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Publicação Semestral dos Acadêmicos do Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte Ano XVI Número 29 jan./jun. 2011 - Natal/RN, 2011 COMISSÃO EDITORIAL Presidente Angelus Emilio Medeiros de Azevedo Maia Membros Ana Luiza de Morais Rodrigues Izadora de Medeiros Souza Mariana Nobre Medeiros e Silva Thiago Augusto Lopes de Morais Colaboradores Albert Barcessat Gabbay Herbet Miranda Pereira Filho Laís Morais de Andrade Nathália Maria Ariston Trindade CONSELHO EDITORIAL Artur Cortez Bonifácio Anna Emanuella Nelson Dos Santos Cavalcanti Da Rocha Camila Pinto Gadelha Diogo Pignataro de Oliveira Edilson Pereira Nobre Júnior Elke Mendes Cunha Fabiano André de Souza Mendonça Fábio Wellington Ataíde Alves Igor Alexandre Felipe de Macêdo Ivan Lira de Carvalho Jahyr Philippe Bichara Jose Miqueias Antas de Gouveia Luciano Athayde Chaves Madson Ottoni de Almeida Rodrigues Marcus Aurélio de Freitas Barros Maria do Perpétuo Socorro Wanderley de Castro Morton Luiz Faria De Medeiros Noel de Oliveira Bastos Otacílio dos Santos Neto Patrícia Borba Vilar Guimarães Paulo Renato Guedes Bezerra Ricardo Procópio Bandeira de Melo Ronaldo Pinheiro de Queiroz Vladimir da Rocha França Xisto Tiago de Medeiros Neto

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Page 1: Publicação Semestral dos Acadêmicos do Curso de Direito ... · ... BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A ... UM ENFOQUE SOBRE O ESTATUTO DO IDOSO E ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO

Publicação Semestral dos Acadêmicos do Curso de Direito daUniversidade Federal do Rio Grande do Norte

Ano XVI Número 29 jan./jun. 2011 - Natal/RN, 2011

COMISSÃO EDITORIAL

PresidenteAngelus Emilio Medeiros de Azevedo Maia

Membros Ana Luiza de Morais Rodrigues

Izadora de Medeiros SouzaMariana Nobre Medeiros e Silva

Thiago Augusto Lopes de Morais

Colaboradores Albert Barcessat Gabbay

Herbet Miranda Pereira FilhoLaís Morais de Andrade

Nathália Maria Ariston Trindade

CONSELHO EDITORIAL

Artur Cortez BonifácioAnna Emanuella Nelson Dos Santos Cavalcanti Da RochaCamila Pinto GadelhaDiogo Pignataro de OliveiraEdilson Pereira Nobre JúniorElke Mendes CunhaFabiano André de Souza MendonçaFábio Wellington Ataíde AlvesIgor Alexandre Felipe de MacêdoIvan Lira de CarvalhoJahyr Philippe BicharaJose Miqueias Antas de GouveiaLuciano Athayde ChavesMadson Ottoni de Almeida RodriguesMarcus Aurélio de Freitas BarrosMaria do Perpétuo Socorro Wanderley de CastroMorton Luiz Faria De MedeirosNoel de Oliveira BastosOtacílio dos Santos NetoPatrícia Borba Vilar GuimarãesPaulo Renato Guedes BezerraRicardo Procópio Bandeira de MeloRonaldo Pinheiro de QueirozVladimir da Rocha FrançaXisto Tiago de Medeiros Neto

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Reitor José Ivonildo do RêgoVice-Reitora Ângela Maria Paiva Cruz

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS Diretora Ana Lúcia Assunção Aragão Vice-Diretora Maria Lussieu da Silva Coordenadora do Curso de Direito Ana Beatriz Ferreira Rebello Chefe do Departamento de Direito Público Yanko Marcius De Alencar Xavier

Chefe do Departamento de Direito Privado Jair Eloi de Souza Coordenador da In Verbis Xisto Tiago de Medeiros Neto

DIAGRAMAÇÃO Hélder Souza de Lima

REVISÃO Comissão Editorial da Revista Jurídica In Verbis

TIRAGEM 450 Exemplares

REVISTA JURÍDICA IN VERBISPublicação Semestral dos Acadêmicos do Curso de Direito

da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Comissão Editorial da Revista Jurídica In VerbisUniversidade Federal do Rio Grande do Norte - Espaço Integrado CAAC - In Verbis

Av. Senador Salgado Filho, 3.000 - Setor I - Curso de DireitoCampus Universitário - Lagoa Nova - Natal/RN - CEP 59072-970

Home Page: www.inverbis.com.brE-mail: [email protected]

Os artigos assinados são de exclusiva responsabilidade dos autores. É permitida a reprodução total ou parcial dos artigos desta Revista, desde que citada a fonte.

Revista Jurídica In Verbis / Publicação semestral dos Acadêmicos do Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. – Ano 16, n. 29 (jan./jun. 2011).

SemestralISSN 1413-2605

1. Direito – Periódicos. I. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Sociais Aplicadas - CCSA/UFRN

CDU - 34

Solicita-se permuta.

Pídese canje.

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Si richiede lo scambio.

We ask for exchange.

Wir bitten um austausch.

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EDITORIAL ............................................................................................................................ 07

A AÇÃO POPULAR E SUAS PECULIARIDADES NA DEFESA PATRIMÔNIO PÚBLICO, MEIO AMBIENTE E MORALIDADE: UMA ANÁLISE CRÍTICA ..... 11Diogo Caldas Leonardo Dantas

A EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 66/2010: MUDANÇAS E APRIMORA-MENTO NAS RELAÇÕES DE DIREITO PRIVADO .................................................. 29Natália Luiza Lima Dantas LiraJulliane Pinto de Aquino

A IMPOSSIBILIDADE DE REDUÇÃO DA IDADE PENAL MÍNIMA: UMA ABOR-DAGEM CRÍTICA PELA SUSTENTAÇÃO DO CARÁTER PÉTREO DO ARTIGO 228 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL ........................................................................... 45Richardy Videnov Alves dos Santos

A LIMITAÇÃO TERRITORIAL DOS EFEITOS DA COISA JULGADA NA AÇÃO CIVIL PÚBLICA: ART. 16 DA LEI 7.347/1995 ....................................................... 65Josaniel Cabral de Oliveira

Sumário

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CONTROLE DOS INCENTIVOS FISCAIS PELO PODER JUDICIÁRIO PELO PARÂMETRO DA ISONOMIA TRIBUTÁRIA ............................................................... 85Jules Michelet Pereira Queiroz e Silva

CONTROLE E FISCALIZAÇÃO DAS ENTIDADES DO TERCEIRO SETOR .... 105Ana Cristina Diógenes RêgoDavi Costa Feitosa Alves

ENTRE O MITO E A REALIDADE: A VISÃO DE KELSEN E MALINOWSKI SOBRE O DIREITO NAS SOCIEDADES ÁGRAFAS .............................................................. 123Roberto Fernando de Amorim Júnior

ÉTICA DO ACADÊMICO DE DIREITO: CRISE NA UFRN ................................... 139 Thaissa Lauar Leite

NULIDADE DAS NEGOCIAÇÕES COLETIVAS ACERCA DA “FLEXIBILIZAÇÃO” DAS NORMAS RELATIVAS ÀS HORAS IN ITINERE ............................................. 159Louise Caroline Pinheiro de Souza

O TRABALHO INFANTO-JUVENIL DOS ARTISTAS MIRINS SOB UMA PER-SPECTIVA CRÍTICA DO DIREITO FUNDAMENTAL À PROFISSIONALIZAÇÃO ................................................................................................................................................. 179Ana Paula Barros Amaral OliveiraNathalie Maia Chung

SUCESSÃO PRESIDENCIAL INTERINA: BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A POSSIBILIDADE DE DEPUTADO FEDERAL COM IDADE INFERIOR A 35 ANOS, NA CONDIÇÃO DE PRESIDENTE DA CÂMARA DOS DEPUTADOS, ASSUMIR A PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA INTERINAMENTE ........................................ 197Tiago Mantoan Farias Nunes

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TUTELA COLETIVA DOS IDOSOS: UM ENFOQUE SOBRE O ESTATUTO DO IDOSO E ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO ................................................ 217Pedro Jorge Emiliano Guedes Alcoforado

UMA NOVA FEIÇÃO DO PARADIGMA DA NECESSIDADE NA ATUAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA EM DEFESA DOS DIREITOS TRANSINDIVIDUAIS: ASPECTOS TEÓRICOS E PRÁTICOS ...................................................................... 235Bruno Montenegro Ribeiro Dantas

REFLEXÕES SOBRE NAÇÃO, ESTADO SOCIAL E SOBERANIA .................... 251Paulo Bonavides

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O trabalho foi árduo e exaustivo, no caminho houve pedras e obs-táculos, porém a despeito de tudo isso, chegamos ilesos e vitoriosos. Natu-ralmente que marcas se fazem presentes, como em toda difícil jornada. Mas o que importa é que lançamos mais uma edição da Revista Jurídica In Verbis.

Completamos, enfim, 15 anos. Uma década e meia de competência, prestígio e tradição. Nada obstante, a credibilidade alcançada ao longo desses anos não foi simplesmente adquirida, mas sim conquistada. Somos adeptos da idéia de que grandes feitos não se realizam com facilidade. A verdadeira grandeza da conquista está no mérito em obtê-la. E essa é a realidade do nosso projeto. NOSSO. A Revista In Verbis surgiu no seio do curso de Direito da UFRN, e lá se desenvolveu até consolidar a sua imagem e romper as fronteiras da Universidade, consubstanciando-se atualmente em um dos principais periódicos acadêmicos do país.

Quem poderia imaginar que um projeto idealizado por oito estu-dantes e nascido de um improviso pudesse tomar as formas e proporções que adquiriu ao perpassar desses quinze anos. Aliás, quem diria que essa iniciativa simplesmente sobreviveria ao tempo, tão cruel e tão impiedoso com os planos e sonhos juvenis.

Entretanto, existem ideais que são mais fortes que qualquer lapso temporal. A In Verbis, pela nobreza de seu propósito, sobreviveria a milênios que fossem, afinal o que é verdadeiramente bom não perece e jamais padece.

Todas as Comissões Editoriais que passaram por esta Revista, ir-refragavelmente, conjugaram os verbos ”sonhar” e “crescer”, sempre com o desígnio de proporcionar um trabalho cada vez mais relevante ao meio jurídico potiguar. Contudo, no que diz respeito ao trabalho dessa Comissão, em espe-cial, podemos afirmar categoricamente que aprendemos a conjugar um novo

Editorial

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verbo. “Realizar”. Aprendemos a ir além, a nos superar. E nesse sentido foram empreendidos todos os nossos esforços. Como conseqüência, prosseguimos com a política de valorização dos autores, responsáveis diretos pela perenidade do nosso periódico através de suas produções de altíssimo nível; reformamos o edital de publicação, tornando-o mais claro e inteligível; consolidamos a submissão on-line, iniciada na Comissão anterior e tornada realidade nessa edição, cujo processo de editoração foi integralmente virtualizado, além de diversas outras mudanças visualmente perceptíveis. Essa postura vanguardista que sempre pautou o trabalho de todas as Comissões Editoriais da In Verbis demonstra que o casamento entre Tradição e Inovação compõe um dos mo-tivos do nosso perene sucesso.

Nascemos com o desiderato de proporcionar aos acadêmicos do curso de Direito da UFRN um meio de credibilidade para a veiculação dos seus trabalhos. Um veículo pelo qual se tornaria possível a exposição de seus ideais e dos resultados de suas pesquisas, não só frutos de um estudo acurado, mas, sobretudo, uma forma de fazer jus ao investimento depositado pela sociedade no financiamento de nossa educação.

A produção de conhecimento é um dos modos mais nobres de contribuir com a comunidade, afinal, honra de forma fiel a nossa condição de acadêmicos dedicados ao desenvolvimento do saber jurídico.

Aliás, a Revista Jurídica In Verbis age como instrumento de trans-formação social, enquanto projeto de extensão, afinal fomenta a pesquisa e estimula a produção acadêmica. Através do desenvolvimento dessas ações contribuímos para o avanço da ciência jurídica, e, como conseqüência disto fortalecemos a justiça, que se configura como uma das principais fontes de pacificação dos conflitos sociais.

Diante de todo o exposto, resta-se óbvio que não somos unicamente o periódico mais antigo do país organizado por estudantes, fato que muito nos orgulha. Não somos somente um meio de publicação de artigos científicos. Somos, acima de qualquer coisa, a voz de toda uma comunidade acadêmica, e, imprimimos em nossas páginas a história do curso de Direito.

Portanto, caros leitores, desejamos uma excelente e proveitosa leitura.

A Comissão Editorial.

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Artigos

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A AÇÃO POPULAR E SUAS PECULIARIDADES NADEFESA PATRIMÔNIO

PÚBLICO, MEIO AMBIENTE E MORALIDADE: UMA

ANÁLISE CRÍTICA

Diogo Caldas Leonardo DantasAcadêmico do 9º período do

Curso de Direito da UFRN.

RESUMO

A Actio Popularis se mostra como mecanismo salutar para defesa do patrimônio público, meio ambiente e moralidade, apresentando-se como meio hábil de controle jurisdicional da Administração Pública. A lei 4.171/65 traz peculiaridades interessantes em seu corpo, como a técnica legislativa e alguns instru-mentos presente em seu interior. Contudo, a mesma lei expõe condições e procedimento que resultam muitas vezes na ineficácia da Ação Popular. Através de uma análise crítica busca-se demonstrar que a ação em estudo se mostra como meio democrático da defesa dos interesses do cidadão, analisando seus benefícios e defeitos para uma efetiva tutela dos direitos protegidos por ela. A metodologia uti-lizada foi a pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, além da interpretação de textos legais correlatos ao tema. Diante do estudo realizado, conclui-se que, apesar dos problemas apontados, a Actio Popu-laris possui um incrível potencial para o controle democrático dos atos do Poder Público, bem como para a defesa do patrimônio público, meio ambiente e moralidade, buscando responsabilizar os agentes que de alguma forma causarem dano aos mesmos, através de uma atuação política do cidadão.

Palavras-chave: Ação Popular. Objeto. Patrimônio público. Legitimidade. Controle jurisdicional. Ad-ministração Pública. Ato administrativo.

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12 A ação popular e suas peculiaridades na defesa patrimônio público,meio ambiente e moralidade: uma análise crítica

1 INTRODUÇÃO

A Ação Popular se mostra como antigo mecanismo jurídico brasileiro, estando presente, ainda que de forma embrionária, até mesmo no antigo regime das Ordenações, apresentando-se, mesmo naquela época, como meio de defesa ou conservação da coisa pública, possuindo, contudo formato um pouco distante do que é dada hoje. Somente com o passar do tempo é que ela adquiriu a estrutura dada atualmente.

Contudo, mesmo se tratando de ação presente, ao menos embri-onariamente, em diversos momentos históricos do ordenamento jurídico brasileiro, somente com o advento da Lei 4.717/65 é que ela adquiriu o formato conhecido no presente, se mostrando como meio de extrema relevância para a defesa do patrimônio público.

A supracitada Lei se mostra muitas vezes arcaica1, se comparada com diversos mecanismos atuais, fruto da técnica legislativa da época e da ine-xistência de pesquisas doutrinárias acerca de certos mecanismos. Além disso, apresenta certas peculiaridades, incomuns na legislação vigente, e obstáculos que acabam por muitas vezes tolher a sua aplicabilidade em determinados casos concretos.

Diante do exposto, a discussão do tema se mostra relevante, para, através de uma analise crítica, situar questões polêmicas da referida Lei, suas peculiaridades e características interessantes, uma vez que, diante de sua importância para a concretização do princípio democrático e da defesa do patrimônio público, a Ação Popular se mostra como meio importante de se buscar moralizar a Administração Pública.

2 CONSIDERAÇÕES ACERCA DO OBJETO DA AÇÃO POPULAR

Primeiramente, algumas ponderações se mostram necessárias para melhor entendermos a Ação Popular e sua aplicação no ordenamento jurídico brasileiro e na prática forense, precisando-se delinear seu objeto e a aplicação da ação em estudo, para que, posteriormente, se possa adentrar na problemática.

1 Por exemplo, a título de curiosidade, atenta-se para a técnica legislativa da época, mais especi-ficamente o artigo 7º, onde o parágrafo aparece como subitem do inciso.

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13Diogo Caldas Leonardo Dantas

Inicialmente, destaque-se, que o termo “objeto” da ação é usado em diversos sentidos, tanto pela doutrina como pela jurisprudência, causando confusão para os demais estudiosos do direito, sendo aplicado muitas vezes no sentido de “objetivo” da ação. Somente para ilustrar o uso destoante de tal termo e para se dar início a análise do objeto da presente ação, eis os en-tendimentos de dois eminentes doutrinadores: “O ato objeto da ação popular é o ato ilegal e lesivo ao patrimônio público” (MEIRELLES, 2007, p. 136) [grifos do autor] e “No conceito concreto de ação, o objeto desta pode ser ‘o efeito a que se tende o poder de agir; aquilo que se pede (petitium)’” (SILVA, 2007, p. 104) [grifos do autor]. Seguimos o entendimento de Meirelles, considerando o objeto da ação popular o ato ilegal e lesivo ao patrimônio público.

O inciso LXXIII do artigo 5º da Constituição Federal dispõe acerca da Actio Popularis, in verbis:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:[...] LXXIII - qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade ad-ministrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência; [grifos nossos]

A Constituição Federal de 1988, ao dispor acerca da Ação Popular, acabou expandindo o objeto da mesma, inserindo sobre sua égide o meio ambiente e a moralidade administrativa, inovações trazidas pela Carta Magna, não presentes no texto da Lei 4.717/65. Destarte, atos de entidade pública lesivos ao meio ambiente e a moralidade administrativa poderão ser objeto da Actio Popularis.

Além dessas possibilidades trazidas pela Carta Magna, existem as hipóteses já presentes na no corpo da Lei 4.717/65, presentes em seu artigo 1º, 2º , que dispõem:

Art. 1º Qualquer cidadão será parte legítima para pleite-ar a anulação ou a declaração de nulidade de atos lesivos

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14 A ação popular e suas peculiaridades na defesa patrimônio público,meio ambiente e moralidade: uma análise crítica

ao patrimônio da União, do Distrito Federal, dos Estados, dos Municípios, de entidades autárquicas, de sociedades de economia mista, de sociedades mútuas de seguro nas quais a União represente os segurados ausentes, de empresas públicas, de serviços sociais autônomos, de instituições ou fundações para cuja criação ou custeio o tesouro público haja concorrido ou concorra com mais de cinquenta por cento do patrimônio ou da re-ceita ânua, de empresas incorporadas ao patrimônio da União, do Distrito Federal, dos Estados e dos Municípios, e de quaisquer pessoas jurídicas ou entidades subven-cionadas pelos cofres públicos. § 1º - Consideram-se patrimônio público para os fins referidos neste artigo, os bens e direitos de valor econômico, artístico, esté-tico, histórico ou turístico. [...] Art. 2º São nulos os atos lesivos ao patrimônio das entidades mencionadas no artigo anterior, nos casos de: a) incompetência; b) vício de forma; c) ilegalidade do objeto; d) inexistência dos motivos; e) desvio de finalidade. Parágrafo único. Para a conceituação dos casos de nulidade observar-se-ão as seguintes normas: a) a incompetência fica caracterizada quando o ato não se incluir nas atribuições legais do agente que o praticou; b) o vício de forma consiste na omissão ou na observância incompleta ou irregular de formalidades indispensáveis à existência ou seriedade do ato; c) a ilegalidade do objeto ocorre quando o re-sultado do ato importa em violação de lei, regulamento ou outro ato normativo; d) a inexistência dos motivos se verifica quando a matéria de fato ou de direito, em que se fundamenta o ato, é materialmente inexistente ou juridicamente inadequada ao resultado obtido; e) o desvio de finalidade se verifica quando o agente pratica o ato visando a fim diverso daquele previsto, explícita ou implicitamente, na regra de competência. 2

Contudo, o legislador foi além, inserindo no artigo 4º uma extensa

2 Por oportuno, destaque-se uma peculiaridade interessante do artigo 2º, que, ao tentar deter-minar os atos que seriam considerados nulos, acaba por fazer uma conceituação legal dos ele-mentos dos atos administrativos.

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lista de atos ou contratos que seriam considerados nulos e que podem ser objeto da presente ação:

Art. 4º São também nulos os seguintes atos ou contratos, praticados ou celebrados por quaisquer das pessoas ou entidades referidas no art. 1º. I - A admissão ao serviço público remunerado, com desobediência, quanto às condições de habilitação, das normas legais, regulamen-tares ou constantes de instruções gerais. II - A operação bancária ou de crédito real, quando: a) for realizada com desobediência a normas legais, regulamentares, estatu-tárias, regimentais ou internas; b) o valor real do bem dado em hipoteca ou penhor for inferior ao constante de escritura, contrato ou avaliação. III - A empreitada, a tarefa e a concessão do serviço público, quando: a) o respectivo contrato houver sido celebrado sem prévia concorrência pública ou administrativa, sem que essa condição seja estabelecida em lei, regulamento ou norma geral; b) no edital de concorrência forem incluí-das cláusulas ou condições, que comprometam o seu caráter competitivo; c) a concorrência administrativa for processada em condições que impliquem na limi-tação das possibilidades normais de competição. IV - As modificações ou vantagens, inclusive prorrogações que forem admitidas, em favor do adjudicatário, durante a execução dos contratos de empreitada, tarefa e con-cessão de serviço público, sem que estejam previstas em lei ou nos respectivos instrumentos., V - A compra e venda de bens móveis ou imóveis, nos casos em que não cabível concorrência pública ou administrativa, quando: a) for realizada com desobediência a normas legais, regulamentares, ou constantes de instruções gerais; b) o preço de compra dos bens for superior ao corrente no mercado, na época da operação; c) o preço de venda dos bens for inferior ao corrente no mercado, na época da operação. VI - A concessão de licença de exportação ou importação, qualquer que seja a sua modalidade, quando: a) houver sido praticada com violação das normas legais e regulamentares ou de ins-truções e ordens de serviço; b) resultar em exceção ou privilégio, em favor de exportador ou importador. VII - A operação de redesconto quando sob qualquer aspecto,

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16 A ação popular e suas peculiaridades na defesa patrimônio público,meio ambiente e moralidade: uma análise crítica

inclusive o limite de valor, desobedecer a normas legais, regulamentares ou constantes de instruções gerais. VIII - O empréstimo concedido pelo Banco Central da República, quando:  a) concedido com desobediência de quaisquer normas legais, regulamentares, regimentais ou constantes de instruções gerias: b) o valor dos bens dados em garantia, na época da operação, for inferior ao da avaliação. IX - A emissão, quando efetuada sem observância das normas constitucionais, legais e regu-lamentadoras que regem a espécie.

Ao se analisar ditos artigos se percebe que a Lei é notadamente casuística, trazendo algumas questões de ordem prática que devem ser anali-sados pormenorizadamente.

Inicialmente, necessário se questionar se seriam as hipóteses listadas pela lei taxativas ou exemplificativas. Existem posicionamentos a favor para ambos os entendimentos.

Se considerados taxativos, então somente seria aplicável a Ação Popular no combate dos atos listados nos artigos demonstrados. Embora sensivelmente amplo, uma vez que o legislador se mostrou extremamente minucioso, tal interpretação acabaria por reduzir consideravelmente o objeto da ação em análise, tolhendo sua aplicação.

Assim, com a devida vênia, ousamos discordar desse entendimento. Primeiramente, o problema da taxatividade das hipóteses trazidas

pela lei é somente aparente, uma vez que o legislador usou, em diversas pas-sagens, termos genéricos, que poderão ser usados pelo aplicador do direito para a ampliação do objeto.

Além disso, há a previsão constitucional, já citada, que abre a possi-bilidade do uso da Actio Popularis para o combate ao “ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural”, dando ensejo a uma aplicação ampla da Ação Popular. Ora, mesmo se o ato considerado não estiver listado de modo específico nos artigos da Lei 4.717/65, poderá ser facilmente enquadrado, por exemplo, no artigo 1º da lei supracitada, uma vez que este traça, de forma genérica, o objeto da Ação Popular, ao usar, por exemplo, a expressão “atos lesivos ao patrimônio da União”, onde diversas atitudes podem se enquadrar em tal hipótese, por ser demasiadamente ampla.

Destaque-se que, se vigorasse o entendimento que a listagem feita pela Lei da Ação Popular é taxativa, ficariam excluídas até mesmo as hipóteses

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trazidas pela Constituição Federal, fato que não compactua com o defendido pelo nosso ordenamento jurídico, onde a Lei Maior se mostra suprema.

Por oportuno, deve-se considerar que achou adequado o consti-tuinte de 1988 expandir o objeto da ação em análise em busca de um me-canismo mais eficiente de atuação política do cidadão, protegendo não só a o patrimônio público, mas o meio ambiente e a moralidade administrativa. Dessa forma, buscou suprir o que considerou ser uma omissão do legislador de 1965, buscando por tornar a Actio Popularis um meio de concretização do princípio democrático.

Destarte, como consequência do entendimento que também é por nós defendido, a doutrina e a jurisprudência 3 tem aceitado até mesmo a pos-sibilidade de ajuizamento da Ação Popular contra lei, desde que essa possua efeitos concretos, não estando esta hipótese elencada tanto pela Lei 4.717/65, nem pela Constituição, mas sendo aplicada uma vez que esta situação venha a causar dano ao patrimônio público

No tocante a este tema, discute-se a possibilidade de uso da ação em análise também contra a lei em tese ou contra ato jurisdicional. No primeiro caso, o entendimento majoritário segue no sentido de sua impossibilidade, uma vez que as ações de controle de constitucionalidade seriam meio hábil e mais eficiente para tal. Já no caso de ato jurisdicional o entendimento também majoritário é pela sua impossibilidade, defendendo-se o uso dos recursos para tanto.

3 A LEGITIMIDADE E SUAS PECULIARIDADES

3.1 A possibilidade de se atuar tanto no pólo passivo quanto no pólo ativo da ação

A Actio Popularis traz a possibilidade do réu se juntar ao autor no pólo ativo, desde que seja consequência do interesse público. Esta característica se mostra como reflexo da natureza dúplice da ação, característica presente em algumas ações de procedimentos especiais (como a ação de prestação de contas) e nas ações coletivas (como a ação direta de inconstitucionalidade).

A natureza dúplice de uma ação é a característica onde há uma

3 Superior Tribunal de Justiça. Resp 776.848. T1. Min, Luiz Fux. J. 16/12/2008. DJe 06/08/2009

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18 A ação popular e suas peculiaridades na defesa patrimônio público,meio ambiente e moralidade: uma análise crítica

“confusão” entre o pólo ativo e o passivo, existindo a possibilidade de, em uma ação, a improcedência da pretensão do autor poder resultar na procedência de uma pretensão implícita do réu.

Contudo, apesar da presente característica existir em outras ações, em nenhuma destas este efeito se mostra tão presente e de forma tão incomum. Primeiramente, a ação popular é uma das poucas que traz tal possibilidade positivada (art. 6º, §3º, Lei 4.717/65). Em segundo lugar, devido a esta positi-vação, efetivamente poderá ocorrer a confusão do pólo passivo com o ativo, uma vez que existe a possibilidade de o réu se juntar de fato ao autor da ação no pólo ativo, fato incomum nas demais ações com esta característica, onde normalmente não existe essa “fusão” de fato, mas somente a possibilidade de procedência de uma pretensão implícita do réu.

Realizadas essas considerações inicias, analisemos o instituto supra-citado. Dispõe o art. 6º, §3º da Lei 4.717/65 que:

Art. 6º A ação será proposta contra as pessoas públicas ou privadas e as entidades referidas no art. 1º, contra as autoridades, funcionários ou administradores que houverem autorizado, aprovado, ratificado ou praticado o ato impugnado, ou que, por omissas, tiverem dado oportunidade à lesão, e contra os beneficiários diretos do mesmo. [...] § 3º As pessoas jurídica de direito público ou de direito privado, cujo ato seja objeto de impugna-ção, poderá abster-se de contestar o pedido, ou poderá atuar ao lado do autor, desde que isso se afigure útil ao interesse público, a juízo do respectivo representante legal ou dirigente. [grifos nossos]

O caráter dúplice da ação popular está presente na parte final do §3º. De acordo com esse instituto, está facultado ao réu (que precisa ser a pessoa jurídica de direito público ou direito privado cujo ato seja objeto da ação) participar da ação também no pólo ativo ao lado do autor, desde que em prol do interesse público.

Assim, ao fazer tal opção pela participação no pólo ativo, a pessoa jurídica (sempre relembrando que pode ser tanto de direito público quanto privado) ré acaba por confessar expressamente, atuando no pólo ativo junto com o autor em benefício do interesse público, em prol do pedido realizado na inicial.

Tal possibilidade é extremamente comum quando há uma mudança

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de Administração e o ato a ser impugnado é da Administração anterior, agindo a subsequente também no intuito de ver o ato lesivo impugnado.

Imagine a situação onde um opositor de um prefeito de um dado município (ou qualquer outra autoridade de cargo político eletivo) ajuíza, com intuito eleitoreiro, a Actio Popularis contra determinado ato do município. Nesta situação, a ação, como determina o artigo 6º da Lei 4.717, é proposta contra a prefeitura (pessoa jurídica autora do ato), contra o secretário que porventura tenha autorizado o ato e contra os beneficiários diretos deste. Na próxima eleição, o autor da ação acaba sendo eleito para ocupar o lugar de seu opositor na prefeitura, passando a figurar tanto no pólo ativo e passivo da ação, uma vez que esta ainda estava em curso. Destarte, o novo ocupante do cargo (autor da ação) opta por fazer a prefeitura atuar também no pólo ativo para ajudar na devida averiguação do caso.

Os Tribunais brasileiros têm aceitado tal possibilidade. Além disso, ressalte-se que como consequência dessas singulari-

dades quanto a legitimação para agir, pode ocorrer a decomposição dos pe-didos formulados, podendo o poder público assumir a postura supracitada em relação a um dos pedidos cumulados e manter-se no pólo passivo em relação aos demais. Como consequência, pode, por exemplo, a União figurar no pólo ativo buscando o ressarcimento erário devido ao prejuízo causado pelo ato lesivo, mas atuar também no pólo passivo em decorrência de outro pedido 4.

3.2 A legitimidade passiva como obstáculo para a efetividade da Ação Popular

As condições da ação são consideradas requisitos sem as qual resultariam na extinção do processo sem análise do mérito. Resultado prin-cipalmente dos estudos realizados pelo doutrinador italiano Liebman, ditas condições, as quais o ordenamento jurídico pátrio adota, são consideradas indispensáveis, necessitando serem preenchidas para o exercício do direito de ação. Dentre elas, destaca-se a legitimidade.

A legitimidade é a situação jurídica que autoriza os sujeitos da demanda a conduzir o processo em que se discuta a relação jurídica material que foi levada a juízo. De acordo com o Didier Jr. (2010, p. 204) a legitimidade

4 Superior Tribunal de Justiça. Resp 791.042. T1. Min, Luiz Fux. J. 19/10/2006. DJ 09/11/2006 p. 261

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“é bilateral, pois o autor está legitimado para propor ação em face daquele réu e não em face de outro”. Assim, chama-se legitimidade ativa quando se refere ao autor da ação e passiva quanto ao réu.

A Ação Popular tem como legitimado para propor a ação (ou seja, legitimidade ativa) qualquer cidadão, ou seja, o indivíduo com gozo dos seus direito políticos. Dessa forma, basta o indivíduo não estar impedido de usufruir os seus direitos políticos para que possa ajuizar a presente ação, bastando, assim, estar ativo na comunidade política, ser eleitor.

Já no tocante a legitimidade passiva, a Actio Popularis, quando ajuizada, deve ser proposta nos moldes do art. 6º da Lei. 4.717/65, que dispõe a cerca da legitimidade passiva o seguinte:

Art. 6º A ação será proposta contra as pessoas públicas ou privadas e as entidades referidas no art. 1º, contra as autoridades, funcionários ou administradores que houverem autorizado, aprovado, ratificado ou praticado o ato impugnado, ou que, por omissas, tiverem dado oportunidade à lesão, e contra os beneficiários diretos do mesmo. [grifos nossos]

Portanto, ao se impetrar a presente ação, a mesma deverá ser pro-posta contra todas as pessoas listadas por este dispositivo, ou seja: a pessoa pública ou privada e as entidades referidas no art. 1º; ao indivíduo (autoridade, funcionário ou administrador) que tiver autorizado, aprovado, ratificado ou praticado o ato impugnado, bem como aqueles que tiverem sido omissos, acarretando na lesão combatida; e contra os beneficiários diretos do ato ou omissão. Tal imposição faz com que surja um problema de ordem prática, que pode resultar em prejuízo para o seguimento regular da ação em estudo.

No tocante ao ajuizamento contra o indivíduo que praticou a ação ou omissão ou contra a entidade pública ou pessoa jurídica não existirão maiores problemas, uma vez que em face do caso concreto elas normalmente se mostram perfeitamente identificadas ou identificáveis.

A problemática surge no tocante aos beneficiários diretos do ato ou omissão objeto da ação popular 5.

5 Destaque-se que, na hipótese de ser desconhecido o beneficiário, o §1º do artigo 6º da lei em análise impõe que a ação deverá ser proposta somente contra as demais pessoas listadas pelo artigo 6º.

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Primeiramente, importante questionar quem seria considerado beneficiário direto.

A doutrina tem entendimento que beneficiário direto seria aquele que “intencionalmente, auferiram vantagem do ato impugnado” (FAGUNDES, 2010, p.451) bem como “aquela pessoa ou entidade destinatária do ato lesivo ou da omissão lesiva” (SILVA, 2007, p. 189).

A Administração Pública, ao realizar seus atos, trata de situações que envolvem normalmente uma enorme quantidade de indivíduos, sejam seus próprios agentes, sejam administrados. Destarte, o ato lesivo ao patrimônio público poderá ter uma extensa lista de beneficiários diretos uma vez que, ao se tratar de relações coletivas, muitos indivíduos poderão auferir vantagem direta do ato a ser impugnado.

Por oportuno, destaque-se que, como se pode aduzir do instituto em análise, os beneficiários indiretos não deverão figurar no pólo passivo da ação em estudo. Contudo, mesmo fazendo-se essa exclusão, ainda existe a possibilidade de uma extensa lista de pessoas serem consideradas beneficiárias diretas do ato impugnado.

Não obstante, mesmo com estes esclarecimentos, ainda se mostra obscura a diferenciação dos beneficiários diretos e indiretos. Neste contexto, se mostram esclarecedores os ensinamentos de SILVA (2007, p. 189) que assevera:

Trata-se de beneficiários circunstanciais, como é o caso de um funcionário, promovido a um cargo mais elevado e que se vagou devido à admissão de seu titular a outra função pública remunerada com violação do inciso I, do art. 4º, da Lei n. 4.717. Evidentemente que aquele fun-cionário promovido foi beneficiário do ato impugnado (admissão de outro em forma suscetível de impugnação por ação popular). Mas a ação não pode ser proposta contra ele, que é mero beneficiário indireto da admissão impugnável [grifos nossos]

O empecilho surge quando se passa a considerar tais indivíduos como litisconsortes necessários.

A determinação de litisconsorte necessário está presente no artigo 47 do Código de Processo Civil, que determina:

Art. 47. Há litisconsórcio necessário, quando, por dis-posição de lei ou pela natureza da relação jurídica, o juiz

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tiver de decidir a lide de modo uniforme para todas as partes; caso em que a eficácia da sentença dependerá da citação de todos os litisconsortes no processo. Parágrafo único. O juiz ordenará ao autor que promova a citação de todos os litisconsortes necessários, dentro do prazo que assinar, sob pena de declarar extinto o processo.[grifos nossos]

Assim, se considera litisconsorte necessário as situações que por determinação legal ou devido à natureza da relação jurídica objeto da ação o juiz tenha que julgar a causa de forma unitária para todas as partes. Assim, em decorrência da segurança jurídica, nos casos em que o juiz tiver que de-cidir de forma uniforme para todas as partes integrantes de um mesmo pólo se estará diante de litisconsórcio necessário, devendo o autor promover a citação de todos os litisconsortes que assim o são considerados, sob pena de nulidade processual.

Portanto, ao se considerar todos os beneficiários do ato lesivo juntamente com as demais partes listadas pelo artigo 6º como litisconsorte necessários, está-se determinando que todos devem ser citados devidamente sob pena de nulidade da Actio Popularis.

Por conseguinte, em situações onde se está diante de um grande número de beneficiários, o que é extremamente possível diante da amplitude do objeto da presente ação, todos deverão ser devidamente citados para participarem do processo. Destarte, a omissão de citação de somente um dos beneficiários pode prejudicar todo o andamento da Ação Popular. Mancuso (2007, p. 157) com propriedade defende que: “Já quanto aos beneficiários diretos, nenhuma dúvida de que, sendo eles terceiros juridicamente interes-sados (se já antes não figurarem como partes originais), é claro que têm de vir a integrar a lide, até como condição de eficácia do julgado” [grifos do autor].

Na verdade, este tem sido o entendimento de parte majoritária da jurisprudência, havendo julgados do STJ 6 e de diversos Tribunais de Justiça 7 e

6 Superior Tribunal de Justiça. Resp 762.070. T1. Min, Luiz Fux. J. 17/12/2009. DJ 10/02/2010 - Superior Tribunal de Justiça. Resp 931.528. T2. Min, Eliana Calmon. J. 17/11/2009. DJ 02/12/2010 - Superior Tribunal de Justiça. Resp 556.510. T1. Min, Luiz Fux. J. 22/03/2005. DJ 25/04/2005. 7 Tribunal de Justiça de São Paulo. ApC 994050668577. 8ª Câmara de Direito Público. Des,Osni de Souza. J 24/02/2010. DJ 10/03/2010. - Tribunal de Justiça de Santa Catarina. ApC 2004.016155-7.Primeira Câmara de Direito Público. Des,Volnei Carlin. J 17/03/2005.

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Tribunais Regionais Federais 8 que corroboram com esse entendimento, além de parte relevante da doutrina. Nesse sentido, novamente Mancuso (1996 p. 158) se mostra esclarecedor ao asseverar que: “De outro lado, a jurisprudência tem se revelado incisiva ao decretar a nulidade dos processos de ação popular onde não tenham sido citados os beneficiários diretos, ou que sua citação tenha sido irregular”

Dessa forma, a citação de beneficiários diretos da Ação Popular se mostra como um problema na prática forense brasileira, tendo vista que diante do caso concreto uma extensa lista de beneficiários pode estar presente e a ausência da citação de um destes (situação que se mostra frequente diante riqueza da jurisprudência) resulta na nulidade da ação, obstando o prossegui-mento da ação, que deverá ser novamente realizada desde a citação.

Tal nulidade resulta em morosidade na tutela jurisdicional e custos demasiados para as partes, prejudicando a efetividade da presente ação, fato que não coaduna com o pregado pela moderna processualística, que defende uma prestação jurisdicional célere e eficaz.

4 CONCLUSÃO

A Ação Popular se mostra como um belo meio de controle jurisdicio-nal dos atos administração pública. Através dela qualquer cidadão brasileiro pode buscar invalidar um ato administrativo que seja nocivo a moralidade administrativa, patrimônio público e ao meio ambiente, fatos que infelizmente são corriqueiros no ambiente político de nosso país.

O constituinte de 1988 buscou expandir seu objeto, ampliando as possibilidades de se ajuizar a presente ação, resultando, dessa forma, em um relevante meio judicial onde o cidadão pode lutar contra as injustiças realizadas pelos administradores brasileiros, que comumente usam seus cargos como forma de enriquecimento ilícito, prática de atos ilegítimos e beneficiamento de outrem, tudo isso em detrimento do patrimônio público.

Todavia, diante de todos os fatos demonstrados no presente trab-alho, necessita-se cuidado no manejo da ação em estudo, já que se trata de

8 Tribunal Regional Federal da 4ª Região. ApC 89.04.15195-3. T1. Des, Ari Pargendler. J. 24/08/1989. DJU 18/10/1989 – Tribunal Regional Federal da 2ª Região. ApC 317125. T8. Des, Guilherme Cal-mon. J. 30/05/2006. DJU 05/06/2006

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uma lei com cerca de 45 anos, dotada muitas vezes de uma redação antiquada. Além disso, necessita-se de cuidado ao se ajuizar a presente

ação tendo em vista a problemática exposta acerca da legitimidade. Como demonstrado, os Tribunais pátrios têm tratado os legitimados passivos como litisconsortes necessários, resultando a ausência de um dos beneficiados do ato impugnado em nulidade absoluta, resultando em morosidade e custos para as partes.

Portanto, uma apuração devida acerca do ato lesivo, seus autores e beneficiários se mostra essencial para uma Ação Popular eficaz, já que, como bem demonstrados, esta é um meio espetacular de atuação política e democrática. Apesar do que pode ser considerado como empecilho e da suas peculiaridades, o cidadão brasileiro tem à mão um mecanismo salutar para buscar moralizar a Administração Pública.

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PACHECO, José da Silva. O mandado de segurança e outras ações consti-tucionais típicas: Mandado de segurança - Mandado de segurança coletivo - “Habeas data” - Mandado de injunção – Ação de inconstitucionalidade – Ações constitucionais de responsabilidade civil – Ação de desapropriação – Ação popular. 1 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1990.

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THE POPULAR ACTION AND PECULIARITIES IN PROTECTION OF PUBLIC PROPERTY, ENVIRON-MENT AND MORALITY: A CRITICAL ANALYSIS

ABSTRACT

The Actio Popularis shown as a beneficial mecha-nism to protect the public patrimony, environ-ment, and morals, presenting as expedient means of judicial control of public administration. Law 4.171/65 brings interesting peculiarities in his body, as the legislative technique and some tools present in its interior. However, the law sets out conditions and procedures which often result in inefficiency of Popular Action. Through a critical analysis aims to show that the action under con-sideration is shown as a democratic means of protecting the interests of citizens, analyzing its benefits and defects for effective protection of the rights protected by it. The methodology used was literature and jurisprudence, beyond the in-terpretation of legal texts related to topic. Before this study, we conclude that despite the problems,

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the Actio Popularis has an incredible potential for democratic control of the acts of government, as well as to defend the public patrimony, the environment and morality, seeking to blame the agents that somehow cause harm to them, through a political action of citizens.

Keywords: Popular Action. Object. Public prop-erty. Legitimacy. Jurisdictional control. Public Administration. Administrative act.

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A EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 66/2010: MUDANÇAS E

APRIMORAMENTO NASRELAÇÕES DE DIREITO

PRIVADO

Natália Luiza Lima Dantas LiraAcadêmica do 7º período do

Curso de Direito da UFRN.

Julliane Pinto de AquinoAcadêmica do 7º período do

Curso de Direito da UFRN.

RESUMO

Através da emenda constitucional nº 66/2010 o instituto da separação judicial sofreu modificações perante o ordenamento jurídico brasileiro. Desde então surgiram controvérsias acerca da interpre-tação da lei ordinária, fazendo com que a doutrina pátria apresente diferentes pontos de vista com relação à norma supracitada. Sendo assim, faz-se necessário a análise dos efeitos decorrentes das mudanças trazidas pela norma, dos aspectos con-ceituais, bem como da vontade do constituinte, mostrando que ao longo da história do direito civil, dentro da sociedade brasileira, o Estado passa a intervir cada vez menos nas relações privadas, possibilitando maior liberdade neste âmbito da vida dos cidadãos. Destarte, o artigo pauta-se em fundamentos legais, consuetudinários, mas princi-palmente constitucionais para abordar o tema da nova separação judicial e as conseqüências que acarreta para o direito civil.

Palavras-chave: Separação judicial. Divórcio. Emenda Constitucional n. 66/2010.

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1 INTRODUÇÃO

A Constituição é a lei suprema do Estado e, por ser o alicerce de validade de todo o ordenamento jurídico, faz necessário analisar as normas infraconstitucionais em conformidade com o texto constitucional, para obter a harmonia do sistema jurídico.

Neste prisma, a Constituição Federal de 1988 consagra no seu ar-tigo 226, a família como base da sociedade, demonstrando a necessidade de intervenção estatal com o escopo de fortalecer os vínculos. Entretanto, com o passar dos tempos, houve uma mudança de valores na sociedade, incluindo novas características ao tradicional conceito de família, como arranjos famili-ares recombinados.

Em conformidade com os novos valores, e com o princípio da inter-venção mínima, o ordenamento jurídico brasileiro modificou um importante instituto das relações de direito privado, qual seja, o da separação judicial, o que resultou em maior celeridade no processo de divórcio.

Através da Emenda Constitucional 66/2010, o § 6º do art. 226 da Constituição Federal, foi alvo de mudanças em sua redação originária, com o intuito extinguir a separação judicial como pré-requisito para o divórcio, demonstrando assim a evolução legislativa, a qual se adequa aos novos parâ-metros da sociedade brasileira.

Destarte, é de suma importância para a ciência jurídica a análise dos benefícios e inovações provenientes da mudança supracitada nas relações particulares, como se demonstrará a seguir.

2 EVOLUÇÃO DO INSTITUTO DENTRO DO ORDENAMENTO JURIDICO BRASILEIRO

A sociedade brasileira viveu por anos seguidos erigida em dogmas religiosos que determinavam a moral social, interferindo no sistema jurídico inclusive. Hodiernamente, o ordenamento jurídico está conseguindo se des-vincular dessa arcaica estrutura, baseada numa moral já sem sentido.

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31Natália Luiza Lima Dantas Lira - Julliane Pinto de Aquino

Partindo da concepção histórica de divórcio, temos primeiramente que o fundamento da estrutura familiar estava sempre atrelado à manuten-ção do casamento. A igreja católica, sempre presente na sociedade brasileira, não reconhece a dissolução do deste último, o que de fato influenciou no comportamento dos cidadãos, definindo, por conseguinte, o corpo legisla-tivo que regia a sociedade. No código civil de 1916, por exemplo, temos a impossibilidade de dissolução do contrato de casamento, havendo apenas o desquite como forma de reconhecer a separação do casal, porém não dissolvia completamente a união do ponto de vista formal, ou seja, o vínculo conjugal permanecia inalterado. Os cônjuges continuavam com obrigações mútuas como se casados fossem.

O divórcio somente foi reconhecido devido a sérios problemas com as relações taxadas de “concubinato”, sendo paulatinamente aceito pelas de-cisões jurisprudenciais, fazendo com que através da EC 9/1977 fosse possível a dissolução do vínculo matrimonial na forma da lei. Porém, o que de fato ocorreu foi uma mudança de nomenclatura, conforme aponta Maria Berenice Dias (2009), sendo o divórcio direto admitido apenas em caráter emergencial, como também após serem demonstrados todos os pré requisitos que a lei dispunha para conceder. Conforme consta na Lei 6.515/1977, para ser conce-dido o divórcio, seria necessário que houvesse a separação de fato há cinco anos, sendo esse prazo contado antes da emenda constitucional nº 9, bem como havia necessidade de que se comprovassem os motivos da separação.

O divórcio direto foi reconhecido pela CF/88, não havendo mais nos dias atuais necessidade de manter uma relação meramente contratual se não é da vontade das partes, ao passo que já ficou mais do que comprovado que a estrutura familiar da sociedade brasileira não declinou em virtude dessa abertura.

3 A EMENDA CONSTITUCIONAL N. 66/2010

A Emenda Constitucional n. 66, promulgada no dia 13 de julho de 2010, proporcionou uma nova redação do artigo 226, parágrafo sexto, da Constituição Federal, o qual dispõe sobre a dissolubilidade do casamento civil pelo divórcio. De forma singela, a redução do texto constitucional alterou e

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32 A emenda constitucional nº 66/2010: mudanças eaprimoramento nas relações de direito privado

ocasionou uma mudança de paradigma.

Desta feita, iremos abordar neste tópico as mudanças trazidas pela referida Emenda Constitucional, bem como os seus efeitos para o ordenamento jurídico brasileiro.

3.1 Da mudança do texto constitucional

O texto constitucional original do parágrafo 6º, do artigo 226 da Constituição Federal, possuía a seguinte redação: “o casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos”. Em razão da Emenda Constitucional n. 66/2010 foi dado nova redação ao referido dispositivo, passando a constar que: “O casamento civil pode ser dissolvido pelo divorcio”.

Observa-se, desta nova redação, uma supressão dos requisitos para a propositura do divórcio, quais sejam: a prévia separação judicial por mais de 1 (um) ano e o prazo mínimo de 2 (dois) para a dissolução do vinculo matrimonial.

Diante desta nova realidade, surgem várias dúvidas sobre a aplicação da aludida Emenda Constitucional, posto que mesmo com o advento deste novo texto constitucional não há uma expressa incompatibilidade com Código Civil e o Código de Processo Civil.

Assim, para analisar os efeitos da Emenda Constitucional n. 66/2010, temos que responder a seguinte indagação: a legislação infraconstitucional foi revogada tacitamente ou o instituto da separação judicial continuaria sendo regulado até uma posterior inovação jurídica nesses diplomas?

3.2 Pretensão do Poder Constituinte Derivado

Para alcançar a resposta desta indagação e compreender os efeitos da Emenda Constitucional n. 66/2010 sobre as normas infraconstitucionais, se faz necessário analisar a vontade do Poder Constituinte Derivado no projeto de lei que originou mencionada Emenda Constitucional.

Neste diapasão, ressalta-se que a Emenda Constitucional em estudo teve origem nas PECs 22/1999, 413/2005, 33/2007 e 28/2009, a primeira propôs

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33Natália Luiza Lima Dantas Lira - Julliane Pinto de Aquino

a redução do lapso temporal da separação de fato de dois anos, para um ano, ao passo que as demais foram mais adiante, propondo a definitiva exclusão da separação judicial.

Além disso, a ementa da Emenda Constitucional n. 66/2010 dispõe da seguinte maneira:

Dá nova redação ao § 6º do art. 226 da Constituição Federal, que dispõe sobre a dissolubilidade do casa-mento civil pelo divórcio, suprimindo o requisito de prévia separação judicial por mais de 1 (um) ano ou de comprovada separação de fato por mais de 2 (dois) anos.

Apesar da ementa não possuir carga normativa, verifica-se que o seu escopo é expressar uma síntese do texto legal, permitindo o conhecimento imediato do ato consultado. Demonstra-se, portanto, que a real intenção do Poder Constituinte Derivado é suprimir os requisitos acima mencionados, revogando o instituto da separação judicial.

Assim, a sua promulgação atendeu uma reivindicação da social e da moderna perspectiva do Direito de Família, com a mínima intervenção do Estado, haja vista que ao se constatar o fim do afeto que o unia o casal, não faz sentir forçar aos seus participes uma relação insustentável.

O instituto da separação refere-se a um ícone do conservadorismo da nossa sociedade, que não se justifica nos dias atuais, tornando-se totalmente inútil, desgastante e oneroso para o casal e para o próprio Poder Judiciário, no momento em que é imposta uma duplicidade de procedimentos para conser-var, por um breve lapso temporal, uma união que não mais existe.

Observa-se que para resolver a controvérsia discutida no presente artigo, existe projeto de lei em tramitação, prevendo a revogação expressa dos dispositivos do Código Civil que fazem referência a separação judicial e ao divórcio, com esteio na não recepção, na inconstitucionalidade, aqui transcrito:

Projeto de Lei nº 7.661/2010 (PL 7661/10):Revoga dispositivos do Código Civil, que dispõem sobre a separação judicial.O CONGRESSO NACIONAL decreta:Art. 1º Esta Lei revoga dispositivos do Código Civil que tratam sobre a separação judicial.Art. 2º Consideram-se revogadas as expressões “sepa-ração judicial” contidas nas demais normas do Código

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34 A emenda constitucional nº 66/2010: mudanças eaprimoramento nas relações de direito privado

Civil, notadamente quando associadas ao divórcio.Art. 3º Revogam-se os arts. 1.571, 1.572, 1.573, 1.574, 1.575, 1576, 1.578, 1.580, 1.702 e 1.704 da Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002.Art. 4º Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.JUSTIFICATIVAO presente Projeto de Lei visa adequar o ordenamento jurídico na área do Direito de Família a uma nova Ordem Constitucional vigente em todo território nacional.Entendemos que com a promulgação e vigência da Emenda Constitucional 66/10, dando nova redação ao § 6º do art. 226 da CF, suprimindo do texto constitucio-nal a expressão “separação judicial”, esse instituto foi extinto no País.A Emenda Constitucional 66/10, por se tratar de norma constitucional de eficácia plena, ensina a ilustre autora Maria Helena Diniz:“…são plenamente eficazes…,desde sua entrada em vigor, para disciplinarem as relações jurídicas ou o processo de sua efetivação, por conterem todos os el-ementos imprescindíveis para que haja a possibilidade de produção imediata dos efeitos previstos, já que, ape-sar de suscetíveis de emenda, não requerem normação subconstitucional subseqüente. Podem ser imediata-mente aplicáveis”. Portanto, qualquer dispositivo legal não alinhado sob essa nova égide, automaticamente passa a ser não recepcionado pela Constituição Federal, tornando-se inconstitucional. Por esse motivo, se faz necessário a revogação desses dispositivos legais, com efeito ex tunc, do Código Civil Pátrio, colocando-o em perfeito alinhamento com nossa Carta Política. Diante do exposto, solicitamos apoio dos nobres Pares para aprovação do presente projeto de lei.Sala de Sessões, 14 de julho de 2010. Deputado Sérgio Barradas Carneiro. PT/BA

Diante do exposto, é possível concluir que ao realizar a singela modi-ficação do texto constitucional, o Poder Constituinte Derivado teve como real intenção a exclusão da separação judicial do ordenamento jurídico brasileiro.

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35Natália Luiza Lima Dantas Lira - Julliane Pinto de Aquino

4 SEPARAÇÃO JUDICIAL: INCONSTITUCIONALIDADE SUPERVENIENTE OU REVOGAÇÃO DA NORMA INFRACONSTITUCIONAL?

O controle de constitucionalidade no sistema jurídico pátrio é o mesmo desde a constituição de 1891 e baseado no direito anglo-saxão, qual seja, o controle jurisdicional, onde os efeitos da declaração de inconstitucionali-dade dependem de que se descubra a natureza do ato normativo considerado inconstitucional. Tal controle, permite a garantia dos direitos individuais, man-tendo a racionalidade e equilíbrio da legislação ordinária com a Carta Magna.

Considerando uma incompatibilidade entre a norma constitucional superveniente e o direito ordinário pré-constitucional, questiona-se se trata de hipótese de inconstitucionalidade superveniente ou de mera revogação. Abordando a relevância prática do tema apresentado, citaremos o doutrinador e Ministro do STF, Gilmar Mendes1, segundo o qual:

Se eventual conflito entre direito pré-constitucional e o direito constitucional superveniente resolve-se no plano do direito intertemporal, há de se reconhecer a competência de todos os órgãos jurisdicionais para apreciá-lo. Ao revés, se se cuida de questão de incon-stitucionalidade, a atribuição deverá ser exercida pelos órgãos jurisdicionais especiais competentes para dirimir controvérsias dessa índole, segundo a forma adequada.

Primeiramente, é válido ressaltar que a ordem constitucional brasileira e o entendimento jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, aceitam a revogação nos casos referentes a direito intertemporal. Vejamos posicionamento do Supremo Tribunal Federal com relação à matéria:

EMENTA: CONSTITUIÇÃO. LEI ANTERIOR QUE A CONTRA-RIE. REVOGAÇÃO. INCONSTITUCIONALIDADE SUPERVE-

1 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires. Curso de Direito Constitucional. 2ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, pg. 1016.

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NIENTE. IMPOSSIBILIDADE. A lei ou é constitucional ou não é lei. Lei inconstitucional é uma contradição em si. A lei é constitucional quando fiel a Constituição; inconsti-tucional, na medida em que desrespeita, dispondo sobre o que lhe era vedado. O vício da inconstitucionalidade é congênito à lei e há de ser apurado em face da Consti-tuição vigente ao tempo de sua elaboração. Lei anterior não pode ser inconstitucional em relação à Constituição superveniente; nem o legislador poderia infringir Cons-tituição futura. A Constituição sobrevinda não torna inconstitucionais leis anteriores com ela conflitantes: revoga-as. Pelo fato de ser superior, a Constituição não deixa de produzir efeitos revogatórios. Seria ilógico que a lei fundamental, por ser suprema, não revogasse, ao ser promulgada, leis ordinárias. A lei maior valeria menos que a lei ordinária. Reafirmação da antiga jurisprudência do STF, mais que cinquentenária. Ação direta de que se não conhece por impossibilidade jurídica do pedido, nos termos do voto proferido na ADIn n. 2-1/600. (ADI 52 - MT. Rel. Min. Paulo Brossard. Tribunal Pleno. Jul. 07/02/92. DJ 24/02/92)

Isto posto, temos que se é promulgada uma nova Constituição, a lei que não apresentar compatibilidade com esta deverá ser revogada por se tratar de direito intertemporal. Neste sentido, subentende-se que uma emenda à Constituição acarreta todos os efeitos mencionados, não se tratando por-tanto de inconstitucionalidade superveniente da lei ordinária anterior, mas sim de mera revogação da legislação que não condiz com os novos ditames da Lei Maior.

Francisco Sannini Neto2 também compartilha do mesmo entendi-mento, ao afirmar que:

Nesse caso, a lei que era compatível com a Constituição de sua época, passa a ser incompatível com a Consti-tuição superveniente, configurando-se, portanto, um

2 SANNINI NETO, Francisco. Inconstitucionalidade Superveniente. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/17668/inconstitucionalidade-superveniente>. Acesso em 27 de outu-bro de 2010.

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37Natália Luiza Lima Dantas Lira - Julliane Pinto de Aquino

caso de não recepção constitucional, matéria de direito intertemporal e que pode ser aplicado por qualquer juiz de direito, dispensando-se, assim, as cautelas inerentes ao processo de declaração de inconstitucionalidade.

Em outras palavras, não caberia declarar a inconstitucionalidade de uma norma se esta encontra-se revogada a partir do momento em que lei constitucional posterior, contrária àquela, entra no ordenamento jurídico.

Jorge Miranda (2005) preleciona que “constitucionalidade e incons-titucionalidade designam conceitos de relação: a relação que se estabelece entre uma coisa – a Constituição – e outra coisa – uma norma ou um ato – que lhe está ou não conforme, que com ela é ou não compatível”. Logo vemos que um ato normativo pode estar conforme a constituição da época em que foi lançado, entretanto poderá tornar-se incompatível à medida que novos ditames surjam no sistema.

É nesse seguimento que surge a EC 66/2010, como também o questionamento acerca da inconstitucionalidade superveniente ou revoga-ção da norma infraconstitucional. É válido ressaltar que antes de adentrar ao mérito da questão, fazer uma análise constitucional crítica é imprescindível. Para alguns doutrinadores ainda há a possibilidade de tribunal analisar a inconstitucionalidade de norma pré-constitucional com relação a constitucio-nalidade superveniente, mas, é importante reiterar o entendimento contrário do STF . Se a Constituição é a Lei Maior do nosso ordenamento, parece lógico e coerente que tudo que dispuser contrariamente a esta deverá ser consi-derado inconstitucional e sumariamente revogado da legislação pátria, como demonstra-se a seguir.

5 EFEITOS DA EMENDA CONSTITUCIONAL N. 66/2010

5.1 Revogação da norma infraconstitucional

Para alguns doutrinadores3, dos quais nos filiamos, considera ser a

3Adotam este entendimento: PAMPLONA FILHO, Rodolfo. O Novo Divórcio.1. ed. São Paulo: Sa-raiva, 2010, DIAS, Maria Berenice. A EC 66/2010 – E agora?. Disponível em: <http://www.maria-

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Emenda Constitucional n. 66/2010 posterior ao Código Civil e ao Código de Processo Civil, ocorrendo, assim, revogação de todos os dispositivos legais incompatíveis com a Constituição.

Em síntese, não haveria que se falar em separação judicial ou prazo para o divórcio, tendo sido também excluído o requisito de lapso mínimo de casado para a dissolução do casamento.

5.2 Extinção da separação judicial

Separação e divórcio são dois institutos que não são passíveis de igualdade, apresentando características particulares cada qual. A separação termina o casamento, entretanto não dissolve a sociedade e o vínculo conjugal. Por sua vez, o divórcio põe fim e dissolve o vínculo e sociedade mencionados. Consoante dispõe o art. 1576 do Código Civil: “A separação judicial põe termo aos deveres de coabitação e fidelidade recíproca e ao regime de bens”.

Assim, com a separação judicial apenas a sociedade conjugal é desfeita, admite a reconciliação do casal; enquanto que, no divórcio não é permitido esta reconciliação, posto que é dissolvido o próprio vínculo ma-trimonial, não sendo este fato suficiente para a manutenção do instituto da separação judicial.

Mostra-se injustificável a permanência da separação judicial perante o ordenamento jurídico contemporâneo, fazendo com que o requisito do “tem-po” fosse essencial para fundamentar o divórcio. É um direito constitucional, inerente à dignidade humana, que as partes que almejam o divórcio tenham a concretização desse direito de maneira célere e eficaz, evitando desgaste físico, mental, financeiro, moral, abarrotando o judiciário de ações que apresentam caráter tão particular, qual seja, a vida íntima de duas pessoas que não mais querem manter o laço conjugal. A interposição de procedimentos judiciais ou administrativos fincados na morosidade, no requisito temporal para conseguir tal feito, mostrava-se uma verdadeira invasão à privacidade.

Compreendemos, portanto, que com a promulgação da Emenda Constitucional n. 66/2010 extingue do nosso ordenamento jurídico o instituto

berenice.com.br/uploads/ec_66_-_e_agora(1).pdf>. Acesso em 23 out. 2010 e LÔBO, Paulo Luiz Netto. Divórcio: alteração constitucional e suas conseqüências. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=629>. Acesso em 04.10.2010.

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39Natália Luiza Lima Dantas Lira - Julliane Pinto de Aquino

da separação judicial e toda a legislação infraconstitucional que o regulamen-tava, em face da sua revogação. Entretanto, entendemos que as pessoas que já se encontravam separadas ao tempo da promulgação da Emenda Consti-tucional n. 66/2010 não se tornam imediatamente divorciadas, continuando a necessidade do pedido de decretação de divórcio, não obstante inexistir a necessidade de cômputo do lapso temporal anteriormente exigido.

Diante do exposto, a concessão do divórcio sem os requisitos an-teriormente impostos, podendo o casal partir direta e imediatamente para a dissolução do vinculo matrimonial, torna o procedimento mais célere, menos oneroso e desgastante para o casal e para o Estado.

5.3 Extinção do prazo da separação de fato para o divórcio

Diante da nova redação do § 6º do art. 226 da Constituição Federal, outro efeito observado é o fim do prazo da separação de fato como um dos requisitos para o divórcio, permitindo a dissolução do vínculo matrimonial de forma imediata.

Desta feita, não há mais a discussão sobre o lapso temporal da separação de fato do casal ou de qualquer outra causa especifica para a dis-solução do matrimonio, sendo necessário para a instrução da ação de divórcio a certidão de casamento do casal. Neste prisma, surge com maior intensidade na realidade brasileira a aplicação do princípio da ruptura do afeto, como fundamento para o pedido de divórcio.

