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MATRIZES DE PENSAMENTO EM PSICOLOGIA SOCIAL NA AMÉRICA LATINA: HISTÓRIA E PERSPECTIVAS Marina Massimi Introdução Em primeiro lugar, gostaria de parabenizar a Comissão organizadora deste Colóquio pela escolha do tema. Propor a questão da identidade ou especificidade da Psicologia social latino-americana no contexto atual marcado pela tendência à globalização, do ponto de vista social e econô- mico, e à homologação, do ponto de vista cultural, é uma iniciativa importante e num certo sentido corajosa. Trata- se de uma pergunta aparentemente contracorrente, opos- ta àquilo que parece ser a tendência dominante: dissolver a singularidade enigmática, contraditória e única, numa totalidade segura, confortável, garante de sucesso e de eficácia histórica. No entanto, esta pergunta põe o dedo na ferida: quem sou eu? quem somos nós? Pergunta incômo- da, mas necessária para que não nos esqueçamos de nós. Para não esquecer: relacionar esta pergunta à recupe- ração da memória histórica dos processos culturais e so- ciais que caracterizam a América Latina significa escolher um certo caminho de compreensão da identidade latino- americana, restaurar uma continuidade em oposição às descontinuidades que aparentemente caracterizam a his- tória cultural, social e política destes Países. Com efeito, "é na memória que o homem carrega o seu significado; o significado não é uma invenção, é o sentido do caminho; e é a memória que registra o sentido do desenvolvimento que é o nosso tempo. É uma grande maturidade ter presente o valor de si mesmo como memó- ria. Aliás, a pessoa nunca tem presente a si mesma, a não ser na memória, a não ser no olhar cordial que não perde 32 dll Vl.otao próprio enraizamento no passado, passado do /11/11 I lllicamente solicita a imagem real e a energia para o ;'1111110" (Giussani, 1997, p. 20). f ',,/ , •• :iderações metodológicas preliminares Na perspectiva histórica, existem diversas modalida- 1"11 (le abordar a questão proposta, das quais dependem 11V'II'I"OS percursos e soluções. Então parece-nos importan- 1" I It)flnir antes de mais nada alguns aspectos metodológi- 1111 que achamos relevantes para esta discussão. Il:m primeiro lugar, gostaríamos de discutir a oportuni- 1111 lu do uso do termo "paradigma", pois este termo sugere 11111/\ determinada posição epistemológica: a homologação 11)1111Íversodiversificado da psicologia e das ciências tIf'lflis ao modelo das ciências naturais que, por sua vez, "'I(;teriza-se pela univocidade. Com efeito, a categoria de 1"11 ndigma" introduzida na historiografia da ciência em I' li,). por Thomas Kuhn, no conhecido texto A estrutura das "'I/llções científicas, é concebida por ele como a "unidade "llIllllnental para o estudo do desenvolvimento científico" lurlvnda da análise da construção histórica das Ciências 11lrais.Nesse sentido, atributo essencial de um paradig- 111[1 li o fato de que ele deve ser "inequívoco e obrigatório" 1. p,)/' t)f:lte motivo, Kuhn põe algumas dúvidas acerca da 1"1111li bilidade de aplicar esta categoria ao domínio das ,'Ií'llll;ias sociais. Acatando o desafio proposto por Kuhn, \I r'I.II)1J historiadores da psicologia discutiram ao longo illll IIOOSSetenta e Oitenta se o modelo epistemológico 1"IIJlOStOpor Kuhn poderia ser realmente aplicado ao 11111 vorso do saber psicológico (Barnes 1962; Buss 1978; PlIlIlImo 1971; Peterson 1981; Briskmann 1972; Koch II!'tO; Lipsey 1974; Suppe 1984). No debate, evidencia- 111 lJe diversas posições a respeito da questão, sendo 1"" riS contribuições mais recentes concordam em reco- IIll1tuora presença de um ineliminável pluralismo na defi- 11I,'IlO da estrutura conceptual e metodológica da psi- IIIiIqi,a(Smith 1988; Danziger 1990). I' IIIIN, 1975, p. 30. 33

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MATRIZES DE PENSAMENTO EMPSICOLOGIA SOCIAL NA AMÉRICA

LATINA: HISTÓRIA E PERSPECTIVASMarina Massimi

Introdução

Em primeiro lugar, gostaria de parabenizar a Comissãoorganizadora deste Colóquio pela escolha do tema. Propora questão da identidade ou especificidade da Psicologiasocial latino-americana no contexto atual marcado pelatendência à globalização, do ponto de vista social e econô­mico, e à homologação, do ponto de vista cultural, é umainiciativa importante e num certo sentido corajosa. Trata­se de uma pergunta aparentemente contracorrente, opos­ta àquilo que parece ser a tendência dominante: dissolvera singularidade enigmática, contraditória e única, numatotalidade segura, confortável, garante de sucesso e deeficácia histórica. No entanto, esta pergunta põe o dedo naferida: quem sou eu? quem somos nós? Pergunta incômo­da, mas necessária para que não nos esqueçamos de nós.

Para não esquecer: relacionar esta pergunta à recupe­ração da memória histórica dos processos culturais e so­ciais que caracterizam a América Latina significa escolherum certo caminho de compreensão da identidade latino­americana, restaurar uma continuidade em oposição àsdescontinuidades que aparentemente caracterizam a his­tória cultural, social e política destes Países.

Com efeito, "é na memória que o homem carrega o seusignificado; o significado não é uma invenção, é o sentidodo caminho; e é a memória que registra o sentido dodesenvolvimento que é o nosso tempo. É uma grandematuridade ter presente o valor de si mesmo como memó­ria. Aliás, a pessoa nunca tem presente a si mesma, a nãoser na memória, a não ser no olhar cordial que não perde

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dll Vl.otao próprio enraizamento no passado, passado do/11/11Illlicamente solicita a imagem real e a energia para o

;'1111110"(Giussani, 1997, p. 20).

f ',,/ , ••:iderações metodológicas preliminares

Na perspectiva histórica, existem diversas modalida­1"11(le abordar a questão proposta, das quais dependem11V'II'I"OSpercursos e soluções. Então parece-nos importan­

1" IIt)flnir antes de mais nada alguns aspectos metodológi­1111 que achamos relevantes para esta discussão.

