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PSICOPATOLOGIA E PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA: NOTAS PRELIMINARES

Melissa Rodrigues de AlmeidaVitor Marcel Schühli

Universidade Federal do Paraná – Curitiba, PR, Brasil

Praça Santos Andrade, 50, sala 215, ala Alfredo Buffren, 80060-240, Curitiba, PR, Brasil

[email protected]

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Atualmente, os transtornos mentais aparecem entre cinco das dez maiores causas

de incapacitação no mundo, segundo a Organização Mundial de Saúde, com a depressão

maior, esquizofrenia, transtorno bipolar, alcoolismo e transtorno obsessivo-compulsivo.

No Brasil, é a terceira maior causa de afastamentos do trabalho por mais de quinze dias

e de aposentadoria por invalidez. Diante dessa realidade, aumenta a necessidade de

produções teóricas que analisem o desenvolvimento das psicopatologias buscando

explicar sua gênese e sua relação com a vida social. Percebemos que nesse campo

predominam explicações naturalizantes sobre o processo saúde-doença, como as leituras

biomédicas e psicodinâmicas. Notamos, ainda, que apesar de alguns importantes

esforços de desenvolver contribuições críticas, é ainda bastante incipiente a produção da

Psicologia Sócio-Histórica no campo da Psicopatologia. Encontramos alguns estudos

especialmente advindos da ex-URSS e de Cuba (Zeigarnik, 1976; Jimenez e cols, 1987;

Alvarez, 1998, 2003), no entanto o Brasil ainda carece de referências que tratem dessa

relação.

Desse modo, esse trabalho apresenta-se como contribuição inicial para as

reflexões sobre a Psicopatologia a partir do referencial da Psicologia Sócio-Histórica e

pretende estimular uma interlocução que leve tanto à retomada dos estudos clássicos

dessa abordagem quanto ao desenvolvimento de novos estudos que permitam a

compreensão da determinação social do processo de sofrimento mental.

O aumento na incidência de transtornos mentais pode estar relacionado com

vários fatores, dentre os quais vale destacar: intensificação na exploração capitalista dos

trabalhadores e conseqüente aumento nos processos de sofrimento relacionados ao

trabalho; aprofundamento de relações sociais individualizantes com diminuição de redes

sociais solidárias para o enfrentamento de situações de sofrimento levando à vivência

cada vez mais individual desses processos; avanço no processo de medicalização social,

isto é, no enraizamento do paradigma biomédico como explicação das relações sociais e

humanas.

A Psicologia Sócio-Histórica ou Psicologia Histórico-Cultural fundamenta-se no

marxismo e tem como precursores os psicólogos soviéticos Vigotski, Luria e Leontiev.

Em sua trajetória teórica, esses autores afirmam a historicidade e a formação social da

consciência humana, destacando sua relação intrínseca com o trabalho. Nas palavras de

Luria, “as raízes do surgimento da atividade consciente do homem não devem ser

procuradas nas peculiaridades da ‘alma’ nem no íntimo do organismo humano mas nas

condições sociais da vida historicamente formadas” (Luria, 1994, p. 75).

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Os autores soviéticos afirmam que a consciência humana se produz nas relações

sociais, de modo que aquilo que hoje é pessoal foi outrora social. Portanto, o caráter

social e histórico da atividade humana leva à formação de funções psicológicas

superiores que precisam ser desenvolvidas em cada pessoa desde a infância pela

mediação das relações sociais, que possibilitam a apropriação do gênero humano e a

inserção dos indivíduos na história (Duarte,1993).

Segundo Vigotski (1999), o aparecimento de novas e mutáveis relações entre as

funções denomina-se sistema psicológico. O autor diz que “A idéia principal

(extraordinariamente simples) consiste em que durante o processo de desenvolvimento

do comportamento, especialmente no processo de seu desenvolvimento histórico, o que

muda não são tanto as funções, tal como tínhamos considerado anteriormente (era esse

nosso erro), nem sua estrutura, nem sua parte de desenvolvimento, mas o que muda e se

modifica são precisamente as relações, ou seja, o nexo das funções entre si, de maneira

que surgem novos agrupamentos desconhecidos no nível anterior” (Vigotski, 1999, p.

105). Com isso, ressalta o fato de que o que importa são as mudanças nos nexos

interfuncionais.

Com base nas contribuições de Leontiev, Martins (2004) afirma que a atividade

consciente humana determina a formação de capacidades, motivos, finalidades,

sentidos, sentimentos que constituem-se de processos psicológicos que levam ao plano

da personalidade. Assim, no processo de personalização, os significados e sentidos se

afirmam como processos psicológicos mediadores da hierarquia de motivos e

necessidades, formando o núcleo motivacional da personalidade.

Em função da dinâmica das contradições presentes na realidade social as

hierarquias de motivos e necessidades podem se modificar. No caso da sociedade

capitalista, ao mesmo tempo em que se promove processos de adoecimento, exige-se

indivíduos saudáveis produtivos para o sistema social, além da valorização ou

desvalorização de certos modos de pensar, sentir e agir nos processos sociais.