Em comparação ao direito português, no tocante ao prazo do di-vórcio, leciona o doutrinador Jorge Pinheiro: “o divórcio fundado em ruptura da vida em comum pode ter como causa a separação de facto por três anos consecutivos (art. 1781, al. a) ou a separação de facto por um ano se o divórcio for requerido por um dos cônjuges sem a oposição do outro (art. 1781, al. b)”4.

Portanto, é possível observar o avanço da nossa legislação em comparação ao direito português, ressaltando que agora não cabe mais ao Estado brasileiro oferecer ao casal um prazo para a reflexão sobre a ruptura do vinculo matrimonial, posto que esta decisão encontra-se inserida na esfera íntima do casal e, por isto, pertence apenas a eles à escolha de dissolução ou não do casamento, em concordância com o princípio da intervenção mínima.

4 PINHEIRO, Jorge. O Direito da Família Contemporâneo. Lisboa: AAFDL, Lisboa, 2008, pág. 620.

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6 APLICAÇÃO DA EMENDA CONSTITUCIONAL N. 66/2010

No mesmo sentido ao entendimento exposto no decorrer do presente artigo, qual seja, que o instituto da separação judicial encontra-se revogado em face da Emenda Constitucional 66/2010, estão sendo formulados todos os julgados proferidos pelas varas de família da Comarca de Natal, senão vejamos decisão interlocutória proferida pela Primeira e pela Segunda Vara de Família do Distrito Judiciário da Zona Norte:

Despacho: Tendo em vista o advento da emenda constitucional de número 66 (sessenta e seis), e a sua consequente vigência, a qual passou a dar nova redação ao parágrafo 6º (sexto) do artigo 226 (duzentos e vinte e seis) da Constituição da República Federativa do Brasil, a partir da data da sua respectiva publicação, ocorrida o  Diário Oficial da União no dia 14 de julho do corrente ano; promovendo, portanto, a inconstitucionalidade superveniente - não recepção - dos artigos concer-nentes ao instituto da separação judicial e da separação de fato contidos no diploma normativo do Código Civil Brasileiro, faculto aos Requerentes a emenda da exordial, no prazo de cinco dias, com o intuito de adequar o seu respectivo pleito em conformidade à nova ordem ju-rídica constitucional vigente. P. I. Providências Cabíveis. Processo nº 002.10.002035-8 – Separação Consensual / Especial de Jurisdição Voluntária. 1ª. Vara de Família do Distrito Judiciário da Zona Norte, Comarca de Natal/RN. Data da publicação: 27.07.2010. (grifo nosso);

Decisão: Vistos, etc. Com amparo no artigo 319 do Có-digo de Processo Civil, decreto a revelia de A.C.S face à ausência de contestação diante de citação válida. Em razão da promulgação da EC 66, em 14.07.2010, com vigência imediata, em que afasta o instituto da separa-ção judicial, intimo a parte autora, por seu advogado, para dizer, em 10(dez) dias, se pretende a conversão da presente ação em divórcio direito litigioso. Desde já designo audiência de instrução e julgamento para a data de 11 de Outubro de 2010, pelas 10:00 horas, neste Fórum, devendo as partes trazerem as suas testemunhas independentemente de intimação ou, em caso de im-

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41Natália Luiza Lima Dantas Lira - Julliane Pinto de Aquino

possibilidade, depositarem o respectivo rol no prazo de 10 (dez) dias. Fixo como ponto controvertido ao caso apenas a parte do pedido que trata dos alimentos pretendidos pela autora. Publique-se. Intimem-se as partes, seus advogados e testemunhas eventualmente arroladas. Natal, 29 de julho de 2010. Rogério Januário de Siqueira Juiz de Direito. Processo nº 002.09.000205-0 - Separação Litigiosa/ Lei Especial. 2º Vara de Família do Distrito Judiciário da Zona Norte, Comarca de Natal/RN. Data da publicação: 14.08.2010. (grifo nosso);

Verifica-se, enfim, que a Emenda Constitucional analisada vem sendo aplicada de maneira a possibilitar que a dissolução do matrimonial ocorra de imediato, sem os requisitos anteriormente impostos pela Constituição Federal. Assim, é permitido aos ex-cônjuges que a reconstrução da nova etapa da vida, na perspectiva de felicidade de cada um, seja realizada de forma mais célere e menos burocrática.

7 CONCLUSÃO

Pelo exposto anteriormente, demonstra-se que a Emenda Constitu-cional n. 66/2010, a qual alterou o parágrafo 6º. do artigo 226 da Constituição Federal gerou efeitos sobre a norma infraconstitucional, especialmente o Código Civil e o Código de Processo Civil.

Em síntese, restou suprimido o instituto da separação judicial no nosso ordenamento jurídico, bem como o prazo de separação de fato para a concessão do divórcio. Sendo o divórcio medida para a dissolução do vínculo matrimonial e da sociedade conjugal, sem a anterior exigência de dualidade de procedimentos. Permitindo, aludida Emenda Constitucional, aos participantes de uma relação matrimonial frustrada formular novos projetos de vida, sem existir o desgaste da necessidade de esperar o lapso temporal para a dissolução do antigo matrimonio.

Deste modo, conclui-se que houve revogação dos dispositivos cons-tantes no Código Civil e no Código de Processo Civil efetivadas pela Emenda Constitucional n. 66/2010. Não obstante, temos que fica facultado às partes a dissolução do casamento de maneira célere e com menos custos, condizente

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com o padrão social hodierno, a fim de que a estrutura familiar possa ser mantida por laços de afeto e respeito.

REFERÊNCIAS

DIAS, Maria Berenice. A EC 66/2010 – E agora?. Disponível em: < http://www.mariaberenice.com.br/uploads/ec_66_-_e_agora(1).pdf>. Acesso em 23 out. 2010.

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GAGLIANO, Pablo Stolze. A nova emenda do divórcio: primeiras reflexões. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=635>. Acesso em 22 out. 2010.

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. O Novo Divórcio. São Paulo: Saraiva, 2010.

MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Tomo VI, Parte VI: Incon-stitucionalidade e garantia geral. Cap. I. 2ª ed. Coimbra. Ed. Coimbra, 2005.

PEREIRA, Rodrigo da Cunha. A EC nº 66/2010: semelhanças, diferenças e inutilidades entre separação e divórcio e o direito intertemporal. Editora Ma-gister - Porto Alegre - RS. Publicado em: 03 ago. 2010. Disponível em: <http://www.editoramagister.com/doutrina_ler.php?id=791>. Acesso em 23 out. 2010.

PINHEIRO, Jorge. O direito da família contemporâneo. Lisboa: AAFDL, 2008.

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43Natália Luiza Lima Dantas Lira - Julliane Pinto de Aquino

SANNINI NETO, Francisco. Inconstitucionalidade superveniente. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/17668/inconstitucionalidade-super-veniente>. Acesso em 27 de outubro de 2010.

SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 30ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2008.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Emenda constitucional no 66/2010: extinção da separação judicial. Disponível em: < http://www.silviovenosa.com.br/artigo/extincao-da-separacao-judicial>. Acesso em 23 out. 2010.

THE CONSTITUTIONAL AMENDMENT N. 66/2010: CHANGES AND IMPROVIMENT IN THE RELATIONS OF CIVIL LAW

ABSTRACT

Through of the constitutional amendment n. 66/2010 institute of judicial separation has changed to the Brazilian legal system. Since then, controversies have arisen regarding the interpreta-tion of ordinary law, making the nacional doctrine to present different points of view concerning to the abovementioned law. Therefore, it is neces-sary to analyze the effects arising from changes brought by the standard, the conceptual aspects, as well as the will of the constituent, showing that throughout the history of civil law, within Brazilian society, the state will intervene each less time in private relationships, allowing greater freedom in private life of citizens. Thus, the article is guided on legal grounds, costumary, but mainly constitutional to adress the issue about new legal separation and the consequences that entails for

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the civil law.

Keywords: Judicial Separation. Divorce. Constitu-tional Amendment n. 66/2010.

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A IMPOSSIBILIDADE DE REDUÇÃO DA IDADE PENAL MÍNIMA: UMA ABORDAGEM CRÍTICA PELA SUSTENTAÇÃO

DO CARÁTER PÉTREO DOARTIGO 228 DA

CONSTITUIÇÃO FEDERAL

Richardy Videnov Alves dos SantosAcadêmico do 4º período do

Curso de Direito da UFRN.Monitor de Introdução ao

Estudo do Direito

Mariana de SiqueiraProfessora Orientadora

RESUMO

O crescimento desenfreado dos índices de criminali-dade, bem como a divulgação constante pela mídia de crimes brutais praticados por adolescentes, têm acentuado o clamor público pela redução da maio-ridade penal. Tal anseio revela como a população, malgrado seu interesse por segurança seja legítimo, desconhece as prerrogativas que nossa Constitu-ição põe a salvo no tocante à proteção à criança e ao adolescente, assim como a delicada conjuntura social envolvida na problemática da criminalidade juvenil. Nossa Lei Maior estabelece, em seu artigo 228, que “são penalmente inimputáveis os meno-res de dezoito anos, sujeitando-se às normas da legislação especial”. Todavia, inúmeros projetos (de Decreto Legislativo, de Lei Ordinária e de Emenda à Constituição) já tramitaram no Congresso Nacional, objetivando a redução da idade penal mínima es-tabelecida pelo Constituinte de 1987/1988. Nesse

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46 A impossibilidade de redução da idade penal mínima: uma abordagem críticapela sustentação do caráter pétreo do artigo 228 da constituição federal

sentido, emerge acirrada discussão acerca da pos-sibilidade de reforma ou não do citado dispositivo. O presente trabalho almeja demonstrar, à luz da moderna teoria dos direitos fundamentais, o caráter pétreo da maioridade penal aos dezoito anos e, subsidiariamente, a inoportunidade de sua redução, tendo por lastro uma análise crítica da problemática social envolvida.

Palavras-chave: Redução da Maioridade Penal. Impossibilidade. Caráter Pétreo. Inoportunidade.

1 INTRODUÇÃO

A sociedade brasileira vive aterrorizada com os índices crescentes de violência. Desse modo, avulta-se a cada dia a crença que a acentuação no rigor das punições, como medida isolada, é capaz de coibir a criminalidade. Esse sentimento torna-se ainda mais perceptível quando crimes bárbaros são praticados por adolescentes. Tais casos não são raros em nosso país, de modo que o clamor latente pelo aumento da severidade das sanções eclode facilmente. Nesse sentido, é recorrente a celeuma pela diminuição da idade penal mínima.

Aqueles que propugnam pela redução da maioridade penal defen-dem que tal instituto, previsto em nossa Constituição em seu art. 2281, constitui fator de impunidade para os adolescentes, na medida em que não se sujeitam às regras estabelecidas no Código Penal, senão às medidas socioeducativas e de proteção previstas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (doravante ECA). Aduzem, indignados, que a vedação à internação superior a três anos, fixada pelo ECA2, induz o adolescente infrator, independentemente da infração cometida, a pensar que o crime compensa, posto que esta reprimenda não impinge o devido temor que (pretensamente) traria segurança à sociedade.

1 Art. 228: “São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial”.2 É o que estabelece seu artigo 121, o qual trata da medida privativa de liberdade, no § 3o: “Em nenhuma hipótese o período máximo de internação excederá a três anos”.

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47Richardy Videnov Alves dos Santos

Diante dessa sensação de impunidade e insegurança que se avulta para além dos grandes centros urbanos, a redução da maioridade penal é divulgada e defendida como panaceia para os casos de delinquência juvenil.

Entretanto, tal posicionamento passa ao largo da especial proteção que a Constituição de 1988 reserva à criança e ao adolescente, a qual esta-belece que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar-lhes, com absoluta prioridade, sua proteção integral (direito à vida, à saúde, à educação, à dignidade, à liberdade, à convivência familiar e comunitária, dentre outros). Tal proteção, lastreada na concepção de particular condição de desenvolvi-mento, possivelmente, conforme ponderaremos, influenciou o Constituinte a estabelecer a maioridade penal aos 18 anos.

É cediço que o art. 228 da Constituição Federal não pode ser alterado por meio de lei ordinária. Entretanto, é recorrente a discussão acerca da pos-sibilidade de reforma através de emenda à Constituição.

A partir da análise do conceito materialmente aberto de direito fundamental, perfilhado por nossa Constituição em seu artigo 5o, § 2o, ten-taremos demonstrar o caráter pétreo do art. 228 da Carta de 1988 e, conse-quentemente, a impossibilidade de qualquer emenda tendente à redução da maioridade penal. O objetivo do presente trabalho não se restringe a abordar os aspectos normativos da temática, procura também tecer, à luz da princi-piologia do Estado Democrático de Direito, reflexões indispensáveis quanto à inoportunidade de tal medida. Para tanto, parte da constatação do fracasso do sistema penitenciário brasileiro, bem como a necessidade de implementação de políticas públicas que busquem sanar o problema da delinquência juvenil em sua origem.

2 O PAPEL DOS PRINCÍPIOS E DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

O Direito, como ordenação do convívio em sociedade, não existe de per se. A pessoa ocupa papel central no ordenamento jurídico, representando o valor-fonte do qual emanam os demais valores. Assim, a existência de um Estado só se legitima na medida em que este garante e promove uma existência digna, livre e justa a seus cidadãos.

Dessa forma, a escorreita compreensão acerca da possibilidade de reforma da Constituição, tendo em mira a discussão aqui proposta, é lavor que requer o conhecimento do papel que os princípios e os direitos fundamentais

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48 A impossibilidade de redução da idade penal mínima: uma abordagem críticapela sustentação do caráter pétreo do artigo 228 da constituição federal

exercem no Estado Democrático.

2.1 Dos princípios

Inicialmente, convém consignar que esse modelo de Estado funda-se em duas linhas estruturantes: o Estado limitado pelo direito e o poder político legitimado pelo povo. Tem por fito afastar a inclinação humana ao autoritarismo, de modo que, além de assegurar a participação popular nos destinos do país, estabelece limites ao exercício do poder, impondo às auto-ridades públicas o respeito aos direitos e garantias fundamentais.

É nele onde todas as exigências sociais, políticas e econômicas do homem concreto devem ser efetivamente atendidas, não devendo limitar-se a vãs promessas.

Nossa Lei Fundamental estabelece logo em seu primeiro artigo que o Brasil constitui Estado Democrático de Direito, tendo a cidadania e a dignidade da pessoa humana como uns de seus fundamentos. Continua elen-cando, a título de objetivos fundamentais, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da pobreza e da marginalização, a redução das desigualdades sociais e a promoção do bem de todos, dentre outros (art. 3o).

É notório o fato de os princípios fundamentais norteadores da Cons-tituição de 1988 (artigos 1º ao 4º) terem sido fixados logo após o preâmbulo e antes dos direitos fundamentais. Ingo Wolfgang Sarlet (2010) aduz que, ao erigir tal disposição, o Constituinte demonstrou, de modo inequívoco, sua intenção de conceder a tais princípios a qualidade de normas embasadoras e informativas de toda a ordem constitucional3.

De fato, os princípios, desde sua etimologia, consistem no funda-mento de algo. Para Luís-Diez Picazo (apud BONAVIDES, 2005, p. 255-256), a ideia de princípio designa “as verdades primeiras”, “as premissas de todo um sistema que se desenvolve more geométrico” (isto é, de modo geométrico, que busca as proporções ideais).

Com o advento do Pós-Positivismo, as novas constituições promul-gadas, superando a doutrina que considerava os princípios meras diretrizes

3 É importante destacar que nossa Lei Maior, no afã de constitucionalizar todo o conjunto da vida social, traçou várias diretrizes, bem como estabeleceu, ao longo de todo o texto constitucional, inúmeros princípios, explícitos e implícitos, os quais se revestem de igual importância na condu-ção dos rumos do Estado brasileiro.

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programáticas e interpretativas, acentuam, nos dizeres de Paulo Bonavides (op. cit., p. 264): “a hegemonia axiológica dos princípios, convertidos em pedestal normativo sobre o qual assenta todo o edifício jurídico dos novos sistemas constitucionais”. Os princípios passaram a desempenhar, indistintamente, tanto a função integrativa, como a normativa.

Conforme destaca Celso Antônio Bandeira de Mello (2009), violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma regra qualquer, pois representa uma insurgência contra todo o sistema, a subversão de seus valores fundamentais.

Ressalte-se que princípios e regras completam-se. Um sistema cons-titucional fundado somente em princípios padeceria de indeterminabilidade, ao passo que um sistema erigido apenas sobre regras careceria de uma unidade interpretativa, tendo em vista que lhe faltaria o fio condutor entre as diversas regras (TERRA, 2001). A interpretação, portanto, confere a unidade sistêmica reclamada à Constituição, haja vista que a intelecção mais apropriada de suas normas desponta de uma integração de seus sentidos.

Os princípios, portanto, além de conferir unidade, ordenam o texto constitucional no que tange aos fins a serem alcançados pelo Estado. Ordena-ção exercida tanto por princípios explícitos, a exemplo daqueles estabelecidos nos artigos 1o ao 4o da CF, como implícitos.

Podemos citar ainda o princípio da prioridade absoluta, localizado no art. 2274 da CF, o qual confere à criança e ao adolescente tratamento prioritário, de modo a assegurar-lhes condições de desenvolvimento sadio e pleno. Consoante expõe Marília Montenegro Pessoa de Mello (2004), essa doutrina da proteção integral e prioritária busca promover todos os direitos das crianças e dos adolescentes, abrangendo seu desenvolvimento pessoal e social, sua integridade física, psicológica e moral, além de colocá-los a salvo qualquer forma de risco.

É exatamente essa unidade axiológica, aferida na Constituição medi-ante um acurado processo de interpretação dos valores e princípios albergados, que nos permite localizar no texto constitucional disposições que, inicialmente,

4 Art. 227: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profis-sionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitá-ria, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violên-cia, crueldade e opressão”.

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não são tão evidentes. O artigo exposto supra, por exemplo, malgrado estar localizado fora do rol do art. 5o da CF, constitui verdadeiro direito fundamental implícito5, posto que confere à criança e ao adolescente direitos atinentes a sua esfera subjetiva de proteção, além de estabelecer o dever do Estado de prestar-lhes determinadas medidas protetivas.

É o que tentaremos demonstrar em relação ao artigo 228 da CF. Tal constatação carece, ainda que provisoriamente, de uma abordagem sobre a noção de direito fundamental.

2.2 Dos direitos fundamentais

Conforme prelecionam Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins (2008, p. 54):

Direitos fundamentais são direitos público-subjetivos de pessoas (físicas ou jurídicas), contidos em disposi-tivos constitucionais e, portanto, que encerram caráter normativo supremo dentro do Estado, tendo como finalidade limitar o exercício do poder estatal em face da liberdade individual. [grifos nossos]

A princípio, consistem em proteção contra incursões ilegítimas do Estado na esfera subjetiva do indivíduo. Não obstante, abrangem desde a pretensão de resistência à intervenção estatal (direitos de status negativus) ao direito a prestações (status positivus) e à participação política (status activus), sem prejuízo dos direitos coletivos e das garantias institucionais.

Para Robert Alexy (apud SARLET, op. cit., p. 77), os direitos funda-mentais são

aquelas posições jurídicas concernentes às pessoas que, sob o prisma do direito constitucional positivo, são tão relevantes que seu reconhecimento ou não reconhe-cimento não podem ser relegados ao livre talante do

5 De modo semelhante, também podem ser considerados direitos fundamentais implícitos o direito à saúde (art. 196), à previdência social e à aposentadoria (arts. 201 e 202), ao ensino pú-blico fundamental obrigatório e gratuito (art. 208, inciso I), ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225), dentre outros. Nesse sentido, cf. SARLET (op. cit., p. 118).

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legislador ordinário

Ao Estado incumbe, não apenas respeitar os direitos e liberdades fundamentais, mas também garanti-los. Esse entendimento resulta no “afas-tamento de uma concepção puramente formal dos direitos fundamentais, que os restringisse às liberdades pessoais, civis e políticas [...]” (CANOTILHO; MOREIRA apud MENDES; COELHO; BRANCO, 2009, p. 74).

Constituição, Estado de Direito e direitos fundamentais estão, por-tanto, intimamente imbricados. O Estado deve:

[...] escapando ao conceito meramente formal, ir além ‘do governo das leis’, da organização do poder e das competências, para reconhecer metas, parâmetros e limites da atividade estatal, certos valores, direitos e liberdades fundamentais, os quais exercem não apenas função limitativa do poder, como também legitimadora do poder estatal e da própria a ordem constitucional (SARLET, op. cit., p. 59).

Essa exigência parte da constatação que os direitos fundamentais integram um sistema axiológico que atua como fundamento de todo o orde-namento, sendo imprescindível compreender suas funções num Estado de Direito que busque consagrar e ser merecedor deste título, haja vista que o poder se justifica por e pela realização dos direitos do homem e que a ideia de justiça é hoje indissociável de tais direitos (PINTO apud SARLET, loc. cit.).

Isso posto, cabe aqui perquirirmos das notas que caracterizam determinados direitos como fundamentais. Tal afã não é dos mais fáceis, pois tal classe de direitos não tende à homogeneidade, o que obstaculiza uma conceituação material que abarque a todos. Nada obstante, mostra-se indis-pensável para a constatação de direitos fundamentais implícitos.

É importante observar que tais direitos podem ter sua fundamen-talidade dissecada a partir de dois aspectos: um material e outro formal. A fundamentalidade material está intimamente relacionada à importância e ao conteúdo do direito, ao passo que a formal encontra respaldo na previsão realizada pelo texto constitucional.

A fundamentalidade formal emerge do fato de o direito constar no rol dos direitos fundamentais assegurados expressamente pela constituição. Essa previsão os afasta da esfera de disponibilidade dos poderes constituídos,

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característica, que consoante o entendimento de Alexy aduzido supra, constitui marca distintiva dos direitos fundamentais.

Para Vieira de Andrade (apud MENDES; BRANCO; COELHO, op. cit., p. 270), o elemento caracterizador é a intenção de explicitar o princípio da dignidade da pessoa humana, na qual residiria a fundamentalidade material dos direitos humanos6.

Apesar da existência de direitos fundamentais destituídos de qualquer valor subjetivo, ou cujos titulares sejam pessoas jurídicas7, é patente a íntima vinculação de considerável monta de direitos e garantias fundamentais à dignidade da pessoa humana. Aqui, importa destacar que o referido princípio vem, de fato, sendo considerado fundamento do sistema de direitos funda-mentais, na medida em que estes constituem desdobramentos e exigências daquela, a qual deve servir-lhes de base para sua interpretação (SARLET, op. cit.).

Nesse cenário, convém repisar que a dignidade da pessoa humana constitui princípio fundamental de nosso Estado Democrático de Direito (art. 1o, inciso III da CF), o que atesta a decisão fundamental do Constituinte de 1987-1988 a respeito da finalidade, do sentido e da justificação do exercício do poder estatal e do próprio Estado (ibid.). O Estado, portanto, existe em função da pessoa, e não o contrário, pois o homem não figura como meio da atividade estatal, senão sua finalidade precípua.

Embora seja um conceito fluido, pode-se afirmar que a dignidade representa qualidade intrínseca à pessoa humana, algo que simplesmente existe, sendo irrenunciável e inalienável, na medida em que constitui elemento que qualifica o ser humano como tal e dele não pode ser destacado. Engloba o respeito e a proteção da integridade física e moral do indivíduo, a necessidade de propiciar condições justas e adequadas de vida, a garantia de isonomia e de identidade, dentre inúmeros outros aspectos (ibid.).

Dessa feita, é imperioso ressaltar que impõe ao Estado tanto um dever de respeito (abstenção), como a necessidade de serem adotadas con-

6 Aqui o autor faz menção a direitos humanos e não direitos fundamentais. Assim, é importante destacar a diferença entre tais direitos, de modo a evitar confusões. Os direitos do homem emer-gem da própria natureza humana e daí o seu caráter inviolável, intemporal e universal; enquanto os direitos fundamentais seriam os direitos objetivamente vigentes numa ordem jurídica con-creta. Sobre essa distinção ver Canotilho (1998, p. 517). 7 Nesse sentido, observar, por exemplo, o rol do art. 5o da CF/88 em seus incisos XXI, XXVIII e XXIX, nos quais é forçoso encontrar direitos com fundamento na dignidade inerente à pessoa humana.

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dutas positivas (prestações) tendentes a efetivar e proteger a dignidade do indivíduo. Afinal, os direitos fundamentais podem ser também direitos de caráter econômico, social e cultural.

Os direitos e garantias fundamentais são, portanto, sob o aspecto material, “pretensões que, em cada momento histórico, se descobrem a partir da perspectiva do valor da dignidade da pessoa humana” (MENDES; COELHO; BRANCO, op. cit., p. 271).

É essa noção de fundamentalidade material que permite a abertura da Constituição a outros direitos fundamentais não constantes de seu texto, assim como a direitos situados fora do catálogo expresso, porém integrantes da Constituição formal.

Trata-se do conceito materialmente aberto de direitos fundamen-tais, acolhido pela CF/88 em seu art. 5º, §2º, o qual estabelece: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Tal construção aponta para o fato de na Constituição também estar incluído o que não foi expressamente previsto, mas que implícita e diretamente pode ser deduzido, tendo em vista o conteúdo aberto e fluídico do princípio da dignidade humana, centro difu-sor de direitos.

Todavia, convém advertir que nem tudo constante no texto constitu-cional deve ser reconduzido, através de manobras argumentativas, ao valor da dignidade da pessoa humana. Se assim fosse, toda e qualquer posição jurídica estranha ao catálogo poderia ser revestida do caráter de fundamentalidade.

Arrematando a discussão tecida ao longo das últimas páginas, é basilar a lição de Ingo Wolfgang Sarlet (op. cit., p. 62) acerca da importância dos direitos fundamentais, a qual resume as linhas fundantes do entendimento que defenderemos no tocante à impossibilidade de redução da maioridade penal:

Além da íntima vinculação entre as noções de Estado de Direito, Constituição e direitos fundamentais, estes, sob o aspecto de concretizações do princípio da dig-nidade da pessoa humana, bem como dos valores da igualdade, liberdade e justiça, constituem condição de existência e medida de legitimidade de um autêntico Estado Democrático e Social de Direito [...].

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3 O CARÁTER PÉTREO DA MAIORIDADE PENAL

Os direitos e garantias fundamentais, a partir do prodigioso reforço conferido pela CF/88 através do art. 5o, §1o, possuem aplicabilidade imediata, restando excluído, em princípio, seu cunho programático (SARLET, op. cit.). Outrossim, soma-se a essa maior proteção, sua inserção no rol das cláusulas pétreas, previsto no art. 60, § 4o da Carta, o qual assevera a intangibilidade de direitos e garantias individuais frente a ação do poder constituinte derivado. De modo inconteste, tal status jurídico diferenciado constitui demonstração cabal do valor destacado usufruído por tais direitos em nosso ordenamento.

No entanto, a existência de disposições insuscetíveis de alteração não é recebida sem críticas. Aduz-se que tal limitação acarretaria o imobilismo da Constituição, ocasionando um descompasso da norma com a sociedade e, em decorrência, um desprestígio de seu texto.

Com efeito, defende-se que eventuais alterações têm por fito re-vitalizar o texto constitucional, o qual, apesar de ser concebido para durar no tempo, deve adequar-se, frente a normas que não mais se justificam, à realidade vivenciada, de modo a cumprir mais apropriadamente sua função de conformação da sociedade. Busca-se ainda evitar seu engessamento e, com o evoluir da sociedade, uma disparidade insustentável com os fatos sociais (MENDES; COELHO; BRANCO, op. cit.).

De fato, em decorrência dessa necessidade de atualização, ema-nou do poder constituinte originário o poder de reforma, exercido, no caso brasileiro, através do poder de revisão, por uma única vez (art. 3º, do ADCT), e, primordialmente, do poder de emenda.

Não obstante ser inegável a necessidade de revitalização do texto da Constituição, o poder de reforma, diferentemente do poder constituinte, não é soberano, ilimitado, tampouco incondicionado. Sujeita-se à limitações explícitas: formais (referentes ao processo legislativo, art. 60, I, II e III, §§ 2º, 3º e 5º da CF), circunstanciais (art. 60, § 1º da CF) e materiais (art. 60, § 4º da CF); bem como à limitações implícitas.

Nesse cenário, exsurgem as cláusulas pétreas, as quais constituem limites materiais à reforma. Tais “garantias da eternidade” perfazem um núcleo essencial do projeto do poder constituinte originário, devendo este cerne ser preservado, de modo a assegurar as opções primordiais e a imutabilidade de certos valores. Demonstram, portanto, constituir o propósito do poder de revisão, não criar uma nova Constituição, mas ajustá-la, mantendo sua iden-

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tidade, às novas conjunturas, evitando, assim, sua erosão (ibid.).Dessa feita, o processo de mutação constitucional nada tem a ver

com as conveniências dos políticos para se soltar dos freios da lei suprema, visto que “a Constituição, enquanto produto de um jogo de forças estabelecido no seio da Assembleia Constituinte, tem uma sistematicidade e uma materialidade que não podem ser ignoradas” (STRECK apud TERRA, op. cit.).

Conforme preleciona Paulo Bonavides (op. cit., p. 201-202):

É óbvio, pois, que a reforma da Constituição nessa última hipótese [poder constituinte derivado] só se fará segundo os moldes estabelecidos pelo próprio figurino constitucional; o constituinte que transpuser os limites expressos e tácitos de seu poder de reforma estaria usurpando competência ou praticando ato de subversão e infidelidade aos mandamentos constitucio-nais, desferindo, em suma, verdadeiro golpe de Estado contra a ordem constitucional.

Ainda sobre as cláusulas pétreas, tem-se que o rol constante no art. 60, §4º da CF não enumera as limitações ao poder de reforma de modo exaustivo, pois a lógica sistemática da ordem constitucional torna inevitável o reconhecimento de limites implícitos. Mendes, Coelho e Branco (op. cit., p. 262) citam constituir restrições implícitas: a própria cláusula de imutabilidade, os princípios denominados pelo constituinte de fundamentais, assim como as normas concernentes aos titulares dos poderes constituinte e reformador.

Com fundamento na redação do dispositivo aludido acima, em seu inciso IV, o qual estabelece serem cláusulas pétreas os direitos e garantias individuais, é possível constatar a existência de cláusulas implícitas atinentes aos direitos fundamentais aferidos através do conceito materialmente aberto, consagrado no art. 5º, §2º da CF.

Desse modo, podemos aferir que o dispositivo constitucional con-sagrador da imputabilidade penal aos dezoito anos e da sujeição das crianças e dos adolescentes às normas do ECA, apesar de localizado no art. 228 da CF, ou seja, fora do catálogo expresso de direitos fundamentais; consiste em verdadeira cláusula pétrea implícita, uma vez que se investe naquele conceito material aberto de direito fundamental. É o que tentaremos demonstrar.

Com efeito, a ordem constitucional vigente, ao fixar a idade penal mínima aos 18 anos, conferiu à criança e ao adolescente um tratamento ju-rídico mais adequado a sua peculiar condição de seres em desenvolvimento.

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Tal previsão emana diretamente do princípio da dignidade da pessoa humana e lastreia-se no princípio da proteção integral, na medida em que garante a esses indivíduos evidente proteção frente ao poder punitivo estatal.

Nesse diapasão, convém ressaltar que a CF/88 promoveu efetiva revolução conceitual e normativa no tratamento dos interesses das crianças e adolescentes. Buscou extirpar de forma definitiva as práticas repressivas, autoritárias e incriminadoras da pobreza, consubstanciadas no Código de menores de 1979. Uma de suas grandes conquistas foi o reconhecimento da prioridade absoluta que crianças e adolescentes, face sua condição especial de desenvolvimento, devem ter para a promoção e defesa de seus direitos, superando a visão fatalista, excludente e reducionista das medidas antes vigorantes8.

Tal transformação possui fulcro nos direitos humanos9. E, sendo o Estado Democrático de Direito presidido, entre outros, pelo princípio da dig-nidade da pessoa humana, a fixação da inimputabilidade penal até os dezoito anos representa, nos dizeres de Eugênio Terra (op. cit.), “o seu compromisso com a valorização da adolescência, por reconhecer tratar-se de uma fase especial de desenvolvimento do ser humano”.

Corroborando esse entendimento, Marília de Mello (op. cit., p. 64) aduz ser possível afirmar que “o art. 228 garante ao menor de 18 anos a inimputabilidade penal, da mesma forma que o art. 5°, no seu inciso XLVIII, garante aos cidadãos que não serão aplicadas as penas de morte, as de caráter perpétuo, de banimento ou cruéis”. Tendo em vista tratar-se de escolha feita pelo constituinte, tecida à luz dos valores perfilhados pela Lei Maior.

Apesar dos esforços dispendidos, o entendimento sustentado na presente abordagem ainda não é pacífico. Mesmo após a nova ordem democrática instaurada em 1988, uma cifra considerável de projetos inten-cionando a redução da maioridade penal já foi intentada10.

8 Sobre essa mudança de paradigmas, cf. Emílio Mendez, “Adolescentes e responsabilidade pe-nal: um debate latino americano”. Disponível em: http://www.mp.rs.gov.br/infancia/doutrina/id114.htm>. Acesso em: 13 ago. 2010.9 No cenário internacional, a doutrina da proteção integral foi consagrada pela Convenção dos Direitos da Criança, aprovada com unanimidade pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1989. Essa Convenção, que considera criança todos os indivíduos até os dezoito anos, ressalta em seu preâmbulo a importância da proteção à criança, reafirmando a principiologia atinente à proteção da dignidade da pessoa humana, à promoção da liberdade, justiça e paz no mundo. 10 É o que demonstra rápida consulta ao site da Câmara dos Deputados: <http://www2.camara.

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Podemos citar o projeto de decreto legislativo n. 735/200311, o qual intencionava a realização de um plebiscito para a manifestação popular sobre a pena de morte, prisão perpétua, desarmamento e maioridade penal. Em sua justificação, aduziu-se depender o pleno estabelecimento do Estado Democrático de Direito da realização dessa consulta, remetendo ao adágio popular “a voz do povo é a voz de Deus”.

Tal dependência não nos parece verossímil. Incontestavelmente, a soberania popular é pressuposto da democracia. Todavia, tratando-se de direito humanos, esses não devem ceder a uma pressão social qualquer, mesmo que advenha de uma pretensa maioria. Tais direitos, no escólio de Marília de Mello (op. cit.), devem ser resguardados de forma a conter impulsos e se evitar que, sob um falso argumento, se cometam atrocidades.

Afinal, democracia não deve significar meramente a “ditadura da maioria”, senão um ambiente de abertura ao diálogo racional e, sobretudo, de respeito aos valores traçados pela Carta, especialmente nas hipóteses em que esta concede a determinadas classes ou grupos sociais um tratamento mais benéfico, ainda que esses constituam uma minoria.

Não convence, portanto, o argumento de que a maioria da popu-lação é a favor do rebaixamento da maioridade penal.

4 A INOPORTUNIDADE DA REDUÇÃO

A redução da maioridade penal, como mencionado anteriormente, é defendida como meio eficaz para coibir a prática de crimes por adolescentes, e diminuir, por conseguinte, a violência e a impunidade12. No entanto, analisando a questão de modo racional, livre de quaisquer ímpetos, seja de vingança, seja protecionista, surge a dúvida se o rebaixamento da maioridade penal de 18 para 16 anos efetivamente lograria os fins a que se pretende.

Para responder tal indagação, é mister conhecer a delicada con-juntura social que envolve a delinquência juvenil, bem como a situação atual

gov.br/>. Acesso: 30 ago. 2010.11 Disponível em: <http://www.camara.gov.br/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=134100>. Acesso: 30 ago. 2010.12 Nessa direção, da qual destoamos, cf. o trabalho de Kleber M. Araújo “Pela redução da maiorida-de penal para os 16 anos”. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4578>. Acesso em: 13 ago. 2010.

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do sistema penitenciário brasileiro, ou seja, abordar a realidade em que se encontra submetida parte de nossa adolescência e perquirir se nosso sistema carcerário é eficaz no combate à violência, em suas funções preventiva e res-socializadora.

Tal abordagem perpassa a questão da inoportunidade de tal me-dida. Serve de subsídio para clarificar e corroborar com a impossibilidade de redução conforme a ótica constitucional demonstrada supra. Afinal, fato, valor e norma são indissociáveis.

Nesse afã, buscamos desviar-nos daquelas concepções que redun-dam numa discussão irracional: das que veem “pobres meninos carentes” e das que defendem, a qualquer custo, o fim da impunidade dos “marginais que se escondem atrás da idade para cometer crimes”.

Somos indeclinavelmente contra a errônea concepção que crimi-nalidade é sinônimo de pobreza. Porém, é imperioso perceber que a violência guarda relação com as condições econômicas dos menos favorecidos. Infe-lizmente, algumas pessoas, o que é não regra, acabam recorrendo ao crime, porque nunca tiveram a oportunidade de usufruir das mínimas condições existenciais, seja em razão de um sistema que mantém a exploração laboral e a marginalização social, seja porque sua assistência não atinge de modo eficiente todas as camadas sociais. É sobre essas pessoas que recai, quase por unanimidade, a fúria do estatuto repressor.

Assim constatou a moderna Sociologia criminal, a qual revelou como o “processo de criminalização de condutas opera não só de forma sele-tiva, senão também discriminatória em prejuízo de pessoas pertencentes aos setores sociais mais baixos, os quais resultam mais facilmente criminalizados” (ZUGALDÍA ESPINAR apud GOMES; MOLINA; BIANCHINI, 2007, v. I, p. 341).

De modo que o rebaixamento da maioridade teria por corolário o aumento de pobres no sistema carcerário brasileiro, reforçando ainda mais a constatação que o Direito Penal exerce, embora não declaradamente, uma função seletiva.

Não é essa, porém, a função que desempenha o Direito Penal no Estado Democrático de Direito. Nas lições de Ferrajoli (apud Mello, M., op. cit., p. 72), o Direito Penal “deve constituir a ultima ratio do Estado, tendo em vista que exerce a técnica de controle mais lesiva da liberdade e da dignidade dos cidadãos”.

Agravando esse cenário, a pena privativa de liberdade no Brasil, tal como é executada atualmente, mostra-se pior que a pena capital.

Bondezan (2007) nos dá uma noção de como se encontra nosso

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sistema penitenciário. Alude que a falta de vagas é um problema comum nos presídios. Onde cabem, por exemplo, no máximo seis pessoas, são colocadas mais de vinte, as quais têm de fazer suas necessidades fisiológicas sem qualquer privacidade, além de revezar-se para dormir.

Dropa (apud BONDEZAN, op. cit.) expõe que “a promiscuidade e a desinformação dos presos, sem acompanhamento psicossocial, levam à transmissão da AIDS entre os presos, muitos deles sem ao menos terem conhecimento de que estão contaminados”. Além dessa, outras doenças são comumente negligenciadas e os apenados, muitas vezes, por não serem consultados, sequer recebem remédios básicos.

É magistral a constatação feita por José Azevedo (apud BONDEZAN, op. cit.) de que a política penitenciária vigente contribui com a reprodução da violência, ao passo que:

[...] encarcera seres humanos, às vezes nem tão perigo-sos, mas que no convívio com a massa prisional, iniciam um curto e eficiente aprendizado de violência, corrup-ção, promiscuidade e marginalidade. [...] Ao ingressar no sistema, o preso deve adaptar-se às regras da prisão. Seu aprendizado nesse universo é estimulado pela necessidade de se manter vivo. Portanto, longe de ser ressocializado para a vida livre, é na verdade socializado para viver na prisão.

Esse ambiente prisional, imerso num clima de terror e desuman-ização, está longe de prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade. Inúmeros outros fatores poderiam demonstrar a falência da função preventiva e ressocializadora da pena, porém, nos bastam os expostos até aqui.

Assim, tendo ainda em vista o fenômeno da estigmatização dos ex-apenados, indagamos: será esse o tratamento que devemos dispender aos adolescentes em conflito com a lei? Ele se adequa ao ideal de Estado Democrático de Direito que defendemos? Afinal, que almejamos para nossos adolescentes: que sejam maculados perpetuamente pelo estigma da prisão, percam sua essência humana e aprendam a reproduzir a violência, ou que aprendam e tenham condições para assumir plenamente suas responsabili-dades dentro da comunidade?

A nosso ver, a redução da maioridade penal, além de inconstitucio-nal, é medida inadequada e irrazoável, patente, portanto, sua inoportunidade. Ainda que fosse realizada, não lograria os fins a que se propõe. Pelo contrário,

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somente contribuiria para a perpetuação da marginalização e para o cresci-mento e agravação das formas de violência. Seus efeitos seriam ainda mais gravosos, na medida em que atingiria um ser humano que se encontra apenas no começo de sua vida. É ainda simbolicamente nefasta, pois demonstraria a descrença na possibilidade de recuperação. As consequências sociais, portanto, seriam as mais desastrosas.

Constitui, então, medida incompatível com o princípio da proteção integral, o qual enseja medidas benéficas e adequadas ao sadio desenvolvi-mento das crianças e dos adolescentes, dotado de força normativa e, portanto, com caráter vinculante.

Nada obstante, devemos ter em mente que inimputabilidade não significa irresponsabilidade. O próprio art. 228 da Constituição Federal estabe-leceu que os inimputáveis se sujeitam às normas da legislação especial, no caso, o ECA. Com efeito, este diploma é mais condizente com a peculiar condição do adolescente, pois, consoante GOIAS et al. (apud MELLO, M., op. cit., p. 61) visa “ir além de uma simples censura e castigo da sociedade e dar a oportunidade de, através das medidas pedagógicas, mudar seu comportamento”. Afinal, sua sanção não deve estar imbuída de viés meramente punitivo, senão de um caráter pedagógico, tanto que a denominação da medida é socioeducativa.

Sobre o afastamento do adolescente da esfera de persecução penal, Danielle Barbosa (2009) esclarece que:

O adolescente que comprovadamente pratica um ato infracional seguramente responderá por ele. O jovem só não cumprirá pena porque a vulnerabilidade inerente à sua condição de pessoa ainda em desenvolvimento lhe assegura uma responsabilização mitigada, [...] revestida de aspectos pedagógicos mais evidentes.

Outrossim, a dilatação da intervenção punitiva constituiria verda-deiro engodo para mascarar os reais problemas existentes. A busca por uma solução simplista e imediata à problemática da criminalidade juvenil aponta para a incapacidade e, talvez, o desinteresse do Estado na solução das falhas de uma política social ineficaz, bem como o descaso da própria sociedade na cobrança pela proteção ao adolescente, em especial, o marginalizado.

Nesse sentido, preleciona Enrico Ferri (apud GOMES; MOLINA; BI-ANCHINI, op. cit., p. 340):

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61Richardy Videnov Alves dos Santos

O legislador deve convencer-se de que, para conter o aumento da criminalidade, as reformas sociais são muito mais adequadas e poderosas que o Código Penal [...] Para a defesa social contra à criminalidade e para a elevação moral da população, um pequeno progresso nas reformas de prevenção social valem cem vezes mais e melhor que a publicação de um Código Penal.

Ao lado da carência de políticas públicas eficazes, a sobrevivência de desigualdades sociais gritantes, a expansão do crime organizado e a situa-ção de extrema pobreza em que se encontram milhares de adolescentes são fatores que podem levar à prática de crimes. Assim, tais determinantes não devem ser olvidadas quando da perquirição dos motivos do crescimento da violência juvenil. Origem que deve ser sopesada para que a proteção do insti-tuto da maioridade não seja tratada acriticamente, pois consiste em garantia erigida à luz dos direitos humanos e dos valores fundamentais perfilhados pela Constituição.

Como alternativa ao problema da aludida desproporcionalidade da punição, fator que para o senso comum legitimaria a redução, propomos o caminho do meio: aumentar o período de internação, bem como evidenciar, na vivência dos estabelecimentos, o caráter efetivamente educativo da sanção, de modo que esta se torne mais eficaz na prevenção do crime.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nossa Constituição, ao reconhecer o conceito materialmente aberto de direito fundamental, recepciona direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios adotados.

Nesse sentido, é possível afirmar que o art. 228 da CF consiste em verdadeiro direito fundamental elencado fora do rol expresso, ao passo que, diretamente vinculado à dignidade da pessoa humana, aponta para a neces-sidade de uma intervenção estatal mais adequada à peculiar condição de desenvolvimento do adolescente infrator, que não seja o Direito Penal.

O art. 60, § 4º da CF estabeleceu os dispositivos constitucionais que não podem ser objetos de deliberação tendente a aboli-los, dentre eles os direitos e garantias individuais, os quais, devido ao conceito materialmente aberto, podem fugir ao rol do art. 5º, de modo que também haverá de se falar

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62 A impossibilidade de redução da idade penal mínima: uma abordagem críticapela sustentação do caráter pétreo do artigo 228 da constituição federal

em cláusulas pétreas implícitas. Desse modo, é possível sustentar que a idade penal mínima fixada em 18 anos é, através da lente constitucional, irreformável, não podendo ser rebaixada para dar ensejo a uma persecução mais gravosa.

Corroborando com tal imutabilidade, as determinantes sociais e o estado em que se encontra o sistema penitenciário brasileiro são fatores que desaconselham a redução. A diminuição do termo inicial da imputabilidade não reduziria a violência tal como se tem sustentado, senão a acentuaria, face aos perigos da famigerada “escola do crime”.

O combate à delinquência juvenil requer, indubitavelmente, alte-rações profundas. Tais mudanças, porém, se referem à implantação de políticas públicas aptas a combater a miséria e a criminalidade em sua origem, bem como a propiciar uma vida minimamente digna, e não um remendo simplista às falhas de uma política social inoperante.

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63Richardy Videnov Alves dos Santos

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THE IMPOSSIBILITY OF REDUCING THE MINI-MUM CRIMINAL AGE: A CRITICAL APPROACH TO SUPPORT THE IMMUTABLE CHARACTER OF THE ARTICLE 228 OF BRAZILIAN FEDERAL CONSTITUTION.

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ABSTRACT

The outrageous rise of crime rates, as well the constant media publicizing of brutal crimes prac-ticed by teenagers, have accentuated the popular claim to lower the age of imputability. This willing reveals how the population ignores the preroga-tives which our Constitution reserves toward the child and teenager protection, besides the delicate social context involved in the problem of juvenile criminality, although the desire for safety is legiti-mate. Our Magna Cartha established under 18 are criminally unimputative, who are subjected to the rules of special legislation. However, numerous proposals (of Legislative Decree, Ordinary Law, Amendment to the Constitution) have already been tried, which aimed reducing the age foreseen by the Constituent of 1987/1988. In this sense, heated discussion emerges about the possibility of reform or not of that device. This paper purposes to demonstrate, under the modern theory of funda-mental rights, the immutable character of criminal imputability at 18 and subsidiarily the inopportu-nity of its reduction, especially when the failure of current Brazil’s prison system is considered.

Keywords: Lowering of imputability age. Impos-sibility. Immutable character. Inopportunity.

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A LIMITAÇÃO TERRITORIAL DOS EFEITOS DA COISA

JULGADA NA AÇÃO CIVIL PÚBLICA: ART. 16 DA

LEI 7.347/1995

Josaniel Cabral de OliveiraAcadêmico do 11º período do

Curso de Direito da UFRN.

Ronaldo Pinheiro de QueirozProfessor Orientador

RESUMO

O presente artigo objetiva a análise crítica doutrinária da limitação territorial da coisa julgada na Ação Civil Pública, introduzida originalmente por meio da Medida Provisória 1.570/1997, posterior-mente convertida na Lei 9.494/1997. Inicialmente, busca contextualizar o tema a partir de uma breve exposição sobre a coisa julgada no processo cole-tivo em geral, cuja compreensão tem relevância na percepção da crítica doutrinária acerca da limitação imposta, mais especificamente no que trata da ineficácia da medida. Posteriormente propõe-se demonstrar os principais pontos de divergência doutrinária, com a análise das razões pelas quais a limitação territorial introduzida pela Lei 9.494/1997 é duramente criticada pela doutrina majoritária, concluindo-se pela existência de inconstituciona-lidade, atecnia e ineficácia.

Palavras-chave: Ação Civil Pública. Limitação ter-ritorial. Sentença. Crítica.

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1 INTRODUÇÃO

De forma notável, a relevância do tema proposto se justifica pelo cada vez maior destaque que as ações coletivas conquistam no Brasil. Tal dimensão não corresponde a uma exigência meramente acadêmico-jurídica, mas se consubstancia no anseio social pela efetividade do Poder Judiciário na resolução dos conflitos, bem como na crescente demanda dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos. Situados a meio caminho entre os interesses públicos e privados, os direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos são frutos da percepção, pela própria sociedade de massa, da satisfação das necessidades coletivas como ponto vital para realização do bem comum, intrinsecamente ligado a qualidade de vida.

Nesse diapasão, surgiu a Lei da Ação Civil Pública (7.347/85) – LACP, instituindo a Ação Civil Pública como contraponto histórico e revolucionário ao espírito individualista do processo civil, explicitado no art. 6º do Código de Processo Civil, segundo o qual, salvo autorização legal, ninguém pode postular, em nome próprio, direito alheio.

Fruto de um período de intensas mudanças político-sociais no Brasil, a LACP1 é símbolo de uma legislação altamente avançada para a época. Com o fim do regime militar, que sufocou o país durante vinte anos, o Brasil recomeça-va seu árduo caminho de volta ao curso normal do processo democrático e da revalorização das instituições. A LACP surgiu em meio ao renascer do país, em todas as áreas, em que claramente se respirava uma nova atmosfera econômica e cultural que traziam consigo o redescobrimento da idéia de Nação, dessa vez sem a pasteurização institucional aplicada pelos militares.

O Direito, mais especificamente o Direito Processual, não poderia ficar à margem de todo esse processo. A noção de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos engatinhava, muito embora já fosse perceptível a explosão das necessidades coletivas características de uma sociedade de massa, que durante tanto tempo foi cortinada pelo regime. Tal percepção pro-

1 O projeto de lei original da LACP (PL 6.034/84) teve como autores nomes consagrados do Di-reito Processual, tais como Ada Pellegrini Grinover, Cândido Rangel Dinamarco, Kazuo Watanabe e Waldemar Mariz de Oliveira Junior, sendo apresentado ao Congresso Nacional pelo do De-putado federal Flavio Bierrenbach. Posteriormente, foi apresentado pelo Ministério Público um substitutivo ao projeto original, praticamente igual, especificamente no que se refere à coisa julgada. Desse substitutivo, surgiu a LACP.

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67Josaniel Cabral de Oliveira

porcionava a necessidade do surgimento de uma legislação processualmente protetiva dos bens jurídicos redescobertos.

Já havia no país a Lei 4.717, de 29.6.1965, lei da Ação Popular e em 1990 surgiu o Código de Defesa do Consumidor, Lei 8.078, de 11 de setembro, consolidando o regime de tutela dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, e estabelecendo de forma consistente um novo regime para a coisa julgada coletiva, com influência direta na LACP, conforme será analisado mais adiante.

2 COISA JULGADA NO ÂMBITO DOS LITÍGIOS COLETIVOS

O instituto da coisa julgada tem ab initio o propósito de alcançar dois objetivos precípuos: dar fim definitivamente aos litígios, de forma que o objeto da causa não venha a ser discutido posteriormente, e atribuir o caráter de imutabilidade às decisões judiciais (MAZZEI, 2005, p. 334).

Trata-se de vertente essencial para a segurança jurídica, preservando a certeza de que o dispositivo sentencial será observado e perdurará doravante, estabilizando, adrede, as relações jurídicas resguardadas pela decisão judicial.

Como bem leciona Hugo Nigro Mazzilli (2010, p. 579) “a coisa julgada não é efeito da sentença; não decorre do conteúdo da decisão; não significa eficácia objetiva ou subjetiva da sentença: é apenas a imutabilidade dos efeitos da sentença, adquirida com o trânsito em julgado”.

Com o avanço das relações jurídicas e o surgimento cada vez mais numeroso das demandas coletivas, o instituto da coisa julgada também evoluiu e ganhou contornos específicos no âmbito dos direitos metaindividuais. Nas palavras precisas de Antônio Gidi:

Da mesma maneira que não se podem introduzir no nosso ordenamento (ou mesma na ciência que o estuda) institutos de ordenamentos jurídicos alienígenas sem uma adaptação ao nosso sistema, não é possível valer-se da concepção ortodoxa dos institutos processuais para a compreensão das ações coletivas. (GIDI, 1995, p. 57/58).

Essa referida necessidade de adaptação decorre e se faz necessária de acordo com as características próprias dos direitos tutelados pelas ações coletivas, os direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos.

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68 A limitação territorial dos efeitos da coisa julgada naação civil pública: art. 16 da lei 7.347/1995

A coisa julgada, nos moldes do processo tradicional, consubstan-ciou-se na principal dificuldade para a implantação da tutela coletiva dos direi-tos. Isso porque na teoria do processo individual, a imutabilidade da sentença se dava apenas entre as partes. Ora, aplicar tal premissa também no processo coletivo significaria dizer que qualquer colegitimado que não participara da ação original poderia ajuizar a mesma ação, para buscar a tutela dos direitos de outrem que não constara na primeira, com a discussão dos mesmos fatos, sob motivação da mesma causa de pedir. Como resultado, estaria prejudicada a própria razão de ser das ações coletivas (MAZZILLI, 2010, p. 580).

Ao considerar a referida dificuldade, o legislador buscou na Lei da Ação Popular (art. 18) modelo para regulamentar a coisa julgada na LACP. Como decorrência, a redação original do art. 16 da Lei da Ação Civil Pública apresentava:

Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, exceto se a ação for julgada improcedente por deficiên-cia de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova.

Houve, dessa forma, a mitigação da coisa julgada nas ações civis públicas secundum eventus litis, ou seja de acordo com o resultado do pro-cesso. Estava estabelecida a coisa julgada erga omnes, isto é, a coisa julgada alcançando todos os colegitimados ativos, ainda que não tivessem participado como parte da demanda, bem como para qualquer pessoa. Também haveria coisa julgada no caso de improcedência, excetuando-se a hipótese de impro-cedência por falta de provas. Nesse caso, o autor da ação de conhecimento original ou qualquer colegitimado poderiam ajuizar nova ação.

Como se trata de regra excepcional, porque põe formal-mente em desequilíbrio as partes litigantes, na medida em que apenas contra uma delas poderá ser oposta, a objeção da res iudicata, a coisa julgada secundum eventus litis é regra excepcional do nosso sistema, e como tal deve ser expressamente prevista. (ABELHA, 2004, p. 254).

Discorrendo de forma precisa sobre a coisa julgada secundum even-tus litis, assim consigna Rodolfo de Camargo Mancuso, in verbis:

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O sistema adotado no art. 18 da lei da ação popular e agora no art. 16 da lei da ação civil pública apresenta uma dualidade um tanto desconcertante: de um lado, do ponto de vista prático, compreende-se sua noção pelo evidente propósito de evitar a colusão entre as partes (que a ação seja, de indústria, mal proposta e pior instruída, com o fito escuso de conduzir ao decreto de improcedência jogando-se destarte uma pá de cal sobre a controvérsia); de outro lado, o pronunciamento de um non liquet acerca da controvérsia, distancia-se de um dos princípios basilares da própria jurisdição, qual seja o da sua indeclinabilidade: nem mesmo nos casos de lacuna ou obscuridade do direito positivo, pode o juiz eximir-se da prestação jurisdicional[...]. (MANCUSO, 2004, p. 392/393).

Conforme lição de Pedro da Silva Dinamarco:

Essa sistemática está em plena sintonia com a preo-cupação do processualista moderno em busca do aprimoramento do sistema processual e a efetividade do processo, tendo na máxima chiovendiana um ver-dadeiro slogan: “Na medida do que for praticamente possível o processo deve proporcionar a quem tem um direito tudo aquilo e precisamente aquilo que ele tem o direito de obter”. (DINAMARCO, 2001, p. 303).

O art. 16 da LACP posteriormente recebeu nova redação dada pelo art. 2º da Lei 9.494/97. Essa polêmica modificação irrompeu uma só intenção, de iniciativa do Governo Federal: limitar territorialmente a eficácia da sentença dos processos coletivos. Eivada de controvérsias, tal limitação será objeto de análise do presente trabalho mais adiante. Por ora, cumpre destacar a nova redação do art. 16 da LACP:

Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prola-tor, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova.

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Com o surgimento do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990), o alcance da coisa julgada obteve regulamentação definitiva no âmbito da tutela coletiva. Por força do art. 21 da LACP e do art. 90 do CDC, ambos os códigos se completam, formando um todo harmônico, com con-seqüências relevantes para a interpretação aplicada ao alcance das decisões advindas de sua aplicação (MAZZILLI, 2010, p. 582).

Em relação aos interesses difusos, a sentença faz coisa julgada erga omnes (contra todos), com exceção da improcedência por falta de provas, hipótese na qual outra ação poderá ser proposta, desde que com novas provas. A coisa julgada alcança, dessarte, toda a coletividade (Art. 103, I, CDC).

Tratando-se de interesses coletivos, dispõe o CDC que a sentença faz coisa julgada ultra partes, isto é, além das partes do processo, restrito, entretanto, ao grupo de lesados. Da mesma forma que os interesses difusos, caso haja improcedência por falta de provas, igual ação pode ser proposta com base em nova prova (Art. 103, II, CDC).

No tocante aos interesses individuais homogêneos, a imutabilidade da sentença será erga omnes, beneficiando as vítimas e seus sucessores, so-mente em caso de procedência (Art. 103, III, CDC).

As expressões erga omnes e ultra partes resultam na mesma idéia de extensão da coisa julgada para além das partes do processo coletivo.

Sem embargo, quis o legislador diferenciar o alcance do instituto da coisa julgada, definindo que erga omnes significa que a sentença é imutável para todos, tendo em vista a indeterminabilidade dos interessados (interesses difusos).

Em relação aos interesses cujos beneficiários são determinados ou determináveis, a utilização do termo ultra partes significa que o alcance da coisa julgada estende-se para além das partes, mas limita-se ao grupo beneficiado pela decisão (interesse coletivo).

Nesse sentido, cabe destacar, por oportuno, valorosa observação de Hugo Nigro Mazzilli:

Mas então, se foi esse o intento, melhor teria sido que o legislador se tivesse valido do conceito de eficácia ultra partes também para referir-se aos interesses individuais homogêneos (ao contrário, aqui falou, contraditoria-mente, em eficácia erga omnes). Quanto a estes, a lei também deveria ter mencionado afeito ultra partes, e não erga omnes, porque a defesa de interesses indivi-

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duais homogêneos abrange apenas os integrantes do grupo, classe ou categoria de pessoas lesadas (as vítimas ou seus sucessores), do mesmo modo que ocorreria na defesa de interesses coletivos, em sentido estrito. (MAZZILLI, 2010, p. 587).

Muito embora o microssistema formado pela LACP e pelo CDC – aquela com a redação original do art. 16, harmonicamente interpretada com esta – pudesse realizar plenamente os propósitos essenciais da tutela coletiva dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, uma modificação realizada no art. 16 da LACP, caracterizada por uma tentativa de limitação à eficácia da coisa julgada, adentraria ex abrupto no sistema jurídico coletivo, eivada de polêmica e contradições.

3 LIMITAÇÃO DOS EFEITOS DA COISA JULGADA NA AÇÃO CIVIL PÚBLICA: LEI 9.494/97

Resguardadas pela jurisprudência dominante à época, as ações coletivas, caracterizadas por terem suas decisões consideradas imutáveis erga omnes, desagradavam por demais o Governo Federal, especialmente na década de 1990. A interpretação da eficácia da coisa julgada nas ações civis públicas, juntamente com os dispositivos do CDC, proporcionaram atuação marcante e histórica a partir da participação de vários segmentos sociais, notadamente na defesa do patrimônio público.

Durante o processo das privatizações das empresas públicas que marcou a referida década, com destaque para a venda da empresa Vale do Rio Doce em 1997, travou-se verdadeira contenda judicial de dimensões nacionais, na qual centenas de liminares foram exaradas no intuito de evitar as privatizações. O Governo mobilizou um verdadeiro exército de advogados para garantir a realização do leilão, obtendo sucesso in fine com a conclusão do processo de venda da empresa.

As decisões judiciais concedentes de liminares durante o processo das privatizações incomodaram tanto o Governo que este se empenhou em efetuar uma engajada tentativa de limitação da eficácia da sentença coletiva. Esse único aspecto demonstra de per si a bem sucedida caminhada inicial da tutela coletiva.

Ao se referir às benesses proporcionadas pela instrumentalidade

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das ações coletivas, a professora Ada Pellegrini Grinover salienta:

Apesar de tudo isso, as investidas do Poder Executivo – acompanhado por um Legislativo complacente ou no mínimo desatento – têm atacado a Ação Civil Pública, tentando diminuir sua eficácia por intermédio da limi-tação do acesso à justiça, da compressão do momento associativo, da redução do papel do Poder Judiciário. (GRINOVER, 1999).

Como resultado do incômodo governamental, causado pelas diver-sas decisões judiciais de âmbito nacional, o Governo editou a Medida Provisória n. 1.570/1997, mais tarde convertida na Lei n. 9.494/1997, a qual modificou o art. 16 da LACP, numa tentativa explícita de limitar a eficácia da sentença no âmbito da ACP. O aludido art. 16 passou a apresentar a seguinte redação:

Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prola-tor, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova [grifo nosso].

A modificação levada a termo, como não poderia deixar de ser, enfrenta dura oposição da maioria esmagadora da doutrina que reconhece, além de flagrante inconstitucionalidade, grave impropriedade técnica. Ainda que esses aspectos fossem desprezados, restaria clara a ineficácia do acréscimo legislativo.

Nesse espírito de condenação à modificação do art. 16 da LACP, arremata Ada Pellegrini Grinover:

Em primeiro lugar pecou pela intenção. Limitar a abrangência da coisa julgada nas ações civis públicas significa multiplicar demandas, o que, de um lado, con-traria toda a filosofia dos processos coletivos, destinados justamente a resolver molecularmente os conflitos de interesses, ao invés de atomizá-los e pulverizá-los; e, de outro lado, contribui para a multiplicação de processos, a sobrecarregarem os tribunais, exigindo múltiplas respostas jurisdicionais quando uma só poderia ser

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suficiente. No momento em que o sistema brasileiro busca saída até nos precedentes vinculantes, o menos que se pode dizer do esforço redutivo do Executivo é que vai na contramão da história. (GRINOVER, 1999).

Doravante, analisaremos os principais argumentos da doutrina opositora à atual redação do dispositivo em comento.

4 CRÍTICA DA DOUTRINA À LIMITAÇÃO DOS EFEITOS DA COISA JULGADA

4.1 Da inconstitucionalidade

As medidas provisórias têm sido utilizadas como instrumentos de uma prática pouco louvável juridicamente, responsável por grave distorção no princípio da separação dos poderes: a cada vez mais freqüente elaboração de leis por parte do Poder Executivo.

