publico estatal privado reforma universitaria

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PÚBLICO, ESTATAL E PRIVADO NA REFORMA UNIVERSITÁRIA Emir Sader (LPP / UERJ) Roberto Leher (UFRJ/CLACSO-LPP-UERJ) Em notável artigo, Perry Anderson 1 chamou a atenção para o fato de que as idéias neoliberais dominantes nos anos 1990 seguem sem rival a altura, apesar dos seus efeitos devastadores em todas as esferas da vida. Neste ensaio será discutido como as primeiras medidas do governo de Lula da Silva para a universidade produzem tensões entre essas idéias dominantes e os anseios por mudanças. Mais do que verificar o conjunto de atos, decretos e portarias importa examinar como se movem as fronteiras entre o público (lugar construído nos embates pela democracia e pela afirmação de direitos universais) e o privado (sociedade civil absorvida pela esfera do mercado 2 ). O artigo pretende sustentar que os primeiros atos encaminhados pelo governo de Lula da Silva para “reformar” a universidade pública brasileira incidem diretamente sobre as fronteiras entre o público e o privado 3 , alargando este último em detrimento do primeiro. Qual o significado da expansão da esfera privada? Examinando mais amplamente a questão, no escopo das reformas encaminhadas pela OMC e pelo ALCA, é possível submeter à crítica a hipótese de que, se o intento da ampliação da esfera privada for verdadeiro e exitoso, a “reforma” poderá configurar um sistema de ensino superior único indiferenciado, em que todas as instituições, independente de sua natureza jurídica, após classificação pelo sistema de avaliação, farão jus às verbas públicas em nome do interesse público. Com isso, a etapa iniciada na Rodada Uruguai do GATT que inseriu a educação nos Tratados de Livre Comércio, por meio do Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços, seria concluída no Brasil que atenderia ao reclamo de conferir tratamento nacional a todos os investimentos na área, sem discriminação em relação a natureza pública ou privada, nacional ou estrangeira. Essa proposição encontra suporte em recentes propostas governamentais 4 que asseveram que as verbas públicas serão distribuídas para os estabelecimentos mais “eficientes”, independente de suas naturezas jurídicas. De fato, conforme os documentos governamentais em circulação, doravante os recursos para as novas vagas serão distribuídos 1 .Perry Anderson. Idéias e ação política na mudança histórica. Margem Esquerda –ensaios marxistas. SP: Boitempo Ed., n.1, maio de 2003. 2 . Gilberto Dupas. Tensões contemporâneas entre o público e o privado.SP: Paz e Terra, 2003. 3 Conforme Fernando Haddad, Secretário Executivo do MEC, “Nós pretendemos quebrar um muro que separa hoje as instituições privadas das públicas, aproximar os dois sistemas com benefícios mútuos. […] Ou seja, estamos pensando agora o setor em termos sistêmicos, e não mais de forma compartimentada, sem coesão e sem coerência interna”. 4 . BRASIL. Ministério da Fazenda. Gasto Social do Governo Central: 2001 e 2002. Brasília: [s.n.], 13 de novembro de 2003. Disponível em: <http://www.fazenda.gov.br>. BRASIL. Grupo de Trabalho Interministerial. Bases para o enfrentamento da crise emergencial das universidades federais e roteiro para a Reforma Universitária brasileira. Brasília: 15 de dezembro de 2003. (mimeo); BRASIL. Casa Civil, Exposição de Motivos n. 355/2003, 10 de novembro de 2003/ PL n. 2546/03, Parceria Público-Privado. BRASIL. PL 7282/02 (Inovação Tecnológica).

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  • PBLICO, ESTATAL E PRIVADO NA REFORMA UNIVERSITRIA

    Emir Sader (LPP / UERJ) Roberto Leher (UFRJ/CLACSO-LPP-UERJ)

    Em notvel artigo, Perry Anderson1 chamou a ateno para o fato de que as idias neoliberais dominantes nos anos 1990 seguem sem rival a altura, apesar dos seus efeitos devastadores em todas as esferas da vida. Neste ensaio ser discutido como as primeiras medidas do governo de Lula da Silva para a universidade produzem tenses entre essas idias dominantes e os anseios por mudanas. Mais do que verificar o conjunto de atos, decretos e portarias importa examinar como se movem as fronteiras entre o pblico (lugar construdo nos embates pela democracia e pela afirmao de direitos universais) e o privado (sociedade civil absorvida pela esfera do mercado2). O artigo pretende sustentar que os primeiros atos encaminhados pelo governo de Lula da Silva para reformar a universidade pblica brasileira incidem diretamente sobre as fronteiras entre o pblico e o privado3, alargando este ltimo em detrimento do primeiro. Qual o significado da expanso da esfera privada? Examinando mais amplamente a questo, no escopo das reformas encaminhadas pela OMC e pelo ALCA, possvel submeter crtica a hiptese de que, se o intento da ampliao da esfera privada for verdadeiro e exitoso, a reforma poder configurar um sistema de ensino superior nico indiferenciado, em que todas as instituies, independente de sua natureza jurdica, aps classificao pelo sistema de avaliao, faro jus s verbas pblicas em nome do interesse pblico. Com isso, a etapa iniciada na Rodada Uruguai do GATT que inseriu a educao nos Tratados de Livre Comrcio, por meio do Acordo Geral sobre o Comrcio de Servios, seria concluda no Brasil que atenderia ao reclamo de conferir tratamento nacional a todos os investimentos na rea, sem discriminao em relao a natureza pblica ou privada, nacional ou estrangeira. Essa proposio encontra suporte em recentes propostas governamentais4 que asseveram que as verbas pblicas sero distribudas para os estabelecimentos mais eficientes, independente de suas naturezas jurdicas. De fato, conforme os documentos governamentais em circulao, doravante os recursos para as novas vagas sero distribudos

    1 .Perry Anderson. Idias e ao poltica na mudana histrica. Margem Esquerda ensaios marxistas. SP: Boitempo Ed., n.1, maio de 2003. 2 . Gilberto Dupas. Tenses contemporneas entre o pblico e o privado.SP: Paz e Terra, 2003. 3 Conforme Fernando Haddad, Secretrio Executivo do MEC, Ns pretendemos quebrar um muro que separa hoje as instituies privadas das pblicas, aproximar os dois sistemas com benefcios mtuos. [] Ou seja, estamos pensando agora o setor em termos sistmicos, e no mais de forma compartimentada, sem coeso e sem coerncia interna. 4 . BRASIL. Ministrio da Fazenda. Gasto Social do Governo Central: 2001 e 2002. Braslia: [s.n.], 13 de novembro de 2003. Disponvel em: . BRASIL. Grupo de Trabalho Interministerial. Bases para o enfrentamento da crise emergencial das universidades federais e roteiro para a Reforma Universitria brasileira. Braslia: 15 de dezembro de 2003. (mimeo); BRASIL. Casa Civil, Exposio de Motivos n. 355/2003, 10 de novembro de 2003/ PL n. 2546/03, Parceria Pblico-Privado. BRASIL. PL 7282/02 (Inovao Tecnolgica).

    IvsonSticky NoteDisponvel em: http://firgoa.usc.es/drupal/files/publico_estatal_privado_reforma_universitaria.pdf

  • por meio de concorrncia pblica5: a seleo levar em conta a competitividade e a eficincia dos estabelecimentos. De acordo com a Exposio de Motivos do Projeto de Lei que estabelece a Parceria Pblico Privado, as verbas pblicas sero utilizadas de forma mais eficiente e justa socialmente se distribudas conforme contratos estabelecidos a partir de concorrncia. Com isso, as universidades pblicas deixaro definitivamente de ocupar um lugar estratgico nas polticas pblicas para o ensino superior. Ao perderem a primazia das verbas pblicas auferidas pelo Estado as pblicas tero se lutar, no rido e bruto espao do mercado, por verbas que possibilitem a sua expanso e desenvolvimento. verdade que a Constituio abriu brechas para o setor privado, visto as generosas isenes tributrias permitidas para as comunitrias e filantrpicas. Mas com o novo projeto6, tambm as instituies empresariais podero contar com essas isenes. Como o volume de recursos das privadas da ordem de R$ 12 bilhes anuais, uma reduo de 25% no recolhimento de impostos, uma estimativa modesta, resultaria em R$ 3 bilhes de subsdios pblicos na forma de isenes.

    Adicionalmente, como desdobramento direto da competio, as pblicas tero de rebaixar o seu padro para serem competitivas, posto que o mercado capitalista dependente no exige uma formao rigorosa. Com isso, o que aparece aos olhos da sociedade, com auxlio generoso da mdia e da publicidade, como uma reforma inclusiva, pode se configurar como uma contra-reforma que ir debilitar, severamente, as universidades pblicas capazes de produzir conhecimento novo, institucionalizando a heteronomia cultural e o aprofundando, sob o beneplcito do ordenamento jurdico, o dualismo entre cidados de primeira e de segunda categoria (negros, ndios, ex-presidirios). Subjacentes a essas proposies existem implcitos e pressupostos que precisam ser discutidos: a) a natureza da transformao desejada para as universidades (reforma e contra-reforma), b) o dever de assegurar a educao (Estado ou esfera privada), c) a natureza e o carter da universidade (pblica ou privada) e, mais amplamente, d) os direitos sociais (universais ou focalizados), e e) a funo social da universidade em um pas capitalista dependente (mercado ou cidadania). Essas questes no podem ser discutidas separadamente, nos remetendo ao campo da poltica, o ponto de partida deste estudo. 1. Como o liberalismo se apropriou das (contra) reformas Reformar o que? Para que? Para quem? Reforma ope-se a que? O que significa estar contra a reforma? Dar nova forma a algo uma ao que s deveria contrariar os conservadores, aqueles que querem manter a injusta realidade na sua forma atual. Entretanto, veremos, atualmente estes empunham a bandeira da reforma, embora no queiram mudar a situao estabelecida. Diante dessa situao de aparente confuso conceitual preciso discutir esses termos com maior vagar e rigor para que seja possvel distinguir os movimentos de negao e os de manuteno da ordem atual.

    5 . Ver especialmente o Relatrio do GTI institudo pelo Dec.. 20/10/03. 6 . MEC. Programa Universidade para Todos (www.mec.gov.br).