Il:m primeiro lugar, gostaríamos de discutir a oportuni­1111 lu do uso do termo "paradigma", pois este termo sugere

11111/\determinada posição epistemológica: a homologação11)1111Íversodiversificado da psicologia e das ciênciastIf'lflis ao modelo das ciências naturais que, por sua vez,"'I(;teriza-se pela univocidade. Com efeito, a categoria de

1"11ndigma" introduzida na historiografia da ciência emI' li,). por Thomas Kuhn, no conhecido texto A estrutura das

"'I/llções científicas, é concebida por ele como a "unidade"llIllllnental para o estudo do desenvolvimento científico"lurlvnda da análise da construção histórica das Ciências

11lrais.Nesse sentido, atributo essencial de um paradig­111[1li o fato de que ele deve ser "inequívoco e obrigatório" 1.

p,)/' t)f:lte motivo, Kuhn põe algumas dúvidas acerca da1"1111li bilidade de aplicar esta categoria ao domínio das,'Ií'llll;ias sociais. Acatando o desafio proposto por Kuhn,\I r'I.II)1J historiadores da psicologia discutiram ao longoillll IIOOSSetenta e Oitenta se o modelo epistemológico

1"IIJlOStOpor Kuhn poderia ser realmente aplicado ao11111vorso do saber psicológico (Barnes 1962; Buss 1978;PlIlIlImo 1971; Peterson 1981; Briskmann 1972; KochII!'tO;Lipsey 1974; Suppe 1984). No debate, evidencia-

111lJe diversas posições a respeito da questão, sendo1"" riS contribuições mais recentes concordam em reco­

IIll1tuora presença de um ineliminável pluralismo na defi­11I,'IlO da estrutura conceptual e metodológica da psi­IIIiIqi,a(Smith 1988; Danziger 1990).

I' IIIIN, 1975, p. 30.

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Uma das posições mais pertinentes, nesse sentido,parece-nos a do historiador da psicologia Watson (1971).Evidenciando a impossibilidade de uma definição episte­mológica da Psicologia baseada no conceito de paradigma,Watson considera a Psicologia enquanto ciência prescriti­va e não paradigmática. Com efeito, pode-se observar, aolongo de sua história, a existência de uma série de prescri­ções de diferentes naturezas (filosófica, epistemológica,religiosa, política, etc.) e freqüentemente antinômicas que,ao longo do tempo, determinam a construção das teoriase das práticas psicológicas diversificadas. A existênciadestas prescrições não deve porém ser considerada sinalde um estado pré-científico da psicologia e sim expressãoda natureza peculiar deste campo de saber, inevitavelmen­te e profundamente ligado à realidade cultural e socialonde se inscreve.

Juntamente com Watson, vários autores, analogamen­te preocupados em reafirmar o pluralismo conceptual emetodológico da psicologia moderna, optam por outras ca­tegorias epistemológicas, tais como "matrizes" (Figueiredo),"controvérsias" (Henle),ou "perspectivas" (Mecacci).

Em suma, o termo "paradigma" não parece ser, doponto de vista historiográfico, a expressão mais adequadapara definir a natureza epistemológica da psicologia emgeral e possivelmente da psicologia social, pois lhe impõeum modelo que, derivado das ciências naturais, acaba porreduzir a complexidade e multiplicidade que a constituem.Por isso, nesta minha comunicação, eu não utilizarei oconceito de "paradigma", mas evidenciarei, ao longo dahistória, a presença de duas diversas "matrizes", ou pers­pectivas, que são a meu ver raízes de duas posições dife­rentes no que diz respeito à questão da identidadelatino-americana, posições estas que poderiam se refletirinclusive na psicologia social de hoje.

Uma segunda observação de tipo histórico-metodoló­gico, preliminar à discussão do nosso tema, cabe nessemomento: refere-se à necessidade de evidenciar e de su­perar algumas posições preconceituosas, presentes nahistoriografia. A historiografia tradicional do século XX,aoconsiderar a especificidade latino-americana, cai, se,gundo

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Morse, no reducionismo. De fato, ao comparar a AméricaLatina e a América anglo-saxônica e ao analisar os respec­tivos processos históricos, esta historiografia assume umaperspectiva exclusivamente político-econômica e evolu­cionista, ou seja, não retrospectiva, avaliando o passadoem função da situação presente. Então destaca-se o pro­gresso norte-americano e deplora-se a posição de inferio­ridade da América Latina. Por sua vez, assumindo umaabordagem não apenas político-social, mas própria dahistória cultural, Morse assinala a originalidade da culturalatino-americana, pois esta "reformulou e manteve alter­nativas do período formativo da civilização ocidental quetêm um interesse cada vez maior para os grandes dilemasde nossos dias" (Morse 1995:29).

Evidencia-se assim o fato de que a avaliação e a defi­nição da especificidade latino-americana depende inclusi­ve da perspectiva histórica escolhida para encarar seupassado e seu presente, perspectiva que como vimos nãopode ser unívoca, à custa de perder a visão do processocomo um todo.

Se existe uma característica comum para definir aAmérica Latina do ponto de vista cultural e social, esta éa da pluralidade. Pluralidade que pode ser reconhecida emdiversos níveis: diferenças entre povos, etnias, grupossociais e manifestações culturais, definidas em muitoscasos pela expressão "mescla" ou "mestiçagem"; e dife­renças entre os processos históricos que caracterizamcada realidade nacional. Para nos limitarmos apenas aoaspecto da história cultural, podemos considerar comoexemplo a diferença existente entre o processo de forma­ção da intelectualidade brasileira, onde a universidade sósurgiu no século XX, e a dos demais países da AméricaLatina, tais como México, Peru, Argentina, onde a criaçãode análogas instituições de ensino remonta aos primeirosséculos da colonização.

Se a identidade latino-americana pode ser definidaenquanto pluralidade, como entender e expressar os sig­nificados e as funções desta pluralidade? Ou, noutraspalavras, como lidar com ela?

A compreensão e a redução da realidade latino-ameri­cana em termos de modelos descritivos e explicativos têm

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sido um desafio para as culturas do Velho e do NovoMundo, não apenas ao longo do século XX,mas desde osprimeiros séculos da colonização. Por causa disso, a Amé­rica Latina tem sido por vários autores definida como um"grande laboratório" onde o homem europeu buscara rea­lizar as utopias quinhentistas de criação de um homemnovo e de uma sociedade nova, bem como os sonhosmessiânicos que a partir do judaísmo perpassavam o mun­do medieval e renascimental. A América Latina seria, emsuma, o campo das possibilidades impossíveis do VelhoMundo, o poder de atuá-Ias neste contexto sendo conferidoaos europeus pelas condições políticas, militares e econô-micas da dominação colonial

Realizar um determinado projeto social através da do­minação colonial é o objetivo que aproxima o plano dacriação de um "corpo social" cristão pretendidO pelos mis­sionários dos séculos XVIe XVIIe os "projetos civilizató­rios" de políticos e intelectuais iluministas dos séculosXVIIIe XIX.Ambas as posições apóiam-se no pressupostode que é possível transformar o homem e a sociedade,fundamentado na concepção filosófica da plasmabilidadeda personalidade humana, idéia formulada já por Aristóte­les, mas sobremaneira dominante no panorama culturalocidental a partir dos séculos XVe XVI.