Criada pela Constituição de 1988, no intuito de substituir os fami-gerados decretos-lei, os quais se consagraram como fonte de arbítrio desen-freado durante o período do regime militar brasileiro, a medida provisória procurava limitar a necessária “função legislativa” do executivo, relegando tal prerrogativa ao seu devido lugar claramente residual e excepcional, com observância estrita e necessária dos critérios de extrema relevância e urgência, de tal monta que demandariam a mitigação do devido processo legislativo, sob a justificativa precipuamente emergencial.

Todavia, percebe-se que os limites constitucionais à edição das MP estão sendo cada vez mais negligenciados, resultando em abusos constantes, numa verdadeira apropriação da função legislativa pelo Poder Executivo.2 As MPs freqüentemente são utilizadas pelo Executivo na expedição de leis nas quais não se observa qualquer necessidade de urgência e relevância, ao ponto de fazer preponderarem as leis oriundas do Poder Executivo, em prejuízo às leis de iniciativa do legislador ordinário. A situação se reveste de maior gravidade em virtude da forma com que o Poder Legislativo, os tribunais e a sociedade vêm assistindo passivamente a essa usurpação da função de legislar (MAZZILLI,

2 Muito embora a Emenda Constitucional n. 32 tenha buscado corrigir tais distorções, os abusos persistem.

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2010, p. 284).Sobre o assunto, leciona José Anselmo Oliveira, in verbis:

Analisando as centenas de Medidas já editadas não encontramos os requisitos exigidos na maioria delas, pois a gama de temas que foram alcançados por esse meio de legislar, surpreendentemente não passavam de situações normais onde o processo legislativo atenderia satisfatoriamente, merecendo a discussão de interesse do povo ser debatida e votada de acordo com os princípios da democracia representativa que vige entre nós, porém o que menos importava era o respeito ao direito, e sim os resultados, trazendo insegurança jurídica e provocando danos irreparáveis para a socie-dade brasileira. De tudo se tratou. Medidas econômicas, impostos, direito processual, direito material, trem da alegria, direito administrativo, enfim, uma verdadeira panacéia para atender os fins do governo nem sempre claros e de interesse do povo brasileiro. (OLIVEIRA, 1999).

A nova redação do art. 16 da LACP é fruto dessa distorção, tendo sido originada ex abrupto da MP n. 1.570/1997, posteriormente convertida na Lei n. 9.494/1997, sem qualquer indício de urgência requerida pelo art. 62 da Cons-tituição da República de 1988, em flagrante inconstitucionalidade (formal).

Claramente, a modificação promovida pelo Governo Federal não foi demandada por necessidade urgente, muito embora não se negue a relevância do tema. A contrario sensu, por ser de tal monta relevante, o assunto mereceria percorrer a via de maturação própria com a qual é caracterizado o trâmite legislativo, proporcionando, dessarte, a mais ampla discussão que, como se perceberia posteriormente, pouparia o Poder Executivo das mais ferrenhas críticas, não só em relação à inconstitucionalidade, como também no tocante a falta de tecnicidade com que a matéria foi modificada.

Some-se a esses argumentos, o fato de que a anterior redação do art. 16 tinha como base inspiradora a ação popular (Lei n. 4.717/1965), cujo regime da coisa julgada secundum eventum litis, repetido na norma da ACP, demonstrou no espaço de trinta anos (período este decorrido entre a AP e o surgimento da lei 9.494) sua eficiência na aplicação da tutela dos direitos me-taindividuais, pondo em terra qualquer argumento que defenda a existência de urgência quando da modificação efetuada (MANCUSO, 2004, p. 395).

Vale citar o posicionamento a contrario sensu de Juliano Taveira

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Bernardes, discordando daqueles que defendem a inconstitucionalidade formal do ato, por não existir urgência. Argumenta o ilustre magistrado e professor que a aferição de tais institutos é exclusividade de atribuição do Poder Executivo com o devido controle do Poder Legislativo, não podendo o Judiciário adentrar a essas questões sem o mínimo de parâmetros objetivos para tal. Posicionando-se sobre o longo tempo decorrido para a mudança no art. 16, afirma:

Dessarte, se é que se pode afastar o caráter subjetivo acerca do que se reputa “longo” período de vigência da legislação modificada, essa idéia não serve para in-validar a modificação normativa. Na verdade, a situação de urgência e relevância pode advir, exatamente, da inércia do Legislativo em revisar a legislação “antiga” ou mesmo da superveniência de circunstâncias novas, não consideradas anteriormente. Assim, noves fora juízos subjetivos de valor, o Presidente da República Fernando Henrique Cardoso tinha lá suas razões, confessáveis ou não, para querer modificar o art. 16 da LACP, especial-mente para tentar frear a chamada “guerra de liminares” ao tempo dos leilões de privatização, bem como para restringir os prejuízos do governo com as ações coletivas movidas em favor de servidores públicos federais. Aliás, a vingar o raciocínio fundado no decurso do prazo de vigência da lei alterada, de quase nada valeria a medida provisória: se uma lei “velha” não pudesse ser alterada por medida provisória, uma lei “nova”, tampouco, pois não haveria urgência para mudar o que legislador acabasse de produzir. (BERNARDES, 2004).

Além da ausência dos requisitos constitucionais essenciais para a edição de MPs, outros aspectos são tratados pela doutrina para estampar a inconstitucionalidade (material) do dispositivo.

Nelson Nery Júnior invoca os princípios do direito à ação, da pro-porcionalidade e da razoabilidade:

A Lei n. 9.494, de 10/09/97, tem duas inconstituciona-lidades: material e formal. Formal porque proveio de uma medida provisória (n. 1.570-5/97) sem urgência e sem relevância, e isso o Supremo Tribunal Federal não analisa, infelizmente, pois não interessa ao Poder central.

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Material porque viola o direito constitucional de ação, o princípio da proporcionalidade e o princípio da ra-zoabilidade das leis. Viola o princípio do direito de ação porque aniquila uma conseqüência básica do direito de ação coletiva: a eficácia erga omnes de uma sentença coletiva. Diz o art. 16 da Lei de Ação Civil Pública que uma sentença coletiva terá eficácia erga omnes limitada ao território do juiz que proferiu a decisão. Então é uma ação individual: confundimos tudo. Isso é um absurdo. Não se entendeu nada do que é processo coletivo. Isso é tornar ineficaz um direito de cidadania. O Estado, em vez de agir em favor da população, em favor da cidadania, age em detrimento da cidadania. É isso que temos de analisar e meditar para verificarmos em que medida podemos proteger o meio ambiente, a biodiversidade e outros direitos metaindividuais. (NERY JR, 1999).

Os princípios da isonomia e da inafastabilidade da jurisdição tam-

bém estariam contrariados pela Lei n. 9.494/97. Tendo em vista a indivisibili-dade do objeto e levando-se em conta que o dano causado é um dano social, a limitação do alcance da eficácia da sentença proporcionaria tratamento diferenciado a pessoas submetidas à mesma circunstância jurídica, e, portanto, sofrendo os mesmos efeitos do dano causado. Tais pessoas, no entanto, não seriam resguardadas pela proteção advinda da decisão judicial exarada, por não se situarem na mesma circunscrição do órgão judicial prolator da sentença (MAZZEI, 2005, p. 340).

Julgando a ADin n. 1.576-1-DF3, ajuizada em face da aludida medida provisória, o STF suspendeu outro artigo, mantendo in fine o artigo modificador da eficácia territorial da sentença. Com a conversão da medida provisória em lei, restou prejudicada a matéria, não sendo julgado o mérito da demanda constitucional.

4.2 Da atecnia

A doutrina é quase unânime ao afirmar que o legislador confundiu limites da coisa julgada com competência. O alcance da coisa julgada, quali-

3 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI 1.576-1-UF. Pleno. Min. Marco Aurélio. j. 16.04.1997. DJU. 24.04.1997. p. 14.914.

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dade da sentença em relação a qual não cabe mais recurso, não se relaciona com a parcela da jurisdição territorial do órgão prolator da sentença. Os limites subjetivos da coisa julgada devem ser observados secundum eventum litis.

Nelson Nery (2006, p. 515) esclarece o assunto com um exemplo cuja obviedade chega a ser constrangedora, porém espanca qualquer dúvida sobre a questão. Quando uma sentença de juiz da comarca de São Paulo proclama o divórcio de um casal, tal sentença tem eficácia em todo o país. Do contrário, o casal estaria divorciado em São Paulo mas continuaria casado no Rio de Janeiro ou em outra Unidade da Federação, o que seria completamente absurdo. Não se considera aqui a competência do juízo, pois essa se trata de questão diversa que nada tem a ver com o alcance territorial da sentença.

Mazzilli (2010, p. 285), por sua vez, adverte que uma sentença que proíbe, v. g., a venda de produtos nocivos em todo o país, ou que proíba a po-luição de um rio que banhe vários Estados, terá eficácia no país todo ou pelo menos em mais de um Estado. Nada disso se relaciona com a competência do juiz prolator, uma vez que esse critério define tão somente que é ele, e não os demais milhares de juízes do Brasil, o juiz competente para julgar a causa. A contrario sensu, haveria milhares de sentenças, muitas delas contraditórias.

Ainda nas palavras de Mazzilli:

O legislador federal não soube distinguir competência de coisa julgada. A imutabilidade erga omnes dos efeitos de uma sentença transitada em julgado não tem nada a ver com a competência do juiz que profere a sen-tença: se, em nome do Estado, o juiz tem uma parcela da jurisdição (isto é, ele é o órgão estatal competente para decidir aquela lide), então sua sentença, depois de transitada em julgado, representará a vontade estatal e passará a ser imutável entre as partes ou, em certos casos, imutável para toda a coletividade (como nas ações populares, nas ações civis públicas ou nas ações cole-tivas julgadas procedentes). A imutabilidade não será maior ou menor em decorrência da regra de competên-cia que permitiu ao juiz decidisse a lide; a imutabilidade será mais ampla ou mais restrita de acordo, sim, com a natureza do direito controvertido e de acordo com o grupo social cujas relações se destina regular (inte-resses difusos, coletivos e individuais homogêneos). A competência só é critério para determinar qual órgão do Estado decidirá a lide. (MAZZILLI, 2010, p. 286).

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Questão interessante é levantada por Abelha (2004, p. 264) que alerta para a possível situação sui generis na qual o jurisdicionado vencido em primeiro grau não teria interesse em interpor recurso, uma vez que ele preferiria, naturalmente, ter sentença que lhe fosse desfavorável limitadamente no âmbito de sua comarca ou de seu Estado, a ver sua pretensão negada em todo o território nacional, caso fosse sucumbente também em segundo grau, com a confirmação da sentença exarada pelo juízo a quo.

Conclui-se, pelo exposto, que a modificação promovida no art. 16 da LACP é tecnicamente inadequada por confundir competência com limite da coisa julgada.

4.3 Da ineficácia

Como foi afirmado anteriormente, a lei da Ação Civil Pública forma com o Código de Defesa do Consumidor um micro sistema que rege a tutela dos direitos metaindividuais. O art. 21 da LACP, juntamente com o art. 90 do CDC, garante essa integração.

No seu exercício hermenêutico, o intérprete, na análise dos disposi-tivos da LACP, precisa levar em conta os ditames do CDC, sob pena de inapli-cabilidade da própria LACP. Vale dizer que uma interpretação restrita da nova redação do art. 16 da LACP seria a causa de graves paradoxos que inviabilizaria a aplicação de seus próprios dispositivos na proteção dos direitos transindi-viduais. Por essa razão, diz-se que a alteração na redação do art. 16 é ineficaz.

Conforme encontramos em substanciosa análise de Grinover (1999), a partir de uma interpretação sistemática do art. 16 da LACP, em conjunto com o art. 103 do CDC, infere-se que o primeiro somente se aplica aos direitos difusos, pelo uso da expressão erga omnes comum entre os dois dispositivos legais. Sem embargo, estende-se a mesma interpretação para os direitos coletivos, tendo em vista as semelhanças que há no alcance das sentenças dos dois tipos citados (difusos e coletivos). Perceba-se que em ambos consubstancia-se a regra permissiva do non liquet, por insuficiência de provas.

No tocante aos interesses individuais homogêneos, a coisa julgada segue regime distinto, pois só há coisa julgada erga omnes com a procedên-cia do pedido. Ademais, o legislador não atribuiu aos interesses individuais homogêneos a inexistência de coisa julgada para sentença de improcedência por insuficiência de provas.

Em suma, o art. 16 é aplicável aos interesses difusos e coletivos (este último por analogia).

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Isso posto, como se verifica a ineficácia da modificação do art. 16 na aplicação a essas categorias de interesses?

Mazzilli (2010, p. 287) discorre acerca da impossibilidade de apli-cação da limitação territorial encontrada no art. 16. Afirma o consagrado doutrinador que as ações coletivas que tenham por objeto direitos difusos em comarcas ou Estados diferentes estariam prejudicadas, caso lhes fosse dada a interpretação da limitação territorial, pois nenhum juiz seria competente para julgar a ação, uma vez que os danos abrangeriam áreas distintas. Nenhum juiz das diversas comarcas envolvidas possuiria competência territorial em toda a área alcançada pela demanda. A solução para o caso seria o ajuizamento de diversas ações, em cada foro do local do dano. Tal solução resultaria na possibilidade de obtenção de sentenças contraditórias, tornando as decisões inexeqüíveis.

Ora, além de ir de encontro ao espírito das ações coletivas, qual seja a homenagem ao princípio da eficácia/economia processual, consubstanciada na reunião no trâmite de apenas uma ação o que seriam milhares de ações pulverizadas e todas tratando acerca do mesmo objeto e mesma causa de pedir, a limitação territorial impede, ainda, a possibilidade de satisfação eficaz e real das demandas colocadas diante dos juízos que têm o mister de analisar as ações coletivas. Afinal, como se pode dividir territorialmente questões de per si indivisíveis?

Atente-se às palavras de Mancuso:

Por exemplo, se o pedido numa ação civil pública em curso perante juiz competente (Lei 7.347/85, art. 2º, c/c CDC, art. 93) é que se interdite a fabricação de medicamento tido como nocivo à saúde humana, a resposta judiciária (inclusive como liminar) não pode, a nosso ver, sofrer condicionamento geográfico, seja porque não caberia falar numa ‘saúde paulista’, distinta de uma ‘saúde gaúcha, seja porque, de outro modo, se teria que admitir a virtualidade de ação coletiva concomitante, em outra sede, ao risco da prolação de julgados porventura contraditórios, gerando caos e perplexidade. Ou, ainda, suponha-se uma ação civil pública ambiental onde se pede a interdição do uso de mercúrio no garimpo de ouro, atividade realizada ao longo de um rio que atravessa vários Estados: como a decisão judicial que acolhe a ação poderia ser realmente

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eficaz, se os seus efeitos práticos ficassem circunscritos em termos dos limites territoriais do Juízo prolator da decisão? (MANCUSO, 2004, p. 401).

Como solucionar o problema trazido pela modificação da LACP?Grinover (1999) afirma que “a competência territorial nas ações

coletivas é regulada expressamente pelo art. 93 do CDC”, definindo a com-petência da capital do Estado e do Distrito Federal nos casos de danos no âmbito regional e nacional, respectivamente e que a afirmação legal de que a coisa julgada se restringe aos limites da competência do órgão prolator “nada mais indica do que a necessidade de buscar a especificação dos limites legais da competência, ou seja, os parâmetros do art. 93 do CDC”.

A opção única e coerente com a mens legis original é a interpre-tação sistemática dada ao alcance das sentenças coletivas, de acordo com a observância do microssistema da tutela coletiva.

5 CONCLUSÕES

Sob todos os aspectos, a tentativa de modificação da eficácia das decisões exaradas na ação civil pública, consubstanciada na limitação territorial do alcance das sentenças, não logrou êxito. Seja pela inconstitucionalidade formal e material ínsita a tal tentativa, ao ponto de alterar por meio de medida provisória, sob o auspício de inexistente urgência, sistemática já praticada há muito no ordenamento jurídico pátrio, seja pela falta de técnica e abundância de incoerência jurídica com outros institutos já consolidados no Direito.

Ainda que essas incongruências fossem desprezadas, restaria a própria inaplicabilidade da restrição promovida adrede, posto que se encontra de per si em descompasso com o microssistema que rege as ações coletivas, bem como pela própria natureza e abrangência das demandas coletivas, cuja atividade danosa, via de regra, extrapola as áreas territoriais limitadoras da competência do juízo prolator.

Por essas razões, a correta interpretação do dispositivo contido no art. 16 da LACP deve ser a que afasta a limitação territorial, sob pena da total inaplicabilidade das sentenças e da contrariedade dos propósitos ínsitos e iniciais da ACP.

Não se pode olvidar o árduo caminho trilhado pelo Direito neste país até a conquista de algo tão fundamental para a concretização das demandas

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populares que são as ações coletivas, especialmente a ação civil pública. Diante de tão grande relevância, cabe à sociedade, aos tribunais, ao Ministério Público e aos legisladores preservarem o espírito inicial dos institutos formadores da tutela coletiva, de modo que as constantes tentativas de enfraquecimentos de tais ferramentas sejam rejeitadas de plano.

Acolher modificações que venham a dificultar a aplicação da ação civil pública significa rumar a passos largos para a impunidade, favorecendo aqueles que têm interesse no não funcionamento a contento dos dispositivos inibidores da corrupção, dos atos de improbidade e atentatórios contra a preservação do patrimônio público, do meio ambiente e dos bens históricos do país.

REFERÊNCIAS

ABELHA, Marcelo. Ação civil pública e meio ambiente. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.

BERNARDES, Juliano Taveira. Art. 16 da Lei da Ação Civil Pública e efeitos “erga omnes”. 2004. Disponível em http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=7791. Acesso em 19.6.2010, 10h48min.

DINAMARCO, Pedro da Silva. Ação civil pública. São Paulo: Saraiva, 2001.

GIDI, Antônio. Coisa julgada e litispendência em ações coletivas. São Paulo: Saraiva, 1995.

GRINOVER, Ada Pellegrini. A ação civil pública refém do autoritarismo. Revista de processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.

JÚNIOR, Nelson Nery. Proteção jurídica da biodiversidade, in Anais do Seminário Internacional sobre Direito da Biodiversidade, Revista CEJ 08/170, agosto de 1999.

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82 A limitação territorial dos efeitos da coisa julgada naação civil pública: art. 16 da lei 7.347/1995

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação civil pública: em defesa do meio ambiente, patrimônio cultural e consumidores. 9. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.

MAZZEI, Rodrigo Reis; NOLASCO, Rita Dias. Processo civil coletivo. São Paulo: Quartier Latin, 2005.

MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 23. Ed., São Paulo: Saraiva, 2010.

OLIVEIRA, José Anselmo. Conceito de relevância e urgência na MP. O Neófito. São Paulo, 1999.

THE TERRITORIAL LIMITATION RES JUDICATA EFFECT IN CIVIL PUBLIC ACTION: ART. 16 OF THE LEI 7.347/1995

ABSTRACT

This article aims to analise critically the doctrine of res judicata territorial limitation of the Civil Public Action in Brazil, originally introduced by the Me-dida Provisória 1.570/1997, later converted into Lei 9.494/1997. Initially, the purpose is to contextual-ize the subject with a brief presentation on the res judicata in the collective process in general, whose understanding has relevance in the perception of doctrinal criticism about its limitation, specifically in dealing with the ineffectiveness of the limita-tion. Thereafter it is proposed to demonstrate the main points of doctrinal disagreement with the analysis of the reasons why the territorial limitation

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introduced by Lei 9.494/1997 is harshly criticized by the majority of the doctrine, concluding that res judicata territorial limitation is unconstitutional, not tecnical and ineffective.

Keywords: Civil Public Action. Territorial limitation. Decision. Criticism.

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CONTROLE DOSINCENTIVOS FISCAIS PELO PODER JUDICIÁRIO PELO

PARÂMETRO DA ISONOMIA TRIBUTÁRIA

Jules Michelet Pereira Queiroz e SilvaAcadêmico do 8º período do

Curso de Direito da UFRN.Pesquisador do grupo “Tributação,

isonomia e livre concorrência”

André de Souza Dantas ElaliProfessor Orientador

RESUMO

Analisa os efeitos da aplicação do princípio da iso-nomia tributária sobre as normas utilizadas com efeito extrafiscal pelo legislador (normas tributárias indutoras). Define, outrossim, um método de análise da isonomia sobre os incentivos fiscais com o ob-jetivo de identificar privilégios e discriminações odiosas. Definido o método, analisam-se os limites da atuação do Poder Judiciário na realização da isonomia tributária ao corrigir as desequiparações não justificadas constitucionalmente. Discute-se a possibilidade de, identificado privilégio ou dis-criminação odiosa, o juiz estender os benefícios fiscais a contribuintes originalmente não atingidos pelo escopo da lei. Realiza-se uma análise da juris-prudência do Supremo Tribunal Federal em matéria de realização da igualdade e possibilidade de o Judiciário atuar como legislador positivo.

Palavras-chave: Isonomia tributária. Normas tributárias indutoras. Proporcionalidade. Privilégios odiosos. Discriminações odiosas.

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1 INTRODUÇÃO

Os incentivos fiscais são formas de intervenção indireta do Estado no domínio econômico por meio de benefícios ao contribuinte operantes na receita pública, com o fim de estimular determinados comportamentos.

A utilização de incentivos fiscais, manifestação clara da função ex-trafiscal das normas tributárias, tem ganhado espaço na política econômica do Estado em virtude da quebra do paradigma do Estado como agente econômico em prol do Estado Regulador.

Nesse passo, o tributo tem dividido sua função tipicamente ar-recadatória com a função indutora. Paradigmas clássicos do Direito Tributário devem ser revistos em prol de uma nova teoria dos tributos que contemple o regime constitucional da atividade fiscal do Estado como forma de intervenção na economia. Esse novo regime deve considerar, em primeiro lugar, o im-pacto da atividade fiscal do Estado na atividade econômica dos contribuintes, contrabalançando-o com os princípios constitucionais da Ordem Econômica.

Com efeito, um dos paradigmas a ser analisado por essa nova ver-tente do Direito Tributário e Econômico é o da igualdade ou isonomia tributária. Em geral, o parâmetro de aferição da igualdade das relações tributárias tem se resumido à capacidade contributiva do cidadão, ou, pelo menos, os atributos da essencialidade/seletividade de determinados tributos.

Contudo, quando se avança de uma perspectiva meramente fiscal para uma extrafiscal, uma miríade de novos princípios atua sobre o tributo, de modo que os parâmetros de aferição da igualdade devem fazer jus a essa situação.

O presente trabalho tem o escopo, portanto, de analisar a aplicação da igualdade à função extrafiscal do tributo através de um método preesta-belecido que contemple as finalidades indutoras do tributo.

Em seguida, será analisada a aplicação da igualdade pelo Poder Judiciário através do método descrito, culminando com a discussão sobre a constatação de privilégios ou discriminações fiscais odiosas.

2 INTERVENÇÃO NO DOMÍNIO ECONÔMICO POR MEIO DE INCENTIVOS FISCAIS

O Estado, no modelo constitucional brasileiro, intervém de forma direta ou indireta no domínio econômico. O faz de forma direta quando atua

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87Jules Michelet Pereira Queiroz e Silva

como empresário, comprometendo-se com atividade produtiva através de órgãos próprios, tais quais as empresas públicas e sociedades de economia mista, para atender a necessidades de segurança nacional ou de relevante interesse coletivo, a teor do disposto no art. 173 da Lei Maior.

Com a crise do Estado Social e Patrimonial, o papel do Estado como empresário sofreu severa mitigação em relação ao modelo excessivamente intervencionista adotado da década de 30 à década de 80. A Constituição de 1988 impõe ao Estado um papel primordial de planejador da economia, através da chamada intervenção indireta no domínio econômico. Trata-se do paradigma do Estado Regulador.

A intervenção indireta consiste na assunção pelo Estado do papel de agente planejador da atividade econômica nacional, atendendo a peculiari-dades conjunturais de cada país e do cenário econômico globalizado. Nesse sentido, dispõe o art. 174 da Constituição Federal que “como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.”

Em sede doutrinária, Eros Roberto Grau (2008, p. 105) diferencia a intervenção do Estado no domínio econômico daquela exercida sobre o domínio econômico. A primeira se identifica com a intervenção direta: o Estado passa a competir diretamente com os agentes econômicos privados, submetido a um regime próprio destes. Por outro lado, a intervenção sobre o domínio econômico, da mesma forma que a intervenção indireta, pressupõe a atuação do Estado como agente soberano regulador da atividade econômica.

A intervenção sobre o domínio econômico, na obra de Grau (2008, p. 147-149), assume, contudo, modelo bipartite. Intervém por direção quando exerce pressão sobre a economia, estabelecendo mecanismos e normas de controle compulsório para os agentes econômicos. Doutra banda, exerce intervenção por indução quando manipula instrumentos de intervenção em consonância e na conformidade dos princípios que regem o mercado, estimulando comportamentos desejáveis, sem, contudo, utilizar-se de normas impositivas.

O Supremo Tribunal Federal, ao apreciar a constitucionalidade de uma lei capixaba que conferia o direito ao pagamento de meia entrada em eventos culturais a doadores de sangue, decidiu ser legítima a intervenção no domínio econômico pelo Estado, definindo, com precisão, o conceito de intervenção no domínio econômico por indução. Naquela oportunidade, acentuou o Min. Eros Grau em seu voto que:

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88 Controle dos incentivos fiscais pelo poder judiciáriopelo parâmetro da isonomia tributária

No caso das normas de intervenção por indução, defronta-mo-nos com preceitos que, embora prescritivos (deônti-cos), não são dotados da mesma carga de cogência que afeta as normas de intervenção por direção. Trata-se de normas dispositivas. Não, contudo, no sentido de suprir a vontade dos seus destinatários, porém, na dicção de Modesto Carvalhosa (Considerações sobre Direito Econômico, tese, São Paulo, 1.971, pág. 304) no de “levá-lo a uma opção econômica de interesse coletivo e social que transcende o os limites do querer individual”. 1

Nas normas de intervenção por indução, portanto, a sanção (co-mando) é substituída pelo estímulo (convite), deixando ao destinatário a opção de aderir ou não ao seu conteúdo.

É nessa hipótese de intervenção por indução que se identificam os incentivos fiscais.

Segundo Catão (apud PIRES, 2007, p. 19), os incentivos fiscais são formas de desoneração tributária, aprovadas pelo próprio ente político auto-rizado à instituição do tributo2, através de veículo legislativo específico, com o propósito de estimular o surgimento de relações jurídicas de cunho econômico.

Diniz e Fortes (2007, p. 273-274), por sua vez, concluem que o in-centivo (gênero) é um meio pelo qual o Estado busca concretizar os princípios da ordem econômica em prol do bem comum, sendo os incentivos fiscais (espécie) aqueles que alcançam as obrigações tributárias visando o fomento geral, regional ou setorial.

Tais concepções de incentivos fiscais permitem contrapô-los aos incentivos meramente financeiros. Estes, que operam no plano da despesa pública, compreendem o financiamento indireto do Estado a determinada atividade econômica por meio de aportes financeiros, como sói acontecer nos casos de subvenções ou subsídios. Os incentivos fiscais, por outro lado, operam no plano da receita pública tributária.3

1SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADIn 3512. TP. Rel. Min. Eros Grau. j. em 15.02.2006, DJ 23.06.2006 p. 3 (Grifos no original).2Ressalte-se que, em determinadas situações, a Constituição Federal permite a intervenção de um ente político em matéria de competência tributária de outro, como no caso das isenções heterônomas decorrentes de tratados internacionais (MAZZUOLI, 2007, p. 15).3Ressalte-se, contudo, a tendência de aproximação dos incentivos operantes na receita e na des-

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A distinção entre incentivos fiscais e financeiros é de suma im-portância.

Veja-se que, apesar de realmente haver uma correlação necessária entre receita e despesa pública, quando se trata da receita pública advinda de tributos, o Estado está submetido a diversas restrições de ordem constitucional, consubstanciadas nas limitações constitucionais ao poder de tributar. Trata-se, assim, de verdadeira distinção do regime jurídico aplicável às duas situações. Por outro lado, os incentivos que operam na vertente da despesa pública são regidos pelos princípios do Direito Financeiro.

Todavia, dada a influência dos incentivos fiscais e financeiros no mercado, ambas as categorias se encontram subordinados à disciplina cons-titucional da Ordem Econômica.

A propósito, assevera José Souto Maior BORGES (1978, p. 50) que até o pagamento do tributo a matéria estará formalmente regida pelos princípios e normas de direito tributário. Após o pagamento, a matéria estará disciplinada pelo Direito Financeiro; será, por consequência, estranha ao campo de atuação das normas tributárias.

Assim, sói acontecer que a concessão de incentivos fiscais está submetida às limitações constitucionais ao poder de tributar. O presente tra-balho, nesse sentido, estudará o impacto do princípio da isonomia tributária na concessão de incentivos fiscais.

No que diz respeito aos incentivos fiscais, diversas categorias ju-rídicas são apontadas, tais quais as isenções, o diferimento, a remissão e a anistia, bem como as reduções setoriais de alíquotas e base de cálculo. Para os fins do presente trabalho, contudo, não há maiores razões para a definição específica de tipos de incentivos, visto que todos se submetem ao regime de Direito Tributário.

Ademais, é deveras difícil (e até temeroso) identificar em deter-minados tributos ou em formas de incentivos fiscais a característica isolada da extrafiscalidade. Por mais que determinado tributo seja concebido no sentido de estimular determinados comportamentos, sempre terá, por força da arrecadação ocorrida no plano fático, cunho fiscal. Do mesmo modo, um determinado tributo concebido apenas no intuito fiscal pode gerar compor-

pesa do ponto de vista orçamentário. O art. 165, § 6º, da Constituição, prevê que o orçamento deverá prever os efeitos e impactos dos incentivos fiscais na despesa e na receita pública. Trata-se da adoção do conceito de gasto tributário (tax expediture) adotado nos EUA por Surrey (apud USA, 2008).

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tamentos indesejados por parte dos agentes econômicos, como sói acontecer nas hipótese de elisão fiscal e planejamento tributário.

A concepção de que a interpretação deve obedecer à “vontade do legislador” ou à “vontade da lei” é arcaica e não encontra eco na prática jurídica moderna. Isso porque o processo de aplicação das normas muitas vezes gera efeitos inesperados e imprevisíveis, de forma que não há como o intérprete agir sem levar em conta esses dados.

Por essa razão, é de se emprestar a concepção de Luís Eduardo Schoueri (2002, p. 24) de que não se deve falar de tributos “indutores” ou “extrafiscais”, mas sim de uma função indutora dos tributos, extraída de um corte abstrato da realidade, o que se consubstancia no estudo das chamadas normas tributárias indutoras. A esse respeito, assevera o autor que:

Ao se destacar uma função da norma tributária, in casu, a função indutora, o que se faz é um novo desdobra-mento da norma primária. Ter-se-á, uma primeira norma primária, na qual se fará presente a própria indução, pelo legislador, que, do ponto de vista jurídico, nada mais é que uma ordem para que o sujeito passivo adote certo comportamento. Não se perfazendo o comportamento, nasce uma obrigação tributária, que colocará o sujeito passivo em situação mais onerosa que aquela em que se situaria se adotado o comportamento prescrito pelo legislador. Finalmente, não se altera a norma secundária, já que do descumprimento da obrigação tributária, sur-girá a providência sancionatória, aplicada pelo Estado.

Destarte, cinge-se o presente trabalho à delimitação da aplicação da isonomia perante as normas tributárias indutoras, as quais quedam por consubstanciar os incentivos fiscais como forma de intervenção estatal na economia.

3 IGUALDADE E NORMAS TRIBUTÁRIAS INDUTORAS

A igualdade no âmbito tributário é albergada pela Constituição da República em seu art. 150, § 2º, ao vedar que os entes tributantes instituam tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional

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ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos.

Além disso, o princípio da igualdade se desdobra na capacidade contributiva, na imposição do § 1º do art. 145, instituindo que sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeita-dos os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.

Segundo Humberto Ávila (2007, p. 134-136), a igualdade pode ser encarada como postulado, princípio ou regra.

Como postulado, a igualdade configura uma metanorma, ou seja, uma norma que condiciona a aplicação de outras, prescrevendo que estas devem ser aplicadas de forma isonômica. Trata-se, na verdade, de uma inter-pretação substancial da igualdade perante a lei e o Direito, ou igualdade formal.

Como princípio, por sua vez, a igualdade é uma norma estruturante de caráter acentuadamente abstrato que visa dar coerência ao sistema jurídico. Como princípio, a igualdade pode ser definida pela sua polaridade (TORRES, 2005, p. 341): a igualdade e seu oposto, a desigualdade, não são negativos necessários. Pelo contrário, muitas vezes a realização de um passa pelo outro. Trata-se da velha máxima de Aristóteles: tratar os iguais igualmente e desigual-mente os desiguais, na medida de suas desigualdades. Na verdade, a igualdade pressupõe a negação ao arbítrio, pois impõe que o tratamento desigual esteja fundado em distinções devidamente fundamentadas.

A aplicação da igualdade pelo legislador e pelo aplicador da lei, portanto, implicam necessariamente seu oposto. A igualdade pressupõe a definição de critérios claros de diferenciação entre pessoas e situações.

A igualdade como regra se trata do comando constitucional direto impondo tratamento isonômico de situações pré-determinadas, vendando, portanto, discriminações em razão de sexo (art. 5º, I), origem, raça, cor e idade (art. 4º, IV), dentre outras. Nesse aspecto, a igualdade é uma norma que pode ser realizada ou não, de forma binária. É uma regra, não comportando pon-deração, mas sim exclusão.

Em todos esses matizes, a igualdade é perscrutável no âmbito tributário.

O Supremo Tribunal Federal já decidiu que a instituição de incentivos

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fiscais de proteção ao trabalho não viola a isonomia4. Contudo, a aplicação da igualdade em âmbito tributário exige que haja um método para tanto, permitindo ao aplicador da norma jurídica identificar privilégios e distinções odiosas.

Com efeito, a aplicação da igualdade está firmemente ligada aos critérios de desequiparação utilizados para realizar-se distinções. A propósito, assevera Schoueri (2002, p. 190) que:

Tem-se, pois, que a aplicação do princípio da igualdade pressupõe a eleição de medidas (princípios). Algumas delas são eleitas pelo próprio constituinte; outras vão sendo definidas pelo legislador. Umas e outras obrigam o legislador: as primeiras, porque não podem deixar de ser observadas; as últimas, porque o legislador somente poderá deixar de as observar se as retirar da legislação como um todo. Fere a igualdade o arbítrio: para algu-mas situações, observa-se determinado princípio, para outras não, sem que se encontre motivo jurídico para a discriminação. Por motivo jurídico entender-se-á, por sua vez, outro princípio, a motivar nova distinção.

Leonardo Martins (2005, p. 320) assevera, com esteio na jurisprudên-cia do Tribunal Constitucional Federal alemão, que a igualdade, dado seu conteúdo de postulado, difere na análise de sua violação em relação a outros direitos fundamentais. Tanto as garantias constitucionais de igualdade, quanto as garantias de liberdade servirão para impor ao legislador certos limites que ele não poderá ultrapassar: em suma, a restrição ou diminuição da liberdade, de um lado, e o tratamento desigual, do outro, não poderão ocorrer sem um motivo racional.

A diferença, assevera o autor, consiste na técnica jurídico-constitu-cional adotada para se avaliar a presença ou não de suas violações: possíveis violações de garantias de liberdade, incluindo a propriedade, são examinadas com a análise da área de proteção do respectivo direito, da intervenção do Estado e com o questionamento da justificação da intervenção. Possíveis violações de garantias de igualdade podem ser verificadas por meio de um processo constituído por duas etapas: a verificação do tratamento desigual;

4SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADIn 1.276/SP. TP. Rel. Min. Ellen Gracie. D.J. 29.11.2002.

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questionamento da possível justificação.Celso Antônio Bandeira de Mello (2009), em trabalho monográfico

acerca do tema, apontou como requisitos da distinção fundada na igualdade: a) que a desequiparação não atinja de modo atual e absoluto um só indivíduo; b) que as situações ou pessoas desequiparadas pela regra de direito sejam efetivamente distintas entre si, ou seja, possuam características próprias dife-renciadas; c) que exista, em abstrato, uma correlação lógica entre os fatores diferenciais existentes e a distinção de regime jurídico em função deles; d) que, em concreto, o vínculo de correlação em questão seja pertinente em função dos interesses constitucionalmente protegidos, isto é, resulte em diferenciação de tratamento jurídico fundada em razão de interesse público.

Os pontos “a” e “b” dizem respeito à verificação do tratamento desigual. Os seguintes dizem respeito à justificação (ou não) do tratamento desigual.

A instituição de determinado incentivo fiscal, portanto, deve, em primeiro lugar, estabelecer requisitos preenchíveis pelo contribuinte interes-sado. Se a norma se dirige, de forma clara ou dissimulada, a um contribuinte individual, sem oportunizar seu aproveitamento, mesmo que futuro, por outros, trata-se de um privilégio odioso. Tal norma seria, em tese, individual e concreta, violando fatalmente o princípio da igualdade em âmbito tributário.

A norma indutora, ainda segundo o método em referência, deve destacar um fator de diferenciação diretamente imputável ao sujeito da de-sequiparação ou a ele atribuível. Observe-se que o objetivo da norma tribu-tária indutora é incentivar determinado comportamento a ser adotado pelos agentes econômicos. Se é assim, são inidôneos os critérios adotados alheios ao comportamento desse mesmo agente.

A distinção deve se basear em critério (princípio) constitucional-mente válido. Nesse aspecto, a utilização da capacidade contributiva é apenas uma opção, calcada, em geral, na manutenção da função arrecadatória do tributo. Parâmetros possíveis seriam, por exemplo, a essencialidade (artigos 153, § 3º, I e 155, § 2º, III); o destino ao exterior (artigo 153, § 3º, III, artigo 155, § 2º, X, “a” e artigo 156, §3º, II); o uso da propriedade segundo sua função social (artigo 153, § 4º e 182, § 4º, II); localização e uso do imóvel (artigo 156, § 1º, II); o ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas (artigo 146, III, “c”); tratamento diferenciado às microempresas e às empresas de pequeno porte (artigo 179).

O objetivo da distinção, assim como o parâmetro estabelecido, deve ter correlação com aquela própria. Do mesmo modo, o objetivo traçado

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tem que encontrar eco nos princípios constitucionais da Ordem Econômica, como a correção de distúrbios na concorrência (art. 146-A); a valorização do trabalho humano (art. 170); a defesa do consumidor (art. 170, V), dentre outros.

Dizer, por outro lado, que deve haver correlação entre a distinção de contribuintes e o regime jurídico diverso impõe dizer que deve haver uma relação de adequação e necessidade entre ambos. Em outros termos: uma relação de proporcionalidade.

A esse respeito, decompondo o princípio da proporcionalidade, assevera Humberto Ávila (2007, p. 163) que:

(…) é preciso comprovar que a medida produz efeitos que contribuem para a realização gradual da finalidade extrafiscal (exame de adequação), que medida é a menos restritiva aos direitos envolvidos, dentre aquelas que poderiam ter sido utilizadas para atingir a finalidade extrafiscal (exame de necessidade), e que os efeitos positivos, decorrentes da adoção da medida, aferidos pelo grau de importância e de promoção da finalidade extrafiscal, não são desproporcionais aos seus efeitos negativos, estimulados pelo grau de importância e de promoção da finalidade igualitária (exame de propor-cionalidade em sentido estrito).

O recurso à proporcionalidade, inclusive, é um imperativo de justiça

fiscal. Isso porque a desoneração de determinado setor produtivo via incentivos fiscais acaba por onerar os demais, de modo que, mesmo que justificada pelos parâmetros anteriores, a desequiparação não se propõe a onerar de forma exagerada os sujeitos não atingidos.

É preciso, contudo, atentar para um detalhe sobre a aplicação da proporcionalidade.

A função de planejamento da economia, bem como a implemen-tação de políticas públicas no setor, foi conferida pela Constituição Federal aos Poderes Legislativo e Executivo, não ao Judiciário. Desse modo, é preciso salientar que a análise da norma indutora pelo judiciário deve se ater aos aspectos estritos da aplicação da igualdade, furtando-se de analisar a con-veniência da medida.

Em virtude disso, entende-se ser impertinente a análise da chamada proporcionalidade em sentido estrito pelo Poder Judiciário. Isso porque a a-quilatação e o sopesamento de vantagens e desvantagens da norma indutora

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para o mercado deve ser feita pelos demais poderes, os quais têm estrutura e competência para tanto. A atuação do Judiciário no sentido de substituir-se ao Legislativo e ao Executivo causa à economia severos prejuízos, visto que a política econômica deve ser mantida harmônica com o plano de governo escolhido soberanamente pelo povo no momento da eleição de seus repre-sentantes.

Ora, o exame de adequação diz respeito a uma análise objetiva entre a situação de coisas atual e o prognóstico desejado pelo legislador, de forma que há pouco espaço para o arbítrio. Basta uma subsunção do fato ao prognóstico: ou a norma é apta a alcançar os objetivos traçados ou não. Observe-se que o que se questiona não é se a norma vai alcançar de fato ou não seu objetivo. Isso seria um exercício de futurologia. O que se precisa é que seja apta a alcançar o objetivo determinado.

Da mesma forma, o exame de necessidade impõe que, dentre as medidas aptas, apenas a menos gravosa aos direitos fundamentais deve ser adotada. No que tange aos incentivos fiscais, deve ser considerada necessária a medida que menos agrave o interesse público e a justiça fiscal na forma da oneração dos demais contribuintes.

A análise da proporcionalidade em sentido estrito, contudo, impõe uma análise subjetiva fundada, no mais das vezes, na força da argumenta-ção, não em uma constatação empírica. Tal análise deve ser feita no campo democrático adequado, qual seja, no Parlamento, mesmo porque uma dis-cussão abrangente demanda tempo e recursos técnicos que muitas vezes não estão disponíveis ao Poder Judiciário.

Posição semelhante à aqui adotada já foi defendida pelo Tribunal Constitucional Federal alemão por meio de seu Segundo Senado5 (apud MAR-TINS, 2005, p. 323), verbis:

O legislador está vinculado ao princípio da justiça tribu-tária que decorre do Art. 3 I GG (BVerfGE 13, 181 [202]). A aplicação desta norma de direito fundamental é baseada sempre numa comparação de relações sociais que não são iguais em todos os seus elementos, mas em apenas alguns deles. Em princípio, decide o legislador (BverfGE op.cit.) quais elementos das relações sociais, que serão

5 Decisão (Beschluss) do Segundo Senado de 9 de julho de 1969 – 2 BvL 20/65.

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reguladas, são decisivos para seu tratamento jurídico igual ou tratamento desigual. Para a escolha, em espe-cial, das fontes de receita fiscal, o legislador tem ampla liberdade de conformação [discricionariedade]. Esta termina somente quando o tratamento igual ou desigual da matéria regulada não for mais compatível com um modo de enxergar o problema que seja orientado pela ideia de justiça, onde, portanto, falta uma razão convincente para o tratamento igual ou tratamento desigual. Somente a observância destes limites extremos da liberdade legislativa (proibição de arbitrariedade) é passível de controle pelo Tribunal Constitucional Federal e não a constatação de que o legislador tenha ou não encontrado, no caso particular, respectivamente a mais adequada, a mais razoável e a mais justa das soluções [possíveis] (BVerfGE 1, 14 [52]; 4, 7 [18]; 17, 309 [330]; 18, 121 [124]; 19, 354 [367]).

Busca-se, portanto, o resguardo contra a inexatidão de recursos inadequados ao argumento da proporcionalidade e da razoabilidade, que, muitas das vezes, acabam por descambar no arbítrio e no subjetivismo.

Estabelecidos os parâmetros de realização da igualdade nas normas tributárias indutoras, impende tratar no item que segue a implementação de tal princípio pelo Poder Judiciário.

4 NORMAS TRIBUTÁRIAS INDUTORAS, IGUALDADE E APLICAÇÃO PELO PODER JUDICIÁRIO

O método de aplicação do princípio da igualdade descrito no item anterior pode levar à constatação de que determinada norma indutora promove uma desigualdade ilegítima. Em concreto, podem ser identificados privilégios odiosos ou discriminações odiosas.

Ricardo Lobo Torres (2005, p. 367) define privilégio odioso como a autolimitação do poder fiscal, por meio da Constituição ou da lei formal, con-sistente na permissão, destituída de razoabilidade, para que alguém deixe de pagar os tributos que incidem genericamente sobre todos os contribuintes ou receba, com alguns poucos, benefícios inextensíveis aos demais.

A odiosidade do privilégio, na verdade, na esteira do método esta-

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belecido no item anterior não decorre da simples irrazoabilidade da distinção. Entenda-se, na hipótese, a irrazoabilidade pela constatação, através da verifi-cação da desigualdade e do questionamento da possível justificação, de que a norma desatende aos pressupostos do princípio da igualdade.

Com efeito, na situação de privilégio odioso, a desequiparação em si é inconstitucional porquanto viola o princípio da igualdade, pelo desaten-dimento a qualquer dos requisitos traçados no item anterior. Nessa situação o próprio incentivo fiscal é inválido, não sendo possível sua aplicação.

Deparando-se, pois, o Poder Judiciário com a constatação de um privilégio fiscal odioso, sua única alternativa é declarar a lei instituidora incons-titucional e restabelecer a situação de igualdade. Não seria possível, nesse caso, a extensão do benefício da norma indutora a outros contribuintes por duas razões.

A primeira é que, como já dito, o privilégio fiscal odioso viola fron-talmente a igualdade. Sua invalidade decorre da adoção de critérios inidôneos ou desproporcionais à desequiparação efetivamente realizada. O privilégio é, portanto, inconstitucional e, por conseguinte, inválido e inapto a produzir efeitos no ordenamento jurídico. Se o privilégio odioso é nulo, descabe falar em sua extensão a situações de outros contribuintes.

Em segundo lugar, a pretensão de extensão encontra um óbice de natureza financeira. Se a norma de privilégio fiscal odioso visa abranger um grupo determinado de contribuintes, sua extensão a outros implica a concessão de incentivo fiscal não previsto na forma do art. 165, § 6o, da Cons-tituição da República. Como já afirmado anteriormente, os chamados gastos tributários (tax expediture) são tratados pelo Direito Financeiro de forma equi-parada à efetiva despesa pública, permitindo o seu controle pelos órgãos de fiscalização da execução orçamentária. Isso sem falar no impacto da extensão desenfreada de um privilégio odioso teria nos outros contribuintes que teriam que abarcar a receita que deixou de ser arrecadada.

As discriminações odiosas, por sua vez, são desigualdades infunda-das que prejudicam a liberdade do contribuinte (TORRES, 2005, p. 415). Trata-se de exclusão de um contribuinte da incidência de uma norma tributária geral ou de uma norma indutora não odiosa que constitui violação a seu direito fundamental de igualdade.

Nessa situação, no que tange aos incentivos fiscais, o discrímen realizado afigura-se perfeitamente constitucional, fundado em parâmetros e objetivos idôneos. Noutros termos, verificou-se uma justificação constitucional para a desequiparação realizada. Contudo, um certo contribuinte foi excluído

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da abrangência da norma indutora sem justificação, de forma arbitrária.No caso, seria possível, diferente do que ocorre com o privilégio

odioso, que o Poder Judiciário estendesse ao contribuinte injustamente dis-criminado as benesses da norma indutora.

É que a discriminação odiosa não pressupõe uma norma violadora da igualdade, mas sim a exclusão injusta de um contribuinte do âmbito de incidência de uma norma plenamente isonômica e, por conseguinte, consti-tucional. Se a norma é de fato constitucional e válida, deve ser aplicada ao contribuinte injustamente discriminado.

Quando a discriminação odiosa decorre de uma exclusão explícita de um contribuinte a uma regra geral, a solução é simples: basta a anulação da norma de discrímen por sua inconstitucionalidade, integrando o discrimi-nado à regra geral.

Arvorado nesse pressuposto, já decidiu o Supremo Tribunal Federal:

ICM. Isenção. Bacalhau importado. GATT. Convênio interestadual. Art. 98 do CTN. Súmula 575.Desde que o bacalhau importado da Noruega, o que é incontroverso, não tem similar nacional, a sua corre-spondência é com espécie de peixe seco e salgado, de origem interna, que goza de isenção do ICM.Segundo o art. III do GATT, o país importado de outro país signatário do Acordo goza de isenção concedida a produtos similares de origem nacional (súmula 575).O convênio interestadual que exclua da isenção do ICM, anteriormente estipulada, dentre outras espécies, o bacalhau, não infirma a que é concedida ao bacalhau importado que não tem similar nacional senão na categoria de peixe seco e salgado, que continua isenta. A cláusula do convênio interestadual não afasta a in-cidência da norma internacional.Recurso extraordinário conhecido e negado provi-mento.6

Na hipótese, contudo, de a discriminação se encontrar na exclusão

do contribuinte do bojo de incidência de uma norma indutora que não con-

6SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RE 105606. T1. Relator Min. Rafael Mayer. j. 26.11.1985 DJ 13.12.1985.

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figura privilégio odioso, é mais complexa a aplicação da igualdade.Pode-se questionar se o Poder Judiciário, nesse caso, ao estender

uma norma tributária indutora a hipóteses por ela não contempladas, estaria atuando como legislador positivo. Isso porque o Judiciário estaria inserindo no sistema normativo texto novo a permitir a inclusão de certo contribuinte num regime mais benéfico.

O STF, em mandado de injunção no qual se discutia a extensão do plano de carreira de servidores autárquicos àqueles da administração direta que exerciam as mesmas funções7, decidiu que o princípio da igualdade, que se reveste de autoaplicabilidade, não e - enquanto postulado fundamental da ordem político-jurídica - suscetivel de regulamentação ou de complementação normativa.

Naqueles autos, o Tribunal, não obstante o não conhecimento do mandado de injunção, sustentou em obiter dictum as três possíveis soluções para a situação: a) extensão dos benefícios ou vantagens as categorias ou grupos inconstitucionalmente deles excluidos; b) supressão dos benefícios ou vantagens que foram indevidamente concedidos a terceiros; c) reconhe-cimento da existência de uma situação ainda constitucional (situação con-stitucional imperfeita), ensejando-se ao Poder Público a edição, em tempo razoável, de lei restabelecedora do dever de integral obediencia ao princípio da igualdade, sob pena de progressiva inconstitucionalização do ato estatal existente, porém insuficiente e incompleto.

A solução apontada no item “b” se coaduna perfeitamente àquela indicada neste trabalho para a correção de privilégios odiosos. Veja-se que o pressuposto da anulação dos benefícios conferidos a terceiros funda-se na falta de justificação constitucional para a desequiparação, como já exposto. Assim, é perfeitamente cabível nesse caso a anulação da norma.

Entretanto, no caso de privilégios odiosos, sói acontecer de o discrí-men ser justificado constitucionalmente. Não é, portanto, inconstitucional, descabendo falar em nulidade.

Dessarte, surgem duas opções: a extensão do benefício ao con-tribuinte discriminado ou o reconhecimento de inconstitucionalidade sem pronunciação de nulidade (item “c”).

Para os fins deste trabalho, a opção que mais se coaduna à realização

7SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. MI 58. TP. Relator Min. Carlos Velloso, Relator p/ o acórdão: Min. Celso de Mello,. j. 14.12.1990, DJ 19.04.1991.

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da igualdade no plano material é a de extensão do benefício. A jurisprudência mais recente do Pretório Excelso confirma essa tendência.

No Mandado de Injunção n.º 708/DF8, a Corte Constitucional revisou seu entendimento consolidado, decidindo que o Poder Judiciário, frente à omissão do legislador, ainda que parcial, pode e deve preenchê-la, ainda que temporariamente, em homenagem à realização dos direitos fundamentais do cidadão.

Determinados pressupostos elencados naquele julgamento dão suporte ao entendimento aqui exposto, a saber: a decisão judicial que declara a existência de uma omissão inconstitucional constata, igualmente, a mora do órgão ou poder legiferante, insta-o a editar a norma requerida; a omissão inconstitucional tanto pode referir-se a uma omissão total do legislador quanto a uma omissão parcial; o Tribunal passou a admitir soluções “normativas” para a decisão judicial como alternativa legítima de tornar a proteção judicial efetiva (CF, art. 5o, XXXV).

Evidentemente, só o STF, por força da competência dispendida cons-titucionalmente, pode estabelecer, ainda que temporariamente, normatização que supra omissões do legislador. Todavia, para a extensão de normas indutoras a contribuintes discriminados não é necessária nova regulamentação, mas apenas a extensão da normatização já existente.

Assim, parece claro e possível que o Poder Judiciário, com esteio nos pressupostos elencados, possa estender a incidência de normas indutoras na situação de discriminações odiosas aos contribuintes que preencheriam os requisitos para tanto.

5 CONCLUSÃO

Do exposto, pode-se chegar às seguintes conclusões: i) o princípio da igualdade é perfeitamente aplicável às normas tributárias indutoras; ii) a aferição do malferimento da igualdade na instituição de normas tributárias indutoras deve se submeter a um exame de verificação da situação de desigual-dade e possível justificação decorrente de parâmetros e objetivos idôneos; iii) a norma indutora deve instituir regime proporcional à desequiparação efetivada;

8SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. MI 708/DF. TP. Relator Min. Gilmar Mendes. j. 25.10.2007, Dje-206 de 31.10.2008.

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iv) observada a violação da igualdade, pode o Poder Judiciário anular a norma que institui privilégio odioso e estender a que institui discriminação odiosa aos contribuintes que a ela fazem jus em virtude da igualdade e semelhança de situações.

REFERÊNCIAS

ÁVILA, Humberto. Teoria da igualdade tributária. São Paulo: Malheiros, 2007.

BORGES, José Souto Maior. Subvenção financeira, isenção e dedução tribu-tárias. Revista de Direito Público, n. 41-42, São Paulo, 1978.

DINIZ, Marcelo Lima de Castro; FORTES, Fellipe Cianca. Incentivos fiscais no STJ. In: ELALI, André; MARTINS, Ives Gandra da Silva; PEIXOTO, Marcelo Magalhães (org.) Incentivos fiscais: questões pontuais nas esferas federal, estadual e municipal. São Paulo: MP editora, 2007.

GRAU, Eros. A ordem econômica na Constituição de 1988. 13ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008.

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Page 102: Publicação Semestral dos Acadêmicos do Curso de Direito ... · ... BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A ... UM ENFOQUE SOBRE O ESTATUTO DO IDOSO E ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO

102 Controle dos incentivos fiscais pelo poder judiciáriopelo parâmetro da isonomia tributária

PIRES, Adilson Rodrigues. Ligeiras reflexões sobre a questão dos incentivos fiscais no Brasil. In: ELALI, André; MARTINS, Ives Gandra da Silva; PEIXOTO, Marcelo Magalhães (org.) Incentivos fiscais: questões pontuais nas esferas federal, estadual e municipal. São Paulo: MP editora, 2007.

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USA. Rethinking tax expeditures. Joint Comitee on Taxation, 2008. Disponível em www. jct.org

CONTROL OF THE TAX BREAKS BY THE JUDI-CIARY WITH THE PARAMETER OF TAX EQUALITY

ABSTRACT

Examines the effects of applying the principle of equality on the tax rules used by the legislature in the non-collecting effect (inducing tax rules). Defines, furthermore, a method of analysis of equality on tax breaks in order to identify odi-ous privileges and discriminations. Defined the method, the paper analyzes the limits of judicial power in the realization of equality to correct the tax distinctions not justified by the Constitution. It discusses the possibility, identified odious privi-

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103Jules Michelet Pereira Queiroz e Silva

lege or discrimination, of the court extend the tax benefits to taxpayers not originally affected by the scope of the law. Performs an analysis of the jurisprudence of the Brazilian Federal Supreme Court on achieving equality of opportunity and the judiciary to act as positive legislator.

Keywords: Tax equality. Inducing tax rules. Propor-tionality. Odious privileges. Odious discrimination.

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CONTROLE E FISCALIZAÇÃODAS ENTIDADES DO

TERCEIRO SETOR

Ana Cristina Diógenes RêgoAcadêmica do 6º período do

curso de Direito da UFRN

Davi Costa Feitosa AlvesAcadêmico do 6º período do

curso de Direito da UFRN

Karoline Lins Câmara MarinhoProfessora Orientadora

RESUMO

O terceiro setor compreende as organizações de caráter privado que prestam serviços de interesse público. Nos últimos anos, assistimos a um cresci-mento impressionante desse setor, em virtude da ação ineficiente do Estado na concretização dos direitos sociais garantidos pela Constituição Federal e do contexto neoliberal de adoção de um modelo de gestão reguladora. Não obstante nasçam com a missão de suprimir as lacunas deixadas pelo Es-tado, a proliferação de organizações que servem de fachada para a prática de ilegalidades e atos escusos ressalta a necessidade de controle e fiscalização de sua atuação, como forma de conferir-lhe maior legitimidade e confiabilidade.

Palavras-chave: Terceiro Setor. Contrato de Gestão. Controle. Fiscalização.

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1 INTRODUÇÃO

Uma Sociedade constituída é organizada em três esferas, conforme os objetivos que buscam e a estrutura necessária para atingi-los: o Primeiro Setor corresponde ao Estado, enquanto ente com personalidade jurídica de direito público, encarregado de funções públicas essenciais e indelegáveis ao particular. O Segundo Setor compreende a livre iniciativa; as organizações do mercado, que exercem atividades privadas, visando ao lucro. O Terceiro Setor, por sua vez, é constituído por organizações privadas que, embora prestem serviços de caráter público, não são governamentais, nem possuem fins lu-crativos com os empreendimentos realizados. Essas organizações, incluídas as Associações, Sociedades sem fins lucrativos, Fundações, Organizações Não-Governamentais e Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, atuam nas lacunas deixadas pelos setores público e privado, buscando o bem-estar da população.

Em virtude da ação ineficiente do Estado e da capacidade limitada de execução de tarefas sociais, o Terceiro Setor vem experimentando, nos últimos anos, um expressivo crescimento a nível global, visando suprir a de-manda por serviços sociais, requisitados por relevante parcela da população mundial. Assim, a iniciativa privada assume o compromisso de combater sérios problemas da atualidade, como a pobreza, a fome, o desrespeito aos direitos humanos, entre muitos outros, devido à inépcia demonstrada pelos governos.

No Brasil, um estudo realizado pelo IBGE em 2002, que avaliou, pela primeira vez, a participação econômica do Terceiro Setor no país, revelou que este foi o segmento econômico mais ativo no período de 1996 a 2002, tendo conhecido um crescimento de 157%. Ainda segundo a pesquisa, o setor movimenta cerca de 32 bilhões de reais por ano, o que representa 1,4% na formação do Produto Interno Bruto (PIB) 1.

No entanto, o grande crescimento do setor e a diversidade que lhe é característica – é formado por entidades completamente distintas, que vão desde hospitais e escolas até instituições religiosas – têm gerado críticas fundamentadas na fragilidade da fiscalização das organizações que compõem o segmento. De fato, não é difícil encontrar exemplos que demonstrem a uti-lização das Organizações Não-Governamentais (ONGs) para favorecer políticos

1 Dados disponíveis em <http://www.responsabilidadesocial.com/article/article_view.php?id=499> Acesso em 04/06/2010.

Controle e fiscalização das entidades do terceiro setor

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ou burlar as leis de licitação.Nesse diapasão, o presente artigo objetiva, através de um ensaio

teórico-argumentativo, demonstrar a atuação do Terceiro Setor no cenário nacional, analisando a legitimidade de suas atividades, a credibilidade de suas ações e, acima de tudo, as ilegalidades cometidas por determinadas organizações que se utilizam da condição estrutural do Terceiro Setor para praticarem infrações e atos escusos, realizados à míngua da ética e da moral.

2 DEFINIÇÃO DO TERCEIRO SETOR E SEUS AGENTES

Existem várias definições para aquilo que se convencionou chamar de “terceiro setor”. A expressão, embora não tenha sido adotada pelo legisla-dor constituinte, é amplamente utilizada pela doutrina e consta também na jurisprudência e leis ordinárias e complementares.

Apesar disso, o termo ainda padece de uma imprecisão conceitual, decorrente da própria abrangência do terceiro setor, eis que, como já obser-vamos, é constituído por uma grande variedade de organizações, as quais atuam nas mais diversas áreas.

Entre suas principais personagens, podemos citar as fundações, sociedades e associações, as quais podem obter a qualificação de Organização Social (OS) e Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP).

As OS e OSCIPs, portanto, não representam instituições concretas, como pode parecer à primeira vista, mas títulos “concedidos às pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, quando estas atenderem determinados requisitos legais” (VIOLIN, 2006, p. 210).

As fundações constituem uma universalidade de bens com desti-nação específica a que a lei atribui personalidade jurídica. Como determina o parágrafo único do art. 62 do Código Civil acerca das fundações privadas “a fundação somente poderá constituir-se para fins religiosos, morais, culturais ou de assistência”. Estas instituições diferenciam-se das demais porque não nascem da associação entre pessoas físicas, mas da dotação de um patrimônio inicial para atingir as finalidades estipuladas pelo seu instituidor. As fundações privadas têm grande importância para o Terceiro Setor porque são responsáveis por financiá-lo, fazendo doações às entidades beneficentes.

As associações, por sua vez, são pessoas jurídicas constituídas pela união de pessoas que se organizam para fins não econômicos. Esses fins po-dem ser egoísticos, quando têm como objeto o interesse pessoal dos próprios

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associados, desde que sem o intuito de lucro (como um clube esportivo ou literário), ou altruísticos, quando visam ao benefício de terceiros, como as as-sociações beneficentes.

Para Di Pietro (2010), as fundações, associações e cooperativas in-tegram o grupo das entidades de apoio, entendidas como pessoas jurídicas de direito privado que prestam serviços sociais não exclusivos do Estado, mantendo vínculo jurídico com a Administração por meio de convênio. A au-tora identifica ainda o conjunto de serviços sociais autônomos, que seriam as entidades instituídas por lei, sem fins lucrativos, para atuar em certas categorias sociais, sob um regime jurídico tributário mais benéfico.

Nesse diapasão, os Serviços Sociais Autônomos (entidades do sistema “S”) têm por escopo ministrarem assistência ou ensino a certas ca-tegorias sociais ou grupos profissionais, sem fins lucrativos, sendo mantidos por dotações orçamentárias ou por contribuições parafiscais. São instituídas por lei e seus empregados ficam sujeitos à legislação do trabalho em toda sua plenitude, só sendo equiparados a funcionários públicos para responsabiliza-ção criminal dos delitos funcionais.

As entidades de apoio prestam serviços públicos propriamente ditos, porém não como serviço público delegado pela Administração Pública, mas como atividade privada aberta à iniciativa privada (atuam juntamente a hospitais e universidades públicas). Não são instituídas por iniciativa do Poder Público, mas por servidores públicos de determinada entidade estatal. Conforme esclarece Maria Sylvia Zanella Di Pietro:

Em suma, o serviço é prestado por servidores públicos, na própria sede da entidade pública, com equipamentos pertencentes ao patrimônio desta última, só que quem arrecada toda a receita e a administra é a entidade de apoio. E o faz sob as regras das entidades privadas, sem a observância das exigências de licitação (nem mesmo os princípios de licitação) e sem a realização de qualquer tipo de processo seletivo para contratação de empregados. (DI PIETRO, 2010, p. 495)

A qualificação como Organização Social, regulamentada pela Lei nº 9.637/98, é concedida, pela autoridade competente, às entidades que atendem aos requisitos legais – formais e materiais – atinentes à espécie, firmando con-trato de gestão com o Poder Público. A instituição que recebe esse título está apta a receber bens públicos em regime de permissão e sem licitação prévia.

