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    roque tadeu gui norberto abreu e silva neto orientador

    P

    siqun

    a

    Plis:

    Instituto de PsicologiaDepartamento de Psicologia Clnica

    Universidade de Braslia

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    UNIVERSIDADE DE BRASLIA

    INSTITUTO DE PSICOLOGIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM PSICOLOGIA

    Psiqu na Plis:

    Individuao e Desenvolvimento Poltico da Personalidade

    POR

    ROQUE TADEU GUI

    BRASLIA - DF - BRASIL

    2005

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    ii

    UNIVERSIDADE DE BRASLIA

    INSTITUTO DE PSICOLOGIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM PSICOLOGIA

    Psiqu na Plis:

    Individuao e Desenvolvimento Poltico da Personalidade

    POR

    ROQUE TADEU GUI

    Dissertao apresentada ao Instituto de Psicologia da

    Universidade de Braslia como requisito parcial para

    a obteno do ttulo de Mestre em Psicologia.

    Orientador: Prof. Dr. Norberto Abreu e Silva Neto

    BRASLIA - DF - BRASIL

    2005

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    UNIVERSIDADE DE BRASLIA

    INSTITUTO DE PSICOLOGIA

    ESTA DISSERTAO FOI APROVADA PELA SEGUINTE

    COMISSO EXAMINADORA

    Prof. Dr. Norberto Abreu e Silva Neto, Orientador

    Prof. Dr. Laura Villares de Freitas, Membro

    Prof. Dr. Odair Furtado, Membro

    Prof. Dr. Regina Lcia Sucupira Pedroza, Suplente

    BRASLIA - DF - BRASIL - 2005

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    iv

    AGRADECIMENTOS

    Agradeo ao Norberto pela confiana em minha capacidade de trabalho, pelos

    ensinamentos recebidos, pela abertura e liberdade intelectual da qual pude

    usufruir ao longo da elaborao do meu estudo.

    Agradeo aos analistas junguianos Rubens Bragarnich e Acaci de Alcantara,

    queridos amigos, que me incentivaram a realizar a investigao e foram os

    primeiros a responder s minhas perguntas; devo a eles a participao de outros

    psiclogos analticos na pesquisa.

    Ao amigo Luiz Gustavo Lima, jovem psiclogo que me ajudou na crtica dos

    instrumentos de pesquisa e na conduo do grupo focal.

    Por fim, porm no menos importante, agradeo a todos os colegas terapeutas

    que concordaram em participar da pesquisa, demonstrando grande interesse e

    apreo pelo estudo.

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    v

    Madrid de Marzo

    Adolfo Montejo Navas

    Ms abajo de las lgrimas, est la muerte

    que nos acostumbra a nada. Ms abajo

    el terror, el aire que rene todo,

    lo que no tiene nombre todava,lo que nuestras palabras mendigan.

    Ms abajo de los lamentos, los vientos,

    ms abajo del horror, la respiracin

    cortada, y el hierro y la fiebre,

    y la cordura e la materia de la locura

    en su final de azogue. Ms abajo,

    est la sangre de la tierra, la vieja

    residencia herida. Ms bajo

    de Madrid, est el mundo gritado.

    Rio, 12 de marzo, 2004

    Publicado no Caderno "Mais", Folha de So Paulo, p. 20, 21 de maro de 2004.

    Adolfo Montejo Navas poeta, nasceu em Madri em 1954 e vive no Brasil desde 1992.

    Guernica, 1937

    Pablo Picasso

    Madrid, Museo del Prado

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    Resumo

    Este estudo analisa as relaes existentes entre individuao - processo de

    desenvolvimento psicolgico proposto pela Psicologia Analtica - e desenvolvimento poltico

    da personalidade.

    Vinte e quatro terapeutas das cidades de So Paulo e Braslia, de ambos os sexos e

    diferentes orientaes clnicas, responderam a um questionrio, e 7 deles participaram de

    grupo focal sobre o tema "clnica e poltica".

    Os terapeutas compreendem as questes polticas como "pano de fundo" das questes

    pessoais. Consideram inadequado iniciar conversa sobre temas polticos na sesso, porm no

    evitam conversas iniciadas pelos prprios pacientes. Questes econmicas, segurana e

    violncia na sociedade, mundo do trabalho, diferenas ou conflitos de gnero, preocupaes

    ambientais, poltica nacional, preconceitos relacionados raa/etnia, velhice feminina e

    localidade geogrfica de origem do paciente so temas que surgem com freqncia.

    A maneira de lidar com material poltico preferencialmente "simblica-

    interpretativa", embora muitas vezes se apresente associada com uma maneira "realista" de

    considerar o tema, ou com a busca de significado para o paciente.

    A maior parte dos terapeutas no recebeu formao teraputica especializada para o

    manejo de material poltico. De maneira geral, apresentam uma histria de engajamento

    poltico pessoal mais intenso no passado do que no presente e acreditam que o

    amadurecimento profissional favorece o manejo da temtica poltica.

    O desenvolvimento poltico da pessoa percebido como decorrente do

    desenvolvimento psicolgico ou, ento, sendo favorecido por este, mas no ocorrendo

    necessariamente. Os terapeutas entendem que engajamentos polticos muitas vezes so

    sintomas de mal-funcionamernto psquico e no identificam as experincias sociopolticas

    como um estmulo ao desenvolvimento psquico.

    O estudo confirma a observao de A. Samuels (1995) de que h uma ciso entre a

    "face pblica" da profisso, que se apresenta apoltica, e a "face privada", representada porprofissionais que tm uma histria poltica e que vivem engajamentos.

    Sugere-se o aprofundamento dos estudos sobre as relaes entre desenvolvimento

    psicolgico e desenvolvimento poltico da personalidade para subsidiar as diversas

    abordagens psicoterpicas no manejo de material poltico que se apresenta na situao

    teraputica.

    Palavras-chave: individuao, desenvolvimento psicolgico da personalidade,

    desenvolvimento poltico da personalidade, self poltico, manejo de material poltico na

    situao teraputica.

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    Abstract

    This study analyses the relations between individuation - psychologycal development

    process as proposed by Analytical Psychology - and personality political development.Twenty four therapists from So Paulo and Braslia, from both genders and different

    clinical orientations, answered a survey and seven of them participated of a focal group about

    the subject of "clinical practice and politics".

    Therapists understand political issues as a background personal issues. They evaluate

    as inapropriate to initiate a talk about political issues with patients in a therapeutic session,

    however they don't avoid talking about it when the initiative comes from the patients.

    Economics issues, security and violence in society, labour world, gender differences or

    conflicts, ambiental concerns, national politics and race/ethnicity, female old age and regional

    origin prejudices are frequent subjects.

    The way of dealing with political issues is prefferently "simbolic-interpretative",

    although many times associated with a "realistic" form of considering the subject or with the

    search of meaning for the patient.

    The majority of therapists haven't received any especialized therapeutic formation to

    deal with political isssues. In general, they have had a molre intense personal political

    participation in the past than in the present and they believe that professional maturity helps

    dealing with political topics.

    The personal political development is understood as consequence of psychological

    development or then as being supported by it, but it may not occur necessarily. Many times

    the therapists understand political involvement as malfunctioning of the psyche symptom and

    don't identify sociopolitical experiences as stimulus to development of the psyche.

    The study confirms A. Samuels (1995) conclusion about the split between the

    profession public aspects, that appear in an apolitic way, and the privated aspects,

    representated by professionals that have a political history and participation.

    Greater deps in the studies about the relations between psychological development and

    political development that may support the different approaches in dealing with political

    topics in therapeutic situation is suggested.

    Key-Words: individuation, psychological development of personality, political development

    of personality, political self, dealing with political topics in a therapeutic situation.

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    SUMRIO

    Introduo A Alma em Busca da Poltica 1

    Notcias do Mundo ................................................................................... 1

    Inquietaes - Contexto e Problema ......................................................... 3

    Endereos na gora ................................................................................. 5

    Uma Fantasia do Pesquisador .................................................................. 7

    Escopo do Estudo ..................................................................................... 9

    Ansiedades do Pesquisador ...................................................................... 9

    Conceito de Poltica ................................................................................. 10

    Conceito de Alma ..................................................................................... 12

    Itinerrio ................................................................................................... 13

    Captulo 1 A Alma Social e a Alma Poltica 16

    No Incio dos Tempos... ........................................................................... 16

    O Sociuse oPoliticus.............................................................................. 18

    A Esfera Pblica e o Mundo em Comum ................................................. 22

    Homo SocialiseHomo Politicus............................................................. 24

    Homo Transformator................................................................................ 26

    Captulo 2 Um Muro Invisvel Entre o Eu e o Mundo 29

    O Indivduo S .........................................................................................

    Ser para Outros e Entre Outros ................................................................

    A Subjetividade Scio-histrica ...............................................................

