: a regulação da biosfera pela biota e em seu benefício; v. por fim, “Gaia

otimizante”: a biosfera é sempre otimizada pela biota e para o benefício da biota469.

Segundo Tyrrell, Lovelock foi da acepção v à iii, passando pela iv. Por outro lado, para

Tyrrell, só seriam críveis as acepções i e ii, porém não são “substancialmente acepções

diferentes do que tem sido proposto em outros lugares, com diferentes nomes”470. Ademais,

para Tyrrell, Gaia “raramente é utilizada para implicar o sentido (i) ou (ii)”. E complementa

que “estas duas acepções mais fracas são idênticas ou até mais fracas que a hipótese de

coevolução que Schneider e Londer elaboraram”471.

Mesmo negando Gaia, Tyrrell reconhece a importância da teoria de Lovelock, por ter

“ajudado a estimular várias novas ideias sobre a Terra e por defender uma visão holística para

estudá-la”472. Embora estejamos a tratar de um sistema que não compreendemos

completamente473, estamos efetivamente falando de um sistema e isto é inquestionável. Como

Lovelock conceitua, um sistema, enquanto um conjunto de objetos, pressupõe uma ligação entre

eles, caracterizando uma relação de interdependência. O nível de interação entre as partes

variará conforme o sistema que estejamos descrevendo, porém, mais ou menos complexos,

podem ser da mais variada gama, como é a Terra474-475.

Se nas palavras de Tyrrell “aceitar ou rejeitar Gaia terá consequências em como nós

entendemos e assim, em como nós decidimos manejar o sistema Terra”476, é certo, igualmente,

que temos um sistema também em escala global. O manejo deste sistema, como tal, implica

também em como utilizar determinados instrumentos de gestão. “Devido à grande

469 TYRRELL, Toby. On Gaia: A Critical Investigation of the Relationship between Life and Earth. Princeton: Princeton University Press, 2013, p. 207-208. 470 Ibid., p. 207. 471 Ibid., p. 208. 472 Ibid., p. 209. 473 Ibid., p. 210 474 LOVELOCK, James. Gaia: cura para um planeta doente. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 64. 475 Por certo, estamos reduzindo as características de um sistema ao extremo, apenas tentando ilustrar aqui uma delas. Quando aprofundamos neste tema, as características específicas de um sistema são muito mais amplas (Cf. LÉVÊQUE, Christian. Ecologia: Do Ecossistema à Biosfera. Lisboa: Instituto Piaget, 2001, p. 118-119). 476 TYRRELL, Toby. Op. cit., p. 212.

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complexidade de todo o sistema da Terra e de vários ‘componentes em interação’ que

contribuem para isto, nossa compreensão está longe da perfeição”477. Tyrrell pensa que Gaia

possibilitaria uma visão por demais otimista, de que o planeta sempre encontraria uma forma

de se adaptar às intempéries causadas à sua “saúde” – em especial pelos homens. A Terra é um

sistema, talvez não vivo como pensava Lovelock, mas frágil, incapaz de responder a diversas

intervenções que lhe são impingidas.

Gaia foi importante porque enxergou o ser-humano em uma escala de igualdade com

todos os demais organismos vivos do planeta – ao menos auxiliou neste processo de

“autoconhecimento” da espécie humana. Claro, o homem possui habilidades intelectuais que o

diferenciam das demais espécies. Porém, quando se pensa no funcionamento sistêmico da

Terra, sua importância é relativa – em verdade, hoje é possível apontar muito mais ações de

desagregação e degradação. O homem, enquanto único ser capaz de controlar seus desígnios,

deve ter em mente que, independentemente do papel e do status que ocupe na rede da vida, deve

olhar com cuidado para sua casa, sob pena de ele padecer478.

Não foi só. Gaia nos deu outra perspectiva sobre os limites desenhados pelo homem –

“as fronteiras de um país são abstrações ilusórias”479. Podemos ampliar esta assertiva: todas as

fronteiras, intranacionais ou internacionais são igualmente ilusórias. As linhas divisórias entre

municípios, estados ou países nada mais são do que a tentativa de se construir membranas

(artificiais) que, no entanto, como afirma Thompson, têm se mostrado muito permeáveis480.

Este dado poderia ser tomado como objeto de análise à luz de várias ciências – a Economia, o

Direito, a Biologia, a Física. A nós interessa esta acepção como decorrência específica da

Ecologia, com consequências perceptíveis no Direito481.

Igualmente neste contexto da falibilidade das fronteiras, a Ecologia moderna nos

fornece um método muito interessante para retratar o estado atual da exploração de recursos

naturais no planeta e os efeitos causados – a chamada pegada ecológica. Trata-se de “método

que estima a área necessária para suportar (i.e., em termos de, por exemplo, produção de

477 TYRRELL, Toby. On Gaia: A Critical Investigation of the Relationship between Life and Earth. Princeton: Princeton University Press, 2013, p. 217. 478 Este trabalho não pretende discutir o papel do homem na natureza (ou mesmo no Direito). Queremos, isto sim, ressaltar a contribuição de uma teoria para o conhecimento do planeta. 479 THOMPSON, William Irwin. Gaia e a Política da Vida. In: THOMPSON, William Irwin (Org..). Gaia: Uma Teoria do Conhecimento. São Paulo: Gaia, 1990, p. 161. 480 Ibid., p. 161. 481 O exemplo trazido por Thompson, aqui já mencionado, é a chuva ácida identificada no Canadá, cujo principal causador é os Estados Unidos – o que integra estes dois países, neste caso, é a própria poluição. O movimento da atmosfera e também das águas por meio das fronteiras fixadas é a prova cabal de que se necessita de um novo olhar para questões ligadas aos bens ambientais.

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comida, energia, processamento de desperdícios) o funcionamento atual, passado ou futuro de

unidades geográficas específicas”482. O cálculo pode ser efetuado, por exemplo, em relação a

países, cidades e até mesmo instituições. Esta técnica foi importante para demonstrar a condição

crítica vivida pelo Planeta Terra. Dentre os países ocidentais industrializados, apenas o Canadá

e a Austrália possuem uma pegada ecológica compatível com suas fronteiras. Todos os demais

possuem pegadas que ultrapassam seus territórios (como o caso clássico dos Estados Unidos)

– vale dizer, “aparentam viver às custas de outros territórios”483. Isto reforça a ideia de que os

problemas ambientais transpassam os limites territoriais nacionais – são verdadeiros problemas

transnacionais –, pois a área necessária para suportar a demanda atual de recursos de grande

parte dos países é muito maior do que sua área geográfica.

Há um chamado por uma nova política para Gaia, que tome como fundamento este

fluxo contínuo (não só de pessoas e de informações, mas também de elementos naturais) –

aquilo que Thompson chamou de “Gaia Politique”484. A constatação deste modo de operar do

planeta impõe que as instituições – jurídicas, inclusive – deixem de utilizar métodos defasados

de condução (por essência fragmentados, isolados, sem qualquer coordenação) e incorporem

elementos aptos a absorver as demandas do ambiente. E é esta a principal influência da Teoria

de Gaia, para os fins deste trabalho, com implicações na construção das próprias normas

jurídicas.

2.7.1. Compreendendo a biosfera: o surgimento de uma nova Ecologia

Os mais céticos não precisam confiar em Gaia, mas não podem se afastar de outros

conceitos há muito aceitos e estudados pela Ecologia. Referimo-nos aqui à Biosfera e à própria

ideia de ecologia global. Não há como negar a importância destes estudos, definitivamente

estabelecidos no seio de tal disciplina.

Como aponta Capra485, os primeiros ecologistas identificavam comunidades biológicas

e as comparavam a superorganismos, noção utilizada até a definição dos ecossistemas. O

482 KRIVTSOV, V. Indirect Effects in Ecology. In: JORGENSEN, Sven Erik (edit). Ecosystem Ecology. Amsterdam: Elsevier, 2009, p 87 483 Ibid., p 88. 484 THOMPSON, William Irwin. Gaia e a Política da Vida. In: THOMPSON, William Irwin (Org..). Gaia: Uma Teoria do Conhecimento. São Paulo: Gaia, 1990. 485 CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 43.

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conceito de ecossistemas “moldou todo o pensamento ecológico subsequente e, com seu próprio

nome, promoveu uma abordagem sistêmica da ecologia”486. Esta disciplina acabou cunhando o

conceito de biosfera – “camada da vida que envolve a Terra”487– e mais tarde permitiu o

desenvolvimento da já referida Teoria de Gaia. A Ecologia possibilitou trazer para o exame dos

fenômenos naturais a noção de comunidade e de rede – rede, aqui, como uma enorme teia da

vida, que pressupõe o “entrelaçamento e a interdependência de todos fenômenos”488.

Os “sistemas vivos estão conectados por meio de cadeias alimentares e processos

ecológicos em sistemas maiores, chamados de noosfera, biosfera, ecosfera ou Gaia”489. Esta

percepção, do ponto de vista científico, foi uma das mais relevantes descobertas das pesquisas

contemporâneas, em especial no último século490 – “a descoberta da essencial conectividade da

vida e do ambiente”491.

A percepção da interconexão entre os organismos vivos, em nível planetário, originou-

se com o cientista Russo Vladimir Ivanovich Vernadsky. Ele cunhou e desenvolveu o conceito

de biosfera (em livro publicado em 1926492), mostrando “que durante todas as eras geológicas

da Terra, a vida se desenvolveu como um grupo interconectado de organismos [...] que

proporcionou e proporciona o fluxo contínuo de elementos em uma rotação biogênica de

matéria e energia na superfície do nosso planeta”493-494. Para o autor, toda matéria viva está

intercortada com o ambiente, por meio dos mais variados processos (respiração,

alimentação495). Há, ainda, a interconexão – fundamental, diga-se – entre o vivo e o não vivo –

como, por exemplo, a luz solar (com implicações em processos como a fotossíntese), campos

eletromagnéticos (que impactam na troca de informações entre células vivas).

As ideias trazidas por Vernadsky foram pouco reconhecidas naquele momento histórico

– só foram retomadas com a hipótese de Gaia496. Entretanto, inegável que o autor propiciou a

486 CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 43. 487 Ibid., p. 43. 488 Ibid., p. 44. 489 ORR, D. W. Ecological Systems Thinking. In: JORGENSEN, Sven Erik (edit). Ecosystem Ecology: derivative of encyclopedia of ecology .Amsterdamm: Elsevier, 2009, p. 12. 490 Ibid., p. 12. 491 Ibid., p. 12. 492 BARBAULT, Robert. Ecologia Geral: Estrutura e Funcionamento da Biosfera. Petrópolis: Vozes, 2011. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 26. 493 SVIREZHEV, Y. M.; SVIREJVA-HOPKINS, A. Biosphere. Vernadsky´s Concept. In: JORGENSEN, Sven Erik (edit). Global Ecology: derivative of encyclopedia of ecology. Amsterdam: Elsevier, 2010, p. 23. 494 Cabe salientar que Vernadsky não foi o primeiro a utilizar o termo. Atribui-se a Lamarck tal feito, no começo do século XIX, porém com outro sentido daquele cunhado modernamente. 495 Cf. SVIREZHEV, Y. M.; SVIREJVA-HOPKINS. Op. Cit., p. 23. 496 LÉVÊQUE, Christian. Ecologia: Do Ecossistema à Biosfera. Lisboa: Instituto Piaget, 2001, p. 446.

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instauração de uma “ciência da globalidade”497. Para ele, biosfera é “a região da crosta terrestre

ocupada e animada pela vida”498. Nas palavras de Lévêque, em conceito sensu lato, é a “película

superficial do planeta que engloba os seres vivos, e na qual a vida é permanentemente

possível”499.

Ainda que esta camada da Terra seja formada por diversos conjuntos heterogêneos,

longe da uniformidade500, cada um deles está ligado aos demais (ao restante dos componentes

da biosfera), em especial aos limítrofes, mas não só a eles501 – basta ver que “o ar e a água

circulam em toda a biosfera”502, além, por certo, do homem503. Estes elementos materiais de

ligação entre todos os ecossistemas terrestres demonstram que a biosfera é definitivamente real,

não mera abstração de determinados estudiosos da Ecologia504. Acrescente-se a este caldeirão

de interações os fluxos de outras matérias – como “partículas, moléculas e seres vivos”505. Por

isto podemos dizer que o conceito de biosfera é funcional – tem como ponto central a inter-

relação contínua entre os componentes (vivos e não vivos) do Planeta506.

A disciplina que tem na noção de interdependência um de seus primados é a Ecologia

aqui tão propalada. Na ânsia de sistematizá-la, autores fixaram algumas leis fundamentais. E

uma delas merece destaque para o objeto aqui explorado: nenhum ecossistema é fechado e,

portanto, um sistema isolado – eles recebem e propagam energia para o ambiente no qual se

inserem. Daí que “nenhuma entidade existe em isolamento, mas está conectada com outras”507.

Hoje fala-se em uma ecologia global, essencialmente multidisciplinar, que “abrange

métodos e alcance de praticamente todas as outras disciplinas naturais, e está

predominantemente preocupada com as dinâmicas (incluindo o passado e o futuro) do

ecossistema global – a biosfera”508. Um ramo de estudo das relações naturais no nível

planetário, que se encontra estabelecido independentemente da aceitação ou não de uma teoria

para Gaia.

497 BARBAULT, Robert. Ecologia Geral: Estrutura e Funcionamento da Biosfera. Petrópolis: Vozes, 2011. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 27. 498 Ibid., p. 26. 499 LÉVÊQUE, Christian. Ecologia: Do Ecossistema à Biosfera. Lisboa: Instituto Piaget, 2001, p. 443. 500 BARBAULT, Robert. Op. Cit, p. 43. 501 Ibid., p. 45. 502 Ibid., p. 45. 503 Ibid., p. 45. 504 Ibid., p. 48. 505 Ibid., p. 57. 506 LÉVÊQUE, Christian. Op. cit., p. 443. 507 CARL, P.; SVIREZHEV, Y; STENCHIKOV, G. Environmental and Biospheric Impacts of Nuclear War. In: JORGENSEN, Sven Erik (edit). Global Ecology: derivative of encyclopedia of ecology. Amsterdamm: Elsevier, 2010, p. 35 508 KRIVTSOV, V. Indirect Effects in Ecology. In: JORGENSEN, Sven Erik (edit). Ecosystem Ecology. Amsterdam: Elsevier, 2009, p 87.

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2.7.2. Alguns aspectos técnicos da interligação na biosfera

Nesta busca por elementos de interconexão na biosfera (e de “padrão global” de

funcionamento de alguns fenômenos), nos deparamos com vários exemplos que servem a

chancelar tal característica.

No ciclo “erosão-transporte-sedimentação” isto é bastante evidente. Trata-se de

processo de transformação das rochas a partir da seção de determinados agentes físicos ou

químicos em “produtos móveis”509, que serão transportados pelo ecossistema. Este fenômeno é

essencial para modelar as paisagens e compor o solo e nos ajuda a entender esta interconexão510.

A erosão mecânica decorrente da ação da água e do vento é seguida por um processo de

transporte das partículas daí resultantes por rios, mares e ar511. Vale dizer, estas partículas,

oriundas de um determinado ponto do globo, podem gerar consequências – sobretudo em longo

prazo – em outro ponto – sem respeitar fronteiras ou outros pactos humanos. Neste processo, o

vento possui um papel relevante, seja como fator de erosão ou de transporte. Há fenômenos

muito ilustrativos. Já se constatou, por exemplo, que partículas de areia da parte norte do Saara

são encontradas em Paris. Em outro caso, partículas oriundas da África foram identificadas no

Brasil e nos Estados Unidos da América512. Isto demonstra que os ventos possuem alta

capacidade de dispersão de partículas pelo globo.

Não podemos nos esquecer da água como outro relevante “vetor de transporte”513. Os

cursos de água têm papel de destaque neste contexto. Eles se compõem em redes hidrográficas,

nas quais a junção entre dois cursos de água gera um curso superior514 e assim sucessivamente.

As águas da Terra, como James Hutton reconheceu há muito tempo, assemelham-se ao sistema circulatório de um animal. Os seus movimentos incessantes (juntamente com o soprar do vento) transferem elementos nutrientes essenciais de uma parte para outra e eliminam os produtos residuais do metabolismo. Sem água não pode haver vida, e sem vida não haveria água515.

509 LÉVÊQUE, Christian. Ecologia: Do Ecossistema à Biosfera. Lisboa: Instituto Piaget, 2001, p. 145. 510 Ibid., p. 145. 511 Ibid., p. 145. 512 Ibid., p. 154. 513 Ibid., p. 163. 514 Ibid., p. 179. 515 Ibid., p. 38.

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Ainda sobre os rios, não há como passar ao largo do regime de cheias, que permite um

intrincado processo de conexão entre ecossistemas – alguns dependentes desta troca para seu

funcionamento. Com o aumento do volume de água, o rio supera a delimitação de seu leito

menor e caminha em direção aos limites do seu leito maior, invadindo as planícies de inundação

– veja o clássico exemplo do Pantanal516.

A época, o período de duração e a extensão das cheias têm impacto no “funcionamento

do sistema e para a biologia das espécies”517. As cheias permitem a interligação do rio no seu

curso principal (menor), com diversas outras áreas do leito maior, que dependem das trocas daí

decorrentes para a sobrevivência das espécies que abrigam518. Além disto, os lagos formados

tornam-se “verdadeiros reservatórios biológicos, e zonas de desova para determinadas espécies

de peixes”519 e, por fim, servem à “recarga dos lençóis subterrâneos”520.

Os ecossistemas fluviais são importantes neste contexto também pela dificuldade de

bem identificá-los no espaço – são por demasiado espalhados e com intensas interações ao

longo do curso521. Daí não se falar em ecossistema fluvial, mas em sistema fluvial

(hidrossistema fluvial), resultado da interação complexa entre ecossistemas522 – que envolve a

“água corrente”, “água estagnada”, ecossistemas aquáticos, terrestres e até subterrâneos. “Este

conjunto interativo de meios naturais submetidos ao mesmo regime de perturbação é

caracterizado por trocas multidirecionais”523. O mesmo se observa quando direcionamos nosso

exame aos lagos, que, do ponto de vista da definição de um ecossistema, possuem suas

fronteiras bem definidas, são abertos a trocas de energia e matéria com o meio externo –

aquático, terrestre ou mesmo aéreo524.

Na verdade, a biosfera possui características que lhes são peculiares enquanto um

conjunto organizado. “Desde a molécula até a biosfera, o mundo vivo está organizado”525.

Ademais, “a cada nível de integração, surgem propriedades que não podem ser avaliadas

somente a partir dos mecanismos que tinham valor explicativo nos níveis de integração

inferiores”526.

516 LÉVÊQUE, Christian. Ecologia: Do Ecossistema à Biosfera. Lisboa: Instituto Piaget, 2001, p. 207. 517 Ibid., p. 207. 518 Ibid., p. 209. 519 Ibid., p. 209. 520 Ibid., p. 209 521 Ibid., p. 243. 522 Ibid., p. 244. 523 Ibid., p. 244. 524 Ibid., p. 246. 525 Ibid., p. 171. 526 Ibid., p. 171.

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Há, portanto, diversos elementos que, em conjunto, apresentam comportamento e

características únicos, não identificados quando estes mesmos elementos estão separados527.

Dessa reflexão decorre a noção de hierarquia quanto aos sistemas ecológicos – subsistemas que,

em conjunto, formam sistemas maiores, emergindo com novas características, em uma

complexa rede de interações528. Este nível de organização inicia-se com o átomo, vai para

moléculas, células, indivíduos, população, espécie e assim por diante. Estamos a mencionar

verdadeiras estruturas de organização que a cada nível vão formando conjuntos mais

complexos.

2.8. Porque as fronteiras dos homens não respondem às demandas naturais?

Depois de todo este percurso teórico, cabe buscar uma resposta para a questão trazida

ainda no título deste tópico: por que as fronteiras dos homens não respondem as demandas

naturais? Quando pensamos nesta indagação, estamos fazendo referência não só às fronteiras

locais (internas ao país), mas também às fronteiras globais. Esta é a ideia que perpassa todo o

trabalho. Veja, quando se fala em interconexão dos elementos do planeta, a invariável

consequência é que definições unilaterais, impingidas pelo homem (e, portanto, políticas), não

avançam sobre as características da natureza. Já tocamos neste ponto, mas aqui cabem algumas

observações mais aprofundadas.

São inúmeras as evidências à disposição. Estudos efetuados nos Estados Unidos na

década de 1960 já mostravam que, em um determinado córrego de Oklahoma, a diversidade

bentônica foi afetada até 96 quilômetros para além do local onde o esgoto de um município era

escoado529. O solo – “camada intemperizada da crosta da Terra com organismos vivos

misturados com produtos de sua degradação”530 –, os aquíferos – depósitos de água

subterrâneos –, o fogo (um “fator importante na formação da história da vegetação na maioria

dos ambientais terrestres”531), os gases atmosféricos, o vento, as enchentes, são exemplos de

fatores e elementos transfronteiriços. Os oceanos, paralelamente, ocupam 70% da superfície da

527 LÉVÊQUE, Christian. Ecologia: Do Ecossistema à Biosfera. Lisboa: Instituto Piaget, 2001, p. 171. 528 Ibid., p. 172. 529 Cf. ODUM, Eugene P.; BARRET, Gary W. Fundamentos de Ecologia. São Paulo: Cengage Learning, 2011, p. 318. 530 Ibid., p. 187. 531 Ibid., p. 194.

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Terra532. São importantes não só pelo seu tamanho e pela sua abrangência, mas também por

influenciarem as condições da atmosfera, com um “papel destacado em moldar o tempo e o

clima em todo o planeta”533. Ademais, “os animais móveis ajudam a integrar os diferentes

estratos e estágios de vegetação”534

Se os elementos naturais são exemplos, quiçá aqueles produzidos pelo homem. Há um

fenômeno na natureza chamado magnificação biológica, substâncias que são concentradas a

cada etapa da cadeia alimentar – o que ocorre com “certos radionuclídeos persistentes,

pesticidas e metais pesados”535. Estas substâncias têm efeitos devastadores nos seres vivos. No

primeiro caso dos exemplos, temos os materiais decorrentes de processos de “fissão e ativação

atômica”536, liberados no meio ambiente quando de grandes acidentes atômicos, como o de

Chernobyl, v.g. Os pesticidas têm seu maior exemplo no uso do DDT

(diclorodifeniltricloroetano), cujos efeitos danosos foram primeiramente demonstrados no

clássico livro de Rachel Carson, a Primavera Silenciosa, em 1962537. Sua obra apontou e

confirmou a presença de pesticidas e outros produtos químicos em larga escala e de forma

onipresente no meio ambiente. “As aplicações cada vez mais intensas de inseticidas e outros

pesticidas na agricultura resultaram na contaminação do solo e da água”538. Por fim, os metais

pesados, estão igualmente ligados à atividade humana – o cádmio e o chumbo estão associados

aos esgotos lançados em rios539.