Controle e fiscalização das entidades do terceiro setor

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Conforme arts. 7º, I, e 8º da Lei 9.637/98, cabe ao Poder Público fiscalizar o cumprimento do contrato de gestão, verificando a execução do programa de trabalho e a observância dos prazos e metas fixados. O desrespeito às exigên-cias acordadas pode ensejar a perda da qualificação de organização social.

Tais organizações submetem-se, portanto, a um regime jurídico especial, que contempla benefícios especiais do Estado para execução de determinadas atividades de interesse coletivo. As OSs recebem ou podem receber delegação para a gestão de serviço público. Maria Sylvia Zanella Di Pietro leciona em sentido consonante:

Nenhuma entidade nasce com o nome de organização social; a entidade é criada como associação ou fundação […] Aparentemente, a organização social vai exercer atividade de natureza privada, com incentivo do Poder Público, dentro da atividade de fomento. Mas, na reali-dade, o real objetivo parece ser o de privatizar a forma de gestão de serviço público delegado pelo Estado. (DI PIETRO, 2010, p. 496- 497).

A alcunha de Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) foi criada pela Lei nº 9.790, de 23 de março de 1999. Antes dela, já havia outros títulos no Brasil, como o Certificado de Utilidade Pública Federal, que confere a permissão de abater doações no Imposto de Renda ou o Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social (CEBAS), que concede a isenção de contribuição patronal ao INSS, ou mesmo a qualificação como Organização Social. A Lei das OSCIPs não revogou esses títulos, porém exige exclusividade para a concessão de tal qualificação, apesar de não conferir, por si só, qualquer benefício tributário ou fiscal.

Nada obstante, as novas instituições do setor estão sendo orien-tadas para se constituírem dentro das exigências estabelecidas pela Lei nº 9.790/99. A busca pelo título de OSCIP se justifica pelas outras vantagens que ele trouxe. A primeira diz respeito ao procedimento de obtenção, que simplifica os trâmites burocráticos exigidos pelos demais títulos: a entidade interessada deve encaminhar requerimento escrito ao Ministério da Justiça, com os docu-mentos exigidos, estando tal órgão vinculado a outorgar a qualificação para as entidades que atenderem os requisitos legais, decidindo o caso em trinta dias. Neste ponto, difere da Lei disciplinadora das organizações sociais, que

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estabelece como discricionária a atribuição da alcunha2. Outro benefício, instituído pelo art. 4º, VI, da Lei nº 9.790/99, consiste

na possibilidade de remuneração dos seus dirigentes. Mister ressaltar que a remuneração não altera a finalidade não lucrativa da entidade.

3 EVOLUÇÃO DO TERCEIRO SETOR NO BRASIL

Após o regime ditatorial, o Brasil experimentou um processo de redemocratização que culminou com a promulgação da Constituição Federal de 1988, classificada como uma Constituição Cidadã. A grande expectativa que se criou em relação à nova Lei Maior é explicada pelo contexto que a origi-nou: além de consagrar o fim da ditadura, a Constituição obteve, durante sua confecção, uma ampla participação da sociedade, feito incomum na história política brasileira. De fato, a Carta de 1988 foi a que apresentou maior legi-timidade popular. Nesse mesmo sentido preleciona Walber de Moura Agra:

A Constituinte de 1988 exerceu plenipotenciariamente os seus poderes, graças à legitimação popular de que estava imbuída. De todos os Textos Constitucionais foi o que mais apresentou legitimidade por parte da popula-ção […] Dentre todas as Constituições, foi a que contou com maior apoio popular. Com isso, a feitura de suas normas atendeu aos interesses da maioria da população, relegando a segundo plano os anseios de importantes setores da elite econômica. (AGRA, 2008, p. 55)

Seguindo esse espírito, o Estado passou a adotar um modelo de gestão mais preocupado com as questões sociais, voltado para o interesse público e para assegurar as condições básicas que propiciem o exercício dos direitos fundamentais pela população. Entretanto, a efetivação dos direitos e garantias constitucionais pelo Estado social ainda gera inseguranças. Conforme advertiu Bonavides:

2 Outras relevantes diferenças trazidas pela Lei das OSCIPs são a forma de vínculo com o Poder Público (enquanto, as organizações sociais celebram contratos de gestão, as OSCIPs firmam ter-mos de parceria com o Estado), tema que abordaremos a seguir, e o âmbito de atuação, mais restrito para as organizações sociais.

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Até onde irá contudo na prática essa garantia, até onde haverá condições materiais propícias para traduzir em realidade o programa de direitos básicos formalmente postos na Constituição, não se pode dizer com certeza. É muito cedo para antecipar conclusões, mas não é tarde para asseverar que, pela latitude daqueles direitos e pela precariedade dos recursos estatais disponíveis, sobremodo limitados, já se armam os pressupostos de uma procelosa crise. (BONAVIDES, 2008, p. 373)

Assim, concretizar e introduzir as disposições do texto constitucio-nal, que em razão de seu caráter programático, genérico e abstrato apresenta baixo teor de auto-aplicabilidade, na realidade nacional, constitui, ainda se-gundo o abalizado doutrinador, “o desafio das Constituições brasileiras, desde os primórdios da República”. (BONAVIDES, 2008, p. 373).

Nesse sentido, a divergência criada entre a abundância de direitos trazidos pela Carta de 1988 e a falta de garantias de seu cumprimento acabam servindo como justificativas para a criação de movimentos em prol do Terceiro Setor, frente à ineficácia do Estado em promover a consecução do bem comum.

Tem início, então, uma verdadeira proliferação de ONGs, associações e fundações como alternativa para preencher as lacunas deixadas pelo Estado na esfera social. Como exemplo dessa propagação, e um exemplo dos mais bem-sucedidos, diga-se de passagem, podemos citar a ONG “Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida”, criada pelo sociólogo Herbet de Souza em 1993, no Rio de Janeiro, no contexto da luta pelo impeachment do Presi-dente Collor. Segundo o próprio Betinho, “a motivação fundamental da Ação da Cidadania era a certeza de que democracia e miséria eram incompatíveis”.3 Outro caso de sucesso é o do Programa de Alfabetização Solidária, fundado em 1997, com o intuito de reduzir os altos índices nacionais de analfabetismo e promover o fortalecimento da oferta pública de Educação de Jovens e Adultos (EJA) no Brasil. O IBGE creditou à ONG grande responsabilidade pela diminuição em 32,2% na taxa de analfabetismo no Brasil na última década.

Essas iniciativas ajudaram a difundir a imagem, entre a população,

3 Informações disponíveis em< http://www.acaodacidadania.com.br/templates/acao/publica-cao/publicacao.asp?cod_Canal=1&cod_Publicacao=41> Acesso em 21/05/2010.

Ana Cristina Diógenes Rêgo - Davi Costa Feitosa Alves

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de que as ONGs são a expressão dos ideais de altruísmo, solidariedade e com-promisso com o bem comum. Realmente, existem milhares de organizações que lutam pelo que acreditam e fazem a diferença. Além disso, essas organiza-ções acumulam infra-estrutura, recursos e conhecimentos que as permitem trabalhar em parceria com órgãos públicos, possibilitando a diminuição dos custos operacionais das ações estatais.

Infelizmente, porém, não são todas as organizações que defen-dem essa bandeira. Muitas delas servem apenas de fachada para a prática de ilegalidades, facilitada pela falta de leis específicas para regulamentar as prestações de contas pelas ONGs. Essa situação motivou uma reportagem na revista Época4 que, em 2006, advertiu para o surgimento da “pilantropia”, ca-racterística do novo tipo de ONG, que, na falta de fiscalização, desvia recursos públicos, propiciando enriquecimento ilícito.

4 RELAÇÃO ENTRE TERCEIRO SETOR E ESTADO

No contexto de reforma do Estado brasileiro a partir da década de 1990, verifica-se uma nova orientação no exercício de suas funções. A execução de serviços antes prestados por empresas estatais é transferida para a livre iniciativa, por meio das privatizações. O Estado, então, deixa de atuar direta-mente na economia para fazê-lo de forma indireta, através da normatização e regulamentação dessas atividades.

No caso do terceiro setor, segundo Di Pietro (2010, p. 493), suas en-tidades não prestam um serviço público delegado pelo Estado, mas serviços que não lhe são exclusivos, apesar do interesse público que lhes é inerente. Por isso, não integram a Administração Indireta – razão pela qual a autora também adota a expressão “entidades paraestatais” para designar tal grupo de instituições.

Sem embargo, o Estado não deixa de interferir na sua atuação, fazendo-o através do poder de polícia (ao qual estamos todos submetidos) e do regime de fomento, a ser efetivado mediante contrato de gestão, termo de parceria e convênios, que concedem subvenções, auxílios ou contribuições, observados os requisitos legais para tanto.

Conforme assinala Vladimir França,

4 Reportagem disponível em <http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG74385-6009 -420,00.html> Acesso em 21/05/2010.

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o Estado realiza o fomento de diversos modos: (i) a outorga de títulos honoríficos ou prêmios a pessoas físicas ou jurídicas que desempenham atividades de relevante interesse coletivo; (ii) o uso gratuito de bens públicos ou de serviços da Administração pelo particu-lar; (iii) subvenções econômicas; (iv) reconhecimento de prerrogativas ou privilégios especiais. (FRANÇA, 2006, p. 12-13)

O autor ressalta ainda que, embora não atuem como delegados do Poder Público, os particulares que exploram serviço de relevância pública, no caso as entidades do terceiro setor, devem orientar-se pelos princípios cons-titucionais peculiares à atividade prestada e pelas limitações administrativas impostas à gestão e prestação desses serviços sociais. (FRANÇA, 2006, p. 04).

Assim, às prerrogativas concedidas pelo Estado sob o regime de fomento deve corresponder uma contraprestação das entidades paraestatais de execução dos serviços de utilidade pública com maior eficiência, a ser veri-ficada a partir do controle da Administração e do Tribunal de Contas, como determina a Constituição Federal, e também da própria população, enquanto maior interessada na realização desses serviços.

1.1 Controle interno da Administração Pública

As vantagens oferecidas pelo Estado para as entidades do terceiro setor, sob o regime de fomento, ainda são objeto de muitas atividades ilícitas que se desenvolvem sob a fragilidade da fiscalização promovida pela Ad-ministração. Além disso, a atuação do terceiro setor é defendida sob o argu-mento de que suas instituições possuem melhor infra-estrutura e, portanto, melhores condições de fornecer os serviços que o Estado já não presta com tanta eficiência. No entanto, a mera posse de uma infra-estrutura mais desen-volvida, quando ela de fato existe, não implica, por si só, em maior efetividade e agilidade na execução desses serviços.

O Estado, portanto, não pode se abster de fiscalizar essas entidades para conferir a relevância de sua atuação, de forma efetiva e lícita, na con-secução do interesse público. Por isso, as entidades do terceiro setor, apesar de não integrarem a administração pública indireta, sujeitam-se ao controle interno e externo do Estado, conforme previsto no art. 70 da Constituição Federal.

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Contudo, embora haja esforços para se proceder a uma triagem dessas entidades para a concessão dos benefícios, a quantidade de candidatas e as limitações demonstradas pelo Poder Público dificultam a realização de um processo mais criterioso. Essas dificuldades vêm sendo vencidas através das disposições da Lei 9.637/98, que disciplina as OS, e, principalmente da Lei nº 9.790/99 5 (Lei das OSCIPs). Esta lei trouxe diversas inovações em relação à legislação anterior, prevendo novos instrumentos de controle e fiscalização das organizações pelo Poder Público, ou aperfeiçoando os mecanismos já existentes. A ênfase do controle, antes concentrada na aplicação dos recursos, foi transferida para o alcance dos resultados.

Entre esses novos mecanismos de controle, destacamos a exigência da adoção de práticas gerenciais que coíbam o favorecimento pessoal em processos decisórios e a vedação à participação de OSCIPs em campanhas de interesse político-partidário ou Eleitoral, independentemente da origem dos recursos (públicos ou próprios), além da criação de um Conselho Fiscal, responsável pela emissão de pareceres para os organismos superiores da enti-dade, funcionando como a primeira instância de controle interno. (LEITE, 2010).

Quanto ao Termo de Parceria, introduzido como forma de repasse de recursos públicos às OSCIPs, a Lei nº 9.790/99 também regulamentou a sua fiscalização, complementada pelo Decreto 3.100/99, e aumentou o rigor das normas referentes à responsabilização das organizações quando restar comprovado o uso indevido desses recursos.

No âmbito da apuração da responsabilidade das entidades do terceiro setor, vale ressaltar que o regime jurídico quanto às perdas e danos decorrentes da prestação dos serviços públicos que executam, segue o regime jurídico de responsabilidade objetiva do Estado. Desnecessária, portanto, a investigação da culpa do agente da organização, bastando haver nexo causal entre a sua conduta e a lesão ao direito do cidadão. Vale salientar também que o Estado responde subsidiariamente por essas questões, já que foi ele que atribuiu à entidade a concessão da atividade pública. Conforme esclarece Celso Antônio Bandeira de Mello:

Ademais, para fins de responsabilidade subsidiária do Estado, incluem-se, também, as demais pessoas jurídicas de Direito Público auxiliares do Estado, bem como quais-quer outras, inclusive de Direito Privado, que, inobstante

5 Ver art. 4º, VII, “d”, da Lei nº 9.790/99.

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alheias à sua estrutura orgânica central, desempenham cometimentos estatais sob concessão ou delegação explícitas ou implícitas. (MELLO, 2007, p. 998-999)

4.2 Fiscalização pelo Tribunal de Contas da União

O controle externo da Administração, que, como determina o art. 71 da CF, fica “a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal do Contas”. A este, incumbe o exame inicial e o parecer prévio e não vinculante sobre as contas da Administração.

O controle externo pode ser exercido antes, concomitantemente, ou após a realização do ato administrativo. Na realidade brasileira, a regra é o controle “a posteriori”, e o contemporâneo, a exceção. Nossa Constituição não adota o controle prévio, pois, conforme destaca Ricardo Lobo Torres, ele “implica interferência do Legislativo e do Tribunal de Contas sobre a ação do Executivo, retarda a execução dos contratos, é perfunctório e incompleto”. (TORRES, 2008, p. 635 a 645).

No caso das entidades paraestatais, a concessão e aplicação dos benefícios fiscais e subvenções devem ser objeto de controle que irá avaliar sua eficiência, eficácia e economicidade, por meio de inspeções, auditorias e prestações de contas. A outorga do título de OS ou OSCIP confere à instituição um regime jurídico que implica em maiores restrições e amplia o âmbito de controle pelo Estado, em relação ao regime das demais entidades do Terceiro Setor.

A maneira de realização desse controle, porém, varia de acordo com o vínculo da instituição com o Poder Público, tendo em vista que esses pactos constituem o meio adotado para a transferência de recursos públicos e fornece a base para a análise de seu desempenho. Por isso, analisaremos separadamente a fiscalização das organizações sociais – regidas pelo contrato de gestão – e das OSCIPs – sujeitas ao termo de parceria.

4.2.1 Contrato de Gestão

O art. 5º da Lei nº 9.637/98 conceitua o contrato de gestão como “o instrumento firmado entre o Poder Público e a entidade qualificada como organização social, com vistas à formação de parceria entre as partes para fo-mento e execução de atividades relativas às áreas relacionadas no art. 1º”. Este contrato de gestão, firmado com as organizações sociais, difere do contrato

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previsto pela Constituição6, a partir da EC 19/98, celebrado entre Administra-ção Direta e Indireta, cuja regulamentação ainda padece da inexistência do diploma legal previsto pela CF.

Ao conceituar os contratos de gestão, Di Pietro afirma que:

O contrato de gestão é o instrumento pelo qual se con-cretiza a parceria e se estabelecem as referidas metas, formas de incentivo e controle. Quando celebrado com entidades da administração indireta, o contrato tem por objetivo ampliar a autonomia; todavia, quando celeb-rado com organizações sociais, restringe sua autonomia; pois, embora entidades privadas, terão que sujeitar-se a exigências contidas no contrato de gestão. (DI PIETRO, 1999. p. 205)

Assim, para o cumprimento dos objetivos estabelecidos pelo con-trato de gestão previsto pela Lei 9.637/98, podem ser repassados recursos orçamentários à organização social, além de tal entidade poder contratar mediante dispensa de licitação, para atividades contempladas no contrato de gestão, conforme previsto pelo art. 24, XXIV, da Lei nº 8.666/93. Nesse sentido, destaque-se o entendimento do Ministro Relator Valmir Campelo, logo após a promulgação da Lei 9.637/98, quando, na decisão 908 de 1999, referindo-se à “Organização Social Roquette Pinto”, afirmou que7:

Não está sujeita a todos os ditames da lei de licitações e contratos, pois recebe os recursos da União medi-ante contrato de gestão, estando, portanto, consoante entendimento de caráter normativo estabelecido na Decisão nº 020/94-TCU-Plenário (Ata nº 03/94), adstrita tão-somente aos princípios básicos previstos no caput do art. 3º da Lei nº 8.666/93.

Celso Bandeira de Mello (2007, p. 231) argumenta que a isenção de

licitação nesse caso constitui uma manifesta inconstitucionalidade, posto que fere os princípios da licitação, positivado no art. 37, XXI da CF, e da isonomia

6 Ver art. 37, § 8º da CF.7 TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO, Decisão nº 908/99, Rel. Min. Valmir Campelo, j. 17/03/1999

Controle e fiscalização das entidades do terceiro setor

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(art.5º). Para o autor, outra inconstitucionalidade presente na Lei 9.637/98 é a desnecessidade de demonstração de habilitação técnica ou econômico financeira, sendo suficiente a concordância do Ministro da área de atividade correspondente ao objeto social da organização, ou do Ministro da Admi-nistração (cujas atribuições foram absorvidas pelo Ministro do Planejamento, Orçamento e Gestão).

Esse ponto, contudo, merece maiores esclarecimentos, em virtude da edição de novos diplomas que divergem quanto à utilização ou não de procedimentos licitatórios pelas OS para efetuarem seu poder de contratar. O primeiro deles, o Decreto nº 5.504/05, exige que as organizações, relativa-relativa-mente aos recursos por elas administrados oriundos de repasses da União, realizem licitação para obras, compras, serviços e alienações, enquanto prevê a obrigatoriedade do procedimento na modalidade pregão, preferencialmente de forma eletrônica.

O Decreto nº 6.170/07, por outro lado, estabelece que essas enti-dades podem realizar somente uma cotação prévia de preços, contanto que se-jam respeitados os princípios da moralidade, impessoalidade e economicidade.

Assim, podemos entender que a obrigatoriedade prevista pelo De-creto nº 5.504/05 foi parcialmente revogada pelo último diploma, tornando a licitação meramente facultativa para as Organizações Sociais, sendo imperativa apenas a realização de cotação prévia de preços no mercado.

De qualquer forma, mesmo que seja dispensável o processo lici-tatório, essas entidades não se eximem da fiscalização promovida pelo Tri-bunal de Contas. No caso do TCU, em que essa atuação é mais nítida, ela era, inicialmente, feita por meio do controle direto, exigindo a prestação de contas direta anualmente. Esse foi o entendimento adotado pela egrégia Corte em diversas disposições mais antigas do colegiado, como relatou o Min. Benjamin Zymler durante a Decisão 592/19988:

As organizações sociais sujeitam-se, também, a con-troles externos de resultados, periódicos e a posteriori, tendo por fim a verificação do cumprimento do contrato de gestão. No caso das Organizações Sociais, esse con-trole é exercido pelo órgão ou entidade supervisora da área de atuação correspondente à atividade fomentada

8 TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO, Decisão 592/98, Rel. Min. Benjamin Zymler, j. 23/05/2008.

Ana Cristina Diógenes Rêgo - Davi Costa Feitosa Alves

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[...]. Nesse contexto, o controle da legalidade deve ceder espaço ao controle teleológico ou finalístico. A aferição de resultados e, sobretudo, a satisfação do usuário serão a tônica da atividade controladora dos setores externos ao núcleo burocrático do Estado.

Esse posicionamento, porém, foi modificado a partir de 2007, pela

Corte de Contas, quando, no acórdão 1952/07, estabeleceu que as Organização Sociais devem prestar contas ao respectivo Órgão Supervisor, com os quais mantêm os contratos de gestão, e não mais diretamente ao TCU.

De fato, a aferição de resultados, a que o próprio Ministro Benjamin Zymler se referia, deve ser realizada conforme os parâmetros estabelecidos no contrato de gestão, de modo que o órgão que celebra tal pacto com essas entidades possui maiores possibilidade e oportunidade de fiscalizar seu ad-implemento. Vale destacar que o descumprimento de suas disposições pode ensejar a desqualificação da entidade como organização, por meio de processo administrativo que assegure o contraditório e a ampla defesa. 4.2.2 Termo de Parceria

Quanto ao termo de parceria, a Lei 9.790/99 o disciplina claramente em seu art. 9º, caracterizando-o como o instrumento necessário para a forma-ção do vínculo entre o Poder Público e as OSCIPs.

Conforme o entendimento do TCU, a prestação de contas relativa ao termo de parceria deverá ser apresentada, à semelhança dos convênios, ao órgão ou entidade repassadora dos recursos. As OSCIPs, portanto, são submetidas a um controle indireto, assim como as Organizações Sociais. A celebração dos termos seria apreciada quando do exame da prestação de contas anual dessas entidades repassadoras, oportunidade em que deve ser analisada a regularidade da execução desses termos.

Além disso, o TCU tem competência para instaurar tomadas de con-tas especiais sempre que se verificar irregularidades na aplicação dos recursos federais repassados. Como nos contratos de gestão, a fiscalização do Tribunal de Contas abrange também o controle finalístico dos serviços públicos e a aferição dos resultados, levando em consideração o atendimento dos inter-esses dos destinatários desses serviços, ou seja, a sociedade.

Quanto à realização de licitação, incidem sobre as OSCIPs os mesmos preceitos aplicados às OS, de modo que podemos chegar à mesma conclusão.

Controle e fiscalização das entidades do terceiro setor

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Dessa forma, será obrigatória somente a realização de cotação prévia de preços no mercado, como prevê o art.11 do Decreto 6.170/07, atendendo-se, sempre, aos princípios da impessoalidade, moralidade e economicidade.

Mister ressaltar, ainda, que o termo de parceria, diferentemente do que ocorre com as OS, oferece uma maior possibilidade de controle social, representando uma importante avanço da Lei 9.790/99 e do Decreto 3.100.

A relevância dessa inovação decorre do risco que as entidades par-aestatais representam para os cidadãos. Essas organizações passaram então a substituir a prestação do Poder Público, em vez de apenas funcionar como um acréscimo à atuação do Estado. (DI PIETRO, 2003)

Essa preocupação torna-se ainda mais evidente nos serviços pú-blicos sociais, com destaque para a saúde e educação, tendo em vista que a própria Constituição expressamente permite a sua execução pela iniciativa privada.

Por isso, a lei e o Decreto 3.100 contemplaram, também, a possibi-lidade do controle social9, permitindo o requerimento, por qualquer cidadão, da perda da qualificação de OSCIP da entidade, nos termos do art. 7º da Lei 9.970/99.

Além disso, diversos outros dispositivos também corroboram esse espírito, ao enfatizar a necessidade de publicidade das atividades financeiras e das informações referentes a tais organizações, junto ao Ministério da Justiça, permitindo seu acompanhamento por qualquer interessado.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Até a década de 1990, a intervenção do Estado na economia se dava diretamente, através da empresas estatais, que dominavam os setores de relevante interesse público. Porém, a manutenção dessas empresas torna-se muito onerosa para o Poder Público, que não consegue atender a todas as demandas da população, nem competir com os avanços tecnológicos do setor. Tem início, então, uma Reforma do Estado, visando redefinir o seu papel dentro do contexto neoliberal, por meio de privatizações ou da transferência de atribuições estatais a órgãos privados, como no caso das entidades do terceiro setor. Em vez de intervir diretamente, o Estado passa a atuar como

9 Sobre o controle social das OSCIPs, ver também os arts. 11, § 3º e 17 da Lei 9.790/99.

Ana Cristina Diógenes Rêgo - Davi Costa Feitosa Alves

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órgão regulador e fiscalizador do setor privado, que possui melhor estrutura e mais capacidade para oferecer serviços de melhor qualidade.

Contudo, algumas organizações se afastaram desse escopo, com-prometendo a credibilidade do Terceiro Setor. O modo mais eficaz de coibir esse desvio de finalidade é o controle mais rigoroso de suas entidades, a ser realizado pela própria Administração, e a fiscalização promovida pelo Tribunal de Contas, especialmente pelo TCU, que mais rapidamente procurou se ade-quar a essa realidade. Os Tribunais de Contas do Estado, com destaque para o de São Paulo, também têm procurado se adequar às orientações do TCU, apesar de muitos ainda apresentarem um controle incipiente das organizações do Terceiro Setor.

Sem esse controle, a transferência dos serviços públicos sociais para tais entidades representaria um risco muito grande para a população, corrompendo a própria razão de ser dessas organizações. Assim, a fiscalização pelos órgãos competentes e mesmo pela comunidade é indissociável da noção de Terceiro Setor e indispensável na defesa dos interesses sociais.

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Controle e fiscalização das entidades do terceiro setor

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Ana Cristina Diógenes Rêgo - Davi Costa Feitosa Alves

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CONTROL AND INSPECTION OF THE THIRD SEC-TOR ORGANIZATIONS

ABSTRACT

The third sector comprehends the private organi-zations that provide services of public interest. In the last years, we’ve watched an impressive growth of this sector, in virtue of the inefficient action of the State in the implementation of the social rights guaranteed by the Brazilian Federal Constitution and of the neoliberal context of adoption of a regulatory management. Despite they are born with the assignment of fulfilling the gaps left by the State, the spread of organizations that cover the practice of illegalities emphasizes the need of control and inspection of their performance, as a way to confer more legitimacy and reliability to them.

Keywords: Third Sector. Public Services. Control. Inspection.

Controle e fiscalização das entidades do terceiro setor

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ENTRE O MITO E A REALIDADE:A VISÃO DE KELSEN E

MALINOWSKI SOBRE O DIREITO NAS SOCIEDADES ÁGRAFAS

Roberto Fernando de Amorim JúniorAcadêmico do 8º período do

Curso de Direito da UFRN.

RESUMO

Geralmente os estudos sobre as normas jurídicas nas sociedades ágrafas são apresentados seguindo um modelo padrão, caracterizado como uma con-fusão de preceitos de toda espécie e regidos através de prescrições proibitivas e coercitivas de natureza divina ou sobrenatural, que surgem de maneira es-pontânea. Com isso, tais estudos ignoram a plurali-dade normativa originária das inúmeras formas de organização social. Diante dessa problemática, este artigo – a partir do diálogo do pensamento de Hans Kelsen e dos estudos conduzidos por Bronislaw Ma-linowski nas Ilhas Trobriands, em Nova Guiné, dois expressivos representantes das ciências humanas, do Direito e da Antropologia, respectivamente – objetiva contribuir para uma melhor compreensão do caráter plural da norma jurídica nas sociedades ágrafas e, com isso, desmitificar alguns mitos criados sobre o Direito em tais sociedades.

Palavras-chave: Sociedades ágrafas. Pluralidade normativa. Mitos.

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1 PRIMEIRAS PALAVRAS

Até hoje, a discussão acerca da existência, ou não, da norma jurídica nas sociedades primevas ainda causa inquietação. Acerca do assunto, há, em síntese, duas grandes correntes que se contrapõem na atualidade. A primeira, de concepção jusnaturalista, advoga que as normas sociais que regiam a vida das comunidades, tribos e grupos nômades dos primórdios tinham natureza jurídica. Entretanto, a concepção estatalista (ou positivista) sustenta que naquele período não havia norma jurídica por que não existia Estado.

Seja como for, percebemos que há, entre ambas as correntes, ao menos um consenso em considerar que a norma de Direito é uma norma social, pois é capaz de regulamentar a conduta da sociedade. Entrementes, como é cediço, tal característica também é comum a outras normas sociais, como, por exemplo, a norma religiosa, a moral e as regras de trato social. Todas são, portanto, normas sociais, sendo que cada uma delas tem uma essência que as diferenciam entre si.

Para muitos jusfilósofos, seja de concepção estatalista ou jusnatura-lista, o elemento de distinção fundamental entre a norma jurídica e as demais normas sociais constitui-se na possibilidade de a norma de direito coagir (através de sanções físicas ou psíquicas) os seres humanos com o desiderato de viabilizar a vida em sociedade. Fácil é entender essa distinção com o ad-vento do Estado, ente titular e monopolizador da criação e aplicação das leis, cabendo-lhe sancionar as condutas violadoras dos preceitos jurídicos. Porém, no âmbito das sociedades ágrafas – ou pré-estatais – tal distinção (entre a norma de direito e as demais normas sociais) comumentemente causa inqui-etação, isto porque, em tais sociedades, embora já houvesse normas de Direito (como assegura a corrente jusnaturalista), como elas eram criadas, aplicadas e transmitidas através de gerações, haja vista que os órgãos estatais de controle social ainda não existiam?

Pois bem, partindo desse questionamento, este estudo busca ofe-recer instrumentos para a sua elucidação com amparo na leitura das obras de Kelsen e Malinowski, que, vivendo na mesma época histórica, também se preocuparam em investigar a existência, formação e características da norma jurídica nas sociedades ágrafas. Assim, com esteio nos estudos desses eminen-tes cientistas sociais, procuraremos demonstrar, ao final deste trabalho, que, diante da diversidade cultural das sociedades ágrafas, torna-se impossível deduzir o caráter da norma jurídica dos povos pré-estatais a partir de um único exemplo de organização social, pois, de outro modo, haverá o risco de cairmos

Entre o mito e a realidade: a visão de Kelsen e Malinowsksobre o direito nas sociedades ágrafas

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numa singularidade ou padronização normativa que destoará da realidade. É bem verdade que, além dos supracitados pensadores, outros es-

tudiosos há muito tempo também voltaram seus olhares para as sociedades mais remotas da superfície terrestre com o escopo de resolver tais questões. Porém, as investigações iniciais, que foram marcadas pela ausência de pes-quisas empíricas, eram conduzidas dentro de gabinetes com base em relatos de missionários, navegadores, colonizadores e viajantes. Em razão disso, os resultados dessas investigações foram prejudicados, visto que não continham credibilidade científica. Mais tarde, com a introdução da pesquisa de campo, parte desses resultados preliminares passou a ser refutado.

Conforme assevera Everardo Rocha (1996), o cientista social Broni-slaw Malinowski (1884-1942), considerado um dos fundadores da Antropologia Social, tornou-se o pioneiro na introdução do trabalho de campo nos estudos antropológicos. Esse eminente antropólogo, em uma de suas inúmeras obras, denominada Crime e Costume na Sociedade Selvagem, apresenta-nos os resul-tados de seus estudos empíricos de Antropologia Jurídica, que foram condu-zidos a partir de observações in locu do mundo de vida dos povos autóctones situados no arquipélago das Trobriands, em Nova Guiné.

Em termos gerais, os estudos de Malinowski revelaram que, mesmo sem a presença de órgãos estatais de legislação, administração e aplicação de sanções de caráter coercitivo, os aborígenes possuíam mecanismos de organização social bastante complexos, baseados notadamente (mas não exclusivamente) na reciprocidade, que, para o autor, constitui-se em um dos elementos caracterizadores do Direito em tais sociedades.

Naquela época, tais resultados contrariaram muitas publicações que discorriam sobre o processo histórico de formação da ordem jurídica nas sociedades ágrafas, pois aqueles trabalhos corriqueiramente ignoravam o pluralismo cultural arrimado no papel ativo de cada coletividade que é capaz de criar e estabelecer suas próprias normas de controle social para atender a suas necessidades específicas.

Sem embargos, ainda hoje é comum vermos a norma jurídica sob uma perspectiva geral, como se houvesse uma única forma de manifestação do Direito e esta fosse estendida indistintamente para todos os grupos sociais da superfície terrestre. Assim, o Direito das sociedades ágrafas que, na verdade, manifesta-se de maneira plúrima, é-nos apresentado de forma contrária, quer dizer, seguindo um modelo padrão, revelado como uma mistura de preceitos de toda espécie, regidos por prescrições proibitivas e coercitivas de natureza divina ou sobrenatural que surgem de maneira espontânea.

Roberto Fernando de Amorim Júnior

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Essa concepção da norma jurídica dos povos pré-estatais encontra-se latente até mesmo no pensamento de um dos maiores juristas da humani-dade, o eminente jusfilósofo positivista Hans Kelsen (1881-1943). Em uma de suas inúmeras obras, denominada Teoria Pura do Direito, podemos constatar algumas passagens que explicam a ocorrência da norma jurídica nas socie-dades ágrafas a partir de um modelo singular que, como dissemos anterior-mente, enfatiza uma concepção de norma jurídica que enaltece o seu caráter proibitivo e coercitivo, sem olvidar das intervenções divinas ou sobrenaturais.

Assim, apesar de sabermos que a questão da formação das normas jurídicas nas sociedades ágrafas é um dilema que perpassa por várias obras de diversos autores, o trabalho que ora apresentamos busca oferecer subsídios para enriquecer a discussão com supedâneo na visão de um jurista contraposta à visão de um antropólogo.

Portanto, aproveitando a contribuição de expressivos representan-tes das ciências humanas, do Direito e da Antropologia, tentaremos estabelecer um diálogo entre ambos com o objetivo de compreender a formação da norma jurídica nas sociedades ágrafas, enfatizando, ao final, o seu caráter plúrimo, e, com isso, contribuir para a desmistificação de alguns mitos criados sobre o Direito em tais sociedades, cujos estudos muitas vezes ignoram a importância das inúmeras formas de organização social para a construção da norma.

2 UMA DEFINIÇÃO DE NORMA JURÍDICA SEGUNDO KELSEN E MA-LINOWSKI

Em sua obra, Teoria Pura do Direito, Hans Kelsen afirma que o Direito constitui-se em uma ciência que tem como objeto de estudo as leis de caráter jurídico, sendo estas definidas como normas capazes de regular a conduta dos seres humanos. No entanto, ainda segundo esse influente jusfilósofo austríaco, a norma jurídica não se constitui na única norma social reguladora da conduta humana, visto que, ao lado dela, há outras, como a Moral e a Religião, por exemplo. Entrementes, essas normas sociais não possuem caráter coercitivo. A coercibilidade, para Kelsen, é atributo que distingue a norma jurídica das demais. Portanto, a ocorrência de conduta violadora dos limites prescritos pelas normas jurídicas, que causarem ameaça à sociedade, poderá ser punida fisicamente. Assim sendo,

como ordem coativa, o Direito distingue-se de outras or-dens sociais. O momento coação, isto é, a circunstância

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de que o ato estatuído pela ordem como conseqüência de uma situação de fato considerada socialmente preju-dicial deve ser executado mesmo contra a vontade da pessoa atingida e – em caso de resistência – mediante o emprego de força física, é o critério decisivo (KELSEN, 2003, p. 37).

Veja que, como “ordem coativa”, Hans Kelsen entende a força física – capaz de limitar, por exemplo, o direito à liberdade, à vida e à propriedade. Portanto, para o maior filósofo do dogmatismo jurídico, a possibilidade de punição, sinônimo de privação de direitos, constitui-se em elemento fun-damental de distinção entre o Direito e as outras normas sociais, como a Moral, a Religião e as Regras de Trato Social, pois estas últimas não se utilizam daquelas sanções de caráter físico e repressivo para garantir o cumprimento de suas normas, porém, gozam de outras espécies de sanções, como o ar-rependimento, a crítica, a rejeição, a reprovação, o remorso, o preconceito, o constrangimento, dentre outras.

Já Bronislaw Malinowski, durante seus estudos antropológicos nas Ilhas Trobriands, procurou distinguir a norma jurídica das demais normas sociais a partir do “princípio da bilateralidade”, isto é, da existência de direitos e obrigações recíprocas. Assim, considerando o conjunto das normas de con-trole social, “as regras da lei sobressaem ao resto porque são sentidas e consi-deradas obrigações de uma pessoa e justos direitos de outra” (MALINOWSKI, 2003, p. 47). Esse caráter bilateral da norma jurídica, arrimado no sentimento de reciprocidade, é elemento constitutivo da lei civil dos povos pré-estatais, conforme assevera Malinowski (2003, p. 49), senão, vejamos:

lei formal que rege todas as fases da vida tribal, consiste de um conjunto de obrigações consideradas corretas por um grupo e reconhecidas como dever pelo outro, mantida em vigor por um mecanismo determinado de reciproci-dade e publicidade inerente à estrutura da sociedade.[grifamos]

Nesse sentido, é de bom alvitre destacar que a lei civil das socie-dades ágrafas, de acordo com Bronislaw Malinowski, não prevê aplicação de punições pelas falhas, sendo que, por outro lado, é comum premiar aqueles que cumprem excessivamente as normas jurídicas. Essa sanção premial se dá após uma avaliação racional sobre a conduta prevista, sendo esta analisada

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a partir da sua relação de causa e efeito, “aliada a uma série de sentimentos sociais e pessoais, como a ambição, a vaidade, o orgulho, o desejo de aper-feiçoamento pessoal pela exibição, além de apego, amizade, dedicação e lealdade aos parentes” (MALINOWSKI, 2003, p. 49).

Não obstante, segundo nos relata Bronislaw Malinowski (2003), o membro da coletividade que intransigentemente desobedece às regras da lei em seus tratos econômicos, logo se encontra fora da ordem econômica e social, ressaltando que todos têm perfeita consciência disso.

Assim, apesar de o autor afirmar categoricamente que a lei civil nas sociedades ágrafas não prevê castigo pelo seu descumprimento, percebemos, pela leitura do parágrafo suso, que a rejeição social também era de uso comum pelos membros da coletividade, fato que demonstra, a bem da verdade, uma verdadeira forma de sanção punitiva, muito embora não tenha natureza física (que, para Kelsen, é requisito essencial de distinção da norma jurídica das outros normas sociais, como vimos alhures).

Enfim, como veremos mais adiante, as distinções entre as normas jurídicas e as demais ordem sociais que, consoante Hans Kelsen e Bronislaw Malinowski, baseiam-se na coercibilidade e na reciprocidade, serão bastante importantes para compreendermos como esses princípios influenciaram o pensamento desses renomados cientistas conquanto à compreensão da concretização do Direito nas sociedades ágrafas.

3 O SURGIMENTO E A TRANSMISSÃO DO DIREITO

Como vimos, para os jusfilósofos naturalistas, o Direito, compreen-dido como sinônimo de ordem social, subsiste na vida humana desde as sociedades ágrafas, em todas elas contribuindo para a manutenção da ordem, da uniformidade e da coesão entre seus membros, garantindo, de maneira eficiente, uma relação “harmônica” entre eles. Assim, partindo dessa concep-ção jusnaturalista, pergunta-se: como era possível todos os membros das sociedades ágrafas perpetuarem as normas de controle social (e, em especial, as de natureza jurídica) se, naquela época, os seres humanos ainda não pos-suíam o domínio sobre a técnica da escrita, capaz de transmitir às gerações descendentes o conhecimento desses padrões comportamentais?

Em termos mais breves, como o Direito surgia, transmitia-se e se conservava, porquanto ainda não havia a lei escrita?

Antes de tudo é importante ressaltarmos, com supedâneo nos

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estudos de Bronislaw Malinowski, que o conjunto de normas jurídicas das sociedades ágrafas não surge de maneira irracional, como se a sua criação e conservação resultassem de uma forma espontânea, sem qualquer função ou vínculo com o modo de vida dessas sociedades, nas quais é reconhecido como legítimo e adequado aos valores praticados por seus membros. Assim, as normas de Direito

era ou é determinado inteiramente pelas necessidades básicas da vida. Se se souber que um povo, seja qual for, é determinado pelas necessidades mais simples da vida – encontrar subsistências, satisfazer as pulsões sexuais e assim por diante –, então está-se apto a explicar as suas instituições sociais, as suas crenças, a sua mitologia e todo o resto. (LÉVY-STRAUSS, 1978, p 18).

Nesse diapasão, compreendemos que a conservação das normas de Direito nas sociedades ágrafas devesse ocorrer a partir das práticas co-tidianas comuns à tribo, isto é, do costume, tendo em vista que, de acordo com Bronislaw Malinowski (2003, p. 9-10), “a lei e a ordem permeiam os usos tribais das raças primitivas, regem o curso monótono da existência cotidiana e também os atos mais importantes e veneráveis”. Por conseguinte, essas nor-mas de natureza jurídica, que comumentemente são denominadas de Direito consuetudinário, juntamente com as outras normas de controle social e os demais usos e hábitos das sociedades ágrafas, eram transmitidas de geração para geração através da oralidade ou da tradição.

Porém, esse Direito de origem consuetudinária não deve ser con-fundido como uma mistura irremediável de preceitos morais, rituais agrícolas, religiosos, entre outros, segundo a concepção geral, haja vista que, conforme assevera Bronislaw Malinowski, embora exista nas sociedades ágrafas um conjunto vasto de normas tradicionais que exercem importantes funções sociais, os membros da coletividade sabem distinguir bem a lei civil “de todos os outros tipos de normas, sejam morais, sejam de conduta, regras das artes ou mandamentos religiosos” (MALINOWSKI, 2003, p. 60).

Pois bem, nas sociedades ágrafas o Direito surge através de uma construção intelectual elaborada a partir dos modos de vida de tais sociedades, contribuindo para a satisfação das necessidades de seus membros, sejam elas físicas, emocionais ou sociais. No entanto, muito embora as normas jurídicas das sociedades ágrafas não fossem fixadas em um ordenamento jurídico

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positivado, elas não devem ser confundidas como um conjunto de regras de toda espécie de origem consuetudinária, tendo em vista que os membros pertencentes a essas sociedades são capazes de distinguir as normas de Direito das demais, como sublinha Malinowski.

4 A OBRIGATORIEDADE DA NORMA JURÍDICA

Como já expomos suso, Hans Kelsen utilizava-se do elemento “co-ercibilidade” para distinguir a norma jurídica das demais normas sociais. Da mesma forma, ao tratar das características da norma de Direito nas sociedades ágrafas, o mestre austríaco também faz referência ao elemento punitivo, acrescentando apenas que tais normas estavam “contaminadas” por preceitos míticos e religiosos, cuja transgressão, portanto, resultaria em punição através de castigos sobrenaturais, que, na verdade, consistiam em manifestações do sentimento de reprovação das almas ou seres supra-humanos sobre a conduta transgressora.

Deveras, para Kelsen, as leis não escritas de uso consuetudinário constituem-se em um sistema híbrido formado por tabus e crenças, sendo obedecidas em virtude do “medo dos graves malefícios com os quais a instân-cia supra-humana – as almas dos mortos – reage contra a ofensa da ordem tradicional” (KELSEN, 2003, p. 32).

Porém, Bronislaw Malinowski critica essa concepção do Direito das sociedades ágrafas adotada por Hans Kelsen, segundo a qual, diferentes grupos das sociedades ágrafas obedeciam às normas de conduta de maneira espontânea, servil e involuntária “por ‘inércia mental’, associada ao temor da opinião pública ou de castigo sobrenatural” (MALINOWSKI, 2003, p. 15). Aliás, tal concepção por muitos anos se difundiu entre os antropólogos e demais es-tudiosos sobre o tema, denominada por Malinowski de concepção de “dogma da submissão automática”.

Contudo, esse influente antropólogo acredita que o “dogma da submissão automática” resultou de uma adaptação infeliz do princípio da coercibilidade da lei às sociedades ágrafas. Para ele, tal adaptação pode ser atribuída ao fato de estarmos habituados aos atuais mecanismos da lei, que não prescindem das diversas autoridades de fiscalização, da polícia, da promotoria pública e dos tribunais, todos eles agindo de maneira coercitiva. Vivendo essa realidade, procuramos algo análogo nas sociedades ágrafas; porém, por não entendermos a sua complexa organização societária, deduzimos que a norma

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de caráter jurídico é obedecida em virtude de imposições sobrenaturais. Malinowski, divergindo de Hans Kelsen, entende que as forças que

asseguram a adesão à lei “primitiva” e a tornam obrigatória e legal não são impostas por nenhum motivo indiscriminado, como o medo da punição ou a submissão geral a todas as tradições, mas por incentivos psicológicos e sociais muito complexos” (MALINOWSKI, 2003, p. 18). Nesse pórtico, insta destacar que o nativo de Trobriand

é guiado primariamente não pelo desejo de satisfazer suas necessidades vitais, mas sim um complexo de sistema de deveres e obrigações, de forças tradicio-nais, de crenças mágicas, ambições sociais e vaidade. Enquanto homem, ele deseja alcançar prestígio social como um bom lavrador e, de maneira geral, como um bom trabalhador (MALINOWSKI, 1984, p. 57).

Desse modo, Malinowski, não obstante saiba que subsiste uma vasta série de elementos sociais e psicológicos responsáveis por vincular os membros da coletividade às disposições da lei, afirmará que a “reciprocidade” é o elemento que distinguirá a norma jurídica das demais, constituindo, desse modo, na principal arma capaz de tornar possível a obrigação dos deveres e a reivindicação dos direitos de cada grupo social perante os demais.

Todavia, os interesses pessoais e os sentimentos sociais também contribuem, vez que se configuram em fatores adicionais que possibilitam a manutenção das tarefas mútuas, concorrendo para que o cumprimento das normas jurídicas não ocorra de maneira rígida e integral. A bem da verdade, essas normas apresentam-se bastante ajustáveis, porquanto abrem opor-tunidade para a possibilidade de obedecê-las, ou não, devendo ser ressaltado, como vimos antes, que, nos casos de desobediência, a rejeição social atua como instrumento de sanção coercitiva, excluindo o indivíduo das relações sócio-econômicas da comunidade.

No entanto, ainda que Bronislaw Malinowski não tenha se rendido a esse caráter coercitivo da lei civil, não há como negar a sua existência, pois esta é extraída de seus próprios estudos empíricos. Por outro lado, frise-se que o cumprimento em excesso desse tipo de lei (civil) gera aplicação de sanções premiais. Ora, esse tipo de sanção (premial) destoa do padrão normativo que geralmente se atribui às sociedades ágrafas, cuja sanção só possui caráter punitivo (conforme facilmente se observa dos manuais de introdução ao

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direito, inclusive na obra de Kelsen, utilizada neste trabalho como referência).Portanto, o indivíduo honrado, membro da sociedade ágrafa, “deve

cumprir seus deveres, mas a submissão não se deve a nenhum instinto, impulso intuitivo ou misterioso ‘sentimento de grupo’, mas ao complexo funcionamento detalhado de um sistema, em que cada ato tem seu próprio lugar e deve ser realizado sem falha” (MALINOWSKI, 2003, p. 18). É assim que, para Malinowski (2003, p. 30), a natureza das forças mentais e sociais “transforma certas regras de conduta em leis compulsórias”.

5 SANÇÕES SOBRENATURAIS E SOCIALMENTE IMANENTES

Na época das sociedades ágrafas, o ser humano, diante das incle-mências da natureza, procurava compreender seus fenômenos naturais a partir de explicações ilusórias. O aparecimento de trovões e relâmpagos, bem como o surgimento do fogo e da chuva, por exemplo, constituíam-se em fenômenos naturais de difícil compreensão. Nesse sentido, sem a possibilidade de uma explicação científica da realidade, as sociedades ágrafas interpretavam os acon-tecimentos naturais que diretamente afetavam os seus interesses utilizando o princípio da retribuição, isto é, “os que lhe são benéficos, interpreta-os como recompensa, e os que lhe são desfavoráveis como castigo, pela observância ou não-observância, respectivamente, da ordem social estabelecida” (KELSEN, 2003, p. 32).

Portanto, como podemos ver, essa interpretação social da natureza faz com que esta se revele como uma ordem social normativa estatuidora de sanções sobrenaturais, premiando ou castigando as condutas humanas. Em decorrência disso, os resultados satisfatórios ou insatisfatórios do trabalho social empregado sobre o meio refletiam, consoante Kelsen (2003, p. 32), o estado de ânimo das

almas dos mortos que, de acordo com as representações religiosas do homem primitivo, recompensam a conduta socialmente boa com o sucesso na caça, boas colheitas, vitória no combate, saúde, fertilidade, longa vida; e cas-tigam a conduta socialmente má com os fatos opostos, especialmente com a doença e a morte.

No entanto, para Malinowski, essa intervenção sobrenatural sobre

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a realidade não estava totalmente entregue à vontade única das almas, que agiam com fulcro no princípio da retribuição ao aplicar as sanções sobre-naturais, seja de caráter premial ou coercitivo, como acreditava Hans Kelsen, consoante transcrito supra.

Na verdade, conforme revelou as observações de campo realizadas por Malinowski, a “intervenção sobrenatural” sobre a vida dos povos das socie-dades ágrafas ocorria mediante provocações da própria coletividade através da magia executada pelo feiticeiro da comunidade e celebrada em nome de todo o grupo, como é o caso da “magia das plantações, da pescaria, da guerra, do tempo e da construção das canoas. Como se nota, conforme as necessidades, na estação própria ou sob certas circunstâncias” (MALINOWSKI, 2003, p. 39), o feiticeiro realizava sua mágica para conservar os tabus e também, às vezes, para controlar todo o empreendimento.

Mesmo sem rejeitar a existência dessas sanções sobrenaturais, Ma-linowski afirma que, no âmbito das normas de Direito, somente as leis penais gozam, nas sociedades ágrafas, desse tipo de sanção. Portanto, no âmbito da esfera jurídica, somente as normas de caráter penal eram aplicadas com arrimo nas sanções sobrenaturais. As leis civis, por sua vez, não possuíam sanções coercitivas, segundo entendimento de Malinowski, tampouco sanções de natureza sobrenatural.

Insta vincar que as sanções de caráter sobrenatural não eram um fenômeno tão comum no âmbito das sociedades ágrafas, sendo elas aplica-das, mormente, contra condutas violadoras de normas protetoras da coesão social, reservando-se ao feiticeiro da tribo a competência para a sua aplicação, como é o caso, por exemplo, da lei da exogamia, cuja violação era considerada pelos membros da tribo como um crime bastante grave. Assim, os nativos acreditam que o aparecimento de úlceras, moléstias e até mesmo a morte estão relacionadas à aplicação de sanções sobrenaturais contra os violadores dessa espécie de lei (penal).

Já as sanções socialmente imanentes, aplicadas sobre delitos de ordem penal, somente eram cabíveis quando o culpado assumisse publica-mente a prática do crime. O castigo – quando caracterizado como uma espécie de sanção socialmente imanente (isto é, quando prescindia da vontade das almas) – vinha na forma de suicídio, representando não somente uma forma de autopunição, mas também de reabilitação. Nesse sentido, esclarece-nos o antropólogo Bronislaw Malinowski (2003, p. 76), in litteris:

a pessoa publicamente acusada admite a culpa, assume

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todas as conseqüências, castiga o próprio corpo, mas ao mesmo tempo declara ter sido aviltada, apela aos sentimentos dos que a levaram a esse extremo – se são amigos ou parentes – e, se são inimigos, apela para a solidariedade de seus parentes, pedindo que levem a cabo a vingança.

No entanto, interessante notar que, caso o violador da lei de exo-gamia não assumisse publicamente a prática do delito, a comunidade, mesmo sendo conhecedora dos fatos, não se esforçava para exigir qualquer espécie de castigo. Contudo, apesar dessa inércia social, cabia ao feiticeiro elaborar ma-gias contra aqueles que violavam a lei de exogamia – ressalte-se, considerada como um crime de grave natureza –, trazendo-lhes conseqüências patológicas capazes obstaculizar condutas reiteradas dentro da tribo.

Com supedâneo no sobredito, importante reconhecer que essas sanções sobrenaturais, utilizadas como recursos coercitivos por meio do uso da magia negra, muito embora não viessem a surtir efeito automático contra o violador da norma, funcionavam como autêntica força legal, pois, frise-se, eram usualmente utilizados para obrigar o cumprimento das regras da lei tribal, restabelecendo o equilíbrio social. Ademais, além de caráter sancionador, a feitiçaria tinha um escopo investigativo, isto porque também se constituía numa forma de investigação acerca dos motivos que ocasionaram a morte de alguém por bruxaria, isto é, por outro feitiço.

Em que pese tais considerações, Bronislaw Malinowski (2003, p. 74) alerta: “a feitiçaria não é um método exclusivo de administrar a justiça nem uma prática criminosa. Ela pode ser usada dessas duas maneiras”. Em outras palavras, a feitiçaria podia ser empregada como um instrumento de coerção legal, mas também em oposição direta à lei. Todavia, a consideramos, princi-palmente, como um instrumento de manutenção do status quo, isto é, como uma forma de conservar a velha ordem social, isto porque somente ao chefe estava facultada a possibilidade de empregar a feitiçaria contra aqueles que ameaçavam os seus privilégios ou a tradição da comunidade.

Por fim, no tocante às sanções socialmente imanentes, Hans Kelsen lembra que a vingança de sangue é a mais antiga dessas sanções. Segundo o mestre austríaco, tal sanção é normalmente aplicada quando uma família reage contra o homicídio perpetrado através de uma forma natural ou mágica por um membro pertencente a uma outra família. De acordo com o saudoso jus-positivista, era assim (através da autotutela) que diferentes famílias resolviam

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seus conflitos, já que inexistia um órgão central capaz de punir os crimes de homicídio. Portanto, um homicídio praticado por um membro de uma outra família “somente pode ser vingado pela ação dos parentes da vítima. Apenas o não-cumprimento do dever de vingança fica sob a sanção transcendente da vingança por parte da alma do assassinado” (KELSEN, 2003, p. 31).

Já com relação ao homicídio praticado por um membro de uma mesma família, a punição deveria, originariamente, consoante Hans Kelsen (2003, p. 31), ser sancionada “apenas através da sanção transcendente da vingança da alma da vítima”, visto que as almas dos mortos têm poder sobre os membros da sua própria família.

6 ANÁLISE CRÍTICA

Diante do diálogo até aqui exposto, compreendemos que a concep-ção de Hans Kelsen sobre a norma jurídica nas sociedades ágrafas sofre uma influência muito forte do princípio da coercibilidade da lei, manifestada, por exemplo, através dos preceitos proibitivos (tabus) e dos castigos divinos ou sobrenaturais. Já a concepção de Bronislaw Malinowski encontra-se bastante influenciada pelo princípio da reciprocidade, o que torna o cumprimento da norma jurídica menos rígido. Porém, diante da enorme pluralidade cultural produzida pelas sociedades ágrafas, não há como pensar o Direito consuetu-dinário somente a partir dessas duas concepções.

Mesmo assim, a temática estudada a partir do diálogo realizado en-tre esses dois expressivos pensadores, apesar de limitada quanto à bibliografia utilizada, revela-se bastante profícua haja vista que contribui para derrubar as amarras ideológicas que insistem em nos apresentar a formação da norma jurídica de maneira singular, isto é, ignorando que inúmeras coletividades ainda vivem sobre a superfície terrestre de maneira quase isolada, criando e estabelecendo as normas de controle social de forma exclusiva e plural.

Nesse contexto, não é correto afirmar que o Direito consuetudinário surge de maneira espontânea, haja vista que, conforme os estudos empíricos de Malinowski nos revela, a sua criação está intimamente relacionada às necessidades específicas de cada coletividade, fato que reforçaria a tese do pluralismo da norma.

Também não podemos generalizar a afirmação de que a obrigato-riedade do Direito consuetudinário resulte de um temor aos castigos sobrena-

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turais ou supra-humanos, haja vista que os estudos empíricos conduzidos por Malinowski revelam que somente a norma de Direito Penal goza de sanções de natureza sobrenatural. Já as normas de caráter civil, frise-se, são obedeci-das por fatores psicológicos e sociais de grande complexidade, permitindo, outrossim, a aplicação de sanções notadamente premiais.

Ademais, a ordem jurídica é descentralizada, ou seja, a aplicação de sanções (premiais ou coercitivas) de natureza jurídica não advém de um órgão central, como ocorre no Direito positivo (que emerge com o Estado). Por isso, a reciprocidade – manifestada através do cumprimento dos direitos e deveres mútuos entre os membros das tribos – constitui-se em elemento fundamental para garantir o respeito às normas de natureza jurídica nas so-ciedades ágrafas (ressalvando as normas de caráter penal, que se utilizam de sanções sobrenaturais aplicadas pelo feiticeiro, como forma de expurgar as condutas ameaçadoras da coesão do grupo).

Da mesma forma, não há como singularizar a concepção defendida por Hans Kelsen, segundo a qual a essência do Direito consuetudinário reside numa série de tabus, que consiste num conjunto de proibições sob a ameaça de castigos sobrenaturais. Como diz Malinowski, isso tudo gera, na verdade, uma verdadeira “atmosfera do terror”. Para ele, portanto, o Direito consuetudinário não é rígido, restritivo e punitivo, nem está resumido à aplicação de leis penais. As leis civis, como já visto, permeiam todos os modos de vida das sociedades ágrafas, e são mais comuns no cotidiano dessas sociedades do que a lei penal. O cumprimento excessivo da lei civil gera aplicação de sanções premiais e, mesmo sendo bastante ajustável, a possibilidade de desobedecê-la é remota. No entanto, caso ocorra alguma violação, o membro da comunidade sofre uma espécie de rejeição social, sendo excluído das relações sociais e econômicas.

Em síntese, percebemos que as leis jurídicas nas sociedades pré-estatais não se resumem àquelas de natureza essencialmente penal (como geralmente se vê nos manuais). As sanções porventura aplicadas também têm natureza premial, fugindo da idéia essencialmente punitiva da norma. Ademais, a lei civil, comumentemente encontrada no âmbito de tais sociedades, baseia-se num sentimento de reciprocidade e de interesse próprio, destoando do caráter essencialmente sancionador, elemento que, para muitos jusfilósofos, diferencia a norma jurídica das demais normas sociais.

Diante do exposto, vemos que a tarefa de constituição da norma jurídica nas sociedades ágrafas (ainda que limitada ao pensamento de dois grandes pensadores) demonstrou-se bastante árdua, pois, com a revelação da

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pluralidade cultural, compreendemos que não podemos falar em uma “norma”, mas várias “normas” jurídicas que são criadas a partir das necessidades específi-cas das diversas formas de organização social existentes na superfície terrestre.

Por derradeiro, embora estejamos convictos da insuficiência deste trabalho para oferecer respostas definitivas acerca da problemática que nos motivou, sabemos que nossa contribuição servirá para não nos deixarmos contaminar pelos padrões, dogmas ou reducionismos facilmente encontrados nas obras jurídicas atuais, que desconsideram o caráter pluralista do direito nas sociedades pré-estatais, mutilando a realidade, bem como impedindo-nos que enxerguemos e aceitemos o diferente. Assim, ao desmistificar tais mitos, acreditamos que cumprimos, em boa medida, nosso mister.

REFERÊNCIAS

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6ª ed. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

LEVY-STRAUSS, Claude. Mito e significado. Lisboa: Edições 70, 1978.

MALINOWSKI, Bronislaw. Crime e costume na sociedade selvagem. Tradução de Maria Clara Corrêa Dias. Brasília: Editora Universidade de Brasília; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2003.

______. Argonautas do pacífico ocidental: um relato do empreendimento e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Guiné Melanésia. Coleção Os Pensadores. 3ª Ed. São Paulo: Abril Cultural, 1984.

ROCHA, Everardo. O que é mito? São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.

BETWEEN MYTHS AND REALITY: A VIEW OF

Roberto Fernando de Amorim Júnior

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KELSEN AND MALINOWSKI ON THE LAW ON SOCIETIES WITHOUT WRITTEN

ABSTRACT

Usually the studies on the laws in societies without written are presented following a standard model, characterized as a confusion of precepts of all kinds and governed by the requirements prohibitive and coercive nature of divine or supernatural, that appear so spontaneous. With this, these studies ignore the plurality legislation originates from many forms of social organization. Faced with this problem, this article - from the confrontation of the thought of Hans Kelsen and studies conducted by Bronisław Malinowski Trobriands Islands in New Guinea, two significant representatives of the humanities, law and anthropology, respectively - aims to contribute to a better understanding of the pluralistic nature of the legal norm in societ-ies without written and unmythicize some myths about the law in such societies.

Keywords: Societies without written. Plurality. Legislation. Myths.

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ÉTICA DO ACADÊMICO DE DIREITO: CRISE NA UFRN

Thaissa Lauar LeiteAcadêmica do 8º período do

Curso de Direito da UFRN.Monitora de Direito Processual

do Trabalho

RESUMO

O presente estudo tem o escopo de refletir sobre a crise ética pela qual passa o acadêmico de direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), reunir os fatores que corroboram para este aconte-cimento, e, por conseguinte, propor possibilidades para superá-la. Dessa forma, pretende-se despertar no bacharelando em direito os valores morais e éticos sobremaneira relegados quando do estudo das disciplinas propedêuticas da grade curricular do curso e fazê-lo conscientizar-se de sua função enquanto estudante. Inobstante, pretende-se incitar a UFRN a assumir sua quota de responsabilidade e exercer seu encargo de não apenas formar centenas de bacharéis em direito anualmente, mas, também, educá-los para a vida profissional. Para consecução dos fins propostos, se utilizará, especialmente, das doutrinas da introdução ao estudo do direito e da ética geral e jurídica, sem olvidar do exame do acervo jurisprudencial pertinente.

Palavras-chave: Ética. Acadêmico de direito. Univer-sidade Federal do Rio Grande do Norte.

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1 INTRÓITO

Tem-se percebido que boa parte dos estudantes se comove com os diversos tipos de escândalos cotidianamente ventilados pelos muitos veículos midiáticos. Quando há um crime brutal nas principais manchetes, questiona-se a moral do suposto delinqüente, às vezes até condenando-o, de pronto. Aquele passa a ser o tema central, verbi gratia, de todas as posteriores aulas de direito penal e processual penal.

No caso de desvio político, imediatamente se falará de inexistência de ética na política, e o mandatário da vez logo será execrado em todas as me-sas de discussão onde se tenha um estudante de direito, ao menos, inserido. E o que falar, então, das notícias acerca de venda de sentenças por alguns magistrados em todo o país? O assunto não poderia ser mais polêmico no seio do curso da UFRN que mais deveria lutar por justiça e equidade.

Nada obstante, a maioria dos estudantes de direito se mostra inca-paz de vislumbrar a própria falta de ética ou, mesmo percebendo-a, acredita ser esta incomparável aos exemplos supra elencados. Em verdade, como se procurará demonstrar, a falta de ética do estudante de direito está em patamar no mínimo próximo de todos os exemplos mencionados alhures.

Como ela se manifesta? Quem e o quê concorre para que isto aconteça? Quais as suas conseqüências? De que forma se poderá superar esta crise? Buscar-se-á, no decorrer deste trabalho, algumas respostas possíveis a estas indagações.