    29

    31

    33

    Captulo 3 Eu e Minha Circunstncia 39

    Conscincia do Mundo ............................................................................. 39

    Um Arco que Une o Mundo e o Eu... ....................................................... 40Viver Encontrar-se num Mundo... ......................................................... 42

    Situaes-Limites e Atos-Limites ............................................................ 44

    Prxis Ao e Reflexo sobre o Mundo ................................................ 46

    Captulo 4 A Subjetividade Sitiada 48

    Sujeito Situado e Sitiado .......................................................................... 48

    Um Olhar sobre o Mundo ......................................................................... 48

    Homo Mundialis Modernicus................................................................... 50Liberdade Individual e Insegurana Coletiva ........................................... 52

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    ix

    Captulo 5 Um Mundo com Alma 61

    Anima Mundi............................................................................................ 61

    Gaia, a Terra Viva .................................................................................... 65

    Terapia e Mundo ....................................................................................... 66

    Mundo, o Vale do Fazer a Alma ............................................................... 68

    Captulo 6 Psicologia Poltica 70

    Origens da Psicologia Poltica .................................................................. 70

    Psicologia Poltica: a Disciplina ............................................................... 74

    Metodologia em Psicologia Poltica ......................................................... 80

    Aplicao da Psicologia Poltica .............................................................. 81

    Psicologia Poltica no Brasil ..................................................................... 82

    Psicologia e Compromisso Social ............................................................ 83

    Captulo 7 Individuao: O Indivduo e o Mundo 87

    As Origens do Conceito ............................................................................ 87

    Um Conceito Junguiano ........................................................................... 89

    Individuao: Adaptao e Singularidade ............................................... 96

    Individuao para Todos ou para Poucos? ............................................... 100

    Transformao do Indivduo ou da Sociedade? ....................................... 101

    Captulo 8 Individuao e Poltica 106

    A Socializao Poltica ............................................................................. 106

    O Desenvolvimento Psicolgico da Pessoa .............................................. 109

    O Desenvolvimento Poltico da Pessoa .................................................... 113

    Captulo 9 A Terapeuta Poltica 117

    Psiclogas Brasileiras ............................................................................... 117Terapeutas e Poltica ................................................................................. 120

    Falando sobre Poltica na Situao Teraputica ....................................... 122

    Captulo 10 A Cidad Terapeuta 125

    PsiqunaPlis.......................................................................................... 125

    Terapia para o Mundo ............................................................................... 127

    A Cidad nagora-Therapeada Plis .................................................... 132

    Captulo 11 Um Caf Filosfico... 134

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    x

    Captulo 12 Conversando com Terapeutas sobre Poltica 138

    Introduo ................................................................................................. 138

    Metodologia .............................................................................................. 139

    Objetos de Pesquisa .................................................................................. 139Objetivo Geral .......................................................................................... 140

    Objetivos Especficos ............................................................................... 140

    Instrumentos de Pesquisa .......................................................................... 142

    Participantes .............................................................................................. 142

    Tratamento das Informaes .................................................................... 145

    Anlise das Informaes e Resultados ..................................................... 146

    Seo 12.1 Conversando com os Pacientes sobre Poltica .......................................... 147Seo 12.2 Identificando Temas Polticos na Situao Teraputica ........................... 149

    Seo 12.3 Identificando Diferenas no Material Poltico em Diferentes Ambientes

    de Trabalho ............................................................................................... 153

    Seo 12.4 Relacionando Material Poltico com a Idade do Paciente ........................ 155

    Seo 12.5 Relacionando Material Poltico com o Sexo do Paciente ......................... 158

    Seo 12.6 Lidando com Temas Polticos na Situao Teraputica ........................... 160

    Seo 12.7 Mudando a Maneira de Lidar com Material Poltico ............................... 170

    Seo 12.8 Recebendo Formao Poltica .................................................................. 174

    Seo 12.9 Recebendo Influncias nas Atitudes Polticas .......................................... 177

    Seo 12.10 Atuando Politicamente como Cidado ..................................................... 180

    Seo 12.11 Relacionando Desenvolvimento Psicolgico e DesenvolvimentoPoltico da Personalidade .......................................................................... 182

    Seo 12.12 Avaliao do Encontro pelos Participantes do Grupo Focal .................... 187

    Seo 12.13 Consideraes Finais sobre a Pesquisa de Campo ................................... 189

    Psiquna Plis- Reflexes Finais 192

    Referncias 197

    Apndice A Questionrio "Clnica e Poltica" .............................................................. 205

    Apndice B Planejamento do Grupo Focal .................................................................. 209

    Apndice C Temas Polticos Identificados na Situao Teraputica ........................... 211Apndice D Maneiras de Lidar com Temas Polticos na Situao Teraputica - Respostas.. 217

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    xi

    Apndice E Atividade Poltica dos Terapeutas - Respostas ......................................... 224

    Apndice F Desenvolvimento Psicolgico e Desenvolvimento Poltico - Respostas ........... 228

    NDICE DE TABELAS

    Tabela 1 Desdobramento de Temas a Partir dos Objetos de Pesquisa ........................ 140

    Tabela 2 Perguntas de Pesquisa x Objetivos Especficos ........................................... 141

    Tabela 3 Dados Demogrficos dos Participantes do Grupo"Questionrio" ............... 143

    Tabela 4 Dados Demogrficos dos Participantes do Grupo Focal .............................. 144

    Tabela 5 Freqncia dos Temas na Situao Teraputica .......................................... 211

    Tabela 6 Temas mais Freqentes na Situao Teraputica ......................................... 149Tabela 7 Temas Trazidos para a Situao Teraputica - Grupo Focal ...................... 150

    Tabela 8 Diferenas na Manifestao de Material Poltico de Acordo com oAmbiente Teraputico .................................................................................. 153

    Tabela 9 Maneiras de Lidar com Material Poltico x Categorias de CompreensoTeraputica ................................................................................................... 160

    Tabela 10 Mudanas no Modo de Lidar com Material Poltico na SituaoTeraputica ................................................................................................... 170

    Tabela 11 Formao Poltica Recebida pelos Terapeutas ............................................. 174

    Tabela 12 Fatores que Influenciaram as Atitudes Polticas dos Terapeutas ................. 177

    Tabela 13 Atividade Poltica dos Terapeutas ................................................................ 224

    Tabela 14 Desenvolvimento Psicolgico e Desenvolvimernto Poltico daPersonalidade - Grupo "Questionrio" ......................................................... 228

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    A alma em busca da poltica

    Psiqu na plis: individuao e desenvolvimento poltico da personalidade

    1

    A Alma em Busca da Poltica

    No sei o que me oprime o corao - se minha almaque deseja sair para fora, ou a alma do mundo batendo

    em meu corao para entrar.

    (Rabrindanath Tagore, 1991, poema 168)

    H muita dor e doena poltica 'l fora'.

    (Samuels, 1995, p. 25)

    Notcias do Mundo

    Brasil. ABORTO - Grupo comea a discutir descriminalizao do aborto neste ms.

    O Plano Nacional de Polticas para as Mulheres, lanado em dezembro do ano

    passado, coloca a discusso sobre a descriminalizao do aborto como ponto

    prioritrio. O documento prev que em 2005 seja elaborada uma proposta de reviso

    da legislao que pune as mulheres em casos de interrupo voluntria da gravidez.

    (Folha Online,08/03/2005 - 07h44)

    Mundo. SMBOLOS RELIGIOSOS - Frana declara lei contra vu muulmano um

    sucesso. A inspetora-geral do Ministrio da Educao francs, Hanifa Cherifi,

    declarou na tera-feira a lei que probe os vus muulmanos nas escolas um sucesso,

    no aniversrio de um ano da aprovao da medida. Enquanto isso, um grupo que

    defende os vus alegou que a proibio fez o que chamou de 806 vtimas at agora.

    (Folha Online , 15/03/2005 - 15h22)

    Economia.CUSTO DE VIDA - Aumento nos preos do petrleo e medicamentos,

    alm do impacto da alta de juros nos EUA, foram o governo a rever a estimativa de

    inflao. Economistas apostam que o ndice ficar acima de 6%.(Correio Braziliense,

    28.03.2005, Caderno de Economia, p. 7).

    Cidades. VIDA URBANA Para cada espao nos estacionamentos pblicos do Plano

    Piloto, existem quatro motoristas espera de um local para parar o carro. Projeto

    prev a criao de pavimentos subterrneos na Esplanada dos Ministrios. (Correio

    Braziliense, 28.03.2005, Caderno Cidades, p. 19)

    Cidades. VIOLNCIA Dois sequestros no Plano. Durante o feriado da Semana

    Santa, dois jovens so rendidos por bandidos. Um foi abordado na 506 Sul; outra na

    105 Norte.(Correio Braziliense, 28.03.2005, Caderno Cidades, p. 20)

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    A alma em busca da poltica

    Psiqu na plis: individuao e desenvolvimento poltico da personalidade

    2

    Trabalho. DESEMPREGO - Trabalhadores desempregados invadem fazenda em

    cidade satlite de Braslia. Cerca de 100 famlias do Movimento dos Trabalhadores

    Desempregados (MTD) esto acampadas, desde a madrugada deste sbado, na

    fazenda Slvia, em Sobradinho, cidade satlite de Braslia. A rea, que fica na BR-

    020, pertence Unio.(Folha Online, 21/05/2005 - 14h38)

    Todos os dias, o mundo bate nossa porta. s vezes, pela manh, outras no

    transcorrer do dia, ou ento noite, tendo como mensageiros os jornais, as notcias minuto a

    minuto transmitidas pela internet, o noticirio televisivo noturno. Sem que saiamos de casa,

    ele vem ao nosso encontro. Antecipa-se. Anuncia-se. Um mundo que se fragmenta, deprime-

    se, violenta-se, e que busca se recompor...

    O indivduo se apresenta para a terapia, mas o paciente em crise o prprio mundo.Os sintomas do novo paciente so desemprego, fome, injustia social, inflao, fragmentao,

    deteriorao socioambiental, hiper-especializao, depresso, desperdcio, hiper-consumo,

    violncia.

    possvel tratar a alma do indivduo sem tratar a alma do mundo? As abordagens

    analticas no estariam excessivamente centradas na psiqu individual, descuidando das

    vicissitudes de suas relaes com um mundo conflitado por problemas econmicos, sociais e

    polticos?

    Faz pouco tempo, entendamos que a queixa do indivduo que se apresentava para

    terapia refletia a sua dinmica interior. O problema era intra-subjetivo. Complexos, funes,

    estruturas, recordaes precisavam ser examinadas, compreendidas, interpretadas, integradas.