  • Quem reforma uma casa, melhora, conserta, moderniza. Por isso, a reforma assumiu historicamente uma conotao progressista, civilizatria e de avano, salvo momentos determinados, em que as transformaes pregadas pelas reformas poderiam ser interpretadas como modestas ou at mesmo como falsas transformaes como ersatz -, isto , como medidas preventivas para evitar as transformaes reais como na oposio entre evolucionistas (reformistas) e socialistas (revolucionrios). Entretanto, mesmo nas lutas de classes mais agudas, inclusive em processos revolucionrios, os trabalhadores podem arrancar reformas como concesses no desejadas pelos dominantes que podem ser ou no confirmadas e superadas pela revoluo ou, alternativamente, mesmo serem revertidas pela contra-revoluo que pode almejar a reviso das reformas consideradas excessivas. Para ganhar legitimidade, a palavra reforma teve que percorrer uma longa trajetria, enfrentando obstculos de distinta ndole. A reforma protestante se opunha rigidez do poderio da Igreja catlica e era assimilada autonomia das pessoas para interpretar os textos sagrados e para definir os critrios de seu comportamento. Este aspecto de autonomia individual foi um daqueles que favoreceu a identificao do protestantismo com a emergncia e a extenso do capitalismo, articulados em comum pelo conceito de indivduo e sua liberdade individual. Reforma tinha uma conotao inequivocamente progressista diante das amarras feudais e do autoritarismo do Vaticano. Nesse contexto, o prestgio do termo se estendeu, pois esses processos objetivavam romper com a velha ordem sustentada pelos conservadores. Inaugurada a era das revolues em 1789 revoluo de 1830 e revoluo de 1848 e as rebelies da Comuna de Paris, o prestgio das revolues foi robustecido. Os trabalhadores da Comuna se assumiram como revolucionrios, assim como todos os membros da Associao Internacional dos Trabalhadores, a Primeira Internacional. Entretanto, a derrota da Comuna e o fortalecimento das organizaes legais na Alemanha sindicais e partidrias recolocou, agora diretamente na poltica, o termo reforma. A esquerda comeava a ser cindida entre reformistas e revolucionrios. Foi nesses termos que Edward Bernstein e Rosa Luxemburgo polemizaram. Bernstein pregava um processo de transformaes constitucionais e legais graduais do capitalismo que, pouco a pouco, teria sua fisionomia transformada, at ser extinto e superado pelo socialismo. Para Rosa Luxemburgo, essa forma gradual de tentar dar um salto qualitativo seria ilusria, assimilada pelo capitalismo, em vez de se chocar com seus eixos essenciais e propiciar sua transformao. Com Marx, propunha Rosa, a revoluo passou a ser compreendida como origem de uma ordem social completamente nova (socialismo) e por isso o socialismo no seria fruto da evoluo linear do capitalismo. Para Bernstein, avanar transformaes dentro do capitalismo geraria, gradualmente, as condies de uma transformao do sistema como um todo. A partir desses embates, para o movimento revolucionrio, a reforma passaria a se opor antagonicamente revoluo; para a social-democracia, distintamente, ela prepararia as transformaes sistmicas. As revolues, como a russa, haviam imposto uma rpida polarizao entre revoluo e contra-revoluo, deixando a reforma mais ou menos marginalizada. As dcadas seguintes viram surgir, inicialmente na Itlia, mas logo se irradiando para a Alemanha, Portugal e Espanha um novo elemento: a contra-revoluo. E, no caso dos fenmenos italiano e alemo mais particularmente, contra-revoluo de massas, isto , um movimento de extrema-direita que conseguiu mobilizar ativamente a amplos contingentes, tanto de classe mdia, como do lumpesinato.

  • Foram as reaes crise de 1929, entre elas, em particular, o programa keynesiano e as propostas de bem-estar social, que repuseram as reformas na ordem do dia, paralelamente ao isolamento da revoluo, seja pela ascenso da contra-revoluo na Europa, seja pelo isolamento da revoluo russa e o fortalecimento da social-democracia na Europa. preciso destacar, como observa Ellen Wood7 que as revolues tm surgido mais recentemente onde a luta econmica tem sido inseparvel do conflito poltico e o estado, como um inimigo universal das classes [trabalhadoras] e mais visivelmente centralizado, tem servido como centro da luta de classes, justamente os pases em que o capitalismo encontra-se menos desenvolvido. Mas de qualquer forma, no ps I-Guerra, revoluo e reforma apareciam, conectados ou antagonizados, como formas de avanar na superao do capitalismo. Enquanto o retorno de processos revolucionrios como os da China, de Cuba, do Vietn consagravam a revoluo como uma alternativa histrica real, as reformas se consolidavam pelo seu lado, nos Estados de bem estar social da Europa, assim como nos nacionalismos da periferia capitalista como o getulhismo, o peronismo, o cardenismo e o nasserismo. Paralelamente ao abandono pela social-democracia da ruptura com o capitalismo, restringindo seus projetos a uma democratizao do capitalismo, os partidos comunistas consagravam a proposta de transio pacfica ao socialismo. Ambos se assentavam em projetos de reformas, concentradas no centro do capitalismo, enquanto na periferia movimentos revolucionrios agiam no processo de descolonizao, em especial da frica. A experincia chilena de transio pacfica ao socialismo foi o momento mais agudo de tentativa de confluncia entre reforma e revoluo, colocando um grave desafio tanto para os que privilegiavam a reforma, quanto para os que colocavam o acento na ruptura revolucionria. Um balano profundo e detido daquele processo apontaria para a necessidade de redefinir os termos da dicotomia reforma/revoluo, na direo do que Lnin havia apontado em A catstrofe que nos ameaa, em 1917 e Trotsky faria o mesmo no Programa de transio, em 1936, selecionando as reformas inassimilveis pelo capitalismo como aquelas com um potencial revolucionrio, para diferenci-las das que simplesmente recondicionam o capitalismo para torn-lo menos vulnervel as rupturas revolucionrias. A revanche do capital: as (contra) reformas para retomar os anis perdidos O esgotamento desse perodo e a passagem fase histrica de hegemonia neoliberal trouxeram transformaes importantes no conceito mesmo de reformas. A virada histrica para a hegemonia unipolar norte-americana trouxe, entre outras coisas, uma vitria do liberalismo, no apenas como poltica econmica, mas como concepo do mundo e da histria, includo o Estado e o sistema poltico. A verso norte-americana do conflito fundamental do perodo de guerra fria a de se tratava de um enfrentamento entre democracia (liberal) e totalitarismo (estatal) terminou triunfando. Triunfaram as teses da desregulao como forma de liberar as foras pujantes da economia de seus constrangimentos estatais fossem estes do modelo sovitico, do keynesianismo no centro do capitalismo ou do nacionalismo na sua periferia. Democratizar

    7 . Ellen Meikins Wood. Democracia contra capitalismo. Mxico,DF: Siglo XXI, 2000, p.57.

  • sob o forte impacto das oposies aos regimes do leste europeu passou a significar liberalizar, que por sua vez ganhou a conotao de reformar um sistema rgido. Concomitantemente a esses movimentos no leste europeu, a predominncia das oposies liberais no confronto com as ditaduras na Amrica Latina, fortaleceu ainda mais o liberalismo. Assim, ganhou fora a identificao da oposio s intervenes estatais com a democracia (O encontro de Lula com Walesa, promovido pelo ento dirigente do PT, Francisco Wefort, foi uma contribuio direta identificao entre a oposio a regimes ditatoriais l e c, ambos afins ao liberalismo). Como resultado de todo esse processo, a democracia ficou confundida com o liberalismo; o progresso econmico com a desregulao e a abertura das economias; o estatismo com o que retrgrado; o mercado com o dinamismo e a livre criao; o protecionismo com atraso, e as reformas com todo o programa econmico e poltico de inspirao neoliberal, assim como os valores liberais passaram a se contrapor aos sujeitos coletivos. A aparente confuso entre liberalismo e democracia, entre liberalismo econmico e progresso, entre reformas e liberalizao, um elemento chave na luta poltica e ideolgica, permitindo o embaralhamento entre direita e esquerda, entre progressismo e conservadorismo, relegando a esquerda a uma posio defensiva e entregando a iniciativa nova direita. Norberto Bobbio j abordava as relaes entre liberalismo e democracia8, ressaltando como aquele entendido como uma determinada forma de concepo do Estado, em que este:

    tem poderes e funes limitadas, e como tal se contrape tanto ao Estado absoluto como ao Estado que hoje chamamos de social. Se por democracia entende-se uma das vrias formas de governo, em particular aquela em que o poder no est nas mos de um s ou de poucos, mas de todos, ou melhor, da maior parte e, como tal, se contrape s formas autocrticas, como a monarquia e a oligarquia, possvel concluir que um Estado liberal no necessariamente democrtico: ao contrrio, realiza-se historicamente em sociedades nas quais a participao no governo bastante restrita, limitada s classes possuidoras. Um governo democrtico no d vida necessariamente a um Estado liberal: ao contrrio, o Estado liberal clssico foi posto em crise pelo progresso de democratizao produzido pela gradual ampliao do sufrgio at o sufrgio universal 9.

    Bobbio cita Benjamin Constant e sua diferenciao entre liberalismo (exigncia de limitar o poder) e democracia (exigncia de distribu-lo). Se a democracia grega chamava de liberdade a distribuio do poder poltico entre todos os cidados, os liberais tm como objetivo a fruio das liberdades privadas. O Estado liberal justificado como o acordo entre indivduos livres e iguais, que estabelecem os vnculos necessrios sua convivncia e garantia de seus direitos individuais (Sem individualismo no h liberalismo). Baseia-se numa concepo individualista da sociedade, segundo a qual primeiro existe o indivduo singular com suas necessidades e seus interesses, ao contrrio das concepes que, derivadas de Aristteles, consideram que o homem, como animal poltico, tem uma dimenso social inscrita na sua natureza. 8. Ver especialmente Norberto Bobbio. Liberalismo e democracia, Ed. Brasiliense, So Paulo, 1988. 9 . Idem, pg. 7-8.

  • Instala-se uma contradio entre Estado de direito e Estado mnimo. Se se entende o primeiro apenas como referente a direitos polticos, estrito senso, a oposio pode no existir, ainda que um Estado que deixe operar o mercado como supe necessariamente o Estado mnimo torna obrigatoriamente os indivduos to fortemente desiguais, que fere a igualdade poltica mnima necessria a um jogo poltico democrtico. Mas se consideramos os homens como totalidade, com suas necessidades indissociveis e por tanto como contemporaneamente passou-se a consider-los com necessidades e direitos econmicos, sociais, polticos e culturais Estado de direito requer a garantia desses direitos e, portanto, se choca com um Estado mnimo que deixaria vigorar as leis do mercado, que por sua vez, no reconhecem lugar para os direitos. O Estado do bem-estar social foi precisamente um Estado de maior reconhecimento dos direitos e, assim, foi um Estado antiliberal. O regime pinochetista no Chile, por outro lado, foi mnimo no fornecimento de bens pblicos foi precursor do neoliberalismo -, mas uma ditadura, o oposto a um Estado de direito. O Estado de direito se contrape ao Estado absoluto, o Estado mnimo se ope ao Estado Social. Como Estado Social e Estado absoluto no se confundem o Estado do bem-estar social foi maximalista social e economicamente, mas Estado de direito -, produz-se uma ambigidade, de que pretende se valer o liberalismo, para tentar amalgamar Estado Social com Estado no democrtico por violar as leis do mercado e os direitos individuais e, por extenso, Estado mnimo e democracia. Ao mesmo tempo, tratam de identificar democracia com liberdade, aquela tornada similar a defesa das liberdades individuais, que teriam no mercado sua esfera privilegiada poder do prprio Estado, j que poder e liberdade seriam incompatveis. Pretendem que as relaes de mercado no produzem e reproduzem relaes de poder, ao contrrio do Estado, que tenderia a cristalizar poderes que interfeririam no exerccio das liberdades individuais. Os liberais modernos nasceram exprimindo uma profunda desconfiana para com toda forma de governo popular, tendo sustentado e defendido o sufrgio restrito durante todo o arco do sculo XIX e tambm posteriormente. Por ter nascido na luta contra o Estado absolutista, o liberalismo incorporou uma oposio ao Estado, proclamando o Estado social mnimo, poltica, mas tambm no fornecimento de bens tangveis. Para o liberalismo, o fim a expanso da personalidade individual, privilegiando assim a liberdade de cada um, enquanto que para a democracia o fim principal o desenvolvimento igualitrio da comunidade. O liberalismo privilegia a igualdade de oportunidades, acreditando que a concorrncia um filtro fiel e justo para promover a quem tem mais mrito. A democracia privilegia os direitos de todos, independente de sua qualificao individual. O nico modo de tornar possvel o exerccio da soberania popular a extenso ao maior nmero de cidados do direito de participar direta e indiretamente na tomada das decises coletivas; em outras palavras, a maior extenso dos direitos polticos. Se o liberalismo e a democracia reconhecem os direitos dos indivduos e a separao entre as esferas pblica e privada, esses indivduos so concebidos de maneira diferente. Para o liberalismo, a liberdade individual deve ser reivindicada em todos os planos e contra o Estado. O indivduo extrado do corpo orgnico da sociedade, colocando-o no plano da luta pela sobrevivncia, em competio e guerra com os outros. A democracia articula os homens, para que de sua reunio surja a sociedade como uma associao de homens livres, produto de um acordo consciente e voluntrio entre os homens.