2 NOTAS PERFUNCTÓRIAS SOBRE ÉTICA E MORAL

Distinguir os conceitos de ética e moral se mostra tarefa sempre árdua, dada a sutileza dessa diferenciação, que faz que muitos doutrinadores a tenham como sinônimos, para fins didáticos1. No entanto, neste estudo, utilizar-se-á o conceito de José Renato Nalini (2004, p. 26), que realiza, de maneira simplificada, esta dissociação:

1Nessa linha, ACQUAVIVA, Marcus Cláudio. Notas introdutórias à ética jurídica. LTr: São Paulo, 2007: “Assim, a Ética ou Moral não é mero estudo descritivo dos costumes de uma sociedade, mas estabelece juízos de valor sobre o que torna bom este ou aquele proceder social.”

Ética do acadêmico de direito: crise na UFRN

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A mera conceituação de ética resulta em concluir não se confundir ela com a moral, pese embora aparente identidade etimológica no significado. Ethos, em grego, e mos, em latim, querem dizer costume. Nesse sentido, a ética seria uma teoria dos costumes. Ou melhor, a ética é a ciência dos costumes. Já a moral não é ciência, senão objeto da ciência. (grifos no original)

Complementa, o autor supracitado, que o objeto da ética é a morali-dade positiva, e, citando Eduardo García Máynez, esta seria “o conjunto de re-gras de comportamento e formas de vida através das quais tende o homem a realizar o valor do bem” (2004, p. 25)2. Não é demais lembrar, contudo, que o conceito de bem sofre influências de fatores históricos, religiosos e culturais, por exemplo, responsáveis por imprimir, em cada sociedade, as noções e valores característicos do bem e da justiça relativos a ela.

A moral, por sua vez, deriva da expressão romana mores, referente a costumes3, e, como objeto da ética, deve ser perseguida em sua faceta positiva, com valorização e difusão dos hábitos virtuosos que levem ao bem não só individual, mas também coletivo.

Sobre a importância do exercício do bem para o aprimoramento da virtude moral, afirma Adauto Novaes (1992, p. 9):

A virtude tem, portanto, por origem o exercício prático, a ação; e é a ação que dá sentido político à moral. O Bem é ato próprio de cada ser, e a felicidade está em fazer, em se construir uma ciência dos valores da ação, como disse Valéry4, e não na potencialidade.

A partir daqui, já se pode construir a intelecção de que a ética, na medida em que se pauta na moral, visa a imprimir na sociedade os valores e princípios que devem norteá-la, apontando para as normas de conduta

2 Com Emerson Barros de Aguiar (2003, p. 69): “Na verdade, os códigos, roteiros ou diretrizes de ação moral são apenas expressões de algo que deve estar presente, antes, na consciência humana. Quando os receituários éticos não possuem essa referência interna, eles se degeneram em mera papelada burocrática”.3 Assim como ethos, do latim, também significa costume. Essa terminologia contribui para a co-mumente similitude entre os conceitos de ética e moral.4 Aqui, Adauto Novaes refere-se a Paul Valéry, filósofo francês.

Thaissa Lauar Leite

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impostas pela probidade e pelos bons costumes.Por conseguinte, aquelas atitudes não pautadas nos valores con-

signados numa determinada sociedade serão tidas como imorais, dado o desvirtuamento de conduta em desatenção à ética. Destarte, tenderão a ser repelidas pelo corpo social.

Deve-se ressaltar, desta forma, que a escolha de cada indivíduo em seguir a moralidade positiva ou aventurar-se em caminhos de virtuosidade diversos será responsável por definir os rumos de sua vida. Afinal, “o mundo será sempre o espelho da escolha moral que cada um faz” (Aguiar, 2003, p. 69).

O curso de Direito da UFRN, conseqüentemente, será o reflexo das escolhas morais de seu corpo discente, docente e técnico-administrativo.

3 DE QUE FORMA A CRISE SE MANIFESTA?

A crise hodierna da ética do estudante de direito da UFRN se mostra sob alguns aspectos específicos.

A priori, vem se empregando, com freqüência cotidiana, a máxima maquiavélica os fins justificam os meios no âmbito do curso de direito. Para a consecução de seus mais variados objetivos, muitos acadêmicos utilizam-se de qualquer instrumento disponível, mesmo sendo ele moralmente inacei-tável. Nessa senda, tentar ludibriar o professor, desrespeitá-lo e fraudar seus procedimentos avaliativos são práticas corriqueiras. O que mais assusta, nos dias de hoje, é utilização assídua de meios ardilosos para tais fins.

No que tange ao desrespeito ao professor, tornou-se comum ver alunos lidando com aqueles como se fossem colegas de turma, sem o respeito que está intrínseco, e deve ser mútuo, à relação professor-aluno. Assim, mi-nistrar aulas, por vezes, tem sido um desafio para os docentes, que precisam driblar as intempéries comportamentais do alunado.

Imagine-se, de outra ponta, as situações pelas quais passam os monitores voluntários quando, no exercício de seu papel de auxiliar docente, não conseguem o respeito e a atenção de seus pares, colegas e amigos. Sub-estimá-los figura como prática trivial especialmente quando estes, enquanto monitores, aplicam avaliações nas turmas monitoradas e/ou ministram aulas esporádicas.

Outro exemplo, também oportuno, é a prática comum de desres-peito às filas, sejam as das salas de fotocópia, sejam as de vendas de ingressos para eventos da própria UFRN, tais como os de lançamento da Revista Jurídica

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In Verbis5 e do Seminário de Pesquisa do Centro de Ciências Sociais Aplicadas6.O que falar, então, das fraudes aos procedimentos avaliativos (a

popular cola)? Estas fraudes, para a vergonha do curso de Direito da UFRN, têm ganhado feições preocupantes.

Muitos alunos se utilizam de meios ardis para ludibriar o professor. Hodiernamente, a cola é planejada e organizada com antecedência, inclusive com previsão de um plano para sua implementação. Utilização de telefones celulares, consultas a materiais não autorizados pelo professor, fotocópias destes para consulta no momento da prova e anotações indevidas nos có-digos são apenas alguns dos meios declaradamente utilizados pelo alunado nos dias de hoje.

Declaradamente, enfatize-se, porque a presença do professor em sala de aula se mostra incapaz de desencorajá-los.

Impende acentuar, ainda, que a concessão de benesses pelo do-cente, tais como a realização de avaliações com consulta à doutrina, à legisla-ção ou em grupos de alunos, não se mostra suficiente para coibir as fraudes em comento.

Infelizmente, mesmo alunos destaques das turmas, mesmo os dedi-cados às disciplinas e que, efetivamente, estudam para as avaliações periódicas, se rendem à utilização destes meios fraudulentos. Insegurança? (Má) influên-cia? Oportunismo? Por vezes, estas são algumas das justificativas envidadas. O que está por trás disso, no entanto, é um desvirtuamento de valores morais.

Por fim, outra manifestação da crise ética pode ser percebida na pro-fanação dos símbolos do direito. Este se mostra, culturalmente, marcado pelo decoro, pela educação, pelo recato do trajar e pela serenidade. Não por outro motivo, clientes esperam dos profissionais de direito procurados exatamente os caracteres descritos supra. No entanto, comumente se vê nas salas de aula

5 “Publicação científica semestral (ISSN 1413 – 2605), sem fins lucrativos, realizada pelos acadê-micos do Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN”. Informação colhida do sítio eletrônico da Revista. Disponível em: www.inverbis.com.br. Acesso em 28 de setembro de 2010.6 Evento anual organizado pelo Centro de Ciências Sociais Aplicadas (CCSA) com o escopo de “tornar acessível à comunidade universitária a produção científica existente no CCSA por meio da divulgação dos trabalhos apresentados; estimular a comunidade acadêmica do CCSA para a prática da pesquisa; contribuir para o desenvolvimento da pesquisa e da reflexão teórico-me-todológica no campo das Ciências Sociais Aplicadas; abrir espaço para interlocução com outras áreas do conhecimento”. Informações oriundas do sítio <http://ccsa.ufrn.br/seminario2010/>. Acesso em 24 de outubro de 2010.

Thaissa Lauar Leite

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da UFRN comportamentos indecorosos e afastados da simbologia do direito. Consoante se vê, a UFRN não vem logrando êxito na construção de

uma base minimamente ética de seu alunado.

4 QUEM E O QUÊ CONCORREM PARA A CRISE?

Não se mostra possível individualizar um único fator responsável pela atual crise da ética do acadêmico de direito da UFRN. Enumeram-se, abaixo, alguns dos vetores identificados como possíveis concorrentes para este momento crítico.

4.1 A falta de maturidade do alunado

Não se pode exigir, do estudante recém chegado à faculdade, maturidade suficiente para o despertar espontâneo de sua consciência para a importância e a necessidade de imprimir a ética em sua vida. Muitos, nesta fase inicial, ainda não se acham perfeitamente seguros da opção feita pelo curso, visto que podem tê-la realizado em condições insuficientes de aferir, tão jovens, o destino profissional a ser perseguido.

Assim, o direito que os circunda a todo instante na sala de aula ainda pode não ter conseguido penetrá-los em seu âmago e apaixoná-los a ponto de fazê-los compreender de pronto que seu dever social com a justiça envolve, indubitavelmente, a passagem pela ética. Com este fator correlaciona-se, de imediato, o seguinte.

4.2 A inabilidade de alguns professores

A brusca ruptura da vida escolar para o universo do ensino superior requer um acompanhamento docente capaz de tornar esta transição menos traumática e mais eficaz no que tange ao aprendizado. Destarte, não basta qualidade de formação e conhecimento ao docente das disciplinas iniciais da grade curricular do curso de direito. Mostra-se imprescindível que o mestre e educador seja capaz de transmitir seu conhecimento de uma forma inteligível para o nível da turma pela qual esteja responsável.

Outrossim, nesta etapa especialmente, o professor deve exercer, fun-damentalmente, seu papel de educador, visto estar diante de um momento de construção dos valores norteadores de toda a vida acadêmica e profissional da classe discente. Análises críticas e provocações intelectuais são fundamentais,

Ética do acadêmico de direito: crise na UFRN

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mas, por vezes, esquecidas.Dessa forma, será insuficiente e ineficaz para a impressão dos valores

morais o simples despejo de conhecimentos sobre os alunos, com conseqüente prejuízo para sua formação ética.

4.3 Pouco comprometimento de parte do corpo docente

O exercício do magistério requer compromisso. Este, por sua vez, decorre da vocação. O professor não vocacionado certamente não terá prazer e realização em seu labor, de forma que a responsabilidade com a educação e o ensino dos seus alunos será sobremaneira penalizada.

Ainda se observam, nos quadros na UFRN, professores não voca-cionados ao ensino na graduação e unicamente interessados no status social e profissional trazido pelo exercício do magistério em uma universidade de renome.

Logo, o conteúdo das disciplinas é dado de qualquer forma, as avaliações são feitas seguindo a mesma sistemática e suas correções são, igualmente, carentes de responsabilidade. A conseqüência disso será vista no ponto subseqüente.

4.4 Ineficácia/inexistência de desestímulo às condutas antiéticas do aluno

O professor pouco compromissado com seu mister não se preocupa com o resultado do ensino repassado ao aluno. A educação deste, então, deixa de ser objetivo abraçado por este profissional.

Como exemplo, cite-se o mestre que não repreende o aluno em meio a fraudes às suas avaliações, permitindo o desenvolvimento perpétuo da prática de colas, bem como o docente que não coíbe o plágio nos tra-balhos acadêmicos e deixa de incentivar o estabelecimento de um ambiente respeitoso em sala de aula. O que falar, então, do docente que sequer lê o que o aluno escreve nas atividades solicitadas?

Por vezes, esta coibição às condutas antiéticas do alunado inexiste. No entanto, ainda quando o mestre se esforça para fazê-la, mostra-se possível que não logre êxito.

Por êxito deve-se compreender a real coibição à prática em desacor-do com a moralidade e a concomitante transmissão de mensagem educativa ao discente. Dessa forma, se poderá prevenir futuras reincidências por meio da compreensão da importância e necessidade de que o futuro profissional

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do direito se comporte dentro da moralidade.Sobre o tema, Miguel Reale (1998, p. 44) aduz que:

Não é possível conceber-se o ato moral forçado, fruto da força ou coação. Ninguém pode ser bom pela violência. Só é possível praticar o bem, no sentido próprio, quando ele nos atrai por aquilo que vale por si mesmo, e não por interferência de terceiros, pela força que venha a consagrar a utilidade ou conveniência de uma atitude.

Entrementes, acredita-se que a interferência do docente, enquanto educador, se mostra fundamental para a lapidação do caráter do aluno. No entanto, sua intervenção tem lugar no âmbito da educação, tornando-se exemplo e incentivo para que o corpo discente, a partir dele, tenha atração natural pela eticidade.

Ocorre que, hodiernamente, grande parte dos professores não se compromete com sua função de educador. Abraçam – ou não – apenas o papel de difusor de conhecimento, sem a preocupação com a forma que o aluno irá digeri-lo: se o utilizará para o interesse público e desenvolvimento social, se o interpretará na égide da moralidade, se, ao fim do curso, será ou não um profissional ético.

O resultado, destarte, será o estímulo a condutas distantes dos valores morais, permitindo a formação de bacharéis carentes de eticidade.

4.5 Desvalorização das disciplinas propedêuticas

O encontro do aluno com as primeiras disciplinas do curso escolhido é sempre marcado por muita expectativa. De outra ponta, a conjunção das disciplinas propedêuticas com o recém chegado estudante de direito se mostra fundamental para o seu salutar crescimento ao longo da graduação. A partir delas, o discente abrirá sua mente para a compreensão e a visão crítica acerca das matérias dogmáticas que lhe serão, a posteriori, apresentadas.

No entanto, há algum tempo, esse encontro tem sido frustrante para os acadêmicos. As disciplinas propedêuticas, tais como Sociologia Jurídica, Filosofia do Direito e Hermenêutica Jurídica, vinham sendo ministradas por

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professores substitutos7. Estes, independentemente de seu compromisso e vocação, não costumam ter o domínio completo das disciplinas assumidas, dado o caráter temporário de sua atuação.

Há, ainda, muitas vezes, designações de professores substitutos para o ensino de disciplinas para as quais não prestaram concurso público, comprometendo o seu aproveitamento.

Dessa forma, considerando-se a indefinível importância de uma boa sedimentação destas cátedras para a construção de bases sólidas para o desenvolvimento do estudante, crê-se que é imperiosa a disponibilização de professores efetivos – compromissados e vocacionados – para o ministério destas disciplinas. Estas, além de conhecimento, exigem do docente um desafio de adequar o seu cabedal científico à capacidade de absorção e à compreensão do alunado recém chegado na Universidade, ainda em processo de maturação.

Do contrário, serão sempre exaustivas e frustrantes para os dis-centes, que as vêem, comumente, como uma barreira a ser transposta para o encontro desesperado e ansioso com os códigos, e não como um ponto de partida necessário para tanto.

Por outro lado, as disciplinas propedêuticas ligadas a departamen-tos não jurídicos, tais como Sociologia e Antropologia Geral, Filosofia, Ciência Política e Economia Política, ministradas por professores das próprias grades curriculares do curso de que, originariamente, fazem parte, costumam ser ministradas por professores desprestigiados em seus próprios departamen-tos, não tendo, muitas vezes, o tato necessário ao trato dos estudantes recém chegados à UFRN.

Dessa forma, a base da formação ética, que deveria consolidar-se nos primeiros semestre da graduação, resta efêmera.

4.6 Apologia ao Índice de Rendimento Acadêmico (IRA)

No âmbito do curso de Direito da UFRN, obter um Índice de Ren-

7 Impende observar alguns avanços nessa seara, com a assunção de disciplinas propedêuticas por consagrados docentes efetivos do curso de direito. Atualmente, semestre letivo 2010.2, a disciplina de Hermenêutica Jurídica e Teoria da Argumentação é ministrada pelo Prof. Me. Lucia-no Athayde Chaves, no turno da manhã; a disciplina de Filosofia do Direito, por sua vez, pelo Prof. Me. Ronaldo Alencar dos Santos, no turno matutino e a disciplina de Introdução à Ciência do Direito pelo Prof. Me. Morton Luiz Faria de Medeiros, à noite. No entanto, ainda há disparidades entre o turno matutino e o noturno.

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dimento Acadêmico de destaque tem sido o objetivo da pujante maioria do alunado.

A Resolução nº 227/2009 do Conselho de Pesquisa e Extensão (CONSEPE)8 contemplou novos índices numéricos para a avaliação do rendi-mento acadêmico acumulado do aluno (art. 112). A partir de então, a concessão da Medalha de Mérito Estudantil, a popular láurea, passou a ser concedida não apenas ao discente de maior Índice de Rendimento Acadêmico, consoante o era na Resolução nº 235/95 do CONSEPE9, mas ao discente com o mais vultoso IEAN (Índice de Eficiência Acadêmica Normalizado):

Art. 307. Ao aluno de cada curso que obtiver o maior IEAN, dentre os aptos à colação de grau em um determi-nado período letivo regular, a UFRN entrega a medalha de mérito estudantil

O IEAN é obtido pelo produto da MCN (Média de Conclusão Nor-malizada) pelo IECH (Índice de Eficiência em Carga Horária) e pelo IEPL (Índice de Eficiência em Períodos Letivos), conforme anexo III do Regulamento dos Cursos Regulares de Graduação da UFRN. Dessa forma, altera-se o método de concessão de láurea unicamente a partir do IRA, mas não se retira o vício do critério de seleção, dada a não contemplação das atividades de pesquisa e extensão10.

Assim como a antiga Resolução nº 235/95 do CONSEPE, a nova Resolução nº 227/2009 continua ferindo a norma da Constituição Federal de 1988 ínsita em seu art. 207: “As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.” Logo, um critério selecionador que não englobe um único destes pilares estará à margem da constitucionalidade.

8 Disponível em <www.sigaa.ufrn.br/sigaa/downloads/regulamento_dos_cursos_de_gradua-cao.pdf.> Acesso em 28 de setembro de 2010.9Art. 1º - Fica estabelecido que a Medalha de Mérito Estudantil será concedida ao final de cada período letivo, por curso, ao aluno que, de acordo com o respectivo histórico escolar, obtiver o maior Índice de Rendimento Acadêmico (IRA), desde que não inferior a 8.500 (oito mil e qui-nhentos), entre os alunos concluintes. 10 Sobre o tema, consultar: LEITE, Marcelo Lauar. Moldes hodiernos da concessão de láurea: Um golpe contra a Constituição. Um atraso para a UFRN. Revista Jurídica In Verbis, Natal, v. XI, n. 19, jan/jun 2006. ISSN: 1413-2605.

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Nada obstante, renomadas instituições, tais como o Tribunal Re-gional do Trabalho da 21ª Região11 e o Ministério Público Federal12, realizam a seleção de seus estagiários com base no Índice de Rendimento Acadêmico. Esta o utiliza como critério selecionador dos candidatos aptos a realizarem posterior prova avaliativa; e aquela, como selecionador único dos candidatos à vaga de estágio.

Dessa forma, cria-se a ilusão de que um excelente aluno, por exem-plo, apto a ingressar nos quadros de tais instituições como estagiário, capaz de aprender o mister dos Juízes do Trabalho e Procuradores da República e, quem sabe, galgar uma dessas carreiras a posteriori, será aquele aluno de maior IRA. Ou seja: o aluno que mais se dedica – teoricamente – ao ensino.

No entanto, seguindo-se o intuito das instituições supramenciona-das, e outras que igualmente adotem este critério seletivo, e crendo-se que o IRA realmente seja o melhor parâmetro, ainda deveria se levar em consi-deração que este se mostra sobremaneira fraudável, mormente pela falta de ética do alunado, pela resignação do corpo docente e pelos outros motivos já citados alhures.

Desta feita, estimula-se o aluno, ainda mais, ao alcance dos mais insignes Índices de Rendimento Acadêmico a qualquer custo, abrindo-se mão, por vezes, da eticidade, com prejuízo não só para a formação do discente que se propõe a fraudar os métodos de avaliação, como, também, para o que tem mérito efetivo.

Por outro lado, renega-se totalmente o incentivo às atividades de

11Consoante item V, subitem 4, do Edital de Seleção de Estagiários disponível no sítio eletrô-nico <www.trt21.jus.br/publ/concurso/pdfs/2010/EDITAL_SELECAO_ESTAGIARIOS%20-1_2010.pdf>, acesso em 28 de setembro de 2010: “4 – Serão considerados aptos para a classificação to-dos os candidatos que atenderem aos requisitos de admissibilidade dos itens 1 e 2, efetivamente inscritos no TRT da 21ª Região. A classificação obedecerá como critério a nota expressa na Declara-ção de Rendimento Acadêmico de que trata o item 1, II, informada pela instituição de ensino na qual se encontra regularmente matriculado”.12Conforme Edital E-01/2009, subitem 2.2.1, disponível no sítio eletrônico www.prrn.mpf.gov.br/concursos/estagiarios/2009/e01-2009-processo-seletivo-para-estagiarios-natal-area-de-direi-to/Concurso_Estagio_Natal_012009.pdf: Acesso em 28 de setembro de 2010: “2.1.1. Dos reque-rimentos recebidos serão selecionados até 35 (trinta e cinco) inscrições por IES – Instituição de Ensino Superior – conveniada (FACULDADE CÂMARA CASCUDO, FACEX, FAL, FARN, UERN, UFRN e UNP), sendo definida a lista de habilitados à prova por ordem de classificação das médias (ou IRA’s) constantes no documento referido no item 1.1 “a” supra, a qual será divulgada, juntamente com o local da aplicação da prova, no edifício-sede em Natal e/ou na home-page da PR/RN, no dia 26 de novembro de 2009.”

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pesquisa e extensão, ferindo o princípio da indissociabilidade elencado na norma constitucional do art. 207 e, também, os valores morais ínsitos a estas atividades, tais como a busca pelo bem-estar social, a solidariedade, a prestação voluntária de serviços à sociedade e a produção de pesquisa13, em retribuição, no mínimo, ao acesso a ensino superior público e gratuito.

4.7 Mau exemplo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Em meio à dificuldade de se encontrarem professores comprometi-dos com o saber, com a educação, vocacionados e dedicados à vida acadêmica, a UFRN vai de encontro ao seu dever de diligenciar pelo aprendizado de seu alunado realizando processos seletivos inadequados para a escolha dos profis-sionais mais aptos ao mister acadêmico.

Por vezes, estes certames não recebem publicidade efetiva, de forma que resta obstaculizada a sua ampla divulgação e, também, o recrutamento de concorrentes. Outrossim, mostra-se comum a realização dos mesmos em tempo sobremaneira exíguo, o que compromete sua qualidade. 14

A forma de atuação em comento denota a adoção, pela UFRN, de um modelo de seleção que não prestigia os princípios que norteiam a Adminis-tração Pública15. Revela, igualmente, falta de cuidado na seleção dos docentes que irão educar o alunado e, pois, iniciá-los na vida profissional. Dessa forma, a Universidade macula também alguns dos princípios elencados em seu próprio Estatuto16, a ética e a publicidade dos atos e das informações (art. 3º, incisos I

13 No âmbito do curso de direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, diversas ini-ciativas e projetos de extensão contemplam as possibilidade mencionadas, tais como Revista Jurídica In Verbis, a Simulação de Organizações Internacionais (SOI), o Programa Lições de Ci-dadania, o Programa Ligas Jurídicas, a Simulação de Tribunais Constitucionais (STC) e a mais recente, Justiça Itinerante. 14 E.g. Edital nº 020/2010, visando o preenchimento de vagas para docência das disciplinas de assistência jurídica, dentre outras, vinculadas ao Departamento de Direito Privado, publicado no Diário Oficial da União em 28.07.2010, com período de inscrição entre 28.07.2010 a 30.07.2010 e seleção realizada entre 03 e 05.08.2010.15 CF/88, art. 37, caput: “Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalida-de, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”.16Estatuto da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Disponível em <http://www.sigrh.ufrn.br/sigrh/public/colegiados/anexos/estatuto_ufrn_2009.pdf>. Acesso em 17 de out. de 2010.

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e XII) e, sem dúvida, dá um mau exemplo para o corpo discente. Mostra-se indubitável que certames realizados sem publicidade

efetiva e em tempo diminuto não se mostram plenamente capazes de angariar concorrentes e, tampouco, entre os candidatos acudidos, parece possível haver uma seleção de qualidade, hábil a aferir a aptidão do futuro docente ao mister da vida acadêmica. Do encontro de estudantes em formação com docentes despreparados para educá-los certamente resultará formação ética deficiente do educando.

5 QUAIS SÃO AS CONSEQUÊNCIAS DA CRISE?

Certamente, as conseqüências mais relevantes da crise ética hodierna pela qual passa o acadêmico de direito da UFRN são as atinentes à sua futura vida profissional. O estudante que, ao longo da graduação, não incorporou à sua formação moral familiar as virtudes ínsitas e indispensáveis ao exercício profissional, sofrerá dificuldades para construir uma carreira ple-namente exitosa como um operador do direito adequado aos interesses da sociedade brasileira.

A fim de ilustrar a apresentação das possíveis conseqüências da crise ética em comento, confira-se os julgados oriundos do Tribunal de Ética da Ordem dos Advogados do Brasil, secção do Rio Grande do Norte, em que se vislumbra a punição de membros da advocacia potiguar por condutas à margem da ética:

Falsidade ideológica comprovada. Advogado que insere declaração de endereço falso, diverso do endereço verdadeiro. Infração do art. 34, xiv, da lei nº 8.906/94. Representação procedente. Pena de censura convertida em advertência, em oficio reservado, sem registro.17 (Sem destaques no original).

Processo disciplinar. Locupletamento. Participação em procedimento judicial contencioso para realização de ato contrário à ordem jurídica - vedação ética - infração

17 Tribunal de Ética da Ordem dos Advogados do Brasil, secção do Rio Grande do Norte. Processo disciplinar nº 803/05. Juiz Relator: Jansen Leiros Ferreira. Julgado em 30/10/2006.

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caracterizada. I - Os atos descritos nos autos e confir-mados pelo representado são inconcebíveis na relação cliente/advogado, contribuindo, outrossim, a fraudes e ao desprestígio da classe. II - Age em desrespeito aos regramentos éticos e disciplinares advogado que recebe valores e não presta os serviços contratados. Violação ao artigo 34, XX, do Estatuto. III - Havendo o advogado concorrido para a prática de atos contra a lei, com o objetivo de, causando prejuízos a terceiros, favorecer a parte adversa, amoldando sua conduta à trilha repu-diada pelo art. 34 , inciso XVII do EAOAB, configura-se infração ética. Sanção do artigo 37, I, § 1º, da referida norma. Aplicação da pena de suspensão.18 (Destaques acrescidos).

Inequívoca a constatação de ocorrência de agressão física e puxamento de arma de fogo contra colega de profissão nas dependências do fórum. Tese de legitima defesa inacolhida. Não houve moderação do represen-tado na utilização dos meios para repelir agressão verbal sofrida. Enquadramento como infração disciplinar face a conduta incompatível com a advocacia.19 (Destacou-se).

Em seqüência, confira-se julgado do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) onde se vê a repressão de conduta antiética de um magistrado:

Conclui-se, então, que o Juiz, como todo agente público, está sujeito aos preceitos éticos, inserindo-se aí a vedação de uso de linguagem excessiva em seu discurso judiciário, a merecer a devida reprimenda na medida em que se demonstre a existência do intuito de ofensa à honra de terceiros, restando evidente a necessidade do elemento dolo por parte do magistrado quando da exteriorização de sua opinião sob a forma de crítica judiciária20. (De-

18 Tribunal de Ética da Ordem dos Advogados do Br, secção do Rio Grande do Norte. Processo n.º 446/2000. Relator: Artur Mauricio Maux De Figueiredo. Julgado em 09.09.2003..19 Tribunal de Ética da Ordem dos Advogados do Brasil, secção do Rio Grande do Norte. Processo n.º 001/96 – 2ª T. Relator: Juiz Ulpiano Moura Soares de Souza. Julgado em 11.09.98.20 Conselho Nacional de Justiça. RD 5047 – Rel. Min. Corregedor Nacional Cesar Asfor Rocha. DJ

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staques acrescidos).

Destaque para trechos do julgado abaixo, também do CNJ, de lavra do Conselheiro potiguar Walter Nunes da Silva Junior, onde se vê a punição, por conduta à margem da moralidade, de um Corregedor-Geral de Justiça, cuja atribuição se pauta, contraditoriamente, na fiscalização, disciplina e controle dos serviços forenses:

Processo Administrativo [...] Modificação de decisão judicial de outro Estado. Afronta a decisão do STJ. Favo-recimento de uma das partes. Recebimento de propina. Desídia no cargo de Corregedor Geral de Justiça. Arts. 35, I, II, VII c/c os arts. 42, V, e 56, caput da LOMAN. Aposenta-doria compulsória. Procedência. [....] 8) O direcionamento de processos, seja como Corregedor Geral de Justiça, com quebra do princípio do juiz natural, seja por meio de de-cisões ou ações teratológicas e arbitrárias, praticadas na qualidade de julgador, revela comportamento funcional que viola o Estatuto da Magistratura, mormente quando demonstrado o claro desiderato de beneficiar uma das partes, até porque evidencia a falta de comprometimento com dever elementar imprescindível para o exercício da judicatura, que é a imparcialidade nos julgamentos. 9) Le-var a julgamento, aproveitando-se do exercício precário da presidência do Tribunal, embargos de declaração em embargos de declaração com efeitos infringentes, quando não era o relator natural, sem o correto pregão do feito, com isso induzindo a erro os demais pares, para, assim, com o provimento da pretensão recursal, atender interesse de uma das partes, caracteriza grave violação dos deveres da magistratura. [...] 13) Utilizar manobra para, com ausência de fundamentação, determinar a nulidade do processo sem apreciar, assim como havia determinado o Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recurso especial, a preliminar de litispendência, revela que, no escopo de atender os interesses de uma das par-tes valia tudo, até mesmo desrespeitar acórdão de Corte Superior, [...]15) O depoimento de testemunha revelando

07.12.2007.

Thaissa Lauar Leite

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que pagou propina para obter decisão favorável aos seus interesses, contestada pelo assessor e o desembargador acusado, protagoniza o fenômeno da colisão de provas, devendo o exegeta dos fatos, na valoração dos elementos probatórios, ter em consideração que, na hipótese, con-quanto a pessoa tenha efetuado o pagamento e recebido o pronunciamento judicial em prol de seu interesse, logo após, por meio de outro recurso, foi dado ganho de causa à parte adversária, circunstância que motivou a sua revolta e o desejo de revelar os fatos, ainda que esse comportamento importasse em confissão quanto à prática de crime, circun-stâncias que, aliadas aos detalhes de onde, como, quando e quanto foi pago confere credibilidade ao testemunho. [...]17) Procedência das imputações, diante da prática de condutas que violaram os deveres da magistratura estampados nos art. 35, I, II, VII, c/c o art. 56, I, II e III, se-gunda parte, com a aplicação da pena de aposentadoria, com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço, prevista nos arts. 42, V, e 56, caput, todos da Lei Orgânica da Magistratura Nacional – LOMAN. 18) Remessa de có-pias dos autos ao Ministério Público para providências necessárias à promoção de responsabilidade por atos de improbidade administrativa, bem como à Ordem dos Advogados do Brasil para apuração da conduta ético-profissional de advogados envolvidos nos fatos.21 (Sem destaques no original).

O Superior Tribunal de Justiça, no julgado abaixo, também enfrentou a problemática da falta de eticidade de profissional do direito, veja-se:

RECURSO ESPECIAL. ADVOGADO. VÍNCULO EMPREGATÍ-CIO COM A PARTE. OFENSAS IRROGADAS EM JUÍZO. RESPONSABILIDADE DO CAUSÍDICO. INDEPENDÊNCIA TÉCNICA E ÉTICA. MULTA. ART. 538, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. AFASTAMENTO. 1. O advogado, ainda que submetido à relação de emprego, deve agir de conformidade com a sua consciência

21 Conselho Nacional de Justiça. PAD 200910000032369. Rel. Cons. Walter Nunes. DJ 21/12/2009 p. 24.

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profissional e dentro dos parâmetros técnicos e éticos que a regem. 2. Em decorrência, sua atuação em juízo, mesmo mantendo vínculo empregatício com a parte, será sempre relação de patrocínio, sem submissão ao poder diretivo do empregador, que não se responsabi-liza por supostas ofensas irrogadas em juízo. 3. Não se revestindo os embargos de declaração de Caráter protelatório, há de ser afastada a multa prevista no art. 538, parágrafo único, do Código de Processo Civil. 4. Recurso especial conhecido e provido.22

A Ministra do Superior Tribunal de Justiça, Eliana Calmon, recente-mente respondeu em entrevista23 qual o motivo, em sua visão, da grande quantidade de denúncias sobre a corrupção na magistratura hodiernamente. Confira-se:

Durante anos, ninguém tomou conta dos juízes, pouco se fiscalizou, corrupção começa embaixo. Não é incomum um desembargador corrupto usar o juiz de primeira instância como escudo para suas ações. Ele telefona para o juiz e lhe pede uma liminar, um habeas corpus ou uma sentença. Os juízes que se sujeitam a isso são candidatos naturais a futuras promoções. Os que se negam a fazer esse tipo de coisa, os corretos, ficam onde estão.

Destarte, vê-se que a inexistência de solidez na base ética do acadêmico de direito refletirá em sua vida profissional independentemente da carreira escolhida. As atitudes tomadas enquanto advogado, defensor público, membro do ministério público, delegado de polícia ou magistrado, por exemplo, devem ter como respaldo os valores morais cultivados por cada profissional.

O sucesso profissional, o respeito perante a classe a que pertence

22 Superior Tribunal de Justiça. REsp 1048970 / MA. 4ª . Relator Ministro Fernando Gonçalves. DJ 26/08/2010.23 Notícia extraída do sítio eletrônico da Associação dos Oficiais de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte. Disponível em < http://www.aojern.com.br/novo/noticias_mostrar.asp?sCodigo=829>. Acesso em 23 de out. 2010.

Thaissa Lauar Leite

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e o reconhecimento público de um trabalho de êxito só serão possíveis se respaldados por um conjunto de condutas éticas do profissional de direito. Do contrário, este será paulatinamente ejetado do mercado de trabalho e da comunidade jurídica. Este complexo ético, por sua vez, deve começar a ser erguido ainda na graduação.

De outra ponta, a crise apontada gera conseqüências no próprio curso de direito da UFRN haja vista que este ganha a forma que seu corpo discente, docente e técnico-administrativo moldar, refletindo suas escolhas.

Por fim, as práticas abusivas, corruptas e desonestas que podem levar a efeito profissionais do direito aéticos, tais quais as vistas nos julga-dos supra, contribuem sobremaneira para o descrédito hodierno no Poder Judiciário pela população, visto que são aqueles que ocuparão algumas das funções mais importantes na sociedade brasileira.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Consoante o exposto, a construção da base ética indispensável à vida profissional que deveria ser erguida na academia não vem logrando êxito no âmbito do curso de direito da UFRN. Como conseqüência, a graduação em direito torna-se empobrecida de valores éticos, refletindo as condutas de grande parte do alunado, e este, por sua vez, chega ao mercado de trabalho despreparado e sem perspectivas de melhoria por não ter concluído a matu-ração moral na Universidade, último estágio da vida escolar.

Mostra-se imprescindível, destarte, que se supere a crise entabu-lada. Para tanto, faz-se mister que se unam a UFRN, o corpo docente e o corpo discente, cada qual abraçando sua quota de responsabilidade, com o escopo maior de formar bacharéis em direito com formação ética de referência para todas as demais Instituições de Ensino Superior.

Dessa forma, os acadêmicos e futuros bacharéis sentir-se-ão e es-tarão aptos a lutar pela justiça da forma como se deve persegui-la: pautados na ética.

REFERÊNCIAS

AGUIAR, Emerson de Barros. Ética: instrumento de paz e justiça. 2. ed. Natal: Tessitura, 2003.

NALINI, José Renato. Ética geral e profissional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004.

Ética do acadêmico de direito: crise na UFRN

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157Thaissa Lauar Leite

NOVAES, Adauto (Org.). Ética. São Paulo: Companhia das letras: Secretaria Municipal de Cultura, 1992.

REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. São Paulo: Saraiva, 1998.

SÁ, Antônio Lopes de. Ética profissional. São Paulo: Atlas, 2009.

ETHICS OF LAW ACADEMIC: CRISES IN UFRN ABSTRACT The present study has as an intention the reflection about the ethical crisis that is happening with the law student of Federal University of Rio Grande do Norte (UFRN), to find the factors that contributes for this event, and therefore offer opportunities to overcome it. Then, it is intended to awake the students to the moral and ethical values forgotten when happened the study of propedeutics disci-plines from the curriculum of the course and make them become aware of its student role. Besides, it is intended to prompt the UFRN to assume its portion of responsibility and carry out his task of not only to produce hundreds of law graduates per year, but also educate them for professional life. In order to do such a research, the introduc-tion to the study law and general and legal ethics doctrines were used, as well as the most recent judicial decisions about the theme Keywords: Ethics. Law academic. Federal Univer-sity of Rio Grande do Norte.

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NULIDADE DAS NEGOCIAÇÕES COLETIVAS ACERCA

DA “FLEXIBILIZAÇÃO” DAS NORMAS RELATIVAS ÀS

HORAS IN ITINERE

Louise Caroline Pinheiro de SouzaAcadêmica do 9º período do

Curso de Direito da UFRN.

RESUMO

O instituto das horas in itinere teve origem na juris-prudência dos tribunais trabalhistas, transforman-do-se, mais adiante, em norma positivada de caráter imperativo. Não obstante o seu status de norma de ordem pública, a jurisprudência das cortes trabalhis-tas tem admitido a “flexibilização” deste direito pela via da negociação coletiva, independentemente de se verificar qualquer benefício compensatório para os trabalhadores atingidos pela norma autônoma, o que representa flagrante retrocesso social, além de vulnerar as finalidades institucionais dos sindicatos na qualidade de representantes da classe obreira. O presente trabalho busca elucidar as razões que ensejam a nulidade das cláusulas de instrumentos coletivos de trabalho que dispõem sobre a “flexi-bilização” do direito às horas de percurso. Ao final, infere-se a necessidade de uniformização dos julga-dos relativos a este tema, em razão dos imperativos de proteção do trabalhador, que impõem o respeito aos direitos e garantias mínimos assegurados pela Constituição e pela lei, inclusive no âmbito coletivo, realçando a participação do Ministério Público do Trabalho na busca deste escopo.

Palavras-chave: Jornada laboral. Horas in itinere. Flexibilização. Nulidade.

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160 Nulidade das negociações coletivas acerca da “flexibilização”das normas relativas às horas in itinere

1 INTRODUÇÃO

O direito às horas in itinere consiste na contabilização na jornada diária de trabalho do tempo despendido pelo trabalhador no percurso entre a sua residência e o local da prestação dos serviços, e na volta deste para aquele, em transporte fornecido pelo empregador, quando se tratar de local de difícil acesso ou não servido por transporte público.

Este tema surgiu da construção jurisprudencial dos tribunais pátrios, a partir da interpretação extensiva do art. 4º da CLT, e dos imperativos de saúde e segurança do trabalho, considerando-se que as horas in itinere constituem espécie de hora extra. A partir deste entendimento, surgiram as Súmulas 90, 320, 324 e 325, e Orientações Jurisprudenciais 50 e 236 do TST, consolidadas, mais tarde, no enunciado da Súmula 90. Ainda, a Lei 10.243/2001, seguindo a tendência das cortes trabalhistas, acrescentou o § 2º ao art. 58 da CLT, posi-tivando, então, o instituto.

Ocorre que, embora se trate de matéria relativa à proteção do traba-lhador, já incorporada ao ordenamento jurídico, gozando, portanto, do caráter imperativo próprio desta espécie de norma, os tribunais trabalhistas têm ad-mitido a sua “flexibilização” via negociação coletiva, desprovida, no entanto, de qualquer contrapartida em benefício da classe trabalhadora atingida pela avença sindical, configurando, portanto, verdadeira renúncia prévia, mesmo que parcial, de direitos assegurados por normas cogentes.

Diante deste quadro, proceder-se-á ao estudo da impossibilidade de “flexibilização” do instituto das horas in itinere através da negociação coletiva de trabalho, salvo a hipótese expressamente consignada no art. 58, § 3º, da CLT, e da conseqüente nulidade das normas coletivas editadas com este teor, sob a ótica dos princípios trabalhistas aplicáveis ao tema, e da análise do alcance dos institutos da renúncia e transação na seara trabalhista, considerando, ainda, a atual conjuntura jurídico-normativa sobre o tema da jornada laboral.

2 ORIGEM DO TEMA DAS HORAS IN ITINERE

A existência do tema das horas in itinere no ordenamento jurídico positivo é recente, tendo advindo da interpretação extensiva conferida pela

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161Louise Caroline Pinheiro de Souza

jurisprudência trabalhista ao art. 4º da CLT1 (DELGADO, 2008, p. 842). Bus-cando garantir a observância dos preceitos constitucionais e consolidados de proteção ao trabalhador, em especial os atinentes à saúde e segurança do trabalho, o Tribunal Superior do Trabalho editou a Súmula 902, albergando na hipótese do art. 4º consolidado os trabalhadores que dependam de transporte fornecido pelo empregador para o local de trabalho de difícil acesso ou não servido por transporte público. Mais adiante, foram editados os enunciados 320, 324 e 325, e as Orientações Jurisprudenciais 50 e 236 do TST, tendo os quatro últimos sido cancelados em razão de sua incorporação ao texto da Súmula 90, hoje com a seguinte redação3:

SUMÚLA nª 90 – HORAS IN ITINERE. TEMPO DE SERVIÇO (incorporadas as Súmulas nºs 324 e 325 e as Orientações Jurisprudenciais nºs 50 e 236 da SBDI-1) – Res. 129/2005, DJ 20, 22 e 25.04.2005 I - O tempo despendido pelo empregado, em condução fornecida pelo emprega-dor, até o local de trabalho de difícil acesso, ou não servido por transporte público regular, e para o seu retorno é computável na jornada de trabalho. (ex-Súmula nº 90 - RA 80/1978, DJ 10.11.1978) II - A incompatibilidade entre os horários de início e término da jornada do empregado e os do transporte público regular é circunstância que também gera o direito às horas in itinere. (ex-OJ nº 50 da SBDI-1 - inserida em 01.02.1995) III - A mera insuficiência de transporte público não enseja o pagamento de horas in itinere. (ex-Súmula nº 324 – Res. 16/1993, DJ 21.12.1993)IV - Se houver transporte público regular em parte do trajeto percorrido em condução da empresa, as

1 CLT. Art. 4º. Considera-se como de serviço efetivo o período em que o empregado esteja à disposição do empregador, aguardando ou executando ordens, salvo disposição especial ex-pressamente consignada.2 Resolução Administrativa nº 69/1978 do TST, com redação alterada pela Resolução Administra-tiva nº 80/1978. Disponível em <http://www.tst.jus.br/iframe.php?url=/DGCJ/IndiceResolucoes/tifs/I1978.htm> Acesso em: 26/10/2010.3 Resolução nº 129 do TST, de 05/04/2005 (DJU de 20-4-2005). Disponível em: < http://www.tst.gov.br/DGCJ/IndiceResolucoes/Resolucoes/129.htm> Acesso em: 26/10/2010.

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horas in itinere remuneradas limitam-se ao trecho não alcançado pelo transporte público. (ex-Súmula nº 325 – Res. 17/1993, DJ 21.12.1993) V - Considerando que as horas in itinere são computáveis na jornada de trabalho, o tempo que extrapola a jornada legal é considerado como extraordinário e sobre ele deve incidir o adicional respectivo. (ex-OJ nº 236 da SBDI-1 - inserida em 20.06.2001)

Após longo período de maturação jurisprudencial, a matéria foi, finalmente, incorporada ao texto consolidado através da Lei nº 10.243/01, que incluiu o § 2º no art. 58 da CLT, in verbis:

CLTArt. 58. [...]§ 2º. O tempo despendido pelo empregado até o local de trabalho e para o seu retorno, por qualquer meio de transporte, não será computado na jornada de trabalho, salvo quando, tratando-se de local de difícil acesso ou não servido por transporte público, o empregador fornecer a condução.

Assim, as horas in itinere configuram exceção à regra do tempo de deslocamento do empregado, para efeitos no âmbito do direito material do trabalho4, sendo dois os requisitos necessários à configuração desta hipótese: a) que o transporte no percurso residência-trabalho-residência seja fornecido pelo empregador; b) que o local de trabalho seja de difícil acesso ou não ser-vido por transporte público5.

Sobre o primeiro requisito, cumpre destacar, conforme ensina-mento de Delgado (2008, p. 842), que o fato de o transporte ser fornecido por empresa contratada pelo empregador, ou de ser ofertado pelo tomador de serviços, nos casos de terceirização, não elidem o direito ao cômputo das

4 Delgado (2009, p. 841) ensina que a regra, no Direito Trabalhista, é a não contabilização do tem-po de deslocamento na duração do trabalho, enquanto que, para o Direito Previdenciário, este período é considerado para fins de caracterização de acidente do trabalho, independentemente do meio de locomoção utilizado, ou de quem o fornece, albergando, inclusive, o transporte em veículo de propriedade do segurado, nos termos do art. 21, IV, “d”, da Lei nº 8.213/1991.5 A expressão “regular” existe apenas na redação da Súmula 90 do TST, mas não no art. 58, § 2, da CLT.

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horas de deslocamento, uma vez que, mesmo indiretamente, o transporte está sendo fornecido pelo empregador. Além disso, nos termos da Súmula 3206, é irrelevante o fato de o empregador cobrar pelo transporte fornecido, sendo suficiente, apenas, a observância dos requisitos estampados no art. 58, § 2º, da CLT, e na Súmula 90, I, do TST.

Acerca do segundo requisito, é importante enfatizar que a configu-ração das hipóteses “local de difícil acesso” e “local não servido por transporte público” é alternativa, ou seja, basta que apenas uma dessas condições se verifique, cumulativamente com o requisito do fornecimento de transporte oferecido pelo empregador, para que a situação seja enquadrada no disposto no art. 4º da CLT.

Ainda, a hipótese de inexistência de transporte público foi devida-mente contemplada pela Súmula 90 do TST, que cuidou de pôr fim à polêmica acerca do seu alcance, tendo os itens II e III fixado que “a incompatibilidade entre os horários de início e término da jornada do empregado e os do trans-porte público regular é circunstância que também gera o direito às horas in itinere”, e que “a mera insuficiência de transporte público não enseja o paga-mento de horas in itinere”.

Sem embargo da sua natureza de direito indisponível mesmo antes de sua inclusão no ordenamento jurídico positivo, uma vez concernente à matéria da duração do trabalho, estando, portanto, diretamente relacionado à saúde e segurança do trabalhador, a partir da edição do § 2º do art. 58 da CLT, o tema das horas in itinere deixou de ser mero enunciado jurisprudencial, merecendo elevação ao patamar de norma de ordem pública, insuscetível de derrogação pela vontade das partes.

3 PRINCÍPIOS APLICÁVEIS À ESPÉCIE

O princípio da proteção do trabalhador, resultante do conjunto de normas que informam o direito positivo laboral, sempre constituiu o funda-mento máximo, a razão de ser do Direito do Trabalho (DELGADO, 2008, p. 198).

6 TST – Súmula 320: Horas in itinere. Obrigatoriedade de cômputo na jornada de trabalho. O fato de o empregador cobrar, parcialmente ou não, importância pelo transporte fornecido, para local de difícil acesso, ou não servido por transporte regular, não afasta o direito à percepção das horas in itinere.

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O surgimento deste instituto justrabalhista está intimamente relacionado à verificação da desigualdade econômica entre os sujeitos da relação de em-prego, nascendo daí a necessidade de adoção de mecanismos aptos a garantir o alcance da igualdade substancial entre estes, por meio do tratamento jurídico desigual entre empregado e empregador.

C. Meireles e E. Meireles (2009, p.76) acrescentam que, no Estado Social de Direito, o princípio da proteção não tem como fundamento apenas essa característica objetiva, baseada no aspecto patrimonial dos sujeitos da relação trabalhista, e realçam, pois, o seu dado subjetivo, calcado na dignidade do trabalhador, conferindo ao Direito do Trabalho uma nuance humanista, conforme é possível extrair dos dispositivos constitucionais que tratam dos direitos sociais desta classe7.

Nas palavras de Delgado (2008, p. 198), o princípio protetivo consiste em “uma teia de proteção à parte hipossuficiente na relação empregatícia – o obreiro –, visando retificar (ou atenuar), no plano jurídico, o desequilíbrio inerente ao plano fático do contrato de trabalho”. Com este mesmo espírito, Radbruch (apud PLÁ RODRIGUEZ, 2000, p. 85/86), ensina que “a idéia central em que o direito social se inspira não é a da igualdade entre as pessoas, mas a do nivelamento das desigualdades que entre elas existem. A igualdade deixa assim de constituir ponto de partida do direito para converter-se em meta ou aspiração da ordem jurídica”.

Em resumo, a aplicação do princípio da proteção à parte economica-mente hipossuficiente na relação de emprego está intimamente relacionada à ratio legis, ou seja, ao objetivo que o legislador almejou quando da edição das leis trabalhistas. Logo, tendo o legislador estabelecido um sistema de proteção do trabalhador, por meio de normas juridicamente favoráveis a este, o intér-prete e aplicador do direito deve se conduzir no mesmo sentido, objetivando o alcance do escopo inicialmente vislumbrado (PLÁ RODRIGUEZ, 2000, p. 86).

É certo que o princípio em comento não é absoluto, embora as hipó-teses de sua mitigação estejam expressa e taxativamente consignadas na lei, como é o caso do jus variandi, que significa a possibilidade de o empregador, em razão do seu poder diretivo, realizar pequenas alterações contratuais que não impliquem em lesão ao empregado; a hipótese do art. 468 da CLT, que autoriza mudanças bilaterais do pacto laboral, desde que estas não provoquem o prejuízo, direto ou indireto, do trabalhador; e a negociação coletiva, nos casos

7 Vide os arts. 1º, III e IV, 6º, 7º e 170 da CF.

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expressamente autorizados pela lei.Decorrência lógica do princípio da proteção, o princípio da norma

mais favorável consiste, resumidamente, na aplicação do preceito legal mais proveitoso ao trabalhador, independentemente de sua hierarquia, contrari-ando, pois, a idéia de hermetismo da ordem jurídica, que informa outros ramos jurídicos (PLÁ RODRIGUEZ, 2000, p. 123). No Direito do Trabalho, ao contrário, sempre que existirem duas ou mais normas que alberguem polêmica quanto à preferência na aplicação, deverá optar-se pela que revele maiores benefícios ao trabalhador (BARROS, 2009, p. 181).

Por sua vez, o princípio da imperatividade das normas trabalhistas traduz-se no entendimento de que estas são inderrogáveis pela vontade das partes. Assim, diferentemente do que ocorre no direito comum, sobreleva a restrição da autonomia da vontade no Direito Trabalhista, consistindo esta regra em “instrumento assecuratório eficaz de garantias fundamentais ao trabalhador, em face do desequilíbrio de poderes inerente ao contrato de emprego” (DELGADO, 2008, p. 201).

Como projeção do princípio anterior, o princípio da indisponibili-dade diz respeito à impossibilidade de o trabalhador renunciar, ou mesmo transacionar – de forma que lhe implique prejuízo –, aos direitos e garantias que lhe são assegurados pelo ordenamento jurídico. Assim como no caso do princípio da proteção, Delgado (2008, p. 201) sustenta que este princípio “constitui-se talvez no veículo principal utilizado pelo Direito do Trabalho para tentar igualizar, no plano jurídico, a assincronia clássica existente entre os sujeitos da relação socioeconômica de emprego”.

De índole constitucional, o princípio do não-retrocesso social, nas palavras de Canotilho, (apud MEIRELES, A. C. C.; MEIRELES, E., 2009, p. 19), consiste na garantia constitucional da manutenção do núcleo essencial de direitos já efetivados pela lei, merecendo a declaração de inconstitucionalidade quaisquer atos que, destituídos de medidas compensatórias, impliquem em revogação, pura e simples, deste mínimo essencial. Por sua vez, Sarlet (apud MEIRELES, A. C. C.; MEIRELES, E., 2009, p. 21) ensina que alcançado certo grau de concreção dos direitos fundamentais sociais em nível infraconstitucional, estes passam a gozar do status de direito adquirido, aplicando-se, por sua vez, o princípio da proteção da confiança, sendo inconstitucional qualquer medida que ameace esse padrão.

Este princípio foi contemplado pela Constituição Federal em seu art. 7º, caput, que indica a exemplificatividade do rol de direitos trabalhistas ali elencados, possibilitando a instituição de “outros que visem à melhoria

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de sua condição social”, e no art. 114, § 2º, que determina que as decisões dos tribunais devem respeitar “as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente”.

Por fim, não seria possível deixar de mencionar os princípios aplicáveis à negociação coletiva de trabalho. São dois: o princípio da cria-tividade jurídica e o da adequação setorial negociada. O primeiro consiste, em suma, no “poder legislativo conferido aos sindicatos para dispor sobre condições de trabalho” (MEIRELES, A. C. C.; MEIRELES, E., 2009, p. 102), criando verdadeiras normas jurídicas em harmonia com o as normas estatais (DEL-GADO, 2008, p. 1319). Previsto no art. 7º, inciso XXVI, da CF, subordina-se, pois, ao princípio do não-retrocesso social (art. 7º, caput, da CF).

Por seu turno, o princípio da adequação setorial negociada cuida das hipóteses e limitações da possibilidade de negociação coletiva, buscando a harmonização entre as normas estatais e as coletivas. Nas palavras de Delgado (2008, p. 1321), “reside, em síntese, na pesquisa e aferição sobre os critérios de validade jurídica e extensão de eficácia das normas oriundas de convenção, acordo ou contrato coletivo do trabalho em face da legislação estatal impera-tiva, que tanto demarca o ramo justrabalhista individual especializado”. Ainda, conforme os ensinamentos do mesmo autor, os critérios permissivos da nego-ciação são o da implementação de um padrão setorial de direitos superior ao padrão geral decorrente da legislação heterônoma, e o da transação setorial de parcelas justrabalhistas de indisponibilidade apenas relativa8 (2008, p. 1322).

Indubitavelmente, além dos princípios específicos, os demais princípios enunciados acima são aplicáveis às negociações coletivas. Isto porque não é permitido aos sindicatos, na representação da respectiva categoria profissional, renunciar ou transacionar – neste último caso, fora das hipóteses expressamente autorizadas pela lei, ou sem auferir benefícios compensatórios – acerca de direitos trabalhistas previstos em normas de aplicação cogente, sob pena de desvirtuar a sua função negocial (DELGADO, 2008, p. 1341), pautada pela incessante busca de melhoria das condições de

8 Delgado (2008, p. 217-218) esclarece que a indisponibilidade absoluta verifica-se “quando o direito enfocado merecer uma tutela de nível de interesse público, por traduzir um patamar civilizatório mínimo [...]. É o que ocorre [...] com o direito à assinatura de CTPS, ao salário mí-nimo, à incidência das normas de proteção à saúde e segurança do trabalhador”. Por sua vez, a indisponibilidade relativa ocorre “quando o direito enfocado traduzir interesse individual ou bilateral simples [...]”, podendo ser objeto de transação, como se dá, por exemplo, com a fixação da modalidade de salário – fixo ou variável (DELGADO, 2008, p. 218).

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trabalho (art. 7º, caput, CF), e de configurar, inclusive, atitude anti-sindical (DELGADO, 2008, p. 1308).

4 RENÚNCIA E TRANSAÇÃO NO DIREITO DO TRABALHO

A renúncia e a transação, na seara laboral, estão intimamente relacio-nadas ao princípio da indisponibilidade dos direitos trabalhistas. A primeira consiste em ato unilateral do empregado de despojamento dos direitos que lhes são assegurados pelo ordenamento jurídico, sem o auferimento de nenhum benefício em contrapartida, enquanto a segunda pressupõe bilate-ralidade, ou até a plurilateralidade, devendo haver vantagens e desvantagens mútuas (DELGADO, 2008, p. 216; NASCIMENTO, 2005, p. 349).

Em regra, no Direito do Trabalho, a renúncia é sumariamente repelida, sobretudo em razão da imperatividade das suas normas e do princípio da indisponibilidade (DELGADO, 2008, p. 219)9. Quanto à transação, ela encontra limitações expressas nos textos constitucional e consolidado. Aliás, a Consti-tuição Federal, no caput do seu art. 7º, enuncia a principal regra limitadora da negociação, individual ou coletiva, acerca dos direitos trabalhistas, estabe-lecendo que esta apenas pode se realizar quando vise à melhoria da condição social dos trabalhadores.

As situações que autorizam a flexibilização das normas trabalhistas constam dos incisos VI, XIII e XIV do art. 7º da Constituição Federal, que dis-põem, respectivamente, sobre a irredutibilidade salarial, a jornada normal de trabalho e a duração do trabalho realizado em turnos ininterruptos de reveza-mento. Estas hipóteses são taxativas, não comportando interpretação exten-siva, considerado o caráter imperativo e indisponível das normas garantidoras de proteção mínima aos trabalhadores (BARROS, 2009, p. 205; BELTRAMELLI NETO, 2008, p. 79 e 83). Nas palavras de França (1994, p. 42), “excluídas estas exceções, a normatividade emergente de instrumento convencional deve ser direcionada necessariamente no sentido de melhorar e ampliar o sistema

9 Não obstante a sua raridade, Delgado (2008, p. 219/220) exemplifica algumas possibilidades de renúncia, indicando a hipótese de renúncia à estabilidade celetista vigente antes da promulga-ção da Constituição Federal de 1988, e a renúncia tácita à garantia de emprego pelo dirigente sindical transferido para fora da respectiva base territorial, nos termos do art. 543, caput e § 1º da CLT.

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de proteção aos direitos dos empregados e jamais reduzí-los ou eliminá-los”.Na Consolidação das Leis do Trabalho, os arts. 9º, 444 e 468 tratam de impor limites à liberdade dos contratantes na relação jurídica de trabalho, indepen-dentemente do caráter individual ou coletivo do ajuste, sendo aplicáveis tanto às hipóteses de renúncia, como às de transação. Logo, qualquer estipulação com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na CLT, que contravenha o disposto neste diploma, as convenções aplicáveis, ou as decisões das autoridades competentes, ou que implique lesão direta ou indireta ao trabalhador, será nula de pleno direito.

Merece especial destaque o art. 468 da CLT, que trata da alteração do contrato de trabalho, dispondo que “nos contratos individuais de trabalho só é lícita a alteração das respectivas condições por mútuo consentimento, e ainda assim, desde que não resultem, direta ou indiretamente, prejuízos ao em-pregado, sob pena de nulidade da cláusula infringente desta garantia”. Ora, se no âmbito individual as alterações contratuais suportam todas estas limitações, na esfera coletiva este preceito ganha especial relevância, considerando-se que ao sindicato não foi conferido o poder de renunciar aos direitos individuais dos seus representados, ou mesmo de transacionar sem lhes proporcionar, em contrapartida, melhoria das condições de trabalho da respectiva categoria, sendo que esta consiste em sua prerrogativa sindical basilar10.

5 NULIDADE DA “FLEXIBILIZAÇÃO” DAS HORAS IN ITINERE VIA NEGOCIA-ÇÃO COLETIVA DE TRABALHO

Segundo o art. 4º da CLT, não se considera como tempo de serviço efetivo apenas o período em que o empregado esteja trabalhando, mas tam-bém o tempo que ele se encontra à disposição do empregador, aguardando ou executando ordens, seja no ambiente da prestação do trabalho, seja fora dele, albergando, pois, a hipótese das horas in itinere, conforme o entendimento consubstanciado na Súmula 90 do TST e no art. 58, § 2º, da CLT.

Logo, estando à disposição do empregador, o tempo corresponden-te computa-se na jornada laboral, atraindo, por decorrência lógica, o disposto no art. 7º, incisos XIII e XIV, da CF, que constituem direitos indisponíveis do trabalhador. Isso não quer significar, contudo, que não possa haver transação

10 Artigos 7º, caput, 8º, III, da CF, e 513, “a”, da CLT.

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acerca das normas relativas à jornada laboral, uma vez que o próprio dispositivo constitucional referido expressa esta possibilidade, devendo, no entanto, ser observada a taxatividade desta disposição, senão vejamos:

CFArt. 7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:[...]XIII - duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, medi-ante acordo ou convenção coletiva de trabalho;XIV - jornada de seis horas para o trabalho realizado em turnos ininterruptos de revezamento, salvo negociação coletiva; [...]. (grifos nossos)

Observe-se que, na primeira hipótese, o constituinte apenas au-torizou a negociação acerca da compensação de horas e da redução da jor-nada, não deixando margem a nenhuma outra estipulação. Quanto aos turnos ininterruptos de revezamento, a Constituição Federal permitiu a alteração da jornada via negociação coletiva, estando esta subordinada, no entanto, ao disposto no caput do art. 7º.

Além dessas hipóteses de flexibilização da jornada laboral, no caso específico das horas in itinere, o texto consolidado, no § 3º do art. 58, acres-centado pela Lei Complementar nº 123/2006, dispõe que:

CLTArt. 58. [...]§ 3º. Poderão ser fixados, para as microempresas e empresas de pequeno porte, por meio de acordo ou con-venção coletiva, em caso de transporte fornecido pelo empregador, em local de difícil acesso ou não servido por transporte público, o tempo médio despendido pelo empregado, bem como a forma e a natureza da remuneração. (grifo nosso)

Assim, a CLT é taxativa acerca do cabimento de fixação de tempo médio de horas in itinere através de negociação coletiva, e da forma e natureza do respectivo pagamento, não sendo possível a sua extensão a casos diversos,

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em respeito à imperatividade da norma e a indisponibilidade deste direito.Não obstante este entendimento, a jurisprudência trabalhista,

inclusive a do Tribunal Superior do Trabalho – embora haja, frise-se, vozes dissonantes11 –, tem chancelado as negociações coletivas que, indiscrimina-damente, limitam previamente o cômputo deste período na jornada laboral efetiva, sem conferir nenhuma contrapartida aos empregados, conforme exemplificado a seguir:

AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA. HORAS IN ITINERE. NORMA COLETIVA. O entendimento externado pelo Órgão uniformizador de jurisprudência interna corporis desta Corte Superior, a SBDI-1, segue no sentido de que deve ser considerada válida a negociação coletiva estabelecendo o pagamento de horas in itinere em determinado número de horas, independentemente do efetivo tempo gasto pelo empregado no transporte fornecido pelo empregador, nos termos do art. 7°, XXVI, da CF. Agravo de instrumento conhecido e não provido.12

HORAS IN ITINERE - FIXAÇÃO MEDIANTE ACORDO CO-LETIVO, DE 1 (UMA) HORA NORMAL DIÁRIA, SOBRE O SALÁRIO DA CATEGORIA E AUSENTE DETERMINAÇÃO DE INTEGRAÇÃO SALARIAL - VALIDADE - INTELIGÊNCIA DO ART. 7º, XXVI, DA CONSTITUIÇÃO. I - É sabido que o princípio do conglobamento, adotado na interpre-tação dos acordos e convenções coletivos, permite a redução de determinado direito mediante a concessão de outras vantagens similares, de modo que no seu conjunto o ajuste se mostre razoavelmente equili-brado. II - Por isso mesmo é que se deve prestigiar os acordos e convenções coletivas, por injunção do art.

