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VOLUME IV Nº2 MARÇO/ABRIL 2002 59 PSICOPATOLOGIA Esquizofrenia: interacções entre factores ambientais e factores genéticos A partir dos dados da literatura que indicam a existência de diferenças estruturais cerebrais entre doentes esquizofrénicos e indivíduos normais, Cannon et al. (2002) analisaram o efeito da hipóxia fetal na estrutura cerebral em 64 doentes esquizofrénicos ou com perturbação esquizoafectiva, em 51 gémeos homozigóticos daqueles doentes mas que não apresentavam a doença e em 54 idivíduos normais. Previamente, os autores identificaram estes participantes a partir de registos de nascimento de uma amostra filandesa, fizeram-lhes RMN e verificaram que os doentes e os seus irmãos gémeos apresentavam volumes inferiores de substância cinzenta e volumes superiores de liquor comparativamente com os controles normais. Na investigação actual, os registos de nascimento foram examinados com vista ao despiste de história de hipóxia, índices de crescimento pequenos em relação ao tempo de gestação e infecções pré-natais. Nos doentes esquizofrénicos e nos seus irmãos gémeos não afectados, a presença de hipóxia ao nascimento predizia volumes baixos de substância cinzenta, especialmente no lobo temporal. Os doentes esquizofrénicos com baixo peso ao nascimento e com hipóxia apresentavam volumes marcadamente inferiores de substância cinzenta comparativa- mente com os doentes esquizo- frénicos que apresentavam peso normal ao nascimento. No grupo esquizofrénico, volumes aumen- tados de liquor correlacionavam- se com a ocorrência de hipóxia. Apesar das limitações salientadas pelos autores (p. ex., a impossibi- lidade de distinguir a hipóxia pré e pós natal ou a presença de outras complicações obstétricas não controladas terem influenciado estes dados) esta investigação constitui uma importante con- tribuição para a compreensão das interacções gene-ambiente para o começo da esquizofrenia. Um outro trabalho importante neste domínio das interacções entre alguns factores ambientais e os factores genéticos, nomeada- mente no que respeita aos seus efeitos no desenvolvimento cerebral de doentes esquizo- frénicos, Bennett et al. (2002) examinaram as interacções entre genes, estilos educativos e funcionamento serotonínico em macacos rhesus que, como os humanos, demonstram extensa variabilidade no gene de transporte da serotonina. Foram analisados 4 grupos de macacos: 1 grupo criado com os pares e eram homozigóticos para o alelo longo do gene transpor- tador da serotonia; outro grupo também desenvolvido com os pares e heterozigóticos (1 alelo longo e um alelo curto); outro, criado com os pais e homozigótico e finalmente um último criado com os pais e heterozigótico. Para verificar em que medida o alelo curto nos macacos rhesus apresentava efeitos semelhantes na expressão serotoninérgica ao dos humanos, os autores analisa- ram o efeito da variação alélica dos humanos e dos macacos na actividade serotoninérgica em células placentárias humanas de carcinomas coriónicos. Examinaram também os níveis de serotonina no liquor dos macacos. As variantes longas e curtas nos macacos e nos humanos apresenta- vam diferenças semelhantes na expressão genética, mesmo considerando que as duas espécies têm números diferentes de pares de bases nesses alelos. Os níveis de serotonina no liquor não diferiam em relação ao genótipo nos macacos criados com os pais. Já os macacos criados com os pares o genótipo heterozigótico estava associado com níveis significativamente mais baixos de serotonina no liquor compara- tivamente com o genótipo homozigótico. Os resultados destas duas investigações são prometedores não apenas quanto à compreensão da interacção entre o efeito de ambientes deletérios, tais como o facto de ser criado com pares ou a hipóxia pré-natal) e o genótipo, como também nos anunciam vias frutuosas para futuras investigações no âmbito da prevenção e do tratamento da esquizofrenia.