Os homens e a natureza estão ligados pela poluição. A poluição do ar, por exemplo, não

aceita soluções compartimentadas, pois em alguma medida todos estão sujeitos a ela. As

emissões de poluentes na atmosfera não ficam adstritas a um local específico. Eles são amplos,

eles se deslocam, eles são, por excelência, holísticos – e as soluções igualmente demandam este

olhar holístico. A poluição do ar é ainda mais sensível em razão do “sinergismo amplificador,

no qual as combinações de poluentes reagem no ambiente para produzir poluição adicional”540.

Vale dizer: componentes se combinam e geram poluentes ainda mais nocivos.

Embora não seja o objeto direto desta pesquisa, pois não nos propusemos a efetuar tal

discussão, as constatações apresentadas ao longo do trabalho ligam-se à própria ideia de

532 ODUM, Eugene P.; BARRET, Gary W. Fundamentos de Ecologia. São Paulo: Cengage Learning, 2011, p. 414. 533 Ibid., p. 414. 534 Ibid., p. 433. 535 Ibid., p. 216. 536 Ibid., p. 216. 537 Ibid., p. 216. 538 Ibid., p. 222. 539 Ibid., p. 217. 540 Ibid., p. 221.

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sociedade de risco tão propalada no meio acadêmico, com reflexos inclusive para o Direito

Ambiental. Para Beck, a sociedade moderna passa não só por problemas de escassez, mas

também por questões envolvendo a distribuição de riscos541. Segundo o autor, na evolução

histórica da sociedade, nota-se o início de uma confluência de “conflitos sociais de uma

sociedade ‘que distribui riqueza’ com os de uma sociedade ‘que distribui riscos”542. Poder-se-

ia dizer que não vivemos em uma sociedade de risco pura, nem mesmo em uma sociedade na

qual os conflitos distributivos sejam o único mote543.

Embora este fenômeno seja tipicamente moderno – visualizado a partir da década de

1970 –, o conceito de risco – e sua existência – é bem anterior. Entretanto, no passado, os riscos

eram de caráter pessoal, não riscos com contornos globais, com influência para toda a

coletividade544. No passado as ameaças eram “sensorialmente perceptíveis”545, mas hoje fogem

desta percepção comum. No passado, os riscos vinham justamente da falta de tecnologia, hoje,

ao contrário, decorrem do excesso dela546.

Ainda segundo Beck, tal como as riquezas, os riscos também são passíveis de

distribuição. Todavia, se a lógica da apropriação de riqueza é positiva, a dos riscos é negativa

– ideia de afastamento547. As questões modernas inerentes à percepção do risco demandam a

“simbiose de ciências naturais e humanas”548. As disciplinas e ramos do conhecimento não

podem se isolar ou ser exacerbadamente especializadas. Demandam, ao contrário, a

colaboração contínua. O teor dos riscos não pode, ao contrário do que pretendem as ciências,

ser determinado de forma objetiva, em especial pelo uso da probabilidade549 – uma lógica

segundo a qual tudo se funda em “conjecturas especulativas e move-se unicamente no quadro

de asserções de probabilidade”550.

Por certo, a distribuição de riscos tem certa peculiaridade. Ainda que se acumule na

parte baixa da pirâmide social, em certa medida, cedo ou tarde, os riscos acabarão por prejudicar

também quem está em cima – um exemplo é poluição atmosférica. A depender da camada de

renda e educação, os riscos podem ser minorados, é bem verdade, mas jamais completamente

541 BECK, Ulrich. Sociedade de Risco. São Paulo: Editora 34, 2010, p. 23. 542 Ibid., p. 25. 543 Ibid., p. 25. 544 Ibid., p. 25. 545 Ibid., p. 26. 546 Ibid., p. 26. 547 Ibid., p. 31-32. 548 Ibid., p. 34. 549 Ibid., p. 34-35. 550 Ibid., p. 35.

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evitados551. Neste último sentido, vale a seguinte máxima: enquanto a miséria é hierárquica, o

risco é democrático552. Por isto os riscos têm “efeito equalizador”553. Daí não se poder afirmar

que as sociedades de risco são sociedades de classe. A análise das ameaças não pode ser

efetuada como se os riscos fossem adeptos da divisão de classes. Os riscos têm uma

predisposição natural à globalização554.

Quando Beck enfrenta a “utopia da sociedade mundial”555, afirma que as sociedades de

risco agregam uma ideia de perigo global. O risco “ já não respeita qualquer diferença ou

fronteira, social e nacional”556. E as sociedades de risco, para Beck, “[...] contêm em si uma

‘dinâmica evolutiva de base democrática que ultrapassa fronteiras’, através da qual a

humanidade é forçada a se congregar na situação unitária das autoameaças civilizacionais”557.

Aqui não se fala apenas de limites territoriais amplos, entre Estados nacionais, mas também

dentro de cada um deles558. Por esta razão, as sociedades de risco “precisarão, hoje e no

futuro[...], aprender a sentar-se à mesa e a encontrar e a implementar soluções para as ameaças

autoinfligidas capazes de atravessar todas as fronteiras”559.

Não é de admirar, então, que o tratamento holístico da natureza complexa como um conjunto de redes, cada uma com um pequeno mundo de interações entre algumas discretas entidades vivas ou não vivas, grupos ou indivíduos[...]. Os temas metafísicos de uma natureza totalmente unificada, que em biologia estão em espera científica desde que Darwin acidentalmente realçou os organismos como a matriz da sua teoria, estão agora voltando a ter um desenvolvimento sério. Problemas contemporâneos de um holismo em larga escala, expresso pela poluição do meio ambiente, intoxicação, degradação e destruição, o efeito estufa e a mudança global; o buraco de ozônio, a chuva ácida,; Bopal; Valdez; ThreeMileIsland e Chernobyl; a propagação de radioatividade – e a AIDS; e no próximo século um novo conjunto de indesejáveis efeitos secundários da biotecnologia de recombinação do DNA – tudo isto serve como lembretes de que a biosfera é de fato uma unidade interconectada única, na qual eventos em um local podem se espalhar rapidamente, ou lenta e traiçoeiramente – mas inevitavelmente – pelo globo para afetar todas as coisas, em todos os níveis organizacionais, em todo lugar. O mecanismo subjacente para tal proliferação, implícita ou explícita, é a rede. A necessidade transformou este estudo sério em objeto

551 BECK, Ulrich. Sociedade de Risco. São Paulo: Editora 34, 2010, p. 41-42. 552 O autor, ao efetuar esta frase, utiliza o termo “smog” , e não o termo risco. Adaptamos a frase para este trabalho, de modo a deixá-la mais compreensível. No entanto, cumpre mencionar a definição do termo “smog” : “O termo smog resulta da junção de duas palavras inglesas: smoke (fumo) e fog (nevoeiro) e, tal como o nome indica, é o resultado da mistura de um processo natural (o nevoeiro) com os fumos resultantes da atividade industrial e queima de combustíveis fósseis, originando um tipo de nevoeiro que pode ser altamente tóxico, como o que atingiu o Vale do Mosa (Bélgica, 1930) ou Londres, em 1952”. (Smog. Infopédia. Porto: Porto Editora, 2003-2011. Disponível em http://www.infopedia.pt/apoio/artigos/10653000?termo=aerossóis. Acessado em 23/10/2014) 553 BECK, Ulrich. Op. cit., p. 43. 554 Ibid., p. 43. 555 Ibid., p. 56. 556 Ibid., p. 56. 557 Ibid., p. 57. 558 Ibid., p. 57. 559 Ibid., p. 58.

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científico, como algo mandatório e urgente; o advento dos computadores modernos fez isto ser possível560.

Valer dizer: se os riscos são globais, a gestão destes riscos – e, consequentemente, seu

enfrentamento – também deve ser. Se os riscos não têm fronteiras, a proteção ao meio ambiente

não pode ser exercida de forma isolada, sem intercomunicação e união de esforços para atingir

o mesmo objetivo. Este contexto impõe a concretização da norma ambiental a partir destas

constatações. “Uma vez que a interdependência entre os povos, as nações e o meio ambiente é

muito maior do que comumente se admite, as decisões deveriam ser tomadas em um contexto

holístico (de sistema)”561.

2.9. Algumas notas sobre a evolução e a nova visão aplicável à vida

Conquanto a grande expressão da teoria da evolução seja a obra de Charles Darwin, os

conceitos iniciais foram introduzidos na biologia por Jean Baptiste Lamark – em obra de

1809562. Ele acreditava em um meio ambiente capaz de impor mudanças a organismos vivos,

que seriam transferidas para os descendentes. Mais tarde demonstrou-se estar completamente

equivocado, embora seja inegável sua importância naquele contexto histórico, pois seus

ensinamentos afetaram “de maneira profunda todo o pensamento científico subsequente”563-564.

Charles Darwin (em 1859565) fundou sua teoria em três noções basilares: i. seleção

natural como causa da origem e da evolução das espécies; ii. seleção natural sendo dada pelo

conjunto das influências ambientais; iii. surgimento das variações, que a partir de algum

processo desconhecido, gradativamente eram absorvidas pelas populações566. A seleção natural

diz respeito à capacidade de certo organismo sobreviver e transmitir suas características

560 PATTEN, Bernard C. Network ecology: indirect determination of the life-environment relationship in ecosystems. In: HIGASHI, M.; BURNS, T. P. (Coord.). Theoretical Studies of Ecosystems: The Network Perspective. New York: Cambridge University Press: 2009, p. 291-292. 561 ODUM, Eugene P.; BARRET, Gary W. Fundamentos de Ecologia. São Paulo: Cengage Learning, 2011, p. 463. 562 MAYR, Ernst. Isto é Biologia. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 240. 563 CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 179. 564 Lamarck, por exemplo, foi um dos primeiros a reconhecer de forma inequívoca a descendência humana dos primatas. 565 MAYR, Ernst. Op. cit., p. 136. 566 Cf. BURNS, T. P.; PATTEN, B. C.; HIGASHI, M. Hierarchical Evolution in ecological networks. In: HIGASHI, M.; BURNS, T. P. (Coord.). Theoretical Studies of Ecosystems: The Network Perspective. New York: Cambridge University Press: 2009, p. 213.

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genéticas para a prole – a sobrevivência dos mais aptos567. O grande “buraco” inicial da teoria

de Darwin estava em encontrar uma resposta para aquilo que ele inicialmente denominou como

“variação casual”. A dúvida colocada era como as características biológicas seriam alteradas.

Inicialmente ele imaginou que este processo de variação decorreria de uma combinação entres

as características dos respectivos genitores568.

O grande problema da teoria darwiniana foi solucionado pelo monge Gregor Mendel

(em 1900569), ao deduzir a existência de “‘unidades de hereditariedade’ – que mais tarde seriam

chamadas de genes – as quais não se misturavam no processo da reprodução, mas eram

transmitidas de geração em geração sem mudar de identidade”570. Repousava aí a grande

resposta para o modelo de Darwin: estes genes poderiam sofrer alterações, a partir de mutações

aleatórias571. Aplicando-se à seleção natural, o resultado seria a eliminação de algumas espécies

e o reforço de outras tantas572. A “genética forneceu ao darwinismo o mecanismo de

hereditariedade e a fonte de variabilidade que lhe faltava”573 (tradução livre). Eis aí a base

daquilo denominado por muitos como neodarwinismo – “toda variação evolutiva resulta de

mutação aleatória [...] seguida por seleção aleatória”574.

Darwin tem uma importância histórica, que nos importa aqui em razão do contexto

social no qual se encontrava inserido. Ele derruba dois paradigmas clássicos em relação à

espécie humana. Por um lado, sua teoria rechaça a concepção de “descendência privilegiada”575

dos seres humanos (não somos fruto de um movimento especial, evolutivo; ao contrário, se

regressarmos ao limite, a origem humana remonta às mesmas bactérias que geraram, em bilhões

567 Neste ponto é relevante fazer uma ressalva. Para Darwin, a sobrevivência dos mais aptos não representa a sobrevivência dos mais fortes. Segundo Margulis e Sagan, este conceito não se refere “a músculos avantajados, hábitos predatórios ou o chicote dos donos, mas sim ao fato de se deixar um número maior de descendentes. ́ Apto’, em termos evolutivos, significa ´fecundo’. A questão é mais de propagação da vida do que de imposição da morte, essa, sim, inevitável” (MARGULIS, Lynn; SAGAN, Dorion. Microcosmos: Quatro Bilhões de Anos de Evolução Microbiana. São Paulo: Cultrix, 2002, p. 106). 568 Cf. CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 180. 569 Cf. MAYR, Ernst. Op. cit., p. 260. 570 CAPRA, Fritjof. Op. cit., p. 180. 571 Segundo Art, mutação é a “alteração no interior de um gene ou cromossomo em animais ou em plantas e que resulta numa variação herdada em um ou mais caracteres de um organismo” (ART, Henry W. Dicionário de Ecologia e Ciências Ambientais. 2ª ed. São Paulo: Editora UNESP, p. 363) 572 CAPRA, Fritjof. Op. cit., p. 180. 573 BURNS, T. P.; PATTEN, B. C.; HIGASHI, M. Op. cit., p. 213-214. 574 CAPRA, Fritjof. Op. cit., p. 180. 575 DAWKINS, Richard. A Grande História da Evolução. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 21.

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de anos de evolução, toda a diversidade da vida576) e de “fim projetado”577. Há, como aponta

Dawkins, milhões de fins provisórios – cada espécie sobrevivente –, pois a evolução não

caminha em um sentido pré-estabelecido, é um processo contínuo, não acabado e sem um

término imediato. Segundo a teoria darwinista, “todos os organismos vivos são apresentados

com ancestrais comuns”578, cujas variações genéticas ocorridas durante bilhões de anos levaram

à existência de diferentes espécies.

Acredita-se que Darwin, ao apresentar provas da teoria da evolução por seleção natural, tenha retirado de forma espetacular o pedestal que estava sob os pés da humanidade, derrubando os argumentos a favor de Deus, deixando-nos desconfortavelmente na companhia de outros animais ao difundir o tabu secreto das nossas origens simiescas579.

Esta é a síntese da teoria evolutiva que tem imperado hegemonicamente por anos. Como

afirmamos, Darwin reviu um paradigma até então vigente quando formulou sua Origem das

Espécies. Porém, o paradigma, tal como colocado, vem sofrendo algumas atualizações,

impondo um novo olhar sobre a dinâmica evolutiva.

Lovelock, por exemplo, respondendo algumas críticas à sua teoria de Gaia, já refutava,

por exemplo, a concepção segundo a qual a evolução das espécies vivas seria desvinculada

daquela identificada no meio ambiente. Para o autor, a evolução de cada entidade é capaz de

modificar o ambiente no qual está inserida580. Lovelock não é categórico, mas é possível extrair

de seus escritos a defesa de um padrão de rede na evolução, ao afirmar que, “quando o ambiente

é alterado pela formação de uma nova espécie, muitas outras são forçadas a uma adaptação. E,

assim, a mudança continua”581. É, portanto, uma rede, porque alterações em uma espécie

refletem no processo de evolução de outras e formatam seu próprio meio ambiente. Não se pode

perder de vista que “inexiste qualquer separação entre o objeto e todo o resto. Toda entidade e

576 A base deste raciocínio esta fundada na teoria da origem comum, proposta por Darwin, segundo a qual todas as formas de vida possuem um ancestral comum (Cf. MAYR, Ernst. Isto é Biologia. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 244). “Podemos ter toda certeza de que realmente há um único concestral de todas as formas de vida sobreviventes neste planeta. A prova é que todas as que já foram examinadas compartilham (exatamente na maioria dos casos, quase exatamente no restante) o mesmo código genético. E o código genético é detalhado demais, em aspectos arbitrários de sua complexidade, para ter sido inventado duas vezes [...]” (DAWKINS, Richard. A Grande História da Evolução. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 24). 577 Ibid., p. 21. 578 CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 179. 579 MARGULIS, Lynn; SAGAN, Dorion. Microcosmos: Quatro Bilhões de Anos de Evolução Microbiana. São Paulo: Cultrix, 2002, p. 19. 580 LOVELOCK, James. Gaia – Um modelo para a Dinâmica planetária e celular. In: THOMPSON, William Irwin (Org..). Gaia: Uma Teoria do Conhecimento. São Paulo: Gaia, 1990, p. 87. 581 Ibid., p. 87.

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seu ambiente são mutuamente definidos e unitários”582. Esta acepção definitivamente não é

nova, o próprio Darwin, em bonita passagem da sua clássica obra, afiançou:

Quase todas as partes de cada ser orgânico é muito bem relacionada às suas condições complexas da vida [...] plantas e animais distantes na escala da natureza, estão unidos por uma teia de relações complexas [...] não vejo qualquer limite [...] para a beleza e a complexidade das co-adaptações entre todos os seres orgânicos, um com o outro e com suas condições físicas da vida [...]583

Como apontam Burns, Patten e Higashi, este sentido de coadaptação entre organismos

e seu ambiente nunca foi ignorado pela biologia evolutiva, mas esta falhou ao tentar formalizar

uma teoria específica sobre este ponto584. Estes autores propõem “uma análise de rede

quantitativa das influências evolutivas em complexos sistemas ecológicos”585. Por certo, não

possuímos suporte teórico suficiente para avançar na parte mais técnica deste exame, que,

evidentemente, será descartada, restando suas conclusões e apontamentos mais genéricos, de

mais fácil compreensão ao operador do Direito. Destes apontamentos conclusivos, é possível

mencionar que as “mudanças na organização do ecossistema (estrutura de rede) são

significativas na evolução das populações de suas espécies, e vice-versa”586 (tradução livre),

ademais, não existem dúvidas de que “as entidades ecológicas influenciam sua própria

evolução”587 (tradução livre).

A importância das redes (enquanto interações) é visível neste processo por meio da

coevolução – “desenvolvimento de traços geneticamente determinados em duas ou mais

espécies através de interações mútuas”588. Neste processo, “a troca de informações genéticas

entre os participantes é mínima ou ausente”589, pois estas espécies não são intercruzantes, mas

mantêm uma associação de ordem ecológica. Há, portanto, “pressões seletivas recíprocas”590,

de modo que a “evolução de uma espécie na relação depende, em parte, da evolução da

outra”591.

Alguns exemplos trazidos por Odum são bastante ilustrativos deste fenômeno.

[...] as plantas, mediante mutações ou recombinações ocasionais, produzem compostos químicos [...] que são desfavoráveis para o crescimento e desenvolvimento

582 BURNS, T. P.; PATTEN, B. C.; HIGASHI, M. Hierarchical Evolution in ecological networks. In: HIGASHI, M.; BURNS, T. P. (Coord.). Theoretical Studies of Ecosystems: The Network Perspective. New York: Cambridge University Press: 2009, p. 216-217. 583 DARWIN, Charles. On the Origino f Species by Means of Natural Selection, or the Preservation of Favoured Races in the Struggle for Life apud BURNS, T. P.; PATTEN, B. C.; HIGASHI, M. Op. cit., p. 217. 584 BURNS, T. P.; PATTEN, B. C.; HIGASHI, M. Op. cit., p. 216-217. 585 Ibid., p. 218. 586 Ibid., p. 221. 587 Ibid., p. 220. 588 ART, Henry W. Dicionário de Ecologia e Ciências Ambientais. 2ª ed. São Paulo: Editora UNESP, p. 109. 589 ODUM, Eugene P.; BARRET, Gary W. Fundamentos de Ecologia. São Paulo: Cengage Learning, 2011, p. 286. 590 Ibid., p. 286. 591 Ibid., p. 286.

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normal. Alguns desses compostos reduzem a palatabilidade das plantas ou são tóxicos quando ingeridos pelos herbívoros. Uma planta assim protegida dos insetos fitófagos592 poderia, de certa maneira, ter entrado em uma nova zona adaptativa. [...] Os insetos fitófagos, entretanto, podem evoluir em resposta a esses obstáculos fisiológicos, como mostrado pelo desenvolvimento muito difundido das linhagens imunes. [...] Em outras palavras, a planta e o herbívoro evoluem juntos, ou seja, a evolução de um depende da evolução do outro593-594.

A coevolução não está limitada a duas espécies, como pode fazer parecer o exemplo,

mas pode envolver inúmeras espécies diferentes e até mesmo mais de um nível na cadeia

alimentar595, o que só demonstra a complexidade do processo evolutivo. Neste contexto, é

possível se falar em interações indiretas. A partir do pressuposto de que todas as entidades estão

interconectadas, em rede, compreende-se que pressões seletivas em um membro serão

“propagadas através das vias de interações para outros membros e voltando novamente”

(tradução livre) 596-597. Além disso, “se influências seletivas são propagadas por redes

interativas [...], é óbvio que entidades ecológicas podem influenciar sua própria evolução

indiretamente” (tradução livre)598.

Por estas razões, podemos concluir que todo processo de mudança de uma entidade

biológica é, em alguma medida, causa e consequência nos ciclos da evolução. Daí a conclusão

de Burns, Patten e Higashi: “não é uma questão simples isolar o agente em última análise

responsável pela mudança em redes ecológicas complexas – um ciclo não tem começo, nem

fim” 599 (tradução livre). Para os autores é possível apenas “articular os caminhos e os

mediadores de influência ou causalidade, porque essa informação está contida na estrutura da

rede”600.

592 Segundo Art, trata-se daquele “que se alimenta de plantas” (ART, Henry W. Dicionário de Ecologia e Ciências Ambientais. 2ª ed. São Paulo: Editora UNESP, p. 236). 593 ODUM, Eugene P.; BARRET, Gary W. Fundamentos de Ecologia. São Paulo: Cengage Learning, 2011, p. 286-287. 594 Exemplos de coevolução entre predadores e presas são muito representativos deste processo. Como afirma Mayr, “as presas geralmente adquirem determinados comportamentos adaptativos (por exemplo, procurar e encontrar esconderijos), ou melhor proteção (carapaças mais duras, por exemplo), gosto ruim e assim por diante. Com o tempo, por sua vez, os predadores são selecionados para superar essas defesas. Isso resulta em uma “corrida armamentista entre predador e presa” (MAYR, Ernst. Isto é Biologia. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 289). 595 ODUM, Eugene P.; BARRET, Gary W. Op. cit., p. 287. 596 BURNS, T. P.; PATTEN, B. C.; HIGASHI, M. Hierarchical Evolution in ecological networks. In: HIGASHI, M.; BURNS, T. P. (Coord.). Theoretical Studies of Ecosystems: The Network Perspective. New York: Cambridge University Press: 2009, p. 227. 597 Segundo se extrai da lição de Burns, Patten e Higashi, estas pressões seletivas são não apenas internas, mas também externas ao sistema. 598 BURNS, T. P.; PATTEN, B. C.; HIGASHI, M. Op. cit., p. 227. 599 Ibid., p. 227. 600 Ibid., p. 227.