11 TST. AIRR 244/2007-141-03-40.9. T3. Relatora: Ministra Rosa Maria Weber Candiota da Rosa. Julgamento: 07/03/2008; TRT 21. RO 00883-2008-012-21-00-9. T2. Redatora: Juíza Lygia Maria de Godoy Batista Cavalcanti. Julgamento: 13/04/2010; TRT 5. RO 0122800-74.2009.5.05.0511. T2. Relatora: Desembargadora Débora Machado. Julgamento: 21/10/2010; TRT 10. RO 00147-2008-821-10-00-7. T2. Relator: Desembargador Brasilino Santos Ramos. Julgamento: 03/09/2008; TRT 3. RO 0037400-83.2009.5.03.0047. T3. Relator: Juiz Danilo Siqueira de Castro Faria. Julgamento: 03/02/2010.12 TST. AIRR 74440-65.2008.5.03.0102. T8. Relatora: Ministra Dora Maria da Costa. Julgamento: 13/10/2010.

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7º, inciso XXVI, da Constituição, em que se consagrou o princípio da autonomia privada da vontade coletiva, desde que a pactuação não agrida norma de ordem pública ou norma constitucional de proteção mínima ao empregado. III - A norma do § 2º do artigo 58 da CLT, introduzido pela Lei 10.243/01, embora tenha reconhecido o direito às horas de trânsito, não se classifica como norma de ordem pública e nem envolve direito indisponível dos empregados. IV - Daí ser forçoso privilegiar o que fora acertado pelos protagonistas das relações coletivas de trabalho, sobre a fixação de 1 (uma) hora normal diária a título de horas de percurso, incidente sobre o salário da categoria, sem integração salarial, circunstância que dilucida a violação literal e direta do art. 7º, XXVI, da Constituição. V - Nesse sentido, aliás, orienta-se a jurisprudência desta Corte. VI - Recurso conhecido e provido [...].13 (grifo nosso)

EMENTA: PEDIDO DECLARATÓRIO DE NULIDADE DE CLÁUSULAS DE CONVENÇÃO COLETIVA DE TRABALHO - HORAS EXTRAS “IN ITINERE” - MERO TEMPO DE REPOUSO EM TRÂNSITO - INSUSCETIBILIDADE DE VIOLAÇÃO DE NORMAS DE TUTELA DA SAÚDE DO TRABALHADOR - COMPOSIÇÃO EXTRAJUDICIAL DE CONFLITO POR MEDIAÇÃO DE PERITO. Não se pode olvidar que o artigo 7º, incisos XIII e XIV, da Constituição Federal de 1988 autoriza a negociação coletiva em matéria de duração da jornada de trabalho, tema jurídico do qual resulta o sub-tema das horas extras, pelo que não prospera o argumento de que as reclamadas e o sindicato obreiro não poderiam ter celebrado a questionada convenção coletiva de trabalho e de que essa negociação coletiva fere direitos indisponíveis. Relativamente às horas extras in itinere, bem decidiu a r. sentença recorrida no sentido de que “o núcleo intangível de direitos de indisponibilidade absoluta, que alberga normas de ordem pública, como as que protegem a saúde, a higiene e a segurança do traba-

13 TST. RR 11600-77.2009.5.09.0567. T4. Relator: Ministro Antônio José de Barros Levenhagen. Jul-gamento: 29/09/2010.

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lhador, não comporta as horas de percurso”. Efetivamente, as horas extras in itinere são insuscetíveis de violar normas de tutela da saúde do trabalhador, eis que não se tratam de horas de atividade de trabalho que possam submeter o empregado ao excesso de fadiga, mas de mero tempo de repouso em trânsito à disposição do empregador, sendo, por isso, meramente computável o tempo do des-locamento na duração da jornada de trabalho. [...] Lícita, portanto, a negociação coletiva. Negado provimento.14 (grifo nosso)

Estes posicionamentos jurisprudenciais fundamentam-se, em sua maioria, no argumento do reconhecimento das convenções e acordos cole-tivos de trabalho (art. 7º, inciso XXVI, da CF) e da flexibilização das normas trabalhistas, a fim de adequá-las às diferentes realidades laborais. Alguns deles sustentam-se no entendimento de que, em razão de o dispositivo não ter disciplinado a forma de contabilização deste período, às convenções e aos acordos coletivos caberia esta tarefa, o que, claramente, não se sustenta, visto que a contabilização deverá ocorrer em razão do tempo efetivamente despen-dido, não havendo dúvida quanto a este aspecto. Ademais, um dos julgados se aventura na afirmação de que a norma do § 2º do art. 58, da CLT, “não se classifica como norma de ordem pública e nem envolve direito indisponível dos empregados”, o que, data venia, não se coaduna com os princípios e regras que norteiam o ramo justrabalhista.

Deve-se esclarecer, ainda, que embora se fale em “flexibilização”, o que ocorre, na verdade, nada mais é do que a renúncia prévia de direitos trabalhistas indisponíveis, consistente na supressão, mesmo que parcial, dos mesmos (FRANÇA, 1994, p. 42). Some-se a isto que o art. 7º, caput, da Cons-tituição Federal, ao indicar a exemplificatividade do rol que lhe segue, deixa claro que outros direitos que venham a ser criados deverão visar à melhoria das condições sociais dos trabalhadores. Logo, o inciso XXVI do art 7º, da CF, não alberga preceito absoluto, uma vez que, mesmo garantido o reconhecimento

14 TRT 3. RO 00651-2009-151-03-00-0. T3. Relator: Juiz Milton Vasques Thibau de Almeida. Jul-gamento: 25/11/2009. Importante mencionar, ainda, no mesmo sentido, os seguintes julgados: TST. AIRR 244/2007-141-03-40.9. T3. Relatora: Ministra Rosa Maria Weber Candiota da Rosa. Jul-gamento: 07/03/2008; TRT 21. RO 01337-2005-020-21-00-7. Pleno. Relatora: Des. Maria de Lour-des Alves Leite. Julgamento: 06/02//2007; TRT 4. RO 0095100-50.2009.5.04.0221. T4. Relator: De-sembargador Hugo Carlos Scheurmann. Julgamento: 07/10/2010.

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dos acordos e das convenções coletivas, estes deverão observar as normas de ordem pública que informam o Direito do Trabalho, sempre respeitando os direitos e garantias mínimos conferidos aos obreiros.

Ademais, permitir a limitação ou supressão de direitos já positivados em normas de aplicação cogente, além de configurar patente ilegalidade, uma vez ausente disposição legal que autorize esta flexibilização, importa em ine-gável retrocesso social, ocasionando, por conseguinte, a inconstitucionalidade do ato frente ao preceito contido no caput do art. 7º da CF.

Impossível ignorar, ainda, que as cláusulas de instrumentos coleti-vos que assim dispõem vão de encontro às prerrogativas institucionais dos sindicatos, previstas na Constituição Federal e na CLT, uma vez que cabe a estes entes a busca incessante da melhoria da condição da classe sindicalizada (art. 7º da CF), competindo-lhes, portanto, a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria representada (art. 8º, III, da CF). Ainda, os princípios aplicáveis às negociações coletivas – o da criatividade jurídica e o da adequação setorial negociada – devem estar sempre em harmonia com as normas estatais, de forma que não agridam os direitos e garantias já conferidos por estas.

Sendo assim, os dispositivos constitucionais e legais asseguradores de direitos e garantias mínimos aos trabalhadores, sobretudo os atinentes à saúde, segurança e higiene destes (art. 7º, inciso XXII, da CF), à irredutibilidade salarial (art. 7º, inciso VI, da CF) bem como à jornada laboral (incisos XIII e XIV do art. 7º da CF), deverão ser irrestritamente observados, sem possibilidade de derrogação, mesmo que pela via coletiva, ressalvadas as hipóteses expres-samente vislumbradas pela lei, sob pena de nulidade, nos termos dos arts. 9º e 444 da CLT. Aliás, este é o entendimento dos julgados a seguir – alguns, aplicáveis por analogia –, de exemplar inteligência:

EMENTA: Estabilidade provisória da empregada gestante (ADCT, art. 10, II, b): inconstitucionalidade de cláusula de convenção coletiva do trabalho que impõe como requisito para o gozo do benefício a comunicação da gravidez ao empregador. 1. O art. 10 do ADCT foi editado para suprir a ausência temporária de regulamentação da matéria por lei. Se carecesse ele mesmo de complemen-tação, só a lei a poderia dar: não a convenção coletiva, à falta de disposição constitucional que o admitisse. 2. Aos acordos e convenções coletivos de trabalho, assim como às sentenças normativas, não é lícito estabelecer limitações

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a direito constitucional dos trabalhadores, que nem à lei se permite.15 (grifo nosso)

AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. RITO SUMARÍSSIMO. HORAS IN INTINERE. Incólume o art. 7º, XXVI, da Constituição Federal. O Tribunal Regional trasla-dou a norma coletiva em questão, a qual não prevê que as horas in itinere seriam computadas na jornada de tra-balho, mas apenas o fornecimento obrigatório e gratuito do transporte aos trabalhadores rurais. E, mesmo que houvesse previsão na norma coletiva, o Tribunal Supe-rior do Trabalho reiteradamente se posiciona no sentido de que deve ser prestigiada a composição espontânea do conflito, tendo em vista o princípio da autonomia privada coletiva consagrado nos artigos 7º, incisos VI, XIII, XIV e XXVI e 8º, inciso VI, da CF/1988. Contudo, esta autonomia da vontade das partes não pode ser absoluta, privando o empregado de garantias mínimas previstas na legislação trabalhista. Os pactos coletivos, também garantidos pela Lei Maior, não emprestam validade, por si sós, à supressão de direitos trabalhistas indisponíveis. A flexibilização das condições de trabalho, em princípio possível em matéria de jornada de trabalho, não pode se sobrepor ao princípio da valorização social do trabalho (artigo 1º, IV, da CF). Precedentes. Agravo de instrumento a que se nega provimento.16 (grifo nosso)

EMENTA: HORAS IN ITINERE. Demonstrado nos autos que o tempo despendido pelo reclamante no percurso entre a residência e o local e trabalho, e vice-versa, é superior àquele previsto na norma coletiva da categoria, tais minutos deverão ser pagos como extras, integral-mente, uma vez que se trata de tempo à disposição do empregador. Inteligência do art. 4º da CLT, da Súmula 90 do TST e do § 2º do art. 58 da CLT. Mesmo antes da inclusão do §2º ao art. 58 da CLT, pela Lei 10.243/2001, tenho ressaltado que a exclusão de horas in itinere por

15 STF. RE 234186. T1. Relator: Min. Sepúlveda Pertence. Julgamento: 05/06/2001.16 TST. AIRR 865-51.2010.5.18.0000. T3. Relator: Ministro Horácio Raymundo de Senna Pires. Jul-gamento: 25/08/2010.

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meio de negociação coletiva é ilegal. A meu ver, existe interdição específica prevista no art. 444 da CLT, segundo o qual as relações contratuais de trabalho podem ser objeto de livre estipulação das partes interessadas em tudo que não contravenha a ordem pública. A primazia da lei sobre a negociação coletiva encontra-se inserida no art. 9º da CLT. Portanto, celebrada convenção ou acordo coletivo que infrinja a lei, é de se decretar a nulidade da cláusula, até mesmo por meio de reclamação individual, sob pena de se negar à Justiça do Trabalho a atribuição de julgar.17 (grifo nosso)

EMENTA: HORAS IN ITINERE. DIREITO FUNDAMENTAL SU-PRESSÃO POR NORMA COLETIVA. IMPOSSIBILIDADE. As horas in itinere são horas de trabalho, motivo pelo qual descabe suprimir seu pagamento, ainda que parcialmente, sob pena de se concluir que o empregado deve trabalhar (nas horas in itinere) sem direito a receber os respectivos salários. Tal regra viola o direito fundamental ao salário, daí a impossibilidade na supressão, ainda que por norma coletiva.18 (grifo nosso)

Logo, possibilitar a negociação sobre o tema das horas in itinere, alçado à condição de norma de ordem pública a partir de sua inclusão no texto consolidado, fora da hipótese expressamente consignada no art. 58, § 3º, da CLT, de forma que implique danos aos obreiros, consistirá em patente afronta ao art. 7º, caput e incisos XIII, XIV e XXII, da CF, e ao próprio art. 58, § 2º, da CLT, além de desobediência ao primado da lei sobre as negociações coletivas, nos termos dos arts. 9º e 444 da CLT.

Logo, negociações coletivas no sentido de suprimir por completo, ou mesmo limitar (supressão parcial), o direito previsto no art. 58, § 2º, da CLT, chanceladas pela Justiça Laboral, configuram flagrante retrocesso das condições sociais dos trabalhadores até hoje conquistadas, uma vez que implicam o reconhecimento de uma suposta condição de igualdade sócio-

17 TRT 3. RO 0142200-57.2009.5.03.0082. T7. Relatora: Desembargadora Alice Monteiro de Barros. Julgamento: 08/07/2010.18 TRT 5. RO 0110700-70.2008.5.05.0431. T1. Relator: Des. Edilton Meireles. Julgamento: 13/09/2010.

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econômica entre a classe trabalhadora e a classe empregadora, o que, de certo, não existe.

Neste sentido, importa transcrever o entendimento consubstan-ciado na Orientação Jurisprudencial nº 31 da SDC do TST, aplicável analogi-camente:

OJ-SDC nº 31 – ESTABILIDADE DO ACIDENTADO. ACORDO HOMOLOGADO. PREVALÊNCIA. IMPOSSIBILIDADE. VIOLAÇÃO DO ART. 118 DA LEI Nº 8.213/91 (INSERIDA EM 19.08.1998) Não é possível a prevalência de acordo sobre legislação vigente, quando ele é menos benéfico do que a própria lei, porquanto o caráter imperativo dessa última restringe o campo de atuação da vontade das partes. (grifo nosso)

6 CONCLUSÃO

Por todo o exposto, resta clara a necessidade de uniformização dos julgados concernentes à flexibilização das horas in itinere, de forma que se prestigie o rol de direitos mínimos conquistados e assegurados pelos tra-balhadores através das normas de ordem pública, que não podem, mesmo com a chancela do Judiciário, ser vulneradas. Ainda, a prevalência do disposto nas normas estatais, quando estas forem mais benéficas ao trabalhador, não enseja, de forma alguma, o engessamento da liberdade sindical, mas garante aos obreiros a vedação do retrocesso dos direitos sociais trabalhistas tão dificilmente alcançados.

Deve-se considerar, ademais, sem embargo da veemência com que se rechaça a impossibilidade de renúncia (ainda que parcial) da norma que dispõe sobre as horas de percurso à disposição do empregador, que os sindi-catos profissionais, mesmo que representem, inegavelmente, instrumento de união e força dos trabalhadores, não estão totalmente isentos das pressões e influências das classes econômicas, o que evidencia, mais uma vez, o perigo de se permitir a flexibilização de matérias como a das horas in itinere.

Sussekind e Maranhão (apud FRANÇA, 1994, p. 43), com propriedade, sintetizam a conclusão do presente estudo, dispondo que “assim como a lei pode criar direitos não previstos na Constituição, nunca, porém, negar os que sejam por esta assegurados, assim também, direitos podem ser criados pela convenção coletiva, mas esta não poderia jamais contrariar os que, por lei,

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sejam garantidos”.Para arrematar, importa destacar o papel do Ministério Público do

Trabalho na busca da prevalência da lei sobre as normas coletivas que impor-tem em desrespeito aos direitos trabalhistas mínimos. A Lei Complementar nº 75/1993, em seu art. 83, inciso IV, atribui ao Ministério Público do Trabalho, expressamente, a função de “propor as ações cabíveis para declaração de nuli-dade de cláusula de contrato, acordo coletivo ou convenção coletiva que viole as liberdades individuais ou coletivas ou os direitos individuais indisponíveis dos trabalhadores”. Assim, resta incontroversa a importância da atuação do órgão ministerial na defesa dos direitos sociais mínimos dos trabalhadores em face de ajustes, inclusive os coletivos, que ameacem os princípios que direcionam e limitam toda a relação empregatícia.

REFERÊNCIAS

BARROS, Alice Monteiro de. Curso de direito do trabalho. 5. ed. rev. e ampl. São Paulo: LTr, 2009.

BELTRAMELLI NETO, Silvio. Limites da flexibilização dos direitos trabalhistas. São Paulo: LTr, 2008.

DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 7. ed. São Paulo: LTr, 2008.

FRANÇA, Milton de Moura. Renúncia de direito às horas in itinere prevista em acordo coletivo: ineficácia. n. 5. São Paulo: Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região – Campinas, 1994, p. 42-44. Disponível em <http://bdjur.stj.gov.br/dspace/handle/2011/18471>. Acesso em: 22/10/2010.

MEIRELES, Ana Cristina Costa; MEIRELES, Edilton. A intangibilidade dos di-reitos trabalhistas. São Paulo: LTr, 2009.

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178 Nulidade das negociações coletivas acerca da “flexibilização”das normas relativas às horas in itinere

NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Iniciação ao direito do trabalho. 31. ed. São Paulo: LTr, 2005.

PLÁ RODRIGUEZ, Américo. Princípios de direito do trabalho. 3. ed. São Paulo: LTr, 2000.

NULLITY OF COLLECTIVE BARGAINING ON THE “FLEXIBILITY” OF IN ITINERE HOURS RULES

ABSTRACT

The in itinere hours rule was originated on the labor courts jurisprudence, becoming later mandatory positive law. Despite of its law and order status, the labor courts jurisprudence has accepted the “flexibility” of this right by means of collective bargaining, regardless there isn’t any compen-sating benefits for the workers covered by this autonomous regulation, which represent blatant social backlash, besides violating trade unions’ institutional purposes in their condition of workers representative. This paper intend to explore the reasons that give rise to the nullity of collective agreement clauses that provides the “flexibility” of in itinere hours right. In the end, it’s found out the need to uniform the sentences regarding this theme, taking into account the precepts on the workers protection, that demand the respect to the minimum rights and guarantees ensured by the Constitution and law, inclusive in the collective sphere, emphasizing the Labor Public Attorney’s role in the pursuit of this aim.

Keywords: Working time. In itinere hours. Flex-ibility. Nullity.

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O TRABALHO INFANTO-JUVENIL DOS ARTISTAS

MIRINS SOB UMAPERSPECTIVA CRÍTICA DO DIREITO FUNDAMENTAL À

PROFISSIONALIZAÇÃO

Ana Paula Barros Amaral OliveiraAcadêmica do 8º período do

Curso de Direito da UFRN.

Nathalie Maia ChungAcadêmica do 8º período do

Curso de Direito da UFRN.

Mariana de SiqueiraProfessora Orientadora

RESUMO

A participação de crianças em programas televisivos, teatros e no cinema é fato bastante comum na atu-alidade, deixando a sociedade perplexa com a apa-rente precocidade dos jovens artistas. Entretanto, a exploração infanto-juvenil no meio artístico pode comprometer sobremaneira a formação dos astros mirins, ocasionando-lhes transtornos psicológicos e adultização precoce, em razão do afastamento do convívio com sua faixa etária, da dedicação exigida, da participação em cenas dramáticas, da vivência de personagens polêmicos e da exposição a que os mesmos ficam sujeitos – que é tamanha a ponto de torná-los, até mesmo, alvos de chacotas na mídia, o que influencia de maneira negativa na formação da personalidade do jovem. De fato, o astro mirim torna-se uma celebridade, não mais podendo sair

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180 O trabalho infanto-juvenil dos artistas mirins sob uma perspectivacrítica do direito fundamental à profissionalização.

em público sem ser assediado pela imprensa, deixando de viver normalmente uma fase funda-mental da vida. Não raro, o labor desempenhado pelos jovens artistas figura em primeiro plano na seara de suas responsabilidades, passando a cri-ança a assumir compromissos incompatíveis com sua idade, que ganham proporções significativas a ponto de limitar a realização de atividades que, em outro contexto, seriam por eles desenvolvidas. É bem verdade que a profissionalização - direito fundamental por excelência dos adolescentes -, é salutar na formação e desenvolvimento dos jovens e deve, bem por isso, ser estimulado no cotidiano. Extrapolar os limites, contudo, passando o labor artístico a ocupar a totalidade da vida do astro mirim, cerceando-lhes outros direitos que igual-mente lhe são assegurados, é prática que merece críticas e, pois, reprimenda na seara jurídica.

Palavras-chave: Direito à profissionalização. Tra-balho infanto-juvenil. Artistas Mirins.

1 INTRODUÇÃO

Consagrado na Constituição Federal de 1988 como direito funda-mental das crianças e dos adolescentes, a ser garantido pela família, sociedade e Estado com absoluta prioridade, o direito à profissionalização dos jovens é tema bastante controverso, que envolve críticas e discussões nas mais diversas áreas do conhecimento.

Se, por um lado, o trabalho de crianças nas ruas e lavouras é conde-nado pela opinião pública, por outro, o trabalho desenvolvido pelos artistas mirins em programas artísticos e televisivos é fonte de aplausos pela sociedade. O ordenamento jurídico, contudo, não distingue tais espécies de labor, sendo expresso no sentido de que é proibido o trabalho dos menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir dos quatorze anos.

A Convenção 138 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), entretanto, ratificada pelo Brasil através do Decreto nº 4.134 de 15 de fevereiro

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181Ana Paula Barros Amaral Oliveira - Nathalie Maia Chung

2002, permite à autoridade competente conceder exceções à proibição do tra-balho infantil para fins artísticos, o que é utilizado como argumento favorável ao exercício desse tipo de atividade por parte daqueles que a defendem.

Decerto, não se pode negar que as conseqüências advindas destas formas de labor são distintas, mas é certo que o segundo também pode acar-retar riscos ao desenvolvimento do jovem, devendo-se indagar: o trabalho desenvolvido pelos astros-mirins é realmente compatível com os preceitos constitucionais de proteção à infância e adolescência e, principalmente, com a contemporânea doutrina da proteção integral?

2 UMA BREVE PERSPECTIVA HISTÓRICA ACERCA DOS DIREITOS DA CRI-ANÇA E DOS ADOLESCENTES

A Constituição Federal de 1988 foi a legislação responsável por sacramentar a tutela atualmente contemplada pelos direitos da criança e do adolescente, ao incorporar a teoria da proteção integral, atingindo ponto culminante na evolução do conhecimento jurídico acerca do tratamento insti-tucional conferido aos pequenos cidadãos. As disposições mais relevantes que a consagram são o art. 7º, XXXIII, e o art. 227, caput e § 3º, todos da Lei Maior.

De fato, conforme afirma Souza (2002), a origem do atual contexto histórico-social da proteção conferida às crianças e adolescentes remonta à Primeira Guerra Mundial, ocasião em que foram concedidos alguns direitos aos jovens cidadãos, conseqüência das pressões sociais exercidas em razão da fragilidade que o mundo vivenciava com o pós-guerra, resultando na elaboração da “Declaração de Genebra”, em 1924.

No entanto, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 foi o principal marco evolutivo da concepção contemporânea dos direitos relativos à pessoa humana. Elaborada sob o reflexo da Segunda Guerra Mun-dial, resgatou os fundamentos da Revolução Francesa, defendendo que os valores ideais de liberdade, justiça e paz no mundo somente seriam alcançados com o anterior reconhecimento da dignidade de todos os seres humanos. Ademais, tal declaração compôs o alicerce para a elaboração da denominada “Doutrina da Proteção Integral das Nações Unidas para a Infância”, construção filosófica que teve suas raízes na Declaração Universal dos Direitos da Criança, de 1959. Nesse documento, foi edificado o princípio norteador de todas as ações voltadas para a infância: o princípio do melhor interesse da criança, segundo o qual os infantes passaram a ser considerados sujeitos detentores

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de direitos próprios, oponíveis, inclusive, em relação aos próprios genitores ou a quaisquer outros indivíduos.

É certo que tal princípio, sem dúvida, deu força para o surgimento da doutrina da proteção integral, tutelado atualmente na Constituição em vigor, segundo a qual, consoante entendimento de Castro (1994, p. 24):

Afirma o valor intrínseco da criança como ser humano; a necessidade de especial respeito à sua condição de pessoa em desenvolvimento; o valor prospectivo da infância e da juventude, como portadores da continui-dade do seu povo, da sua família e da espécie humana e o reconhecimento da sua vulnerabilidade, o que torna as crianças e os adolescentes merecedores de proteção integral por parte da família, da sociedade e do Estado, o qual deverá atuar por meio de políticas específicas para o atendimento, a promoção e a defesa dos seus direitos.

Inserido nesse rol de direitos indispensáveis à formação e tutela dos jovens como seres em desenvolvimento, o direito à profissionalização surgiu com o escopo de garantir a educação dos mesmos e sua inserção satisfatória no mercado de trabalho, sob os limites impostos pela própria legislação pátria e internacional, no afã de evitar o abuso e a exploração dos futuros profissionais, em respeito latente à doutrina da proteção integral.

Desde os primórdios, as relações humanas contemplavam as rela-ções de trabalho. Entretanto, foi com a Revolução Industrial que começaram a surgir os primeiros problemas alarmantes referentes ao trabalho infantil, em que os industriais, a fim de reduzir os custos e maximizar a produção, inseriam as crianças nas linhas de produção, fazendo com que as chamadas “meias-forças” passassem a compor o mercado de trabalho. Exacerbou-se a exploração do trabalho infantil e feminino, tanto que, após protestos sociais, veio à tona a primeira lei de Direito do Trabalho, em 1802, na Inglaterra, como bem afirma Fonseca (1966).

Após a lei inglesa precursora, leis correlatas foram sendo editadas na Europa, até que, em 1919, com a fundação da Organização Internacional do Trabalho, vislumbrou-se o ideal de que o labor dos adolescentes mereceria proteção especial. Nesse sentido, veio a limitar a idade mínima para o trabalho, inicialmente em quatorze, e posteriormente em quinze anos.

Sobrevieram intensos debates a respeito do tema, até que em 1973, a Convenção 138 da OIT, fixou, de forma generalizada, a idade mínima

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de quinze anos, admitindo exceções aos países em desenvolvimento, onde se permite o labor aos quatorze anos, devendo estas nações assumirem o compromisso de, progressivamente, elevar esta idade aos parâmetros gerais.

No tocante à atual Carta Magna de 1988, ao tempo em que foi pro-mulgada, seu art. 7°, XXXIII elevou para catorze anos a idade mínima para o trabalho, exceto no que tange aos aprendizes, em que esta era de doze anos, bem como o trabalho noturno, perigoso ou insalubre foi vedado aos menores de dezoito anos. Todavia, em 1998, a Emenda Constitucional n° 20 alterou o referido inciso, disciplinando ser a idade mínima para o trabalho não mais de catorze anos, mas de dezesseis anos, alterando igualmente a matéria no que compete ao trabalho aprendiz, de doze para catorze anos.

Tal direito foi incorporado no contexto educacional, tanto pela Constituição, nos artigos. 203, III, 205, caput, e 214, IV, quando pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, Lei 8.069/90) em seus artigos. 62 a 69.

3 A DOUTRINA DA PROTEÇÃO INTEGRAL E O DIREITO À PROFISSIONA-LIZAÇÃO

Como dito anteriormente, desde o advento da Carta Magna de 1988, o ordenamento jurídico pátrio encontra-se sob a égide da doutrina da proteção integral, consagrada no art. 227, da Constituição Federal, a qual, além de assegurar um complexo mínimo de direitos fundamentais às crianças e aos adolescentes, acrescentou aos mesmos o status de absoluta prioridade, em homenagem ao princípio da dignidade da pessoa humana e rompendo com a antiga doutrina da “situação irregular”1.

De fato, a nova doutrina consubstancia-se em um conjunto de princípios e normas jurídicas voltadas à efetiva concretização dos direitos das crianças e adolescentes, levando em consideração a condição peculiar de pessoas em desenvolvimento que os mesmos ocupam, estabelecendo responsabilidades pela garantia do pleno desenvolvimento de tais sujeitos de direitos ao Estado, família e sociedade.

1 Tal doutrina, eminentemente restritiva, ocupou o cenário jurídico infanto-juvenil sob a égide do Código de Menores de 1979, por quase um século, limitando-se a tratar dos jovens que se en-quadravam no modelo pré estabelecido de situação irregular, definido em tal dispositivo legal, não enunciando direitos que poderiam ser exigidos judicialmente.

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A proteção integral dos jovens, evidencie-se, não é satisfeita por um mero assistencialismo, mas, do contrário, através dos esforços positivos empreendidos pelos agentes suprarreferidos2, que assumiram o encargo institucional e solidário de assegurar às crianças e aos adolescentes, prioritari-amente, um digno desenvolvimento.

Os direitos estabelecidos constitucionalmente passaram, decerto, a ser exigíveis pelos mesmos, que, diante de uma iminente violação, podem acionar o Poder Público no afã de protegê-los, tendo em vista a necessidade de colocar os jovens a salvo de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Analisando a importância da doutrina da proteção integral Amin (2009, p. 14), afirma, com brilhantismo:

Com o fim de garantir efetividade à doutrina da proteção integral a nova lei previu um conjunto de medidas governamentais aos três entes federativos, através de políticas sociais básicas, políticas e programas de assistência social, serviços especiais de prevenção e atendimento médico e psicossocial às vítimas de negligência, maus-tratos, abuso e proteção jurídico-social por entidades da sociedade civil. Adotou-se o princípio da descentralização político administrativa, materializando-o na esfera municipal pela participação direta da comunidade através do Conselho Municipal de Direitos e Conselho Tutelar.

O direito à profissionalização emerge, neste aspecto, como um dos corolários da doutrina da proteção integral, cuja principal idéia consiste na possibilidade de os jovens, ainda que menores de 18 (dezoito) anos, desen-volverem uma relação trabalhista, uma vez respeitadas as disposições legais, doravante elucidadas.

Nesse sentido, com bem ensina Oliveira (1994), a profissionaliza-ção deve ser entendida como um processo metódico em que se alternam experiências teóricas e práticas, com uma sucessão de tarefas gradualmente mais complexas e tendentes à aquisição, pelo jovem, de um trabalho qualifi-cado ou de uma profissão.

2 Conforme Novo Acordo Ortográfico.

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É bem verdade que, em que pese a peculiar condição de pessoa em desenvolvimento, que, deveras, exige um regime especial de trabalho, com direitos e restrições, a profissionalização é salutar ao processo de formação do jovem, desde que não seja analisada isoladamente e, pois, conviva em um todo harmônico com os demais direitos constitucionalmente garantidos ao empregado mirim.

A profissionalização, deveras, deve permitir que o adolescente possua tempo e condições de exercer outras atividades, que também são de inquestionável importância em seu processo de desenvolvimento, como é o caso, verbi gratia, do direito à educação e à convivência familiar e comunitária, de modo que, uma vez estando estes direitos em conflito, o trabalho não poderá persistir.

Desse modo, convém evidenciar que o exercício de uma atividade laboral por parte de um jovem trabalhador, em hipótese alguma, pode lhe retirar não só o tempo necessário para freqüentar a escola, mas também para estudar o que foi passado em sala de aula, para conviver com sua família, para ter um momento de lazer e até mesmo para descansar. A relação trabalhista, por certo, deve ser apenas um dos fatores que contribuem para o bom de-senvolvimento do jovem, não podendo ocupar sua vida por completo e lhe atribuir responsabilidades que vão além do aconselhável para a faixa etária.

É nesse sentido, a propósito, que o art. 69 do ECA dispõe que o adolescente apenas possui o direito à profissionalização e à proteção do tra-balho quando lhe for assegurado o respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento e capacitação profissional adequada ao mercado de trabalho.

É importante notar que muito embora a Constituição Federal, no art. 227, assegure o direito à profissionalização de maneira genérica às crianças e aos adolescentes, o ECA apenas o faz em relação a estes, como bem se vê nos artigos 60-69, que, em todas as vezes a que se referem a este grupo de pessoas, menciona o termo “adolescente”, não fazendo qualquer alusão às crianças. Quis o legislador garantir este direito apenas aos maiores de doze anos, excluindo, mesmo que indiretamente, os jovens abaixo desta idade?

A despeito das divergências que podem surgir a respeito da mens legis, certo é que a profissionalização, nada obstante ocupe um lugar de extrema importância no processo de formação da criança e do adolescente, sendo deveras relevante como figura complementar ao aprendizado, é um direito que deve ser exercido com extrema cautela, sob pena de todo o con-

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texto que envolve a temática ser descaracterizado, cujas principais vítimas serão os próprios jovens.

4 O TRABALHO INFANTIL: REALIDADE SOCIAL VERSUS REALIDADE JU-RÍDICA

Como se sabe, a exploração do trabalho infantil, ainda nos tempos atuais, é uma realidade constante nos países subdesenvolvidos, não sendo diferente no Brasil. As causas da precoce inserção das crianças no mercado de trabalho são múltiplas e complexas. A decisão de laborar, com o conseqüente abandono escolar, é influenciada tanto pela escassez de recursos financeiros da família do jovem, como também, em alguns casos, pela suposta atratividade do mercado de trabalho onde os mesmos serão inseridos e o permanente descrédito com relação ao sistema escolar.

Oportuno evidenciar, neste aspecto, que, apesar de haver norma constitucional3 expressa proibindo o trabalho infantil, o cotidiano da socie-dade brasileira demonstra que a disposição da Lei Maior é ignorada, sendo comum a utilização da mão de obra infantil, principalmente nas ruas e nas zonas rurais do país.

A realidade é assustadora: segundo levantamento da PNDA (Pesqui-sa Nacional por Amostra de Domícilio), divulgada pelo IBGE (Instituo Brasileiro de Geografia Estatística) no ano de 2008, mais de 1,2 (um vírgula dois) milhões de crianças de cinco a treze anos ainda eram vítimas de exploração no ano de 2007, como bem expôs Uchinaka (2008).

Discorrendo sobre a temática, assim afirma Amsus (2005, p. 10):

O trabalho diminui o tempo disponível da criança para seu lazer, vida em família, educação, e de estabelecer relações de convivência com seus pares e outras pessoas da comunidade em geral. Além disso, experimentam um papel conflitante na família, no local de trabalho, e na

3Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:OmissisXXXIII - proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de qual-quer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos. (Grifo acrescentado)

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comunidade, pois como trabalhadores, adolescentes e crianças são levados a agir como adultos, porém não podem escapar do fato de que são sujeitos em desen-volvimento. Estes fatores são uma fonte de desgaste e podem afetar o desenvolvimento emocional, cognitivo e físico.

Em que pese a disparidade existente entre o disposto na legislação em vigor e a realidade social do Brasil, insta evidenciar que, a partir da edição do Estatuto da Criança e do Adolescente, a proteção ao trabalho infantil pas-sou a receber maior atenção na seara jurídica.

Diante dessa situação, e buscando combater qualquer forma de exploração de mão de obra infantil, o ordenamento jurídico brasileiro esta-belece um conjunto de normas protetivas a favor desse grupo populacional, fornecendo diretrizes, limites e condições mínimas para que o jovem possa trabalhar. Qualquer modalidade laboral que vá de encontro aos preceitos legais, deve ser considerada trabalho precoce e, portanto, ilegítimo.

Como se disse alhures, o Estatuto da Criança e do Adolescente, em consonância com a Constituição Federal, proíbe qualquer espécie de labor aos menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir dos quatorze anos, nos termos do art. 60, do ECA.

Pois bem. A Consolidação das Leis Trabalhistas, em seus arts. 402-410, disciplina a “proteção do trabalho do menor”, este considerado como aquele exercido pelo trabalhador entre quatorze e dezoito anos, sendo expressa em proibir que tal espécie laboral se realize em locais prejudiciais a formação, desenvolvimento físico, psíquico, moral e social, e em horários e locais que não permitam a freqüência escolar do jovem.

Os adolescentes de idade compreendida entre quatorze e dezesseis anos, repita-se, podem fazer parte do contrato de aprendizagem, espécie la-boral ajustada por escrito e por prazo determinado, não superior a dois anos, pelo qual o empregador se compromete a assegurar ao jovem, inscrito em programa de aprendizagem, formação técnico-profissional metódica com-patível com o seu desenvolvimento físico, moral e psicológico, consoante se observa dos ensinamentos de Barros (2010).

Trata-se, de fato, de uma formação técnico-profissional, conforme prevê art. 428, da CLT, e art. 62, do ECA, realizada por meio de atividades teóricas e práticas, racionalmente organizadas em tarefas de complexidade progressiva, desenvolvidas no ambiente de trabalho. Convém evidenciar, na oportunidade,

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que o aprendiz é empregado regido efetivamente pelo Direto do Trabalho, sendo destinatário de normas previstas na Consolidação das Leis Trabalhistas.

No que tange especificamente ao ECA, dispositivo legal sob o qual cinge-se o presente artigo, cumpre evidenciar que nele são estabelecidos parâ-metros mínimos sobre o direito à profissionalização e à proteção no trabalho para as crianças e adolescentes, prevendo, no art. 67 e incisos, vedações que devem ser observadas para o labor infanto-juvenil.

Inicialmente, mister ressaltar que configura por trabalho educativo a atividade laboral em que as exigências pedagógicas relativas ao desenvolvi-mento pessoal e social do educando prevaleçam sobre o aspecto produtivo, consoante art. 68, §1º, do ECA.

Outrossim, o programa social que tenha por base tal forma de traba-lho, sob responsabilidade de entidade governamental ou não-governamental sem fins lucrativos, deverá assegurar ao jovem que dele participe condições mínimas de capacitação para o exercício de atividade regular remunerada, conforme dicção do art. 68 do ECA. Evidencie-se, inclusive, que a remuneração devida ao adolescente aprendiz não desconfigura o caráter educativo de tal espécie laboral.

Desse modo, é vedado ao adolescente empregado, aprendiz, em regime familiar de trabalho, aluno de escola técnica, assistido em entidade governamental ou não governamental, a realização de trabalho noturno (aquele compreendido entre as vinte e duas horas de um dia e as cinco horas do seguinte), perigoso, insalubre, penoso, realizado em locais prejudiciais a sua formação e ao seu desenvolvimento físico, psíquico, moral e social, bem como aquele que não permita a freqüência escolar.

Como se vê, o trabalho infantil, no cenário jurídico atual, possui i-númeras limitações e peculiaridades, em razão da própria condição dos jovens como seres em desenvolvimento, de modo que, qualquer forma laboral que vá de encontro aos preceitos estabelecidos pela legislação pátria, torna-se ilegítima e, pois, merecedora de críticas.

5 AS NUANCES DO LABOR DESEMPENHADO PELOS ARTISTAS MIRINS

Conforme discorrido em linhas anteriores, o artigo 403, parágrafo único, e o artigo 67, III, ambos do ECA, vedam ao jovem de catorze a dezoito anos incompletos o trabalho exercido em locais prejudiciais à sua formação, ao seu desenvolvimento físico, psíquico, moral e social, e em horários e locais que não permitam a freqüência à escola.

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Questão bastante discutida nos tempos hodiernos diz respeito ao trabalho desempenhado por crianças e adolescentes no meio artístico, surgindo altercações acerca dos limites desta atividade, buscando-se saber até que ponto a mesma mostra-se salutar ao jovem ou, em caso contrário, prejudicial ao seu desenvolvimento. A respeito do tema, manifesta-se Minhar-ro (2003, p. 61):

A questão do trabalho artístico desempenhado por crianças e adolescentes sempre suscitou discussões. Há os que entendem que não se pode impedir que os pequenos demonstrem seus dons criativos, proibindo-os de cantar, representar e dançar em público, compor, desfilar etc. Outros opinam que este tipo de trabalho é tão árduo quanto aos demais e que, assim como todos os outros, roubam da criança o tempo necessário para estudar, brincar e desenvolver-se.

Não se pode negar, é verdade, que as conseqüências acarretadas aos jovens artistas são bem diferentes daquelas ocasionadas às crianças que tra-balham nas ruas, por exemplo. Todavia, especialistas alertam haver igualmente riscos para o desenvolvimento dos astros mirins, segundo afirma o procurador Rafael Dias Marques, vice-presidente da Coordenação Nacional de Combate à Exploração do Trabalho de Crianças e Adolescentes do Ministério Público do Trabalho: “as pessoas assistem com mais naturalidade quando o trabalho é artístico. Mas tanto em novelas quanto nas lavouras há trabalho infantil e ele é proibido”. (MARQUES apud RACHEL, 2009, p.1).

A questão gera intensas polêmicas e divide opiniões de especialis-tas a respeito da temática, mormente ao vislumbrarem-se as consequências acarretadas in casu, oriundas da atuação precoce de crianças e adolescentes no meio artístico, a exemplo do caso que gerou significativa repercussão na mídia e imprensa, referente à apresentadora mirim Maísa da Silva Andrade, que trabalhava ao lado do apresentador Silvio Santos do SBT, no quadro “Pergunte para Maísa”, exibido no “Programa Silvio Santos”. Nas perguntas direcionadas à criança, era ela constantemente alvo de deboches e chacotas, em geral des-tinadas a ridicularizá-la perante os telespectadores, o que resultou, inclusive, em paródias veiculadas sobre a menina em sítios eletrônicos internacionais.

O desrespeito à condição de infante da jovem artista foi tamanho que toda sociedade pode presenciá-lo no dia 14 de maio de 2010, durante o mencionado quadro, ocasião em que Maísa teve uma crise de choro ao ficar

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frente a frente com um menino fantasiado de monstro. Antes disso, chegou ela a pedir desesperadamente ao apresentador Silvio Santos para que não o deixasse entrar no palco, haja vista estar ela apavorada, pedido este não atendido, sendo visível o propósito da situação em divertir o público às custas do temor da menina. Nervosa e assustada, Maísa saiu do palco chorando e acabou batendo com a cabeça em uma câmera.

Após deixar o palco do programa chorando por dois domingos consecutivos, a apresentadora mirim, de apenas seis anos de idade, passou a ser observada de perto pelo Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente de São Paulo, responsável por analisar, por meio das imagens dos programas veiculadas na internet, se a menina sofreu algum tipo de cons-trangimento. O Procurador do Trabalho de Osasco, Orlando Schiavon Junior, chegou a impetrar uma Ação Civil Pública em que pede à Justiça do Trabalho aplicação de indenização de um milhão de reais, pelos danos morais causados à criança, em virtude do desrespeito a normas que protegem os menores de idade e a exposição pública da mesma (MINISTÉRIO..., 2009).

Atualmente, Maísa apresenta um programa compatível com a sua idade e situação de ser em desenvolvimento, no programa Sábado Animado do SBT, que vai ao ar das 7h às 12h45.

Muito embora determinadas situações, como a explanada, se con-figurem indiscutivelmente como subversivas à formação psicológica do jovem, capaz de ocasionar transtornos que irão refletir diretamente na construção de sua personalidade, não se deve reconhecer que toda e qualquer atividade artística seja atentatória aos artistas infanto-juvenis, mas apenas aquelas que desrespeitam as condições peculiares dos mesmos.

Nesse sentido, convém ressaltar o pensamento de José Roberto Dan-tas Oliva (2006), que reconhece ser um problema considerar toda e qualquer atividade artística infanto-juvenil como imorais, tendo em vista o momento histórico de criação da norma, uma vez que os valores eram completamente diferentes e certamente influenciaram o legislador, merecendo interpretação diferenciada para os tempos contemporâneos.

Na tentativa de ajudar a sanar a subjetividade do conceito de imoral, o legislador previu o artigo 405, § 3º da CLT, mencionando espécies de trabalho consideradas prejudiciais ao jovem. Não obstante tal dispositivo, somente uma interpretação teleológica, capaz de apreciar a evolução dos costumes, e não aquela puramente literal, impedirá que se rotule como imoral o trabalho artístico em geral. Nesse afã, caberá ao aplicador do direito aferir situações em que o trabalho artístico infanto-juvenil ocasiona, de fato, prejuízos graves

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à formação e desenvolvimento moral, psíquico e social das crianças e adoles-centes. Ressalte-se que se reconhece a necessidade de disciplinar a matéria, todavia sob a cautela de evitar a generalização, permitindo vislumbrar-se as nuances de cada caso concreto.

Nesse diapasão, a Convenção nº 138 da OIT, anteriormente men-cionada, ratificada pelo Brasil, relativiza a proibição ao trabalho infantil, esta-belecendo que:

Art. 8º.1. A autoridade competente, após consulta com as organizações de empregadores e de trabalhadores interessadas, se as houver, podem, mediante licenças concedidas em casos individuais, permitir exceções à proibição de emprego ou trabalho disposto no artigo 2º desta Convenção, para fins tais como participação em representações artísticas. 2. Permissões dessa natureza limitarão o número de horas de duração do emprego ou trabalho e estabe-lecerão as condições em que é permitido.

Sob essa ótica, segundo posicionamento de Peres (2005), numa interpretação sistemática e harmônica entre as previsões constitucionais e do ECA, bem como a disposição abarcada pela OIT, aos pequenos artistas é conferido o direito à liberdade de expressão e de desenvolver talentos inatos, assim como o acesso aos níveis mais elevados de ensino, inclusive de criação artística, de acordo com a capacidade de cada um, a teor do artigo 208, V da Carta Magna.

No cumprimento deste escopo, as escolas figuram como o espaço primordial de estímulo às atividades artísticas e incentivo à cultura, ambiente propício para que talentos sejam descobertos na idade e nas condições a-dequadas.

Em contrapartida, papel relevante também deve ser exercido pelos pais dos jovens artistas, no afã de limitarem a responsabilidade a que seus filhos ficariam submetidos, impedindo que atinja patamares capazes de prejudicar a execução de atividades compatíveis e saudáveis à idade do jovem, permitindo-os o direito ao lazer, ao descanso, ao pleno desenvolvimento físico e psíquico.

Corroborando com este entendimento, afirma, com brilhantismo, a psicanalista Olmos apud Vita (2009): “Isso não quer dizer que eles não possam trabalhar em um espetáculo. Mas a criança precisa ser preservada pela família.

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Quanto mais perto da escola e do seu grupo etário maior será a garantia de se ter uma vacina contra situações de exagero”.

De mais a mais, em quaisquer situações, caberá ao juiz analisar a mínima possibilidade de comprometimento da formação moral do adolescente capaz de ser provocada pelo trabalho dos artistas mirins, caso em que deverá negar a permissão para este labor, atento ao fato de que, tanto o ócio, como o trabalho artístico pode revelar-se extremamente pernicioso a depender das circunstâncias de cada caso.

6 CONCLUSÃO

Muito embora seja o direito à profissionalização dos jovens garanti-do, de maneira expressa, no ordenamento jurídico pátrio a nível constitucional, a inexistência de regulação específica acerca do trabalho desenvolvido pelos astros mirins no meio artístico, de um lado, e os diversos abusos praticados no cotidiano, de outro, demonstram, com clarividência, a temeridade de que pode se revestir esta modalidade laboral.

É bem verdade que o meio artístico pode revelar-se um ambiente adequado e até mesmo propício ao surgimento das novas celebridades e ele, por si só, não é nocivo aos interesses da criança e adolescente, nem compro-mete os demais direitos fundamentais que lhes são garantidos. As variadas im-plicações que podem advir da dedicação exigida e da conseqüente exposição a que o jovem fica submetido, contudo, é que deve ser tratada com cautela.

De fato, a criança, vista como ser em desenvolvimento, não pode ser submetida a um trabalho precoce, tampouco exposta às suas conseqüências, mormente quando da observância da vivência prática pode-se perceber que, por mais nobre e consagrado pela mídia que seja o trabalho dos jovens artis-tas, o desgaste e o estresse à que os mesmos ficam sujeitos acarretam-lhes conseqüências psicológicas muitas vezes irreparáveis.

N’outro giro, não se pode olvidar que o trabalho desempenhado pelos artistas mirins é uma expressão de sua criatividade e que, bem por isso, pode e deve ser impulsionado, todavia com extrema parcimônia e em estrita observância às condições peculiares do labor e da própria criança.

Como alternativa, e forma de preservar as aptidões artísticas dos jovens, estas devem ser estimuladas, cabendo em especial às escolas o pa-pel de incentivá-las, por intermédio do fomento à arte e cultura, tendo em vista que esse é o local propício para talentos serem descobertos da maneira

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adequada. Infelizmente, a realidade vem se comportando de outra maneira, pois o exercício do direito à profissionalização pelos jovens astros no meio midiático ocorre de maneira arriscada, orientando-se, na maioria das vezes, apenas e tão somente pela finalidade lucrativa.

Diante da omissão legislativa sobre o tema, cabe em especial à jurisprudência o relevante papel de definir em que situações será possível o trabalho dos jovens astros no meio artístico, desde que o faça com cautela e em respeito a elementos jurídicos variados.

A relevância do tema, a propósito, se torna ainda mais evidente quando se percebe que a discussão não envolve apenas aspectos psicológicos, mas também e, principalmente, o imperativo de bem se pensá-lo juridica-mente.

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195Ana Paula Barros Amaral Oliveira - Nathalie Maia Chung

VITA, Rachel. Trabalho infantil: a gente vê na TV. Disponível em: <http://mer-cadoetico.terra.com.br/arquivo/trabalho-infantil-a-gente-ve-na-tv>. Acesso em: 25 out. 2010.

THE YOUTHFUL WORK OF JUNIOR ARTISTS FROM A CRITICAL PERSPECTIVE OF THE FUN-DAMENTAL PROFESSIONALIZATION RIGHT

ABSTRACT

The participation of kids in television programs, theater and cinema is a common fact in the current days, leaving the society perplex with the seem-ing forwardness of the young artists. However, youth exploration in the those situations could greatly complicate the formation of young stars, causing psychological disorders and early aging, because of the separation of their age group, the dedication that is required, the participation in dramatic scenes, the experience with controversial character and the exposition that they are sub-mitted – that is so big that make them target of jokes in the media, what influences in a negative way in the generation of the personality of the child. In fact, the young artist becomes a celeb-rity, what impede them to go in public without being besieged by the journalists. Sometimes, the labor realized by the young star becomes the first responsibility of them, passing the child to take over many commitments incompatibles with their condition, that earn significant proportions that limit the realization of some activities that, in other context, could be performed by them. It is true the de professionalization – fundamental right par excellence of teenagers -, is relevant to the development process of the youth, and

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196 O trabalho infanto-juvenil dos artistas mirins sob uma perspectivacrítica do direito fundamental à profissionalização.

should, because of this, be stimulated day by day. Transcend the limits, although, passing the artistic work to occupy the entire life of the junior artist, restricting other rights that are also guaranteed to them, is a practice that deserve critical, and, so, reprimand in the legal harvest.

Keywords: Professionalization right. Youth work. Junior Artists.

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SUCESSÃO PRESIDENCIALINTERINA: BREVES

CONSIDERAÇÕES SOBRE A POSSIBILIDADE DE DEPUTADO

FEDERAL COM IDADE INFERIOR A 35 ANOS, NA CONDIÇÃO DE PRESIDENTE DA CÂMARA DOS DEPUTADOS, ASSUMIR A PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA

INTERINAMENTE

Tiago Mantoan Farias NunesAcadêmico do 7º período daFaculdade Batista Brasileira.

Monitor de Direito Constitucional II

RESUMO

Possuindo como tema central e fio condutor a sucessão presidencial interina disposta no art. 80, da Constituição Federal, o trabalho examina, em síntese, uma contextualização sobre a idade mínima como condição de elegibilidade e assunção ao car-go de Presidente da República, discorrendo sobre a possibilidade da Chefia do Executivo Nacional ser assumida pelo Presidente da Câmara dos Deputa-dos, ou Câmara Baixa, que, à época da vacância ou impedimento do Presidente e Vice-Presidente da República, possua idade inferior a 35 anos. Sabe-se, prima facie, que para os cargos de Presidente, Vice-Presidente da República, Senador Federal e Ministro do Supremo Tribunal Federal, se faz imprescindível o preenchimento de alguns requisitos, dentre os quais a idade mínima de 35 anos. Porém, para ser eleito Deputado Federal, representante do povo, a

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198 Sucessão presidencial interina: breves considerações sobre a possibilidade de Deputado Federal com idade inferior a 35 anos, na condição de Presidente da Câmara dos Deputados,

assumir a Presidência da República interinamente

Constituição exigiu a idade mínima de 21 anos (art. 14, § 3º, VI, “c”) como condição de elegibilidade, sendo silente o texto constitucional no tocante à idade para galgar e assumir o cargo de Presidente da Câmara dos Deputados. Em suma, o presente trabalho aborda a possibilidade de Deputado Federal, com idade inferior a 35 anos, na condição de Presidente da Câmara dos Deputados, poder as-sumir de forma provisória e interina a Presidência da República, respeitando a sucessão constitucio-nal interina disposta em Constituição.

Palavras-chave: Direito Constitucional. Poder E-xecutivo. Sucessão Presidencial Interina. Condição e Requisitos de Elegibilidade. Três Poderes. Poder Legislativo. Câmara dos Deputados.

“Conhecer o espírito de um homem significa conhecer sua história; e conhecer uma história

não é somente conhecer a sucessão dos fatos, mas encontrar o elo que os liga”.

(Francesco Carnelutti)

1 INTRODUÇÃO

Situado no cerne do debate constitucional, tendo como tema central e fio condutor a sucessão presidencial interina, disposta no art. 80, da Constituição Federal, o presente trabalho examina, em síntese, uma contex-tualização sobre a idade mínima como condição de elegibilidade e também sobre a assunção ao cargo de Presidente da República, discorrendo sobre a possibilidade da Chefia do Executivo Nacional (Presidência da República) vir ser assumida pelo Presidente da Câmara dos Deputados que, à época da vacância ou impedimento do Presidente e Vice-Presidente da República, pos-sua idade inferior a 35 anos, idade esta tida como condição para se pleitear cargo de Presidente da República (art. 14, § 3º, VI, “a”, da CF), posto que, para

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199Tiago Mantoan Farias Nunes

ser Presidente da Câmara Baixa, conseqüentemente, Deputado Federal, repre-sentante do povo no Congresso Nacional, necessita-se de 21 anos, no mínimo (art. 14, § 3º, VI, “c”, da CF).

Dentro da temática ora sugerida, buscou-se evidenciar a possibili-dade da assunção ao cargo de Chefia do Executivo pelo Presidente da Câmara dos Deputados que, à época da vacância ou impedimento do Presidente e Vice-Presidente da República, respectivamente, possua idade inferior a 35 anos. Sem embargos, para se eleger Deputado Federal a Constituição da República determina que o candidato à investidura do cargo eletivo deve ter idade mínima de 21 anos (art. 14, § 3º, VI, “c”). Assim, buscou-se descobrir se a idade mínima, como condição de elegibilidade, implicaria impedimento na assunção do Presidente da Câmara dos Deputados ao cargo de Presidente da República (art. 80, da Magna Charta).

Em suma, nosso objetivo é fomentar a discussão acerca de uma omissão constitucional no tocante a sucessão presidencial interina, a saber, de um Deputado Federal com idade inferior a 35 anos, na condição de Presidente da Casa, poder assumir provisoriamente o cargo de Presidente da República, isso sem sequer cogitar a hipótese de dissipar e exaurir o presente assunto, primeiro pela falta de aptidão – no sentido semântico da palavra – do autor que subscreve, sem contar, ademais, pela riqueza e importância do assunto para a nação, em eventual acontecimento.

Finalmente, na conclusão da questão ora levantada, em atenção ao princípio da simetria constitucional estendemos o entendimento a casos mui semelhantes, quais sejam, onde Deputado Estadual (Presidente de Assembléia Legislativa) com idade inferior a 30 anos possa vir assumir interinamente o Governo de Estado ou do Distrito Federal, bem como de Vereador (Presidente da Câmara Municipal) que, à época de impedimento ou vacância, possua idade inferior a 21 anos.

2 DA IDADE MÍNIMA COMO CONDIÇÃO DE ELEGIBILIDADE

O sistema presidencialista é uma tradição brasileira que se iniciou com a primeira Constituição da República, promulgada em 24 de fevereiro de 1891 e, doravante, as sucessivas Constituições, de modo geral, se mantiveram firme nesse sistema de governo, inclusive após o plebiscito de 1993, onde o povo escolheu definitivamente o sistema e a forma de governo da República Federativa do Brasil (art. 2º, ADCT). Nessa perspectiva, portanto, o Poder Exe-

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200 Sucessão presidencial interina: breves considerações sobre a possibilidade de Deputado Federal com idade inferior a 35 anos, na condição de Presidente da Câmara dos Deputados,

assumir a Presidência da República interinamente

cutivo Nacional é exercido, em sua plenitude, pelo Presidente da República que, eleito periodicamente pelo povo (art. 1º, parágrafo único, CF), e auxiliado por seus Ministros de Estado, concentra sua função nas chefias do Estado e Governo. 1 É valido aduzir, dessa forma, que os rumos políticos e as direções da nação estão totalmente concentrados nas mãos do representante do povo. 2

Quiçá o cargo de Presidente da República é o mais alto e almejado em um sistema presidencialista, porquanto este exerce a representação má-xima de um Estado soberano. Para que uma pessoa possa investir candidatura em cargo eletivo, todavia, faz-se em regra observância de certos requisitos, que são chamados em doutrina de condições de elegibilidade, e a Constituição da República é o local mais que adequado para tratar sobre o assunto. 3

O constituinte, sabendo da importância dessa matéria, determinou que para investir-se nos cargos de Presidente, Vice-Presidente da República, Presidente da Câmara dos Deputados, do Senado Federal e Ministros – de modo geral – do Supremo Tribunal Federal (ordem sucessória presidencial, no caso de impedimento ou vacância: art. 80, da Constituição), o indivíduo deve ter, primordialmente, a condição de brasileiro nato (conforme determina o art. 12, § 3º, incisos I, II, III e IV, respectivamente, da Carta Política de 1988).

Evitando, destarte, que pairassem dúvidas acerca do conceito de brasileiro nato, o próprio constituinte achou por bem a tarefa de defini-lo na Constituição Federal, verbis:

Art. 12. São brasileiros:I – natos:a) os nascidos na República Federativa do Brasil, ainda que de pais estrangeiros, desde que estes não estejam a serviço de seu país;b) os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou mãe brasileira, desde que qualquer deles esteja a serviço da República Federativa do Brasil;c) os nascidos no estrangeiro de pai brasileiro ou de mãe brasileira, desde que sejam registrados em repartição brasileira competente ou venham a residir na República

1 Cf. MORAES, Alexandre. Direito constitucional. 22ª ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 453.2 MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O espírito das leis. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 19-23.3 VELLOSO, Carlos Mário da Silva; AGRA, Walber de Moura. Elementos de direito eleitoral. 1ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 551.

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Federativa do Brasil e optem, em qualquer tempo, depois de atingida a maioridade, pela nacionalidade brasileira.

Mister salientar, neste viés, que a Constituição Federal adotara, como regra, o aspecto territorial (jus soli) para enfatizar os nascidos em solo brasileiro. Contudo, em alguns casos, v.g., como nas alíneas “b” e “c”, do art. 12, a própria Lei Fundamental faz exceção à regra quando afasta o requisito territorial para acolher o jus sangüinis e o fator funcional e o fator residencial. 4

Para os cargos eletivos de modo geral, exceto para o cargo de Mi-nistro do Supremo Tribunal Federal, que é por nomeação (art. 101, parágrafo único), a Constituição Federal exige algumas determinadas condições de elegibilidade (art. 14, § 3º) para que cidadão possa investir em cargo eletivo: a) nacionalidade brasileira (em alguns casos, como visto, deve ser nata); b) pleno exercício dos direitos políticos; c) alistamento eleitoral; d) domicílio eleitoral na circunscrição; e) filiação partidária; e f ) idade mínima.

Para tratarmos com mais afinco a matéria ora suscitada, apegar-no-e-mos, doravante, a esta última condição de elegibilidade, “a idade mínima”, um dos requisitos para investidura em cargo eletivo. A partir daí poderemos firmar um raciocínio preciso e lógico atinente à questão.

O professor gaúcho Joel José Cândido nos ensina com acuidade, no tocante a idade mínima como condição de elegibilidade, que “ao estabelecer a idade mínima como condição de elegibilidade, o legislador adotou o critério meramente biológico”. 5 Outrossim, a despeito deste requisito constitucional, exigido para investidura em cargo eletivo, afirma a nossa Constituição:

Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:§ 3º – São condições de elegibilidade, na forma da lei:VI – a idade mínima de:a) trinta e cinco anos para Presidente e Vice-Presidente da República e Senador;

4 MENDES, Gilmar Ferreira et al. Curso de direito constitucional. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 766-769; CUNHA, Dirley. Curso de direito constitucional. 3ª ed. Salvador: Juspodivm, 2009, p. 749-752.5 Cf. CÂNDIDO, Joel José. Direito eleitoral brasileiro. 10ª ed. Bauru: Edipro, 2003, p. 119.

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assumir a Presidência da República interinamente

b) trinta anos para Governador e Vice-Governador de Estado e do Distrito Federal;c) vinte e um anos para Deputado Federal, Deputado Estadual ou Distrital, Prefeito, Vice-Prefeito e juiz de paz;d) dezoito anos para Vereador. (grifo nosso)

A norma em epígrafe determina a condição de elegibilidade para os cargos eletivos de Presidente, Vice-Presidente da República e Senador Federal, a idade mínima de 35 anos. Pode-se visualizar, não obstante, que ao comple-tar 35 anos de idade o cidadão brasileiro adquire o ápice de sua capacidade eleitoral para pleitear mandato político.

Ademais, no tocante ao quesito de idade mínima de 35 anos, esta é, também, condição exigida pela Constituição Federal para que cidadão brasileiro nato venha ser empossado Ministro do Supremo Tribunal Federal, como já dito alhures. Esta condição, todavia, não se assemelha em nada a condição de elegibilidade, que é requisito para poder ser eleito periodica-mente pelo povo, mas é necessária para poder ser nomeado pelo Presidente da República, após sabatina do Senado Federal, ipsis litteris:

Art. 101. O Supremo Tribunal Federal compõe-se de onze Ministros, escolhidos dentre cidadãos com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada.Parágrafo único. Os Ministros do Supremo Tribunal Federal serão nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal. (grifo nosso)

Podemos concluir, pois, que para exercer o cargo de Presidente, Vice-Presidente da República, Senador Federal e Ministro da Corte Suprema (STF), imprescindível se faz dar devida atenção aos requisitos constitucional da idade mínima de 35 anos e o de brasileiro nato.

Cumpre ressaltar, por outro lado, que para ser Deputado Federal, em atenção do disposto no art. 14, § 3º, VI, “c”, da Constituição, necessário é possuir idade mínima de 21 anos. 6 Ademais, ressalta-se que para ser Presi-

6 A idade mínima para eleger-se é, inclusive, tema de tremenda discórdia doutrinária no que atine sobre o momento que se deve realmente verificar a condição de elegibilidade constitu-

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dente da Câmara dos Deputados necessário é antes ter sido eleito Deputado Federal, haja vista que o cargo de Presidente da Câmara Baixa é conseqüência do preenchimento das condições de elegibilidade, de ser eleito pelo povo, e de ser brasileiro nato.