Ao mesmo tempo, porém, estas duas perspectivas nor­teiam-se em concepções profundamente diferentes quantoà€l modalidades de conceber e de utilizar as relações sociaise de estruturar o poder e o saber sobre o "outro".

Objetivo do percurso que aqui propomos é a análisedas modalidades em que a identidade latino-americana édefinida e construída por estas duas posições culturais, e oreconhecimento, em tais perspectivas, das modalidades deelaboração e de utilização dos conhecimentos psicológicos.

A concepção da identidade latino-americana de Antô­nio Vieira e a sua contribuição à defesa da identidadepsicossocíal dos índios

Em um famoso sermão de 1662, pregado na CapelaReal de Lisboa, na presença da Rainha Dona Luzia, após aexpulsão do autor e dos demais padres da Companhia do

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Maranhão, devido à sua posição em defesa da liberdadedos índios contra os colonos portugueses, o grande prega­dor jesuíta padre Antônio Vieira interpreta a festa daEpifania como o símbolo da criação de um novo povocristão no Novo Mundo. A partir do pressuposto de queEpifania simboliza o nascimento da Cristandade, Vieiradizterem havido duas "vocações da gentilidade" para parti­cipar do povo cristão, uma em ocasião do nascimento deCristo, por meio dos reis do Oriente, outra mil e quinhentosanos depois, por meio dos reis do Ocidente, especialmenteos reis de Portugal. A descoberta do Novo Mundo realizapara Vieira a profecia veterotestamentária de que Deus"ainda havia de criar um novo céu e uma nova terra". Oobjetivo deste descobrimento seria a criação de uma "Igre­ja nova que se havia de compor de nações e reis gentios,que n'ella receberiam a luz da fé, e sujeitariam suas coroasao império de Cristo (...) que é tudo o que temos visto nodescobrimento do Mundo Novo"z.Trata-se daquilo que, nolivroA História do Futuro3, Vieira denominará de "VImpé­rio", meta final da história do mundo. Mas se os portugue­ses foram inicialmente os colaboradores desta novacriação, agora tornaram-se seus perseguidores.

Estabelecendo uma analogia entre os Magos e as na­ções indígenas do Novo Mundo, Vieira alerta Portugal deque não poderá haver" Christandade nem Christandades"nas colônias sem que estejam abertos e livres os caminhospara trazer os "magos" à adoração de Cristo e para liber­tá-Ios da perseguição dos dominadores:

"um caminho para trazerem os gentios à fé, outro para oslivrarem da tyrannia: um caminho para lhes salvarem asalmas, outro para lhes libertarem os corpos ... Querer divi­dir estes caminhos e estes cuidados, é querer que não hajacuidado, nem haja caminho."

2. VIElRA, 1962, p. 10-12 passim.

3. Idem, 1976, v. 1 (Livro Anteprimeiro), edição crítica prefaciada e comentada porJosé Van Der Besselaar. Bibliografia, introdução e texto, Munster Westfalen,Aschendorffsche Verlagsbuchhandlung.Este livro foi escrito por Vieira na ocasião de seu exílio em Portugal e de seuprocesso pelo Tribunal do Santo Ofício e publicado póstumo e inacabado.

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"Dividir esses cuidados é destruir", afirma Vieira, e "porisso estão destruídas e deshabitadas todas aquellas ter­ras, em tão poucos anos; e de tantas e tão numerosaspovoações, de que só ficaram os nomes, não se vêem hojemais que ruinas e cemiterios."

E aqui Vieira reprova duramente a posição dos portugue­ses e demonstra a impiedade de sua conduta, comparando-aà de Cristo com os Magos evangélicos. Cristo, ele diz,

"defendeu-os (Magos) de tal maneira que não consentiuque perdessem a pátria, nem a soberania, nem a liberda­de: e nós não só consentimos que os pobres gentios queconvertemos, percam tudo isto, senão que os persuadimosa que o percam.,,4

Quanto à justificativa da escravatura dos índios funda­mentada na teoria da inferioridade racial, documentadapela cor da pele, Vieira afirma que as diferenças de cor sãodevidas apenas à menor ou maior proximidade do sol, eisso nada tem a ver com o direito à soberania que cadanação recebe de Deus. E neste ponto Vieira assume aimagem dos reis magos bíblicos como o símbolo do direitoà soberania política de todos os povos:

"Dos Magos que vieram ao Presepio, dois eram brancos eum preto, como diz a tradição: e seria justo que mandasseChristo, que Gaspar e Balthasar, porque eram brancos, tor­nassem livrespara oOriente,e Belchior,porque era pretinho,ficasse em Belempor escravo, ainda que fosse de SãoJosé?Bemopudera fazerChristo,que é Senhordos senhores; masquiz-nos ensinar que os homens de qualquer côr,todos sãoeguaes por natureza, e mais eguaes ainda por fé, se crêeme adoram a Christo, como os Magos.,,5

A utilização do discurso simbólico dos reis magos porVieira enquadra-se num contexto mais amplo (Cardini 1993):com efeito, a figura dos três reis (Melquior, Baltazar e Gaspar)que foram adorar o Messias guiados por uma estrela, descrita

4. VIElRA, 1976, p. 32-42 passim.

5. VIElRA, 1976, p. 43.

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nos Evangelhos, é recorrente ao longo das tradições oci­dentais e orientais e também na tradição portuguesa.

Referindo-se a esta tradição, Vieira proclama a plenainserção dos povos ameríndios no ecúmeno católico, inser­ção que todavia não é apenas religiosa e cultural, mastambém social e política. Assim, para Vieira a afirmaçãoda identidade pessoal e cultural do índio passa pela defesade sua identidade social, política e econômica e é condiçãopara a criação do novo corpo social cristão. Esta posiçãoenquadra-se perfeitamente. na teologia política tomistaprópria da Segunda Escolástica ibérica, que encarava" aIgreja como corpo místico e o Estado como corpo políticoe moral, os seres humanos podendo ser considerados as­sim numa perspectiva ao mesmo tempo cristã e natural, oque significava que os pagãos e os infiéis eram tambémcapazes de associações políticas" (Morse 1995: 43). Comefeito, é preciso lembrar que a doutrina teológico-filosóficaque foi definida como Segunda Escolástica ibérica é ocontexto cultural de formação do pensamento de AntônioVieira. Esta doutrina foi elaborada na Escola de Salamanca(1542-1560) por Francisco Suarez (1548-1617) e por Fran­cisco de Vitória (1534-1541), autor da primeira carta ame­ricana de direitos humanos, a Carta Magna de 10sindios,6que proclamava o direito dos povos indígenas à liberdadee à soberania e o direito das nações indígenas enquantoprovíncias do mundo. A contribuição de Padre AntônioVieira à afirmação da dignidade humana e civil dos índiosbrasileiros visa então a concretização no Brasil dos princí­pios formulados na Carta Magna de Francisco de Vitória,podendo ser considerada de vários pontos de vista (jurídi­co, social, religioso, etc.).