    Mais recentemente, outro ponto de vista tornou-se hegemnico e passamos a entender as

    queixas dos pacientes como sintomas de relaes interpessoais falhas. O problema passou a

    ser intersubjetivo. Caberia terapia reajustar as psicodinmicas interpessoais, restaurando a

    comunicao nas relaes entre cnjuges, amantes, pais e filhos, companheiros de trabalho. O

    mundo permanecia como fundo, palco, no qual as subjetividades se manifestavam. Os

    terapeutas que focalizavam esse ponto [o mundo exterior] eram de uma ordem inferior, mais

    superficial: assistentes sociais, conselheiros, mentores. O trabalho profundo realizava-se no

    interior da subjetividade de cada um (Hillman, 1993, p. 11).

    Nesta perspectiva, os determinantes sociais permanecem como fatores externos; eles

    no so em si psquicos ou subjetivos: O exterior provoca sofrimento, mas ele no em si

    sofrimento (Hillman, 1993, p.11). A nossa intimidade assediada e atormentada por um

    mundo hostil, por sistemas bablicos e dispositivos tcnico-polticos sobre os quais ns,

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    A alma em busca da poltica

    Psiqu na plis: individuao e desenvolvimento poltico da personalidade

    3

    indivduos, sentimos no possuir controle algum. E as idias contemporneas sobre a vida

    privada aumentam a confuso. Sennet (1988) nos alerta:

    Poucas pessoas afirmariam que suas vidas psquicas surgem por gerao espontnea,

    independentes de condies sociais e de influncias ambientais. No obstante, apsique tratada como se tivesse uma vida interior prpria. Considera-se esta vida

    psquica to preciosa e to delicada que fenecer se for exposta s duras realidades

    do mundo social e que s poder florescer na medida em que for protegida e isolada.

    O eu de cada pessoa tornou-se o seu prprio fardo; conhecer-se a si mesmo tornou-se

    antes uma finalidade do que um meio atravs do qual se conhece o mundo. E

    precisamente porque estamos to absortos em ns mesmos, -nos extremamente

    difcil chegar a um princpio privado, dar qualquer explicao clara para nsmesmos ou para os outros daquilo que so nossas personalidades. A razo est em

    que, quanto mais privatizada a psique, menos estimulada ela ser e tanto mais nos

    ser difcil sentir ou exprimir sentimentos.(p. 16)

    Como se situa, ento, a clnica psicolgica diante da subjetividade sofredora do

    homem-mundocontemporneo? Quais so as conexes existentes entre o poltico, entendido

    como aquilo que diz respeito vida dae naplis, e opessoal, dimenses que se imbricam,

    conscientemente ou no, nas queixas de nossos pacientes? Como os profissionais dapsicoterapia - na diversidade e singularidade de suas abordagens - lidam com esta interface?

    Talvez a alma do indivduo contemporneo ressinta-se de certo alheamento em

    relao aos assuntos da cidade, exilando-se em stios distantes da gora1. Talvez a Psicologia

    circunscreva excessivamente a psiqu ao mbito do indivduo, esquecendo-se do mundo que

    este indivduo constri e anima, no qual vive e sofre.

    Contextualizao e Problematizao

    A Psicologia Analtica, campo de estudo terico e de prtica clnica que se reporta ao

    psiquiatra suio Carl Gustav Jung (1875-1961) e ao qual me filio, vista por crticos como

    uma abordagem psicoterpica do tipo new age, despreocupada com questes sociopolticas e

    apresentando evidente tendncia mstico-escapista (Noll, 1996). Sob certa perspectiva, a

    crtica chega a ser pertinente, mas o igualmente para outras abordagens psicoterpicas, pelo

    1 gora- principal praa das antigas cidades gregas; local em que se instalava o mercado e que muitas vezesservia para a realizao das assemblias do povo, formando um recinto decorado com prticos, esttuas, etc.,era tambm um centro religioso. (Dicionrio Houaiss da Lngua Portuguesa)

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    A alma em busca da poltica

    Psiqu na plis: individuao e desenvolvimento poltico da personalidade

    5

    Talvez possamos responder que isto depender do indivduo em questo (terapeuta e

    paciente), de suas emergncias e urgncias, de sua histria. Talvez argumentemos que todas

    as vivncias de nosso paciente so bem-vindas ao encontro teraputico e que, portanto, a

    dimenso poltica do self a tambm encontra lugar. Mais inquietante ser, contudo, uma

    resposta que aponte para o terapeuta como um possvel agente apartador do indivduo-

    paciente em relao ao seu mundo, em decorrncia de sua ideologia teraputica e de suas

    convices enquanto cidado. Iatrogenia um termo corriqueiro para designar a prtica

    mdica que, ao buscar a cura, causa danos sade do paciente. No temos na Psicologia um

    termo apropriado para designar possveis equvocos clnicos, ou efeitos colaterais, que possam

    ocasionar danos subjetividade sofredora de nossos pacientes. E o que dizer sobre possveis

    danos decorrentes do esquecimento da dimenso poltica da personalidade humana?

    Inquietaes desta natureza me levaram a procurar dentre os autores do campo

    junguiano, aqueles que procuram resgatar conceitos da tradio filosfica e psicolgica de

    Jung, "retornando a alma ao mundo" (Hillman, 1993) e o "mundo alma" (Samuels, 1995).

    Nesta perspectiva, precisaramos estar atentos no apenas s patologias individuais, mas,

    igualmente, s patologias do mundo que incidem sobre, e conformam, os indivduos (Hillman,

    1993).

    Endereos na gora6

    Wien-IX, Bergasse 19;Ksnacht-Zurich, Seestrasse 228;

    Lille 5, Paris;SHLN - 116 - L - 212 - Braslia-DF.

    Viena, Paris, Zurich, Braslia. Endereos na cidade.Espaos de cuidados com a psiqu na gora das

    cidades do mundo. Famosos (e tambm no tofamosos) endereos onde se exerce o ofcio de acolher a

    subjetividade sofredora dos habitantes da cidade.

    Para isso, necessrio situar o consultrio na plis, dar-lhe um endereo, para

    conhecermos o que ali se faz em prol, ou em detrimento, doself polticode nossos pacientes,

    moradores desta mesma plis. O que nos trazem estes cidados? De que sofrem? Como o

    mundo os angustia? Qual o sentido de sua angstia? Qual o acolhimento que damos a esse

    sofrimento? Como tratar a alma de homens e mulheres sem nos esquecermos do sofrimento

    do mundo em que vivem?

    6Ver nota 1 acima.

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    Psiqu na plis: individuao e desenvolvimento poltico da personalidade

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    As abordagens analticas que buscam compreender o indivduo em suas relaes com

    o mundo estaro altura do desafio de reconciliar o que aparentemente irreconcilivel?

    Caber, ento, aos seres humanos, apenas a resignao alimentada pela constatao da

    inevitvel impotncia de homens e mulheres em face do coletivo sociopoltico? Seria este

    ento o papel das psicoterapias? O de aplacar as angstias do indivduo confrontado com a

    enormidade das foras do "progresso" e dos perigos e misria deste mundo?

    Uma resposta alternativa talvez exija a retomada do exame acurado das interaes

    entre desenvolvimento pessoal e estrutura social, entre mundo privado, intrapsquico, do

    indivduo, e mundo pblico, aplis, local onde homens e mulheres constroem sua existncia.

    Em suma, uma anlise das relaes entre realidade psquica e realidade sociopoltica

    (Samuels, 1995).A urgncia da necessidade de uma reviso de nosso fazer clnico enfaticamente

    anunciada (denunciada, melhor seria dizer) por Sennet (1988):

    O advento da psicologia moderna e, em especial, da psicanlise, baseava-se na

    crena de que, ao entender os procedimentos internos desse eu sui generis,

    desprovido de idias transcendentes de mal ou de pecado, as pessoas poderiam

    libertar-se desses horrores e tornar-se disponveis para participarem, mais completa

    e racionalmente, de uma vida externa aos limites de seus prprios desejos. Multidesde pessoas esto agora preocupadas, mais do que nunca, apenas com as histrias de

    suas prprias vidas e com suas emoes particulares; esta preocupao tem

    demonstrado ser mais uma armadilha do que uma libertao. (p. 17)

    Segundo o socilogo, esta forma "psicolgica" de imaginar a vida resulta em

    conseqncias nefastas para o relacionamento das pessoas com aplis. A expectativa de que

    as relaes com o mundo concedam recompensas psicolgicas, ao ser frustrada, decepciona e

    conduz ao sentimento de vazio e de insignificncia do mundo sociopoltico. No obstante,

    muito da vida social e poltica tem significado, embora no passe pela gratificao do eu

    individual. Para apreender esse significado, porm, necessrio que se compreenda o carter

    impessoal do espao pblico que no se coloca a servio especfico deste ou daquele

    indivduo, mas de uma coletividade.

    A "tirania da intimidade" (Sennet, 1988) ocorre em um mundo no qual a preocupao

    do indivduo consigo mesmo, paradoxalmente, o impede de enxergar o que reside em sua

    interioridade. Resulta da uma confuso entre vida pblica e vida privada, ntima, levando as

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    pessoas a tratarem os assuntos pblicos, que deveriam ser tratados adequadamente "por meio

    de cdigos de significao impessoal", em termos de sentimentos pessoais (p. 18).

    Mas, evitar a "confuso entre vida pblica e vida ntima", como proposto por Sennet,

    implicar uma ciso radical e definitiva entre as duas dimenses primrias do ser humano: aindividual e a coletiva? A prtica clnica pode contribuir para elucidar as conexes entre o

    pblico e o privado, o poltico e o pessoal? Uma reavaliao profunda de nossa prtica

    teraputica talvez nos ajude a questionar

    [...] os limites convencionalmente aceitos entre o mundo externo e o mundo interno,

    entre vida e reflexo, entre extroverso e introverso, entre o fazer e o ser, entre

    poltica e psicologia, entre o desenvolvimento pblico da pessoa e o desenvolvimento

    psicolgico da pessoa, entre as fantasias do mundo poltico e a poltica do mundo dafantasia. Subjetividade e intersubjetividade tm razes polticas; no so to

    "internas" quanto parecem.(Samuels, 1995, p. 22)

    Assim procedendo, talvez encontremos o "endereo" de nossa clnica no mundo para o

    qual ela se constri.