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Esta visão sistêmica sobre a evolução, assim denominada por Capra601, traz um novo

olhar sobre o tema, sem, no entanto, negar as ideias de Darwin – em verdade significa a sua

complementação. Talvez o principal ponto agora defendido parta da constatação de um “erro

da estreita concepção darwiniana de adaptação”602, porquanto a “evolução não pode ser limitada

à adaptação de organismos ao seu meio ambiente, pois o próprio meio ambiente é modelado

por uma rede de sistemas vivos capazes de adaptação e de criatividade”603. Há, como aponta o

autor, uma implicação mútua entre organismo e meio ambiente, na qual um se adapta ao outro.

Há uma “sutil interação entre competição e cooperação, entre criação e mútua adaptação”604.

2.9.1. Seriam as mutações aleatórias e a seleção natural as únicas forças evolutivas?

Não pretendemos – e nem temos elementos para tanto – definir as mutações genéticas

com precisão maior do que aquela já efetuada neste trabalho. Acrescente-se que estas alterações

genéticas ocorrem quando “algo no meio ambiente – digamos, radiação – quebra uma ligação

química ou forja uma ligação indesejada”605. Estas modificações são responsáveis pela geração

ou aniquilamento de capacidades. Os indivíduos sobreviventes são aptos a transmitir tais

características aos descendentes606. Esta é a síntese do processo.

O que os especialistas têm afirmado, no entanto, parece desencorajar os defensores das

mutações aleatórias como única força motriz da evolução. Segundo Margulis e Sagan, tais

mutações mostram-se insuficientes para elucidar o caminho evolutivo até a diversidade

conhecida atualmente607.

Estimou-se que esses erros casuais ocorrem a uma taxa de cerca de um para várias centenas de milhões de células em cada geração. Essa freqüência não parece suficiente para explicar a evolução da grande diversidade de formas de vida, dado o fato bem conhecido de que, em sua maior parte, as mutações são prejudiciais e só um número muito pequeno delas resulta em variações úteis608.

601 CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 181. 602 Ibid., p. 182. 603 Ibid., p. 182. 604 Ibid., p. 182. 605 MARGULIS, Lynn; SAGAN, Dorion. Microcosmos: Quatro Bilhões de Anos de Evolução Microbiana. São Paulo: Cultrix, 2002, p. 53. 606 Ibid., p. 53. 607 Ibid., p. 53. 608 CAPRA, Fritjof. Op. cit., p. 183.

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Não se trata de negar a importância dos conceitos apontados por Darwin – e nem

seríamos pretensiosos a este ponto –, mas de reconhecer a presença de outras forças evolutivas

– ou “dinâmicas evolutivas”, como apontam Margulis e Sagan609.

Uma primeira força alternativa é a denominada “recombinação de ADN”, por meio da

permuta de genes entre organismos, como ocorre com as bactérias610. “Ao longo dos últimos

cinquenta anos ou mais, os cientistas observaram que os procariontes611 transferem de forma

rotineira e rápida parte do material genético para outros indivíduos”612. Neste processo, as

bactérias utilizam genes advindos de outros organismos e realizam uma “mistura” entre os

materiais genéticos613. O mais surpreendente deste processo é a velocidade das trocas, que

supera sensivelmente aquela atribuível pela mutação: “os organismos eucariontes levariam 1

(um) milhão de anos para se adaptar a uma mudança em escala mundial, ao passo que as

bactérias levariam poucos anos”614.

A segunda força alternativa, mais recentemente apontada por Lynn Margulis, decorre

da simbiose. A simbiose “pode ser definida como uma vida íntima em conjunto de dois ou mais

organismos de espécies diferentes, denominados simbiontes”615. A concepção desta teoria passa

pela ideia de associação entre microrganismos, seja por necessidade ou por mero acaso. O

resultado deste processo de união – estável e duradoura, diga-se – é a transformação das células

hóspedes em organelas das células hospedeiras – criando um novo tipo de organismo616. Trata-

se da evolução de algumas entidades biológicas por meio de uma “fusão entremeada de

parceiros em uma simbiose”617. Capra também sintetiza bem esta concepção:

A simbiose, a tendência de diferentes organismos para viver em estreita associação uns com os outros, e, com freqüência, dentro uns dos outros (como as bactérias dos nossos intestinos), é um fenômeno difundido e bem conhecido. No entanto, Margulis deu um passo além e propôs a hipótese de que simbioses de longa duração, envolvendo bactérias e outros microorganismos que vivem dentro de células maiores,

609 MARGULIS, Lynn; SAGAN, Dorion. Microcosmos: Quatro Bilhões de Anos de Evolução Microbiana. São Paulo: Cultrix, 2002, p. 27. 610 CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 184. 611 Segundo Art, o procarionte (ou procariote) é “uma célula ou organismo destituído de um núcleo distinto. Os procariotes incluem as bactérias, as algas-verde-azuladas e os actinomicetos” (ART, Henry W. Dicionário de Ecologia e Ciências Ambientais. 2ª ed. São Paulo: Editora UNESP, p. 428). Como ensina Margulis e Sagan, a vida na Terra é dividida em duas classes, os procariontes supramencionados e os eucariontes, formados por todas as demais formas de vida – ou, como perfilha Art, são aqueles “organismos cuja célula ou células têm um núcleo distinto rodeado por uma membrana, bem como uma certa quantidade de organelas distintas dentro do citoplasma” (ART, Henry W. Op. cit., p. 219) 612 MARGULIS, Lynn; SAGAN, Dorion. Op. cit., p. 27. 613 Ibid., p. 27. 614 Ibid., p. 27-28. 615 MARGULIS, Lynn. Os Primórdios da Vida: os Micróbios têm Prioridade. In: THOMPSON, William Irwin (Org..). Gaia: Uma Teoria do Conhecimento. São Paulo: Gaia, 1990, p. 95. 616 Ibid., p. 95. 617 BEGON, Michael; TOWNSEND, Colin R.; HARPER, John L. Ecologia: De Indivíduos a Ecossistemas. 4ª ed. Porto Alegre: Artmed, 2007, p. 407.

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levaram, e continuam a levar, a novas formas de vida. Margulis publicou, pela primeira vez, sua hipótese revolucionária em meados da década de 60, e ao longo dos anos a desenvolveu numa teoria madura, hoje conhecida como "simbiogênese", que vê a criação de novas formas de vida por meio de arranjos simbióticos permanentes como o principal caminho de evolução para todos os organismos superiores.618

Um exemplo seriam as mitocôndrias619. As bactérias são a forma mais primitiva de vida

no Planeta Terra, das quais se originam as formas mais complexas de vida hoje conhecidas. No

passado – algo em torno de dois bilhões de anos – algumas bactérias maiores se alimentavam

de outras menores, “englobando-as com sua membrana celular e lentamente digerindo seu

conteúdo”620. Por alguma razão, em um momento específico desta história, a bactéria não foi

efetivamente digerida e acredita-se – com provas relevantes sobre isso – que tais bactérias

precederam as mitocôndrias, presentes nas células de grande parte dos eucariontes. Como

demonstraram esta tese? Os cientistas descobriram que o DNA621 das mitocôndrias não possui

semelhanças com o DNA do restante da célula e, mais do que isso, assemelham-se muito com

o DNA de determinadas bactérias622.

Esta nova concepção já foi muito bem assimilada pela comunidade científica, como

apontam Begon, Townsend e Harper623, além de Dawkins624. O seu grande salto, porém, está

em considerar a cooperação625 como um elemento central da evolução, ao contrário dos

darwinistas, que enxergavam na competição a grande força motriz deste processo626. Segundo

Margulis e Sagan, “a noção de evolução como uma competição sangrenta crônica entre

indivíduos e espécies [...] dissolve-se diante de uma nova visão de cooperação contínua, forte

interação e dependência mútua entra as formas de vida”627. Por isso, para os autores, é tranquilo

afirmar que a “vida não se apossa do globo pelo combate, mas sim pela formação de redes”628.

618 CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 185. 619 Segundo Art, mitocôndria são “organelas especializadas, capsulares ou filamentosas, no citoplasma de células que contêm material genético e muitas enzimas” (ART, Henry W. Dicionário de Ecologia e Ciências Ambientais. 2ª ed. São Paulo: Editora UNESP, p. 363) 620 LOPES, Reinaldo José. Além de Darwin – Evolução: o que sabemos sobre a história e o destino da vida. São Paulo: Globo, 2009, p. 111. 621 Segundo Art, DNA é uma “molécula orgânica complexa encontrada em todos os animais, plantas e na maior parte dos vírus, que contém a informação genética transmitida de uma geração à seguinte. [...]” (ART, Henry W. Op. cit., p. 168-169) 622 LOPES, Reinaldo José. Op. cit., p. 111. 623 BEGON, Michael; TOWNSEND, Colin R.; HARPER, John L. Ecologia: De Indivíduos a Ecossistemas. 4ª ed. Porto Alegre: Artmed, 2007, p. 407. 624 O autor, embora reconheça a teoria de Margulis, apresenta algumas críticas a parte dela, que, por não alterarem as conclusões aqui lançadas e serem sobremaneira técnicas, deixaremos de lado (DAWKINS, Richard. A Grande História da Evolução. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 620). 625 Cooperar naquele sentido de agir conjuntamente, já abordado por nós alhures. 626 CAPRA, Fritjof. Op. cit., p. 185. 627 MARGULIS, Lynn; SAGAN, Dorion. Microcosmos: Quatro Bilhões de Anos de Evolução Microbiana. São Paulo: Cultrix, 2002, p. 26. 628 Ibid., p. 26.

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O reconhecimento da simbiose como uma força evolutiva importante tem profundas implicações filosóficas. Todos os organismos maiores, inclusive nós mesmos, são testemunhas vivas do fato de que práticas destrutivas não funcionam a longo prazo. No fim, os agressores sempre destroem a si mesmos, abrindo caminho para outros que sabem como cooperar e como progredir. A vida é muito menos uma luta competitiva pela sobrevivência do que um triunfo da cooperação e da criatividade. Na verdade, desde a criação das primeiras células nucleadas, a evolução procedeu por meio de arranjos de cooperação e de co-evolução cada vez mais intrincados629.

Embora Margulis tenha apresentado uma base teórica hoje inquestionável sobre a

cooperação, foi um autor russo – Kropotkin – um dos primeiros a apresentar críticas630a Darwin

e sua “ênfase exagerada na seleção natural como uma luta sangrenta”631. O pesquisador analisou

a gélida Sibéria, e constatou que para enfrentar as condições adversas do clima, muitas espécies

animais sobreviventes mantinham relações de suporte mútuo. “Onde a vida animal era

abundante ele viu colônias de roedores, rebanhos de cervos e outros organismos, as migrações

de pássaros, e assim por diante – em outras palavras, a ajuda mútua na luta contra a adversidade

física e outras espécies”632. Para o autor, a importância da cooperação e da competição poderia

variar conforme as circunstâncias envolvidas, sendo que a seleção natural tenderia a favorecer,

em longo prazo, a cooperação. A “ajuda mútua confere uma vantagem na luta pela

sobrevivência à medida que provê uma melhor defesa contra predadores e um ataque mais

eficaz contra a presa”633-634.

Esta nova concepção sobre a evolução nos coloca em outro patamar de compreensão

das relações existentes na natureza. O padrão da vida definido por Capra como sendo de rede –

a teia da vida, a ser mais bem explorada adiante – é identificado não só agora, mas em toda a

história do Planeta e projetado para o futuro, no intricado desenvolvimento do processo da vida

– a evolução. Trata-se da constatação da inter-relação e da cooperação como elementos

fundamentais em todo o curso do universo. “Isto é bastante diferente de ver a vida como uma

‘luta pela existência’ Darwiniana; isto é verdadeiro localmente, mas não globalmente. Há,

propriedades embutidas, decorrentes das redes que, no cômputo geral, operam para reduzir esta

luta”635. Diga-se, isto não representa a negação das ideias de Darwin, mas sua complementação.

629 CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 193. 630 O uso deste vocábulo aqui não pode ser entendido como uma ideia de afastamento da teoria darwiniana. A importância de Darwin – até os dias de hoje – é absolutamente inquestionável e ainda não superada. Quando dizemos “criticas” queremos mais frisar um olhar diferenciado sobre as bases desta teoria. 631 ODUM, Eugene P.; BARRET, Gary W. Fundamentos de Ecologia. São Paulo: Cengage Learning, 2011, p. 304. 632 TODES, Daniel P. Darwin Without Malthus – The Struggle for Existence in Russian Evolutionary Thought. New York: Oxford University Press, 1989, p. 129. 633 Ibid., p. 134. 634 A importância de Kropotkin é muito mais histórica do que científica propriamente dita. Trazemos a notícia da sua existência mais pela natureza do questionamento e pelo momento em que foi efetuada (1902). 635JØRGENSEN, Sven Erik et. al. A New Ecology: Systems Perspective. 1ª ed. Amsterdam: Elsevier, 2007, p. 95.

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Esta nova acepção constatou um equívoco na teoria darwinista: “ao longo de todo o mundo

vivo, a evolução não pode ser limitada à adaptação de organismos ao seu meio ambiente, pois

o próprio meio ambiente é modelado por uma rede de sistemas vivos capazes de adaptação e de

criatividade”636. Há uma “sutil interação entre competição e cooperação, entre criação e mútua

adaptação”637.

2.9.2. Olhares contemporâneos sobre a evolução

Como dissemos, a teoria de Darwin, embora recepcionada por especialistas de forma

ampla e inquestionável, aceita, em alguma medida, certos desacordos. Um deles, que nos

importa especialmente, é sobre a existência da seleção de grupo. Trata-se de saber, se, “além

dos indivíduos, populações inteiras e mesmo espécies também poderiam ser alvos de

seleção”638. Nestes grupos, algumas características representariam mais do que a soma daquelas

atribuíveis individualmente a cada integrante; vale dizer que o conjunto teria determinadas

aptidões inexistentes se considerado apenas um de seus membros639.

Como bem apontou Kropotkin, acima mencionado, a luta pela sobrevivência não

significa apenas um cenário no qual haja competição entre organismos. Há casos vários em que

a cooperação é elemento chave para a sobrevivência640.

Wilson – reconhecido no cenário acadêmico pelos estudos realizados sobre insetos

sociais641 – é um grande entusiasta da seleção de grupo. Em uma de suas mais recentes obras,

A Conquista Social da Terra, o autor promove uma ampla discussão a respeito deste ponto

controverso, propondo a revisão de conceitos tradicionais ligados à teoria da evolução, como

apontaremos mais adiante.

A vida social avançada na Terra é muito bem sucedida, embora não tenha surgido com

tanta frequência. Talvez dela, entretanto, possamos extrair relevantes lições, dado o seu alto

grau de sucesso. Os insetos sociais que povoam nosso planeta existem há pelo menos 100

636 CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 182. 637 Ibid., p. 182. 638 MAYR, Ernst. Isto é Biologia. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 271. 639 Ibid., p. 272. 640 ODUM, Eugene P.; BARRET, Gary W. Fundamentos de Ecologia. São Paulo: Cengage Learning, 2011, p. 288. 641 MAYR, Ernst. Op. cit., p. 273.

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milhões de anos, como é o caso de cupins642-643. Estes insetos mostram-se extremamente

relevantes na evolução da vida, servindo, inclusive, à evolução de outras espécies – estimularam

o surgimento de mecanismos de defesa, serviram de alimento, estabeleceram simbioses

relevantes, etc.644

Segundo Wilson, “os animais do ambiente terrestre são dominados por espécies com

sistemas sociais mais complexos”645 – a chamada eussocialidade. Grupos destes animais

caracterizam-se pela divisão de trabalho, de modo que alguns membros assumem funções muito

específicas, muitas vezes em prejuízo próprio, mas em benefício da colônia – como é o caso

das formigas. Além disto, há animais de gerações distintas vivendo no mesmo ninho. Esta forma

de organização possui vantagens significativas se comparada a outros indivíduos atuando no

mesmo espaço de forma autônoma. Por exemplo, colônias eussociais podem ter aos mesmo

tempo indivíduos buscando alimento e outros defendendo o ninho, além de conseguirem

promover a vigilância, técnicas de ataque e a própria gestão dos recursos alimentares obtidos

de forma muito mais eficaz646. As colônias constituem verdadeiros superorganismos,

compostos não por células, mas organismos647, nos quais há uma composição extremamente

harmônica e coordenada.

Se por um lado 2% das espécies de insetos conhecidas são eussociais (de um total de

um milhão, aproximadamente), “esta minoria domina o restante dos insetos em número, peso e

impacto sobre o meio ambiente”648. Estima-se que o peso total de todas as formigas existentes

no planeta seja equivalente ao peso total de todos os seres humanos vivos649.

Deslocando estas colônias especificamente para o contexto da evolução, a partir do

momento da constituição de grupos eussociais, a seleção passa a atuar em prol de grupos. Como

dissemos acima, certos traços surgem a partir das diversas interações identificadas dentro do

grupo – “esses traços incluem a cooperação na expansão, na defesa e no aumento do ninho, na

obtenção de comida e nos cuidados à prole imatura”650. Fosse um inseto não social, deveria

efetuar todas estas ações solitariamente.

642 WILSON, Edward O. A Conquista Social da Terra. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 24. 643 Só para se comparar, os primeiros ancestrais do homem como o conhecemos hoje, os denominados hominídeos, organizados de forma social, surgiram há três milhões de anos (WILSON, Edward O. A Conquista Social da Terra. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 143). 644 Ibid., p. 25. 645 Ibid., p. 137. 646 Ibid., p. 138-139. 647 Ibid., p. 187. 648 Ibid., p. 139. 649 Ibid., p. 147. 650 Ibid., p. 176.

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Para Wilson, a seleção natural “costuma ser multinível”651, vale dizer, atua “em genes

que determinam os alvos652 em mais de um nível de organização biológica, como célula e

organismo, ou organismos e colônia”653. Um grupo formado passará a competir com indivíduos

solitários e outras colônias compostas por membros daquela espécie654.

O altruísmo – entendido como “qualquer tipo de comportamento animal em que um

indivíduo realiza ações que beneficiam outro, aparentemente às custas dele mesmo”655 – tem

intrigado os evolucionistas e pesquisadores, dentre os quais Wilson, por estudar insetos tão

afetos à tal característica – os já mencionados eusossociais. A grande questão é: como estes

grupos se formaram ao longo de milhões de anos de evolução?656

A literatura muito bem assentada até os dias de hoje sempre se fundou na teoria da

aptidão inclusiva – “também denominada teoria da seleção de parentesco”657 – para explicar tal

indagação. O termo “aptidão inclusiva” objetiva, em alguma medida, ir além do conceito de

aptidão de Darwin, mencionado anteriormente, para incluir a transferência do genótipo não só

à prole, mas também a indivíduos com grau de parentesco658. Segundo Wilson, tal teoria

“sustenta que o parentesco desempenha um papel central na origem do comportamento

social”659. E continua o autor, afirmando que “quanto maior o parentesco entre indivíduos de

um grupo, maiores as chances da espécie que formou tais grupos de evoluir para a

eussocialidade”660. Em uma síntese muito despretensiosa, eventual sacrifício em prol de

parentes significa, no limite, um sacrifício em prol da sua própria carga genética, pois são os

seus genes perpetuados mesmo com a sua aniquilação.

Esta tese ganhou relevo para justificar a eussocialidade em alguns insetos, sobretudo

pela presença neles de uma característica muito peculiar – ao menos entre os insetos sociais

651 WILSON, Edward O. A Conquista Social da Terra. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 199. 652 Ainda segundo Wilson, o alvo da seleção “é o traço, ou combinação de traços, codificado pelas unidades de hereditariedade e favorecido ou desfavorecido pelo ambiente”, sendo exemplo “a propensão à hipertensão e a resistência às doenças nos seres humanos [...]” (WILSON, Edward O. A Conquista Social da Terra. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 199) 653 Ibid., p. 199. 654 Ibid., p. 209. 655 ART, Henry W. Dicionário de Ecologia e Ciências Ambientais. 2ª ed. São Paulo: Editora UNESP, p. 21. 656 Neste capítulo, recorreremos, com alguma frequência, a matérias de jornais e revistas, de forma complementar à obra de Wilson. Basicamente duas razões nos levaram a adotar tal sistemática. Em primeiro lugar, a teoria inovadora de Wilson que passamos a discutir é muito recente e ainda com pouco reflexo na literatura especializada. Em segundo, a linguagem acessível possibilita uma aproximação mais ampla ao assunto para aqueles que, como nós, não possuem formação nessa área específica. 657 WILSON, Edward O. Op. cit., p. 204. 658 Cf. LEHRER, Jonah. Gentileza em família: Uma disputa em torno da genética do altruísmo e da origem da bondade. Revista Piauí, São Paulo, jul. 2012. Disponível em <http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-70/questoes-de-sociobiologia/gentileza-em-familia>. Acesso em 25 out. 2014. 659 WILSON, Edward O. Op. cit., p. 204. 660 Ibid., p. 204.

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conhecidos até a consolidação da tese na literatura científica. Trata-se da haplodiploidia. Em

alguns insetos, as fêmeas originam-se por meio de óvulos fertilizados e os machos por meio de

óvulos não fertilizados. Na reprodução destes insetos – quando há fertilização de óvulos

(portanto formando-se fêmeas) –, os cromossomos dos machos (possuem um único conjunto

de cromossomos, metade daqueles encontrados nas fêmeas, pois herdados exclusivamente

delas) são transferidos na integralidade às filhas (fêmeas), que são somados à metade dos

cromossomos das mães (fêmeas possuem dois conjuntos de cromossomos, o dobro de

cromossomos dos machos). Irmãos em geral possuem, em média, 50% de cromossomos iguais;

porém entre insetos haplodiploides, as irmãs possuirão 75% de genes idênticos entre elas – e

apenas possuirão 50% dos genes das mães. Some-se a isto o fato de grande parte das fêmeas

serem inférteis, transformando-se em operárias e sacrificando-se em prol da rainha, “máquina

de fabricar irmãs”661 – segundo a teoria até então prevalecente, as irmãs garantiriam a

perpetuação de seus genes662.

Embora Wilson tenha sido um grande defensor desta teoria, começou a perceber que ela

possuía falhas significativas – na sua visão. Em primeiro lugar, descobriram-se espécies de

insetos eussociais que não eram haplodiploides e mais, muitas espécies de insetos

haplodiploides não evoluíram para a eussocialidade – que continuava rara.