Não nos cabe aqui dar um juízo acerca da oportunidadepolítica e social da posição de Vieira, mas detectar quaisseriam, em sua ótica, os fatores constitutivos da identida­de psicossocial do índio, que é necessário preservar (sendoque outros elementos do modelo cultural dos nativos, porexemplo os banquetes antropófagos e outros "ritos supers­ticiosos e gentílicos", deveriam ser censurados).

6. Carta escrita em 1539 e publicada por VITÓRIA, 1989.

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A consistência da identidade psicossocial do índiodepende, segundo Vieira, de seu pertencer a um corposocial estruturado em diferentes níveis. Em primeiro lugar,é necessário manter os vínculos sociais próprios do núcleofamiliar indígena, como Vieira declara num documento:7"nunca dividirão mulher de marido, nem filhos de pais eainda nem sobrinhos de tios".

Em segundo lugar, o índio pertence a uma comunidadepolítica, ou nação, como o pregador jesuíta escreve emoutro documento:8 "não deixa de ser vassalo de seu rei ede seu republica o índio, como membro que é do corpo ecabeça política da sua nação, importando igualmente paraa soberania da liberdade tanto a coroa de penas como a deouro e tanto o arco como o cetro." Discutindo acerca dogoverno temporal das aldeias indígenas, Vieira observaque nelas o chefe deve ser índio.

Em terceiro lugar, o apego à aldeia e à terra são cons-titutivos da personalidade dos índios. Vieira observa:

"que mais importa com o índio o pedaço do tempo do anoque ele foi estar na sua aldeia a ocupar-se na lavouraprópria, que quanto há no mundo: porque só este é openhor que tem de certo sinal de sua liberdade, coisa queos índios por seu natural estimam sobre tudo.,,9

A importância atribuída ao trabalho que o índio realizaem sua própria terra é fruto de uma convivência e de umconhecimento profundo da personalidade indígena: nessesentido, a recomendação que Vieira faz acerca da necessi­dade do estudo da realidade indígena, inclusive dos idio­mas, "para a inteligência dos sujeitos a quem se prega ,,10

7. VIElRA, 1992. Modo como se há de governar o gentio que há nas aldeias doMaranhão e Grão-Pará.

8. Ibidem. Voto do Padre Antônio Vieira sobre as dúvidas dos moradores de SãoPaulo acerca da administração dos índios. Bahia, 12 de julho de 1694.Análoga observação aparece no Parecer sobre a conversão e governo dosíndios e gentios, feito pelo padre A. Vieira a instância do Doutor PedraFernandes Monteira.

9. VIElRA, 1992, p. 80-210 passim.

10. Ibidem, p. 83. Modo como se há de governar o gentio que há nas aldeias doMaranhão e Grão-Pará.

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nos Seminários destinados à formação dos missionários,reflete a postura e a formação pessoal do grande jesuíta:"Nós que os imos buscar (aos índios, ndr), somos nós quehavemos de estudar e saber a lingua"l1.

A ênfase no trabalho e na ação como expressão econstrução da identidade social do homem é um traço queaparece muito freqüentemente nos discursos de Vieira.Para ele, "cada um é o que faz, e não é outra coisa ... porqueas ações de cada um são a sua essência" (Sermão da Tercei­ra Dominga de Advento, citado em Bosi. O conceito éreiterado de forma sintética ao longo do Sermão: "O quefazeis, isso sois, e nada mais,,12.O trabalho é consideradoentão como o instrumento pelo qual o ser humano plasmaa si mesmo, independentemente de sua condição social eracial. É coerente com a visão antropológica de Vieira,enraizada na filosofia aristotélico-tomista, o fato da essên­cia humana manifestar-se do ponto de vista fenomênico,como eu-em-ação. O ser revela-se nos atos. Com efeito, aprópria duplicidade da substância humana - matéria eespírito - impõe que o ideal se materialize na prática.

À luz desta visão da personalidade humana, provávelherança do pensamento inaciano, 13 as razões da ênfase nodireito que o índio tem de trabalhar em suas terras apare­cem ainda mais claras. Se o trabalho é o fator expressivo econstrutivo do ser humano, trabalhar em condições dealienação propicia a constituição de uma identidade psi­cossocial alienada. Garantir que o índio possa realizar suaação no âmbito de sua propriedade e de seu contexto socialsignifica pôr as condições para o reconhecimento de suaidentidade. Nesse sentido, o trabalho vem a ser expressãoda identidade sociocultural do índio.

Evidencia-se, porém, que para Vieira a consideraçãoda identidade do índio não é apenas fim a si mesma e aoprojeto evangelizador em sensu estrito, mas coincide como

11. Ibidem, p. 83. Modo como se há de governar o gentio que há nas aldeias doMaranhão e Grão-Pará.

12. BOSI, 1992, p. 124-126 passim.

13. Cf. BOSI, 1992.

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vimos com a realização de sua esperança messiânica queconsidera o Brasil como a possibilidade concreta de realizara utopia político-religiosado "QuintoImpério do mundo".

A equivalência do Novo Mundo com o Fim da História,do novo espaço com o novo tempo, toma o Brasil o lugarda esperança e justifica a urgência da evangelização dosíndios, tendo em vista colaborar e apressar a realizaçãodeste novo tempo final da história humana.

Para Vieira, denunciar a situação de injusto cativeirodos índios é, portanto, uma necessidade urgente e umaresponsabilidade inevitável, pois a realização da profeciasó poderá completar-se através do empenho dos homensna luta pela paz e pela justiça. O V Império só poderáacontecer pela prática da justiça na vida social e política,sobretudo a respeito dos Índios. Assim a dinâmica dotempo, o percurso da história rumo ao seu destino finalimplica no compromisso do homem e da sociedade para oadvento da justiça na terra, especialmente naquela terraprometida que é a Terra de Santa Cruz.

A posição de Vieira, apesar da originalidade de suaexpressão, não é única. Conforme assinala Cardini (1991),o messianismo perpassa o pensamento medieval e chegaaté o 1492, interpretado pelos mesmos protagonistas daaventura marítima como a descoberta dos "novos céus eda nova terra" preanunciados no Apocalipse.

Num certo sentido, para Mircea Eliade (1991), o mes­sianismo fundamentaria desde suas origens a identidadedo homem americano: a América seria olugar onde poderiaser realizada aquela reforma religiosa que ficara incomple­ta na Europa, a vida na colônia seria para os emigranteseuropeus a possibilidade de uma nova vida, de um novonascimento. Na história da América Latina, porém, o mes­sianismo europeu assume características peculiares aoencontrar-se com análogos fenômenos presentes em vá­rias nações indígenas: a busca da "terra sem males" dastribos Guaranis é um exemplo disso.