    Uma Fantasia do Pesquisador

    Sinto-me tomado por uma fantasia que Samuels (1995) chama de "fantasia de fornecer

    terapia para o mundo". Outros foram igualmente tomados por essa fantasia. Sigmund Freud

    (1856-1939), certamente, com seuMal-estar na civilizao(1929[1930]/1974), embora no

    nutrisse grandes esperanas em relao ao equilbrio entre as demandas pulsionais do

    indivduo e as exigncias da civilizao; Carl Gustav Jung (1875-1961), com sua coleo de

    artigos organizados no vol. X de sua obra - Psicologia em transio- e suas preocupaes

    com a absoro do indivduo pelo coletivo social e inconsciente. Outros, ainda, como

    Wilhelm Reich (1897-1957) com seu Escuta Z Ningum (1948), denunciando a misria

    sexual humana, e a legio de psicanalistas da escola de Frankfurt, tais como Erich Fromm

    (1900-1980), com Psicanlise da Sociedade Contempornea (1955), onde o autor discute a

    responsabilidade do homem moderno na criao e manuteno de uma sociedade cujo

    principal interesse a produo econmica e no o aprimoramento do valor do ser humano,

    assim como Herbert Marcuse (1898-1979), comEros e Civilizao (1955), livro que alude ao

    Mal-Estar na Civilizao, de Freud, no qual o autor, com base em Freud e Marx, elabora uma

    viso de sociedade no-repressiva, antecipando os valores do movimento de contra-cultura

    dos anos 60. E, entre ns, pensadores tais como Boff (1999, 2001, 2003), que discutem a

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    necessidade de um ethos mundial que enfrente a "crise social, a crise do sistema de trabalho e

    a crise ecolgica, todas de dimenses planetrias" (Boff, 2003).

    A fantasia subjacente ao pensamento de todos estes, e de muitos outros, a de que

    podemos cuidar do mundo, ajud-lo a resolver os seus conflitos, a compreender melhor a simesmo e a transformar-se: terapia para o mundo, enfim! (Samuels, 1995)

    A fantasia assume, s vezes, ares de "inflao egica", de um certo voluntarismo

    individual, como nos adverte Samuels (1995). Mas tambm evoca a imaginao, a

    criatividade, para atender aos reclamos de um mundo que deseja ser tratado, se considerarmos

    os "sintomas" como pedidos de ateno e desejo de cura.

    Afinal, em que mundo queremos viver? Um mundo de egos analisadssimos, mas com

    uma agricultura viciada, prdios anorxicos, tecnologia manaca e alimentos

    transgnicos pervertidos? Resgatar a anima mundi responder esteticamente ao

    mundo, ou seja, perceber os caracteres fisionmicos dos fatos, como o sabem fazer os

    poetas, as crianas, os "primitivos", as mulheres e os animais... Afinal no so eles -

    poetas, crianas, primitivos, mulheres e animais - os habitantes da Sombra, uma

    grande parte do recalcado de nossa civilizao ocidental logocntrica? (Pereira,

    2000)

    A fantasia de cuidar do mundo evoca o imaginrio de um mundo com alma, idia

    herdada de Plato e resgatada por analistas junguianos. Psiclogos, somos treinados para

    ouvir o sofrimento do outro. E se pensarmos o outro como sendo o mundo, se tentarmos

    escutar metaforicamente o que ele tem a nos dizer, se procurarmos acolher o seupathos, a sua

    demanda? Como agiremos, ento?

    Se contivermos o impulso inflacionrio, messinico, de salvao do mundo, talvez

    possamos assumir uma atitude de cuidado, uma atitude teraputica, em relao ao mundo

    (Samuels, 1995; Boff, 1999).

    E isto ser, ento, tarefa para os "terapeutas do mundo" (Samuels, 1995), que no se

    restringiro aos psicoterapeutas e analistas, mas incluiro outros homens e mulheres que,

    mobilizados pela mesma fantasia, desejem cuidar do mundo.

    Este trabalho se inspira nessa fantasia. Dirige-se, em particular, aos meus pares que

    fazem dos cuidados com a subjetividade humana sofredora o seu ofcio. Convido-os

    reflexo sobre o nosso fazer clnico. Mas, dirige-se, tambm, a todos esses outros terapeutas,

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    "cuidadores do ser", ocupados em outras profisses, mas que se sentem inspirados a olhar o

    mundo com ateno e desvelo.

    Escopo do Estudo

    Com este trabalho, espero contribuir para o debate cientfico sobre a prtica da

    psicoterapia, produzindo conhecimento novo sobre o fenmeno 'clnica-poltica'. Proponho-

    me, ento, analisar a relao existente entre desenvolvimento psicolgico e desenvolvimento

    poltico da pessoa, a partir das contribuies da Psicologia Analtica e da experincia de

    psicoterapeutas de diferentes orientaes terico-clnicas.

    Dado o pouco conhecimento sistematizado existente sobre o assunto, o estudo reveste-

    se de carter exploratrio e descritivo. Desta maneira, assume feio ensastica, procurandoinstigar o questionamento sobre o tema, mais que comprovar relaes ubquas entre variveis.

    O estudo ser desenvolvido em duas vertentes. Primeira: reviso da literatura sobre a

    interface 'clnica e poltica', articulando conceitos e concepes da Filosofia Poltica,

    Psicologia Clnica, Psicologia Poltica, Psicologia da Cultura e Clnica do Social, com

    especial ateno para as contribuies de alguns autores da Psicologia Analtica, meu campo

    de trabalho clnico. Segunda: ida a campo para examinar questes relacionadas com o

    surgimento de material poltico na situao teraputica e as formas de interveno clnicapraticadas por um grupo de psicoterapeutas de So Paulo e Braslia.

    A pesquisa de campo inspira-se em estudo similar, de maior amplitude, efetuado por

    Samuels (1995). Espera-se que o desenho metodolgico experimentado neste estudo possa ser

    utilizado em estudo futuro de maior flego.

    Ansiedades do Pesquisador

    O estudo situa-se na interface da Psicologia Clnica com a Psicologia Poltica. Se

    excursionar pelo campo da prtica clnica, investigando-o, problematizando-o, representa um

    desafio no pequeno, imagine-se o que pode representar para o autor dirigir o foco desta

    problematizao para um campo interdisciplinar que se expande para o poltico! Ao longo do

    estudo lembrei-me, no poucas vezes, de Ortega y Gasset, filsofo espanhol ao qual me

    reporto no exame de alguns dos temas abordados neste trabalho.

    A verdade que quando comeamos a falar do que no entendemos, sentimos essa

    inquietao que belisca quem penetra sem permisso terras proibidas: a lei da

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    propriedade que pisamos queima a palma dos ps e nossos olhos buscam, atrs da

    cerca, o segurana encarregado de expulsar-nos.(Ortega y Gasset, 1910/2002, p. 21)

    O filsofo espanhol referia-se ao fato de sentir-se transgredindo, por meio do seu

    ensaioAdo no Paraso, os limites de seu ofcio ao ingressar na discusso sobre a esttica e a

    obra de arte. Sou acolhido por sentimento semelhante ao pretender iniciar investigao no

    terreno movedio das relaes entre clnica e poltica. Posso apenas me confortar, ainda com

    as reflexes do filsofo, quando responde s suas prprias dvidas: "... no creio que seja

    errado que uma pessoa faa uma tentativa honrada para se orientar naquilo que no conhece"

    (Ortega y Gasset, 1910/2002, p. 21).

    Assim amparado inicio meu percurso em busca de orientar-me "naquilo que no

    conheo". Temerrio seria aventurar-me em terreno desconhecido sem estar devidamenteacompanhado por quem o conhea melhor do que eu e que me ajude a definir um roteiro de

    excurso. Defini, ento, uma trajetria terica que ao atravessar os diversos temas que

    compem meu questionamento se enriquecesse com as contribuies de investigadores

    diversos. A teorizao clnica estar fortemente ancorada na Psicologia Analtica de Carl

    Gustav Jung (1875-1961), uma vez que da que se origina o suporte minha prtica e

    indagaes clnicas. Alm da articulao terica de idias oriundas da Psicologia Clnica,

    Psicologia Social, Psicologia Poltica, Sociologia, e Filosofia, em busca de maior

    compreenso das relaes entre desenvolvimenrto psicolgico e desenvolvimento poltico da

    personalidade, procuro questionar as implicaes destas idias para a prtica

    psicoterpica/analtica. Para isso, conforme expus no ttulo Escopo deste Estudo,

    complemento as elaboraes tericas com estudo emprico, de carter exploratrio, que tem

    por objetivo levantar questes a serem aprofundadas em estudo futuro.

    Contudo, antes de delinear o percurso traado, convm esclarecer dois conceitos

    freqentemente utilizados neste trabalho:poltica e alma.

    Conceito de "Poltica"

    O termo poltica entendido pelo senso comum como se referindo s questes

    relativas participao do cidado em organizaes poltico-partidrias, ao exerccio de

    cargos na estrutura formal das instncias polticas do pas, ou, mais simplesmente, ao

    exerccio do voto. Neste estudo, inspiro-me, explicitamente, nas concepes de Arendt

    (2002b), expostas mais detalhadamente no Captulo 1 -A Alma Social e a Alma Poltica- queaqui sintetizo:

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    esto convidados!- estabelece relao entre as idias desenvolvidas ao longo do estudo e a

    chamada "filosofia clnica", forma de trabalho clnico ancorado na reflexo filosfica.

    O Captulo 12 - Conversando com Terapeutas sobre Poltica - apresenta estudo

    emprico, complementar aos questionamentos tericos realizados nos captulos anteriores, noqual procuro ouvir alguns terapeutas, de diferentes abordagens clnicas, a respeito do tema.