  • Para o liberalismo, o sistema poltico deve reproduzir os mecanismos do mercado, considerados a forma ideal de relao do indivduo com a totalidade social, em que cada um uma mnada, fechada sobre si mesma, que se justifica a si mesmo e que s se vincula com o todo no momento da troca, no mercado. Depois retorna para sua esplndida solido privada. Votar o momento, no sistema poltico, da troca, da relao com o todo, momento mgico, antecedido e sucedido pelo retorno privacidade, mundo da liberdade. Tudo o que bloqueie ou impea essa forma livre de expresso da vontade, se contrape aos direitos do indivduo, inclusive o voto obrigatrio, j que um direito no pode se transformar em um dever e assim at mesmo a expresso da vontade coletiva contingente, o indivduo podendo prescindir dela, sem afetar em nada sua liberdade. Os liberais se interessam pela limitao do poder, os democratas pela sua socializao. Os liberais se preocupam mais com a diviso de poderes dentro do Estado, os democratas com o autogoverno da sociedade. Os liberais lutam pela defesa da esfera privada, os democratas pela construo da esfera pblica. Segundo Bobbio, a democracia levada s suas extremas conseqncias termina por destruir o Estado liberal... ... ou pode se realizar plenamente apenas num Estado social que tenha abandonado o ideal do Estado mnimo. O liberalismo no Brasil teve uma trajetria particular, condicionado pela forma assumida pelo nacionalismo. Este assumiu a forma de um modelo hegemnico protagonizado pelo getulhismo, mediante um projeto nacional-popular, com forte presena do Estado. A questo nacional primou sobre a questo democrtica. Esta foi assumida pelas foras conservadoras, que amalgamavam as reformas sociais do governo Vargas com o regime poltico ditatorial e assumiam o liberalismo como ideologia de oposio. A democracia ficou assim identificada com o liberalismo e oposta ao nacionalismo e s reformas sociais. Reproduzia-se no Brasil um esquema instaurado pelo modelo sovitico, que privilegiou as conquistas sociais em detrimento da democracia poltica, assumida pelas potncias capitalistas como bandeira prpria contra a esquerda e o socialismo. Essa polarizao se prolongou do regime getulhista para o perodo de democracia liberal de 1945 a 1964, que obedeceu s normas liberais de democracia, vigentes no ocidente. Foi o golpe militar, efetuado em nome de valores liberais contra os riscos de uma ditadura janguista , que alterou os dados da questo, porque os que defendiam a democracia liberal se revelaram adeptos de solues ditatoriais. At mesmo os projetos econmicos se revelaram ter uma forte dose de interveno estatal, ainda que a abertura da economia ao capital estrangeiro tenha promovido um processo de acumulao privada de capital indito no Brasil. Foi diante do regime de ditadura militar que surgiu um novo cenrio poltico. O primeiro deles teve nos grupos de resistncia armada seus protagonistas, com propostas que, de uma ou outra maneira, pregavam a ruptura com o capitalismo, na direo realizada por Cuba. Assimilava-se a ditadura com o capitalismo, dava-se como esgotada a democracia como forma de regime poltico no capitalismo brasileiro e apontava-se para uma ruptura de classe. As propostas de oposio liberal ditadura tinham pouco campo de ao, seja porque o espao legal estava interditado, seja porque as punies da ditadura alcanaram at mesmo vrios polticos tradicionais. Frentes de oposio que uniam Carlos Lacerda, Juscelino Kubitchek, Adhemar de Barros, tinham, compreensivelmente, pouco crdito para os que combatiam o projeto de classe da ditadura. Assim, o cenrio latino-americano - e tambm vietnamita - incentivava as propostas radicais.

  • A derrota dos movimentos de resistncia armada criou um novo cenrio, com a projeo da oposio democrtico-liberal ao primeiro lugar na luta de resistncia ditadura, suprimindo, com isso, a luta anticapitalista. A ALN de Marighella, a VPR e o MR-8 de Lamarca e outros grupos na clandestinidade, foram substitudos pelo MDB de Ulysses Guimares. A oposio ditadura / democracia presidiu esse perodo, paralelo ascenso do liberalismo no plano mundial, promovido pelas potncias ocidentais, lideradas pelos Estados Unidos, no novo perodo de guerra fria, baseado na oposio democracia / totalitarismo. O surgimento e fortalecimento das oposies liberais aos regimes do leste europeu e na prpria URSS consolidou esse papel do liberalismo em escala mundial, preparatrio da funo que teria no perodo histrico contemporneo. Transio democrtica: autoritarismo-estatal versus sociedade civil-democrtica A chamada transio democrtica a passagem da ditadura ao regime institucional consagrou o liberalismo como modelo de democracia. O Colgio Eleitoral, depois da derrota da emendas das eleies diretas para presidente, foi o lugar da aliana entre foras moderadas de oposio e setores originrios do regime ditatorial mediante a aliana PMDB/PFL e as candidaturas de Tancredo Neves e Jos Sarney , que imps uma viso particularmente redutiva da transio democrtica, limitada s reformas institucionais. Nenhuma reforma de carter econmico ou social que alterasse as relaes de poder na direo da sua democratizao, foi posta em prtica.

    Com efeito, os formuladores do MDB assimilaram a chamada teoria do autoritarismo elaborada por Alfred Stepan10, Guilhermo ODonell, entre outros, difundida, no pas, por Fernando Henrique Cardoso. Segundo esta, o arco de alianas da transio democrtica deveria incluir todas as foras - acima dos interesses de classes - que abjuraram a violncia: at mesmo os que at ento sustentaram o governo Militar. Aqui, a crtica ao modelo econmico da ditadura militar eclipsada pela questo do autoritarismo e, desse modo, os civis que sustentaram o golpe militar agora j fervorosos crticos do autoritarismo mantiveram a sua proeminncia no sistema de classes que sustentaria os governos ps-ditadura militar11.

    O discurso do autoritarismo de Estado coadunava-se com os setores liberais, como os defendidos pelo Estado de So Paulo e Viso (respectivamente Famlia Mesquita e Otvio Gouveia de Bulhes). A campanha antiestatizante se ligou sutilmente presso em favor da democratizao e do retorno ao Governo Civil. Se 1976 foi o ano do debate da antiestatizao, 1977 tornou-se o ano do debate da democratizao 12(Evans, 1980: 231). Obviamente, o discurso antiestatizante agradava plenamente as corporaes multinacionais. Mesmo Geisel fora convencido de abrir a explorao de petrleo s corporaes multinacionais, em virtude da repercusso das crticas que associavam antiestatismo e 10 . Ver Alfred Stepan, Authoritarian Brazil: Origins, Policies and Future (New Haven and London: Yale Univ. Press, 1973). 11 . Roberto Leher. Movimentos sociais, democracia e educao. In: Osmar Fvero e Giovanni Semeraro (orgs). Petrpolis, Vozes, 2002, p.188. 12 . P. Evans, A trplice aliana: as multinacionais, as estatais e o capital nacional no desenvolvimento dependente brasileiro. RJ: Zahar, 1980.

  • autoritarismo. Desse modo, a leitura difundida por Fernando Henrique Cardoso agradava, simultaneamente, s multinacionais, aos liberais e aos setores de centro-esquerda interessados em ampliar o seu espao poltico na redemocratizao. Stepan reconhece que Brasil e Espanha foram os pases em que a elite manteve maior grau de influncia na transio13. A chamada remoo do entulho autoritrio reps as condies clssicas de funcionamento da democracia liberal no pas separao dos poderes, pluralismo partidrio, eleies peridicas, direitos individuais e de organizao, imprensa livre isto , privada e praticamente se terminou com isso o processo de transio. Porm o potencial de luta democrtica acumulado nas dcadas anteriores acabou levando convocao de uma Assemblia Geral Constituinte (embora no exclusiva) at mesmo porque uma democracia-liberal seria incompatvel com a constituio outorgada pela ditadura militar. A constituinte e a Carta de 1988

    A elaborao da Carta Magna no respondeu aos anseios dos que lutavam por uma constituinte livre, soberana e autnoma. Mas, ainda assim, os movimentos populares pela cidadania exibiam vigor. Multides tomaram as ruas e praas no bojo das grandes campanhas pelas "Diretas J!. A sociedade brasileira se reorganizava, novos partidos foram constitudos ou reconstitudos. Havia um vigor poltico muito forte. Nesse contexto, a Central nica dos Trabalhadores foi formada como Expresso do chamado novo sindicalismo.

    Todo esse conjunto de iniciativas da sociedade parecia, a primeira vista, "um raio em cu azul". De fato, a tempestade neoliberal cobria os cus de quase toda a Amrica Latina. Desde 1980, os governos de Reagan, Thatcher e Helmut Kohl vinham implementando essas polticas. Em contraste, foram possveis avanos muito importantes para o ensino pblico. A educao e o conhecimento foram compreendidos como dever do Estado e direito de todos os cidados. A liberdade da produo cientfica foi confirmada como preceito constitucional.

    Ha pouco mais de uma dcada, diversos cientistas brasileiros e professores haviam sido afastados da universidade pelo AI-5 e um grande nmero de estudantes foi jubilado pelo Decreto 477. Assim, de fato as conquistas no foram menores. A Constituio assegurou a liberdade de produo do conhecimento e que a produo do conhecimento cientfico necessria para a autonomia do Pas (Art. 219, CF) e que o lugar privilegiado para a produo do conhecimento cientfico a universidade. E, ainda, que uma instituio de ensino para ter o status de universidade tem de assegurar simultaneamente, ensino, pesquisa e extenso (Art. 207). A Constituio estabeleceu ainda a autonomia didtico-cientfica, administrativa e de gesto financeira e patrimonial.

    Mas a reao conservadora foi um raio em cu de chumbo. Todos os presidentes aps 1988 proclamam a ingovernabilidade do pas. E importante lembrar que a destruio da Constituio comeou ainda na Nova Repblica. Em 1986, o Brasil esteve representado na reunio em Washington conhecida como "Consenso de Washington". O Brasil foi representado por trs personagens da Nova Repblica que depois vieram a ter uma participao marcante na vida do Pas, mostrando que os governos subseqentes foram, 13 . Idem.,p.189.

  • fundamentalmente, de continuidade: Bresser Pereira, ministro do Governo Sarney e um dos operacionalizadores da reforma neoliberal do Estado brasileiro no governo FHC, Marclio Marques Moreira, ento Embaixador em Washington, depois nomeado ministro da Fazenda do Governo Collor e Pedro Malan, alto funcionrio do BID, ministro da Fazenda de Cardoso.