Vieira encontra-se, então, no elo desta tradição que noBrasil assumiu, ao longo dos séculos XVII,XVIII,XIX,umpapel muito importante no âmbito da cultura popular e dos

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movimentos sociais, assim como vários viajantes estran­geiros documentam em suas observações realizadas emMinas Gerais, Rio de Janeiro, Maranhão e Nordeste comoum todo.

Acreditamos, todavia, que, apesar de as Américas se­rem teatros de várias formas de messianismo que defini­ram a identidade dos Novos Mundos nos moldes deesperanças escatológicas, a perspectiva de Vieira, e pos­sivelmente do messianismo luso-brasileiro, distancia-sebastante do conceito de progresso formulado pelos inte­lectuais norte-americanos ao longo dos séculos XVII eXVIII.Este conceito é baseado numa filosofiapolítica indi­vidualista, onde a instituição política é produto de umamera convenção social para refrear e compor os interessesindividuais, sendo o progresso e a esperança produto doesforço e da capacidade dos indivíduos (Morse 1995). Eesta diferença a nosso ver depende da concepção político­religiosa do jesuíta e de seu mundo cultural. Para Vieira, apossibilidade de uma ordem ecumênica mundial é basea­da na crença da natural sociabilidade do homem: trata-seda concepção do ser humano como animal político dematriz aristotélico- tomista.

Por outro lado, conforme assinala Pecora, "o Estadocristão pensado por Vieira não é jamais objeto autônomode política, mas objeto de teologia política", tratando-sede uma "forma encoberta da presença divina sob as espé­cies terrenas". Ao mesmo tempo, se "a missão providencialda política está formulada, a rigor, na própria definição deEstado cristão, a política que ele efetivamente pratica nãoencontra ainda uma correspondência satisfatória: ela aindaé incapaz de compreender-se a si mesma, segundo pensaVieira, como instrumento de atualização da presença divinana história. Assim, a concepção vieiriana de um Estado emque comungam Deus e os homens remete a uma potenciali­dade da história e, mais do que isso, a uma sua inevitávelrealidade futura, que não tarda ... É possível pensar esteEstado como uma latência do futuro no presente,,14.

14. VIElRA, 1992, p. 131-135 passim.

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Em síntese, se não fosse anacrônico o uso do termo,poderíamos dizer que, no pensamento de Vieira e da pers­pectiva cultural de que ele é porta-voz, a visão da identi­dade latino-americana e da integração do corpo social doBrasil assume um caráter "progressista".

Seria esta perspectiva uma das raízes históricas daafirmação da sociabilidade intrínseca do homem, da cren­ça na existência do "bem comum" e na necessidade doempenho humano para sua realização, a instância de liber­tação e de transformação social, o interesse pelos movi­mentos sociais e pelas experiências comunitárias desolidariedade social, que marcam de maneira original apsicologia social latino-americana?

América Latina na perspectiva dos iluministas dos sé­culos XVIII e XIX: "civilização versus barbárie"

Morse afirma que na América Latina dos séculos XVIIIe XIX, devido ao crescimento da população e à grandemultiplicidade dos tipos sociais, assiste-se ao longo dahistória a tendência à polarização da mesma em "civiliza­dos e bárbaros", o que impossibilitará a realização do idealpolítico da integração participatória da Segunda Escolás­tica. A dicotomia "civilização versus barbárie" aparece nasobras de vários intelectuais e políticos argentinos e nacorrespondência do mesmo Simon Bolivar. Isto, segundoMorse, refletia a consciência que os intelectuais e políticoslatino-americanos tinham na ocasião da Independência deseus respectivos países, acerca do "processo de desarti­culação" do "ideal ibérico da incorporação social": trata-seda dicotomização da sociedade em "gente de bom senso"e uma plebe cada vez mais enfurecida e inassimilável.

Na América Latina entre os séculos XVIII e XIX, conti­nua Morse, "a visão social ampla do período de Vitória edo barroco, que havia favorecido a infinidade de transaçõesnecessárias para incorporar (por mais assimétrica quefosse a forma de fazê-Io) as populações indígenas e mesti­ças das Américas, estava agora sendo substituída por um15enfoque excludente" .

15. MORSE. 1995. p. 77-95 passim.

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Encontramos a presença da dicotomia apontada porMorse no pensamento dos intelectuais e políticos brasilei­ros dos séculos XVIII e XIX.

A obra inédita do brasileiro Feliciano Joaquim de SouzaNunes, escrita - como o autor indica - 23 anos depois darealização de outro seu livro, mais famoso, os DiscursosPolíticos e Morais (1758), é dedicada, conforme atesta adedicatória contida no título, "aos Venturozos Indios da Villade Lavradio". O manuscrito, encontrado na Biblioteca públi­ca do Porto, consta de 123 folhas (frente-verso), de fácilleitura. O título - Política Brazilica -lembra outro texto muitofamoso: a Política Indiana de Juan de Solorzano Pereira, textoeste inspirador da política pombalina no que diz respeito àquestão indígena. Apesar do título, a intenção que aparececlaramente ao longo da obra de Souza Nunes é a de fazer umaapologia do Brasil como colônia portuguesa e os poucoselementos que se referem à realidade dos índios e da terrasão sempre abordados como expressões de uma condiçãoprimitiva a ser superada pelo esforço "civilizador".

Aos seus "incultos Patricios" índios, 16 Nunes quer ensi­nar preceitos de "política" (entendida no sentido amplo dotermo) visando a formação de sua personalidade e de suaidentidade sociais de cidadãos brasileiros. Tal objetivo ficaclaro na Prefação do Livro:

"Escrevo (...) para os meus Patrícios, (...) a quem adistancia das Cortes, a quem a falta dos Estudos, negaas brilhantes luzes, de que se fazem beneméritos. Epara aqueles, a quem huma dissimulada escravidão, hamais de duzentos annos, tem atados ao pezadissimojugo da ignorancia" 17.

Os ditames da Política são propostos no contexto de umavisão pessimista do mundo e da história, tônica esta bastantedifundida na literatura da época. Ia São enfatizadas a mudan-

16. l'iIUNES, f. 22b.

17. NUNES, f. 19.

18. AIRES, Mathias. Reflexões sobre a Vaidade dos Homens, citado por MASSIMI (1990).

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ça, a variabilidade, a contraditoriedade da condição huma­na e a conseqüente instabilidade da vida social:

"A cada passo se contradizem os homens: e se hoje des­prezão o que estimarão ontem; amanhã estimarão, o quedesprezarem hoje. Cada mudança da fortuna, he humavariedade do discurso,,19.

Tais considerações parecem-nos expressivas daquelaexperiência de crise e de desarticulação das idéias univer­salistas à qual referia-se Morse.