    Para facilitar o acompanhamento pelo leitor, estruturei o captulo em uma parte introdutria,

    com todas as informaes relativas ao desenho da pesquisa e 11 sees para a anlise,

    discusso e concluses das questes investigadas. O trabalho emprico finalizado com

    "Avaliao do Encontro pelos Participantes do Grupo Focal" - 12 seo - e com

    "Consideraes Finais sobre a Pesquisa de Campo" - 13 seo.

    Concluo esta dissertao com "Psiqu na Plis: Reflexes Finais", avaliando o queaprendi com o estudo em sua totalidade e indicando as questes que acredito serem relevantes

    para pesquisas futuras.

    .

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    A Alma Social e a Alma Poltica

    O idioma dos romanos, talvez o povo mais poltico que

    conhecemos, empregava as expresses 'viver' e 'estarentre os homens' ou 'morrer' e 'cessar de estar entre oshomens' como sinnimos.

    (Arendt, 2002a)

    Se a sua alma pertence a uma outra esfera de valordiferente da poltica, [a poltica] no oferece nenhum

    particular interesse psicolgico. [...] as naturezasprofunda e genuinamente sociais estaro orientadas emsentido perfeitamente oposto ao da auto-enfatizao dohomem poltico. Mas h tambm aquelas [pessoas] nasquais uma aspirao de poder rudemente desenganada

    constitui a causa de sua negao do poder.

    (Spranger, 1976, p. 245)

    ! Na Incio dos Tempos...

    ! OSociuse oPoliticus

    ! Homo SocialiseHomo Politicus

    ! A Esfera Pblica e o Mundo em Comum

    ! Homo Transformator

    No Incio dos Tempos...

    Quando somente os deuses existiam e no existiam as criaturas mortais, Destino

    determinou que as criaturas mortais fossem criadas a partir de uma mistura de ferro e fogo,

    nas entranhas da terra. Prometeu e Epimeteu foram incumbidos de conferir aos seres mortais

    as qualidades adequadas sobrevivncia de cada um. Epimeteu assumiu a tarefa, cabendo a

    Prometeu fazer a inspeo final, o controle de qualidade, diramos hoje...

    Epimeteu, diligentemente, realizou o seu trabalho. A alguns animais atribuiu fora,

    porm sem velocidade, esta, em compensao, concedida aos mais fracos. A alguns concedeugarras, para outros diferentes formas de preservao, os que possuiam pequenos corpos

    passaram a ter asas, ou esconderijos subterrneos para se esconderem; j os corpulentos

    encontravam sua proteo em suas prprias dimenses. Enfim, Epimeteu cuidou para que

    todas as criaturas vivas pudessem ter meios para sobreviver, compensando as eventuais

    fraquezas com algum recurso estratgico de sobrevivncia: pelos abundantes, pele grossa,

    cascos nos ps, garras, agilidade...

    E assim prosseguiu Epimeteu, distribuindo qualidades entre os seres vivos. Ao chegar

    a vez dos seres humanos, no entanto, j havia esgotado o estoque de capacidades. E assim

    Captulo1

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    permaneceu aturdido at o momento da inspeo de seu irmo Prometeu. Este, ao constatar a

    impercia do irmo em relao aos seres humanos, resolveu roubar de Hefesto e de Atena a

    sabedoria das artes e do fogo. Os homens, assim, passaram a possuir os recursos necessrios

    luta pela vida.

    Os homens, contudo, no possuiam a sabedoria poltica, privilgio de Zeus. E nesse

    domnio Prometeu nada podia fazer. Assim sendo, os homens, providos de arte e domnio

    sobre o fogo, passaram a lutar pela sobrevivncia. Mas, ainda assim, encontravam-se em

    desvantagem em relao a outros animais. Experimentaram, ento, constituir cidades, na

    esperana de, juntos, poderem melhor enfrentar as adversidades. Mas, ao se juntarem,

    causavam danos recprocos, pois careciam da arte poltica. Desentendiam-se e acabavam por

    se dispersar, tornando-se novamente vulnerveis.Preocupado com a triste situao dos humanos, Zeus determinou que Hermes levasse

    aos homens o Pudor e a Justia, como princpios de ordenao das cidades e lao de

    aproximao entre os homens. Porm, como esses atributos deveriam ser distribudos entre os

    homens?

    As artes, roubadas por Prometeu e entregues aos homens, haviam sido distribudas de

    maneira parcimoniosa: bastava um homem com conhecimentos de medicina para atender as

    necessidades de vrios outros homens, o mesmo valendo para as outras artes. O Pudor e aJustia deveriam ser distribudos segundo este mesmo critrio?

    Zeus considerou, ento, que se tais atributos fossem privilgios de alguns poucos,

    como acontecia com as demais artes, as cidades correriam perigo e no poderiam subsistir.

    Decidiu, portanto, que todos deveriam compartilhar desses atributos, passando a valer a

    seguinte lei: todo homem que fosse incapaz de pudor e de justia sofreria a pena capital,

    sendo considerado um fragelo da sociedade...

    Assim, Plato (2002, pp. 320d-322-d), em um de seus dilogos Protgoras escrito

    quatro sculos antes de Cristo, narra a histria do surgimento da poltica entre os seres

    humanos. Ddiva dos deuses, salvao da humanidade, condio de sobrevivncia da espcie.

    O mito enfatiza a condio universal dos seres humanos no compartilhamento da

    capacidade virtual de viver juntos e, sobretudo, de coordenar suas aes coletivas,

    administrando suas diferenas. Indica, ainda, o local onde se atualiza permanentemente essa

    capacidade: aplis.

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    OSociuse oPoliticus

    A filsofa alem Hannah Arendt (1906-1975), em obra pstuma publicada em 1993,

    nos adverte sobre os cuidados necessrios para se falar sobre poltica. "Devemos - nos orienta

    a autora - avaliar os preconceitos que todos temos contra a poltica, visto no sermos polticosprofissionais" (Arendt, 2002b, p. 25). Admite que os preconceitos encontravam justificativa

    na situao poltica ento existente na Europa - Arendt escreve na dcada de 50 - mas

    podemos facilmente, a partir de nossas experincias com a realidade poltica de nosso Pas,

    compreender sua advertncia!

    "Esses preconceitos - continua a autora - indicam que chegamos em uma situao na

    qual no sabemos - pelo menos ainda- nos mover politicamente. O perigo a coisa poltica

    desaparecer do mundo" (Arendt, 2002b, p. 25; o itlico da frase meu). No texto a seguir,procuro rastrear algumas idias que buscam restituir o lugar da poltica no mundo.

    O termo "Poltica" deriva-se do adjetivo politiks, por sua vez originado deplis,

    significando tudo o que se refere cidade e, conseqentemente, o que urbano, civil, pblico,

    e at mesmo socivel e social (Bobbio, Mattecucci & Pasquino, 1991).

    Desde sua origem, a palavra sofreu uma transposio de significado: do conjunto de

    coisas qualificadas pelo adjetivo "poltico" para o conjunto de conhecimentos sistematizados

    sobre essas coisas. Foi usada durante muitos sculos para designar obras que se dedicavam ao

    estudo da esfera de atividades humanas que se referem s coisas do Estado. Na poca

    moderna, o termo passa a designar as atividades que, de alguma maneira, referem-se plis

    (Bobbio et al., 1991).

    O conceito de Poltica, entendido como forma de atividade ou de prxis humana, est

    estreitamente ligado ao de poder. O poder definido por vezes como uma relao entre dois

    sujeitos, um dos quais impe a prpria vontade ao outro e lhe determina o comportamento.

    Assim, o poder poltico pertence categoria do poder exercido sobre outro homem, no do

    poder do homem sobre a natureza. Contudo, como o domnio sobre os homens no

    geralmente um fim em si mesmo, mas um meio para obter determinados fins, como acontece,

    por exemplo, com o domnio sobre a natureza, pode-se completar a definio de poder como

    "posse dos meios" (entre os quais se contam como principais o domnio sobre os outros e

    sobre a natureza) que permitem alcanar justamente uma "vantagem qualquer" ou os "efeitos

    desejados" (Bobbio et al., 1991, p. 955).

    Tradicionalmente, distinguiam-se duas esferas de atividades humanas: a social e a

    poltica, a primeira referindo-se vida privada e a segunda vida pblica.

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    Arendt (2002a e 2002b) nos mostra que na cultura grega antiga o social referia-se s

    relaes ocorridas no seio da famlia, enquanto que o poltico expressava-se nas atividades

    ocorridas naplis. As relaes sociais caracterizavam-se por ocorrer entre desiguais, enquanto

    que as relaes polticas implicavam a participao de iguais, por meio da palavra e da

    persuaso e nunca pelo uso da fora ou violncia, esta admissvel, contudo, no mbito da

    famlia. A violncia era muda, porque no admitia o argumento e, portanto, desprovida da

    grandeza poltica. Obrigar algum a obedecer, amea-lo, era um modo pr-poltico de agir,

    no apropriado vida naplis, e sim vida em famlia.

    Segundo o pensamento grego, a capacidade dos humanos de organizar-se

    politicamente opunha-se associao natural. O bios politikosdos seres humanos fora dado

    com o surgimento da cidade-estado - pl is.Na plis experimentava-se a liberdade: numsentido negativo, liberdade de no comandar nem ser comandado, e num sentido positivo,

    como um espao produzido por muitos, onde cada um podia se mover entre iguais. Este era o

    carter doser poltico, do viver na plis.

    A liberdade1, portanto, situa-se exclusivamente na esfera poltica; as necessidades da

    vida so um fenmeno pr-poltico, caracterstico da vida do lar, na qual a fora e a violncia

    so justificadas por serem os nicos recursos para vencer a necessidade - por exemplo, a

    subjugao de escravos - e, assim, alcanar a liberdade. "A violncia o ato pr-poltico delibertar-se da necessidade da vida para conquistar a liberdade do mundo" (Arendt,

    1958/2002a, p. 40).