Wilson formulou uma nova teoria para tentar explicar este modelo de evolução – o

altruísmo, que leva à formação de grupos eussociais. Para o autor a eussocialidade é tão rara

porque exige o cumprimento de uma série de etapas na evolução (“pré-adaptações”), nada

havendo com a antiga seleção de parentesco. O surgimento de uma determinada característica

essencial é que vai possibilitar o surgimento de outra e assim por diante, até o estágio final. “A

origem evolutiva de qualquer sistema biológico complexo só pode ser corretamente

reconstruída se vista como a culminação de uma história de estágios acompanhada do início ao

fim” 663. Dentre estas etapas, Wilson menciona: (i) formação de grupos, entre indivíduos

normalmente solitários; (ii) acúmulo de traços que favorecem a eussocialidade, como cuidado

com a prole e construção de um “ninho defensável”; (iii) surgimento dos alelos eussociais, por

meio da mutação ou “imigração de indivíduos mutantes de fora”, que levarão anão dispersão

dos membros dos grupos; (iv) “identificação das forças ambientais que impelem a seleção de

661 Cf. LEHRER, Jonah. Gentileza em família: Uma disputa em torno da genética do altruísmo e da origem da bondade. Revista Piauí, São Paulo, jul. 2012. Disponível em <http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-70/questoes-de-sociobiologia/gentileza-em-familia>. Acesso em25 out. 2014. 662 WILSON, Edward O. A Conquista Social da Terra. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 204-207. 663 Ibid., p. 223.

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grupo”, como, por exemplo, “a defesa contra inimigos”; (v) o último passo seria a seleção de

grupo entre os sistemas eussociais664.

A tentativa de Wilson é aplicar esta teoria, com algum temperamento, à evolução social

do homem, o que não nos interessa neste trabalho em razão da proposta inicialmente

estabelecida. Disto, vale apenas a menção que o autor faz à evolução da natureza humana, que

surge como o resultado de um ajuste equilibrado entre a seleção em nível de grupo e em nível

individual. Para tanto, se vale de uma “regra férrea”665 da evolução: “indivíduos egoístas

derrotam indivíduos altruístas”666, dentro de um grupo (sujeitos “bonzinhos” são facilmente

aniquilados por indivíduos egoístas); por outro lado, “grupos altruístas derrotam grupos de

indivíduos egoístas”667.

[...] O equilíbrio das pressões da seleção não pode pender para nenhum dos extremos. Se a seleção individual dominasse, as sociedades se dissolveriam. Se a seleção de grupo dominasse, os grupos humanos pareceriam colônias de formigas. Cada membro de uma sociedade possui genes cujos produtos são visados pela seleção individual e genes visados pela seleção de grupo. Cada indivíduo está ligado a uma rede de outros membros do grupo. Sua própria sobrevivência e sua capacidade reprodutiva dependem em parte de sua interação com outros na rede. O parentesco influencia a estrutura da rede, mas não é a chave para sua dinâmica evolutiva, como erroneamente postulado pela teoria da aptidão inclusiva. Pelo contrário, o que conta é a propensão hereditária a formar a miríade de alianças, favores, trocas de informação e traições que constituem a vida diária na rede.

Embora a teoria apresentada por Wilson tenha se pautado em modelos matemáticos668,

muita controvérsia se fez na literatura especializada669. O debate está formado e prosseguirá

664 Todas as referências de WILSON, Edward O. A Conquista Social da Terra. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, passim (p. 223-227). 665 WILSON, Edward O. A Conquista Social da Terra. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 293. 666 Ibid., p. 293. 667 Ibid., p. 293. 668 E o fez com o apoio dos pesquisadores Martin Nowak e Corina Tarnita (Cf. LOPES, José Reinaldo. Cientista de Harvard vê humanidade mestiça. Jornal Folha de S. Paulo, São Paulo, 10 mar. 2013. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2013/05/1287620-sumico-de-tucano-prejudica-arvores-da-mata-atlantica.shtml>. Acesso em25 out. 2014). Para Tarnita, “os testes matemáticos feitos por ela, a aptidão inclusiva só pode ser aplicada em circunstâncias biológicas muito específicas, que quase nunca existem.”. Ainda segundo a reportagem mencionada, “para testar a teoria de Wilson, Nowak e Tarnita desenvolveram um modelo matemático. Fizeram simulações computacionais comparando o desempenho de rainhas eussociais com o de rainhas solitárias e concluíram que a eussociabilidade aumentava em oito vezes a taxa de natalidade de uma rainha e reduzia em dez vezes sua taxa de mortalidade. Uma vantagem competitiva dessa magnitude poderia explicar por que a eussociabilidade gera tamanho êxito. Por outro lado, o modelo também documenta as barreiras à evolução da eussociabilidade, já que ela normalmente exige um conjunto de mutações incomuns e condições ecológicas muito específicas” (todas as citações de: LEHRER, Jonah. Gentileza em família: Uma disputa em torno da genética do altruísmo e da origem da bondade. Revista Piauí, São Paulo, jul. 2012. Disponível em <http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-70/questoes-de-sociobiologia/gentileza-em-familia>. Acesso em25 out. 2014). 669 Dawkins publicou uma resenha com críticas fortes ao estudo de Wilson (Cf. DAWKINS, Richard. The descent of Edward Wilson. Prospect Magazine, Inglaterra, 24mai. 2012. Disponívelem<http://www.prospectmagazine.co.uk/magazine/edward-wilson-social-conquest-earth-evolutionary-errors-origin-species/#.UfnoqRjJZEI>. Acesso em25 out. 2014), pronta e objetivamente respondida. Mais do que isso, uma carta subscrita por mais de 100 cientistas foi enviada à renomada revista Nature, condenando um artigo publicado por Wilson em conjunto com Nowak e Tarnita na mesma revista, apresentando

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ainda por um bom tempo. Daí, indagarmos, qual a razão para a apresentação de toda esta teoria

e a controvérsia por trás dela? Simplesmente para salientar o caráter absolutamente relevante

da cooperação no contexto das relações ambientais. E o caso dos insetos eussociais é bastante

ilustrativo – embora não sejam em grande número de espécies (se considerado o número total

de espécies), seu grau de sucesso no “domínio” do planeta é inegável, como apontamos, quer

pelo tempo de presença na Terra, ou pela sua pujança se comparado em quantidade de

exemplares. A cooperação é significativa para o sucesso em muitos casos, até mesmo para a

sobrevivência, o que poderia, segundo Wilson, ser aplicado à evolução dos homens. Aqui

importa menos o porquê da existência do altruísmo, importa mais a constatação da sua

existência e do seu sucesso.

2.10. Notas conclusivas: eis a teia da vida670?

O que está por trás de tudo o que expusemos até agora? Voltemos ao pensamento

mecanicista já mencionado neste trabalho. Não vamos aqui, neste pequeno espaço, traçar a

história das revoluções científicas, como fez Kuhn, mencionado ainda na introdução. Porém, se

há uma “nova” visão da ciência, é preciso mostrar antes de tudo o que efetivamente ela superou

– ou talvez, complementou.

O pensamento mecanicista ganhou força nos séculos XVI e XVII por meio de dois

intelectuais – Descartes e Newton. O primeiro, aqui já mencionado, baseava suas ideias na

premissa da verdade. Todo conhecimento científico, para ele, era aquele verdadeiro, certo e

evidente. Afastava-se, assim, da probabilidade ou de qualquer mecanismo que de algum modo

inspirasse dúvidas671. Pautava-se no método analítico, traduzido na decomposição de

“pensamentos e problemas em suas partes componentes” 672, para em seguida “dispô-las em sua

as bases de sua teoria. A resposta de Wilson, foi, no mínimo irônica: “‘Quando Einstein publicou sua teoria da relatividade, 100 físicos escreveram um artigo que a condenava”, diz Wilson. “A resposta de Einstein foi maravilhosa. Ele disse: ‘Se a teoria está errada, por que não bastou um só autor?’ Eu sinto o mesmo. Quando lemos a argumentação deles, eles nunca dizem em qual ponto nós erramos. E o motivo é que não erramos em nada. Não quero parecer arrogante, mas acho que esse artigo é muito importante. Ele dá uma virada no jogo’” (LEHRER, Jonah. Gentileza em família: Uma disputa em torno da genética do altruísmo e da origem da bondade. Revista Piauí, São Paulo, jul. 2012. Disponível em <http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-70/questoes-de-sociobiologia/gentileza-em-familia>. Acesso em 25 out. 2014). 670 Teia da vida é termo extraído da obra de Capra (CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida. São Paulo: Cultrix, 2006). 671 Ibid., p. 53. 672 Idem. O Ponto de Mutação. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 55-56.

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ordem lógica”673. Esta máxima aplicou-se aos diversos ramos do conhecimento, com reflexos

na própria distribuição e separação das disciplinas acadêmicas.

A analogia entre universo e máquina, elaborada por Descartes, parte da seguinte

premissa: “A natureza funcionava de acordo com leis mecânicas, e tudo no mundo material

podia ser explicado em função da organização e do movimento de suas partes”674. A teoria de

Descartes acabou servindo de base para todo o desenvolvimento da ciência que o seguiu, além

de influenciar o modo como as pessoas enxergavam o meio ambiente. Este pensamento passou

a ser visto como uma maneira de buscar o controle sobre a natureza, não como mera forma de

compreendê-la. A ciência existia para, em certa medida, submeter a natureza. O passo seguinte

de Descartes foi transpor esta visão mecanicista para a compreensão dos organismos vivos,

reproduzida na sua clássica analogia entre o corpo dos animais e os relógios, máquinas

altamente complexas à época675.

Se Descartes iniciou um novo pensamento científico, o apogeu se deu com Isaac

Newton. Ele definiu leis universais de movimento, aplicáveis a todos os objetos do sistema

solar676. “O universo newtoniano era, de fato, um gigantesco sistema mecânico que funcionava

de acordo com leis matemáticas exatas”677. Era um mundo descrito de forma absolutamente

objetiva, segregando o observador humano do processo – este deveria ser, em síntese, o objetivo

de toda ciência678.

Este modo de pensar sofreu forte impacto já no século XIX, por dois movimentos

distintos, mas igualmente relevantes. O primeiro se deu com as descobertas de Clark Maxwell

e Michael Faraday, a partir do estudo de fenômenos magnéticos e elétricos, que não podiam ser

representados corretamente pela matriz mecanicista até então vigente679. O segundo,

responsável por efetivamente destronar o modelo da máquina newtoniana, foi a teoria da

evolução, que partia de postulados incompatíveis com o padrão utilizado – mudança,

desenvolvimento e avanço680.

Embora a teoria da evolução tenha germinado com outros pensadores, foi Charles

Darwin quem apresentou provas irrefutáveis da sua existência e descreveu fenômenos

fundamentais para sua compreensão – a variação aleatória e a seleção natural, cujos aspectos

673 CAPRA, Fritjof. O Ponto de Mutação. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 55-56. 674 Ibid., p. 56. 675 Ibid., p. 57. 676 Ibid., p. 58. 677 Ibid., p. 59. 678 Ibid., p. 62. 679 Ibid., p. 65. 680 Ibid., p. 66-67.

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mais relevantes enfrentamos anteriormente. O universo passou a ser enxergado, então, como

um sistema em constante evolução, afastando-se do padrão mecanicista. Este foi só o princípio

de uma série de processos que avançaram no mesmo sentido.

No final do século XIX, a mecânica newtoniana tinha perdido seu papel de teoria fundamental dos fenômenos naturais. Os conceitos da eletrodinâmica de Maxwell e da teoria da evolução de Darwin superavam claramente o modelo newtoniano e indicavam que o universo era muitíssimo mais complexo do que Descartes e Newton haviam imaginado. Não obstante, ainda se acreditava que as idéias básicas subjacentes à física newtoniana, embora insuficientes para explicar todos os fenômenos naturais, eram corretas. As primeiras três décadas de nosso século mudaram radicalmente essa situação. Duas descobertas no campo da física, culminando na teoria da relatividade e na teoria quântica, pulverizaram todos os principais conceitos da visão de mundo cartesiana e da mecânica newtoniana. A noção de espaço e tempo absolutos, as partículas sólidas elementares, a substância material fundamental, a natureza estritamente causal dos fenômenos físicos e a descrição objetiva da natureza — nenhum desses conceitos pôde ser estendido aos novos domínios em que a física agora penetrava681.

A chamada nova física também teve papel relevante na superação do pensamento

cartesiano. Foi um passo além da eletrodinâmica de Maxwell e da evolução de Darwin. Albert

Einstein é sem dúvida o grande expoente, com a teoria da relatividade e os estudos da radiação

eletromagnética, fundamental para a formulação completa da teoria quântica682-683. Quando do

exame de fenômenos atômicos e subatômicos, os cientistas se depararam com um mundo

absolutamente novo684. “Todas as vezes que faziam uma pergunta à natureza, num experimento

atômico, a natureza respondia com um paradoxo, e, quanto mais eles se esforçavam por

esclarecer a situação, mais agudos os paradoxos se tornavam”685. Passaram a perceber que tais

paradoxos eram inerentes à física atômica e, portanto, não eram passíveis de descrição por meio

de modelos clássicos686.

Dentre as descobertas da nova física, podemos mencionar: i. o reconhecimento de que

os átomos não eram sólidos, mas “regiões amplas do espaço”, no qual há movimento de

partículas subatômicas em torno de um núcleo; ii. o reconhecimento posterior de que estas

partículas subatômicas também não eram sólidas, mas unidades com aspecto dual, tudo a

depender do modo como são examinadas, podendo ser ondas ou partículas; iii. a constatação de

que a matéria, em nível subatômico, “não existe com certeza em lugares definidos [...] e os

681 CAPRA, Fritjof. O Ponto de Mutação. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 69. 682 Ibid., p. 70. 683 Por certo não nos estenderemos em aspectos sobremaneira técnicos e de difícil compreensão para os operadores do Direito. Pretendemos, sim, trazer aquilo de mais relevante da nova física e associável ao nosso objeto de estudo 684 CAPRA, Fritjof. Op. cit., p. 71. 685 Ibid., p. 71. 686 Ibid., p. 71.

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eventos atômicos não ocorrem com certeza em tempos definidos e de maneiras definidas, mas

antes mostram ‘tendência para ocorrer’”687-688.

Incorporou-se a percepção de interdependência em nível subatômico, diante da

impossibilidade de compreensão de tais partículas isoladamente689 – “as partículas subatômicas

não são coisas, mas interconexões entre coisas [...] Na teoria quântica, nunca lidamos com

coisas, lidamos sempre com interconexões”690. Aqui, mais uma vez, há um choque com o

modelo cartesiano, pois quando tentamos decompor o universo ao extremo, em seu nível

máximo, percebemos que nada é completamente isolável, mas tudo é absolutamente

interconectado. Quando se atinge o nível de partículas, “a noção de partes separadas dissipa-

se”691. Disto decorre um imperativo da nova ciência, a mudança do foco, de objetos para

relações. “Na física moderna, a imagem do universo como uma máquina foi transcendida por

uma visão dele como um todo dinâmico e indivisível, cujas partes estão essencialmente inter-

relacionadas [...]”692.

Diante de todo este contexto, Capra investe nesta “nova visão da realidade”693, voltada

à superação do pensamento cartesiano e de toda a influência por ele gerada ao longo dos anos

nas diversas áreas do conhecimento. Esta nova visão é pautada, essencialmente, em uma

consciência da constante interdependência de todos os eventos naturais694. A proposta de Capra

passa pela incorporação da visão sistêmica em todos os campos do conhecimento, por meio de

uma concepção que enxergue o “mundo em termos de relações e de integração”695, a partir de

“totalidades integradas, cujas propriedades não podem ser reduzidas às de unidades

menores”696. Esta visão, em verdade, reflete a própria organização da natureza, pois todo

organismo forma-se a partir desta matriz conceitual. E mais, os sistemas não se limitam aos

organismos específicos, mas expandem-se para organizações mais complexas, em especial nos

sistemas sociais e nos ecossistemas naturais697 - como demonstramos exaustivamente ao longo

das linhas antecedentes.

687 CAPRA, Fritjof. O Ponto de Mutação. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 74. 688 Ibid., p. 73-75. 689 Ibid., p. 75. 690 Ibid., p. 75 691 Ibid., p. 76. 692 Ibid., p. 86. 693 Ibid., p. 259. 694 Ibid., p. 259. 695 Ibid., p. 260. 696 Ibid., p. 260. 697 Ibid., p. 260.

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Os estudos dos sistemas vivos têm mostrado, como já salientamos, que cada nível de

complexidade é simultaneamente parte menor de algum outro sistema e uma totalidade maior,

que abrange outros tantos sistemas. “Existem interligações e interdependências entre todos os

níveis sistêmicos”698, cada um “comunicando com seu meio ambiente total”699. É a dualidade

– e o quase paradoxo – de ser em um momento individual e autônomo, e, em outro, parte de um

todo maior – há “equilíbrio dinâmico entre tendências auto-afirmativas e integrativas”700. A

este modelo dá-se o nome de sistema estratificado – ou de múltiplos níveis. E é a presença

destes modelos que possibilitou uma evolução muito mais célere e eficiente dos organismos,

pois quando há algum abalo, os sistemas podem facilmente se decompor sem desaparecer por

completo701.

[...] De acordo com a visão sistêmica, as propriedades essenciais de um organismo, ou sistema vivo, são propriedades do todo, que nenhuma das partes possui. Elas surgem das interações e das relações entre as partes. Essas propriedades são destruídas quando o sistema é dissecado, física ou teoricamente, em elementos isolados. Embora possamos discernir partes individuais em qualquer sistema, essas partes não são isoladas, e a natureza do todo é sempre diferente da mera soma de suas partes. [...]702-703.

São por tais razões que, como aponta Capra, os organismos vivos definitivamente não

se confundem com máquinas, ao contrário do que apregoou o pensamento mecanicista. Os

organismos são concebidos a partir de um processo de desenvolvimento, enquanto as máquinas

são simplesmente produzidas a partir de junção de peças e com base em um modelo

previamente estabelecido. Os organismos, ao contrário, não obedecem a padrões rígidos – os

formatos de suas partes e os próprios processos de formação podem variar de organismo para

organismo, de modo a não haver dois entes absolutamente idênticos. Este espaço para variação

e amoldamento traz à baila outra característica relevante dos organismos: a grande capacidade

de adaptação704.

Os sistemas vivos são sistemas auto-organizadores, vale dizer, “sua ordem em estrutura

e função não é imposta pelo meio ambiente, mas estabelecida pelo próprio sistema”705.

Ademais, têm na autorrenovação uma de suas característica fundamentais – a finalidade

698 CAPRA, Fritjof. O Ponto de Mutação. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 274. 699 Ibid., p. 274. 700 Ibid., p. 275. 701 Ibid., p. 274. 702 Idem. A Teia da Vida. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 40-41. 703 No mesmo sentido Lévêque: “Desde à molécula até a biosfera, o mundo vivo está organizado. A cada nível de integração, surgem propriedades que não podem ser analisadas somente a partir dos mecanismos que tinha valor explicativo nos níveis de integração inferiores. Fala-se de emergência a propósito deste aparecimento de novas características, ao nível do conjunto, que não existem ao nível dos elementos constitutivos” (LÉVÊQUE, Christian. Ecologia: Do Ecossistema à Biosfera. Lisboa: Instituto Piaget, 2001, p. 171). 704 CAPRA, Fritjof. O Ponto de Mutação. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 262. 705 Ibid., p. 263.

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precípua é a renovação de seus componentes. Se uma peça de determinada máquina deixar de

funcionar, isso comprometerá toda a sua dinâmica; ocorrendo com os organismos, eles buscarão

formas de regenerar-se – dentro de alguns limites, por certo706. Como as máquinas, os

organismos não se mantêm em funcionamento indefinidamente, porém, desenvolveram um

mecanismo altamente complexo, pelo qual promovem a própria substituição, de modo

completo, mediante a reprodução707.

A grande característica dos organismos vivos, porém está na abertura sistêmica, porque

“mantêm-se vivos e em funcionamento através de intensas transações com seu meio ambiente,

que também consiste, parcialmente, em organismos”708. Por esta razão, a “totalidade da biosfera

– nosso ecossistema planetário – é uma teia dinâmica e altamente integrada de formas vivas e

não-vivas. Embora essa teia possua múltiplos níveis, as transações e interdependências existem

em todos os seus níveis”709.

Grande parte dos organismos não só é parte de ecossistemas, como também é um

verdadeiro ecossistema, por servir de habitat para outros inúmeros organismos vivos – basta

ver que o corpo humano serve como abrigo para inúmeras bactérias, v.g. Estas constantes

interações entre organismos vivos e entre eles e seu meio ambiente ocasionam uma enorme

dificuldade para determinar as respectivas fronteiras710. Veja o exemplo dos corais, discutido

alhures. Trata-se da união de organismos vivos de pequenas proporções que criam enormes

estruturas físicas, responsáveis por manter outras tantas espécies de bactérias, plantas e animais.

“Os pólipos de coral funcionam de um modo altamente coordenado, compartilhando redes

nervosas e capacidades reprodutivas em tão alto grau que fica difícil [...] considerá-los

organismos individuais”711. Outro exemplo igualmente delineado anteriormente são os insetos

sociais, incapazes de manter-se vivos isoladamente e organizados de tal modo que se

comportam como células de um organismo vivo maior, dotado de “inteligência coletiva e

capacidade de adaptação muito superiores às de seus membros individuais”712.

A reunião coordenada não fica limitada à mesma espécie. Basta examinar o fenômeno

da simbiose, outro exemplo sobre o qual avançamos neste trabalho. Duas ou mais espécies

distintas de indivíduos podem se associar, em um processo de benefício mútuo para todos os

706 Cf. CAPRA, Fritjof. O Ponto de Mutação. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 265. 707 Ibid., p. 266. 708 Ibid., p. 269. 709 Ibid., p. 269. 710 Ibid., p. 269. 711 Ibid., p. 271. 712 Ibid., p. 271.

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consortes envolvidos713 – algumas bactérias, por exemplo, vivem no intestino de animais, sendo

essenciais nos processos daí resultantes e sobrevivem também em razão de ali habitarem714.

Vê-se assim, ao aprofundarmos o exame dos processos naturais, que a cooperação – ao

menos no sentido aqui utilizado para o termo – é intrínseca a todas as espécies e ecossistemas.

“As maiores redes de organismos formam ecossistemas, em conjunto com vários componentes

inanimados [...], através de uma intrincada rede de relações que envolvem a troca de matéria e

energia em ciclos contínuos”715. Ao contrário do que se poderia imaginar, em especial após a

teoria darwiniana, a regra de funcionamento dos ecossistemas não é exclusivamente a

competição – embora ela exista em alguma medida –, mas inclui também a cooperação. Mesmo

quando se verifica a competição, ela serve para, em uma análise maior, manter a estabilidade

de todo o ecossistema. É o que ocorre, por exemplo, com o predador e a presa, pois, se a relação

for vista sob o ângulo da cadeia alimentar, serve para manter o equilíbrio das espécies716.