    A poltica de Cincia e Tecnologia do Governo Sarney estabeleceu um programa que veio a ser aperfeioado no Governo Collor, chamado de Reconfigurao Institucional da Pesquisa. De acordo com este programa, um pas perifrico, como o Brasil, deveria procurar nichos de mercado onde pudesse ter vantagens comparativas. Deveramos investir em capacitao cientfica e tecnolgica somente em reas em que os pases centrais no criassem obstculos. Com isso, foram abandonadas as polticas de informtica, de gerao alternativa de energia, de biotecnologia etc. Os programas de capacitao industrial criados na Nova Repblica situavam o pas na esfera internacional como tendo vantagens comparativas sobretudo nos setores de agrobusiness e de exportao de commodities. A mesma orientao encontraremos - mais sistemtica, operacionalizada e competente - nos governos Cardoso e Lula da Silva.

    Os principais avanos da nova constituio, em sntese, se deram em temas setoriais como Educao, o Estatuto da Criana e do Adolescente -, com retrocessos na questo da reforma agrria e no direito ao aborto. Foi uma constituio cidad conforme a expresso de Ulysses Guimares -, ao afirmar direitos, na contramo da tendncia neoliberal j ascendente na Amrica Latina. Foi o ltimo momento em que a categoria reforma assumia um sentido positivo, progressista. Reforma, Constituio e Retorno do Liberalismo Foi o projeto enunciado por Collor que imprimiu, pela primeira vez, o selo de reformas no que so contra-reformas, sempre com o tom de formas de terminar travas livre circulao do capital. Tudo o que impedia essa circulao passava a ser taxado de conservador e as reformas passaram a equivaler s medidas de desregulao: seja a privatizao, a abertura dos mercados, a flexibilizao laboral, o incentivo educao, sade e aos outros servios privados. Conforme retomou a iniciativa no plano mundial, na Amrica Latina e no Brasil o liberalismo imprimiu palavra reformas um contedo mercantil de desregulao, antiestatal e projetou a pecha de conservador ao que se ope a elas. E, conforme o socialismo e o anticapitalismo, juntamente com o pblico e o setor pblico, foram deslocados e desapareceram do campo de debates e de alternativas, as opes se restringiram a somar-se s propostas liberais ou assumir a defesa de um modelo de socialismo derrotado e de um Estado esgotado e em crise. A desapario da URSS e do campo socialista representou uma vitria do campo capitalista e do liberalismo, sem precedentes na histria. O triunfo da revoluo bolchevique colocou no horizonte o carter histrico isto , finito do capitalismo, apontando para o tipo de sociedade que o superaria. E, ao mesmo tempo, a crise de 1929 tinha afirmado enfaticamente os limites do liberalismo, deixando o campo aberto para modelos hegemnicos que disputavam sua herana, todos eles antiliberais, em distintas medidas: o keynesianismo, o fascismo e o socialismo sovitico.

  • Esse perodo histrico, transcorrido entre 1930 e meados dos anos 70, permitiu a convergncia de trs modelos distintos de desenvolvimento o keynesianismo no centro do capitalismo, a economia centralmente planificada no campo socialista e o desenvolvimentismo na periferia capitalista -, que promoveu o maior ritmo de desenvolvimento da economia mundial que se tinha conhecido e, ao mesmo tempo, redefiniu as reformas conforme critrios de expanso econmica com um forte vis economicista. O esgotamento do ciclo longo capitalista em meados dos anos 70, junto com o trmino do projeto desenvolvimentista, com a crise da dvida, na virada dos anos 70/80 e o fim do campo socialista, marcaram o final desse perodo. Foi o campo propcio para o retorno do liberalismo e seu sempre acalentado projeto de desregulao, que abre campo para a extenso sem precedentes das relaes mercantis em escala de cada sociedade e nos quatro cantos do mundo, generalizando-se as relaes capitalistas em sua forma mercantil e, com ela, estendendo-se o modelo neoliberal como hegemnico. No Brasil, combinaram-se o fim da ditadura, o esgotamento do modelo de acumulao centrado no desenvolvimento industrial e a hegemonia liberal entre as foras que passaram a dirigir o sistema poltico, no retorno a um sistema democrtico. A operao de promoo da hegemonia neoliberal passou pela apropriao das reformas, agora com um sentido antiestatal, antipblico, expropriador de direitos, de abertura da economia e de debilitamento da capacidade de consumo do mercado interno de massas em favor da sofisticao do consumo das elites e da exportao. o modelo vigente ainda hoje. Reforma, contra-reforma, pblico e privado no governo Lula da Silva O PT havia sido o principal partido de resistncia aos projetos neoliberais. Chegado ao governo, redefiniu sua posio em relao s reformas e ao prprio conceito de reforma. Lula passou a defender as reformas, aderindo ao projeto de FHC e jactando-se de ter a coragem de realizar o que seu antecessor no tinha conseguido tomando a reforma da previdncia como caso concreto , sem levar em conta a oposio anterior do PT a essas reformas, nem que se trata de contra-reformas, mercantilizantes e que acarretariam no enfraquecimento do setor pblico. Houve dirigentes do PT que chegaram a explicitar que o PT se opunha s reformas de FHC simplesmente porque era oposio, o que significa a adeso a reformas consensuais nas elites, agora no governo. Fecha-se assim um crculo dentro das elites polticas com raras excees, que no chegam a descaracterizar um consenso do establishment - que define reformas no seu sentido liberal, de desregulao, de eliminao das travas livre circulao do capital. As declaraes de Lula a respeito da reforma trabalhista confirmam esse significado de flexibilizao que sempre quer dizer precarizar as relaes de trabalho, adaptando-as s necessidades do capital. Como essa hegemonia liberal condiciona o cenrio em que se comea a discutir a reforma universitria? No possvel esquecer que os neoliberais ainda podem plantar suas medidas em solo frtil, apesar do fracasso de suas colheitas. A sistemtica desqualificao das instituies pblicas, sustentada pelos entusiastas da sociedade civil absorvida pelo mercado, debilitou severamente a prpria noo do espao pblico como lugar forjado por embates e conflitos que permitiram conquistas coletivas. Embora com acentuados limites, os contratos construdos nas jornadas de lutas durante o processo de elaborao da

  • Constituio Federal, como, por exemplo, o captulo sobre a educao superior e a produo de conhecimentos ou, ainda, sobre a seguridade social, foram paulatinamente desfeitos em benefcio do mercado dito globalizado, a partir do discurso de que os direitos sociais so elitistas e levam ao desequilbrio econmico. A educao superior foi vigorosamente atingida por essas noes e valores. Em primeiro lugar, pela influncia ideolgica propriamente dita, em todos os planos. Os valores de competio e de competncia, que se reproduzem nas relaes mercantis e chegam massa da populao, includa a prpria universidade. Em segundo, a crise da esfera pblica: conforme os documentos governamentais, o setor pblico no ir dispor de recursos para ampliar a oferta de ensino superior pblico e gratuito e, ademais, nem deveria receb-los, pois os poucos recursos acabam se perdendo, pois o setor pblico sabidamente ineficiente.

    Complementarmente, para se legitimar na sociedade, o setor pblico deveria se aproximar do setor produtivo, fornecendo os insumos que este necessita. Dessa relao, conforme os referidos posicionamentos, resultaria um benefcio mtuo: para o pas, mo-de-obra e P&D voltada para o setor produtivo e, para a universidade, mais verbas em virtude dos convnios. O Estado sairia ganhando duplamente pois no necessitaria repassar verbas adicionais para as custosas e ineficientes universidades pblicas e ainda estaria ampliando a oferta de ensino superior e fornecendo P&D para as empresas. Como viabilizar, no seio do Estado, a supremacia do privado frente ao pblico? As polticas de privatizao tout court, alm de desgastadas, so pouco viveis, visto que as corporaes, como as prprias privatizaes demonstram, no pretendem imobilizar capital nos pases perifricos. Os crescentes subsdios do BNDES a essas empresas atestam isso. Igualmente, pelos mesmos motivos, no interessa a abertura de novos empreendimentos de risco, assim, conforme sustentara Chesnais14, na periferia, os IDE no so aplicados como investimentos duradouros no setor produtivo, mas antes no diferencial de juros. A sada para isso, conforme o Banco Mundial, o estabelecimento de parcerias pblico privados: o Estado abre os servios pblicos explorao privada, fornece investimentos e toda sorte de garantias e o setor privado faz investimentos pari passu lucratividade esperada. Parceria Pblico - Privado

    Com essa normatizao, tambm a oferta de ensino superior por parte do Estado poderia ser confiada parceira com a esfera privada. Esse o cerne do Programa Universidade Para Todos (observe-se a ausncia do adjetivo pblica), apresentado pelo MEC. Conforme Edson Franco, presidente da Associao Brasileira de Mantenedoras do Ensino Superior (Abmes), a meta estipulada por Genro de 100 a 250 mil vagas gratuitas imediatas, e de 400 mil a 1 milho ao final de cinco anos. Recente matria de O Estado de So Paulo relata:

    Uma parceria pblica-privada (PPP) para disponibilizar vagas pblicas em universidades privadas. Assim pode ser definida a parte aparente do Programa Universidade Para Todos, apresentado nesta segunda-feira (16) pelo Ministrio da Educao (MEC). Como prmio

    14 Franois Chesnais. Mundializao: o capital financeiro no comando. Revista Outubro, SP:IES, n.5, 2001.

  • por essa doao de cadeiras para alunos ao Estado, as instituies do setor privado ficaro isentas de impostos e contribuies federais15. No secundrio destacar que o estabelecimento desse tipo de parceria na educao

    ter implicaes profundas, repercutindo em todos os nveis e modalidades. Essas parcerias redefinem o Dever do Estado na realizao do Direito universal Educao, ampliando a esfera privada em detrimento da esfera pblica. A induo privada estar guiada pelos nichos de mercado, fragmentando e focalizando a oferta educacional e, conforme aponta o INEP, expandindo matrculas em instituies que sequer atendem aos requisitos mnimos definidos na LDB.

    A questo mais relevante, entretanto, que, com elas, haver uma paulatina indistino entre as instituies pblicas e privadas, contrariando diversos aspectos da Constituio Federal, mas um objetivo h muito reivindicado pelos empresrios da educao. Nos termos dos documentos governamentais em circulao, doravante os recursos para as novas vagas sero distribudos por meio de duas linhas: concorrncia pblica e compra de vagas no setor privado. Na primeira situao, as mais competitivas, conforme avaliao, podero receber recursos pblicos, independente de suas naturezas jurdicas. Assim, o estabelecimento privado, que tem fins mercantis, e a universidade pblica e gratuita, comprometida constitucionalmente com a produo de conhecimento, passam a ser um nico sistema e, naturalmente, ambas devero possuir o mesmo direito de receber os recursos do Estado, desde que atendam aos requisitos do sistema de avaliao e que tenham compromisso social. O Pacto da Educao para o Desenvolvimento Inclusivo, ao prever edital para aquisio de vagas indistintamente para as universidades pblicas e privadas, operacionaliza esse propsito.

    No caso da compra de vagas no setor privado, previsto no referido Programa Universidade para Todos, essas vagas adquiridas nas privadas sero contabilizadas como vagas pblicas (atendem ao interesse pblico), entretanto, o estudante poder ter gratuidade integral ou no, conforme a sua renda, isso , sero vagas pblicas, mas no gratuitas. Uma questo imediata: por isonomia, se as vagas pblicas adquiridas nas particulares no , necessariamente, gratuita, por que as pblicas estatais teriam de prosseguir sendo gratuitas?