    Para Arendt (2002b), no existe uma substncia poltica original: "o homem a-

    poltico. A poltica surge no entre-os-homens; portanto, totalmentefora dos homens" (p. 23).

    Alm disso, a poltica fundamenta-se na pluralidade dos homens, ela organiza "as

    diversidades absolutas de acordo com uma igualdade relativae em contrapartida s diferenas

    relativas" (p. 24).

    Somente duas atividades eram consideradas polticas e constituintes do bios politikos,

    tal como definido por Aristteles: a) aprxis (ao) e b) a lexis(discurso), de onde se origina

    a esfera dos negcios humanos, excluindo tudo o que seja apenas necessrio ou til (Arendt,

    1958/2002a).

    1O demos que exercia a soberania nas assemblias e tribunais atenienses excluia escravos, mulheres e crianas.

    Contudo, a grande massa dos homens que compunham o demos era formada por trabalhadores, camponeses,artesos e comerciantes cujos intreresses nem sempre eram os mesmos, necessitando, portanto, de um espao

    pblico de mediao. O "povo" ateniense, portanto, estava longe de ser "uma classe privilegiada de ociososvivendo da renda dos trabalhos de seus escravos" (Moss, 2004, p. 89).

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    A poltica no necessria, em absoluto - seja no sentido de uma necessidade

    imperiosa da natureza humana como a fome ou o amor, seja no sentido de uma

    instituio indispensvel do convvio humano. Alis, ela s comea onde cessa o reino

    das necessidades materiais e da fora fsica.(Arendt, 2002b, p. 50)

    A politicidade, para Aristteles, o que distingue os homens dos animais, e no a

    sociabilidade, pois esta os animais tambm tm. Mas ao zoon politikon necessrio

    acrescentar o conceito de zoon logon ekhon (um ser vivo dotado de fala). Arendt

    (1958/2002a) nos lembra que

    Aristteles no pretendia definir o homem em geral nem indicar a mais alta

    capacidade do homem - que para ele no era o logos, isto , a palavra ou a razo,

    mas nous, a capacidade de contemplao, cuja principal caracterstica que o seucontedo no pode ser reduzido a palavras. [...] todos os que viviam fora da plis -

    escravos e brbaros - eram aneu logou, destitudos naturalmente, no da faculdade de

    falar, mas de um modo de vida no qual o discurso e somente o discurso tinha sentido e

    no qual a preocupao central de todos os cidados era discorrer uns com os outros.

    (p. 36)

    Com a ascendncia das atividades econmicas esfera pblica, a administrao

    domstica e as questes a ela associadas, pertinentes esfera privada da famlia, setransformaram em interesse coletivo. A tal ponto que, no mundo moderno, as duas esferas de

    atividade - social e poltica - freqentemente se superpem.

    Para os antigos, viver uma vida exclusivamente privada, ou seja, no participar da vida

    pblica, significava "privar-se" das capacidades mais elevadas da condio humana. Assim,

    quem se "privasse" da esfera poltica no era inteiramente humano. No mundo

    contemporneo, no nos damos conta da implicao da noo de privatividade (no sentido da

    "privao") provavelmente pelo enriquecimento da esfera privada promovida pelo moderno

    individualismo (Arendt, 1958/2002a): "O fato histrico decisivo que a privatividade

    moderna, em sua funo mais relevante - proteger aquilo que ntimo - foi descoberta no

    como o oposto da esfera poltica, mas da social, com a qual, portanto, tem laos ainda mais

    estreitos e mais autnticos" (p. 48). O indivduo moderno, com seus conflitos, sua

    incapacidade de sentir-se vontade na sociedade, ou de viver fora dela, com seus estados

    emocionais radicalmente subjetivos em constante mutao, nasce desse embate entre o social

    e o ntimo (privado).

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    importante compreender o que Arendt entende por ao, categoria exclusiva dos seres

    humanos:

    A ao, nica atividade que se exerce diretamente entre os homens sem a mediao das

    coisas ou da matria, corresponde condio humana de pluralidade, ao fato de quehomens, e no o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo. Todos os aspectos da

    condio humana tm alguma relao com a poltica; mas esta pluralidade

    especificamente a condio - no apenas a conditio sine qua non, mas a conditio per

    quam - de toda vida poltica. (Arendt, 1958/2002a, p. 15)

    Segundo a autora, a evoluo sofrida pela sociedade nos tempos modernos exclui a

    possibilidade de ao, antes exclusiva do lar domstico. A ao espontnea ou inusitada

    tende a ser abolida, em favor da imposio de regras que levam normalizao dosindivduos, fazendo com que eles manifestem comportamentos socialmente aceitos. Com o

    surgimento da sociedade de massas, a esfera do social abrange e controla, com igual

    intensidade, todos os membros de uma determinada comunidade. A igualdade promovida pela

    sociedade representa o reconhecimento poltico e jurdico do fato de que a sociedade

    conquistou a esfera pblica, reservando a distino e a diferena para as questes privadas do

    indivduo.

    A igualdade moderna, que se baseia no conformismo e na substituio da ao pelocomportamento, como principal forma de relao humana, difere da igualdade preconizada

    pela vida naplis grega. Na esfera pblica cada homem precisava se distinguir dos demais,

    demonstrando, por meio de feitos ou realizaes singulares, que era o melhor de todos - aien

    aristeuein kai hypeirochon emmenai allon (ser sempre o melhor e destacar-se entre os outros)

    (Arendt, 1958/2002a). Em suma, a esfera pblica era o espao da individualidade, nico

    lugar em que os homens podiam mostrar quem realmente eram.

    A excelncia - arete, para os gregos, e virtus, para os romanos - sempre foi reservada

    para a esfera pblica, onde a pessoa podia se sobressair aos demais, provando o seu valor.

    Para a excelncia era necessria a presena dos outros, dos pares do indivduo - aqueles que

    poderiam julgar os seus atos.

    Arendt (1958/2002a) constata que apesar de demonstrarmos excelncia em muito do

    que realizamos em pblico, nossa capacidade de discurso e de ao perdeu muito da qualidade

    pretrita. A preponderncia da esfera social baniu essas capacidades para a esfera do ntimo e

    do privado. Da a impresso que se tem de que nossas capacidades humansticas em geral

    ficam aqum das nossas capacidades tcnicas - por exemplo, as cincias sociais que ainda no

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    sabem como mudar e controlar a sociedade versusas cincias fsicas que alteram e controlam

    a natureza. Espera-se que uma mudana na psicologia dos seres humanos seja capaz de

    mudar o mundo. Esquece-se da necessidade de mudar o mundo em que esses seres humanos

    habitam.

    Esta interpretao psicolgica, para a qual a ausncia ou a presena de uma esfera

    pblica to irrelevante quanto qualquer realidade tangvel e mundana, parece

    bastante duvidosa em vista do fato de que nenhuma atividade pode tornar-se excelente

    se o mundo no proporciona espao para o seu exerccio. Nem a educao nem a

    engenhosidade nem o talento pode substituir os elementos constitutivos da esfera

    pblica, que fazem dela o local adequado para a excelncia humana. (Arendt,

    1958/2002a, p. 59)

    A Esfera Pblica e o Mundo em Comum

    O termo "pblico" apresenta dois significados: em primeiro lugar, "tudo o que vem a

    pblico pode ser visto e ouvido por todos e tem a maior divulgao possvel" (Arendt,

    1958/2002a, p. 59). Temos a tendncia de considerar como realaquilo que visto e ouvido

    por ns mesmos e pelos outros. Decorre disto que os fenmenos ntimos - emoes,

    sentimentos, percepes, fantasias, imagens - existem numa esfera de existncia obscura, ato momento em que so trazidos luz, sendo desprivatizados e desindividualizados, tornando-

    se pblicos. Exemplos desse processo de transformao podem ser vistos na narrao de

    histrias, prtica que perpassa todas as culturas, na transposio artstica de experincias

    individuais e no processo de anlise ou psicoterapia. Sempre que falamos de assuntos que s

    podem ser experimentados na privatividade, ou na intimidade, outorgamos ao tema uma

    caracterstica de "realidade" que ele antes no apresentava. A realidadedo mundo - e a prtica

    clnica nos testemunha isso - se nos assegurada por meio do compartilhamento do ver e do

    ouvir com os outros aquilo que vemos e ouvimos.

    Em segundo lugar,pblicosignifica o prprio mundo na medida em que " comum a

    todos ns e diferente do lugar que nos cabe dentro dele" (Arendt, 1958/2002a, p. 62). Este

    mundono inclui apenas a terra e a natureza na qual os seres humanos habitam e transitam,

    mas, tambm, tudo aquilo que construdo pelos humanos - artefatos, relaes e negcios:

    Conviver no mundo significa essencialmente ter um mundo de coisas interposto entre

    os que nele habitam em comum, [...] como todo intermedirio, o mundo ao mesmotempo separa e estabelece uma relao entre os homens. A esfera pblica, enquanto

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    mundo comum, rene-nos na companhia uns dos outros e, contudo, evita que

    colidamos uns com os outros.(Arendt, 1958/2002a, p. 62)

    Arendt v na sociedade de massas a expresso de um mundo que perdeu a fora de

    manter as pessoas juntas, de relacion-las, ao mesmo tempo em que as separa. Lembra que omundo comum transcende a durao de nossa vida pessoal "tanto no passado quanto no

    futuro" (p. 65). O mundo comum existia antes que aqui chegssemos e continuar a existir

    aps a nossa partida. esta condio que temos em comum com aqueles que nos

    antecederam, com todos aqueles que vivem conosco e com os que viro depois de ns.