A percepção dos ecossistemas absolutamente ligados, formando redes, impôs uma nova

compreensão sobre a hierarquia na natureza:

Em outras palavras, a teia da vida consiste em redes dentro de redes. Em cada escala, sob estreito e minucioso exame, os nodos da rede se revelam como redes menores. Tendemos a arranjar esses sistemas, todos eles aninhados dentro de sistemas maiores, num sistema hierárquico colocando os maiores acima dos menores, à maneira de uma pirâmide. Mas isso é uma projeção humana. Na natureza, não há “acima” ou “abaixo”, e não há hierarquias. Há somente redes aninhadas dentro de outras redes717.

Como a teia da vida, ou este completo emaranhado de redes e complexas relações, deve

impactar o Direito e na norma ambiental? É tal aproximação que procuramos fazer no próximo

capítulo, reunindo os elementos dogmáticos apresentados no segundo capítulo, com o retrato

das relações naturais promovido neste capítulo.

713 CAPRA, Fritjof. O Ponto de Mutação. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 271. 714 Ibid., p. 272. 715 Ibid., p. 272. 716 Ibid., p. 273. 717 Ibid., p. 45.

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3. DIREITO, ECOLOGIA E A NORMA AMBIENTAL

Do Direito, a norma; da Ecologia, o ambiental; da sua junção a dúvida que deve

inaugurar este capítulo: existe mesmo uma norma ambiental? Um não contundente como

resposta poderia soar desolador, dada nossa proposta inicial. Outro não pode ser um alento, se

o objetivo for afastar esta primeira impressão. A norma ambiental – como toda norma jurídica

– não existe como um produto acabado, preliminar, prévio ao processo de concretização.

Todavia, a norma ambiental pode e deve ser construída no concreto, como resultado de um

processo complexo, que vai do texto à realidade, a partir do recorte dado pelo programa

normativo. Isto significa que não há um modelo de aplicação da norma ambiental, universal,

definido a priori.

Como visto, o programa normativo (Normprogramm) e o âmbito normativo (Normbereich) compõem a estrutura da norma jurídica. Ao interligar o programa da norma e o âmbito da norma, o operador do direito cria a norma jurídica (Rechtsnorm) – ainda formulada de forma geral e abstrata. O derradeiro trabalho do operador do direito consiste na individualização da norma jurídica em uma norma de decisão (Entscheidungsnorm), que consiste no somatório de todas as fases do processo de concretização718.

Define-se, antes, apenas o texto do dispositivo. E, neste ponto, não há ainda

normatividade – há um mero enunciado, que serve como referencial do processo de

concretização. Para a Teoria Estruturante, no processo de concretização a norma jurídica é um

resultado parcial (ou intermediário) – a norma geral e abstrata –; processo este que somente

será finalizado no caso concreto, com a norma de decisão (aquela que soluciona um caso).

A norma, embora tenha no texto um vetor importante para a concretização, não tem nele

o único elemento de formatação. Do texto é possível retirar o programa normativo, porém a

norma só se completa com seu âmbito normativo – os dados da realidade. Por certo, não

obstante o âmbito normativo sempre esteja presente, a necessidade de buscar elementos no

concreto variará conforme a norma que esteja a se concretizar. Imperativos linguísticos fortes,

como mencionado719 – âmbito normativo dado pelo Direto, por exemplo (prazo, competência,

etc.) – tendem a se resolver internamente – não há que se buscar, porque assim não é

demandado, elementos externos, de outras ciências.

718 GOMES, Nestor Castilho. A Teoria da Norma de Friedrich Müller: Reflexos na Metódica Jurídica. Dissertação de Mestrado. Curso de Pós-Graduação em Direito. Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2009. Disponível em https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/93157/266448.pdf?sequence=1. Acesso em 25 de out. 2014, p. 79. 719 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 1220.

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Não se trata aqui da antiga dicotomia “norma/realidade constitucional”, mas sim do problema referente à “concretização” das normas constitucionais, que, nessa perspectiva, não se confundem com o texto constitucional. Sob esse novo ponto de vista, o texto e a realidade constitucionais encontram-se em permanente relação através da normatividade constitucional obtida no processo de concretização720.

Os fatos refletidos, ou expressos em linguagem, como aponta Müller, tendem a ser tão

maiores ou mais essenciais quanto mais o dispositivo se vale de elementos extrajurídicos. A

vinculação material da Constituição Ecológica é não só amplíssima, mas sobretudo complexa.

Dedicamos um tópico a este ponto – os dispositivos constitucionais voltados ao meio ambiente

possuem materialidade tamanha que o âmbito normativo pressupõe, invariavelmente, o recurso

àqueles dados não gerados pelo Direito, reunidos, ao menos em parte, pela Ecologia. Por esta

razão, a escolha por tal disciplina não foi aleatória, se tornou essencial quando o constituinte

optou por tutelar o meio ambiente. Os elementos da Ecologia não são, portanto, um dado

facultativo da realidade a serem utilizados nos processos de concretização da norma ambiental,

pois a Constituição Ecológica incorporou este desígnio.

O que se faz no Direito, comumente, é o estabelecimento de premissas de outras ciências

(quando necessárias, por uma demanda da norma), sem nunca perquirir de forma verdadeira

seu sentido, sem nunca abrir-se para um diálogo efetivo. Igualmente como os sistemas naturais,

o Direito não pode se fechar – o Direito não se basta. Materialmente a natureza não pertence à

Ciência Jurídica, passa a integrá-la a partir do momento em que a Constituição Federal a

incorpora em seu texto. E talvez este seja um dos grandes desafios para o operador do Direito:

abrir-se a outros conhecimentos, transpor as fronteiras da ciência jurídica:

O operador do direito será submetido a um exame se quiser abraçar as carreiras que lhe são oferecidas. Qual o conhecimento que lhe está sendo exigido? O menos crítico possível. Repousa sobretudo nos princípios e institutos do positivismo oficial. O jurista não tem o conhecimento amplo que a atividade exige dele, que busca, sobretudo, a compreensão dos problemas humanos e a resolução dos conflitos intersubjetivos. [...] A ciência do Direito que busca a verdade não se encontra com as fronteiras criadas historicamente pelos homens e tampouco se preocupa com a delimitação do seu objeto. A ciência que quer apenas amenizar o sofrimento não interessa à sociedade. Uma ciência de verdade deverá levar em conta que os fenômenos são complexos, estão sempre interligados e estão em permanente busca do seu sentido. E, o que é pior, os fenômenos recebem sempre uma visão própria de cada investigador que, na verdade, não vêem os fatos, mas a compreensão que eles têm dos fatos. O operador jurídico deverá ter sensibilidade. A racionalidade criou empecilhos para o desenvolvimento científico. E impôs uma conduta completamente divorciada da realidade das coisas. Deverá o jurista, sobretudo, ter consciência de que os instrumentos que emprega para a resolução dos conflitos que lhe são apresentados têm limites. [...]721.

720 NEVES, Marcelo. A Constitucionalização Simbólica. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. 84. 721 FAGÚNDEZ, Paulo Roney Ávila. Direito e Holismo: Introdução a uma visão jurídica de integridade. São Paulo: Ltr, 2000, p. 233-235.

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Voltemos ao primeiro parágrafo deste capítulo. Se não existe uma norma ambiental

definida pelo legislador e, por outro lado, se esta norma decorre de um processo de

concretização, haverá sentido em buscar dialogar com a Ecologia, sem casos concretos

específicos a se analisar? Parece-nos ser positiva a resposta a esta indagação. O âmbito

normativo da norma ambiental – em cada processo de concretização – possuirá um espaço

comum, cuja intensidade será dada, por certo, conforme o respectivo programa normativo e

conforme o caso concreto. Este direito fundamental – a proteção ao meio ambiente –,

disciplinado por um amplo conjunto de dispositivos, possui uma linha de condução comum,

presente em todos eles, que é própria compreensão do meio ambiente. No processo de

concretização da Constituição Ecológica é impositiva a verdadeira busca do âmbito normativo

da norma ambiental.

Neste capítulo, nosso objetivo é, por um lado, trazer elementos gerais ao intérprete, para

que ele possa efetivamente (e adequadamente) concretizar a Constituição Ecológica e, por

outro, trazer exemplos práticos da nossa visão sobre a concretização. A norma ambiental que

mencionamos ao longo do trabalho ainda não existe, existirá a partir de elementos concretos e

do exame de situações reais de sua aplicação. O que faremos aqui é mostrar alguns (dentre

outros tantos) elementos que devem ser considerados pelo intérprete. Por que isto é relevante?

Porque há um processo amplo de concretização, efetuado pelos mais variados atores políticos

e sociais. Embora o Judiciário seja comumente associado ao processo de concretização,

igualmente o Legislativo, o Executivo e a própria sociedade têm lugar de destaque neste

processo, como já salientamos alhures.

3.1. O que aprendemos com o meio ambiente?722

Quando olhamos no capítulo anterior o meio ambiente em busca de seu conteúdo, mais

precisamente os aspectos relevantes para a construção da norma, quisemos destacar dois

elementos, aptos a gerar outros tantos desdobramos. Por certo, não somos pretensiosos em

afirmar que estes dois fatores são os únicos a serem considerados quando da concretização da

722 O leitor notará que fazemos muitas referências a elementos já abordados neste trabalho, razão pela qual não nos preocuparemos em retomar as referências, todas elas lançadas quando tratamos mais profundamente cada um destes tópicos. Este item serve mais à preparação das ideias conclusivas lançadas neste capítulo, cabendo ao leitor retomar a discussão mais aprofundada realizada anteriormente.

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norma ambiental; no entanto são de extrema relevância e, por si só, capazes de gerar reflexos

significativos no Direito e nas instituições refletidas pelo Direito. Trata-se daquilo que na

introdução chamamos de uma experiência absolutamente exitosa do natural – a cooperação –

e a certeza do padrão de rede de todos os fenômenos naturais – ou a chamada interconexão.

Este quadro nos levou, no decorrer da exposição, a aproximar tais conceitos (interconexão e

cooperação). É preciso lembrar, neste ponto, que dedicamos algumas linhas a esta discussão

lexical inerente ao termo cooperação.

Além de serem ideias coexistentes, foi possível perceber serem ideias complementares.

A cooperação enquanto um agir conjunto para produção de determinado efeito,

independentemente de perda ou ganho na relação, ou de um fim comum, é decorrência lógica

e cogente do padrão de rede existente na natureza. Como dito, a interconexão aqui tão

defendida, pressupõe a relação entre o vivo e o não vivo, mas também entre os próprios

organismos vivos. A ação conjunta entre organismos na natureza mostrou-se não só exitosa,

mas sobretudo essencial para a manutenção do meio ambiente como conhecemos.

A busca por um sentido para a cooperação nos alçou a considerações sobre a evolução

da vida no planeta – um processo inacabado, em construção há milhões de anos, cujo resultado

é a natureza hoje existente, com todas suas nuances. Darwin destrona a humanidade, retira dela

certa pujança, equiparando-a, de certo modo, às demais espécies da Terra. Definitivamente os

seres humanos não são iguais aos outros organismos, porém não são mais, tampouco menos –

são parte, peças de um quebra-cabeça maior. Não decorrem de uma força especial (por

possuírem o mesmo ancestral) e não são um fim em si mesmos (são pertencentes a uma das

inúmeras ramificações evolutivas). Isto, intrinsecamente, já conteria uma demanda de certa

humildade à espécie humana– talvez cooperar fosse intuitivo. Porém, não foi exatamente por

isso que fomos até 1859 (quando Darwin formulou sua teoria).

O desenvolvimento que se seguiu à elaboração da teoria da evolução em muito

incorporou o padrão de redes, seja porque comprovou que a evolução dos organismos vivos

impacta diretamente na formatação de elementos não vivos (e o inverso também), seja pelos

reflexos que a evolução de uma espécie gera em outra. Entretanto, não é só. Os conceitos

darwinistas revolucionaram as ciências, de modo geral, porém foram complementados ao longo

dos anos. Dentre as principais descobertas contemporâneas está a de que as mutações

aleatórias não são as únicas forças evolutivas, abrindo-se espaço para a recombinação de ADN

e a simbiose – a cooperação atuando diretamente na evolução das espécies. Ainda mais

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recentemente, Wilson723 mostrou a vantagem competitiva de organismos vivendo em sistemas

sociais de alta complexidade – como são os insetos sociais (embora poucas espécies, dominem

amplamente o planeta) – e formulou uma teoria baseada na seleção de grupo para explicar a

existência destes fenômenos.

O padrão de rede, porém, está presente em tudo, não só na evolução, como

mencionamos anteriormente. Um organismo, seja ele qual for (uma bactéria ou ser humano),

não existe isoladamente. Ele interage com seu meio e com outros organismos, direta ou

indiretamente – e esta não é uma constatação metafísica, ao contrário, possui toda uma teoria

voltada ao seu estudo. O que se viu, por trás da ideia de rede é outra igualmente importante e a

esta ligada: unidade. O planeta é um todo, com propriedades absolutamente únicas, só

existentes nesta configuração; uma reunião de elementos que se convencionou chamar de

biosfera. Neste contexto, apresentamos Gaia e sua importância para se instaurar um olhar

holístico sobre nossa casa – ainda que se questione sua essência enquanto teoria científica.

A interconexão planetária decorre igualmente de fatos humanos. Há certa dose de social

neste processo que essencialmente é natural. A espécie humana está presente em todas as partes

do planeta, de forma não estática – o trânsito de pessoas é amplo e irreversível. O manto da

humanidade cobre toda a Terra, levando problemas de degradação a todas as localidades e

tornando a poluição um grande fator de conexão. São os riscos distribuídos democraticamente,

naquilo que Beck denominou sociedade de risco. Os riscos são globais e unem os seres

humanos por sujeitar todos e por impor um agir conjunto para minorá-los.

Não há como transpor para o natural as delimitações estabelecidas pelo homem.

Fronteiras são permeáveis, por um lado, e por outro não impedem os efeitos e as conexões do

meio ambiente. O olhar limitante de uma nação, um Estado, uma unidade política qualquer, se

isolado, não servirá à solução dos problemas ambientais por um motivo muito simples: são

míopes por excelência. Qualquer modelo de solução de problemas localizado, neste cenário,

não servirá como molde, resultará em algo com pouca ou nenhuma eficácia.

Só há efetiva proteção ambiental, se compreendermos que o meio ambiente está além

dos limites territoriais e políticos estabelecidos pelo homem, como uma cadeia altamente inter-

relacionada de ecossistemas, com influência mútua. E isto somente será relevante para a efetiva

defesa dos recursos naturais se esta concepção for transposta para os sistemas jurídicos e para

os tomadores de decisões políticas.

723 Cf. WILSON, Edward O. A Conquista Social da Terra. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, já mencionado anteriormente.

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Não pretendemos, de nenhuma forma, afastar-nos da máxima pensar globalmente, agir

localmente. Ao contrário, estamos verdadeiramente reafirmando-a: o agir localmente exige uma

coordenação, uma ação racional, a não dispersão, um olhar holístico, voltado ao todo. A política

pública deve ser pensada tendo em vista os efeitos globais de sua implantação, ainda que com

focos locais de ação. O que não se pode aceitar, dada as características aqui demonstradas, é

um pensar localmente de modo exclusivo.

A noção das relações presentes na biosfera, tal como apresentada no trabalho, é

fundamental para compreendermos o sentido da tutela ambiental prevista na Constituição

Federal. Se os ecossistemas estão intimamente interconectados, por meio de uma relação

contínua, qualquer degradação – entendida no seu sentido mais amplo – tem um impacto não

apenas local, mas também global. Se o dano ao meio ambiente tem um resultado que transpõe

o ecossistema no qual ele ocorreu, razoável pressupor que o seu enfrentamento e sua gestão

devem ter esta peculiaridade em vista.

Neste sentido, se ao Poder Público, nos três níveis – União, Estados e Municípios –, foi

imposto o dever de preservar o meio ambiente, a respectiva atuação não pode ser exercida de

forma isolada, fragmentada, contraditória, sem intercomunicação e união de esforços para

atingir o mesmo objetivo. Esta constatação, segundo a qual o meio ambiente está inter-

relacionado, impõe a atuação conjunta e coerente dos entes federados, sob pena de transformar

em letra morta a Constituição Ecológica (ou simbólica, como discutiremos no próximo item) –

determina, portanto, coordenação724, coesão725 e cooperação726. Ora, se a Carta (no artigo 225)

atribui a todos o direito ao “meio ambiente ecologicamente equilibrado” e determina ao Poder

Público o dever de “preservá-lo, para as presentes e futuras gerações”, imaginar a atuação

desconexa dos atores políticos, sob o falso manto da defesa do meio ambiente, é ignorar a

configuração planetária dos problemas ambientais, tornando ineficiente qualquer política

724 Coordenar: Dispor ou classificar em ordem: Coordenou as suas descobertas em um sistema. vtd 2 Dispor ou arranjar na devida ordem ou na posição própria relativa: Durante a noite, os comandantes coordenaram suas unidades segundo o plano geral. vtd e vpr 3 Combinar(-se) em relação ou ação harmoniosas; harmonizar(-se): Coordenar forças políticas. Péssimo orador, cujas ideias nem sempre se coordenavam. (COORDENAR. In: DICIONÁRIO de Português Online Michaelis. São Paulo: Editora Melhoramentos Ltda, 2009. Disponível em <http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=coordenar>. Acesso em 29 out. 2014) 725 Coesão: sf (latcohaesione) 1 Fís Força em virtude da qual as partículas ou moléculas dos corpos se ligam mutuamente. 2 Associação íntima, ligação moral. Antôn: cisão. (COESÃO. In: DICIONÁRIO de Português Online Michaelis. São Paulo: Editora Melhoramentos Ltda, 2009. Disponível em <http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=coes%E3o>. Acesso em 29 out. 2014). 726 Cooperação, em especial, no sentido já debatido neste trabalho.

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pública voltada a este fim. Este seria o grande ensinamento do meio ambiente – a imposição de

uma verdadeira diretriz de enfrentamento das questões ambientais.

O exame holístico sobre a natureza deixou há muito de ser um problema metafísico,

passando a ser encarado como um viés das ciências naturais. Os organismos, as unidades, não

são a única matriz de conhecimento. Sua reunião, o conjunto, fornece elementos inexistentes

quando examinados separadamente, permitindo uma ampla compreensão do meio ambiente,

enquanto complexa rede de relações.

O bem que se deseja tutelar é amplo, transfronteiriço e, portanto, holístico. Por isto, os

problemas nele incidentes são igualmente – e cada vez mais – holísticos – poluição, efeito

estufa, mudança climática, chuva ácida, etc. Esta unidade maior que é a biosfera demonstrou

serem os efeitos nocivos sobre ela amplificados em larga escala, seja na sua dimensão espacial

ou na dimensão temporal – efeitos agora e no futuro, no local ou para além dele, diretos ou

indiretos. A Ecologia se dedica a estudar estes fenômenos, por que não o Direito?

3.2. Como aplicar o que aprendemos com o meio ambiente?

Se pudéssemos em poucas linhas sintetizar a essência deste trabalho, até este ponto,

reunindo suas partes, teríamos a seguinte equação: a norma ambiental, como todas, depende em

alguma medida do caso e do intérprete, e mais do que isto, depende de um determinado recorte

da realidade, o seu âmbito normativo dado pelo respectivo programa normativo. Diante das

características da Constituição Ecológica, o âmbito normativo das normas ambientais, no mais

das vezes, exigirá do intérprete buscar na Ecologia elementos concretos. Neste quadro, os

elementos de concretização a partir do âmbito da norma ambiental pressuporão a percepção

do meio ambiente como um padrão redes interconectadas, que relativiza os limites definidos e

impostos pelo homem e que projeta os efeitos deletérios de forma ampla no espaço e no tempo.

Mais do que isto, os elementos de concretização a partir do âmbito da norma ambiental

demonstram, ainda, um forte determinante que é a cooperação – o agir conjunto como reflexo

de uma característica da natureza e como uma perspectiva de resultados altamente positivos.

Este seria, portanto, o modelo de concretização da norma ambiental, contido na Constituição

Ecológica.

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O grande risco de se desconsiderar esta equação parece ser o próprio risco de

simbolização da Constituição Ecológica. Explicamos adiante727. Toda legislação simbólica – o

que incluiria os dispositivos constitucionais – é aquela “produção de textos cuja referência

manifesta à realidade é normativo-jurídica, mas que serve, primária e hipertroficamente, a

finalidades políticas de caráter não especificamente normativo-jurídico”728. Essencialmente, a

legislação simbólica é aquela normativamente ineficaz (que não é “regularmente observada,

aplicada, executada ou usada”729)730 e sem vigência social (relacionada à “asseguração de

expectativas”731). Trazendo para a Teoria Estruturante de Müller, na legislação simbólica “não

há uma interligação suficiente entre programa normativo (dados linguísticos) e âmbito ou

domínio normativo (dados reais)”732, vale dizer, o “âmbito da matéria [...] não se encontra

estruturado de tal maneira que possibilite o seu enquadramento seletivo no âmbito

normativo”733.

Basicamente, Neves reconhece três formas de manifestação da constitucionalização

simbólica: (i) aquela destinada à “corroboração de determinados valores sociais”, que

“confirmam as crenças e modus vivendi de determinados grupos; (ii) aquela que serve como

“fórmula de compromisso dilatório”, ou compromissos “não autênticos”, não levam “a uma

decisão objetiva alcançada através de transações, servindo exatamente para afastá-la e adiá-la”

– este compromisso assumido constitucionalmente serve senão como subterfúgio para postergar

sua solução;734-735 (iii) por fim, a constitucionalização-álibi, “não se trata de confirmar valores

de determinados grupos, mas sim de produzir confiança nos sistemas político e jurídico”736 – é

o típico caso de atender determinadas pressões se produzindo textos normativos, que não serão

efetivados na prática (há o texto, mas não existem as condições materiais necessárias à sua

efetivação).

727 Cabe frisar: a proposta primordial deste trabalho não é discutir uma “Constituição Ecológica Simbólica”, parafraseando Neves (cf. NEVES, Marcelo. A Constitucionalização Simbólica. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011). Este assunto poderia ter inúmeros desdobramentos, mas ficaremos aqui com sua menção de forma mais sintética, apenas para relacionar com a nossa discussão. 728 NEVES, Marcelo. Op. cit., p. 30. 729 Ibid., p. 51. 730 Este conceito para Neves, não se confunde com inefetividade, esta relacionada a “não-realização dos fins” (NEVES, Marcelo. Op. cit., p. 51). Uma norma eficaz, mas inefetiva, não seria conceitualmente simbólica. 731 NEVES, Marcelo. Op. cit., p. 52. 732 Ibid., p. 92. 733 Ibid., p. 92 734 Todas as citações de NEVES, Marcelo. Op. cit., p. 102/103. 735 Ainda segundo Neves, “o efeito básico da legislação como fórmula de compromisso dilatório é o de adiar conflitos políticos sem resolver os problemas sociais subjacentes. A ‘conciliação’ implica a manutenção do status quo e, perante o público-espectador, uma ‘representação’/‘encenação’ coerente dos grupos políticos divergentes” (NEVES, Marcelo. Op. cit., p. 54) 736 Ibid., p. 36.