    A questo de fundo , de fato, a diluio das fronteiras entre o pblico e o privado16. Tanto o Ministro Tarso Genro, como o Secretrio Executivo do MEC, um dos proponentes dessa modalidade de parceira prevista nos documentos do Banco Mundial na Secretaria de Planejamento, sustentam a necessidade de suprimir a idia de que existem diferenas entre a educao pblica e a educao privada, visto que ambas atendem ao interesse pblico. Nos termos do Secretrio Executivo:

    15 . Maurcio Hashizumem, MEC prope "PPP" para criar vagas pblicas em particulares. OESP, 16/2/04, disponvel em www.estadao.com.br, acessado em 17/2/04. 16 Hugo Aboites. El dilema: la universidad mexicana al comienzo de siglo. Mxico, D.F., UCLAT-APN/UAM, 2001. Este autor destaca que a diluio da fronteira entre o pblico e o privado est presente no plano para o ensino superior elaborado pela Associao Nacional de Universidades e Instituies de Educao Superior (ANUIES) e que vem sendo aplicado pelo governo Fox.

  • Ns pretendemos quebrar um muro que separa hoje as instituies privadas das pblicas, aproximar os dois sistemas com benefcios mtuos. [] Ou seja, estamos pensando agora o setor em termos sistmicos, e no mais de forma compartimentada, sem coeso e sem coerncia interna.17 (destaques, RL) Essa perspectiva tambm defendida pelo Ministro: O papel que as universidades privadas vo ocupar no ensino superior brasileiro vai ser definido por essa relao que ns estamos estabelecendo com eles e pelo contedo da reforma da universidade. Por isso que as duas coisas so inseparveis. Essa reforma no somente da estrutura pblica: uma reforma da relao pblico-privado a partir do critrio do interesse pblico. E esse movimento um movimento inicial [].18(destaques: RL) O estabelecimento privado, que tem fins mercantis, e a universidade pblica e

    gratuita, passam a ser um nico sistema e, naturalmente, ambas devero possuir o mesmo direito de receber os recursos do Estado, desde que atendam aos requisitos do sistema de avaliao e que tenham compromisso social. Como pode ser visto na seo a seguir, o Pacto da Educao para o Desenvolvimento Inclusivo, ao prever edital para aquisio de vagas indistintamente para as universidades pblicas e privadas, operacionaliza esse propsito. Mais amplamente, a encomenda de vagas pblicas nas instituies privadas um passo imensurvel no apagamento da fronteira entre o pblico e o privado. Com as PPP, existir um nico sistema indiferenciado e, dada a maior eficincia do setor privado, conforme reconhece a Exposio de Motivos do mencionado PL, logo o fornecimento pblico por meio das privadas alcanar uma proporo tal que tornar as matrculas das universidades pblicas minoritrias dentro do que seria, outrora, a esfera pblica, agora redimensionada como pblica no estatal. O Secretrio Haddad direto quanto ao lugar secundrio das pblicas: Da mesma forma que, se houver espao oramentrio, ns temos que ampliar as vagas das universidades pblicas.19

    A referida indistino atende a um dos principais pontos da agenda do Acordo Geral sobre o Comrcio de Servios da OMC, o tratamento nacional a toda instituio privada que oferece um servio no pas, independentemente de pblica ou privada, nacional ou estrangeira. Como os Estados subvencionam as instituies pblicas, reclamam os empresrios, a concorrncia no se d em bases eqitativas e, por isso, ou o Estado subvenciona a matrcula de todos, igualmente, por exemplo, com vauchers, ou extingue o subsdio, de forma que todas as instituies tenham condies de concorrncia como se nacionais fossem.

    O resultado dessa liberalizao previsvel. A inviabilizao definitiva das instituies pblicas, em particular das que mantm pesquisa, e a difuso descontrolada de diplomas com significado impreciso. O dficit das transaes educacionais dos pases perifricos em relao aos pases do G-7, em especial EUA, Inglaterra, Frana, Alemanha e Austrlia decorrente do envio de um grande nmero de estudantes para estes pases, ir aumentar, pois, as suas poucas universidades com pesquisa iro ser violentamente

    17 . Hashizume, op.cit. 18 .Idem. 19 .Idem.

  • enfraquecidas. Em suma, a heteronomia cultural fincar razes profundas na educao dos pases perifricos.

    2 Apagamento da fronteira entre o pblico e o privado e a mercantilizao da educao Nesta seo as repercusses do deslocamento da educao de dever do Estado (e direito universal devido a todos os cidados) para bem pblico realizvel no mercado destinado, conforme seus meios, aos cidados-consumidores, sero examinadas de forma mais sistemtica.

    Partindo de um prisma mais largo, o estudo pretende especificar as principais ameaas ao ensino pblico contidas nas medidas que apagam as diferenas entre o pblico e o privado, como os Tratados de Livre Comrcio (TLC). Inicialmente, parte das manifestaes fenomnicas da privatizao e da comodificao da educao, buscando, ainda em um plano muito genrico, chamar a ateno do leitor para a necessria distino das atuais modalidades de privatizao em relao s dos perodos pretritos. Buscando sair da neblina difusa do real imediato, do mundo das manifestaes fenomnicas, a anlise pretende sustentar que, sob os TLC, o quadro outro.

    A experincia mexicana sob os TLCAN atesta que nem mesmo as universidades que se mantiverem no mbito do Estado permanecero indiferentes aos TLC. Mudam o ethos acadmico a partir do cotidiano, afinadas pelo diapaso do mercado. Este processo sofreu forte intensificao a partir da liberalizao do setor de servios nos TLC, processo que recentemente culminou com a reivindicao dos EUA e da Inglaterra na OMC, de liberalizao do setor educacional. Como outros temas criam arestas entre os principais blocos econmicos no mbito da OMC, atritos motivados por crescentes embates concorrenciais, os EUA investem, ao mesmo tempo, no ALCA, um TLC que teria efeito devastador sobre a educao dos pases latino-americanos, como se depreende das conseqncias do TLCAN para o Mxico e das medidas de flexibilizao no Brasil. Finalmente, este estudo faz uma sntese sobre como os TLC deformam a educao dos pases perifricos.

    A mudana de feio da educao nos anos 90 foi extremamente acelerada. A comodificao desse direito social republicano surpreenderia at mesmo os privatistas mais empedernidos h um par de dcadas. No que a educao estivesse desde sempre em antpoda vis--vis a esfera privada. O fornecimento privado era expressivo em determinados pases da Amrica Latina desde os anos 1960, sobretudo no ensino superior, a indstria multinacional de livros didticos igualmente possua um porte considervel em muitos pases e, no menos significativo, as relaes entre o pblico e o privado foram marcadas por conflitos que compem um vasto captulo da histria da educao em muitas naes. O que mudou foram os termos dos embates. Outrora, no se tratava de uma disputa centrada na concorrncia comercial, mas antes ideolgica. Um exemplo clebre no Brasil foi o confronto entre a liberdade de ensino, sustentada pelos educadores catlicos, versus educao pblica, defendida por educadores laicos. Os primeiros argumentavam que o monoplio educacional do Estado afastaria a juventude dos valores cristos e institucionalizaria o totalitarismo nos moldes soviticos. Assim, o conflito entre o pblico e

  • o privado esteve carregado de ideologias. A imagem do confronto tinha, portanto, uma tonalidade ideolgica.

    Atualmente, os formuladores da OMC e do ALCA e os lobbies mais fortes que atuam a favor da liberalizao da educao20, tentam criar uma imagem desideologizada dos termos do conflito restringindo-os aos interesses comerciais. A presena do setor privado na educao apresentada como um indicador de que a concorrncia comercial entre instituies pblicas e privadas j se constitui uma realidade, naturalizando, desse modo, a incluso da educao nos TLC: j que a educao no conceitualmente (e concretamente) uma atividade de Estado, ela deve estar submetida aos imperativos da concorrncia justa e leal dizem os senhores do comrcio educacional.

    O problema da comodificao , contudo, muito mais amplo e complexo, envolvendo o comrcio transfronteirio e alcanando o cerne da educao, redefinindo os seus objetivos, os seus valores e os seus contedos. Por isso, hodiernamente, a mercantilizao da educao no requer, necessariamente, a privatizao do fornecimento. Embora formalmente estatal, uma instituio pode ter objetivos privados (atender ao mercado) e um funcionamento orientado por pressupostos liberais como o individualismo, a competio entre os indivduos e, genericamente, uma concepo de mundo operacional ao capital.

    A mercantilizao da educao redesenha a forma e redefine o contedo das instituies educacionais. Um dos mais significativos exemplos do mundo que ilustra a nova situao dado pelo Brasil. Inicialmente, de forma: a nova paisagem educacional brasileira montona. Prdios de estilo pobremente ps-moderno, situados, no raramente, em shopping centers, acessveis por autopistas pedagiadas, ao longo das quais so expostos grandes letreiros luminosos, em que rostos jovens e bem-sucedidos so exibidos. Em termos do contedo anunciado, nesses centros de consumo de servios educacionais, carreiras glamourosas podem ser adquiridas e, conforme o anncio de muitos deles, com o mesmo padro das escolas estrangeiras, visto que os currculos so padronizados e importados de empresas educacionais situadas nos EUA.

    Mirando as pginas de jornais como Clarn, Folha de So Paulo, El Mercrio ou El Universal, possvel constatar a circulao de mensagens fundamentalmente iguais: as empresas proclamam, de forma mais ou menos sutil, que os seus cursos, diferente dos oferecidos nas universidades pblicas, esto afinados com as exigncias do mercado e seus professores so amigos do mercado, isto , so utilitaristas: ensinam os indivduos a privilegiarem os seus interesses pessoais em todas as esferas, em outros termos, a escola no tem outro fim que dotar os indivduos de competncias que lhes permitam a galgar posies sociais e obter melhor padro econmico.

    Na superfcie, os empresrios da educao anunciam promessas globalizantes. Mas existe o avesso da moda. Na esmagadora maioria das unidades de venda de ensino, os cursos so ministrados por professores horistas, desprovidos de carreira docente e de direitos trabalhistas bsicos e, diante de qualquer tentativa de organizao sindical, violenta

    20 .Global Alliance for Transnational Education, criada em 1995, rene empresas, universidades e governos com o propsito de difundir programas educativos transnacionais. National Committee for International Trade in Education NCITE, representa os interesses comerciais das instituies superiores de ensino e de formao estadunidenses. Criada em 1999, busca influenciar a representao dos EUA nas negociaes dos TLC, atua em colaborao estreita com o Centre pour la qualit dans leducation. (Laval e Weber, 2003,p.19-21)

  • represso impingida aos rebeldes que reivindicam a livre organizao sindical; os currculos so improvisados, desconexos e superficiais e pouco ou nenhum investimento realizado em bibliotecas, laboratrios ou na dedicao do professor instituio.

    O que h de novo nessas novas formas de privatizao? notrio que, no Brasil, a inverso pblico/ privado remota ao governo militar. Algo semelhante ocorrera no Chile e na Colmbia. O que novo, basicamente, a desregulamentao do setor de servios que prepara o terreno para enraizar, mais profundamente do que em qualquer outro perodo, a educao na vida privada.