A temporalidade, a historicidade são vistos como fato­res constitutivos da existência humana e inscrevem a vidade cada sujeito dentro de limites e contingências determi­nadas. Nesse sentido, cada um ocupa no mundo e nasociedade o lugar que lhe foi atribuído pela história, aoqual é necessário que se adapte se quiser realizar bem suatarefa. Circunscrita dentro destas determinações, a perso­nalidade humana se expressa e se realiza na ação. Ohomem se constrói através do que faz. Se é verdade quealgumas circunstâncias determinadas definem o campo daação do indivíduo, este, por sua vez, pelo seu trabalho,pode modificar as ditas circunstâncias.

Todavia, ao aplicar estes ditames à situação dos índiosbrasileiros, Nunes parece-nos conceber a ação não en­quanto expressão da identidade do sujeito mas enquantoinserção num certo dinamismo histórico por ele identifica­do com o crescimento do Estado. Por isso, acaba por definiro trabalho humano como o trabalho organizado e reguladopelo Estado. Este será o caminho para o progresso na vidasocial e cultural, para cuja realização o índio deve abando­nar as tradições, hábitos, modalidades de relacionamentocom a natureza:

"Deixai, deixai, foge dos intrincados bosques; dos de­sertos valles, das impinadas serras. Lançai, lançai mãodos utilissimos arados. Lavrai, semeais as frutiferas ter­ras: colhei os sazonados frutos das mais honradas fadi-

19. NUNES. f. 14.

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gas: fadigas de que resultarão os mais solidos thesoirosdo Estado"zo.

"Passa das escuras sombras do gentilismo, às brilhantesLuzes da civilidade "Zl.

Após descrever a fecundidade das terras brasileiras,assim Nunes conclui seu discurso:

"Faze-te nas tuas acçoens, illustres criaturas de ti mes­mos .... Mostra ao teu soberano, ao mundo todo, que nãohe injuria da tua natureza, a barbaria em que te conservouaté agora o destino. Deixa,deixa a agreste vida, o humildetrato"zz.

O mundo rural e silvestre do índio é identificado aquicom a condição da "barbárie" enquanto que a "civilização"coincide com a construção da cidade. O "fazer-se pelasações" preconizado por Nunes implica, na realidade, a nega­ção da identidade sociocultural do índio. O trabalho toma-seassim negação, e não expressão, desta identidade.

A Política Brazilica consiste, em suma, num guia paraa vida individual e social, inspirada nos ditames da men­talidade ocidental da época, uma estranha mescla entre osfatores e as necessidades características da realidade so­cial da colônia e um modelo de vida que se refaz totalmenteao mundo sociocultural europeu. O índio, destinatário daobra, é dessa forma um interlocutor silencioso e inexpres­sivo de um discurso articulado fora de sua própria realida­de, sendo nele concebido apenas como objeto a ser cons­truído e não como sujeito da ação.

Parece-nos esta obra ser significativa da segmentação,da crise, da dificuldade do pensamento ibem-americanoda época em conceber sua ide~tidade de forma própria.Entrar no mundo da "civilização" e das Luzes implica parao intelectual latino-americano a recusa de sua autonomia

20. NUNES. f. 24-27 passim.

21. ANDRADA E SILVA. 1965. p. 9-11 passim.

22. ANDRADA E SILVA. 1965.

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cultural, a renúncia ao sujeito complexo que dá forma àidentidade latino-americana, sujeito marcado pela plurali­dade, sujeito "mestiço", em favor de um sujeito abstrato,artificialmente construí do pela lei do trabalho e da adap­tação a um determinado sistema político e social. A des­consideração para com o índio acima assinalada é entãofruto desta posição cultural do autor.

A antinomia "civilização versus barbárie" encontra-setambém nos escritos dos políticos brasileiros do séculoXIX. Ao planejar o novo Estado brasileiro, após teremconseguido a independência de Portugal, estes políticosdeparam-se com o problema da assim chamada "civiliza­ção" , ou "domesticação" dos índios, tendo em vista a criaçãodo cidadão da nova sociedade nacional. Entre outros, esco­lhemos aqui as considerações escritas por dois importanteshomens políticos da época, acerca desta questão: José Bo­nifácio de Andrada e Silva e José da Silva Lisboa.

O estudo de José Bonifácio acerca dos índios brasi­leiros (Apontamentos para a civilização dos Índios bravosdo Brasil, de 1823, documento destinado a ser apresen­tado, discutido e aprovado no âmbito da AssembléiaGeral Constituinte e Legislativa) é explicitamente deter­minado pela necessidade da colonização dos índios, aser conseguida, não através do poder militar, e sim atra­vés de um processo de aculturação. Para realizar esteobjetivo, é necessário, segundo o autor, "conhecer pri­meiro o que são e devem ser naturalmente os Índiosbravos, para depois acharmos os meios de os converter noque nos cumpre que sejam ".

A seguir, é esboçada uma descrição das principaiscaracterísticas do que seria, segundo José Bonifácio, otemperamento destas populações: estas seriam "povosvagabundos e dados a contínuas guerras e roubos". Taiscomportamentos são explicados por José Bonifácio nabase de uma teoria acerca do "homem no estado selvagem ",inspirada na filosofia iluminista da época (notadamente naantropologia mecanicista de Lamettrie). Uma primeira ca­racterística do homem no estado selvagem é a ausênciadas necessidades próprias do homem "civilizado", queestimulam a atividade e o trabalho:

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"com efeito, o homem no estado selvático e mormente oíndio bravo do Brasil,deve ser preguiçoso; (...)porque nãotem idéia de propriedade nem desejos de distinções evaidades sociais, que são as molas poderosas que põemem atividade o homem civilizado."

Um segundo aspecto que diferencia o "selvagem" do"civilizado" é a ausência daquele tipo de racionalidadecaracterística do "espírito científico" europeu:

"Para ser feliz,o homem civilizadoprecisa calcular, e umaaritmética, por mais grosseira e manca que seja, lhe é indis­pensavel. Mas o índio,bravo, sem bens e sem dinheiro,nadatem que calcular, e tôdas as idéias abstratas de quantidade

e número, sem as quais a razão do homemEOUCO difere doinstinto dos brutos, lhe são desconhecidas" 3.

A própria sociabilidade dos índios é interpretada porJosé Bonifácio como puro produto do instinto: "são pois aspaixões que não podem ser satisfeitas cabalmente sem areunião de novos braços e vontades, as que obrigam osselvagens a reunir-se em tais quais aldéias,,24. A possibili­dade de modificar a realidade humana e social assimretratada baseia-se, para José Bonifácio, num postuladoambientalista claramente explicitado:

"Daqui, porém, não se deve concluir que seja impossívelconverter estes bárbaros em homens civilizados. Muda­das as circunstâncias, mudam-se os costumes. Comefeito,o homem primitivo nem é bom, nem é mau naturalmente;é um mero autômato cujas molas podem ser postas emação pelo exemplo, educação e benefícios,,25.