Assim, surge a incógnita: há possibilidade de Deputado Federal com idade inferior a 35 anos, porém que esteja na condição de Presidente da Câmara dos Deputados, vir assumir o cargo de Presidente da República nos casos de impedimento ou vacância deste e do Vice-Presidente, em consonância ao que determina o art. 80, da Constituição Federal?

3 DO BREVE ESCORÇO HISTÓRICO SOBRE A SUCESSÃO PRESIDENCIAL NAS CONSTITUIÇÕES REPUBLICANAS DO BRASIL

Como outrora exposto, o presidencialismo esteve presente em todas as Constituições do Brasil, exceto a Constituição Imperial de 1824, sendo, pois, este sistema de governo uma tradição brasileira que teve por início a Consti-tuição de 1891. A figura do Presidente da República, ao menos em nosso país, talvez seja uma das mais importantes e sua função possui papel de relevo para nação de modo geral, tendo em vista que este é o representante máximo do Estado soberano brasileiro.

Partindo do pressuposto que haveria situações em que o Chefe do Executivo Nacional não poderia exercer suas funções e atribuições, seja por impedimento, seja por vacância, o constituinte originário precisou prever uma saída para que o Estado não viesse a estagnar em um de seus cargos mais importantes, até porque, como já dizia um famoso cantor brasileiro, o tempo não pára!

cional: na data do registro de candidatura, da diplomação ou da posse? A Lei n. 9.504/97, no art. 11, § 2º dispõe que “a idade mínima constitucionalmente estabelecida como condição de elegibilidade é verificada tendo por referência a data da posse”. Entretanto, como poderiam ser explicados e punidos os atos ilícitos praticados por menores em sua campanha eleitoral? Por outro lado, se um menor entre 16 e 18 anos possui “capacidade” para escolher o rumo do país, através do sufrágio universal, por que não poderia se tornar elegível para tomar posse quando completar sua maioridade? Porém, não nos ateremos a este assunto, cuja temática é de grande importância, sob pena de fugirmos, por completo, do foco de estudo do presente trabalho, até porque estamos tratando de situação onde indivíduos (políticos) já foram eleitos e devidamente empossados para seu mister e ofício.

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assumir a Presidência da República interinamente

Para o alemão Carl Schmitt, a Constituição de uma nação é o próprio Estado e o Estado é a própria Constituição, e desta situação concreta e fática surge o conjunto da unidade política e ordenação da sociedade e do Estado 7. Tendo, pois, o Estado uma forma escrita que é a Constituição, este mesmo diploma deve prever tal situação, ou seja, o impedimento e a vacância do representante de Estado e de Governo. Destarte, o caminho mais apropriado encontrado pelo constituinte originário, ao menos em nosso país, fora o da sucessão presidencial provisória.

As Constituições brasileiras de modo geral assim o fizeram. A Consti-tuição de 1891, a despeito da temática, tratou a linha sucessória presidencial no país no art. 41, §§ 1º e 2º:

Art 41. Exerce o Poder Executivo o Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil, como chefe eletivo da Nação.§ 1º. Substitui o Presidente, no caso de impedimento, e sucede-lhe no de falta o Vice-Presidente, eleito simul-taneamente com ele.§ 2º. No impedimento, ou, falta do Vice-Presidente, serão sucessivamente chamados à Presidência o Vice-Presidente do Senado, o Presidente da Câmara e o do Supremo Tribunal Federal.

Nota-se que a Carta Política de 1891 aduz que no impedimento ou falta do Presidente e Vice-Presidente, o Vice-Presidente do Senado Federal seria o substituto na sucessão presidencial, isso porque o então Presidente do Senado Federal era o próprio Vice-Presidente da República.

Por sua vez, a Constituição de 1934 dispôs o assunto no art. 52, § 8º, in verbis:

Art. 52. O período presidencial durará um quadriênio, não podendo o Presidente da República ser reeleito senão quatro anos depois de cessada a sua função, qualquer que tenha sido a duração desta.§ 3º. Se a vaga ocorrer nos dois últimos anos do período, a Câmara dos Deputados e o Senado Federal, trinta dias

7 Apud SILVA, José Afonso. Aplicabilidade de normas constitucionais. 7ª ed. São Paulo: Ma-lheiros, 2008, p. 27.

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após, em sessão conjunta, com a presença da maioria dos seus membros, elegerão o Presidente substituto, mediante escrutínio secreto e por maioria absoluta de votos.§ 8º. Em caso de vaga no último semestre do quadriênio, assim como nos de impedimento ou falta do Presidente da República, serão chamados sucessivamente a exercer o cargo o Presidente da Câmara dos Deputados, o do Senado Federal e o da Corte Suprema.

O constituinte, aqui, mudou completamente à regra da linha sucessória presidencial interina, passando para o Presidente da Câmara dos Deputados à substituição direta do Presidente da República, em havendo impedimento ou vacância deste, tendo em vista que neste período há uma característica peculiar, a saber, não havia Vice-Presidente da República. A des-peito dessa Carta Política, vale tecer alguns breves comentários.

A norma do § 3º, do art. 52, da Constituição de 1934, dispunha que haveria eleição indireta (pela reunião da Câmara dos Deputados e Senado Fe-deral) para Presidente da República se a vaga (vacância) ocorresse nos últimos dois anos, não diferente do que temos hodiernamente em nosso sistema, que admite a eleição indireta (art. 81, § 1º, da Lei Maior de 1988).

Por outro lado, o § 8º, do art. 52, da Carta Política de 34, declarava não haver necessidade da eleição indireta se faltassem somente seis meses restantes para o término do mandato presidencial, devendo assumir os Presidentes da Câmara dos Deputados, do Senado Federal e do Supremo Tribunal Federal para cumprir mandato tampão, isto é, para completar o período de seu antecessor. No tocante a impedimentos do Presidente da República, estes membros da cadeia sucessória sempre assumiriam, de forma interina e provisória.

Portanto, na Constituição de 1934 se houvesse vaga do cargo de Presidente da República nos últimos dois anos de mandato, haveria eleição indireta pelas Câmaras Baixa e Alta para escolha do novo Presidente. Sempre que houvesse impedimento, ou restando seis meses para término do mandato presidencial, iriam assumir o Presidente da Câmara, do Senado Federal e do Supremo Tribunal Federal.

Seguindo a linha cronológica, após pouco tempo de vigência da Carta de 1934, surge a Constituição de 1937, dispondo a sucessão presidencial de modo mais diferente:

Art. 77 – Nos casos de impedimento temporário ou

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assumir a Presidência da República interinamente

visitas oficiais a países estrangeiros o Presidente da República designará, dentre os membros do Conselho Federal, o seu substituto.Art. 78 – Vagando por qualquer motivo a Presidência da República, o Conselho Federal elegerá dentre os seus membros, no mesmo dia ou no dia imediato, o Presidente provisório, que convocará para o quadra-gésimo dia, a contar da sua eleição, o Colégio Eleitoral do Presidente da República. § 1º – Caso a eleição do Presidente provisório não possa efetuar-se no prazo acima, o Presidente do Conselho Federal assumirá a Presidência da República, até a eleição, pelo Conselho Federal, do Presidente provisório.

Da mesma forma que a Constituição de 1934, na Constituição de 1937 não existiu a figura do Vice-Presidente da República. O mais interessante, neste diploma, fora que os únicos que alcançariam a Chefia do Executivo Na-cional, por sucessão presidencial, seriam os membros do Conselho Federal, pois o Executivo, na ocasião, detinha poderes sobre o Legislativo, a ponto de destituir a Câmara dos Deputados (art. 75, “b”), a única Casa Legislativa na época, tendo em vista que o então Presidente da República, Getúlio Vargas, havia dissolvido o Senado Federal.

A Constituição de 1946 trouxe a sucessão presidencial de modo caso semelhante a que possuímos atualmente em nossa vigente Carta Política, não fosse a previsão do Vice-Presidente do Senado ser o terceiro na linha sucessória, vez que o Vice-re Presidente da República presidia a Casa dos representantes dos Estados – Câmara Alta, in verbis:

Art 79 – Substitui o Presidente, em caso de impedi-mento, e sucede-lhe, no de vaga, o Vice-Presidente da República. § 1º – Em caso de impedimento ou vaga do Presidente e do Vice-Presidente da República, serão sucessivamente chamados ao exercício da Presidência o Presidente da Câmara dos Deputados, o Vice-Presidente do Senado Federal e o Presidente do Supremo Tribunal Federal.

A Constituição de 1967 e sua EC n. 1, de 1969 trazem previsão como a de atualmente:

Constituição de 1967 – Art 80. Em caso de impedimento

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do Presidente e do Vice-Presidente, ou vacância dos respectivos cargos, serão sucessivamente chamados ao exercício da Presidência o Presidente da Câmara dos Deputados, o Presidente do Senado Federal e o Presidente do Supremo Tribunal Federal.Emenda Constitucional n. 1, de 1969 – Art. 78. Em caso de implemento do Presidente e do Vice-Presidente ou vacância dos respectivos cargos, serão sucessivamente chamados ao exercício da Presidência o Presidente da Câmara dos Deputados, o do Senado Federal e o do Supremo Tribunal Federal.

A Constituição Federal de 1988, promulgada em 05 de outubro, não muito diferente da última, dispõe em seus arts. 79, caput, e 80, a linha sucessória presidencial interina:

Art. 79. Substituirá o Presidente, no caso de impedi-mento, e suceder-lhe-á, no de vaga, o Vice-Presidente.Art. 80. Em caso de impedimento do Presidente e do Vice-Presidente, ou vacância dos respectivos cargos, serão sucessivamente chamados ao exercício da Presidência o Presidente da Câmara dos Deputados, o do Senado Federal e o do Supremo Tribunal Federal.

Outrossim, em havendo vacância ou impedimento do Presidente e do Vice-Presidente da República, serão sucessivamente chamados ao exercício do cargo, em caráter provisório, os Presidentes da Câmara dos Deputados, do Senado Federal e do Supremo Tribunal Federal, daí a necessidade dos membro destes cargos serem brasileiros natos (art. 12, § 3º, da Constituição).

Se houver, todavia, vaga para os cargos de Presidente e Vice-Presi-dente da República, fazer-ser-á nova eleição (direta, pelo povo) noventa dias após aberta a última vaga (art. 81, caput), caso isso ocorra nos dois primeiros anos. Faltando dois anos, porém, para o término do mandato presidencial, realizar-se-á eleição trinta dias após aberta a última vaga, de forma indireta, pelo próprio Congresso Nacional, na forma da lei.

4 CONCEITO DE IMPEDIMENTO E VACÂNCIA

Consoante ao que preconiza o art. 79, da Constituição, o Presidente

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assumir a Presidência da República interinamente

será sempre sucedido (vaga) e substituído (impedimento) pelo Vice-Presidente da República. Imprescindível se faz ressaltar, portanto, a diferenciação entre os conceitos de vacância e impedimento, que se distinguem no tocante a pos-sibilidade de retorno ao cargo pela ausência curta do afastamento.

Em evidência, nos ensina o professor Pedro Lenza que “vacância nos dá uma idéia de impossibilidade definitiva para assunção do cargo (cassação, renúncia ou morte), enquanto a substituição tem caráter temporário (por exemplo: doença, licença e férias)”. 8 Impedimento, por sua vez, nas precisas e imortais lições do professor Plácido e Silva, é “significar todo obstáculo, todo embaraço, toda oposição, seja de ordem física ou de ordem legal que vem to-lher ou vedar a execução do ato ou criar situação para que ele não se pratique”.9

A vacância é, pois, a impossibilidade definitiva de retorno ao cargo, sendo dentre os dois institutos aqui abordados, quiçá seja o de maior peso. Por outro lado, o impedimento é um fator temporário que acaba por afastar o agente de seu cargo por motivo de curto espaço temporal, v.g., férias ou licença, ou ainda para tratamento médico adequado.

Em suma, mister frisar que havendo impedimento (afastamento temporário) ou vacância (afastamento definitivo), quem assume prioritária e primordialmente a Presidência da República é o Vice-Presidente da República. Este assume (como substituto) a Chefia do Executivo Nacional enquanto durar o impedimento, porque, se houver vacância, o Vice-Presidente assume (sucessão) até o final do mandato, isso em respeito ao art. 79, in fine, da Con-stituição Federal. 10

Vale trazer à baila um exemplo para elucidação da matéria: em decorrência de cassação, pelo Tribunal Superior Eleitoral – TSE, do Governado do Estado do Tocantins, Sr. Marcelo Miranda (PSDB), tornando, portanto, vago o cargo, assumiu o Governo daquele Estado, de forma interina e provisória, o então Presidente da Assembléia Legislativa, Sr. Carlos Henrique Gaguim

8 LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 11ª ed. São Paulo: Método, 2007, p. 459.9 SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 21ª ed. São Paulo: Forense, 2003, p. 849.10 Importante destacar que para haver nova eleição presidencial (ex vi do art. 81, caput e § 1º, da CF) a vacância deve ser de ambos os cargos (Presidente e Vice-Presidente da República – art. 81, caput), não de um, pois havendo vaga (impedimento definitivo) tão-somente do cargo do Presi-dente, assume o Vice-Presidente da República (art. 79, in fine). No campo prático e da realidade, vale lembrar quando o Sr. Fernando Collor de Mello, 32º Presidente da República, fora cassado de seus direitos políticos (havendo vaga, portanto), vindo assumir a Presidência da Republica o Sr. Itamar Franco Augusto Cautiero Franco, então Vice-Presidente da República na época.

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209Tiago Mantoan Farias Nunes

(PMDB), que convocou, no prazo de 30 dias, eleições indiretas (votaram so-mente os Deputados Estaduais) para escolha do novo Governador do Estado. No dia 08 de outubro de 2009, o então Governador provisório tornou-se Go-vernador do Estado do Tocantins, sendo eleito (de forma indireta) para chefiar o Executivo Estadual no “mandato tampão” até dia 31 de dezembro de 2010.

5 SUCESSÃO PRESIDENCIAL: ELEGIBILIDADE VERSUS ASSUNÇÃO

Quiçá a problemática central do presente trabalho gire em torno da seguinte incógnita: a idade mínima como condição de elegibilidade pode ser motivo que impeça Deputado Federal, na condição de Presidente da Câmara dos Deputados, que tenha idade inferior a 35 anos, à época do impedimento ou vacância do Presidente e Vice-Presidente República, de exercer a Chefia do Executivo por assunção de forma interina e provisória?

Não se olvide que a Constituição no art. 14, § 3º, se refere a condições de elegibilidade e não sobre a possibilidade de assunção, como se pode pas-sar despercebido em breve leitura à norma constitucional. Urge, portanto, a necessidade de trazer o conceito desses dois vocábulos.

Imprescindível se faz ressaltar, ab initio, os ensinamentos de Gilmar Ferreira Mendes no tocante à interpretação de normas jurídicas, in verbis:

Inicialmente, sem necessidade de enfrentar as tormen-tosas discussões que se travam no terreno da lingüística, diremos, com a generalidade dos autores, que a inter-pretação de qualquer norma jurídica é uma atividade intelectual que tem por finalidade precípua – estabe-lecendo o seu sentido –, tornar possível a aplicação de enunciados normativos, necessariamente abstratos e gerais, a situações da vida, naturalmente particulares e concretas. 11

A elegibilidade, segundo Alexandre de Moraes, “é a capacidade eleitoral passiva na possibilidade de o cidadão pleitear determinados mandatos políticos, mediante eleição popular, desde que preenchidos certos requisitos”.12

11 MENDES, Gilmar Ferreira et al. Ob. cit., p. 77.12 MORAES, Alexandre. Ob. cit., p. 222.

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210 Sucessão presidencial interina: breves considerações sobre a possibilidade de Deputado Federal com idade inferior a 35 anos, na condição de Presidente da Câmara dos Deputados,

assumir a Presidência da República interinamente

Em mesma sintonia é a lição de José Afonso da Silva:

Elegibilidade se refere à capacidade eleitoral passiva, à capacidade de ser eleito. Tem elegibilidade, portanto, quem preencha as condições exigidas para concorrer a um mandato eletivo. Consiste, pois, a elegibilidade no direito de postular a designação pelos eleitores a um mandato político no Legislativo ou no Executivo. 13

Por outro lado, para elucidar a expressão assunção, pede-se venia para transcrever mais uma vez o ensinamento do professor alagoano Plácido e Silva, quando afirma:

[Assunção é] palavra derivada de assumptio, de assumere (assumir, receber para si), vem significar o ato pelo qual uma pessoa, a quem se nomeou ou se elegeu para desempenho de determinadas funções, assume o seu cargo ou posto. Precisamente, em virtude de designa-ção, por nomeação ou eleição, e seguida da posse, que são atos preliminares e materiais para o exercício do cargo, este exercício passa a executar-se, e o empos-sado, por motivo de assunção, pode legitimamente desempenhar todas as atribuições e funções inerentes ao mesmo. Assim, a assunção é ato que se segue à posse e dela decorre. 14

Podemos perceber, nesse ínterim, que a condição de elegibilidade disposta no art. 14, § 3º, da Constituição, refere-se como regra àqueles que podem ser eleitos, ou seja, os elegíveis propriamente ditos, pessoas físicas de-tentoras de direitos políticos que preencham as condições constitucionais para investidura em cargo eletivo. Por outro lado, a assunção é o ato de assumir, e, no caso em questão, nos aponta o exercício e função do Chefe do Executivo Nacional, a saber, o Presidente da República.

Nessa esteira, não há que se falar, prima facie, em dúvida referente às demais figuras na sucessão ao cargo da Presidência da República (os Presi-dentes do Senado Federal e do Supremo Tribunal Federal), porquanto, como

13 SILVA, José Afonso. Ob. cit., p. 366.14 SILVA, De Plácido e. Ob. cit., p. 90.

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211Tiago Mantoan Farias Nunes

dito em linhas atrás, a própria Constituição Federal impõe a estes cargos o condição mínima de 35 anos para elegibilidade e nomeação, respectivamente.

Visualizando, entretanto, pela assunção da Chefia do Executivo por Deputado Federal, cuja Constituição impôs condição de elegibilidade a idade de 21 anos, podemos perceber uma grotesca omissão constitucional em um tema de tamanha importância para a nação: a sucessão presidencial interina. O constituinte originário fora omisso nesse sentido, não há que negar.

Não obstante isso, visando sanar a problemática ora suscita, fomos buscar no Regimento Interno da Câmara dos Deputados norma que impedisse Deputado Federal com idade inferior a 35 anos assumir a Presidência daquela Casa e, conseqüentemente, esta vedação implicaria total impedimento no as-sumir a Chefia do Executivo Nacional nos casos de impedimento ou vacância do Presidente e Vice-Presidente da República, momento em que talvez se pudesse imaginar que estaria sanado tal equívoco.

O Regimento Interno da Câmara dos Deputados quando dispõe sobre a eleição de sua mesa, precisamente no título I, capítulo III, seção II, entre os arts. 5º e 8º, omite o assunto como o fez a nossa Constituição da República.

Entretanto, mesmo que de fato houvesse impedimento no Regi-mento Interno da Câmara Baixa para que Deputado Federal com idade menor de 35 anos viesse a assumir a Presidência da Casa, entendemos que haveria evidente inconstitucionalidade de tal norma regimental, haja vista que estaria por violar o princípio da isonomia, erigido na Constituição, porque eleito Deputado Federal, este pode assumir Comissões e inclusive cargo na Mesa Diretora da Casa. 15

Partindo do pressuposto de que não existe vedação constitucional para Deputado Federal vir assumir o cargo de Presidente da Câmara dos Deputados, podemos concluir que havendo, pois, impedimento ou vacância do Presidente e Vice-Presidente da República, aquele não só pode como deve assumir a Chefia do Executivo Nacional provisoriamente, mesmo que à época

15 Sobre o princípio da igualdade e isonomia, ensina o saudoso professor baiano Dirley da Cunha: “O direito à igualdade é o direito que todos têm de ser tratados igualmente na medida de em que se igualem e desigualmente na medida em que se desigualem, quer perante a ordem jurídica (igualdade formal), quer perante a oportunidade de acesso aos bens da vida (igualdade material), pois todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. A exigência de igualdade decorre do princípio constitucional da igualdade, que é um postulado básico da de-mocracia, pois significa que todos merecem as mesmas oportunidades, sendo defeso qualquer tipo de privilégio e perseguição. O princípio em tela interdita tratamento desigual às pessoas iguais e tratamento igual às pessoas desiguais” (CUNHA, Dirley da. Ob. cit., p. 658).

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212 Sucessão presidencial interina: breves considerações sobre a possibilidade de Deputado Federal com idade inferior a 35 anos, na condição de Presidente da Câmara dos Deputados,

assumir a Presidência da República interinamente

tenha idade inferior a 35 anos, porquanto a Constituição exige o preenchi-mento deste requisito para ser eleito periodicamente pelo povo – e não passar assumir interinamente a determinado cargo.

Assim, é fácil verificar que há diferença gritante entre elegibili-dade (art. 14, § 3º) e a possível e provável assunção ao cargo de Presidente da República, preconizada no art. 80, da Constituição. Estamos tratando de situação jurídica onde o parlamentar (nesse caso, Deputado Federal) já fora devidamente eleito (portanto, cumpriu com as condições de elegibilidade) e fora empossado para exercer tal mister.

6 CONCLUSÃO

Podemos visualizar em linhas atrás que para os cargos de Presidente, Vice-Presidente da República, Presidente do Senado Federal, da Câmara dos Deputados e do Supremo Tribunal Federal, se faz necessário, primordialmente, a condição de brasileiro nato, como assim determina o art. 12, § 3º, da Con-stituição Federal.

Outrossim, embora o indivíduo possua este requisito constitucional de brasileiro nato e deseja investir-se em cargo eletivo, exceto o de Ministro do Supremo Tribunal Federal, que é cargo indicado de forma política, vimos que mister se faz outras condições instituídas pela própria Constituição, que em doutrina são concebidas por condições de elegibilidade. O trabalho desta-cou uma, dentre as seis condições, a saber, o da idade mínima. Não se olvide, assim, que o constituinte estabeleceu o critério meramente biológico para elegibilidade de cargos políticos.

Diante de todo o exposto, e com base no entendimento amplo acerca da assunção na sucessão presidencial interina, acreditamos que Depu-tado Federal que possua à época da vacância ou impedimento do Presidente e Vice-Presidente da República, esteja na condição de Presidente da Câmara dos Deputados, não só pode como deve assumir o cargo de Chefia do Executivo, visto não haver no ordenamento jurídico brasileiro qualquer vedação que o impeça para tal mister.

Urge ressaltar, por outro lado, que mesmo se houvesse impedimento no sistema jurídico, que não fosse pela própria Constituição Federal, haveria patente vício de inconstitucionalidade de tal norma, vez que há diferença entre o instituto da assunção a cargo e condição de elegibilidade.

Não obstante, havendo vaga ou impedimento dos cargos de Presi-

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dente e Vice-Presidente da República, o Presidente da Câmara Baixa (Câmara dos Deputados) deve, sim, ser chamado ao exercício da Chefia do Executivo, caso não esteja impedido, independentemente se possuir idade inferior a 35 anos na data da vaga ou do impedimento, conforme o art. 80, da Constituição.

Entretanto, destaca-se que o art. 81 e seu § 1º dispõem que havendo vacância dos cargos de Presidente e Vice-Presidente da República haverá sempre eleição para escolha de Presidente e Vice-Presidente da República. Na verdade o que irá diferenciar será a exteriorização da eleição, que em um caso será direta (pelo povo) e, no outro, será indireta (pelo Congresso Nacional).

Assim sendo, em havendo nova eleição para os cargos de Presidente e Vice-Presidente da República, em havendo vacância, os candidatos ao pleito deverão atender todas as condições de elegibilidade do art. 14, § 3º, da Cons-tituição da República.

Nessa hipótese, de novo eleição presidencial por vacância dos cargos de Presidente e Vice-Presidente da República, o Presidente da Câmara dos Deputados, que possua idade inferior a 35 anos, não poderá participar do pleito como candidato, posto que não preenche as condições de elegibi-lidade no tocante a idade mínima (art. 14, § 3º, VI, da Constituição Federal), devendo permanecer no cargo, caso não haja impedimento seu, até a posse dos sucessores.

É de bom alvitre trazer à baila, ainda, que a linha sucessória presi-dencial é assunto de grande relevância, não ocupando, destarte, tão-somente os meios acadêmicos e científicos. A substituição do Chefe do Executivo tem ocorrido nos casos de crise e normalidade institucional, como, v.g., quando o Presidente da Câmara dos Deputados, Sr. Arlindo Chinaglia, assumiu a Presidên-cia da República em outubro de 2007, quando o Presidente da República, Sr. Luís Inácio Lula da Silva, viajou para a Suíça, e o Vice-Presidente da República, Sr. José Alencar Gomes da Silva, substituto primário, encontrava-se internado para tratamento hospitalar em São Paulo.

Outrossim, na esfera Estadual, urge trazer à baila quando a De-sembargadora Sílvia Zarif, então Presidente do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, assumiu o Governo daquele Estado provisória e interinamente em setembro de 2008 pelo impedimento do Vice-Governador e do Presidente da Assembléia Legislativa. Na ocasião, destaca-se que esta fora a primeira mulher a governar o Poder Executivo da Bahia, mesmo que provisória e interinamente.

Como citado nas considerações introdutórias, pelo princípio da si-metria constitucional não poderíamos deixar de estender nosso entendimento para outros dois casos que, ao nosso ver, também podem ser suscetíveis de

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214 Sucessão presidencial interina: breves considerações sobre a possibilidade de Deputado Federal com idade inferior a 35 anos, na condição de Presidente da Câmara dos Deputados,

assumir a Presidência da República interinamente

assunção e merecem atenção, como é o caso de Vereador, com idade inferior a 21 anos, que venha exercer a Chefia do Executivo Municipal, na condição de Presidente da Câmara Municipal, de acordo com a interpretação do art. 14, § 3º, VI “c” e “d”.

Em mesma esteira, consoante ao que dispõe o art. 14, § 3º, VI “b” e “c”, da Constituição Federal, a situação de Deputado Estadual que ocupe o cargo de Governador de Estado, provisória e interinamente, desde que, com idade inferior a 30 anos, esteja na condição de Presidente da Assembléia Legislativa.

Concluímos, portanto, que na República Federativa do Brasil pode haver situação em que podemos ter um Presidente da República com idade inferior a 35 anos, desde que esteja na condição de Presidente da Câmara dos Deputados e que assuma a Presidência da República de forma provisória e interina, ex vi do que dispõe o art. 80, combinado com o art. 14, § 3º, “c”, da Constituição Federal.

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215Tiago Mantoan Farias Nunes

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216 Sucessão presidencial interina: breves considerações sobre a possibilidade de Deputado Federal com idade inferior a 35 anos, na condição de Presidente da Câmara dos Deputados,

assumir a Presidência da República interinamente

PROVISORY PRESIDENTIAL SUCCESSION: BRIEFLY CONSIDERATIONS ABOUT THE POSSI-BILITY OF A FEDERAL DEPUTY UNDER 35 YEARS BECOMES AN INTERIM REPUBLIC PRESIDENT.

ABSTRACT

Based on a central theme and a thread conduct to assume the interim presidency written in art. 80, of the Federal Constitution, the project analyzes, in synthesis to contextualize about the minimum age as an electoral condition to assume the posi-tion of a Republic President, discussing about the National Executive Command, being assumed by the Congress Deputies Leader, or the Low Con-gress, which is time of vacancy or stoppage of the Republic President and Vice President, who is under 35 years. Known, initially, for the Republic President and Vice President Position, Federal Senator and Federal Supreme Court Minister, it is indispensable the fulfillment of some require-ments, such as being 35 years as the minimum age. However, to be elected as a Federal Deputy, people’s representative, the Constitution requires 21 years as the minimum age (art. 14, § 3º, VI, “c”) as the electoral condition, being silent the constitutional text, refers to the age to assume the Congress Deputies Leader. In fact, this project presents the possibility of a Federal Deputy, under 35 years, in the condition of the Congress Depu-ties Leader, assume in a provisional and interim condition, the Republic Presidency, respecting the assuming interim constitutional written in the Constitution Letter.

Keywords: Constitutional Law. Executive Branch. Provisory Presidential Succession. Condition and requirements eligibility. Separation of powers. Legislative Branch. Chamber of Deputies.

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TUTELA COLETIVA DOSIDOSOS: UM ENFOQUESOBRE O ESTATUTO DOIDOSO E ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO

Pedro Jorge Emiliano Guedes AlcoforadoAcadêmico do 7º período do

Curso de Direito da UFRN.Monitor da disciplina de

Direito Penal IV

Paulo Renato Guedes BezerraProfessor Orientador

RESUMO

Nos últimos anos tem-se observado cada vez mais um número maior de pessoas idosas em nosso país, as quais vêm sendo discriminadas e tendo seus direitos preteridos nas mais diversas esferas: seja no mercado de trabalho; na previdência; na saúde; e tantas outras. O presente estudo tem como ob-jetivo discutir a tutela coletiva dos idosos, quando estes têm seus direitos lesados enquanto membros de uma coletividade. A Lei nº 10.741 instituiu o Es-tatuto do Idoso, o qual veio elencar os direitos de tais pessoas, e o Ministério Público é o órgão legiti-mado na tutela destes, inclusive quando o direito for individual indisponível, por isso não iremos nos omitir da análise deste último, com o fim de tratar-mos da referida lei de uma forma mais completa, já que no próprio capítulo sobre a tutela coletiva o mesmo é abordado. Assim sendo, iremos analisar as disposições mais relevantes do Estatuto, e como o

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218 Tutela coletiva dos idosos: Um enfoque sobre oEstatuto do Idoso e atuação do Ministério Público

Ministério Público tem atuado na sua efetivação, expondo também o Microssistema Processual Coletivo Brasileiro e sua estruturação em nosso ordenamento, para melhor compreendermos a tutela coletiva. Nos utilizamos da doutrina pátria e da jurisprudência para fazer uma análise de como os direitos da pessoa idosa, seja numa coletividade ou individualmente estão sendo aplicados na re-alidade brasileira, após o advento do Estatuto do Idoso e suas inovações.

Palavras-chave: Tutela coletiva dos idosos. Esta-tuto do idoso. Ministério Público. Microssistema processual coletivo brasileiro.

1 INTRODUÇÃO

Na Constituição de 1988, os Direitos e Garantias Fundamentais rece-beram uma atenção especial, estão expressos logo no início da Carta Magna, no Título II, Capítulo I, o qual passa a expor “Dos Direitos e Deveres Individuais Coletivos”, ou seja, observamos que os direitos coletivos foram inseridos nos Direitos Fundamentais, e a partir de então passaram a receber gradativamente a atenção que fazem jus.

O artigo 5º, XXXV também expôs o princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário, assim não mais a tutela jurisdicional se restringe ao Direito Individual, é nesse contexto que o Processo Coletivo dá os primeiros passos no nosso Ordenamento. Ainda não há um Código de Processo Coletivo, mas sim o que a doutrina tem chamado de “Microssistema Processual Coletivo Brasileiro”, o qual é formado por diversos instrumentos normativos, os quais devemos relacioná-los entre si, de modo que haja uma integração, para que uma sirva de base conceitual para o outro.

Na tutela coletiva, a matéria litigiosa discutida envolve uma cole-tividade de indivíduos, se verifica uma estrutura molecular, ao contrário da estrutura atômica verificada nos direitos individuais. Por tal relevância é dever do Estado agir em defesa da sociedade, através de órgãos como o Ministério Público e a Defensoria Pública que estão entre os legitimados para buscar a solução desses conflitos metaindividuais.

Assim sendo, iremos discutir a tutela coletiva dos idosos. Nos dias

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219Pedro Jorge Emiliano Guedes Alcoforado

de hoje, se observa como essas pessoas vêm sendo alvo da discriminação e sofrendo com as barreiras e desigualdades crescentes em nossa sociedade, nesse contexto surge o Estatuto do Idoso, com o objetivo de proteger e trazer garantias as pessoas com mais de 60 anos, as quais merecem uma maior pro-teção por parte do Estado, devido a sua natural hipossuficiência na maioria dos casos. É comum se observar a aplicação de golpes contra elas, como também outros atos que atingem não apenas um, mas vários idosos, nesses casos o Estatuto do Idoso delega ao Ministério Público protegê-los: “Art. 74. Compete ao Ministério Público: I – Instaurar o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção dos direitos e interesses difusos ou coletivos, individuais indisponíveis e individuais homogêneos do idoso;”.

Nesse contexto, faremos uma abordagem de como está estruturado o Processo Coletivo Brasilero, e a tutela coletiva dos idosos, observando o Estatuto do Idoso e como o Ministério Público está atuando na defesa destes, inclusive no que se refere à tutela individual, fazendo uma análise doutrinária e jurisprudencial do assunto.

2 MICROSSISTEMA PROCESSUAL COLETIVO BRASILEIRO

A tutela coletiva no Direito Brasileiro vem sendo construída ao longo do tempo com o surgimento de leis que tratam da defesa não mais de uma só pessoa, e sim de diversas, o relacionamento entre elas não está alocado em um interesse público ou privado, lembrando que quando nos referimos ao primeiro, estamos falando daquele que envolve o relacionamento entre o Estado e o indivíduo, enquanto que o segundo diz respeito aos indivíduos entre si, os quais podem dispor de seus direitos. Como podemos verificar na obra de Hugo Nigro Mazzilli (2005, p. 17):

Entre essas duas categorias básicas (interesse público e interesse privado), existe uma categoria intermediária de interesses que não são meramente individuais, porque transcendem os indivíduos isoladamente considerados, mas também não chegam a constituir interesse do Estado nem de toda a coletividade: são os interesses transindividuais, também conhecidos como metaindividuais.

São esses interesses que passaram a ter uma atenção especial do

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220 Tutela coletiva dos idosos: Um enfoque sobre oEstatuto do Idoso e atuação do Ministério Público

Processo Coletivo, pois devem receber uma tutela jurisdicional própria, e é isso que se verifica atualmente, um conjunto de princípios próprios que atendem as peculiaridades e estão aptos a resolver situações, as quais o processo civil comum não tinha como resolver.

Assim como em todo o direito processual, as leis que tratam da tutela coletiva estão baseadas em um conjunto de princípios e garantias do direito constitucional processual, ou seja, aqueles princípios previstos na Constituição sobre processo, os quais fundamentam a teoria geral do processo, como o contraditório, o devido processo legal, a ampla defesa, entre outros.

Os instrumentos normativos que constituem o microssistema pro-cessual coletivo (a Lei da Ação Civil Pública; da Ação Popular; da Improbidade Administrativa e o Código de Defesa do Consumidor1), devem ser aplicados de forma integrativa e harmônica. Sempre que duas dessas leis puderem ser aplicadas, deverão ser aplicadas de modo que uma servirá de base conceitual para a outra, com isso se atingirá ao máximo a tutela coletiva dos direitos pleiteados, evitando os litígios individuais, assim como também irá se alcançar uma maior efetividade da justiça.

No livro de co-autoria de Didier & Zaneti (2009, p.123) sobre Pro-cesso Coletivo, estes renomados autores expõem: “Antes de voltar os olhos para o sistema geral, o intérprete deverá examinar, no conjunto legislativo que constitui o microssistema, se não existe uma norma melhor e mais ade-quada a correta pacificação com justiça”, ou seja, o Código de Processo Civil será aplicado de forma subsidiária, conforme também se verifica no artigo 22 da Lei da Ação Popular: “Aplicam-se à ação popular as regras do Código de Processo civil, naquilo em que não contrariem os dispositivos desta lei, nem a natureza específica da ação”.

Após as breves explanações no sentindo de situar o leitor sobre o processo coletivo, a seguir iremos expor as principais leis que formam esse microssistema. O primeiro instrumento na luta pela defesa dos direitos cole-tivos foi a Lei nº 4.717/65, que instituiu a Ação Popular, essa lei apesar de já legitimar o cidadão para impugnar ato ilegal e lesivo ao patrimônio público, era muita restrita, legitimando o cidadão a atuar apenas nessas duas hipóteses,

1 Estes são os principais instrumentos normativos, portanto, faremos explanações breves somen-te dessas leis, tendo em vista que esse tópico objetiva apenas expor noções gerais sobre o pro-cesso coletivo brasileiro, os quais serão fundamentais ao entendimento dos tópicos seguintes, e não fazer uma abordagem exauriente sobre o tema.

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221Pedro Jorge Emiliano Guedes Alcoforado

sem falar que este se encontrava numa posição bastante desprivilegiada ao litigar contra o poder público, réu nesses tipos de ações.

Por isso, se diz que apenas em 1985 com a Lei nº 7347 da Ação Civil Pública, e com as transformações que a Constituição de 1988 e o Código de Defesa do Consumidor trouxeram, a tutela coletiva passou a ser realmente efetiva, conforme exposição de Gregório Assagra de Almeida (2003, p. 265):

A partir da entrada em vigor da Lei nº 7347, de 24 de julho de 1985, que verdadeiramente instituiu a ação civil pública no Brasil, operacionalizou-se no ordenamento jurídico brasileiro uma revolução, transformando-se de ordenamento de tutela jurisdicional de direito individu-al, para ordenamento de tutela jurisdicional também de direitos e interesses massificados. Inicialmente a tutela era admitida de forma mais restrita, tendo em vista que o rol, pelo texto aprovado da Lei da Ação Civil Pública, era taxativo; contudo, com a Constituição Federal (art. 129, III), observa-se que a referida taxatividade da ACP não mais existia, por falta de recepção constitucional, o que se tornou inquestionável com a entrada em vigor do Código de Defesa do Consumidor.

Por força do artigo 129, inciso III da Constituição, o qual afirma como uma das funções institucionais do Ministério Público: “promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos”, não mais ficou limi-tado o objeto da referida ação, sendo reforçado com o Código de Defesa do Consumidor que por meio do artigo 110, influenciou o retorno do inciso IV a LACP, o qual havia sido vetado, dispondo agora que qualquer outro interesse difuso ou coletivo poderá ser tutelado pela mesma.

Com a Lei nº 8.078/90, que institui o Código de Defesa do Consumi-dor, e passou a dispor do art. 91 ao 100 sobre as ações coletivas, houve uma integração deste com a LACP, gerando uma sintonia e interação indispensáveis para a defesa dos direitos difusos, coletivos stricto sensu e os individuais ho-mogêneos – em breve iremos expor e diferenciá-los.

A lei de improbidade administrativa nº 8429/92 foi fundamental no controle jurisdicional exercido atualmente aos agentes públicos no Brasil, tanto no âmbito do executivo, legislativo e judiciário. A Constituição já previa os atos de improbidade administrativa em seu art. 37, §4º: “os atos de impro-

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222 Tutela coletiva dos idosos: Um enfoque sobre oEstatuto do Idoso e atuação do Ministério Público

bidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”, e a referida lei veio a regulamentar o que está expresso no referido artigo.

Para concluir o tópico, comentaremos de forma breve as três mo-dalidades de direitos coletivos: direitos difusos, os direitos coletivos stricto sensu e os direitos individuais homogêneos.

O Código de Defesa do Consumidor, no parágrafo único do artigo 81 expõe e diferencia as três categorias. Os direitos difusos são aqueles transindi-viduais (pertencentes a uma coletividade), de natureza indivisível (só podem ser considerados em sua totalidade), cujos titulares são pessoas indeterminadas (não há como individualizá-los, e não podemos determinar os sujeitos), os quais estão ligados entre si por uma situação fática e não jurídica. Exemplo deste seria uma propaganda enganosa ou abusiva veiculada na imprensa, a qual atingiria um número incalculável de pessoas, todas vítimas dessa lesão, e que portanto, se encontram ligadas por circunstâncias do fato. A coisa julgada será erga omnes, atingindo a todos de maneira igual.

Os direitos coletivos stricto sensu também são classificados como transindividuais, de natureza indivisível, cuja titularidade é de pessoas inde-terminadas, mas determináveis enquanto grupo, categoria ou classe, os quais estão relacionados entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base. Tal relação pode se dar entre os membros do grupo (por exemplo, médicos inscritos no Conselho Regional de Medicina, ou qualquer outra as-sociação profissional, os quais se relacionam entre si como membros de uma classe), ou pela ligação com a parte contrária (clientes de uma operadora de telefonia celular, os quais possuem um vínculo jurídico com a parte contrária). Importante ressaltar que a relação-base deve ser anterior à lesão. Destacamos como elemento diferencial, ao compararmos aos direitos difusos, a determi-nabilidade e a coesão como grupo, categoria ou classe antes mesmo da lesão, enquanto naqueles surge do fato lesivo. A coisa julgada será ultra partes, ou seja, além das partes, porém limitada aquele grupo.

Os Direitos individuais homogêneos surgem da própria lesão ou ameaça de lesão, a qual gera uma relação jurídica entre as partes a partir do fato lesivo, são os únicos de natureza divisível e compreendem indivíduos determináveis. A sentença terá eficácia erga omnes, de modo que possa bene-ficiar os titulares de direitos individuais, quando pleiteados em ações coletivas o pedido será uma tese geral, de modo que venha a beneficiar a todos os substituídos e as peculiaridades individuais, caso exista, devem ser atendidas

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em liquidação de sentença, de forma individualizada.

3 O ESTATUTO DO IDOSO (LEI Nº 10.741/03)

Em 1º de outubro de 2003 foi editada a lei 10.741, a qual institui o Estatuto do Idoso, no entanto ela só entrou em vigor em 1º de janeiro de 2004, devido a um período de vacatio legis de 90 dias. Dispondo de forma clara sobre os direitos e garantias da pessoa idosa, tanto de forma individual como coletiva, no plano civil, administrativo e criminal. Caracteriza o idoso como aquele que possui idade igual ou superior a 60 anos, assim descreve o Estatuto logo em seu primeiro artigo, no entanto ressalvamos que para fins de gratuidade no transporte coletivo, somente o que tiver 65 anos em diante (art. 230, §2º da Constituição Federal), e para fins de aposentadoria compulsória no serviço público os maiores de 70 anos de idade (art. 40, II, da Constituição Federal).

Antes desse instrumento normativo, é importante registrar que havia outro dispondo sobre os direitos da chamada “terceira idade”, também chamada por muitos de “a melhor idade”, porém este não era tão abrangente e não trazia disposições sobre matéria processual, como traz o atual. Era in-titulado de Lei da Política Nacional do Idoso, havia desde 1994, e dispunha sobre a política nacional do idoso, criou o Conselho Nacional do Idoso e outras providências.

O Estatuto do Idoso deve ser aplicado na defesa dos sexagenários, a maioria deles pela idade avançada já possui algum tipo de deficiência, seja ela motora, auditiva, visual, entre outras. Por isso, o país deve procurar se adequar e melhor servi-los, para que assim essas pessoas que tanto contribuíram para o país, sintam-se cidadãs. Qualquer forma de discriminação deve ser combatida, pois a proteção ao idoso deve se pautar no princípio da igualdade, visto que a Constituição já no caput do artigo 5º, afirma que: “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza...”.

Porém é importante destacar uma observação sempre que se fala no princípio da igualdade, pois como bem defende Celso Antônio Bandeira de Mello (2006, p.35), “o princípio da isonomia preceitua que sejam tratadas igualmente as situações iguais e desigualmente as desiguais. Donde não há como desequiparar pessoas e situações quando nelas não se encontrem fatores desiguais”. Portanto, podemos dizer que em alguns casos entre dois idosos ou situações que os envolva, possa ser necessário que haja um tratamento diferenciado entre eles, no entanto quando não houver fatores que os tornem

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desiguais, estes devem ser tratados de forma igualitária.Retomando os dispositivos sobre o Estatuto, verificam-se duas ga-

rantias com o intuito de promover uma maior celeridade aos processos em que o idoso é parte, visto que a perspectiva de vida deste já não é mais tão longa, a primeira menciona prioridade a esses processos em todas as instâncias, e a segunda é que o poder público poderá criar varas especializadas para a pessoa idosa, bem como o Ministério Público, promotorias específicas, tais garantias estão expressas no art. 70 e no caput do art. 71 da referida lei. Segundo o § 2º do art. 71, a prioridade do trâmite processual não cessará com a morte do beneficiado, se perpetuando em favor do cônjuge e herdeiros.

O título V do estatuto trata do acesso a justiça e será o foco de nosso trabalho no tópico seguinte, dentro dele temos o capítulo II que trata da atuação do Ministério Público e o capítulo III abordando a “proteção judicial dos interesses difusos, coletivos e individuais indisponíveis ou homogêneos”, ambos serão detalhados mais adiante.

O Estatuto dispõe sobre os direitos fundamentais, direitos estes que observamos ser desrespeitados, seja dentro de casa, ou pelo poder público. Muitos se encontram abandonados pelas famílias em asilos ou sendo tratados de forma desumana, sendo vítimas de maus tratos e passando necessidades dentro de seus lares. Diante disso é que o art. 9º expõe: “É obrigação do Estado, garantir à pessoa idosa a proteção à vida e a saúde, mediante efetivação de políticas sociais públicas que permitam um envelhecimento saudável e em condições de dignidade”.

Quanto à saúde é assegurada atenção integral, por meio do Sistema Único de Saúde, e garantia do acesso universal e igualitário, de forma articu-lada, com o fim de prevenir, proteger e recuperar o idoso. Ao poder público, está o encargo do fornecimento gratuito de medicamentos, especialmente quando estes forem de uso continuado. Fica vedado, aos planos de saúde, a cobrança de valores diferenciados em razão da idade, sendo considerada discriminatória tal prática.

O Estatuto afirma o princípio da solidariedade e da proteção, ao obrigar a família, a comunidade, a sociedade em geral e o poder público a assegurar, de forma prioritária, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.

A Constituição Federal também destacou a proteção ao idoso no art. 230, que está inserido no capítulo VII, o qual trata da Família, da criança, do

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adolescente, do jovem e do idoso: “A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida”.

Com relação a essa proteção constitucional, destacamos o que expõe Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco (2009, p.1427):

Sob essa perspectiva, o constituinte colocou o Brasil em sintonia com os países mais avançados, onde o cuidado com os idosos é uma questão social da maior importância, até porque em decorrência do aumento de sua expectativa de vida e da redução das taxas de natalidade, os componentes da chamada terceira idade passaram a constituir expressiva parcela da população, demandado prestações que se refletem diretamente na relação receita/despesa da seguridade social, para cujo custeio, na condição de inativos, eles pouco ou nada contribuem.

Importante destacarmos o direito de alimentos que os idosos podem exigir de seus filhos maiores, estes têm o dever de amparar os pais na velhice, carência e enfermidade, do mesmo modo que aos pais possuem o dever de assistir, educar e criar os filhos menores. Dispõe sobre o tema o Código Civil, e não o Estatuto do Idoso, no entanto achamos conveniente abordar o tema neste tópico, no art. 1696 está expresso: “O direito a prestação de alimentos é recíproca entre pais e filhos, e extensivo a todos os ascendentes, recaindo a obrigação nos mais próximos em grau, uns em falta de outros”. No mesmo sentido o art. 1695 do Código Civil: “São devidos os alimentos quando quem os pretende não tem bens suficientes, nem pode prover, pelo seu trabalho, à própria mantença, e aquele, de quem se reclamam, pode fornecê-los, sem desfalque do necessário ao seu sustento”.

Por fim iremos destacar o título VI do Estatuto, o qual vem a abordar os crimes cometidos contra o idoso. Quando não ultrapassar 4 anos de pena privativa de liberdade, reger-se-á pela lei 9.099/95 que regula as ações nos juizados especiais criminais, e de forma subsidiária utilizará as disposições do código penal e de processo penal. Os artigo 95 ao 108 do Estatuto referem-se aos crimes em espécie, pode-se observar que alguns crimes podem superar a pena de 4 anos mencionada anteriormente, seriam eles o do art. 107 que pode chegar a 5 anos e ocorre quando o idoso é coagido, de algum modo, a doar,

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contratar, testar ou outorgar procuração, e há também o do art. 99 que na sua forma mais grave, quando resultar em morte poderá chegar a 12 anos: “expor a perigo a integridade e a saúde, física ou psíquica, do idoso, submetendo-o a condições desumanas ou degradantes ou privando-o de alimentos e cuidados indispensáveis, quando obrigado a fazê-lo, ou sujeitando-o a trabalho exces-sivo ou inadequado”.

O Estatuto do Idoso é uma lei que sem dúvidas trouxe muitos bene-fícios a pessoa idosa, pois com sua inovação e os diversos direitos elencados, protege e resguarda o idoso em diversas situações de ameaças e violações aos seus direitos. No entanto, apesar de estar em vigor desde o ano de 2004, o que se observa é que poucos conhecem o Estatuto, os 118 artigos que o compõem ainda são muito pouco conhecidos pelo cidadão brasileiro, principalmente pelo próprio idoso. Enquanto que alguns direitos, como o atendimento pre-ferencial nos estabelecimentos públicos e privados é um dos mais conhecidos e podemos dizer que um dos mais respeitados, outros como a gratuidade nos transportes intermunicipais e interestaduais são esquecidos ou pouco se fala, e os idosos acabam sem poder desfrutar dos direitos e benefícios que o Estatuto oferece. Por isso, torna-se fundamental para uma efetividade maior dessa lei, que se noticie e divulgue, não só aos idosos, como a toda sociedade, os direitos destes, os quais estão resguardados e merecem máxima proteção, pois assim estaremos tratando a “terceira idade” com o respeito mínimo que eles merecem.

4 A LEGITIMIDADE E ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO PERANTE O ESTATUTO DO IDOSO

O Ministério Público por meio da ação civil pública e do inquérito civil é o órgão legitimado a atuar na defesa coletiva do idoso, pois assim legitimou o Estatuto: “Art. 74. Compete ao Ministério Público: I – Instaurar o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção dos direitos e interesses difusos ou coletivos, individuais indisponíveis e individuais homogêneos do idoso;”. Observamos que nem sempre é instaurado o inquérito civil, tendo em vista não ser um requisito obrigatório para a propositura da ação civil pública, e, portanto, fica a critério do membro do Ministério Público avaliar sua necessidade. Ao longo dos incisos do art. 74, a referida lei procura detalhar as hipóteses de atuação do órgão ministerial e deixa clara a importância deste na defesa do idoso, mesmo quando não for parte, o art. 75 trata de forma ex-

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pressa que o referido órgão atuará obrigatoriamente e o art. 77 destaca que a falta de intervenção acarreta nulidade do feito, podendo ser declarada de ofício ou a requerimento de quem for interessado.

A Constituição de 1988 também já havia deixado claro, ao elencar as funções institucionais do Ministério Público no art. 129, que quando tratarmos de ações coletivas caberá ao mesmo atuar, conforme se observa no inciso III: “promover o inquérito civil e ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;” verifica-se que um Promotor de Justiça ou Procurador da República é quem preside o referido inquérito, o que demonstra a postura atuante do órgão ministerial.

Com a promulgação da Carta Magna, o referido órgão passou a gozar de autonomia administrativa e funcional, o que contribuiu para o seu crescimento e atuação. Sua principal função é fiscalizar e garantir a democracia e os direitos fundamentais. Sua atuação pode ser como agente ou interveni-ente, no primeiro caso atua como titular da ação penal pública ou da ação civil pública, e no segundo a intervenção ocorre em processos onde haja de atuar como fiscal da lei, quando a matéria envolver o idoso, necessariamente o Ministério Público irá atuar de uma forma ou de outra, conforme se observa no art. 75 do Estatuto: “Nos processos e procedimentos em que não for parte, atuará obrigatoriamente o Ministério Público na defesa dos direitos e inte-resses de que cuida esta Lei, hipóteses em que terá vista dos autos depois das partes, podendo juntar documentos, requerer diligências e produção de outras provas, usando os recursos cabíveis”.

Compete ao Ministério Público atuar segundo os incisos do art. 74, nas seguintes hipóteses, as quais sintetizamos: instaurando o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção dos direitos e interesses difusos ou coletivos, individuais indisponíveis e individuais homogêneos do idoso; em ações de alimentos, nas quais o idoso seja parte, seja promovendo as mesmas ou acompanhando; atuar como substituto processual do idoso em situação de risco; revogar procuração nos autos processuais; instaurar procedimento administrativo; instaurar sindicâncias e requisitar a instauração de inquéritos policiais; inspecionar entidades públicas e particulares que estão sujeitas ao Estatuto; promover as medidas judiciais e extrajudiciais cabíveis para assegurar os direitos e garantias legais do idoso e referendar transações envolvendo interesses e direitos dos idosos que estejam previstos nesta lei. Importante destacarmos que o Ministério público será sempre intimado pessoalmente, em qualquer dos casos, o art. 76 assegura essa prerrogativa.

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Iremos discorrer nesse tópico sobre a primeira hipótese descrita no parágrafo anterior, abordando de início a parte processual do estatuto que está disposta dos artigos 78 a 92 e que dispõe sobre “a proteção judicial dos interesses difusos, coletivos e individuais indisponíveis ou homogêneos”, e em seguida abordaremos alguns exemplos e jurisprudência dessa tutela ministerial.

A princípio, verificamos que no capítulo IIII, o qual abrange os artigos mencionados no parágrafo anterior, o Estatuto visa proteger também os direi-tos individuais indisponíveis, além dos individuais homogêneos, ou seja, um direito essencialmente individual, à parte daqueles que mencionamos como os transindividuais, descritos no art. 81 do Código de Defesa do Consumidor. Isso se deve porque como sabemos, a maioria dos idosos se encontram numa posição naturalmente desprivilegiada, acometidos de uma relativa hipossu-ficiência, o que nos leva a falar em uma presumida incapacidade, justificando a intervenção do Ministério Público, que segundo o art. 82, I, do Código de Processo Civil, terá competência para intervir nas causas em que há interesses de incapazes.

O foro competente é o do domicílio do idoso para as ações previs-tas nesse capítulo, com a ressalva feita a competência da Justiça Federal e a originária dos Tribunais Superiores, conforme preceitua o art. 80. Quanto aos legitimados, observamos que o art. 81 trata do assunto, e está inserido no rol destes a Ordem dos Advogados do Brasil - OAB, no entanto o legislador deixou de legitimar outras entidades, como a Defensoria Pública, que se destaca de forma expressiva na luta dos direitos sociais, e muito tem contribuído na busca e efetividade desses direitos, neste ponto tem a doutrina criticado a elaboração do referido artigo. Além dos já mencionados, temos também no rol a União, os Estados, o Distrito Federal e Municípios, e aquelas instituições legalmente constituídas a 1 ano e que lutam pela defesa dos interesses e direitos da pes-soa idosa, dispensando autorização da assembléia, quando o próprio estatuto social trouxer essa autorização.

Admite-se, de acordo com os § 1º e 2º do art. 81, o litisconsórcio facultativo entre os Ministérios Públicos da União e dos Estados, e quando houver desistência ou abandono por associação legítima, caberá ao Ministé-rio Público ou outro legitimado assumir a titularidade do pólo ativo da ação, garantindo-se assim que sempre haverá um legitimado a levar a ação adiante.

No artigo 82, observamos que o legislador ao expressar que para proteger os direitos dispostos no Estatuto, admitir-se-á todas as espécies de ações pertinentes, aplicou um dos princípios do processo coletivo, que é a não

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taxatividade da ação coletiva, que deriva do princípio do interesse jurisdicional no conhecimento do mérito do processo, aplicando a instrumentalidade das formas.

O Estatuto também prevê o instituto da tutela antecipada nos mol-des do Código de Processo Civil, e também a multa, conhecidas por astreintes, como meio de coerção. Como exemplo, temos uma ação ajuizada pelo Minis-tério Público que visa uma obrigação de fazer para melhorar as condições de higiene em um determinado asilo, e o magistrado impõe que a multa deverá ser cobrada a partir de tal dia, e caso esta venha a ocorrer, expressa o art. 84 que deverá ser revertida ao fundo do idoso, e na falta deste, ao fundo municipal de assistência social, vinculados a atender o idoso. Outro ponto importante a ser abordado está no art. 85, o mesmo trata da possibilidade de ser concedido efeito suspensivo aos recursos para evitar dano irreparável à parte, ou seja, está ao livre arbítrio do magistrado atribuir ou não o efeito suspensivo, ao contrário do que dispõe o Código de Processo Civil que é taxativo nas hipóteses.

Após a abordagem processual do Estatuto, iremos à abordagem prática e jurisprudencial. A administração pública muitas vezes se omite em efetivar políticas públicas em prol do idoso, e quando o Ministério Público vem a ajuizar ações com esse fim, o judiciário, tem sentenciado a administração a aplicar tais políticas, isso tem sido bastante discutido ao se falar no princípio do ativismo judicial, e até que ponto o judiciário pode intervir nas políticas públicas. Segundo Didier & Zaneti (2009, p.127), nas causas de processo co-letivo como há um forte interesse público primário, tal princípio encontra-se mais presente na atuação do juiz, e não poderá ser colocada a vontade do administrador escolher em efetivar ou não as políticas públicas, e sim que o seja sentenciado a fazer, principalmente quando este direito vier assegurado na Constituição e em lei infraconstitucional.

Ações coletivas com o fim de que sejam construídos abrigos públicos para os idosos; ações coletivas que visem um tratamento mais adequado ao idoso com doenças crônicas; ações para que sejam fornecidos medicamentos de forma gratuita pelo poder público a essas pessoas; ações com o fim de que sejam disseminadas atividades de lazer aos idosos. Enfim, são diversos os direitos que o Estatuto oferece e podem ser tutelados em sede de ação coletiva ou individual, conforme se observa no julgado do STJ abaixo que trata do fornecimento de medicamentos:

PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. CONSTITUCIO-NAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LEGITIMATIO AD CAUSAM

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DO PARQUET. ART. 127 DA CF/88. ESTATUTO DO IDOSO. DIREITO À SAÚDE. ART. 557 DO CPC. DECISÃO MONOCRÁTICA DO RELATOR RESPALDADA EM JURIS-PRUDÊNCIA DO TRIBUNAL A QUE PERTENCE.1.O Ministério Público está legitimado a defender os inte-resses transindividuais, quais sejam os difusos, os coletivos e os individuais homogêneos.2. Recurso especial interposto contra acórdão que decidiu pela ilegitimidade ativa do Ministério Público Estadual para pleitear, via ação civil pública, o forneci-mento de medicamento em favor de pessoa idosa.4. É mister concluir que a nova ordem constitucional erigiu um autêntico ‘concurso de ações’ entre os instru-mentos de tutela dos interesses transindividuais e, a fortiori, legitimou o Ministério Público para o manejo dos mesmos.5. Legitimatio ad causam do Ministério Público à luz da dicção final do disposto no art. 127 da CF, que o habilita a demandar em prol de interesses indisponíveis.6. Sob esse enfoque, se destaca a Constituição Federal no art. 230:”A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.” Conseqüentemente a Carta Federal outorgou ao Ministério Público a incumbência de promover a defesa dos interesses individuais indisponíveis, podendo, para tanto, exercer outras atribuições previstas em lei, desde que compatível com sua finalidade institucional (CF, arts. 127 e 129).7. O direito à saúde, insculpido na Constituição Federal e no Estatuto do Idoso, é direito indisponível, em função do bem comum, maior a proteger, derivado da própria força impositiva dos preceitos de ordem pública que regulam a matéria.8. Outrossim, o art. 74, inc. III, da Lei 10.741/2003 revela a autorização legal a que se refere o art. 6.º do CPC, configurando a legalidade da legitimação extraordinária cognominada por Chiovenda como “substituição pro-cessual”.10. O direito à saúde assegurado ao idoso é consagrado em norma constitucional reproduzida no arts. 2º, 3º e 15,

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§ 2º, do Estatuto do Idoso (Lei 10.741/2003)12. Recurso especial parcialmente provido para reconhecer a legitimidade ativa do Ministério Público Estadual2. [grifos nossos]

Outra questão, diz respeito à tutela coletiva nas relações de con-sumo, principalmente em relação aos contratos com os planos de saúde, que cobram muitas vezes taxas abusivas, podendo em alguns casos resultar em reparação por dano moral coletivo, quando o abuso praticado atingiu diversos idosos, além do Estatuto, o CDC aborda a atuação do Ministério Público nesses casos. Temos também os casos de desrespeito à gratuidade nos transportes coletivos, com base no art. 230 da Constituição, e dos arts. 39 e 40 do Estatuto, a jurisprudência do STJ já está consolidada em benefício do idoso, bastando que o mesmo apresente o documento de identidade, inclusive já se verificou o tema no Recurso especial 10572743, o qual tratou sobre a conduta de submeter idosos a cadastramento para desfrutar do passe livre, com o deslocamento até o local custeado por esses, nesse caso o STJ entendeu inclusive pela con-figuração de dano moral coletivo, tendo em vista a ilegalidade da exigência adotada pela empresa.

Portanto, se observa que o Ministério Público tem atuado na defesa do idoso de forma efetiva e com a legitimidade que as leis lhe conferem, prin-cipalmente através da ação civil pública e do inquérito civil, não só coletiva-mente, como nos casos de direitos individuais indisponíveis, pois os mesmos segundo o Estatuto devem ser tutelados também pelo órgão ministerial, e este conforme jurisprudência exposta não tem se esquivado de tal dever.

5 CONCLUSÃO

Por tudo que foi exposto, verificamos quão importante foi o Estatuto do Idoso ao instituir e dispor sobre os mais diversos direitos da pessoa idosa, trazendo de forma clara capítulos imprescindíveis que tratam da importantís-sima atuação do Ministério Público e da proteção judicial dos interesses difusos,

2 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 695665 / RS. T.2. Min. Luiz Fux. Julgado em 24.10.2006. DJ 20.11.2006. p. 276.3 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 1057274 / RS. T.2. Min. Eliana Calmon. Julgado em 01.12.2009. DJ 26.02.2010.

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232 Tutela coletiva dos idosos: Um enfoque sobre oEstatuto do Idoso e atuação do Ministério Público

coletivos e individuais indisponíveis ou homogêneos.O Estatuto legitimou o Ministério Público para representar os idosos

seja de forma coletiva ou individual, esta última quando se tratar de direito individual indisponível, permitindo a atuação tanto como parte, como fiscal da lei, garantindo assim que a “terceira idade”, não será esquecida e pelo contrário, terá prioridade no trâmite processual.

Além do Estatuto que entrou em vigor em 2004, temos a Constitu-ição Federal de 1988, junto com a Lei da Ação Civil Pública de 1985 e o Código de Defesa do Consumidor de 1990, formando um conjunto das principais normas sobre processo coletivo a serem aplicadas de forma integrativa e harmônica na tutela coletiva do Idoso, permitindo que esta venha sendo exercida de forma eficaz. Portanto, torna-se imprescindível que o órgão mi-nisterial continue com a postura de atuar e lutar pela aplicação e expansão dos direitos e garantias do idoso.

Por fim, vale ressaltar que muitos ainda não conhecem as disposições do Estatuto do Idoso, o que vem a ser um obstáculo à sua aplicação, por isso a publicidade é uma ferramenta essencial no maquinário dessa lei, para que a mesma gere os frutos almejados, e esperamos que o judiciário não venha a adotar posturas restritivas, pois como vimos suas inovações e avanços per-mitem de forma plena e efetiva a concretização dos direitos da pessoa idosa. Isto fica bastante claro ao observarmos o que dispõe o art. 82: “Para defesa dos interesses e direitos protegidos por esta lei, são admissíveis todas as espécies de ações pertinentes”. Tal artigo reflete a essência do Estatuto do Idoso, qual seja, proporcionar a máxima proteção daqueles que vivem a “terceira idade”.