    O deslocamento da educao para a esfera privada guarda diferenas com o processo de privatizao anterior. Na ltima dcada, tomando a Amrica Latina como um todo, a regio foi a de maior privatizao stricto sensu do mundo, alcanando perto de 40% do total de matrculas (Johnstone, 1998, apud Guadilla, 2002)21. No Brasil, mais do que em universidades (que, conforme a Constituio Federal, deveriam assegurar a indissociabilidade entre o ensino, a pesquisa e a extenso, preceito largamente desrespeitado), os investidores conquistaram o direito de explorar organizaes anteriormente no existentes, como os Centros Universitrios22 que, a exemplo das universidades, podem criar cursos livremente, conferir graus, emitir diplomas, sem quaisquer ingerncias do setor pblico, porm no necessitam desenvolver pesquisas. Em toda Amrica Latina, o crescimento do nmero de instituies (atualmente cerca de 6 mil) se deu por meio de instituies no-universitrias (compem 85% das instituies e 31% das matrculas).

    Estabelecido o padro estadunidense (colleges), a meta desejada pelos investidores associados em maior ou menor grau ao imperialismo a abertura do mercado educacional ao capital estrangeiro, removendo os obstculos nacionais e a injusta proteo do Estado s universidades pblicas e gratuitas. Esse o objetivo dos EUA, da Inglaterra e de outros pases da OCDE, expresso em uma solicitao formal a OMC que ser examinada adiante.

    Os TLC e as universidades pblicas Uma outra dimenso a considerar refere-se universidade pblica. Seria

    inverossmil que essa onda privatizante e mercantilizadora no atingisse internamente as instituies pblicas. Determinados autores sustentam que as recentes mudanas so to profundas que podem ser caracterizadas como capitalismo acadmico.23

    No casualmente, o Estado vem sendo transfigurado no mesmo ritmo. Como conseqncia das transformaes no Estado, a educao assume contornos cada vez mais privados, mercantilizados e ajustados ao onipresente mercado. Modalidades de ensino adequadas ao capitalismo dependente, conforme o conceito de Florestan Fernandes, tiveram

    21 . Carmen Garca Gadilla. Tensiones y transiciones. Venezuela: CENDES/ Nueva Sociedad, 2002. 22 . Desde sua criao em 1997, a partir da Lei 9394/96, foram criados 70 Centros Universitrios e nenhuma universidade. Conforme o INEP (2004), entre 1997 e 2002 as matrculas foram multiplicadas por 13.8, passando de pouco mais de 30 mil para 416 mil, mais de 90% no setor privado. No mesmo perodo, as universidades pblicas passaram de 666 mil para 915 mil (as matrculas foram multiplicadas por um fator = 1,37). 23 . Sheila Slaughter e Larry Leslie. Academic capitalism. Baltimore, Maryland: The John Hopkins Univ.Press, 1999 e Pablo Gonzlez Casanova. La Universidad necesaria en el siglo XXI. Mxico,DF: Era, 2001.

  • um crescimento exponencial e foram naturalizadas como se no houvesse alternativa para um pas que se encontra fora do ncleo hegemnico do capital. Com efeito, no Brasil, em menos de quatro dcadas, a relao do fornecimento pblico-privado se inverteu: nos anos 60, perto de 60% dos estudantes estavam matriculados nas instituies pblicas; em 2002, apenas 27% das matrculas de graduao so pblicas (INEP, 2004).

    As instituies pblicas o eixo axial do sistema universitrio vm sendo submetidas a dramtico sufoco oramentrio, enquanto, concomitantemente, a cobrana de taxas, a venda de servios e a pesquisa operacional hipertrofiam as mediaes que as deslocam para a esfera privada. Os marcos jurdicos, inclusive constitucionais, foram redefinidos para institucionalizar essas mudanas. Como resultado das mesmas, em lugar de formao, a meta agora o adestramento profissional aligeirado ou a formao por competncias24. O exemplo mais extremo dessas novas orientaes o Curso Seqencial previsto na LDB, uma modalidade de terminalidade minimalista em nvel superior. A sua caracterizao pelo Conselho Nacional de Educao demandou verdadeiros malabarismos conceituais em virtude de sua inconsistncia epistemolgica e da inverossimilhana de suas virtudes profissionalizantes. significativo que, em apenas dois anos, esta modalidade cresceu 270%, passando de 178 cursos em 2000 para 656 em 2002.

    Essas mudanas no foram governadas pelos livres influxos de mercado; ao contrrio, foram provocadas pela ao intencional de governos submetidos as condicionalidades de organismos internacionais como o FMI, o Banco Mundial e a OMC. Os dois primeiros redesenharam o Estado, encolhendo os servios pblicos voltados para a afirmao de direitos da cidadania, e a ltima promoveu a abertura comercial tarifas alfandegrias e no alfandegrias e o setor de servios vis--vis ao mercado. O modus operandi dos organismos conhecido: os contratos e as cartas de aval somente so concedidos se o tomador aceitar determinadas condicionalidades. Foi assim na crise da dvida de 1982, e segue da mesma forma na atualidade, mesmo que o tomador tenha sido eleito com uma agenda distinta da preconizada pelo organismo. Um exemplo concreto e atual dessa situao vem do Banco Mundial. Em contrapartida ao emprstimo de US$ 8 bilhes que poder ser concedido ao Brasil, o Banco exige novas condicionalidades: o fim da gratuidade das universidades pblicas, a incluso no Imposto de Renda da deduo de gastos privados em sade e educao, o fim da multa de 40% sobre o Fundo de Garantia por Tempo de Servio, em caso de demisso sem justa causa, e o aumento da contribuio previdenciria dos servidores pblicos dos atuais 11% para 14%25.

    Ofensivas para aplicao dos TLC na educao superior Aps o setor de servios ter sido includo no rol das atividades a ser liberalizado e

    flexibilizado, conforme as resolues da Rodada Uruguai, em 1994, o ensino superior pode ser inserido na pauta de atividades a serem desregulamentadas. Recente representao dos EUA (e de aliados como Nova Zelndia e Austrlia) na OMC comprova que os empresrios do setor de servios educacionais dos EUA e, certamente, de seus aliados nas periferias, demandam a ampliao desse mercado. Em linhas gerais, essas proposies alargam o espao privado em detrimento do espao pblico, acelerando a mercantilizao de todas as

    24 . Christian Laval. Lcole nest ps une emtreprise.Paris: d. La Dcouverte, 2003. 25 . Marta Salomon. Banco Mundial impe condio para ajuda. FSP, 8/7/03.

  • esferas do trabalho acadmico, comprometendo a prpria existncia deste, visto que o ethos acadmico chamado pejorativamente de modelo europeu considerado incompatvel com o mercado. A exemplo do que ocorrera com a implementao do TLCAN em 1994 e do atual processo de construo do ALCA, o silncio sobre o processo uma marca constante: os parlamentos, no mximo, referendam uma deciso tomada alhures.

    Nesse contexto de mercantilizao da educao, grandes operadoras do capital financeiro esto vidas por explorar essa nova fronteira. Em nvel mundial, o nmero de estudantes passou de 6,5 milhes em 1950 a mais de 90 milhes no incio da presente dcada. O banco de negcios Merril Lynch calculou o mercado mundial de conhecimento atravs da internet em 9,4 bilhes de dlares em 2000, montante que dever chegar a 53 bilhes antes de 200326. A Austrlia que exportava 6 milhes de dlares em ensino superior por ano em 1970, ultrapassou a cifra de 2 bilhes em 2002. Potencialmente, o mercado extraordinrio e por isso que grandes universidades fazem associaes com o objetivo de entrar nesse magnfico mercado. O melhor segmento, todas as grandes do setor convergem nesta avaliao, compreende o ensino superior e a formao continuada. Mas ainda existem obstculos jurdicos de nvel nacional a serem removidos, conforme possvel verificar na exposio de motivos dos EUA dirigida a OMC27 e nos documentos preliminares do ALCA. Muitos pases resistem em liberalizar completamente os servios educacionais como os da UE; outros, como o Brasil, no governo FHC, aceitariam, desde que houvesse contrapartidas no setor agrcola28, por exemplo.

    Acordo para criao da rea de Livre Comrcio das Amricas e o mercado

    educacional Entre os aspectos do ALCA que afetam mais diretamente a educao, preciso

    destacar, prioritariamente, os seguintes captulos: 1. servios, 2. compras governamentais e 3. investimentos estrangeiros diretos (IED).

    (1) O significado da abertura do setor de servios colocar em prtica o pleito dos EUA e da Inglaterra na OMC (Documento SCSSW23 de 18 de dezembro de 2000), sem as resistncias, no que se refere ao ensino superior, da UE e do Japo. Quais os ganhos imediatos que os EUA gostariam de assegurar? No caso da educao, so especialmente relevantes: i) a remoo de todos os obstculos ao comrcio transfronteirio de servios educacionais, seja pela instalao de empresas e franquias em determinados pases, seja por meio de EAD; ii) a ampliao do que pode ser patentevel (biodiversidade) e do

    26 . Marco Antnio Rodrigues Dias. A OMC e a educao superior para o mercado. In: Jorge Brovetto, Miguel R. Mix e Wrana M. Panizzi. A educao superior frente a Davos. Porto Alegre, RS: Ed. UFRGS, 2003. 27 . Ver: OMC, Documento SCSSW23 de 18 de dezembro de 2000. 28 . Ellen Gould, Canad, aponta que o governo FHC, antes de acabar, apresentou talvez a "abordagem mais agressiva entre todos os membros da OMC no sentido da liberalizao de servios" - segundo Ellen, na lista de pedidos do Brasil aos demais pases esto includos setores como educao, livrarias, museus, audiovisual, servios postais, telecomunicaes e transportes. O preocupante que, como diz Scott Sinclair, "o que o Brasil pedir aos outros, os outros certamente pediro ao Brasil em troca". Este o princpio da negociao.

  • perodo de validade das patentes para alm dos 20 anos j estabelecidos (ver seo sobre as repercusses do AGCS da OMC acima apresentada).

    (2) A abertura da rea de compras governamentais, liberalizando a participao de empresas estrangeiras nas compras, nos arrendamentos e nos aluguis de servios e produtos das prefeituras, dos governos estaduais e do governo federal. Os setores nacionais de software, material didtico, grfico, construo civil e arquitetura, alimentos, hotelaria, limpeza, sade, e outros, como meio ambiente (engenharia, computao, testes bioqumicos, mineralogia, florestas etc.) sero vigorosamente afetados. No NAFTA, o Mxico abriu todos estes setores licitao internacional. O Canad, entretanto, excluiu definitivamente os servios de investigao e desenvolvimento (todas as classes); estudos e anlises (como estudos animais e pesqueiros, mdicos, legais etc), servios relacionados com os recursos naturais; servios de sade e servios sociais; controle de qualidade e servios financeiros e afins (todas as classes), entre outros. O contraste com as reduzidas exigncias do Mxico gritante29.

    Cabe indagar sobre o futuro dos empregos, ainda significativos, nesses diversos setores. Certamente, as grandes corporaes dotadas de maior tecnologia e eficincia iro triturar grande parte deles. Cumpre observar que muitos desses empregos exigem alta qualificao, guardando vnculos mais ou menos diretos com centros de investigao e com universidades pblicas. Assim, muitos desses empregos estratgicos sero perdidos, enfraquecendo, ainda mais, a rea de pesquisa e desenvolvimento. No ocioso lembrar que o Canad, distintamente do que fez o Mxico no TLCAN, protegeu os empregos das reas que requerem mais conhecimento. Nos pases latino-americanos, o circuito da heteronomia estar fechado: simplificao do parque produtivo, desarticulao dos servios mais complexos, mercantilizao sem freios da educao e frgil capacidade de pesquisa original.