A civilização sendo entendida como modelo a serrealizado, resta necessário definir a estratégia para suaconcretização. A proposta de atuação, para José Bonifá­cio, consiste na criação dos métodos e dos meios parapossibilitar a "pronta e sucessiva civilização dos Índios",

23. LEITE, 1992, p. 329.

24. ANDRADA E SILVA em Pepitas citado por MASSIMI (1990).

25. ANDRADA E SILVA, 1965, p. 9-11 passim.

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entre eles, a introdução do hábito do trabalho regular("sejàm forçados a ganhar e segurar o seu sustento à custade seus trabalhos").

Ao mesmo tempo, a adaptação dos índios ao novomodelo sociocultural, e, em particular, à nova organizaçãodo trabalho, deve ser realizada gradativamente, "acostu­mando-os a pouco a pouco" ao novo modo de vida e es­timulando neles "novas necessidades" ("se vestir melhor,ter suas casas mais cômodas e asseadas, ..."), através daintrojeção no índio da exigência do "bem-estar" própria dohomem "civilizado" (de maneira que os nativos "façamgrande conceito da fartura em que vivemos e a que elespodem chegar"). 26

Nessa perspectiva nasce a ideologia do "caráter nacio­nal brasileiro", que, conforme foi apontado na lúcida aná­lise de Dante Moreira Leite, manipula os traços psi­cológicos na construção de teorias e conceitos que aodefinir características coletivas do "brasileiro" refletem, naverdade, os interesses do poder encobertos pelo manto dodiscurso científico: sendo assim, tal ideologia não repre­senta "uma autêntica tomada de consciência de um povo,mas apenas um obstáculo no processo pela qual umanação surge entre outras, ou pelo qual um povo livre surgena história,,27. José Bonifácio, ao esboçar esta doutrinanoutro seu escrito, retrata os brasileiros como entusiastasdo belo, amigos da liberdade e da justiça, "ignorantes porfalta de instrução, mas cheios de talentos, apaixonados dosexo" e conclui enfaticamente: "serão os Atenienses daAmérica,,28. No século XIX, o processo de organização dasociedade nacional acarreta a necessidade de nivelar ossujeitos sociais e culturais presentes no Brasil num protó­tipo nacional, com função normalizadora. Após José Boni­fácio, vários outros políticos e sociólogos retomarão estadoutrina propondo-a como resposta fictícia (pensamosnós) à pergunta acerca da identidade: quem somos nós? A

26. ANDRADA E SILVA, 1965.

27. LEITE, 1992, p. 329.

28. ANDRADA E SILVA em Pepitas citado por MASSIMI (1990).

doutrina do caráter nacional representa então um exemplode como o uso de um certo modelo unívoco que pretendaser definidor da identidade latino-americana pode velar enivelar os processos e os sujeitos sociais realmente expres­sivos desta identidade. Retomando as observações críti­cas propostas no início desta comunicação, quandodizíamos que a categoria de paradigma é um recursoconceptual inadequado, pois trataria de forma redutiva aquestão da identidade, podemos afirmar que a ideologiado caráter nacional surgiu justamente pela pretensão deproporcionar um paradigma para uma psicologia socialque normalizasse e uniformizasse a pluralidade da reali­dade social nos padrões de um modelo preconcebido.

A dicotomia "civilização versus barbárie" e a apologiado trabalho como fator de aculturação e como base domundo social encontra-se, também, nos escritos de outropolítico brasileiro, José da Silva Lisboa. De modo análogo,Lisboa (1825) considera a ação e o trabalho humano comoparte do movimento da grande máquina do universo, má­quina que poderá ser harmoniosamente regulada pelasleis do liberalismo político. A civilização aqui é concebidacomo movimento regulado desta máquina, enquanto queo estado de barbárie é entendido como condição primitivado homem, relacionada à sua materialidade e imanência ànatureza, que deve ser superada pelo trabalho. O trabalhoseria então o fator indispensável da civilização:

"Se todos os indivíduos se submetessem à certa porção detrabalho regular e escolhido conforme o seu genio, ounatural talento (...) a Geral Industria seria a mais bemdirigida e productiva,( ...) muito mais se as Nações Cultasadoptassem o Liberal Systema de Commercio Franco eLegítimo" (Lisboa 1825:8-9).

Na perspectiva de Silva Lisboa, a ênfase na práxis e notrabalho relaciona-se explicitamente à afirmação do siste­ma capitalista. De qualquer forma, a identidade latino-ame­ricana dissolve-se aqui no objetivo de enxertar-se como"Nação Culta", no contexto da "Geral Industria" regida pelo"Liberal Systema de Commercio Franco e Legitimo".

Se, na perspectiva de Vieira, a composição e integraçãodos diferentes sujeitos que definem a realidade social bras i-

BIBliOTECA ROSÁlIA FIGUEIRA SllVEIRA

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leira identificava-se com a categoria de "corpo social cris­tão", sendo que este era expressão de um sujeito ativo noâmbito da sociedade brasileira em formação - na perspec­tiva dos autores do século XIX acima apresentados, taissujeitos passam a ser considerados como peças de ummecanismo maior, seja este mecanismo a grande máquinado universo ou o Estado organizado, ao qual eles devemintegrar-se através do trabalho, sendo este concebidocomo a única forma de participação deles ao "projetocivilizador". Surge também o problema da adaptação des­tes sujeitos ao sistema (sistema de trabalho, sistema so­ciocultural, sistema político), sendo a alienação entre elese o sistema, expressa na antinomia "barbárie versus civi­lização", o pressuposto básico desta relação.

Neste contexto, esboça-se uma nova função dos conhe­cimentos e das práticas psicológicas. Saber significa tam­bém controlar e modificar o sujeito para que ele setransforme em indivíduo "civilizado", ou seja, "adaptado"(ou conforme palavras utilizadas pelos autores do séculoXIX, "domesticado"). O saber sobre o outro identifica-secom o poder sobre o outro.

Parece-nos que esta posição marca também a discus­são acerca da identidade latino-americana travada pelosintelectuais brasileiros nas primeiras décadas do séculoXX:Nina Rodrigues, Tobias Barreto, SilvioRomero,OliveiraViana, todos eles adotam a tese da inferioridade latino­americana, na perspectiva das teorias racistas dominan­tes na época. Mesmo os que discordaram das posiçõesracistas, tal como Manoel Bonfim, dificilmente conse­guem evitar a armadilha da antinomia "civilização ver­sus barbárie" e assumem eles também a tarefa de jus­tificar a "barbárie" latino-americana, apesar de recorrer aoutro tipo de explicações (sociais, econômicas, políticas).Trata-se, em suma, do que João Cruz Costa definiu comoo "complexo de inferioridade" do intelectuallatino-ameri-cano (Costa 1956:18).