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O risco de simbolização da Constituição Ecológica parece repousar em uma destas duas

últimas possibilidades. Não pretendemos definir com precisão maior, por uma razão bastante

simples: não nos propusemos a efetuar tal perquirição. Fato é que se afastar do âmbito

normativo da norma ambiental, com as características aqui assinaladas, servirá, em última

medida, a ressaltar o caráter simbólico da Constituição Ecológica – por ser normativamente

ineficaz e sem vigência social. Para não permitir este simbolismo é forçoso olharmos para

vieses de concretização, como forma de indicar os caminhos possíveis para a norma ambiental.

E quando se fala em concretização, podemos afirmar não ser um encargo de atribuição

exclusiva do Judiciário, como já assinalamos neste capítulo, mas também do Executivo, do

Legislativo e, especialmente, da sociedade. A sociedade concretiza no dia a dia, quando executa

suas ações cotidianas, quando “olha” para o texto constitucional e direciona seus atos da vida.

O Legislativo o fará por meio de atos próprios, como a edição de leis. Os Poderes Executivo e

Judiciário buscarão as normas gerais e concretas, para solução de casos concretos, cabendo ao

primeiro, ainda, promover a execução da legislação baixada pelo Legislativo. Já dissemos neste

trabalho: o sentido último do direito fundamental ao meio ambiente, compreendido na sua

intrínseca (e necessária) relação com o natural, seria essencial nos processos de ação estatal

anteriormente mencionados – seja na adoção de políticas públicas pelo Estado, na edição de

leis pelo Legislativo, na concretização conferida às demais regras infraconstitucionais pelo

Judiciário (na solução de demandas postas), etc.

Prosseguindo, quando falamos da concretização da Constituição Ecológica e da

construção da norma ambiental, nos aproximamos do conceito de direito fundamental. E

fizemos isto com a clara intenção de chegar a questões mais práticas, sobretudo ao abordar as

dimensões objetiva e subjetiva. A dimensão subjetiva terá sua realização no caso concreto, na

construção da norma de decisão, dentro do processo de concretização da norma ambiental,

tendo no Judiciário o grande canal de efetivação.

Tendo em vista as características deste direito fundamental, no seu processo de

concretização a dimensão objetiva tem especial destaque. Em primeiro lugar, a proteção do

meio ambiente terá reflexos na concretização das demais normas constitucionais, à medida que

as diretrizes da Constituição Ecológica perpassam todo o texto – sempre, por certo, que

chamadas pelo programa normativo de determinada norma. Esta sistemática, na visão

tradicional, refere-se à necessidade de se utilizar os direitos fundamentais na interpretação das

demais normas constitucionais – o que propomos aqui, em razão das nossas premissas ligadas

à metódica estruturante de Müller, é a consideração deste direito fundamental quando da

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concretização dos demais textos legais e constitucionais. E não é só, este direito fundamental

servirá, em alguma medida, ao controle de constitucionalidade de outros textos normativos,

retirando do mundo jurídico aqueles incompatíveis com programa constitucional. Estes são

apenas alguns exemplos; em verdade, aqueles efeitos relacionados aos direitos fundamentais,

seja na sua dimensão objetiva ou subjetiva, aqui já discutidos, são todos aplicáveis à proteção

do meio ambiente e devem ter incorporados os elementos de concretização defendidos neste

trabalho.

Deles todos, outro a merecer destaque em razão dos desdobramentos possíveis é o

denominado dever de tutela dos direitos fundamentais, que impõe um modelo de ação estatal,

por meio do qual o objetivo final é a plena realização destes direitos. Um dever de tutela que

vai além da mera abstenção, mas compreende igualmente ações positivas – o poder público

adotando medidas concretas voltadas à sua completa efetivação. Os dispositivos da

Constituição Ecológica têm um chamado ainda mais importante, pois, as suas características

(normas programáticas) demandam, no mais das vezes, um adensamento pelo legislador

infraconstitucional – vale dizer, o Legislativo, no processo de concretização, por um lado, deve

criar meios para que este direito fundamental se efetive e, por outro, não deve contrariar estes

direitos fundamentais (dupla finalidade). E vamos além: este chamado (o dever de tutela) atinge

também o Executivo, pois dele partem muitas proposições legislativas, possui um papel

relevante no processo legislativo (reserva de iniciativa, veto, influência junto à sua base de

apoio, a própria regulamentação das leis editadas, etc.) e, principalmente, é o responsável pela

execução das políticas públicas (trazendo-as efetivamente para o concreto, para a vida das

pessoas).

Com efeito, enquanto definidores e executores de políticas públicas, Legislativo e

Executivo têm uma posição de especial destaque neste processo. Integração, cooperação,

coordenação, coerência, são posturas exigíveis em maior escala destes atores políticos. Embora

o Judiciário possa ter um papel relevante na concretização da Constituição Ecológica, a

consideração das características do meio ambiente é, e precisa ser, diretriz de enfrentamento

das questões ambientais. Deve ser destacada em um momento prévio, de gestão e planejamento,

em que a participação do Judiciário é minorada em razão da sua posição dentro do modelo de

repartição de poderes no Brasil737.

737 Não é demais lembrar que o Judiciário é chamado a atuar, no mais das vezes, em momento seguinte, quando a política pública já não funciona ou é deixada de ser executada. No caso do meio ambiente, esta questão é agravada, pois quando se atua após determinado dano ou degradação, há casos em que a recuperação do meio ambiente é impossibilitada ou, ao menos, dificultada. Não queremos aqui avançar no tema do controle das políticas públicas

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Sobre o tema políticas públicas, alguns esclarecimentos conceituais são fundamentais

para que avencemos. Quando a mencionamos, trazendo a lição de Bucci, estamos fazendo

referência aos “instrumentos de ação dos governos – o government by policies que desenvolve

e aprimora o government by law”738. Ainda segundo a autora: “a função de governar – o uso do

poder coativo do Estado a serviço da coesão social – é o núcleo da ideia de política pública,

redirecionando o eixo de organização do governo da lei para as políticas”739. É relevante

trazermos tal discussão neste ponto, pois as políticas públicas não se confundem com atos

jurídicos ou normas, todavia a estes instrumentos estão relacionadas, à medida que acabam por

se tornar meios para sua realização740. A norma jurídica, inclusive a ambiental, serve para

assegurar a realização das políticas públicas, são o meio, razão pela qual se faz necessário o

estabelecimento de toda a discussão do seu processo de concretização também neste contexto.

Intuitivo dizer, igualmente, que os poderes Legislativo e Executivo possuem um papel na

formulação destas políticas, como já apontamos anteriormente. O Legislativo define “as

grandes linhas das políticas públicas, as diretrizes, os objetivos [...]”741, cabendo ao Executivo

a “realização concreta das políticas públicas”742, o que inclui “a permanência de uma parcela

da atividade ‘formadora’ do direito nas mãos do governo”743.

Como esta diretriz de enfrentamento das questões ambientais, mencionada no item

anterior deste capítulo, deve influenciar na definição de políticas públicas?744 Este é mais um

dos desafios de concretização da Constituição Ecológica, para o qual devemos nos cercar dos

subsídios determinados pela Carta. O que isto significa em termos práticos, além da solução de

conflitos concretos (a partir da construção da norma)? Não pretendemos ser impositivos,

estabelecendo respostas em numerus clausus. Apoiados nos pilares da interconexão (padrão de

rede) e cooperação, que perpassam todo o trabalho, mencionaríamos, como exemplo, a

uniformidade da tutela ambiental; o estabelecimento de políticas públicas coordenadas e

coerentes; clara repartição de competências; cooperação entre entres federados; a própria ideia

pelo Judiciário, tampouco minorar o importante papel desempenhado por este Poder, mas destacar que em matéria de meio ambiente, não se pode mitigar a importância dos demais poderes e da própria sociedade. 738 BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito Administrativo e Políticas Públicas. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 252. 739 Ibid., p. 252. 740 Ibid., p. 255. 741 Ibid., p. 269 742 Ibid., p. 270. 743 Ibid., p. 270. 744 Aqui optamos por apresentar caminhos possíveis de concretização, a partir de tal indagação. Entretanto, possivelmente esta diretriz de enfrentamento das questões ambientais seja aquilo que Bucci denomina de Ideia-diretriz, enquanto imagem de um programa ou o plano de ação de determinada política pública, verdadeiro “compromisso político” relacionado a uma ação governamental (Cf. BUCCI, Maria Paula Dallari. Fundamentos para uma Teoria Jurídica das Políticas Públicas. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 254) – esta marca, defendida por nós, talvez devesse estar presente em maior ou menor medida em todas as políticas ambientais.

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de federalismo cooperativo; o estabelecimento de um sistema de proteção, etc. Vamos

desenvolver alguns destes pontos.

Comecemos pela concepção de um sistema de proteção. A concretização da

Constituição Ecológica impõe, a nosso ver, a compreensão das bases ecológicas por trás da

ideia de um sistema nacional de proteção ambiental. Sodré já indagava na sua obra se possível

seria extrair da Constituição Federal, a partir da sua interpretação, as ideias de Sistema Nacional

e Políticas Públicas745– embora lançada em obra específica sobre o Direito do Consumidor, a

indagação foi efetuada de forma geral e parece-nos plenamente amoldável ao nosso contexto.

Oferecemos uma resposta a ela, pautados na sua aplicação ao Direito Ambiental: compreender

um sistema voltado às questões ambientais é natural e esperado no processo de concretização

da Constituição Ecológica – sobretudo pelo Executivo e pelo Legislativo, pois falamos aqui de

um sistema cuja essencialidade está na formulação e implementação de políticas públicas746.

Uma breve contextualização: uma das principais contribuições da Lei Federal nº

6.938/1981, que estabeleceu a Política Nacional do Meio Ambiente, foi a descentralização

administrativa em matéria de gestão ambiental no Brasil, que se deu, sobremaneira, com a

criação do Sistema Nacional do Meio Ambiente – SISNAMA. A norma trouxe para seu seio a

participação dos Estados e Municípios, integrando-os, juntamente com a União, em uma

reunião voltada ao compartilhamento das ações de gestão ambiental – diga-se, pela primeira

vez na história. Este diploma normativo deu voz e poder aos entes federados747, sem perder de

vista uma racionalidade de coordenação dos órgãos centrais748 – aquilo que temos falado sobre

manter a ação local, sem perder a visão global.

Mais uma vez a lição de Sodré é pontual para nos responder duas perguntas

fundamentais: o que pode ser considerado um sistema nacional de proteção ambiental e, a partir

desta definição, se o SISNAMA pode assim ser qualificado:

745 SODRÉ, Marcelo Gomes. Formação do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 158. 746 Sodré chega à mesma conclusão, ao utilizar o Sistema Nacional do Meio Ambiente para posicionar-se no tocante à sua indagação sobre a possibilidade de se extrair tais sistemas da Constituição Federal – para o autor, o conceito de Sistema Nacional do Meio Ambiente “pode ser facilmente extraído da Constituição Federal a partir da leitura do seu art. 225” (SODRÉ, Marcelo Gomes. Op. cit., p. 161). 747 Como já assinalamos em outra oportunidade, a lei em questão adotou diversas medidas como: “(i) inserção dos Estados e Municípios na estrutura do SISNAMA; (ii) reconhecimento da competência normativa dos Estados e Municípios (artigo 6º, parágrafos 1º e 2º) ; (iii) competência dos Estados para emitir licenças ambientais, sendo o licenciamento pelo IBAMA meramente supletivo (artigo 10); (iv) previsão da possibilidade de todos os entes federados criarem espaços territoriais especialmente protegidos (artigo 9º, inciso VI); (v) inserção dos Estados e Municípios diretamente na atividade de fiscalização, por meio da aplicação de sanções administrativas (artigo 14)” (RODRIGUES, Lucas de Faria. O Papel Normativo do Ibama na Gestão da Fauna e suas Implicações na Atuação do Estado de São Paulo. In: Revista de Direitos Difusos. São Paulo: v. 55, p. 43-72, setembro, 2011, p. 51-52). 748 Basta ver o órgão central do SISNAMA (Ministério do Meio Ambiente) – artigo 6º, inciso III – e o órgão normativo – Conselho Nacional do Meio Conama (artigo 6º, inciso II).

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Sistema é um termo dos mais complexos nas diversas áreas da ciência. Como este não é o tema do trabalho, vamos adotar uma definição de sistema a partir da idéia do exercício de políticas públicas (sem maiores discussões teóricas): sistema é um conjunto de instituições políticas ou sociais, estruturado de forma organizada, no qual as diversas partes se relacionam entre si, a partir de princípios ou idéias comuns, encaradas quer do ponto de vista teórico, quer do de sua aplicação prática, visando um resultado. O conceito de sistema, por este ângulo, pode ser decomposto nos seguintes elementos: (a) conjunto de instituições políticas ou sociais; (b) a partir de princípios ou idéias comuns (do ponto de vista teórico ou de sua aplicação prática); (c) visando um resultado; e (d) estruturado de forma organizada, no qual as partes se relacionam entre si. Se algum destes elementos faltar, a idéia mesmo de sistema restará comprometida749. [...] O SISNAMA é um (a) conjunto de instituições políticas, formado pelos entes federados União, Estados, Distrito Federal e Municípios – no caso, os órgãos públicos responsáveis pela proteção do meio ambiente, (b) a partir de princípios ou ideias comuns – no caso, a partir da constatação de que o meio ambiente corre grave risco de ser profundamente degradado, (c) visando um resultado – no caso, com o objetivo da manutenção e melhoria das condições ambientais de vida no planeta Terra. A grande dificuldade de implantação deste sistema diz respeito, na verdade, ao último dos requisitos exigidos: (d) estruturado de forma organizada. [...]750

Na sua obra sobre a formação do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, Sodré,

pautado na mesma lógica, ainda traz outras relevantes contribuições neste ponto. Este objetivo

ao qual o autor se refere está intimamente ligado à elaboração e implementação de políticas

públicas. Há uma proximidade entre sistemas jurídico e político (“a formulação de um sistema

jurídico é condição para a efetividade de um sistema político, mas, e ao mesmo tempo, a

formulação de um sistema jurídico é fruto das condições de efetividade de um sistema

político”751).

Todavia, talvez esta acepção mereça certa complementação, no tocante ao meio

ambiente, à luz dos fundamentos ecológicos da Constituição Federal. A discussão sobre o

SISNAMA, neste seu viés mais tradicional, neste trabalho, seria um pouco sem sentido. Trata-

se de mecanismo amplamente aceito, já estruturado e em funcionamento há mais de trinta anos.

A grande dúvida que colocamos é se as bases ecológicas do SISNAMA permitem uma leitura

que considere outros sentidos para um sistema nacional de proteção ambiental, além de mero

conjunto de órgãos voltados à proteção do meio ambiente. A existência de uma visão sistêmica

da gestão ambiental – e no estabelecimento de políticas públicas dentro desta lógica – é

fundamental para a manutenção de um meio ambiente ecologicamente equilibrado e para sua

efetiva proteção. Sem isto, estaríamos nos afastando da materialidade inerente às normas

constitucionais de proteção ambiental, deixando de observar seu âmbito normativo – “a

749 SODRÉ, Marcelo Gomes. Conflitos de Competência entre as Esferas Federal, Estadual e Municipal no Sistema Nacional de Meio Ambiente: Uma visão geral. In: SANTOS, Manoel J. Pereira dos; JABUR, Wilson Pinheiro (Coord.). Contratos de Propriedade Industrial e Novas Tecnologias. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 396. 750 Ibid., p. 399. 751 Ibid., p. 158.

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inobservância da função sistêmica torna letra morta a proteção ao meio ambiente tanto para as

presentes como para as futuras gerações, o que viola determinação constitucional”752.

Mais relevante do que a estrutura do SISNAMA – sobretudo neste ponto de absoluta

maturação do sistema – é o desejo de se estabelecer uma atuação coordenada na gestão

ambiental. Um contexto no qual haja a atuação de todos os entes, mas sem sobreposições, com

eficiência, garantindo mais efetividade na proteção do meio ambiente. A edição da Lei da

Política Nacional do Meio Ambiente teve uma importância ímpar ao prever a participação de

toda a federação na gestão ambiental e por inserir um sentido de organização para tanto. Ocorre

que com o advento da Constituição Federal esta disciplina administrativa promovida pela lei

perdeu um pouco de sua importância, por ter a Carta atribuído a todos os entes – talvez até

inspirada pela norma nacional – competência material para proteção do meio ambiente.

Defendemos, no tocante ao sistema nacional do meio ambiente, um passo seguinte,

como decorrência do processo de concretização da Constituição Ecológica. Deixar de

compreender o SISNAMA exclusivamente por seu aspecto administrativo/organizacional –

inquestionavelmente relevante, é bem verdade – e passar a uma leitura mais aberta, que

comporte comandos ao intérprete. A Constituição parece aceitar com tranquilidade um diploma

normativo que modele um sistema tal qual o SISNAMA. Entretanto, ainda que outra lei o

revogue, a concepção de um sistema permaneceria ínsita à Constituição Ecológica – claro, não

com aquele delineamento da Lei Federal nº 6.938/1981, mas como uma visão sistêmica dos

problemas ambientais, para sermos mais exatos. E o que então este sistema ou esta visão

sistêmica pressuporiam? Parece-nos que as ideias iniciais de organização e atuação coordenada

ainda estão muito presentes e devem ser amoldadas às demandas contemporâneas. Este sistema

de proteção ambiental ao qual fazemos referência parte de alguns postulados, como aqueles

mencionados insistentemente ao longo do trabalho (colaboração mútua, cooperação entre os

entes federados, tutela ambiental uniforme, políticas públicas coordenadas, repartição clara de

competências a evitar sobreposições, etc.). Este sistema de proteção ambiental seria a própria

tradução do âmbito normativo das normas ambientais, por refletir as características essenciais

do meio ambiente.

É possível afirmar que a Carta não apenas é compatível com a ideia de um sistema

nacional de proteção ambiental (como é o SISNAMA), mas também pressupõe necessariamente

a existência de um sistema de proteção ambiental, enquanto um modo de enxergar os problemas

752 RAMOS, Alessander Marcondes França. A Visão Sistêmica e o Poder Regulamentar do CONAMA. In: MILARÉ, Édis; MACHADO, Paulo Affonso Leme (Org..). Doutrinas Essenciais Direito Ambiental – Vol. IV – Tutela do Meio Ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 27.

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ambientais e formular as soluções necessárias. Para isso é forçoso deixarmos de enxergá-lo

apenas como mera “articulação dos órgãos ambientais existentes e atuantes em todas as esferas

da Administração Pública”753, como consequência do enfoque ecológico de um sistema de

proteção ambiental.

Devido, entretanto, à complexidade do universo ambiental, o método cartesiano – enfatizando as partes – embute o risco de perder a visão holística. Ora, sabendo que quando se trata de meio ambiente, por mais importante que seja o conhecimento das partes, todas elas, absolutamente todas, mantêm um vínculo de relacionamento vital entre si; daí a importância da visão sistêmica que deve orientar o estudo das questões ambientais do planeta Terra, seja do Brasil, seja dos estados, seja das regiões metropolitanas. [...]754

Um sistema de proteção ambiental, por ser pressuposto da defesa do meio ambiente,

impõe sua identificação também como uma diretriz de enfrentamento das questões ambientais,

como um elemento de concretização da norma ambiental (por pertencer ao seu âmbito

normativo). A norma ambiental, de forma potencial755, traz na sua formulação o olhar sistêmico

sobre os problemas ambientais. É a incorporação do padrão de redes (a interconexão, as inter-

relações, a teia da vida) no processo de formatação da norma jurídica (com as consequências

daí decorrentes: cooperação, coordenação, coesão, racionalidade na ação estatal, etc.). Embora

a lei tenha sido fundamental para atribuir concretude ao SISNAMA, a idealização de um sistema

de proteção ambiental sempre deve ser uma condição determinante na atividade do intérprete,

neste modelo acima exposto. Por fim, o SISNAMA em si não é apenas um sistema político e

jurídico, é também ecológico por excelência, ao incorporar a concepção de conectividade,

tal como ocorre com os ecossistemas da Terra.

Esta questão da visão sistêmica está intimamente ligada à outra: a gestão ambiental,

entendida como “o ato de gerir o ambiente, isto é, o ato de administrar, dirigir ou reger as partes

constitutivas do meio ambiente”756. Vê-se, assim, que o conceito de gestão ambiental relaciona-

se a outro apresentado anteriormente, o de políticas públicas. Ao se praticar atos de gestão, em

última medida está a se realizar concretamente as políticas públicas. A Constituição Ecológica,

753 MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 309. 754 PHILIPPI JR, Arlindo; BRUNA, Gilda Collet. Política e Gestão Ambiental. In: PHILIPPI JR, Arlindo; ROMÉRO, Marcelo de Andrade; BRUNA, Gilda Collet (ed.). Curso de Gestão Ambiental. Barueri, SP: Manole, 2004, p. 698. 755 Potencial porque, como já dissemos, a norma não existe previamente, dependerá de situações concretas para que surja. Assim, no processo de concretização da norma ambiental, esta visão sistêmica será utilizada tanto quanto for exigido pelo seu programa normativo. Claro que quando extraímos da Constituição a imposição de uma visão sistêmica, ela encontra limites, que são aqueles expressos no próprio texto constitucional. A norma será construída sempre a partir de um olhar multifacetado à Carta, que considere também os aspectos da Ecologia, mas não exclusivamente a Ecologia. A grande questão é: onde houver abertura, onde o programa da norma impuser, este olhar sistêmico e integrado das relações deve prevalecer. 756 PHILIPPI JR, Arlindo; BRUNA, Gilda Collet. Op. cit., p. 700.

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dada suas características essenciais, impõe a efetivação da gestão de forma integrada, na qual

os entes federados mesmo atuando autonomamente, o façam de forma coordenada.

O fato de as diversas áreas que compõem o complexo ambiental estarem estreitamente correlacionadas fornece as bases para dar início ao estabelecimento de propostas de gestão ambiental que abranjam as complexidades do meio ambiente fundamentadas numa integração físico-territorial, social, política, econômica e cultural757.

Uma ressalva é relevante e devemos reiterar. Falar neste sistema de proteção ambiental,

que impõe a gestão ambiental integrada, não significa negar a importância da gestão local de

questões ambientais. Há uma inegável relevância na atuação daqueles entes que estão mais

próximos dos problemas efetivamente enfrentados – prática que foi reconhecida pela Lei

Federal nº 6.938/1981 e consagrada pela Constituição Federal. O ponto é outro: não se pode

perder de vista, nesta atuação, o caráter global das ações, ainda que executadas localmente. Elas

devem partir de uma disciplina comum, voltada para a garantia máxima de proteção ao meio

ambiente, que, como já dissemos insistentemente, não observam as delimitações espaciais e

políticas efetuadas pelo homem.