    (3) A liberalizao dos investimentos, nos termos tentados no AMI, certamente o que provocar maior repercusso em todas as reas, configurando um novo marco nas relaes entre as corporaes e os mercados nacionais, tornando irrelevante as regulamentaes nacionais em relao a atividades de responsabilidade do Estado, como a educao, o fornecimento de gua etc., bem como removendo quaisquer obstculos entrada e a sada de capitais, independentemente de suas destinaes (busca de diferencial de juros, aquisies e fuses, novos empreendimentos). Na prtica, seria o marco normativo estrutural, a partir do qual todos os outros setores estariam liberalizados (ver, especialmente, os estudos apresentados em: AMI e o ALCA: liberalizao radical dos investimentos, ALCA e luta intercapitalista e liberalizao radical dos investimentos).

    Pelo exposto, preciso que fique claro que, ao contrrio do que comumente afirmado, os TLC no afetam o direito a educao apenas no fornecimento da educao (abertura do mercado educacional), o que j no seria pouco, mas, sobretudo, afeta a educao pois redefine, amplamente, os marcos da soberania (redesenhando o Estado) e aprofundando o carter capitalista dependente das naes perifricas. Destarte, os TLC aprofundam a condio capitalista dependente e, conseqentemente, a heteronomia cultural. Nesse sentido, a considerao das implicaes do TLCAN/NAFTA para o Mxico crucial.

    O direito de todos a educao gratuita em todos os nveis, uma conquista da Revoluo mexicana de 1910, resistiu a toda sorte de presses e tentativas de 29 . Hugo Aboites. Viento del Norte. Mxico,DF: Plaza y Valdes Ed.,1999, p.25-26.

  • descaracterizao, mas acabou sendo atingido pela tempestade neoliberal dos anos 1990. Em um balano dos 10 anos de vigncia do TLCAN, Aboites (2003)30, assim sumarizou as conseqncias do Acordo:

    1) la educacin debe considerarse como plenamente incluida en el rubro de Servicios de los tratados de libre comercio, y 2) la participacin del Estado en educacin debe ser tal que no inhiba o impida el libre comercio en el mbito educativo. Para dar este cambio en Mxico fue necesario modificar la Constitucin (1993), aprobar una nueva Ley General de Educacin (1994) e incluir en la tambin nueva Ley de Inversin Extranjera (1993) que la educacin era una ms de las reas de inversin extranjera, sujeta a menos limitaciones de nacionalidad que las requeridas para crear compaas de aerotaxis o fbricas de juegos piroctcnicos. A partir dos primeiros esboos do TLCAN e da agenda da Rodada Uruguai do

    GATT, o discurso governamental passou a ser outro. O ensino superior, por exemplo, por ser autnomo, no poderia estar inserido no princpio da gratuidade da constituio, sustentavam os neoliberais. Com efeito, em 1993, a Carta Magna relativizou as conquistas e os direitos estabelecidos a partir da Revoluo mexicana. O conceito de Estado passou a ser mais restrito e, assim, a gratuidade somente passou a ser assegurada para os entes federativos (rgos da Unio, dos estados e dos municpios), um artifcio que excluiu as entidades pblicas autnomas como as universidades pblicas. Ademais, a nova redao da Carta explicita que a gratuidade devida exclusivamente educao pr-escolar, primria e secundria. Agora o Estado apenas um promotor da educao superior e o principal lcus de produo de conhecimento cientfico passa a ser passvel de privatizao, situao em que no possvel produzir conhecimento novo (Aboites, 1999, p. 49-50). As conseqncias imediatas do afastamento relativo do Estado foram a cobrana de taxas diversas nas pblicas, gerando tenses com o movimento estudantil, cujo exemplo mais clebre foi a Greve da UNAM em 1999, e a expanso vertiginosa do fornecimento privado do ensino superior31:

    Quadro 3: Crescimento da matrcula na educao superior do Mxico (em milhares).

    Ano Matrcula pblica Matrcula privada

    1980 785.9 149.9 (16.0 %) 1990 1,012.1 239.9 (19.2 %) 2002 1,613.0 646.8 (28.8 %)

    --------------------------------------------------------------- Fonte: Segundo Informe de Gobierno, 2002. Anexo Estadstico Educacin. Incluye educacin normal, 30 . Hugo Aboites. DERECHO A LA EDUCACIN O MERCANCA: La experiencia de diez aos de libre comercio en la educacin mexicana. Ponencia al Foro: "Libre Comercio y Educacin" Coalicin Trinacional en Defensa de la Educacin Pblica.Auditorio Alfonso Caso UNAM. Cd. Universitaria, Mxico, D.F. 8 y 9 de septiembre del 2003. 31 .Conforme a Asociao de Reitores (ANUIES) e a Secretaria de Educao Pblica do Mxico, doravante, a perspectiva ampliar a oferta por meio de EAD, situao, conforme Aboites, op. cit,2003, que pode ampliar o fornecimento privado a 50% das matrculas em uma dcada.

  • licenciatura y posgrado (citado por Aboites, 2003).

    Com base no princpio do tratamento nacional aos investidores dos outros pases, todos monoplios pblicos gua, educao, sade tornar-se-o litigiosos, pois a exceo admitida pela OMC e pelo ALCA atividade que se constitui monoplio do Estado ser de difcil caracterizao. De fato, a manuteno e o desenvolvimento de determinados servios pelo Estado poder ser denunciado como concorrncia desleal. Inicialmente, pelo Acordo, os servios do Estado que j so gratuitos (monoplios legais) devem ser excludos do tratado. Contudo, a cobrana em um teatro ou museu pblico significa que estes realizam um servio comercial? Os servios que j possuem competidores, como o ensino superior, podem ser caracterizados como monoplio do Estado? Em setembro de 1998, documento do Secretariado da OMC sustentava que, a partir do momento em que um pas permite a existncia de provedores privados na rea de educao, aceita o princpio segundo o qual a educao, e em particular o ensino superior, pode ser tratada como um servio comercial e, em conseqncia, deve ser regulada pela OMC (Dias, 2003,p.54).

    Alm dos potenciais conflitos com os estados, a liberalizao dos servios far com que universidades estrangeiras possam operar livremente nos pases-membros, ignorando as regulamentaes nacionais, concedendo ttulos e diplomas, inclusive por meio de EAD. No caso do Mxico (TLCAN), no h, pela Lei de Investimentos Estrangeiros (27/12/94), nenhum requisito se a participao for de at 49%, se ultrapassar, as exigncias so mnimas, como instalaes salubres, planos e programas que as autoridades competentes considerem pertinentes etc. Em relao Lei de Investimentos anterior (1973), o nmero de exigncias foi reduzido de 17 para 5. Entre outros, foram suprimidos itens como preservar os valores sociais e culturais do pas, a identificao do investidor estrangeiro com os interesses do pas e no prejudicar as empresas nacionais que esto operando satisfatoriamente nem se dirigir a campos adequadamente coberto por elas (Lei para Promover o Investimento Mexicano e Regular o Investimento Estrangeiro, Art. 13). O exame da proposta de investimento externo somente poder impor requisitos que no distoram o comrcio internacional (Art.29) (Aboites, 1999,p. 83). Desde o TLCAN, tem surgido iniciativas como associaes entre instituies mexicanas e universidades dos EUA, cursos por meio de EAD, inclusive de ps-graduao estrito senso, e investimentos de corporaes em universidades mexicanas, valendo-se da infra-estrutura existente e do pessoal, reorientando as atividades de ensino e pesquisa de instituies pblicas. A Lei para a Coordenao da Educao Superior admite que as instituies podero levar a cabo programas para incrementar seus recursos prprios e ampliar as suas fontes de financiamento. A mesma lei isenta os recursos obtidos no mercado de impostos (respectivamente Art. 21 e 22, cit. por Aboites, 1999,p.93).

    Conforme o Acordo, o exerccio das profisses tambm ser flexibilizado: a exigncia de determinado ttulo ou habilitao emanada de autoridade nacional ser suprimida como ocorreu no Mxico a partir da reforma do Art. 3 da constituio deste pas. Nenhum diploma ter de ser revalidado, como, atualmente, exige a legislao brasileira. Mas isso no quer dizer, em absoluto, que a equivalncia dos diplomas ir abolir as fronteiras para a mobilidade do trabalho. Distintamente da Unio Europia (UE) e do MERCOSUL, o ALCA exclui a mobilidade de mo de obra. Assim, os guetos de mo-de-obra de baixo custo e hiperprecarizada ficam assegurados.

    Como o trabalho e o conhecimento no esto mundializados (um desdobramento das barreiras a livre movimentao dos trabalhadores), tem sentido a declarao do Banco

  • Mundial de que, nos pases perifricos, no h lugar para o modelo europeu de universidade: produtora de conhecimento, autnoma, pblica e gratuita. H vrios estudos que corroboram a existncia dessa poltica do Banco Mundial. Mas no devemos imputar essa poltica apenas aos organismos internacionais. Ela absolutamente consensual entre as elites econmicas latino-americanas. No Brasil, as diretrizes do MEC para os Centros Federais de Educao Tecnolgica (CEFET) so um exemplo de como, em mbito local, as diretrizes so assumidas com radicalidade incomum. Centros de referncia para a formao em nveis mdio e superior de tecnlogos e engenheiros, os CEFET asseguravam uma formao de alto nvel. Um tcnico em qumica, por exemplo, recebia uma forte base de histria, geografia, artes, linguagem, visto que a formao objetivava a sua formao integral. Com o acordo feito entre o Ministrio da Educao e o Banco Interamericano de Desenvolvimento, os CEFET deveriam excluir da grade curricular todas as disciplinas de fundamentao cientfica. Na principal unidade do pas, o Cefet-Paran, professores de fsica e de matemtica tiveram suas cargas horrias em aula fortemente deprimidas.

    Est em curso uma poltica de "apartheid educacional planetrio". Os acordos que esto sendo construdos agora, configurando uma nova gerao de reformas neoliberais, mais especificamente nos tratados de livre comrcio, por meio da Organizao Mundial do Comrcio, podem liberalizar os mercados no setor de servios. Com a abertura do mercado educacional, seja por meio do ALCA ou da OMC, cursos de graduao ou ps-graduao podero ser realizados via Internet, independentemente de fronteiras nacionais. E com reconhecimento. Hodiernamente, universidades pblicas passam a se engajar nesse mercado promissor, embora, devido a restries que o ALCA quer remover, o reconhecimento seja restrito aos cursos de instituies nacionais. Um exemplo polmico desse tipo de investida so os cursos de graduao, inteiramente a distncia, patrocinados pela Secretaria de Educao de So Paulo e acolhidos pelas trs universidades paulistas - USP, Unicamp e Unesp. Em um tal contexto de perda de soberania como Frana e Canad j haviam denunciado em relao ao AMI no haver possibilidade de retomar, mesmo que em bases renovadas, polticas pblicas de desenvolvimento e, muito menos, transformaes capazes de engendrar a negao da condio capitalista dependente. A exortao de Thatcher no h alternativa assume aqui toda a sua plenitude. Diante da ofensiva liberal, as lutas antiglobalizao assumem perfil mais abertamente antineoliberal e, inegavelmente, mais crticas em relao as grandes corporaes do Norte. As trs edies do FSM de Porto Alegre atestam isso. No ltimo Frum, o lxico da crtica inclua expresses que aparentemente estavam em desuso como imperialismo e internacionalismo. Nesse ambiente que a noo de exceo do setor cultural pde ser difundida, assim como que a educao um direito consagrado por lutas seculares no um servio a ser comodificado ou, ainda, que a escola no uma empresa, palavras-de-ordem encampadas por sindicatos, confederaes sindicais, por entidades de representao acadmica e por fruns diversos, como o Frum Mundial de Educao.