Em suma, a antinomia "civilização versus barbárie"expressa um modo de conceber o projeto social e nesteâmbito o trabalho, em função de um abstrato conceito decivilização que elimina a pluralidade dos sujeitos reais e

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encobre o exercício do poder de alguns. Inclusive a criaçãode um certo tipo de conhecimento social onde a pluralida­de é reduzida em termos de uma ideologia, poderíamosdizer de um paradigma dominante, acaba por ser funcionala esta posição.

Identidade da psicologia latino-americana: perspecti­vas possíveis.

O sociólogo chileno Pedro Morandé observa que aperspectiva historiográfica dominante nas décadas passa­das definira o enfoque sobre á América Latina no contextoda modernidade a partir das questões que foram debati­das na ocasião do surgimento dos estados nacionais, naprimeira metade do século XX, considerando a históriaanterior e a formaçãodo ethos barroco em termos de pré-his­tória, prescindíveis do ponto de vista da interpretação e dasolução dos desafios do presente. Num certo sentido, pon­do-se em continuidade com a dicotomia iluminista "civili­zação versus barbárie ", esta historiografia identificara abarbárie com o período colonial da América Latina, sendoa origem da civilização apontada na criação dos estadosNacionais. Isto deriva, segundo Morandé (1987),de doisfatores: a hipervalorização do papel do Estado e do merca­do na história dos povos latino-americanos; e a assunçãoacrítica de modelos interpretativos relacionados ao con­texto europeu, ou em outras palavras de um critério euro­centrista. Pelo contrário, afirma Morandé, o barrocorepresentou para a América uma cosmovisão onde cabiamtodos os povos e todas as peculiaridades do ambientenatural, e que oferecia a possibilidade de participar deum verdadeiro ecúmeno, cujos sujeitos não eram os es­tados e sim os povos. Podendo ser caracterizado pelasíntese cultural e pela experiência social da mestiçagem,o Barroco aponta para a pluriformidade do mundo e danatureza como elementos determinantes da experiênciasocial e cultural do homem, corrigindo as tendências àuniformização e ao eurocentrismo. O Barroco define en­tão um sujeito social e político caracterizado pela plura­lidade, onde toda síntese constitui-se num processodramático e fecundo de novidade. A um conceito de iden­tidade cultural baseado na diferenciação-por-oposição,como, por exemplo, é a dicotomia civilização-barbárie,

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acima considerada, o Barroco opõe uma visão da identida­de como participação de experiências e sujeitos diversifi­cados numa síntese complexa.

Não se trata aqui de uma saudosa e romântica volta aum passado mítico, mas de compreender que a do Barrocoé uma matriz cultural e social viva ainda hoje, principal­mente nas culturas populares da América Latina, as quaisdiferentemente da Academia, dos intelectuais e políticos,têm preservado a memória de suas origens, constantemen­te atualizadas no confronto com os desafios do presente.Segundo Morse, o Barroco constitui na América Latina umamatriz originária de sentimento e pensamento que "possuiuma admirável capacidade de auto-renovação" (Morse1995: 156). Assim como Morandé e Morse, Gilberto Freyretambém assinala a originalidade da cultura latino-ameri­cana, "uma cultura - ele escreve - que se desenvolve comdiferenças, contrastes, contradições que, por vezes, seinterpenetram, se harmonizam, se completam em culmi­nâncias, voltando, porém, quase sempre, no cotidiano, emcontrastes a ser contrastes, as diferenças a ser diferenças,as contradições a ser contradições" (Freyre 1975: 115).Qual é a meu ver o significado destas observações para ospsicólogos sociais latino-americanos?

Em primeiro lugar, cabe a afirmação de que o objeto dapsicologia social latino-americana não é univocamente de­finido e determinado, mas constitui-se a partir dos proces­sos sociais e culturais peculiares às diversas realidadeslatino-americanas. A Psicologia Social deve então reconhe­cer a existência destes processos e descrevê-Ios, mais doque pretender enquadrá-Ios e explicá-Ios em termos deteorias preconcebidas e inspiradas a modelos culturaisalheios. É preciso levar em conta a constituição peculiardas culturas latino-americanas, pois censurar esta pecu­liaridade em nome de um ideal de ciência social unívoca euniversal seria na realidade construir uma nova ideologia.A memória histórica pode contribuir a esclarecer quais ossujeitos e os processos socioculturais significativos destaconstituição. A nosso ver, esta é uma condição fundamen­tal para que a Psicologia Social na América Latina possaassumir uma função autenticamente libertadora.

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Além do mais, ao concluirmos este percurso pelassendas da história cultural latino-americana, podemos re­conhecer a existência, ao longo do tempo, de matrizesculturais daquela Psicologia social que vários autores(Montero 1996; Martín-Baró 1986) consideram original­mente latino-americana, cujas características peculiaresseriam o interesse pelo coletivo e pelas comunidades, oposicionamento social a favor das minorias oprimidas edos movimentos sociais, a práxis visando a transformaçãosocial e individual, a incorporação das culturas populares,a participação social. Se, conforme frisara recentementeSilvia Lane (1996) numa entrevista, retomando a perspec­tiva proposta por Antonio Ciampa no livro A Estoria doSeverino e a História da Severina, a questão central dapsicologia, e da psicologia social em particular, é a cate­goria de identidade e se identidade é metamorfose, semdúvida esta definição de identidade aplica-se perfeitamen­te ao contexto socioculturallatino-americano, ao longo detoda sua história. Podemos mesmo dizer que a originalida­de da perspectiva latino-americana consiste em conceber aidentidade não como processo de homologação, uniformiza­ção e eliminação das diferenças, mas pelo contrário comocontínua transformação, como metamorfose, como dinâmicade integração de realidades múltiplas e às vezes contrastan­teso E podemos afirmar que esta característica é produto deuma história, mas é também uma instância crítica com rela­ção ao processo de globalização que invade o nosso presentee, quem sabe, uma esperança para o futuro. Mas que tudoisso se tome, como Vieira sonhava, a construção da Históriado Futuro, depende de uma consciência crítica e de umaprática libertadora que, conforme Lane enfatiza, sejam capa­zes de investir e transformar o cotidiano.

Referências bibliográficas

ANCHIETA, J. (1977). Teatro de Anchieta. São Paulo, Loyola.

ANDRADA e SILVA, J.B. (1965). Apontamentos para a Civiliza-ção dos Índios Bravos do Império do Brasil. Santos, InstitutoSantista de Estudos Políticos (1823, Inédito).

BARNES, B. (1982). T.S. Kuhn and Social Science. New York,Columbia University.

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