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234 Tutela coletiva dos idosos: Um enfoque sobre oEstatuto do Idoso e atuação do Ministério Público

COLLECTIVE GUARDIANSHIP OF THE ELDERLY: A FOCUS ON THE ELDERLY STATUTE AND THE ACTUATION OF THE PUBLIC PROSECUTION SERVICE

ABSTRACT

In the recent years there has been an increas-ing number of older people in our country, who are being discriminated and having their rights omitted in several areas: it is the job market, in welfare, health, and many others. This study aims to discuss the collective guardianship of the elderly when they have violated their rights as members of a collectivity. Law No. 10,741 established the Elderly Statute, which came to list the rights of such people, and the Public Prosecution Service is the legitimate body in the protection of these, including when the right is individual unavailable, so we will not omit the analysis of the later, in order to treat of that law in a more complete way, since the very chapter on collective guardianship it is approached. Therefore, we will analyze the most relevant provisions of the Statute, and the Public Prosecution Service has acted on its behalf, also exposing the Brazilian Collective Microsystem Procedural and its structure in our planning, to better understand the collective guardianship. We use the doctrine and jurisprudence homeland to make an analysis of how the rights of the elderly person, either individually or in a community are being applied to the Brazilian reality, after the advent of the Elderly Statute and their innovations.

Keywords: collective guardianship of the elderly. Elderly Statute. Public Prosecution Service. Brazil-ian Collective Microsystem Procedural.

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UMA NOVA FEIÇÃO DO PARADIGMA DA NECESSIDADE

NA ATUAÇÃO DADEFENSORIA PÚBLICA EM

DEFESA DOS DIREITOS TRAN-SINDIVIDUAIS: ASPECTOS

TEÓRICOS E PRÁTICOS

Bruno Montenegro Ribeiro DantasAcadêmico do 9º período do

Curso de Direito da UFRN.Monitor da disciplina Direito

Processual Coletivo.

RESUMO

A presente tese propõe-se a examinar a legitimidade da Defensoria Pública para o ajuizamento de Ações Civis Públicas que tenham por objetos direitos transindividuais, conferindo-se uma nova feição ao paradigma da necessidade. Analisar-se-á as características desta legitimação, bem como a existência ou não de restrições decorrentes da atribuição precípua insculpida na Constituição Federal, tudo em consonância com os preceptivos basilares da tutela coletiva. Procedeu-se uma interpretação sistemática, coadunando o paradigma da necessidade em face de uma novel dogmática, afeta à realidade social, da qual se sobreleva o direito de acesso à justiça. Observa-se, sobretudo, os anseios de uma processualística pautada na vertente instrumental ora vigente. Neste passo, diante dos fundamentos e objetivos sociopolíticos colimados na Carta Magna, sem olvidar do perfil cultural e econômico da população brasileira, elementos indissociáveis da hermenêutica aplicável ao microssistema processual coletivo, infere-se que a Defensoria Pública possui

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a referida legitimação, mormente em prol dos necessitados, de sorte que a configuração da necessidade como pressuposto de sua atuação há de ser vislumbrada não apenas sob a perspectiva econômica, senão nas mais diversas acepções correlatas, restando prescindível a comprovação individual de carência dos destinatários, notadamente na atuação atípica daquela instituição, tendo sido sugeridas alguma soluções quanto à problemática levantada.

Palavras-chave: Defensoria Pública. Legitimidade. Direitos Transindividuais. Necessidade.

1 INTRODUÇÃO

Ante o atual estágio de miserabilidade que aflige a maioria da po-pulação brasileira, eis que o constituinte originário reconheceu, no art. 134 da Constituição da República, a Defensoria Pública como instituição essencial à função jurisdicional do Estado, concedendo-lhe a incumbência de promover a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados.

A legislação infraconstitucional já regulamentara o dispositivo constitucional, deixando patente, doravante, a legitimação da Defensoria Pública para a defesa de direitos transindividuais, notadamente pela análise do microssistema de direito processual coletivo, composto essencialmente pelo diálogo entre as leis federais n.º 7.347/85 e 8.078/90.

Mais tarde, a lei federal 11.448/07 ratificou o que, para muitos, já era sólido, atendendo aos anseios de uma ordem jurídica lastreada pela criticada civil law. Deveras, e legalmente legitimada para propor ações coletivas na defesa de direitos metaindividuais, insurge uma acalorada polêmica acerca do alcance dessa atuação, a saber, se restrita ou não aos hipossuficientes econômicos.

A propósito, o objeto de estudo aqui delineado trata exatamente dessa celeuma, recebendo uma abordagem estreitamente realizada com os preceitos norteadores do processo coletivo, que clama por mecanismos “efeti-vadores” de direitos, repudiando qualquer entrave ao fim maior da jurisdição,

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que visa, como a própria gênese terminológica da expressão sugere, “dizer o direito”. Busca-se, aqui, soluções que facilitem a prestação jurisdicional, transplantando o acesso individual à Justiça para a tutela coletiva, apta a evi-tar decisões contraditórias, de sorte à proporcionar mais eficiência, uma vez exercida unificadamente, em proveito de todos os substituídos1.

De outro vértice, não raro, no âmbito doutrinário e jurisprudencial, surgem posicionamentos dissociados da realidade fático-jurídica que ora se vivencia, sustentando-se a legitimação cingida da Defensoria Pública para, inexoravelmente, promover a defesa dos economicamente necessitados. Observar-se-á que um sem-número de argumentos são levantados para supedanear tal entendimento, com o qual discordamos em todos os termos, rechaçando-os a tempo e modo.

A análise recairá prioritariamente sobre o paradigma da necessida-de, que deverá ser interpretado à luz dos postulados que estruturam a tutela coletiva.

Eriçadas as primeiras considerações, é basicamente com arrimo nessas diretrizes que seguirão as linhas desta tese.

2 CONTEXTO ATUAL E ACESSO À JUSTIÇA

O Judiciário hodiernamente tolera uma fase na qual é alvo de frequentes ataques e críticas, seja pelos meios de comunicação de massas, seja pelos demais “Poderes” estatais, ou ainda pelos próprios jurisdicionados, desacreditados nas políticas públicas e no “Ente Público” como um todo. Em face disso, toda a função judiciária vem convolando seu rumo ao almejo da tão buscada efetividade da prestação jurisdicional. Princípios como o da celeridade, eficiência e da economia processual jamais granjearam tanta relevância no cenário do Direito Público como hoje.

Num país em que as estruturas de poder são constantemente corrompidas e os menos abastados carecem de entes capacitados a socorrê-

1 É de bom alvitre ressaltar que a doutrina mais autorizada, quando pretende justificar a legitima-ção para ações coletivas, subdivide-se em três principais correntes. Defendem, respectivamente, a legitimação extraordinária por substituição processual, a legitimação ordinária das “formações sociais” decorrente de uma leitura ampla do art. 6º do CPC e a “legitimação autônoma” para condução do processo, espécie de legitimação extraordinária. Estamos com esta última posição.

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los, só lhes restam inconscientemente buscar aqueles os quais respaldam sua atuação num ideal aparentemente menos utópico e mais veraz do que convincentes falácias retóricas bem entoadas, a saber, as estruturas que se baseiam no dogma da Justiça.

Com vista nisso, e no chamado “unfair play” (jogo injusto) o qual John Rawls tanto mencionou, cabe ao Poder Judiciário e aos entes como o Ministério Público e a Defensoria Pública, exempli gratia, arcarem com o ônus de trazer a Justiça aos incrédulos indivíduos, atendendo aos desejos de que sempre careceu a sociedade, mas nunca deixou de acreditar que um dia os veria atendidos. Neste passo, reiteradas quebras de paradigmas foram e continuam sendo necessárias para atingir um fim maior. O Estado, então, se apresenta com o encargo importante de fornecer à população o que ela tanto almeja e o que a ela vem sendo negado constantemente: oportunidades.

O acesso à justiça é um pressuposto essencial do modelo jurídico moderno e característica inerente ao Estado Democrático de Direito, que não sobrevive sem a idéia de que seu povo esteja amparado por uma ordem jurídica justa. Observou Bobbio (1992 p. 25), que “não estamos mais na era de declaração de direitos, estamos na era de sua efetivação”, ou seja, não é bastante teorizar o princípio do acesso à justiça, como o era outrora, de forma que o seu exercício pleno se impõe. Ademais, a expressão acesso à justiça recrudesceu, ganhando um teor mais abrangente, democrático, que deve ser “concebido além do acesso ao Judiciário, igualmente acessível a todos, e cujos resultados céleres, temporais e concretos devam ser individualmente e socialmente justos” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p.8).

3 DEFENSORIA PÚBLICA E OS DIREITOS TRANSINDIVIDUAIS

O Poder Judiciário, padecendo da sobrecarga de demandas, caracteriza-se cada vez mais pela morosidade, em decorrência da denomi-nada hiperinflação de acesso. A solução de litígios de forma coletiva é indis-cutivelmente um facilitador de acesso à justiça, trazendo inúmeras benesses, dentre as quais podem ser elencadas a redução das decisões contraditórias, o aceleramento dos processos e a diminuição da carga de demandas individuais no Judiciário, atendendo, inclusive, a um batalhão de pessoas que não teria direito ao acesso por desconhecer seus próprios direitos ou por faltar-lhe a representação adequada.

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Com efeito, não subsistem condições estruturais para atuar somente de forma individualizada, que não resolvem conflitos em massa, senão geram gastos públicos excessivos com inúmeras atuações isoladas do órgão jurisdi-cional. Enfim, torna o sistema ainda mais lento e desacreditado.

A missão constitucional conferida à Defensoria Pública incumbiu-lhe de prestar assistência jurídica integral aos necessitados, cabendo-lhe a adoção das medidas imperiosas neste sentido.

Tal instituição, a nosso sentir, já poderia propor ações civis públicas ou coletivas mesmo antes da Lei n.º 11.448/07, face à permissão que já lhe dava o art. 82, III, do Código de Defesa do Consumidor, uma vez ser um órgão público sem personalidade jurídica destinado a exercitar a defesa dos necessitados (CR, arts. 134 e 5º, LXXIV). Todavia, para evitar maiores controvérsias tanto na jurisprudência quanto na esfera acadêmica, o legislador, com acerto duvidoso (estimulando cada vez mais a retrógrada tradição da Civil Law) reconheceu, expressamente, a legitimidade ativa das Defensorias Públicas.

Demais disso, ressalte-se que a Constituição e as leis vêm alargando a legitimação ativa em defesa de interesses transindividuais (cidadão, associa-ções civis, sindicatos, Ministério Público, pessoas jurídicas de direito público interno, entidades e órgãos da administração direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, etc.) e que, ao contrário do que se poderia imaginar, a legitimidade da Instituição Defensorial não é subsidiária, mas sim concorrente e disjuntiva com relação aos demais legitimados.

A tendência da dogmática ora vigente no ordenamento jurídico brasileiro, constatada inclusive nos anteprojetos de Código Processual Co-letivo Brasileiro, é que o princípio da legitimação adequada receba cada vez mais prestígio nos processos coletivos, de modo a superar uma fase na qual a legitimação ativa é tão-somente fixada ope legis, auferindo uma dilatação e qualificação cada vez mais veementes no que tange o rol de legitimados.

Perfeitamente possível, desta feita, a adoção da Ação Civil Pública ou coletiva pela Defensoria Pública para a defesa de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, devendo-se enfatizar, portanto, que a natureza coletiva desses conflitos reclama tratamento diferenciado pelo direito processual.

3.1 A atuação da Defensoria Pública e o Paradigma da Necessidade

Convém enfatizar que uma vez identificado o bem jurídico vio-lado e verificados os lesados como pessoas necessitadas, abstrai-se como

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indiscutível a legitimidade da Defensoria Pública para a propositura da ação correspondente.

O nó górdio da questão e objeto do presente estudo reside na seguinte indagação: É possível para a Defensoria Pública propor ação civil pública em defesa de um grupo indeterminável de pessoas ou somente de pessoas determinadas, identificáveis, e necessitadas? (MAZZILLI, 2008, p. 300)

A polêmica ganha relevância principalmente porque, numa ação coletiva, não raro estar-se-á defendendo direitos difusos, cujos titulares são indetermináveis, podendo haver, entre os lesados, pessoas necessitadas ou não.

Uma singela análise do artigo 134 da Constituição Federal parece permitir a alegação peremptória de que a Defensoria Pública somente trata de interesses dos necessitados.

Muito embora tal instituição ostente o status de auxiliar da justiça, destinada a beneficiar pessoas carentes no acesso à jurisdição, não é viável mobilizá-la, tão-somente, a este desiderato. Realizada uma interpretação siste-mática da própria Constituição e da legislação infraconstitucional, cum grano salis, chega-se ao entendimento mais amplo, devendo-se buscar o modo pelo qual os direitos sejam mais resguardados.

A crítica que se interpela contra a interpretação ampliativa, que ora se defende, pauta-se, deveras, em teses inócuas, carentes de fundamentação jurídico-hermenêutica. Sustentam a necessidade da demonstração de um nexo entre a demanda coletiva e o interesse de uma coletividade composta por pessoas “necessitadas”, que comprovem a carência econômica, sob pena de exorbitância da competência da Defensoria Pública face à literalidade do texto constitucional. No mais, argumenta-se que a legitimação da Defensoria Pública estaria afrontando diretamente as atribuições do Ministério Público.

Com a devida vênia aos posicionamentos neste sentido, impende destacar que tais pretensões não merecem prosperar. De forma inarredável, consideramos um retrocesso imaginar que a existência de outros interessa-dos - desnecessitados – poderia impedir a defesa dos interesses daqueles que são necessitados e carecem, consequentemente, de maior tutela do Estado.

A própria discussão revela-se paradoxal em si, mormente na já ci-tada hipótese, referente aos direitos difusos, sendo que estes não podem ser aquinhoados ou terem identificados os titulares do direito violado, restando impraticável sustentar a defesa de direitos difusos apenas dos necessitados.

A alegação de violação às atribuições do Órgão Ministerial con-siste, praticamente, em defender que somente ao parquet caberia a defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis na qualidade de substituto

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processual, restando à Defensoria apenas a representação, ou seja, atuando em nome do próprio titular do direito ofendido.

Nessa esteira, questionar a legitimação da Defensoria sob o argu-mento de que sua atuação afeta as atribuições do Órgão Ministerial é um despautério. É curioso o fato de que a grande maioria dos órgãos judicantes, entidades correlatas e demais instituições públicas se queixam do excesso de serviços, da sobrecarga de demandas, revelando-se, quando pouco, con-traditório suscitar “invasão de atribuições” diante do quadro de ineficácia dos direitos, que por ora se constata.

Em verdade, não importa qual dos legitimados promoveu a ação coletiva, e sim reste efetivada a tutela jurisdicional referente aos direitos trans-individuais. A interpretação normativa não poderá ter como pano de fundo o maior ou menor prestígio de tal ou qual instituição, senão homenagear seu escopo essencial, qual seja, a defesa eficiente dos direitos coletivos lato sensu. A tendência, repita-se, é o alargamento da legitimação ativa em defesa desses direitos. Pensar diferente seria atentar contra o próprio cerne do processo coletivo, seria incorrer em um legalismo anacrônico.

Trago à colação, ainda, o magistério do eminente professor Mazzilli (2008, p. 301), referendando o sustentado até então, ipsi litteris:

Não nos impressiona o argumento de que, assim, a Defensoria Pública estaria a invadir atribuições do Minis-tério Público, seja porque as atribuições do parquet na promoção da ação civil pública não lhe são exclusivas, seja porque, embora tenha ele atribuições inconfun-díveis com as da Defensoria Pública, existem áreas de superposição entre ambos, como também existem entre Ministério Público e Procuradoria do Estado, sem que com isso cada qual perca sua identidade.

Ressoa evidente, assim, que o paradigma da necessidade, norteador da atuação da Defensoria Pública, há de ser interpretado com cautelas, a mercê de incorrer em sérios prejuízos para os jurisdicionados, excluindo, tacitamente, aquele órgão do rol de legitimados para tutelar direitos difusos, titularizados por uma coletividade indeterminável de pessoas, o que destoa dos objetivos colimados pelo legislador.

O próprio conceito de hipossuficiente deve ser interpretado à luz do texto constitucional. Ressalte-se a existência da hipossuficiência econômica, cultural, social e política, além de outras, de maneira que nem toda atuação

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da Defensoria Pública deve limitar-se aos pobres. O paradigma da necessidade é relativizado pela própria Constituição

Federal e pela legislação infraconstitucional. Há dispositivos constitucionais permitindo atuação da Defensoria Pública para “desnecessitados”, verbi gratia, o que estabelece sem qualquer restrição a garantia ao contraditório e ampla defesa, e isto jamais será postergado ante um direito indisponível como a liberdade, de modo que, mesmo quando um acusado desnecessitado se recusar a constituir defensor em um processo criminal, o Estado assegurará a efetivação da garantia constitucional susomencionada, sendo, aliás, constante esta situação no cotidiano forense.

Em situações como estas jamais se cogitou questionar a atuação da Defensoria Pública, ou se pretendeu mitigá-la. Outras hipóteses similares também são conhecidas pelo ordenamento jurídico, como nos casos em que aquele Órgão atua como curador especial ou na defesa de crianças e adoles-centes. Aqui também já não se questiona a hipossuficiência econômica para fins de atendimento pela Defensoria Pública. A Lei Complementar nº 80/94, que organiza a Defensoria Pública da União, do Distrito Federal e dos Terri-tórios, prescrevendo ainda normas gerais para sua organização nos Estados, auferiu, inclusive, outras funções que não as enumeradas no rol exemplificativo preconizado em seu artigo 4º.

Sem embargo, redunda equivocada a insistência em alegar que a Defensoria Pública estaria adstrita inexoravelmente à assistência dos hipossuficientes financeiros, máxime pela novel bifurcação das atividades deste ente público, que exerce, vale dizer, funções típicas e atípicas.

3.1.1 Funções típicas e funções atípicas

É lamentável a visão extraída do voto-vista do Ministro Teori Zavas-lamentável a visão extraída do voto-vista do Ministro Teori Zavas-cki, no REsp n.º 912.849-RS, no qual se consignou que a decisão coletiva em ação proposta pela Defensoria Pública somente pode beneficiar pessoas que comprovarem a necessidade, demonstrando tal condição na fase de liquida-ção e execução. Concordar com tal posição, repita-se à exaustão, seria ignorar todos os postulados do processo coletivo, que visa prioritariamente celeridade, eficiência e economia processuais, bem como simplificar o acesso à justiça. Por óbvio, qualquer vítima, sendo ou não necessitada, poderá promover liquidação e execução da sentença prolatada em âmbito coletivo.

Compactuamos, neste particular, com a dicotomia idealizada pelos professores Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr., para quem a Defensoria Pública

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apresenta funções típicas e atípicas.As funções típicas referem-se à tutela dos necessitados economica-

mente, em consonância com o art. 5, LXXIV da CRFB. Nesta hipótese, enten-demos ser aconselhável à Defensoria Pública a realização de uma “triagem”, um procedimento que proporcione a identificação dos destinatários de sua atuação, ou seja, aqueles que demonstrem insuficiência de recursos para custear a tutela individual.

Noutro pórtico, vale frisar ainda o exercício das funções atípicas por parte da Defensoria Pública, que prescinde da hipossuficiência financeira de seus assistidos. Em sua atribuição atípica, “seu destinatário não é o neces-sitado econômico, mas sim o necessitado jurídico” (DIDIER JR.; ZANETI, 2010, p. 217, v. 4).

A tutela recai, não raro, no direito da coletividade, beneficiando-se, consequentemente, todos os seus membros. Outrossim, é oportuno lembrar que os legitimados para a propositura da Ação Civil Pública atuam em forma de substituição processual –embora haja desarmonia na doutrina - e não na forma de representação processual, não devendo, aqui, ser levado em conta a qualidade de quem provocou a jurisdição, e sim o fato de que quem exerce o direito de ação o faz em nome alheio, o que por si só demonstra que a De-fensoria Pública, no exercício da legitimidade da Ação Civil Pública não age em defesa dos seus próprios interesses.

É salutar, assim, enfrentar as dificuldades na definição “do atuar” da defensoria pública perante as peculiaridades de cada um dos direitos coletivos lato sensu, bem como nas situações mais suscetíveis de problemas metodológicos.

Defendemos, sopesados os argumentos em contrário, que nas hi-póteses de interesses ou direitos difusos, a Defensoria Pública sempre estará legitimada para a propositura da ação civil pública ou coletiva, mormente pela faceta “filantrópica” do exercício dessa tutela e pelo abrangente benefício proporcionado à esfera jurídica dos necessitados, de maneira que eventuais proveitos auferidos pelos que não comprovarem a necessidade devem ser considerados mera conseqüência da observância do dever funcional e missão constitucional reservada à defensoria. A doutrina do tema ratifica:

Não se pode conceber, ainda que individualmente, onde acaba a quota de um e começa a de outro. As entidades voltadas para a proteção dos direitos coletivos não têm como finalidade específica a proteção dos interesses de

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determinada corporação ou classe, mas sim dos interes-ses da sociedade como um todo, o que lhes confere um caráter altruístico (BOTTINI; PEREIRA, 2008.)

Neste caso, exigir a demonstração do atendimento aos interesses

dos necessitados, como “pressuposto de legitimação” autorizador da atuação da Defensoria Pública, é irrealizável, principalmente quando se leva em consi-deração a opção legislativa, que em relação aos direitos difusos foi estabelecer a coisa julgada erga omnes (artigo 103, I do CDC). Ao se proteger um bem ju-rídico que pertence a todos, não há dúvidas de que os necessitados estarão incluídos neste contexto, inclusive por corresponderem, lamentavelmente, a esmagadora maioria da população de um País com os descalabros sociais como o Brasil.

No que tange aos direitos coletivos, a meu juízo, estaria a Defensoria Pública autorizada a tutelá-los integralmente, desde que identificável alguma parcela em condição de necessitado (por qualquer de suas facetas) entre os integrantes do grupo, classe ou categoria desprovido de proteção, de sorte que a coisa julgada em relação à tais direitos é ultra partes (artigo 103, II do CDC), vale dizer, limitada ao grupo, categoria ou classe respectiva.

Por último, nas situações referentes aos interesses e direitos indivi-duais homogêneos, estamos que caberia à própria Defensoria Pública fazer um juízo de conveniência e oportunidade, uma vez que ninguém melhor do que seus próprios membros para avaliar as capacidades de produção e suas limitações, notadamente para o exercício de funções atípicas. Não é demais repisar que, se o membro da Defensoria Pública reputar-se apto à atuar em qualquer de suas funções – considerando a dicotomia supra-, a coletividade titular dos direitos transindividuais será beneficiada com isso, contando com outro ente interessado em efetivar os referidos direitos.

Com relação à repercussão da coisa julgada coletiva no plano indi-vidual, interessante trazer à baila outra lição dos professores Didier Jr. e Zaneti Jr (2010, p. 218, v. 4), in verbis:

“É claro que somente remanesce legitimação coletiva para a Defensoria Pública promover a execução indivi-dual da sentença genérica (direitos individuais homo-gêneos, art. 98 do CDC), se as vítimas já identificadas forem pessoas necessitadas.”

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A solução alvitrada, ao nosso sentir, e que se coaduna com as di-retrizes magnas traçadas pelo espírito do processo coletivo (que, em suma servem para tutelar os novos direitos e resolver os litígios repetitivos), é a de que em se tratando da fase de liquidação e execução, a Defensoria Pública estará autorizada à atuar nas execuções de sentenças genéricas prolatadas em sede de processos coletivos, desde que os necessitados estejam individu-almente identificados, sejam eles hipossuficientes econômicos ou jurídicos, destinatários principais desta instituição, atendendo aos anseios do legislador ordinário, que estabeleceu no CDC que a coisa julgada estende seus efeitos ao plano individual in utilibus. Restará ainda, vale dizer, legitimada para liquidar e executar a indenização nos casos do art. 100 do CDC, notadamente na au-sência de interessados, inertes e cuja tutela de seus direitos seja incumbência daquela instituição.

Em suma, concordamos com a legitimação incondicionada da De-fensoria Pública no concernente à fase de conhecimento. No módulo executó-rio, bem como na liquidação, mormente em suas “funções atípicas”, reputamos viável uma atuação revolvida de discricionariedade, a saber, segundo um juízo de conveniência e oportunidade em ingressar com tal ou qual medida, dentre todas as suas atribuições diárias.

Mais uma vez, trago o escólio do eminente professor Mazzilli (2008, p. 300):

Não cremos seja acertado o entendimento restritivo a propósito das atribuições da Defensoria Pública, porque negaríamos os próprios fundamentos do processo cole-tivo se concluíssemos pudesse ela defender um único necessitados, ou até todos eles, desde que o fizesse um a um, mas não os pudesse defender a todos, de uma só vez, num único processo coletivo.

Parece acertado, a rigor, defender a incontroversa desnecessidade de que toda a coletividade, grupo ou interessados tutelados pela Defensoria Pública na defesa de direitos metaindividuais sejam formados, inexoravelmente, por pessoas necessitadas economicamente, uma vez que beneficiários dessa atuação podem não ser hipossuficientes, ou sê-los, porém, sob outras acepções.

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4 CONCLUSÕES

Conseguintemente, infere-se que ganha relevância na tendência do Direito Processual Coletivo hodierno o papel da atuação da Defensoria Públi-ca em defesa dos direitos transindividuais e que, concomitantemente a isso, sobreleva-se a função típica dessa instituição em agir em consonância com as atribuições auferidas pela Constituição Federal e demais diplomas normativos, pugnando-se, ainda, pelas medidas cujos benefícios se estendam para além das esferas dos necessitados financeiramente, de forma a corroborar com a quebra do antigo paradigma da necessidade, sob o qual, por muito tempo, pairou inexoravelmente o agir da Defensoria Pública, que deve corporificar-se cada vez mais como instituição com ênfase proeminentemente social.

Não se pode olvidar que todo o arcabouço normativo e principio-lógico ampara a adoção de medidas de proteção aos bens jurídicos transin-dividuais, bem como um recrudescimento no rol de legitimados, não sendo plausível que a alteração recente da lei para incluir a Defensoria Pública no referido rol sem qualquer ressalva expressa venha admitir interpretação limi-tadora de sua atuação, contrariando o desiderato basilar das ações coletivas, qual seja, a proteção dos interesses coletivo lato sensu.

Em última análise, a Defensoria Pública não poderia eximir-se do dever de possibilitar o acesso à justiça ao carente simplesmente por ocasionar o benefício concomitante ao não carente. Inexiste, doravante, a exigência de que a coletividade tutelada por este órgão, nas demandas transindividuais, seja exclusivamente de pessoas necessitadas, pois se assim o fosse, estar-se-ia ofendendo fundamentos basilares tais como a dignidade da pessoa humana e a própria igualdade material deste País, composto em sua maioria por hipossuficientes socioeconômicos, além do próprio acesso à justiça, constituindo um verdadeiro retrocesso no direito brasileiro, considerado, internacionalmente, um avançado sistema de tutela coletiva.

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247Bruno Montenegro Ribeiro Dantas

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A NEW VIEW OF THE PARADIGM OF NECESSITY IN THE PERFORMANCE OF PUBLIC DEFENDER IN DEFENSE OF THE TRANSIDIVIDUAL RIGHTS:

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248 Uma nova feição do paradigma da necessidade na atuação da defensoria públicaem defesa dos direitos transindividuais: aspectos teóricos e práticos

THEORETICAL AND PRACTICAL ASPECTS

ABSTRACT

This thesis proposes to examine the legitimacy of the Public Defender for the filing of civil class actions which have as their object transindividual rights, which gives a new aspect to the paradigm of necessity. It will analyze the characteristics of this legitimacy, and the presence or absence of restrictions from the main attribution inscribe in the Constitution, all in keep all in keeping with the basic precepts of collective protection. There has been a systematic interpretation, harmonizing the paradigm of necessity in face of a new dogmatic, affects the social reality of which outweighs the right of access to justice. There is, above all, the desire for a proceduralistic based on the prevailing side instrumental. In this step, before the colli-mated sociopolitical motives and objectives in the Constitution, without forgetting the cultural and economic profile of the population, as inseparable from the hermeneutic procedure applicable to micro-collective, it is clear that the Public Defender has referred the legitimacy, especially in support the needy, so that the configuration of the need as a precondition for its action is to be glimpsed not only from the economic perspective, but in several related meanings, leaving dispensable proof of lack of individual recipients, especially in the atypi-cal role of that institution, having been suggested some solutions regarding the issues raised.

Keywords: Public Defender. Legitimacy. Transindividual rights. Necessity.

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ArtigoConvidado

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REFLEXÕES SOBRE NAÇÃO, ESTADO SOCIAL E SOBERANIA

Paulo Bonavides1

RESUMO

Condensa este artigo, de início, o substrato idealista do conceito de nação. Emprega vocabulário de ter-mos afins e usuais que, em geral, denotam o sentido utópico daquela expressão, de profundas raízes políticas e espirituais. Sem embargo de toda a com-plexidade conceitual e cognitiva, a nação continua sendo, em certa maneira, a força motriz do universo político de nosso tempo, como expressão de poder e de vida. Algumas reflexões aqui expendidas acerca das implicações de sua associação à temática do Estado social, da soberania e da federação têm em vista designadamente a realidade do Brasil, em seus elementos históricos, com abrangência de três épocas: a colonial, a monárquica e a republicana.

Palavras-chave: Nação, Colônia, Monarquia, Estado social, Soberania nacional, Democracia, Justiça social.

CONCEITO IDEALISTA DE NAÇÃO

NAÇÃO é alma, consciência, sentimento, humanismo, cidadania e apotegma de valores. Nação é o povo na intuição da fraternidade, da justiça e da liberdade; nação é direito, integridade e dignidade cívica na comunhão do

1 Paulo Bonavides é catedrático emérito da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Ceará, em Fortaleza. Doutor honoris causa pela Universidade de Lisboa e Autor de diversas obras jurídi-cas reconhecidas internacionalmente.

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252 Reflexões sobre Nação, Estado Social e Soberania

destino, na solidez compacta dos valores, no patrimônio dos tempos onde jaz a grandeza das tradições; na memória perpétua e coletiva da identidade, na correnteza das idéias que perenizam a energia do povo em se manter uno na adversidade e estóico na amargura dos reveses.

Nação é a marcha para a universalidade, o caminho moral do homem em direção às apoteoses do triunfo e a bem-sucedida convivência de todas as parcelas sociais.

Nação é sacrifício, abnegação e sangue nas causas que confinam com o heroísmo do gênero humano; é também a expressão da imortalidade do povo calcinado de dores, mas resgatado de esperanças.

Nação é o culto do solo, o gênio da língua, a inspiração da poesia, a música do patriotismo, a fé da religião, a força da ideologia, a vocação da liberdade e do direito; todos esses valores que as gerações memorizam e con-sagram, movidas da esperança, e do propósito e do pensamento de fazê-los eternos e indestrutíveis como as forças supremas da natureza, sobre as quais não tem o homem jurisdição para cominar-lhes a pena capital e extingui-las.

Nação é a pátria que gera os bravos, os justos, os artesãos do pro-gresso e da civilização, tecendo o fio da igualdade para estendê-lo a todas as esferas sociais; nação é a pátria mesma dizendo não à soberbia, ao ódio, ao privilegio, ao preconceito, à discriminação.

Nação é o breviário que psicologicamente liberta o ser humano dos cativeiros espirituais e das sujeições materiais por onde se lhe corrompe a índole; é do mesmo passo o compromisso pela causa dos oprimidos; o pa-vilhão dos combatentes patriotas soerguendo o braço e a voz das resistências constitucionais para colocar o Estado ao serviço dos magnânimos interesses sociais que fazem a dignidade do homem elevar-se às alturas da fruição de todos os direitos fundamentais possíveis.

Nação é a história e o idioma forjando o elo de união das gerações passadas, coevas e porvindouras, projetando assim a imortalidade da pátria e a eternidade do direito natural na consciência dos homens.2

2 Na nota 11 do capítulo 5 da nossa Ciência política (São Paulo, Editora Malheiros, 2007, p.88) reproduzimos lugares admiráveis da obra de Ramalho Ortigão em que esse primoroso escritor mostra como Portugal se vincula a Os lusíadas. Com efeito, após cair debaixo do domínio espa-

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253Paulo Bonavides

Nação, entre os povos periféricos, representa a luta pelo Estado da cidadania livre, democrática e participativa, garantindo a paz, distribuindo justiça, conciliando classes, protegendo categorias do corpo social.

Nação é a tópica nos tribunais solvendo com a hermenêutica da eqüidade, por via ponderativa, os casos em que o capital, seguindo a estei-ra da ambição, da cupidez e da injustiça, comprime e esmaga a causa do trabalho e destrói com a guerra criminosa a harmonia, a cooperação e a paz social dos povos.

Nação, segundo o conceito anteriormente exarado, já se vincula, pelos novos métodos e instrumentos interpretativos, com o princípio, a noção e a idéia de Estado social; em breve será esse objeto de desenvolvimento no conspecto das presentes reflexões.

Conduzido ao domínio jurídico, o conceito de nação se prende ao de soberania constitucional, porque essa é a raiz contemporânea mais profunda do direito; é, em certa maneira, a forma suprema e absoluta de criar, exercitar e concretizar os poderes constituintes como órgãos de soberania que se le-gitimam como expressão da vontade nacional.

Nação incorpora, por conseguinte, a legitimidade do povo soberano promulgando as constituições democráticas do contrato social.

Levando, porém, mais longe, como urge, a especificidade de uma preferência fundamental derivada da ideologia e da pré-compreensão axi-ológica, eleja-se por conceito de nação não apenas o que acabamos de exarar, versando-lhe a dimensão jusociológica e também jusfilosófica, senão este que, a seguir, flui do pluralismo, e da generalidade das suas fontes existenciais de matéria e espírito e nos diz numa síntese substancial ser a nação o solo, a pátria, o povo, cristalizados e condensados no tempo e no espaço como vontade e determinação de vida.

nhol, a nação, ferida de morte, desapossada da independência, ainda sobrevive e, em seguida, se restaura depois de sessenta anos de cativeiro. O poema de Camões, memória e breviário das glórias de Portugal, conquistadas pelas caravelas dos navegadores, inspira diretamente a res-surreição, em 1640, da independência perdida no deserto africano, entre as areias de Alcácer Quibir. São páginas da história, em que a nação, ilustrada nesse exemplo, se vê restituída ao seu papel de mantenedora e guarda de um passado, que foi parte do patrimônio da civilização e ficou perenizado pelo gênio de Camões nas estrofes do poema imortal, “pedra monumental”, onde, segundo Ortigão (Figuras e questões literárias, Lisboa, Livraria Clássica Editora, 2. ed, 1945, t.I, p.199, 200-3 e 213-9), “os portugueses terão de vir afiar as suas espadas de combate [...] para resistir a esta invasão terrível com lutamos e que se chama – a decadência”

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254 Reflexões sobre Nação, Estado Social e Soberania

Nessa longa seqüência de reflexões sobre o sentido e o conceito axiomático de nação, colhido da história, da tradição e das suas raízes morais, culturais e espirituais, é possível estabelecer a identidade e a vocação dos povos para perpetuar elementos de cultura, de vida, de solidariedade, de consenso e valor, que a retórica de Renan resumiu e condensou nesta expressão célebre: “a nação plebiscito de todos os dias”.

Com o desenvolvimento da doutrina, o conceito complexo de nação, antes de chegar à inteligência, à razão e ao cérebro já cursou a intuição, o sen-timento e o coração. E aí fez, por muito tempo, sua morada, e não ali, porque é no músculo nobre da vida, nas suas palpitações, que a nação nasce com o patriotismo e fenece com as circunstâncias e vicissitudes do tempo, pelo açoite das discórdias e das dissidências, pela fereza dos ódios civis inconciliáveis, pelo separatismo e secessão que acendem as labaredas da guerra civil, pela traição das elites extremistas e radicais que não raro atraem aos rincões do solo pátrio a intervenção das armas estrangeiras.

Armas, em geral, desagregadoras e perpetuadoras habituais do quebrantamento da unidade nacional, desfeita na colisão ideológica, ar-ruinando nações, espargindo rancores, abrindo as feridas do passionalismo ressentido. Essas, nem o tempo, que tudo apaga e cicatriza com a distancia histórica, logra fechar.

Com efeito, tais desastres acontecem sempre, mediante o rom-pimento da coesão, do equilíbrio e da unidade dos sistemas, dissolvidos na fragilidade das bases de anuência e contratualismo. Isso quando o bom senso já não tem linguagem nem força nem capacidade para opor-se, vitorioso, à degeneração e à falência que os mergulhou na corrupção; quando aqueles dois poderes, a saber, o Executivo e o Legislativo, se eximiram de exercitar so-bre a cidadania a jurisdição da legitimidade; quando o Legislativo, convertido numa assembléia de capitulações e de deserções aos deveres da legislatio, é apenas a sombra funesta de um parlamento que abdicou competências de órgão de soberania e se rendeu à prepotência e soberba de um poder rival; quando o Executivo, nas suas expansões de arbítrio, invade prerrogativas dos poderes constitucionais de ação paralela no exercício da soberania, quando os dois poderes mais ativos dessa mesma soberania – um que faz leis, outro que as executa –, desfalcados da ética dos governantes e da fé dos governados, se retraem da senda democrática por resvalarem no abismo da tirania e na fatalidade das ditaduras; quando aquele Executivo, enfim, faz das Medidas Provisórias o salvo-conduto de todas as usurpações e violações ao princípio da separação de poderes, e o poder governante despedaçando a Lei Maior

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se transfigura em fantasma da Constituição e opróbrio da democracia e do Estado de Direito.

A FORMAÇÃO DA NACIONALIDADE, DESDE O BRASIL COLONIAL AO BRASIL MONÁRQUICO.

Na época do Brasil colônia as guerras coloniais de fundo nativista foram, por sem dúvida, as primeiras manifestações embrionárias da nacio-nalidade em gestação. E o foram por obra social de luta, de resistência, de adesão do elemento humano aglutinado no processo assimilativo por onde se ia formando e definindo com lentidão uma conjunção de bens, interesses e valores, que abrigavam precursoramente o sentimento de autodeterminação.

Mas foi a tragédia da Inconfidência, o cadafalso de Tiradentes, o degredo de patriotas nas selvas e asperezas dos sertões africanos, bem como a repressão cega desencadeada da metrópole com o braço-de-ferro dos seus prepostos, que convergiam para a formação de uma consciência tosca e rudi-mentar, de substrato um tanto autonomista, do elemento colonial.

Com efeito, tudo dantes confluía para o estuário da violência e da opressão. Mas a força feroz do colonialismo fora impotente em riscar ou apagar da memória a brasilidade nativa de Porto Calvo e dos Guararapes, coroada de feitos que culminaram na expulsão dos invasores holandeses e no estabeleci-mento de fortes laços de comunhão de sangue e cooperação, das três etnias constitutivas do primitivo tecido da nacionalidade. Essa união, a historiografia há celebrado por um dos fatores que criaram o germe da consciência nacional num período ainda recuado da colonização.

Na guerra surda do Brasil colônia, aparelhou-se a substituição do espírito colonial de vassalagem das populações nativas por um espírito diverso, que alentava o ânimo secessionista da emancipação, conforme ficara patente nas tribulações da Inconfidência Mineira, desde o final do século XVIII. Desse derradeiro espírito vingaram depois duas sementes: a de Estado, que elevou o Brasil de colônia a reino unido, sob o pálio da coroa bragantina, e a de nação com a Revolução Pernambucana de 1817, debaixo do influxo republicano e federativo da União Americana.

A fase imediatamente precursora da emancipação formal, contudo, só transcorre quando se dá a transmigração da corte portuguesa à colônia, com a fuga de D. João VI aos exércitos invasores de Napoleão, comandados por Junot.

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256 Reflexões sobre Nação, Estado Social e Soberania

E se estende até a volta do rei a Portugal, em 1821. Não podemos deixar de ter, porém, na vinda de D. João VI e sua comitiva de fidalgos um dos episódios que mais aceleraram o processo constitutivo das nacionalidade.

Passos fundamentais se deram nesse sentido. A trasladação, por exemplo, fez o Brasil sede provisória da monarquia portuguesa, gerando efei-tos positivos de progresso na organização administrativa do país emergente.

Do mesmo modo, o decreto de abertura dos portos, seguido alguns anos mais tarde da Carta Régia de 1815, que estabelecia o reino unido, pas-sando a certidão do nascimento de um novo ramo institucional da monarquia portuguesa, erguido no continente, pareciam inculcar um certo grau de autonomia com o propósito de pôr freio às iminentes erupções do vulcão separatista, que D. João VI tão bem intuiu na despedida saudosa ao aconselhar o filho a cingir a coroa imperial.

A seguir, houve o grito do Ipiranga, que proclamou a independência, dissolveu o reino unido e pôs termo à união política dos dois povos; união desigual que encobria a continuidade do vínculo colonialista à velha metró-pole, conforme ficou comprovado pelos decretos reacionários e restauradores das cortes de Lisboa, os quais precipitaram o movimento da independência, consumada formalmente em 7 de setembro de 1822.

Despontava o Estado sob a forma de Império, mas a nação prosseguia a caminhada rumo à definição e consolidação da identidade.3

Com a independência, José Bonifácio era a Monarquia; com a Confederação do Equador, em 1824, Frei Caneca era a República. Mas essa só veio 67 anos depois. A primeira ocupa quase todo o século XIX; a segunda chega até aos nossos dias: são cinco repúblicas, com a de 1988, desde a queda do Império.

O Império constituiu a menoridade; a República, a maioridade na formação do nosso povo como nação e Estado. Maioridade alcançada, sem embargo do feudalismo branco dos coronéis. Durante a Primeira República prevaleceu o fenômeno social e político do coronelismo, em substituição da sociedade de senhores e escravos, ou seja, da casa grande e senzala, cujos traços de hegemonia desapareceram com a abolição. Os coronéis, sucesso-res dissimulados dos senhores do cativeiro, mantinham, porém, em servidão branca, consideráveis contingentes da população rural, privada do exercício

3 É possível lavrar a certidão de idade de um Estado porque o Estado é como a lei: tem data certa de seu estabelecimento. A nação, ao revés, é como o costume: obra do tempo, não se lhe conhe-ce, todavia, o momento em que aparece ou ingressa na história.

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da legítima cidadania, porque não era cidadania o voto de quem assinava em cruz atas eleitorais falsificadas.

Os braços do campesinato sustentavam, assim, nos sertões e nas faixas litorâneas a economia do campo, que fazia a riqueza dos donos da terra, a opulência dos estamentos privilegiados, o desequilíbrio da organização social, que perdurava injusta, desigual, desumana e atroz.

Finda a Monarquia, abolida a escravidão, suprimidas as instituições do sistema, inspiradas do modelo europeu, o sacrifício do parlamentarismo, a partir da introdução da forma presidencial de governo, constituiu o maior erro político da República nascente. Desse erro, responsável maior foi Rui Barbosa. Dislate que logo arruinou a legitimidade representativa, de último abalada também pelo volume de corrupção e decadência ética do corpo legislativo nas duas Casas do Congresso Nacional, traduzindo a miséria do presidencialismo, donde brotaram, pelo golpe de Estado, as piores ditaduras militares do continente.

Ao traçar a estrutura política da República, Rui Barbosa, principal redator da Carta Republicana, inspirou-se no modelo americano que associava três novidades desconhecidas à América lusitana: a república, o presiden-cialismo e o regime federal; os dois derradeiros foram, em verdade, criações originais do gênio constituinte dos autores da Magna Carta americana.

O golpe de Estado, de 1889, que alterou todo o quadro institucional do Brasil, fora tão imprevisível para os monarquistas do gabinete de Ouro Preto e para outras figuras do regime, incluindo o próprio imperador, que cuidavam todos eles estar unicamente em presença de crise ministerial, de manifesta gravidade; nunca, porém, suscetível de derrubar o Império.

A ação fulminante do golpe, determinando a ruptura do sistema imperial, surpreendeu também em certa maneira o próprio Deodoro.

Parece não haver tido ele consciência plena e imediata de seu ato, ao montar o cavalo na cena militar do Campo de Santana.

O herói da Guerra do Paraguai, o amigo do imperador, talvez cuidasse estar sendo protagonista de um desagravo do exército, tendo por conseqüência, mais uma vez, a simples queda do gabinete, e não a revolução silenciosa da dissolução de um império; porque revoluções silenciosas ao pé do trono, a Monarquia já as vira, sem perda de sua continuidade, no 7 de abril de 1831, com a abdicação de D. Pedro I, que pôs termo ao Primeiro Reinado, e, do mesmo modo, em 1840, com o decreto da Maioridade, cingindo a coroa na cabeça de D. Pedro II e inaugurando o Segundo Reinado.

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258 Reflexões sobre Nação, Estado Social e Soberania

O ADVENTO DAS BASES NACIONAIS DE UM ESTADO SOCIAL

O Brasil, desde a segunda metade do século XIX, deixara de ser apenas Estado ou Império para mostrar o rosto de uma nação já constituída ou pelo menos assim encarada.

Entrara, portanto, a gravitar ao redor de causas nacionais, como a da abolição, de cunho social; ou as da federação e da república, de caráter institucional. Todas debaixo da bandeira dos elementos mais organizados e supostamente capacitados a abrir o canal de comunicação da sociedade e do Estado com o corpo político da cidadania em gestação.

Quando vamos à história buscar o pensamento precursor do Estado social no Brasil, a grande surpresa que nos depara é verificar que ele nasceu no Império e não na República.

Em rigor, a omissão e a neutralidade social da Constituição de 1891, a Primeira da República, se faz mais patente, retrógrada e sentida, se a cotejarmos com o que constou do Projeto constituinte de 1823, bem como da Constituição Política do Império, outorgada por D. Pedro I em 1824.

O Título XIII do Projeto de Constituição que Antonio Carlos, depois de redigir as Bases de outro para a malograda Revolução Pernambucana de 1817, submeteu à Constituinte dissolvida pelo imperador, era deste teor: Da instrução pública, estabelecimentos de caridade, casas de correção e trabalho. Rezava a letra do art. 250: “Haverá no Império escolas primárias em cada termo, ginásios em cada comarca e universidades nos mais apropriados locais”.

E fechava o Título XIII com o art. 255, não menos perpassado da vocação precursora do Estado social, como se infere de seu conteúdo, em que se dizia: “Erigir-se-ão casas de trabalho para os que não acham emprego...”.

A Constituição outorgada em 1824 por D. Pedro I trazia por igual o germe das regras sociais no art. 179, afiançando que a Constituição também garante os socorros públicos, que a instrução primária é gratuita, que em colégios e universidades serão ensinados os elementos das ciências, belas-letras e artes.

A profecia do Estado social do porvir parecia estar posta, delineada e introduzida nesses dois textos de larga visão prospectiva.

Aliás, desde 1934 se intenta edificá-lo, em bases constitucionais, mas em ritmo tão vagaroso que parece ter analogia com a lentidão do cristianismo quando erguia no Ocidente as suas catedrais.

Havia, portanto, naqueles primeiros elementos da razão consti-

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tucional em nosso país, disposições expressas de proteção social, dilatada à educação e ao emprego, conforme já nos fora dado assinalar em 1992, ao proferirmos o discurso de recepção da Medalha Rui Barbosa num Congresso Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil.

Com efeito, aquele testemunho documental claramente demonstra que o constitucionalismo da Monarquia, apesar de inspirado e embebido dos cânones da doutrina liberal, em toda a pureza de suas fontes mais autênticas e autorizadas, fora, todavia, muitas décadas antes, menos conservador que o da República em matéria social.

O silêncio constitucional de Rui se mostrava, contudo, tardio e – singular ironia! – ficara paralítico na retaguarda das idéias por contrastar com um final de século que já ouvira a pregação do realismo, materialmente cons-titucional de Lassalle, a nosso parecer, ressuscitado de forma tão brilhante e atualizada pelo texto clássico de Konrad Hesse acerca da força normativa da Constituição.

Hesse, sem perceber ou sem disso fazer cabedal, é o constituciona-lista da juridicidade do Estado social. E o é na medida em que a hermenêutica, em sua versão contemporânea de mudança e renovação metodológica, pode a ele arrimar-se também, ao declarar normativa e de aplicabilidade imediata a categoria dos direitos fundamentais da segunda geração ou dimensão, a saber, a dos direitos sociais, assim reconhecidos e proclamados pela grande revolução jurídica do constitucionalismo de nosso tempo.

As lutas políticas, sociais e constitucionais desencadeadas e feridas na primeira metade do século passado em nosso país contra o imobilismo social do Estado liberal tiveram princípio no anseio reformista de mudança indefinida, jacente nas agitações da década de 1920, nos levantes militares dos dois 5 de julho, no dedo repressivo dos estados de sítio decretados pelo governo oligárquico e contraditório de Bernardes, que, por paradoxo, abriria um respeitável e

forte sentimento de nacionalidade e de proteção à riqueza nacional, adormecida nas jazidas de ferro de Minas Gerais. E, por derradeiro, na explosão revolucionária de 1930, seguida da Constituição de 1934.

Explosão batizada de Revolução Liberal, ela no seu reformismo trazia, por inteiro, as sementes sociais donde resultara a concepção de um novo Estado em que a ideologia fazia prevalecer na organização institucional do sistema algumas idéias e alvitres ou sugestões constitucionais tirados de dispositivos deveras inovadores, legislados pelos constituintes do México em 1917, e de Weimar em 1919, e que traçaram a grande pauta precursora da

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260 Reflexões sobre Nação, Estado Social e Soberania

normatividade dos direitos fundamentais da segunda geração.Inauguraram-se então as primeiras formas concretas e rudimentares

de Estado social, as quais, sem embargo de sua efemeridade e de suas consti-tuições serem grandemente programáticas, como ficou depois comprovado designadamente no caso da Alemanha, tiveram, todavia, considerável res-sonância e influxo sobre as Cartas promulgadas no período compreendido entre as duas Grandes Guerras Mundiais, tanto na Europa como na América Latina.

Os efeitos desse influxo caíram, porém, a baixo nível depois que se averiguou, com o tempo, o teor meramente retórico e doutrinário desses preceitos introduzidos pelo revisionismo social das Leis Fundamentais.

A época weimariana, num mundo prestes a desabar e conflagrar-se novamente, em proporções nunca vistas, representaria em matéria social um ciclo de reduzida densidade normativa. Mas que parece louvável pelo alcance e ineditismo dos avanços do constitucionalismo daquela época.

Com efeito, o Estado social nascente, cujo berço vamos encontrar nas comoções ideológicas do socialismo do século XIX, tanto o de Proudhon como o de Marx, ainda estava longe de amadurecer ou de trasladar-se, por via normativa eficaz, às esferas positivas do ordenamento jurídico como seu título mais sólido de legitimidade; unicamente a concretização dos direitos da segunda geração, os direitos sociais, pôde outorgar e materializar aspirações de progresso, isonomia e liberdade, definir o advento de uma nova época constitucional, em que a naciona-

lidade se exprime pela paz social interna, por onde se fazem legí-timos os governos da nação quando consagram os direitos fundamentais de todos as dimensões.

O Estado social, de bases nacionais, busca sob a égide do Estado de direito exercitar um poder democrático, aberto, pluralista e idôneo para conter os efeitos funestos e devastadores das crises de governabilidade. Em geral, são crises derivadas da incapacidade e da incompetência de quem governa sem a visão republicana do poder, rendido ao egoísmo dos estamentos elitistas, os mais empenhados em revogar ou derruir a normatividade jurídica do sistema social de proteção ao trabalho, estabelecido contra as agressões do capital.

Essa normatividade, cimentada em princípios, é, sem dúvida, ga-rantia e penhor de sustentação das instituições nos períodos mais graves de crises supostamente irremediáveis.

Em ocasiões culminantes da diátese nacional, o povo brasileiro tem revelado por traço maior de sua personalidade, seu caráter e seu tempera-

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mento uma acentuada vocação de concórdia, compromisso e transação, ou seja, de tornar efetivos, na composição dos interesses, os meios conciliatórios que abafam a aspereza da luta de classes perpetuada pelo capital, como sustentáculo de poder das minorias injustas, que governam e comprimem a sociedade, desamparando-a dos valores republicanos de justiça, liberdade e democracia. Democracia, sim, mas do cidadão participativo, do elemento humano movido de compreensão e de lealdade constitucional às instituições do povo soberano.

Desse povo não se pode apartar o cidadão. Se o fizer, terá perdido a dignidade, que o constitui parcela da nação-cidadã, da nação-povo, da nação-consenso, da nação-soberania constitucional. Só essa pacifica o corpo social de classes amotinadas na diversificação turbulenta de seus interesses colidentes.

Desde a Carta de 1988, Estado social e nação se unificam na tradição brasileira, de duas décadas já vividas e atravessadas, numa sinopse axiológica que traduz a grandeza, a solidez e o vigor da solidariedade na alma do povo brasileiro, abraçado ao compromisso irrevogável de sua Carta Magna, dirigido à concretização da justiça social.

Sendo, como é, uma Carta de princípios – e princípios normativos –, foi a primeira da era republicana que deu neste país estabilidade ao regime constitucional, não se fazendo mister esconjurar, ao longo de vinte anos, o fantasma dos golpes de Estado e da intervenção dos quartéis, lembranças funestas do passado.

A DIMENSÃO FEDERATIVA DO ESTADO NACIONAL NO BRASIL

A geografia no Brasil, pelas dimensões continentais do país, com-posto de vastas e distintas regiões, tem sido forte fator natural que não só recomenda como impõe ao Estado, por imperativo de governança, a forma federativa de sua organização.

Desde o berço da nacionalidade, o espectro da federação apareceu como uma constante ao longo do Império unitário e centralizador. Esse o exorcizou quanto pôde, sem, todavia, lograr fazê-lo ausente das reivindica-ções autonomistas do Ato Adicional de 1834, durante os debates públicos e parlamentares que o antecederam, desde a abdicação, e fizeram da regência uma época constitucional de espírito republicano.

A plêiade conservadora do Império, os chefes políticos da grei mais afeiçoada ao trono viveram sempre debaixo do pesadelo das idéias reformis-

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262 Reflexões sobre Nação, Estado Social e Soberania

tas porventura agitadas pela corrente política mais avançada do liberalismo imperial e mais propensa a mitigar a rigidez de um sistema de poder, e de uma máquina de governo, por extremo unitarista, introduzindo-lhe mudanças que só em conjeturar despertavam já no ânimo do elemento conservador o temor da secessão, da desorganização, do esfacelamento, da ruptura e perda da unidade imperial, consoante a crítica política da época e a leitura histórica das crises da regência bem demonstram.

Já os liberais, evidenciando o contraste, temiam o oposto, ou seja, que o excesso de zelo no preservar a unidade do país monárquico, em virtude daquelas apreensões generalizadas, determinasse, como aliás determinou, du-rante o Segundo Reinado, um impulso centralizador e unitarista sufocante. Seus efeitos negativos para as instituições efetivamente aconteceram, adicionados a outros fatores não menos graves, a saber, a questão abolicionista, a questão militar, a questão religiosa, a questão político-partidária, a questão do poder pessoal do imperador – que abalaram a governabilidade da realeza, minaram o edifício da Monarquia e acabaram por ocasionar em 1889 a queda do Império.

Formou-se, todavia, em contrapartida, aquele juízo histórico se-gundo o qual a excelência ímpar da Monarquia entre nós residira em haver concretizado o milagre dos milagres num continente retalhado de repúblicas, que eram a imagem das divisões políticas de um passado irremediável: o milagre da unidade nacional dos povos emancipados, tão desejada e nunca lograda pela América hispânica, e que só foi possível na América portuguesa por obra do governo imperial, segundo a corrente preponderante de opinião em nossa historiografia.

Com efeito, é de pasmar que a América castelhana, na vizinhança do Império, e onde concorriam iguais elementos comuns de herança étnica, lingüística, cultural e religiosa, portanto pressupostos homogêneos de sangue, de tradição e de fé, não lograsse estabelecer nos Estados emergentes do domínio colonial, como fora o sonho e esperança dos libertadores, a unidade continental das instituições políticas, debaixo da aparição de uma ou duas, no máximo, três grandes nacionalidades, todas republicanas, sob a égide do princípio federativo. O exemplo mais definido e edificante em que se pode inspirar provinha da União Americana, das bases instituídas pelos autores da Carta de Filadélfia.

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263Paulo Bonavides

É A NAÇÃO UMA RESSURREIÇÃO DA PÓLIS NOS PAÍSES PERIFÉRICOS?

A nação está para o Estado moderno assim como a pólis esteve para o Estado antigo, o Estado da Antigüidade clássica.

A nação é, por um certo ângulo, a pólis da contemporaneidade. Como unidade de valores, levanta o edifício do Estado com as pedras e o cimento da solidariedade política e social.

Seu vínculo com o Estado é um cálculo de legitimidade e de justiça social nos países de periferia, onde se faz indissolúvel quando se trata de esta-belecer o conceito de soberania, que no caso é a soberania nacional.

Indissolúvel por igual, o vínculo estabelecido com o povo, porque esse, qualitativamente, é o corpo da nação, o seu elemento humano, tanto quanto a população, quantitativamente, o é também do Estado.

Nessa acepção ora desenvolvida, nação é povo, e soberania nacional é soberania popular; ambas fundamento da mesma legitimidade do poder, da mesma força condutora dos elementos éticos na organização do Estado moderno e democrático, da idade contemporânea.

Com efeito, não há como separá-las ou fazê-las distintas, as duas soberanias; ao revés, por conseguinte, do que fez a teoria constituinte da Revolução Francesa, por determinantes ideológicas, no confronto da burgue-sia com o povo, dos moderados com os radicais, ao escreverem o derradeiro capítulo da Grande Revolução.

Operada pelo extremismo doutrinário dos revolucionários, deu-se a cisão de nação e povo como duas categorias políticas, como duas entidades distintas e independentes, mas que dantes comungavam dos mesmos propósi-tos, a saber, o da derrubada do regime feudal.

A nação, titular da soberania nacional, outorgou a Constituição francesa de 1791, aquela que aboliu as instituições do feudalismo.

O povo, titular da soberania popular, a soberania do povo revolu-cionário, promulgou, com ênfase na igualdade, a Constituição de 1793; ambas as soberanias fortes na doutrina, mas fracas na realidade; ambas eternas na utopia, mas efêmeras na positividade.

Em verdade, a teoria da soberania nacional é, a nosso parecer, a única que teoriza e estabelece, pelo ângulo político, a unidade de nação, povo e Estado.

De tal sorte que quem diz nação, diz também povo, e diz do mesmo passo Estado, porque Estado, segundo essa concepção, só se constitui legítimo se não transgredir o princípio da nacionalidade.

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264 Reflexões sobre Nação, Estado Social e Soberania

Conciliar nação com Estado, nos termos do ideal de legitimidade, parece dominar nossa época na madrugada do terceiro milênio, como domi-nou o século XIX.

Mas isso só se nos afigura possível, entre as repúblicas do continente, quase todas da periferia política, com um passado de ditaduras funestas e atrozes, se exercitarem as franquias públicas do regime democrático e o res-peito à fruição inviolável dos direitos fundamentais.

Nessa direção caminham ou devem caminhar, porquanto é unica-mente por essa via que se chega, na plenitude constitucional, ao tão almejado Estado social da justiça, da legitimidade e da democracia participativa, sob a égide, por conseguinte, da nação soberana, do povo livre e da cidadania atuante.

Tornamos, ao cabo deste ensaio, a fazer menção dos conceitos de nação, constantes da parte introdutória, para dizer tão-somente que eles po-dem ser compendiados, restaurados e ressuscitados, se fizermos, por exemplo, do modelo clássico de democracia, o modelo ateniense, o norte ético e axi-ológico de uma agregação espiritual perene que, na democracia participativa de nosso tempo, há de falar mais alto pela voz do coração, da fraternidade, do sentimento e da comunhão de valores, que da razão, por onde os egoísmos de classe buscam legitimar-se.

Só assim a democracia do porvir, emancipadora dos povos periféri-cos, e concretizada como direito fundamental do homem, há de ser na escala de valores mais nação que Estado, mais consciência nacional do povo solidário que razão de Estado dos governos autocráticos.

Estado social e nação pressupõem também, ao lado da democracia, em seu teor contemporâneo de legitimidade, o primado da justiça, porque sem justiça a autoridade não se legitima, é dissimulação; a liberdade constitui privilégio; a igualdade, retórica; a segurança, argumento de opressão; a lei, mais regra de força que norma de direito; e o Estado, mais absolutismo que harmonia e separação de poderes.

Sem justiça, a governabilidade é o dogma da tirania, é a nova razão de Estado das ditaduras constitucionais, a dimensão injusta e soez das invasões executivas nas órbitas de competência do legislador e do juiz.

Sem justiça, o governo é ingovernabilidade. É a Constituição desam-parada, malferida, humilhada, devastada, conculcada. E por que não dizer? Anexada ao arbítrio, à barbaridade e à onipotência de um Executivo supressor da livre fruição dos direitos fundamentais e das liberdades públicas. Executivo que, se lhe não puserem amarras, aniquilará a essência da cidadania.

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265Paulo Bonavides

Sem justiça, a nação fica a um passo do abismo onde a democracia já não pode respirar e os laços morais e políticos da união republicana se dissolvem.

O Estado social deixa então de ser Estado de direito por se converter tão somente em Estado social de um sistema totalitário, em que o Legislativo, numa flagrante cumplicidade de submissão, se fez também fantasma do sistema representativo e da Constituição que abjurou e quebrantou. Fazendo mão comum com o Executivo, ambos podem implantar uma ditadura funesta ao futuro da nacionalidade, em razão de dissolver os vínculos democráticos e os valores que os atavam à Constituição.

O triângulo da liberdade na periferia é justiça, nação e Estado social. Fora daí, as tribunas vazias, a sombra do absolutismo, o silêncio das ditaduras.

REFLECTIONS ON NATION, SOCIAL STATE AND SOVEREIGNTY

ABSTRACT

This article starts by condensing the idealistic substratum of the concept of nation. It makes use of common nation related terms that, in general, express the utopian meaning of that expression, which has deep political and spiritual roots. In spite of all the conceptual and cognitive complex-ity, the nation is still, in a certain way, the driving force of the political universe of our time, as an expression of power and life. Some thoughts on the implications of its association to the theme of the social state, sovereignty and federation, which are detailed in the article, consider the Brazilian reality and its historical elements, covering three different periods: those of the colony, the monar-chy and the republic.

Keywords: Nation, Colony, Monarchy, Social state, National sovereignty, Democracy, Social justice.

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Todas as normas que regem a publicação de artigos na trigésima edição da Revista Jurídica In Verbis encontram-se disponíveis para download no site oficial do periódico – www.inverbis.com.br -, na seção “Normas”. As referidas normas consistem em Edital e Guia de Normas, este anexo àquele. Na supradita seção, há também um artigo modelo elaborado, a convite, pelo Professor Igor Alexandre Felipe de Macêdo.

Regras de Publicaçãopara a Próxima Edição

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