Tendo adotado o Brasil um sistema federativo, é concedida autonomia a cada uma das unidades federativas. Para os assuntos ambientais, foi determinada competência legislativa privativa à União em determinadas questões; e outras concorrentes distribuídas aos demais, sobrando ao município material legislar suplementarmente e sobre assuntos de interesse local. Em termos materiais, foi estabelecido o regime de competência comum – incumbindo à todas as entidades federativas executarem as medidas de proteção do meio ambiente. Na realização de suas funções, por vezes, os municípios ignoram a macro zoneamentos, gerenciamentos transmunicipais e diretrizes gerais estabelecidos por outros entes federativos; e, por vezes, estados ignoram as particularidades dos municípios. Ambas as situações trazem problemas de conflitos entre as entidades, provocando falhas no sistema de gerenciamento ambiental local e regional, o que repercute, por fim, no fracasso das próprias políticas nacionais. Por esta razão, é essencial a extração, [...], da orientação de se optar pela abordagem integrada. A edição de normas que coadunam a gestão ambiental local com a regional e a nacional é uma importante medida a esse respeito758.

Voltando a falar sobre as políticas públicas, mais especificamente sobre as políticas

públicas ambientais, nossa proposta definitivamente não é inovadora – embora, talvez, na sua

forma de sistematizar, possua algumas peculiaridades. Ainda que partindo de caminhos outros,

D'Isep apresenta sua classificação para as políticas públicas ambientais, dividindo-as em três

grupos. As autônomas (ou setoriais) “ têm por objeto a proteção dos microbens ambientais

isoladamente (água, ar, floresta, biodiversidade...)” 759. É importante não se confundir:

757 PHILIPPI JR, Arlindo; BRUNA, Gilda Collet. Política e Gestão Ambiental. In: PHILIPPI JR, Arlindo; ROMÉRO, Marcelo de Andrade; BRUNA, Gilda Collet (ed.). Curso de Gestão Ambiental. Barueri, SP: Manole, 2004, p. 698. 758 PEDRO, Antonio Fernando Pinheiro; FRANGETTO, Flávia Witkowski. Direito Ambiental Aplicado. In: PHILIPPI JR, Arlindo; ROMÉRO, Marcelo de Andrade; BRUNA, Gilda Collet (ed.). Curso de Gestão Ambiental. Barueri, SP: Manole, 2004, p. 643. 759 D´ISEP, Clarissa Ferreira Macedo. Políticas Públicas Ambientais: da definição à busca de um sistema integrado de gestão ambiental. In: D´ISEP, Clarissa Ferreira Macedo; NERY JUNIOR, Nelson; MEDAUAR, Odete.

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autônomo não significa de forma alguma soberano, vale dizer, tais políticas devem manter um

senso de organização e coerência, não perdendo a lógica de globalidade por de trás delas –

autônomo tem mais sentido se aproximado à ideia de descentralização. Neste sentido, parece

ser a própria concepção de D´Isep, ao afirmar que deve “ser promovida de forma coerente pelos

diferentes entres federativos, assegurando-lhes o tratamento vertical normativo, executivo e

fiscalizador” – o que é alcançado, em parte, pela legislação de caráter nacional, atribuindo certa

racionalidade para a gestão específica de determinados bens.

As políticas integradas, “são políticas horizontais, [...] que resultam na formação de

microssistemas regulatórios e executivos da gestão pública ambiental, efetivando o escopo da

Política Nacional de Meio Ambiente, qual seja, de preservação da qualidade e equilíbrio

ambiental”760. Aqui a autora traz grande parte do mote que vimos defendendo ao longo deste

trabalho. Seriam estas políticas públicas resultado da relação com as políticas autônomas, dada

a unidade do meio ambiente. Desta característica, o caráter unitário, D´Isep extrai máximas de

harmonia e coerência, trazendo relevantes exemplos: “coordenação entre as licenças

ambientais”, “integração entre o plano diretor e o plano hídrico”761. Poderíamos mencionar,

ainda, a fiscalização ambiental e a necessidade de sua realização de forma coordenada pelos

entes federados, sem sobreposição das autuações. Em parte, já aqui, não podemos concordar

com D´Isep, pois também as ditas políticas setoriais (ou autônomas) também almejam, em

última análise, realizar o escopo da Política Nacional do Meio Ambiente.

Por fim, D´Isep apresenta as políticas sistêmicas, prevendo a “necessidade de integrar

todos micro e macrossistemas ambientais e demais políticas de desenvolvimento

socioeconômicas, de forma a compatibilizar suas disposições e assegurar a eficiência da gestão

ambiental [...] e vivificar o princípio do desenvolvimento sustentável”762. E assim a autora

resume o papel do Direito neste processo:

A contribuição jurídica para a criação da metodologia de sistema de gestão ambiental holístico que se pretende não é pequena. Certo é que o lastro jurídico que o fundamenta está presente em nosso ordenamento jurídico. Para identificá-lo, é necessário que se dê alcance e sentido às disposições das normas, que vão desde os critérios de competência ambiental à aplicação dos princípios da teoria geral do direito e de direito ambiental até a hierarquia das leis etc., porque o próprio direito já se revela

Políticas Públicas Ambientais: Estudos em homenagem ao Professor Michel Prieur. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 166. 760 D´ISEP, Clarissa Ferreira Macedo. Políticas Públicas Ambientais: da definição à busca de um sistema integrado de gestão ambiental. In: D´ISEP, Clarissa Ferreira Macedo; NERY JUNIOR, Nelson; MEDAUAR, Odete. Políticas Públicas Ambientais: Estudos em homenagem ao Professor Michel Prieur. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 167-168. 761 Ibid., p. 168. 762 Ibid., p. 169.

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em um sistema integrado, dotado de caráter unitário, isto é, um todo uno e indivisível763.

Trouxemos a lição de D´Isep por ser autora que dedicou sua produção acadêmica a

discutir parte do tema ora debatido. A visão aplicada sobre políticas públicas parte de premissas

muito parecidas com aquelas por nós delineadas (a unidade do meio ambiente e as

consequências trazidas no enfretamento das questões inerentes), trazendo exemplos muito

profícuos. Contudo, parece-nos que a autora se esforça para categorizar elementos que não

seriam talvez categorizáveis, ao menos não na forma proposta. Não há nestas categorias

verdadeiramente características que imponham a classificação proposta. Ela fala ao mesmo

tempo em coerência e coordenação da cogestão ambiental das políticas autônomas; fala em

diálogo entre políticas setoriais quanto às políticas integradas; fala em coordenação e

integração quanto às políticas sistêmicas. Em essência, parecem todos esses elementos de

tamanha similitude, todos relacionados à ideia de integração e, portanto, com características

homogêneas. Não desconhecemos que as políticas públicas ambientais concretizar-se-ão de

modos e intensidades distintos, mas sempre tendo em vista que “na Natureza como na sociedade

existe uma teia visível e invisível de interdependências e relacionamentos através dos quais

mudanças em uma determinada área se propagam às demais, provocando reações em cadeia de

consequências imprevisíveis”764.O holismo aplicado às políticas públicas ambientais, como

demanda do natural, – o que perpassa toda a classificação proposta por D´Isep, no que

concordamos –, traz consigo o imperativo de “soluções articuladas no espaço de um mesmo

território”765, o imperativo da integração, da coordenação, independentemente das categorias

propostas766-767.

763 D´ISEP, Clarissa Ferreira Macedo. Políticas Públicas Ambientais: da definição à busca de um sistema integrado de gestão ambiental. In: D´ISEP, Clarissa Ferreira Macedo; NERY JUNIOR, Nelson; MEDAUAR, Odete. Políticas Públicas Ambientais: Estudos em homenagem ao Professor Michel Prieur. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 169. 764 CAMARGO, Aspásia. Governança. In: TRIGUEIRO, André. Meio Ambiente no Século 21. Campinas, SP: Armazém do Ipê, 2008, p. 318. 765 Ibid., p. 318. 766 Autores de Direito parecerem ter uma insaciável ânsia classificatória. 767Embora estejamos aqui a fazer um esforço argumentativo voltado a extrair da Constituição Ecológica um imperativo para a ideia de “sistema”, o caráter sistemático das políticas públicas, de modo geral, é característica intrínseca ao próprio conceito de política pública ou, melhor dizendo, à própria tentativa de se construir uma “teoria jurídica das políticas públicas”, como fez Bucci na sua mais recente obra (Cf. BUCCI, Maria Paula Dallari. Fundamentos para uma Teoria Jurídica das Políticas Públicas. São Paulo: Saraiva, 2013). “[...] O traço a destacar no arranjo institucional, portanto, é seu caráter sistemático, de ordem, que atua graças, em grande medida, à coesão proporcionada basicamente pelos instrumentos jurídicos. No ambiente caótico da multiplicidade de normas e estruturas, o arranjo institucional se configura como ordem definida, que permite visualizar seus contornos, distinguindo-o do ambiente de normas e decisões circundante” (BUCCI, Maria Paula Dallari. Op. cit., p. 250-251). E prossegue a autora: “O caráter sistemático das políticas públicas é o que possibilita enfrentar a fragmentação ou desarticulação da ação governamental, evoluindo no sentido do desenvolvimento. Esses problemas apresentam-se tanto no âmbito intragovernamental, quando a ação depende do envolvimento sistemático de vários polos de competência com atribuição sobre o tema, como extragovernamental, ou quando o sucesso da ação governamental

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As múltiplas relações na natureza, que estão ligadas por redes incontáveis (tudo está,

ainda que indiretamente, interconectado), trazem intrinsecamente a necessidade de cooperação

entre os diversos atores envolvidos – o que inclui Estados nacionais, entes federados e até

mesmo a sociedade (seja ela organizada, por meio de ONGs por exemplo; ou não, quando se

pensa em cada indivíduo). Cooperação como um agir conjunto, de forma racional, para que se

obtenha o melhor resultado no tocante à preservação do meio ambiente. Discutimos já neste

trabalho o sentido atribuído à cooperação, restando, a nosso ver, voltar-se para a realidade mais

concreta, trazendo-a especificamente para o Direito.

Quando falamos em cooperação, no contexto brasileiro, este assunto ganha ainda mais

relevância, pois a Constituição Federal, no artigo 23, previu competência material768 comum (a

todos os integrantes da federação: à União, Estados e Municípios) em matéria ambiental –

incisos VI, VII e XI769. Na “competência comum ocorre uma descentralização de encargos em

matérias de grande relevância social, que não podem ser prejudicadas por questões de limites e

espaços de competência”770. Porém, esta é uma via de mão dupla. Por um lado, impõe-se a

“concorrência de atuação nas matérias que o dispositivo arrola”771, por outro, prevê no mesmo

dispositivo (parágrafo único), como só poderia ser, um certo balizamento, nos seguintes termos:

“Leis complementares fixarão normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito

Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em

âmbito nacional”. O artigo 23 traz como comando expresso o dever de cooperação, cujo intuito

maior, como já afirmamos em trabalho anterior, é o de afastar atuações fragmentadas,

está relacionado ao comportamento de agentes externos ao corpo governamental” (BUCCI, Maria Paula Dallari. Fundamentos para uma Teoria Jurídica das Políticas Públicas. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 250-253). 768 “[...] as competências materiais comuns, listadas no artigo 23 e repartidas igualmente entre todos os entes federados, consistem na ‘prestação dos serviços referentes àquelas matérias, à tomada de providências para sua realização’” (SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 9ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2011, p. 79). 769“Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: [...] VI - proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas; VII - preservar as florestas, a fauna e a flora; [...] XI - registrar, acompanhar e fiscalizar as concessões de direitos de pesquisa e exploração de recursos hídricos e minerais em seus territórios; [...]”. 770 LOBO, Paulo Luiz Neto. Competência legislativa concorrente dos estados-membros na Constituição de 1988, p. 100 apud ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Competências na Constituição de 1988. 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2010, p. 113. 771 ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Op. cit., p. 113.

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excludentes e, por que não, sobrepostas772. Repousa aí o fundamento normativo para o modelo

de federalismo de cooperação.

O Brasil seguiu o modelo do federalismo cooperativo, o que, segundo Bercovici, ‘se justifica pelo fato de que, em um Estado intervencionista e voltado para a implantação de políticas públicas, como o estruturado pelo Constituição de 1988, as esferas subnacionais não têm mais como analisar e decidir, originariamente, sobre inúmeros setores da atuação estatal, que necessitam de um tratamento uniforme em escala nacional´, o que torna o federalismo cooperativo ‘o federalismo adequado ao Estado Social’773

Dentre as características deste modelo está a necessidade de “atuação conjunta e

coordenada de todas as esferas de Poder na provisão de serviços essências e no exercício de

algumas atividades necessárias ao bem estar da população”774. Ademais, ele “não dispõe de

fronteiras claramente definidas na questão da distribuição de competências dentre os níveis

autônomos de poder”775.

Quando a Constituição menciona cooperação, “dá voz” a um comando que é inerente

ao modelo de gestão dos bens ambientais e, portanto, à própria Constituição Ecológica.

Expressa aquilo que seria implícito. Por certo, esta revelação é parcial, pois o dispositivo cuida

especificamente de competências e, quando pensamos em cooperação como um elemento

peculiar à Constituição Ecológica, tem-se um elemento muito mais amplo. Haveria, por assim

dizer, um federalismo de bases ecológicas, que conteria como seu elemento concretizador não

só demandas clássicas deste dispositivo, mas uma demanda por cooperação efetiva e ampla

entre os entes federados.

Especificamente quanto às competências materiais, devemos concretizar o texto do

parágrafo único do artigo 23 como uma imposição à União de delimitar a competência prevista

nos incisos do mesmo artigo, por deter a prerrogativa constitucional de editar normas gerais

nacionais. O intuito final deste dispositivo é evitar, ou pelo menos minorar, conflitos, e, em um

contexto de recursos financeiros e materiais escassos, racionalizar a execução destas atividades.

Igualmente como já apontamos em trabalho anterior776, o artigo 23 não se refere à “titularidade

772 RODRIGUES, Lucas de Faria. Autuações Concorrentes e as Infrações Administrativas Ambientais: A Disciplina da Lei Complementar nº 140/2011. In: Revista da Escola Superior da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. São Paulo: v. 04, p. 185-223, p. 191. 773 KRELL, Andreas Joachim. Leis de Normas Gerais, Regulamentação do Poder Executivo e Cooperação Intergovernamental em Tempos de Reforma Federativa. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 48-49. 774 GRECO, Leonardo. Competências Constitucionais em Matéria Ambiental. In Revista dos Tribunais. São Paulo: vol. 687, p. 23-33, janeiro, 1993, p. 24. 775 ZIMMERMANN, Augusto. Teoria Geral do Federalismo Democrático. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 57. 776RODRIGUES, Lucas de Faria. Op. cit., p. 192.

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de serviços ou ações administrativas”777, porém, ao contrário, aponta para “a necessidade de

definição de estratégias para implementação cooperada e integrada de medidas que expressem

o alcance de finalidades comuns aos diversos entes federativos”778.

A Carta da República prevê, no parágrafo único do art. 23, a edição de lei complementar federal, que disciplinará a cooperação entre os entes para a realização desses objetivos comuns. A óbvia finalidade é evitar choques e dispersão de recursos e esforços, coordenando-se as ações das pessoas políticas, com vistas à obtenção de resultados mais satisfatórios779. (grifo nosso)

Assegurar à União “o comando geral no campo das competências materiais comuns a

partir do comando legislativo que lhe pertence”780, parece ser reflexo da necessidade de se

estabelecer ações e políticas públicas integradas e coordenadas. Se não se reserva à União esta

tarefa – por meio de um processo legitimado no seio da sociedade e das Casas Legislativas –,

impossível se garantir o atingimento destes objetivos assinalados. Estes textos normativos

deverão “fixar as bases políticas e as normas operacionais disciplinadoras da forma de execução

dos serviços e atividades cometidos concorrentemente a todas as entidades federadas”781. Com

isto possibilitar-se-á alocar mais eficientemente recursos públicos, facilitar o controle social e

assegurar a efetiva proteção do meio ambiente, pois, neste último caso, evitam-se possíveis

omissões do poder público, ações que sejam colidentes ou mesmo de baixa ou nenhuma

eficácia. “Assuntos de interesse comum entre os diversos entes estatais devem ser realizados de

modo coordenado. A conjugação de esforços para a resolução de problemas comuns visa

alcançar melhores resultados”782-783.

777 DINO NETO, Nicolao. Introdução ao Estudo das Infrações Administrativas Ambientais. In Revista dos Tribunais OnLine – Revista de Direito Ambiental. São Paulo: n. 62, abril-junho, 2011. Disponível em <http://www.rtonline.com.br>. Acesso em 31 de maio de 2012, p. 11. 778 Ibid., p. 11. 779 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 954. 780 ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Competências na Constituição de 1988. 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2010, p. 117. 781 Ibid., p. 117. 782 GUIMARÃES, Verônica Bezerra. As Competências Federativas para o Controle da Poluição do ar Causada por Veículos Automotores. In: KRELL, Andreas J.; MAIA, Alexandre da. A Aplicação do Direito Ambiental no Estado Federativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 220. 783 Bucci, na busca de uma Teoria Jurídica das Políticas Públicas, dedica um tópico ao regime de competências, contribuindo de forma significativa para a discussão que agora pretendemos tocar. Para a autora, na “[...] linguagem da gestão pública, fala-se na articulação de competências, o que sem dúvida é um aspecto primordial para a execução das etapas de implementação da política pública, cujo objeto é, em geral, multifacetado e multidisciplinar. Dada a magnitude do resultado e das metas a atingir, a execução do programa de ação depende de um feixe de manifestações, decisões e medidas concretas, que se assentam sobre vários centros de decisão administrativa e política. Essas manifestações devem ocorrer em articulação, seja por coordenação, isto é, em condições de equivalência entre vários centros de competência, seja por subordinação, sob a direção de um deles. A competência pode ser direta, para a decisão, ou indireta, para os atos a ela subordinados, tais como os atos de instrução, dos quais a decisão depende” (BUCCI, Maria Paula Dallari. Fundamentos para uma Teoria Jurídica das Políticas Públicas. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 263)

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Foi neste sentido que, buscando concretizar a Constituição, foi editada a Lei

Complementar nº 140/2011, com o intuído de fixar normas de cooperação entre os entes

federados nas ações administrativas relacionadas à competência comum ambiental – artigo 1º,

caput. O diploma normativo acabou por outorgar à União, Estados e Municípios atribuições

específicas, organizando a execução destas competências.

Como afirmamos, mais do que distribuir competências, o artigo 23 instituiu verdadeira diretiva voltada à cooperação entre os entes federativos. Tal espírito é não só o fundamento da Lei Complementar nº 140/2011, como também constitui parte do seu corpo de normas. O artigo 4º listou diversos instrumentos voltados à cooperação e o artigo 5º possibilitou ao ente federativo, até mesmo, delegar a execução de ações administrativas de sua alçada. O objetivo da lei complementar nunca foi o de estabelecer separações estanques de competências, mas, em verdade, de racionalizar a execução das atividades ligadas à proteção do meio ambiente. Cabe aos atores envolvidos sentarem à mesa e efetivarem um diálogo sério e constante, no qual se estabeleçam linhas e campos claros de atuação. Nesta seara será possível – e também legítimo – considerar eventuais deficiências de um ou outro, ou mesmo as potencialidades de outros tantos. [...]784.

Definitivamente não nos propusemos a estudar este texto normativo, portanto, cumpre

apenas mencioná-lo, por significar um exemplo claro de como é possível se atender aos

reclamos constitucionais neste ponto. A lei pode ter acertos e desacertos, ser ainda considerada

constitucional ou inconstitucional (no exercício de verificação vinculativo do Supremo

Tribunal Federal, pois há Ação Direta de Inconstitucionalidade questionando-a785), mas veio

com um viés claro de solução de problemas cotidianos da ação ambiental e de reconhecimento,

no campo normativo, da necessária e inafastável cooperação entre todos os atores.

Como dissemos, porém, não se trata apenas de abordar a cooperação neste aspecto

ligado às competências ambientais. Há um chamado maior, que talvez passe pela

internalização de alguns elementos de especial importância presentes na agenda internacional.

No Fórum de Siena (1990), a cooperação foi ponto central, no qual se delinearam algumas ações

voltadas a este fim: “as obrigações de cooperação relativa à informação, à notificação, à

assistência mútua e à negociação”786.

Este modelo assumiria o estabelecimento de redes de comunicação efetivas e amplas,

que tivessem de algum modo uma coordenação, para que todos os entes pudessem se valer

destes mecanismos. Exigiria uma troca de informações, para viabilizar ações comuns que

pudessem minimizar eventuais danos ao meio ambiente, ou mesmo para noticiar a outros entes

784 RODRIGUES, Lucas de Faria. Autuações Concorrentes e as Infrações Administrativas Ambientais: A Disciplina da Lei Complementar nº 140/2011. In: Revista da Escola Superior da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. São Paulo: v. 04, p. 185-223, p. 216. 785 Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4757, Supremo Tribunal Federal. 786 DANTAS, Juliana de Oliveira Jota. A Soberania Nacional e a Proteção Ambiental Internacional. São Paulo: Editora Verbatim, 2009, p. 58.

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a adoção de uma ou outra postura que pudesse comprometê-los mutuamente787. Já existe no

Brasil, sob o aspecto formal, mecanismo com esta finalidade, o Sistema Nacional de

Informações sobre o Meio Ambiente (SINIMA), previsto na Lei Federal nº 6.938/1981788. Neste

contexto, o Cadastro Ambiental Rural, trazido pelo controverso Novo Código Florestal (Lei

Federal nº 12.651/2012) e criado no âmbito do SINIMA, pode ser uma ferramenta de suporte

bastante relevante no processo de inventariar o patrimônio florestal nacional e

consequentemente de intercâmbio destas informações em âmbito nacional.

Outro viés relevante é a cooperação técnica, cujos exemplos poderiam ser a aceitação

de treinamento de profissionais de outras esferas de poder ou mesmo de outras nações; o envio

de pesquisadores e experts para outros centros de tecnologia, pesquisa e conhecimento; o ajuste

de ações conjuntas, para o atingimento de fins mutuamente relevantes789. Por fim, a assistência

ambiental, com exemplos interessantes em âmbito internacional (Agência de Cooperação

japonesa, v.g.790), poderia ser transposta para âmbito nacional, sobretudo se pensarmos em uma

lógica que vá dos entes federados mais abrangentes aos menos abrangentes (União auxiliando

Estados e Municípios; Estados auxiliando Municípios), ou mesmo – em uma realidade um tanto

quanto idealizada, reconhecemos – de entes mais capacitados financeira e tecnologicamente

auxiliando entes em situação oposta, mas cujas relações são essenciais para a salvaguarda de

bens comuns.