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VOLUME IV Nº2 MARÇO/ABRIL 2002

59

PSICOPATOLOGIA

Esquizofrenia: interacções entre factores ambientais e factores genéticos

A partir dos dados da literatura que indicam a existência de diferenças estruturais cerebrais entre doentes esquizofrénicos e indivíduos normais, Cannon et al. (2002) analisaram o efeito da hipóxia fetal na estrutura cerebral em 64 doentes esquizofrénicos ou com perturbação esquizoafectiva, em 51 gémeos homozigóticos daqueles doentes mas que não apresentavam a doença e em 54 idivíduos normais. Previamente, os autores identificaram estes participantes a partir de registos de nascimento de uma amostra filandesa, fizeram-lhes RMN e verificaram que os doentes e os seus irmãos gémeos apresentavam volumes inferiores de substância cinzenta e volumes superiores de liquor comparativamente com os controles normais. Na investigação actual, os registos de nascimento foram examinados com vista ao despiste de história de hipóxia, índices de crescimento pequenos em relação ao tempo de gestação e infecções pré-natais.Nos doentes esquizofrénicos e nos seus irmãos gémeos não afectados, a presença de hipóxia ao nascimento predizia volumes baixos de substância cinzenta, especialmente no lobo temporal. Os doentes esquizofrénicos com baixo peso ao nascimento e com

hipóxia apresentavam volumes marcadamente inferiores de substância cinzenta comparativa-mente com os doentes esquizo-frénicos que apresentavam peso normal ao nascimento. No grupo esquizofrénico, volumes aumen-tados de liquor correlacionavam-se com a ocorrência de hipóxia.Apesar das limitações salientadas pelos autores (p. ex., a impossibi-lidade de distinguir a hipóxia pré e pós natal ou a presença de outras complicações obstétricas não controladas terem influenciado estes dados) esta investigação constitui uma importante con-tribuição para a compreensão das interacções gene-ambiente para o começo da esquizofrenia.Um outro trabalho importante neste domínio das interacções entre alguns factores ambientais e os factores genéticos, nomeada-mente no que respeita aos seus efeitos no desenvolvimento cerebral de doentes esquizo-frénicos, Bennett et al. (2002) examinaram as interacções entre genes, estilos educativos e funcionamento serotonínico em macacos rhesus que, como os humanos, demonstram extensa variabilidade no gene de transporte da serotonina.Foram analisados 4 grupos de macacos: 1 grupo criado com os pares e eram homozigóticos para o alelo longo do gene transpor-tador da serotonia; outro grupo também desenvolvido com os pares e heterozigóticos (1 alelo longo e um alelo curto); outro,

criado com os pais e homozigótico e finalmente um último criado com os pais e heterozigótico.Para verificar em que medida o alelo curto nos macacos rhesus apresentava efeitos semelhantes na expressão serotoninérgica ao dos humanos, os autores analisa-ram o efeito da variação alélica dos humanos e dos macacos na actividade serotoninérgica em células placentárias humanas de carcinomas coriónicos. Examinaram também os níveis de serotonina no liquor dos macacos. As variantes longas e curtas nos macacos e nos humanos apresenta-vam diferenças semelhantes na expressão genética, mesmo considerando que as duas espécies têm números diferentes de pares de bases nesses alelos. Os níveis de serotonina no liquor não diferiam em relação ao genótipo nos macacos criados com os pais. Já os macacos criados com os pares o genótipo heterozigótico estava associado com níveis significativamente mais baixos de serotonina no liquor compara-tivamente com o genótipo homozigótico.Os resultados destas duas investigações são prometedores não apenas quanto à compreensão da interacção entre o efeito de ambientes deletérios, tais como o facto de ser criado com pares ou a hipóxia pré-natal) e o genótipo, como também nos anunciam vias frutuosas para futuras investigações no âmbito da prevenção e do tratamento da esquizofrenia.

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VOLUME IV Nº2 MARÇO/ABRIL 2002

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Escolhas do Director

Cannon et al.(2002). Arch Gen Psychiatry V59

Bennett et al. (2002). Mol Psychiatry V7

Perturbação Generalizada de Ansiedade: diagnóstico raro?