    A plis era para os gregos, como a res publica para os romanos, em primeiro lugar a

    garantia contra a futilidade da vida individual, o espao protegido contra essa

    futilidade e reservado relativa permanncia, seno imortalidade, dos mortais.(Arendt, 1958/2002a, p. 66)

    O mundo manifesta-se em toda a sua "realidade" somente quando as coisas podem ser

    vistas por muitas pessoas, segundo vrias perspectivas, sem que elas (as coisas) mudem de

    identidade, ou seja, quando todos sabem que "vem o mesmo na mais completa diversidade"

    (Arendt, 1958/2002a, p. 67). A realidadeno garantida por uma natureza comumde todos

    os seres humanos, mas pelo fato de que, apesar das diferenas de posio e de perspectivas,

    todos esto interessados no mesmo objeto. O mundo , portanto, construdo pelo nossointeresse comum em relao a ele.

    A destruio do mundo comum ocorre com a perda de discernimento em relao sua

    identidade, que ocorre em situaes de isolamento radical - quando ningum concorda com

    ningum - como, por exemplo, nas tiranias, ou nas condies da sociedade de massas -

    quando todos passam a constituir uma "grande famlia" desprovida de diversidade e

    pluralidade. Os seres humanos tornam-se, ento, inteiramenteprivados,

    [...] privados de ver e ouvir os outros e privados de serem vistos e ouvidos por eles.

    So todos prisioneiros da subjetividade de sua prpria existncia singular, que

    continua a ser singular ainda que a mesma experincia seja multiplicada inmeras

    vezes. O mundo comum acaba quando visto sob um aspecto e s se lhe permite uma

    perspectiva.(Arendt, 1958/2002a, pp. 67-68)

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    Homo SocialiseHomo Politicus

    Para melhor compreendermos as dimenses social e poltica da vida humana,

    abordaremos as distines estabelecidas pelo filsofo e psiclogo alemo Eduard Spranger

    (1882-1963) em uma das obras maiores produzidas pela cultura ocidental, Formas de Vida.Psicologia Entendida como Cincia do Esprito e tica da Personalidade(1921).

    Para Spranger, a Psicologia uma cincia do sujeito individual. Contudo, considera

    que este sujeito individual no pode ser visto desligado de suas relaes objetivas. Sujeito e

    objeto mantm entre si laos indissociveis, s podem ser pensados um em relao ao outro.

    Ao acentuarmos o lado objetivo, falamos, com Spranger, de "Cincia do Esprito"; ao

    acentuarmos o sujeito individual, falamos de "Psicologia". A Cincia do Esprito se ocupa "...

    1) das formaes transubjetivas e coletivas da vida histrica que, a ttulo de interconexes deresultados histricos supra-individuais, abarcam vrios sujeitos individuais; 2) das leis ideais

    do esprito, das normas, em conformidade com as quais o sujeito individual forma a partir de

    si prprio ou, atravs de uma compreenso adequada, acolhe dentro de si um ente espiritual

    no sentido crtico-objetivo". A Psicologia, em contrapartida, investiga "... l) as vivncias que

    resultam do entrelaamento do sujeito com o transubjetivo e coletivo; 2) os atos e vivncias

    que so conformes s leis crtico-objetivas do esprito ou delas se desviam" (Spranger,

    1921/1976, p. 25).Spranger (1921/1976), considera que h seis formas de valores que se encontram

    objetivamente arraigados na ordem histrica e cultural, cada qual podendo influenciar a vida

    de uma pessoa, suscitando uma reordenao dos outros valores em funo dele. Esses valores

    determinam seis tipos de personalidade, dominantes na cultura moderna: o terico, o

    econmico, o esttico, o social, o poltico e o religioso, centrados respectivamente nos valores

    da verdade, da utilidade, da beleza, do amor, do poder e na totalidade vital dos valores.

    Interessa-nos, aqui, sua anlise sobre as diferenas existentes entre a forma de vida

    socialmente orientadae a forma de vidapoliticamente dirigida. Ambas coexistem nos seres

    humanos, ao lado de outras formas caracterizadas por outros valores, tais como o esttico, o

    econmico, o terico, o religioso.

    A forma poltica de vida, segundo Spranger (1921/1976), a reivindicao de poder,

    ou seja, a aspirao de impor aos demais a prpria vontade, enquanto que a forma social de

    vida caracteriza-se por um sentimento de nivelamento. O homo socialisde Spranger no vive

    imediatamente por si mesmo, mas, por meio dos demais (p. 207). A predominncia do amor

    faz coincidir nele o eu e o tu: No amor perfeito desaparecem as barreiras da individuao.

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    Nele coincide perfeitamente o sentimento do eu e o sentimento do tu, ipseidade e auto-

    alienao, liberdade e renncia (p. 207). O homo socialis no quer e no conhece outro

    exerccio de poder seno o poder do amor (p. 211). Neste modo de vida, impera o anseio da

    igualdade e do compartilhamento.

    O homo politicus, em contrapartida, distingue-se pela disposio de ser poderoso,

    impondo-se aos demais. Todos os demais valores submetem-se sua vontade de poder. Em

    suas relaes prevalece a preocupao de impor seus motivos e seus valores aos outros. A ele

    cabe sempre a ltima palavra. "Todas as manifestaes das relaes de poder trazem consigo

    um estilo que se poderia designar no sentido mais amplo como pol tico (Spranger,

    1921/1976, p. 225). Contudo,

    s no mais extremo isolamento conceptual que se podem separar os atos espirituaissimpatizantes e, nessa medida, igualizadores, dos atos nos quais se baseiam a

    superordinao e a subordinao sociais. Em toda verdadeira associao humana, as

    duas coisas se encontram interligadas em gradaes difceis de se apreender.

    (Spranger, 1921/1976, p. 223)

    Podemos depreender, portanto, que para Spranger a relao do homem poltico com a

    comunidade apresenta uma duplicidade de aspectos: por um lado, desejo de dominar os

    homens e, por outro, a de promov-los por amor a eles. Com isso, o autor conclui que essesdois aspectos so conflitivos e no podem coexistir na alma de um mesmo ser humano. O

    homem poltico, ento, no est disposto a viver para os outros, sua vontade exige o

    reconhecimento e o respeito e anseia pela liberdade, enquanto que o amor contm-se sempre

    em um vnculo. Portanto, para escapar ao exerccio individualista do poder, necessrio que o

    poder seja socialmente fundado, de modo que ao exerc-lo se o faa para trazer felicidade e

    promoo aos outros. No entrelaamento dos motivos sociais e polticos, surge a categoria

    tica:

    Se [o poder] repousa sobre a superioridade espiritual, sobre a fora pessoal e a

    vontade magnnima de servir governando, temos ento o autntico esprito do chefe,

    que emprega seu poder apenas no servio do todo e considera-o como uma obrigao

    tica perante aqueles que o seguem. (Spranger, 1921/1976, p. 233)

    Compreende-se, ento, que para Spranger somente com a moderao do impulso de

    poder - de per si contrrio natureza social - possvel um comportamento poltico que seja

    tico, porque voltado para o bem do todo.

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    Homo Transformator

    Para compor o rpido quadro de referncia sobre a natureza do fenmeno poltico e

    das distines entre o social e o poltico, trago algumas consideraes feitas pelo filsofo e

    psiclogo brasileiro, Prof. Antonio Gomes Penna, em sua obra Introduo PsicologiaPoltica(1995).

    Para Penna (1995), o "poltico" a caracterstica que mais distingue os homens dos

    animais. O "poltico" orienta-se para as reformulaes estruturais ou institucionais. Os

    animais no reorganizam os sistemas sociais em que vivem; seu comportamento regulado

    por esses sistemas que se revelam como a-histricos. Tais sistemas apresentam um carter

    atemporal e permanente. As mudanas ocorrem circunstancialmente e no intencionalmente.

    Nos animais no observamos condutas reformistas ou, menos ainda, revolucionrias.

    Assim, o comportamento poltico [pode ser conceituado] como aquele que se orienta

    para a produo de mudanas radicais ou no nas estruturas dominantes (Penna, 1995, p.

    18). Tais mudanas apresentam um carter histrico, distanciando-se de imposies

    instintivas. Expressam uma interveno da reflexo crtica sobre a realidade e, no raro, so

    reprimidas pelostatus quo.

    Penna (1995) identifica uma distino entre a conduta social e a poltica exatamente

    no fato de que a primeira orienta-se para o "outro" enquanto indivduo; a segunda implica a

    busca de uma reestruturao ou um re-ordenamento da situao. Neste caso, o "todo"

    atingido e no apenas o indivduo isolado. A conduta poltica alimenta-se da razo crtica e

    no da simpatia e do nivelamento.

    Embora concordando com a distino entre o social e o poltico, tal como enfatizado

    por Arendt e Spranger, Penna considera que a extenso concedida dimenso social, quando

    aplicada tanto ao animal quanto aos seres humanos, merece reparo: enquanto que nos animais

    os processos de interao social revelam-se geneticamente programados e eventualmente

    manipulados por condicionamentos comportamentais, nos seres humanos ocorre a

    participao de processos cognitivos (a conscincia) que permite a reflexo sobre a conduta

    social e, portanto, a sua modificao. O poltico, ento, incide sobre o social.