    3 Democracia contra o mercado: retomar a bandeira da autonomia para a esfera pblica

  • Na Argentina e Mxico pases com forte tradio de autonomia universitria, o primeiro em virtude das Reformas de Crdoba (1918) e o segundo pela Revoluo de 1910-1919 as aes governamentais se deram no sentido de desregulamentar a garantia legal do estatuto. Foi empreendida uma ao ideolgica contra a autonomia amparada no discurso de que esta prerrogativa impedia o aumento da eficincia e politizava excessivamente a universidade. A gigantesca marcha realizada em conjunto com os zapatistas na famosa greve da UNAM, em que os estudantes, para lutar contra a cobrana de taxas, empreenderam uma longa e tensa greve de dez meses, que resultou em cerca de mil estudantes presos pela polcia federal, simbolizava essa politizao. Nesses dois pases, governos neoliberais, reitores-empresrios, meios de comunicao e o Banco Mundial lanaram intensa campanha em prol da adequao da universidade realidade do mercado e isso exigiria o aumento de sua produtividade, a sua diferenciao institucional e a diversificao das fontes de financiamento (cobrana de taxas). Entre as formas de promover a eficincia, encaminharam projetos de avaliao centralizada, atrelaram o salrio a indicadores de produtividade, tentaram limitar o livre-acesso e associar as verbas de pesquisa s necessidades empresariais.

    No Brasil, um pas que, rigorosamente, nunca teve universidades pblicas autnomas, os objetivos dos governos neoliberais foram rigorosamente os mesmos: eficincia, diferenciao institucional e diversificao das fontes de financiamento. Contudo, os meios foram outros. Em vez de combater a malvola autonomia, os neoliberais e o Banco Mundial saram em defesa deste estatuto. Como entender essa aparente antinomia? Como a autonomia pode ser coerente com os objetivos dos neoliberais? Preliminarmente, importante situar o contexto da noo de autonomia no discurso da reforma neoliberal do Estado e, mais particularmente, da educao na AL: a autonomia est inscrita em um lxico em que expresses como sociedade civil, terceiro setor, descentralizao, desregulamentao, flexibilizao e liberalizao nos so apresentadas como requisitos para a eficincia e a democracia frente s universidades estatais burocrticas, ineficientes e caras. Como visto anteriormente, no Brasil o servio pblico somente tem incio aps a Revoluo de 30, com o surgimento do Departamento Administrativo do Servio Pblico (DASP), em 1938, por Getlio Vargas, dos concursos pblicos, planos de cargos etc. As universidades, estrito senso, nunca foram toleradas: vide a extino da Universidade do Distrito Federal, criada por Ansio Teixeira em 1935. Nossas instituies seguiram, grosso modo, o modelo estatal napolenico. No so propriamente pblicas, embora sejam estatais, pois interesses particularistas predominam (Napoleo: poder de escolher os professores; Brasil: poder de escolher o reitor, a forma de acesso etc). So expresses desses particularismos que marcaram a histria da universidade no Brasil:

    (I) USP: a cincia vencer lema lido no apenas a partir da razo iluminista, mas a partir da tica da alta elite paulistana derrotada na chamada Revoluo Constitucionalista de 1932. As elites paulistanas acreditavam que, com uma universidade de excelncia, capaz de formar uma elite bem educada, seria possvel assegurar a sobreposio dos seus interesses frente aos das outras regies que ento sustentavam Getlio Vargas. Mas para isso, a universidade no deveria abrir suas portas para os desfavorecidos, firmando-se como um espao formador dos dominantes.

  • (II) Modernizao conservadora: perodo que ganhou fora no governo empresarial-militar de 1964, no qual a primazia do econmico sobre o poltico, do Estatal-militar sobre o pblico, reforou o aspecto mercantil do Estado e o combate feroz s conquistas pblicas dos trabalhadores. Nesse perodo, o financiamento C&T no foi realizado conforme regras pblicas energia nuclear, revoluo verde, tecnicismo educacional, segurana nacional etc. debilitando a autonomia e hipertrofiando as reas tidas como estratgicas para o modelo capitalista dependente. Todo esse processo culminou com a Reforma MEC-USAID que americanizou a universidade brasileira, at ento ainda vivamente marcada pelo modelo europeu. um perodo de desconcertante expanso do setor educacional privado e que plantou bases slidas para a privatizao ulterior.

    (III) FHC: autonomia e o Plano Diretor da Reforma do Estado. Como discutido anteriormente, nesse governo que as polarizaes iniciadas na chamada redemocratizao assumem maior dinamismo e concretude. Assim, de fato, a grande polarizao passa a ser expressa nos plos estatal -autoritrio x privado-democrtico. De fato, como sustentado, Cardoso, ao difundir no pas a chamada teoria do autoritarismo, encaminhou, na verdade, uma grande operao ideolgica que alcanou outros pases, como a Argentina com ODonnell, por exemplo. Com essa proposio temos a centralizao do campo terico na polarizao estatal / privado, suprimindo o pblico.

    A oposio pblico / privado foi deslocada para Estatal / privado. Assim, a crtica ao estatismo teve como contraponto o mercado, lugar da eficincia, do mrito, da criatividade, da iniciativa e da criao. A nova oposio favoreceu os neoliberais, pois permitiu a desqualificao do Estado e o desaparecimento do pblico.

    O pensamento poltico e jurdico moderno consagrou uma distino clara entre o que pblico e o que privado (privado = no-pblico). O interesse pblico determinado em contraste com o interesse privado e vice-versa. a oposio entre o que coletivo, universal, geral e o que individual, grupal, particularista. Nas cincias sociais, a oposio entre a sociedade de iguais e a sociedade de desiguais; entre poltica (interesse geral) e economia (interesse mercantil) ou, nos termos de Marx, entre o cu da poltica e o inferno das relaes de trabalho.32

    As idias ps-modernas foram materializadas, como poltica de governo, no Plano Diretor da Reforma do Estado uma reforma afinada com os acordos da OMC, em especial com a Rodada Uruguai, na qual a educao includa no setor de servios no-exclusivos do Estado e competitivo. Conforme o Plano de Cardoso, as universidades deveriam assumir a forma jurdica das Organizaes Sociais que estabeleceriam contratos de gesto com o setor privado. A rigor, essas organizaes so organismos privados. nesse contexto da Reforma do Estado que o tema da Autonomia retomado, significando a transformao das universidades de entes pblicos (autarquias e fundaes de direito pblico) em entes privados (organizaes sociais). Deslocadas para a esfera privada, poderiam operar livremente no mercado. Este foi o sentido da PEC-370/96. A aparente contradio assinalada acima entre as experincias da Argentina e Mxico, de um lado, e do Brasil, de outro, pode ser compreendida examinando o significado da autonomia para determinadas linhagens liberais que desaguaram no 32 . Emir SADER. O pblico, o estatal e o privado. Projeto de pesquisa para renovao de bolsa de produtividade do CNPq, 2003.

  • neoliberalismo de Hayek. Este autor sustenta que o pensamento liberal estabeleceu a distino entre duas linhas intelectuais sobre a liberdade, de origens radicalmente opostas.

    1) linha empiricista, vinculada essencialmente tradio britnica que descendia de Hume, Smith e Ferguson que viam o desenvolvimento poltico como um processo involuntrio de aprimoramento institucional gradual, comparvel ao funcionamento da economia de mercado ou evoluo do direito (cosmos)33, a qual se filia Locke. A autonomia dos indivduos e das instituies expressa essa liberdade.

    2) linha racionalista, tipicamente francesa, descendente de Descartes, passando por Condorcet, chegando at Comte () que considerava as instituies sociais como sujeitas construo premeditada, dentro do esprito da engenharia politcnica (taxis) com vistas ao igualitarismo.

    Conforme Hayek, observa Anderson, apenas a primeira conduzia verdadeira liberdade, a segunda a destruiria (Idem, p.331).

    Quando o Banco Mundial sai em defesa da autonomia universitria e da descentralizao da educao, da sade etc., em favor de uma nova esfera dita pblica-no estatal, est sendo caudatrio dessa primeira tradio. A partir dessa constatao possvel resolver a aparente contradio da atuao desse organismo: no caso dos dois primeiros pases, a autonomia universitria, fruto de lutas sociais, est enraizada na esfera do Estado, assim, a tarefa do Banco a desregulamentao dessas universidades para aproxim-las do mercado; no caso do Brasil, distintamente, as universidades esto fortemente enraizadas nas engrenagens do Estado e, por meio da autonomia (liberal), seria possvel desloc-las para o mercado. Em suma, os objetivos no so contraditrios, ao contrrio, so coerentes e convergentes, pois objetivam deslocar essas instituies para a esfera privada.

    4. Uma outra agenda para o ensino superior, eixos de interveno A agenda da reforma universitria do governo de Lula da Silva no rompe com o passado recente do pas, at os smbolos e nomes do passado so reivindicados, como a denominao da equipe encarregada da reforma universitria: grupo executivo da reforma universitria (GERES), a mesma denominao utilizada pela Nova Repblica que igualmente instituiu o GERES que elaborou um projeto que provocou vigorosa oposio de grande parte da academia brasileira34.

    33 . Perry ANDERSON. Afinidades seletivas. So Paulo: Boitempo Editorial, 2002.

    34 . Conforme o DIAP, em 1985, foi criado o Grupo Executivo para a Reformulao da Educao Superior (Geres). Composto por cinco membros, o Grupo elaborou uma proposta de lei, na qual pretendeu reformular as instituies federais de ensino superior. Em linhas gerais, a proposta do Geres quis fazer as seguintes modificaes: i) extinguir a dualidade na estruturao universitria com a criao de um novo ente jurdico sem controles oramentrios e salariais rgidos, sob a forma de dotao global; ii) controle das universidades somente sobre os fins; iii) valorizao dos nveis mais elevados da carreira docente; e iv) participao dos docentes, estudantes e dos funcionrios na elaborao das listas para os cargos de direo das universidades. A reao dos segmentos

  • Uma agenda de reformas transformadoras, como parte da luta por uma nova sociedade, requer a retomada de bandeiras que ecoaram na Comuna de Paris, em Maio de 1968 e nas lutas antineoliberais dos anos 1990. Se for pblica, tem de ser universal; um direito de todos e um dever do Estado atualmente menos de 27% das matrculas esto nas IES pblicas e apenas 15% dos jovens de 18-24 anos esto em alguma instituio de ensino superior. O horizonte do livre-acesso, embora aparentemente uma consigna coberta pelos fungos, visvel apenas nos livros de histria, uma bandeira central e de aguda atualidade, podendo agregar os movimentos da juventude em lutas amplas e unitrias. No se trata, por suposto, de acesso a instituies degradadas, por meio de bolsas em particulares, mas antes da efetiva democratizao do acesso s instituies propriamente univers