Não é ainda consensual a existência da entidade perturbação generalizada de ansiedade (PGA) em forma “pura” (isto é, doentes que obedecem aos critérios para o diagnóstico de PGA não apresentarem comorbilidade com outros diagnósticos psiquiátricos).Precisamente para analisar a prevalência de comorbilidade em doentes com PGA, Bruce et al. (2001) usaram os dados de um banco de dados de um estudo naturalístico prospectivo de 8 anos em 711 adultos com perturbações de ansiedade.De acordo com os dados de entrevistas diagnósticas estruturadas, 179 dos participantes apresentavam critérios de PGA no início do estudo; pelo menos uma entrevista de follow-up (aplicada duas vezes por ano nos primeiros 2 anos e depois anualmente) foi conduzida com 167 doentes com PGA (no fim dos 8 anos foram entrevistados 100 doentes).No início do estudo a comorbilidade perturbações de ansiedade, do humor e do abuso de substâncias era relativamente comum (34% dos doentes com PGA tinham pelo menos 2 diagnósticos) e aumentava com cada um dos follow-ups. No início do estudo, 39% dos participantes com PGA apresentavam diagnósticos de depressão major, e entre os 4 e os 8 anos, 65% e 74%, respectivamente, tinham experiencidado depressão major em algum momento das suas vidas. Outras comorbilidades frequentes eram a fobia social e a perturbação de pânico com agorafobia.Estes resultados não só apoiam a ideia de muitos investigadores segundo a qual é muito dificil identificar doentes com diagnósticos “puros” de PGA, como também a alta incidência de comorbilidade depressiva nos doentes com PGA pode constituir um factor de risco considerável para o desenvolvimento de depressão

major. No entanto, são precisos mais estudos para se testar esta hipótese.

Bruce et al. (2001). Depress Anxiety V14

TERAPÊUTICA

Risperidona e Síndroma de La Tourette

O síndrome de La Tourette é uma doença neuropsiquiátrica crónica, com início na infância e caracterizada por acentuados tiques motores e vocais. O tratamento mais utilizado tem sido com haloperidol e pimozide, mas o grande número de efe itos secundários graves , tem impulsionado a investigação sobre a eficácia de ant ips icót icos at íp icos nesta perturbação. Os resultados destas investigações não têm sido muito consensuais, ora apontado para a ineficácia (p. ex., da clozapina comparativamente com o haloperidol) ora apontando para a eficácia (p. ex., da risperidona, muito embora em estudos não controlados). Dion et al. (2002), desenvolveram um estudo de 8 semanas, duplamente cego em 48 adolescentes e adultos com síndrome da La Tourette grave, que receberam doses progressivas de risperidona (dose média ao 7º dia – 1 mg/dia; dose média ao 56º dia – 2,5 mg/dia) ou placebo.Em 61% dos doentes com risperidona e em 26% dos doentes com placebo houve melhoria dos sintomas, diferença que se mostrou ser estatisticamente significativa. Os efeitos secundários (nomeadamente, fadiga, sonolência, hipocinésia e depressão) foram de gravidade moderada, mas 39% dos doentes que tomaram risperidona necessitaram de medicação antiparkinsónia, comparativamente com 9% dos doentes que tomaram placebo.Muito embora ainda não seja clara a diferença da eficácia e tolerância da risperidona em relação aos neurolépticos clássicos, estes dados documentam de uma forma robusta a eficácia da risperidona no síndrome de La Tourette.

Dion et al. (2002). J Clin Psychopharmacol V22

Placebos e depressão

Os placebos são, muitas vezes, eficazes em doentes deprimidos, calculando-se que uma percentagem que varia entre 50 a 75% dos efeitos terapêuticos da medicação antidepressiva se deve ao efeito placebo. No sentido de analisar o mecanismo de actuação biológica dos placebos, Leuchter et al. (2002) usaram a electroencefalografia quantitativa (cujos resultados têm provado se correlacionarem com a resposta antidepressiva) para estudar o cérebro de 51 doentes deprimidos que participaram em dois estudos controlados duplamente cegos envolvendo 8 semanas de tratamento com fluoxetina ou velanfaxina.Os doentes incluíam respondentes e não respondentes à medicação e ao placebo. Ao fim de 2 semanas o grupo de respondentes à medicação (52% dos que receberam medicação) apresentavam ligeiras diminuições na perfusão das regiões pré-frontais, enquanto que o grupo dos respondentes ao placebo (38% dos que receberam placebo) apresentavam aumentos s ign i f icat ivos , quando comparados com os valores basais e com os valores dos respondentes à medicação. Estes dois grupos de doentes não apresentavam diferenças nas características clínicas. Os não respondentes (quer à medicação, quer ao placebo) não apresentavam alterações significativas na perfusão.Estes dados sugerem que os mecanismos cerebrais nos doentes deprimidos que subjazem a melhoria clínica com placebo são diferentes dos que subjazem à melhoria c l ín ica com ant idepress ivos . O relat ivamente baixo custo desta metodologia de estimação da perfusão cerebral coloca-a no topo das metodologias para se continuar a investigar os mecanismos de mediação cerebral dos efeitos antidepressivos de diferentes agentes.

Leuchter et al. (2002). Am J Psychiatry V159