Vigotski (2000) argumenta que não são as leis da vida psíquica entre os

considerados doentes e saudáveis mentais que diferem, mas o papel de algumas

funções, isto é, sua hierarquia. Em um processo psicopatológico, portanto, a hierarquia

de todo o sistema é diferente fazendo com que certas funções (medos, suspeitas, idéias

fixas, por exemplo) ganhem uma função reguladora.

Zeigarnik (1976) também afirma a importância da estrutura de motivos e

necessidades nas investigações psicopatológicas, apontando que a enfermidade psíquica

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destrói e falseia a sucessão de motivos, diminui sua função na formação de significados,

conduz à destruição dos processos já formados dos motivos e necessidades e forma

novos motivos (patologicamente alterados), levando ao aparecimento de novas

propriedades e características da personalidade.

Tomando como base as contribuições de Leontiev, Bratus e Zeigarnik, Alvarez

(2003, p. 15) afirma que para a Psicologia Histórico-Cultural a personalidade normal

seria aquela que em sua atividade possui diversos motivos, com predomínio de uma

orientação social em sua personalidade e quando seus motivos orientadores possuem um

caráter regulador, eficiente e consciente, vivendo em um presente não conflitivo com

planos futuros, que são construídos desde o presente com um nível de aspiração de

acordo com suas possibilidades reais.

As alterações na personalidade ocorrem, de acordo com essa perspectiva,

quando se estreitam na pessoa os interesses, diminuem as necessidades, quando se está

indiferente ao que antes o inquietava, quando suas ações perdem a finalidade e seus atos

se fazem ilógicos, quando o homem deixa de regular sua conduta e não está em

condições de valorar adequadamente suas possibilidades (Zeigarnik apud Alvarez,

1999).

Para ilustrar essas formulações, podemos citar o estudo de Vigotski (1999) sobre

a formação de conceitos. Entende-se por formação de conceitos o processo por meio do

qual se desenvolve uma forma de pensamento abstrato com função de assimilar,

comunicar, entender e resolver algum problema. Vigotski (1999) conclui que é na idade

de transição, ou adolescência, com base no processo ocorrido durante toda a infância

que essa função se constitui verdadeiramente, havendo variação de concepções e

aparecimento de novas conexões. Para ele, a formação de conceitos é a chave para todos

os processos de desenvolvimento e de desintegração. Na esquizofrenia, por exemplo,

ocorre a desintegração das funções que se criam na idade de transição, sendo que a

primeira coisa que se desintegra é a formação de conceitos. Na pessoa com

esquizofrenia, não são as idéias e sentimentos que variam, mas esses perdem as funções

que desempenhavam no sistema complexo. Ocorre a conservação das funções e a

desintegração dos sistemas complexos alcançados na vida coletiva. Dessa forma, há

uma regressão no desenvolvimento do pensamento por conceitos, abstrato, retornando a

um pensamento por complexos, concreto, podendo até manter o uso dos conceitos de

forma automática, mas sem formação de novos conceitos (Vygotsky, 1994). Porém,

apesar das similaridades, o pensamento na esquizofrenia não é como o pensamento por

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complexos da criança, pois naquele há a destruição dos sistemas psicológicos que estão

na base dos conceitos, modificando o significado dos conceitos. Portanto, na

esquizofrenia, as palavras coincidem em relação aos objetos, mas não em seus

significados. Com isso, os significados das palavras se tornam patologicamente

alterados na esquizofrenia com um distúrbio na capacidade de usar e compreender

palavras usadas em sentido metafórico, apesar de manter da infância o hábito de usar

figuras de linguagem e provérbios, por exemplo (Vygotsky, 1994). O autor soviético

toma como exemplo a relação entre a percepção e o sistema conceitual. No

desenvolvimento normal, as percepções são subordinadas aos conceitos, sendo

impossível obter percepções absolutas dissociadas de significados. Na esquizofrenia,

vários objetos de percepção comum perdem facilmente suas características perceptuais

comuns, como se anexassem na percepção dos objetos significados extraordinários em

ligeiras mudanças de sua aparência habitual, como luz ou posição do objeto.

Foi possível perceber algumas importantes contribuições da Psicologia Sócio-

Histórica ao campo da psicopatologia. No entanto, por ser parte de um estudo ainda em

andamento, pretendemos aprofundar essa análise, certos de que ainda há subsídios

férteis para o entendimento dos processos psicopatológicos e da saúde mental o que

contribuirá para o desenvolvimento de possibilidades de intervenção que levem em

conta esses achados.

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REFERÊNCIAS

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ALVAREZ, A. A. Algunas aplicaciones de la teoría de L. S. Vigotski en Psicologia clínica. Revista Cubana de Psicologia. v. 15. n. 2. 1998.

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LURIA, A. R. Curso de Psicologia Geral: introdução evolucionista à psicologia. V1. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1994.

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VYGOTSKY, L.S. Thought in schizophrenia. In: VALSINER, J. & VAN DER VEER, R. (eds.) The Vygotsky reader. Oxford, UK; Cambridge USA: Basil Blackwell, 1994.

ZEIGARNIK, B. V. Psicopatología. Madrid: Akal, 1976.