    Concluo este captulo retornando a Hannah Arendt, defensora emblemtica do lugar da

    poltica no mundo. Cito-a em extenso excerto, procurando sintetizar o dilema em que nosencontramos, profissionais que se dedicam aos cuidados psicolgicos:

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    No importa como pode ser feita a pergunta, se o homem ou o mundo que corre

    perigo na crise atual, mas uma coisa certa: a resposta que empurra o homem para o

    ponto central das preocupaes do presente e que acha que deve modific-lo,

    remedi-lo, apoltica em seu sentido mais profundo. Pois, no ponto central da

    poltica est sempre a preocupao com o mundo e no com o homem - e, na verdade,

    a preocupao com um mundo assim ou com um mundo arranjado de outra maneira,

    sem o qual aqueles que se preocupam e so polticos, julgam que a vida no vale a

    pena ser vivida. E modifica-se o mundo to pouco, modificando-se os homens dele -

    abstraindo-se a impossibilidade prtica de tal empreendimento - quanto se muda uma

    organizao ou uma associao, comeando-se a influenciar seus membros, de uma

    maneira ou de outra. Se se quer mudar uma instituio, uma organizao ou entidade

    pblica existente no mundo, ento s se pode renovar sua constituio, suas leis, seus

    estatutos e esperar que tudo mais se produza por si mesmo. Isto est relacionado com

    o fato de que em toda parte em que os homens se agrupam - seja na vida privada, na

    [vida] social ou na [vida] pblico-poltica -, surge um espao que os rene e ao

    mesmo tempo os separa um dos outros. Cada um desses espaos tem sua prpria

    estruturabilidade que se transforma com a mudana dos tempos e que se manifesta na

    vida privada em costumes; na social, em convenes e na pblica em leis,

    constituies, estatutos e coisas semelhantes. Sempre que os homens se juntam, move-

    se o mundo entre eles, e nesse interespao ocorrem e fazem-se todos os assuntos

    humanos.(Arendt, 2002b, p. 36; os destaques so meus)

    A advertncia de Arendt atinge a todos ns, profissionaispsi, de maneira mais enftica

    ao nos lembrar que os seres humanos agem num mundo real, condicionam o mundo e so por

    ele condicionados; "... toda catstrofe ocorrida e ocorrente nesse mundo neles [homens e

    mulheres] refletida, co-determina-os" (Arendt, 2002b, p. 36). O que de pior nos pode

    acontecer o desinteresse absoluto, em relao aos "perigos externos, e, por conseguinte,

    altamente reais, e desvi-los para um mbito interior que pode no mximo ser refletido, mas

    no tratado nem modificado" (Arendt, 2002b, p. 37).

    No precisamos necessariamente concordar com a posio extrema - anti-psicolgica,

    por assim dizer - assumida por Arendt ao negar a possibilidade de transformaes subjetivas

    que possam ocorrer sem mudanas prvias no mundo exterior, mas fiquemos com o

    importante alerta sobre os riscos dos psicologismos, e decorrentes voluntarismos, que nos

    assediam.

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    Um muro invisvel entre o eu e o mundo

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    Um Muro Invisvel Entre o Eu e o Mundo...

    A subjetividade um tema ao qual s temos acessoatravs do sujeito em seus espaos de relao social.

    (Gonzlez Rey, 2004, p. 175)Na solido de indivduo desaprendi a linguagem

    com que os homens se comunicam.(Carlos Drummond de Andrade)

    ! O Indivduo S

    ! Ser Para Outros e Entre Outros

    ! A Subjetividade Scio-Histrica

    O Indivduo S

    margem de um largo rio, ou talvez na encosta ngreme de uma montanha elevada,

    encontra-se uma fileira de esttuas. Elas no conseguem movimentar seus membros.

    Mas tm olhos e podem enxergar. Talvez ouvidos, tambm, capazes de ouvir. E sabem

    pensar. So dotadas de 'entendimento'. Podemos presumir que no vejam umas s

    outras, embora saibam perfeitamente que existem outras. Cada uma est isolada.

    Cada esttua em isolamento percebe que h algo acontecendo do outro lado do rio ou

    do vale. Cada uma tem idias do que est acontecendo e medita sobre at que ponto

    essas idias simplesmente espelham as ocorrncias do lado oposto. Outras pensam

    que uma grande contribuio vem de seu prprio entendimento; no final, impossvel

    saber o que est acontecendo por l. Cada esttua forma sua prpria opinio. Tudo o

    que ela sabe provm de sua prpria experincia. Ela sempre foi tal como agora.

    No se modifica. Enxerga. Observa. H algo acontecendo do outro lado. Ela pensa

    nisso. Mas continua em aberto a questo de se o que ela pensa corresponde ao que l

    est sucedendo. Ela no tem meios de se convencer. imvel. E est s. O abismo

    profundo demais. O golfo intransponvel.(Elias, 1994, pp. 96-97)

    A parbola descrita por Norbert Elias (1897-1990), socilogo alemo, refere-se ao

    indivduo que se sente s, isolado, em oposio ao mundo externodas pessoas e das coisas.

    Internamente, percebe-se como algo distinto do que est l fora. difcil evitar analogias

    espaciais, muitas das quais com certa tonalidade psicolgica, para se falar dessa experincia

    de separao do indivduo em relao ao mundo: vida interior, mundo externo, mundo

    interno, conhecimento interior.

    Explica Elias (1994) que a vida em sociedade gera um cerceamento e controle

    relativamente alto sobre o comportamento do indivduo, em particular nas sociedades

    Captulo2

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    Um muro invisvel entre o eu e o mundo

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    ocidentais. A internalizao desse controle, mediante os exemplos, as palavras e os atos,

    principalmente dos pais e professores, trata de criar uma segunda natureza que conflita com

    os impulsos espontneos do indivduo. Os impulsos controladores, gerados socialmente, e

    "reificados por palavras como compreenso, razo ou escrpulo, geralmente bloqueiam oacesso direto de outros impulsos mais espontneos, seja do instinto, dos sentimentos ou do

    pensamento, descarga motora na ao (Elias, 1994, p. 99). Os pensamentos e a

    autopercepo do indivduo, apresentam-se ento encapsulados no seu interior, retirados que

    foram do mundo externo, das coisas e das pessoas.

    Explorando a parbola, Elias ressalta que as esttuas observam o mundo, elaboram

    hipteses sobre ele, mas no se movem, no atuam sobre o mundo, no o pegam. Olham de

    dentro para um mundo que est l fora, ou de fora para o interior de suas subjetividades.Origina-se a a sensao de vazio, de separao intransponvel entre uma pessoa e outra, entre

    o eu e o mundo, um verdadeiro muro invisvel. Ao se referir s filosofias metafsicas da

    atualidade, tais como o existencialismo, bem como aos filsofos clssicos, Elias (1994) diz:

    Com pouqussimas excees, tanto uns quanto outros se interessaram

    primordialmente por questes do ser humano, como se a existncia de uma

    pluralidade de pessoas, o problema da coexistncia dos seres humanos, fosse algo

    acrescentado, acidental e extrinsecamente, aos problemas da pessoa individual. [...]O filsofo, quando suas idias no se perdem em noes nebulosas de uma existncia

    supra-individual, assume sua posio no indivduo isolado. Pelos olhos dele, fita o

    mundo l fora como que atravs de pequenas janelas; ou ento medita, desse mesmo

    ponto de vista, sobre o que est acontecendo do lado de dentro. (p. 101)

    A noo de individualidade como expresso de um ncleo natural dentro do

    indivduo, ao qual vm se adicionar traos sociais, liga-se a uma concepo de vida ntima

    que historicamente determinada. A tenso entre as funes egicas e superegicas, por um

    lado, e as funes instintivas, de outro, fazem parecer ao indivduo que ele distingue-se

    internamentedaquilo que externo: a sociedade e as outras pessoas. O distanciamento do

    indivduo em relao ao mundo externocolocou-o diante de uma natureza diferente de si

    mesmo e diante das demais pessoas como um ser independente que as considera como algo da

    ordem do estranho. Conclui Elias (1994):

    Somente quando o indivduo pra de tomar a si mesmo como ponto de partida de seu

    pensamento, pra de fitar o mundo como algum que olha 'de dentro' de sua casa

    para a rua 'l fora', para as casas 'do outro lado', e quando capaz - por uma nova

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    revoluo copernicana em seus pensamentos e sentimentos - de ver a si e a sua

    concha como parte da rua, de v-los em relao a toda a rede humana mvel, s

    ento se desfaz, pouco a pouco, seu sentimento de ser uma coisa isolada e contida 'do

    lado de dentro', enquanto os outros so algo separado dele por um abismo, so uma'paisagem', um 'ambiente', uma 'sociedade'.(p. 53)

    Para Elias (1994), a individualidadeconsiste na peculiaridade das funes psquicas de

    uma pessoa, uma qualidade estrutural da auto-regulao dessa pessoa em relao a outras

    pessoas e coisas. Refere-se, portanto, maneira e medida especiais em que a qualidade

    estrutural do controle psquico difere de uma pessoa para outra.

    Mas essa diferena especfica das estruturas psquicas das pessoas no seria possvel

    se sua auto-regulao em relao a outras pessoas e coisas fosse determinada por

    estruturas herdadas, da mesma forma e na mesma medida em que o a auto-

    regulao do organismo humano, por exemplo, na reproduo de rgos e membros.

    A individualizao das pessoas s possvel porque o primeiro controle mais

    malevel que o segundo. (p. 54)

    claro que a pessoa que cresce fora do convvio humano no desenvolve a

    individualidade. A progressiva modelagem das maleveis funes psquicas, na interao com

    outras pessoas e com as circunstncias, confere a configurao singular que distinguem esta

    pessoa das demais e a que chamamos de individualidade humana: "A sociedade no apenas

    produz o semelhante e o tpico, mas tambm o individual" (Elias, 1994, p. 56). Aquilo que

    usualmente concebido como duas substncias separadas, dois nveis do ser humano - sua

    individualidade e seu condicionamento social- constitui, na verdade, duas decorrncias das

    relaes recprocas entre as pessoas, que no existem separadamente, mas juntas, sempre.

    Ser Para Outros e Entre Outros

    A palavra indivduo desperta, para algumas pessoas, sentimentos negativos

    relacionados com a idia de individualismo, concebido como a caracterstica de indivduos

    cruis, egostas, impiedosos. Para outras, a palavra associa-se ao orgulho de ser independente,

    quilo que a pessoa isolada capaz de realizar, independentemente de todas as demais

    pessoas e, muitas vezes, em competio com elas. s vezes, o termo transmite a idia de uma

    pessoa carismtica que impressiona com seus feitos.

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    A palavrasociedade, por outro lado, pode evocar a idia de algo que iguala a todos,

    que impede a auto-realizao ou o desenvolvimento da personalidade individual; a imagem de

    um