Em suma, cooperar, tal qual em âmbito internacional – pois seria decorrência de um

princípio de Direito Internacional791 – não é facultativo. Há um chamado da Constituição

Ecológica neste sentido, inserido nos elementos constitutivos das normas que a compõe, pois

decorrentes do âmbito normativo de grande parte delas. Textos normativos poderão dar um

sentido para esta cooperação, mas não serão eles condicionantes. Cooperar é preciso não por

que haja um consenso sobre eventuais vantagens de assim proceder – pode ser também por isso,

mas não somente por isso. Há um sentido no natural que remete à cooperação, pois este é um

postulado presente na natureza, como uma demanda de agir conjunto. Mais do que isto, é

demanda da natureza pelo seu padrão de redes – se não há delimitações espaciais possíveis,

tampouco pode se imaginar soluções localizadas para problemas que sejam mais amplos. A

787 DANTAS, Juliana de Oliveira Jota. A Soberania Nacional e a Proteção Ambiental Internacional. São Paulo: Editora Verbatim, 2009, p. 59-60. 788 Não é esta a proposta do trabalho, tampouco temos elementos para avaliar a efetividade do SINIMA. Fato é que se trata de mecanismo já existente e implantado. 789 DANTAS, Juliana de Oliveira Jota. Op. cit., p. 58. 790 Ibid., p. 59. 791 Ibid., p. 59.

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convergência nas ações, no planejamento e também na produção normativa é essencial para

bem enfrentarmos os problemas contemporâneos do meio ambiente.

3.3. Uma reflexão final

Antes de “fecharmos este capítulo de fechamento”, seria interessante fazer uma

reflexão, deixando certa provocação no ar. Quando delimitamos nosso caminho ainda na

introdução, deixamos claro qual característica do meio ambiente buscávamos, para, a partir daí,

identificar seus reflexos no Direito. E o fizemos, apontando a busca pela ideia de cooperação e

do padrão de redes (a interconexão). Claro, o mergulho nas ciências naturais mostrou a

grandiosidade da natureza e das suas relações, muito relevantes para a definição das ações

voltadas à tutela do meio ambiente. Neste caminhar, deparamo-nos com uma, que por si só,

talvez rendesse outro capítulo ou mesmo outras considerações. Não é este o momento para

trazê-la de forma mais profunda, mas, certamente, serve este espaço para lançarmos este

elemento, abrindo espaço para outras reflexões sobre o assunto no futuro.

Para isso, reproduzimos trecho de uma obra de respeitado autor quando se pensa em

questões relacionadas ao meio ambiente. Embora não seja essencialmente um biologista, é

reconhecidamente um grande naturalista, Boff, e o que escreve é ponto pacífico para as ciências

naturais:

Na vida transparece o que seja um sistema aberto. Ela é simbiótica, quer dizer, vive da troca de matéria e energia com o meio circundante. Somente subsiste e se desenvolve na medida em que está longe do equilíbrio. Se chegar ao equilíbrio termodinâmico significa que morreu. O cadáver em decomposição começa a virar pó. A situação de não-equilíbrio faz com que o organismo vivo busque sempre um equilíbrio dinâmico e desenvolva a luta contra a entropia. E o faz mediante as assim chamadas estruturas dissipativas, termo criado pelo grande cientista russo-belga Ilya Prigogine, prêmio Nobel de química de 1977792.

Por serem sistemas abertos, os sistemas vivos, ao contrário do que o senso comum

indica, estão distantes do equilíbrio; embora sejam estáveis, em razão de suas principais

características – o “fluxo e uma mudança contínuos no seu metabolismo, envolvendo milhares

de reações químicas”793. O equilíbrio, seja ele químico ou térmico, só acontecerá efetivamente

792 BOFF, Leonardo. O Despertar da Águia: o dia-bólico e o sim-bólico na construção da realidade. 23ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012, p. 89. 793 CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 149.

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com a morte do organismo, quando sua atividade cessar794-795. Este estado, entretanto, mantém-

se estabilizado por longos lapsos temporais, mantendo a mesma estrutura (mesmo estando em

constante modificação e vivenciando contínuo movimento de matéria)796. Daí a célebre

passagem de Capra:

Em vez de ser uma máquina, a natureza como um todo se revela, em última análise, mais parecida com a natureza humana – imprevisível, sensível ao mundo circunvizinho, influenciada por pequenas flutuações. Conseqüentemente, a maneira apropriada de nos aproximarmos da natureza para aprender acerca da sua complexidade e da sua beleza não é por meio da dominação e do controle, mas sim, por meio do respeito, da cooperação e do diálogo. [...] ‘Atualmente’, reflete Prigogine, ‘o mundo que vemos fora de nós e o mundo que vemos dentro de nós estão convergindo. Essa convergência dos dois mundos é, talvez, um dos eventos culturais importantes da nossa era.’797

Esta constatação, embora singela, tem a força de lançar dúvidas sobre a própria

concepção que temos do texto constitucional. O que é possível extrair do artigo 225 da

Constituição Federal quando menciona “meio ambiente ecologicamente equilibrado”? O

constituinte foi atécnico? Ou o que se busca não é verdadeiramente este sentido? Talvez o que

se veja é o uso vulgar, ou corrente do termo. Não pode ser este um empecilho no processo de

concretização da norma. Parece-nos ser plenamente possível construir a norma a partir deste

dispositivo, sabedores de que o texto neste caso não é um vetor tão forte no processo de

concretização, sendo absolutamente necessário recorrer a outros elementos quando da

construção da norma.

Pensamos, porém, que o maior desafio por de trás desta característica não é

propriamente o de buscar um sentido para o texto constitucional – este, por força de ofício, é o

desafio cotidiano do operador do Direito. Instiga-nos verdadeiramente a dinâmica do natural e

suas consequências na produção normativa. Como reflexo das características da norma

ambiental, temos que ela não pode ser estática, pois “os sistemas ecológicos não são estruturas

imutáveis”798. A norma hoje, pode não ter sido a norma de ontem, tampouco ser a norma de

amanhã – não obstante, muitas vezes, o texto seja o mesmo. As demandas do meio ambiente

são absolutamente variáveis e não comportariam, sob este enfoque, soluções rigorosas no tempo

– vale dizer, a concretização da norma ambiental variará conforme o momento histórico/natural

794 CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 149. 795 Por isto, os organismos diferenciam-se dos sistemas fechados, pois estes caracterizam-se pelo equilíbrio – absolutamente incompatível com o fluxo de matéria presente nos sistemas abertos, que são, por esta razão, estacionários (CAPRA, Fritjof. Op. cit., p. 54). 796 Ibid., p. 158. 797 Ibid., p. 158. 798 BARBAULT, Robert. Ecologia Geral: Estrutura e Funcionamento da Biosfera. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 15.

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em que é concretizada (o que a doutrina constitucionalista reconhece por mutação

constitucional). O “[...] universo como um sistema aberto é capaz de emergências imprevistas

e a partir daí realizar sínteses novas”799. Paramos por aqui. Este tema, por si, renderia outras

tantas linhas e desdobramentos. Deixamos o registro, para quem sabe, voltarmos a ele no futuro.

799 BOFF, Leonardo. O Despertar da Águia: o dia-bólico e o sim-bólico na construção da realidade. 23ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012, p. 86.

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CONCLUSÃO

Salientamos ainda na introdução que não desejávamos transformá-la em um roteiro do

que seria tratado ao longo da nossa exposição; tampouco queremos, agora, fazer da conclusão

um resumo do que concluímos ao longo do trabalho. Não há espaço para repetições meramente

retóricas. Mais do isto, seria absolutamente desnecessária qualquer conclusão neste sentido,

pois o fim almejado inicialmente talvez tenha sido alcançado no último capítulo. A própria

concepção da dissertação pressupõe partes que se compõe e se comunicam, não havendo como

se compreender o verdadeiro sentido do que propomos sem olhar o todo – há uma lógica reunida

nos três capítulos centrais, circular, a impor um exame conjunto. Assim, queremos tratar a

introdução mais como um prólogo e a conclusão como um epílogo – menos nos seus sentidos

mais tradicionais.

Dissemos, igualmente na introdução, que este é um ensaio sobre a natureza. O que se

mostrou – e, neste ponto, se isto for relativamente tranquilo para o leitor, conseguimos alcançar

nosso objetivo – é que só reconhecendo a essência da natureza, poderemos pensar na

institucionalização da sua proteção. Os problemas ambientais contemporâneos, vistos sem a

demagogia de muitas bandeiras atuais, só podem ser enfrentados quando identificamos seus

principais atributos e passamos a tê-los como norte das políticas públicas ambientais. Destas

características, poderíamos destacar várias, mas aqui focamos em algumas delas – a cooperação

e o padrão de rede (ou interconexão). Esta é a matriz, embora ao longo do trabalho fizéssemos

referência a outros vocábulos, todos relacionados e daí decorrentes: unidade, inter-relação,

coordenação, coerência, integração, entre outros.

Em nenhum momento no decorrer da exposição pretendíamos esgotar as matérias

tratadas. Daí a necessidade de fazer recortes metodológicos claros e, dentre eles, o que pode

causar mais desconforto é a limitação espacial do estudo: o âmbito nacional. Foi uma escolha.

Como tantas outras, ela pode sofrer críticas, mas dentro daquilo que nos propusemos, o caminho

trilhado parece ter sido acertado. Discutir a concretização das normas ambientais, em âmbito

nacional, é absolutamente essencial. Ainda que a integração seja uma demanda para além do

Estado nacional, muitos dos desafios ambientais são enfrentados internamente, assim como em

todas as nações. O enfoque e as premissas dogmáticas nas discussões internacionais tendem a

ser distintos, embora igualmente relevantes. A necessidade de articulação externa não afasta a

também necessária articulação interna, algo destacado em um país de dimensões continentais

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como é o Brasil. A cooperação e a integração tendem a enfrentar barreiras mais facilmente

transponíveis dentro de um país, onde se fala quando muito em autonomia dos entes federados,

do que para fora dele, quando ainda se fala – embora com inúmeras discussões sobre conceito

e limites – em soberania.

Este recorte metodológico, evidentemente, não nos impede de ressaltar a importância

de, a partir das mesmas premissas naturais, superar a discussão nacional e alcançar o âmbito

internacional. Idealmente é necessário chegar a um modelo de gestão global – e isso talvez

possa ser objeto de um novo estudo mais aprofundado. Aqui faremos brevíssimos

apontamentos, sem qualquer rigor científico maior – em suma, usaremos a conclusão para

lançar perspectivas e desafios.

A abordagem proposta neste trabalho nos coloca diante de um novo tipo de bem: o

global800. Estes bens possuem algumas características que o levam a assim ser caracterizado.

Em primeiro lugar, o bem deve se “estender a mais de um grupo de países”801. Em segundo

lugar, “os benefícios devem alcançar não só um amplo espectro de países, mas também um

amplo espectro da população global”802. Por fim, um bem global é aquele relevante não só para

o presente, mas também para as futuras gerações. O reconhecimento desta categoria de bens

traz desafios de diversas ordens. Se não estão submetidos a um ente governamental específico,

quem se torna responsável por eles? Como se define a destinação de recursos financeiros para

gestão e proteção destes bens? Como assegurar amplo acesso a estes bens?

A gestão dos bens globais é especialmente dificultosa e algumas razões podem ser

identificadas para tanto. Há uma “discrepância entre as fronteiras globais das principais

preocupações atuais das políticas e as fronteiras essencialmente nacionais da criação de

políticas”803. Ademais, os diversos atores envolvidos ainda possuem atuação cooperativa

discreta804. Para que a proteção destes bens seja alçada a uma escala ótima, é preciso inverter

este jogo, como uma jurisdição incidente não só em nível nacional, mas também internacional;

800 Aqui cuidaremos apenas daqueles ditos como públicos, vale dizer, que, quando “puros”, caracterizam-se por seus benefícios, por não gerarem a “rivalidade no consumo” – o benefício para um não afasta a possibilidade de benefícios para outros – e pela “não exclusão – não ficam circunscritos a um número determinado de pessoas. Dissemos puros, pois “os bens que apenas parcialmente atingem um ou ambos os critérios de definição são denominados bens públicos impuros” (todas as citações desta nota de KAUL, Inge; GRUNBERG, Isabelle; STERN, Marc. A. Definindo Bens Públicos Globais. In: KAUL, Inge; GRUNBERG, Isabelle; STERN, Marc (Org..). Bens Públicos Globais. Rio de Janeiro: Record, 2012, p. 42-43). 801 Ibid., p. 49. 802 Ibid.,, p. 49. 803 KAUL, Inge; GRUNBERG, Isabelle; STERN, Marc. A. Bens Públicos Globais: Conceitos, Políticas e Estratégia. In: KAUL, Inge; GRUNBERG, Isabelle; STERN, Marc (Org..). Bens Públicos Globais. Rio de Janeiro: Record, 2012, p. 495. 804 Ibid., p. 496.

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com a participação efetiva de todos os atores envolvidos (presentes e futuras gerações, Governo

e sociedade civil, empresas e grandes conglomerados econômicos, etc.); e com o

estabelecimento de incentivos aptos a beneficiar a todos805.

No caso específico do meio ambiente, um bem global por excelência, os males decorrem

do seu uso exacerbado e inadequado. Estes problemas tendem a ganhar espaço na agenda

internacional apenas “quando sua escassez ou ausência cria um mal público global”806. Estando

em condições normais, clamam por pouca atenção. Trata-se de lógica também a ser invertida

sob pena de que, ao se perceber a atuação demandada, ela não seja mais apta a corrigir os graves

problemas identificados.

Para melhor enfretamento dos riscos aos bens globais ambientais, devemos saber que

eles podem ser criados pelos mais variados atores (estatais e não estatais). Podem, ainda, ser

fruto de “transbordamentos transnacionais positivos ou negativos de uma ação em nível

nacional”807 ou mesmo decorrer de “efeitos sistêmicos globais”808. Se pudéssemos apresentar

um breve retrato do presente e uma breve perspectiva do futuro, no tocante ao enfrentamento

destes problemas, teríamos a globalidade como norte – globalidade que não deixa de ser um

viés do padrão de rede. Neste contexto, a dúvida que emerge é de como devemos enfrentar

estes problemas, sobretudo à luz dos sistemas supranacionais existentes?

A jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos tem, nos últimos anos,

trazido com mais frequência as questões ambientais para os debates. Tanto é assim que já se

aponta tal fenômeno como “greening”, não só da Corte, mas de todo o direito

internacional809.Segundo Mazzuoli e Teixeira, no sistema europeu este “esverdeamento” foi

iniciado com discussões relacionadas à emissão de ruídos e, posteriormente, foi ampliado para

outros assuntos de interesse810. No caso específico da Corte Interamericana, o tratado que lhe

dá suporte (a Convenção Americana de Direitos Humanos), na sua versão original, não abraça

expressamente os direitos ambientais – só em um protocolo adicional tais temas foram

enfrentados. Daí a necessidade de adoção do “greening” em via reflexa, para alcançar todos os

805 KAUL, Inge; GRUNBERG, Isabelle; STERN, Marc. A. Bens Públicos Globais: Conceitos, Políticas e Estratégia. In: KAUL, Inge; GRUNBERG, Isabelle; STERN, Marc (Org..). Bens Públicos Globais. Rio de Janeiro: Record, 2012, p. 496. 806 Ibid., p. 503. 807 Ibid., p. 504. 808 Ibid., p. 504. 809 MAZZUOLI, Valério de Oliveira; TEIXEIRA, Gustavo de Faria Moreira. O Direito Internacional do Meio Ambiente e o Greening da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. In Revista dos Tribunais OnLine – Revista de Direito Ambiental. São Paulo: n. 67, julho-setembro, 2012. Disponível em <http://www.rtonline.com.br>. Acesso em 22 de dez. 2013, p. 02. 810 Ibid., p. 08.

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Estados signatários da Convenção, inclusive aqueles não aderentes do protocolo adicional –

com esta estratégia busca-se vincular a proteção do meio ambiente à proteção de outros direitos

humanos, assegurando sua garantia de modo reflexo.

A Corte Interamericana tem abordado esta temática relacionada a “violações ao

fundamental direito à vida das populações mais vulneráveis à expansão econômica sobre os

recursos naturais: os povos indígenas, quilombolas e as comunidades campesinas das

Américas”811. Claro, esta não é a melhor estratégia, mas aquela que tem se mostrado possível.

Talvez esteja aí um dos desafios atuais no enfrentamento destas questões – desvincular a

proteção do meio ambiente dos direitos políticos, sociais e econômicos. Reconhecer a proteção

ao meio ambiente como um direito humano, ligado a todos os demais, mas com características

que o fazem em certa medida único, impondo um tratamento diferenciado – assegurado ainda

que inexistam reflexos claros em outros direitos mais tradicionais.

Estas dificuldades têm trazido, no debate internacional, propostas de criação de

Tribunais ou Organismos Internacionais voltados à proteção do meio ambiente. Pensa-se em

um sistema global, com algum poder cogente, ou mesmo sistemas regionais mais afetos às

questões ambientais, fundados sobre o primado do diálogo para, assim, incorporar a

característica essencial dos sistemas naturais – a globalidade.

E não somente este tipo de preocupações. Muitas Cortes já estabelecidas não possuem

jurisdição compulsória, vinculando apenas aqueles que a ela aderiram. Mesmo quando

possuem, como é o caso do Tribunal Penal Internacional, o estatuto que dá suporte não prevê a

apreciação de crimes ambientais. Não há “corte internacional com jurisdição obrigatória

competente para julgar disputas envolvendo matéria ambiental internacional e que esteja

disponível a atores não estatais”812.

Foi neste cenário, e com base nestas premissas, que algumas vozes começam a apontar

este caminho. Um dos primeiros movimentos foi iniciado com a criação da Fundação

Internacional do Tribunal do Meio Ambiente – fundada inicialmente como uma ONG –, que

tem como bandeira a instituição de um Tribunal Internacional especializado em meio

811 MAZZUOLI, Valério de Oliveira; TEIXEIRA, Gustavo de Faria Moreira. O Direito Internacional do Meio Ambiente e o Greening da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. In Revista dos Tribunais OnLine – Revista de Direito Ambiental. São Paulo: n. 67, julho-setembro, 2012. Disponível em <http://www.rtonline.com.br>. Acesso em 22 de dez. 2013, p. 10. 812 MIRANDA, Natasha Martins do Valle. A Perspectiva da Criação de um Tribunal Internacional do Meio Ambiente. Dissertação de Mestrado. Direito das Relações Econômicas Internacionais. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2009. Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp125624.pdf. Acesso em 22 de dez. 2013, p. 144.

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ambiente813. Mais recentemente, em um dos eventos paralelos da Rio+20, foi proposta a criação

de um Tribunal sem poderes para aplicar sanções, mas com a única finalidade de divulgar

eventuais condenações – uma espécie de sanção moral814. Aliás, esta posição ganhou destaque

no Brasil em recente entrevista de Mikhail Gorbachev, na qual defendeu uma ampla reforma

institucional com vistas à solução dos problemas ambientais – o que abrangeria um Tribunal

Internacional815.

Por certo, o estabelecimento de Tribunais especializados pode acabar levando à

fragmentação do direito internacional dos direitos humanos e seu consequente

enfraquecimento816. Há ainda diversas questões ligadas à concorrência desta Corte com outras

existentes. Daí ser possível se falar, alternativamente, no fortalecimento de sistemas já

existentes, com a introdução gradual das questões ambientais.

Não há dúvidas de que os problemas ambientais envolvem uma lógica distinta se

comparada aos direitos humanos clássicos. Eles nascem globais e têm o condão de colocar em

risco toda a humanidade. As soluções para esta ordem de problemas passa pela mudança de

alguns paradigmas, o que pode ocorrer a partir da criação de um Tribunal Internacional voltado

especialmente a esta matéria, ou mesmo pela incorporação através de sistemas existentes. Não

há, a nosso ver, um movimento melhor ou pior, mas há de haver um movimento. É preciso de

transformação para ampliar a competência de Cortes já existentes ou a serem criadas, além de

permitir um acesso mais amplo e diversificado.

O que demonstramos na primeira parte deste trabalho corrobora uma posição de Dupas

e Vigeveni, ao retratar as relações internacionais contemporâneas: estamos diante de questões

planetárias, que não estão limitadas à esfera de atuação de apenas um ou alguns Estados817.

Diante desta característica, a proteção ambiental impõe o seu enfrentamento de forma integrada

e, mais do que isto, pautada no primado da cooperação.

813 Cf. MIRANDA, Natasha Martins do Valle. A Perspectiva da Criação de um Tribunal Internacional do Meio Ambiente. Dissertação de Mestrado. Direito das Relações Econômicas Internacionais. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2009. Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp125624.pdf. Acesso em 22 de dez. 2013, p. 145. 814 ARINI, Juliana. Um tribunal internacional para julgar crimes ambientais. Revista Veja, São Paulo, 21 jun. 2012. Disponível em <http://veja.abril.com.br/noticia/internacional/intelectuais-propoem-a-criacao-de-um-tribunal-ambiental-mundial>. Acesso em25 out. 2014. 815 CHADE, Jamil. Gorbachev pede glasnost e perestroika ambientais. Jornal O Estado de São Paulo, São Paulo, 19 abr. 2013. Disponívelem<http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,gorbachev-pede-glasnost-e-perestroika-ambientais-,1022802,0.htm>. Acesso em25 out. 2014. 816 MIRANDA, Natasha Martins do Valle. Op. cit., p. 149. 817 DUPAS, Gilberto; VIGEVENI, Túlio. O Brasil e as Novas Dimensões da Segurança Internacional, p. 81 apud HUSEK, Carlos Roberto. Curso de Direito Internacional Público. 11ª ed. São Paulo: LTr, 2012, p. 350.

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Há uma clara oportunidade, portanto, ao estabelecimento daquilo que Piovesan

denomina de “constitucionalismo global”818, com Constituições abertas a princípios e valores,

aptas a acomodar o diálogo, pois só há proteção efetiva com ação cooperada. As ordens

jurídicas internas devem ter em vista estes valores – dos direitos fundamentais – e devem ser

concretizadas a partir destas premissas. “Não se pode visualizar a humanidade como sujeito de

Direito a partir da ótica do Estado; impõe-se reconhecer os limites do Estado a partir da ótica

da humanidade”819. Acrescemos: impõe olhar o Estado a partir da ótica holística das relações

naturais, pois a proteção ambiental nasce universal – conceitualmente não aceita um olhar a

partir da lente “ex parte principe”, mas, fazendo uma analogia com a máxima do Direito

Internacional, impõe um olhar “ex parte nature”.

818 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 43. 819 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado; ROBLES, Manuel E. Ventura. El Futuro de la Corte Interamericana de Derechos Humanos, p. 206 apud PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 44.

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