psicodrama e violência doméstica

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39 HOMENS E MULHERES ENVOLVIDOS EM VIOLÊNCIA E ATENDIDOS EM GRUPOS SOCIOTERAPÊUTICOS: UNIÃO, COMUNICAÇÃO E RELAÇÃO Psicóloga e mestre em Psicologia Clínica pela Universidade de Brasília (UnB), psicodramatista didata e supervisora pelo Centro de Psicodrama de Brasília (CPB), terapeuta de famílias e casais pelo Instituto de Pesquisa e Intervenção Psicossocial – (Interpsi), professora da Universidade Católica de Brasília (UCB) e coordenadora do Núcleo de Enfrentamento à Violência e outras Vulnerabilidades da Universidade Católica de Brasília (NEVV - UCB). RESUMO Este trabalho é realizado com homens e mulheres envolvidos com violência intrafamiliar em Brasília. Após entrevista individual, essas pessoas são encaminhadas pelo Ministério Público ou pelos juizados para grupos em que mulheres e homens poderão ser atendidos separadamente ou em conjunto. Participam homens e mulheres, casados(as) e descasados(as) – com ou sem seus companheiros(as). Todos se dizem vítimas um do outro e apontam a agressão como estratégia de defesa e de educação dos filhos. No trabalho socioterapêutico com modelo sociodramático, preponderou a informação dos casais sobre sua união em pouco tempo de relacionamento e as fantasias individuais, não reveladas, como orientadoras da forma de comunicação que expressa a frustração mútua. PALAVRAS-CHAVE Violência. Violência contra a mulher. Comunicação. Psicodrama. Maria Eveline Cascardo Ramos RBPv21n1.indd 39 12.04.13 12:48:32

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Psicodrama e violência Doméstica

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    HOMENS E MULHERES ENVOLVIDOS EM

    VIOLNCIA E ATENDIDOS EM GRUPOS

    SOCIOTERAPUTICOS: UNIO, COMUNICAO

    E RELAO

    Psicloga e mestre em Psicologia Clnica pela Universidade de Braslia (UnB), psicodramatista didata e supervisora pelo Centro de Psicodrama de Braslia (CPB), terapeuta de famlias e casais pelo Instituto de Pesquisa e Interveno Psicossocial (Interpsi), professora da Universidade Catlica de Braslia (UCB) e coordenadora do Ncleo de Enfrentamento Violncia e outras Vulnerabilidades da Universidade Catlica de Braslia (NEVV - UCB).

    RESUMOEste trabalho realizado com homens e mulheres envolvidos com

    violncia intrafamiliar em Braslia. Aps entrevista individual, essas pessoas so encaminhadas pelo Ministrio Pblico ou pelos juizados para grupos em que mulheres e homens podero ser atendidos separadamente ou em conjunto. Participam homens e mulheres, casados(as) e descasados(as) com ou sem seus companheiros(as). Todos se dizem vtimas um do outro e apontam a agresso como estratgia de defesa e de educao dos filhos. No trabalho socioteraputico com modelo sociodramtico, preponderou a informao dos casais sobre sua unio em pouco tempo de relacionamento e as fantasias individuais, no reveladas, como orientadoras da forma de comunicao que expressa a frustrao mtua.

    PALAVRAS-CHAVEViolncia. Violncia contra a mulher. Comunicao. Psicodrama.

    Maria Eveline Cascardo Ramos

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    ABSTRACTThis work was developed with men and women involved in domestic

    violence in Brasilia. After being individually interviewed, these people are referred by the Department of Justice or judges to groups, where women and men can be treated separately or together. The groups can be attended by both women and men, whether they are married or single, together or without their partners. All of them consider themselves victims of the other gender, and consider violence to be a mechanism of defense and educational strategy for their children. During the socio-therapeutic work using a sociodramatic model, it transpired that the information given by these couples about their short-term relationship and their unrevealed individual fantasies inform the communication patterns of such couples that are characterized by mutual frustration.

    KEYWORDSViolence. Violence against woman. Communication. Psychodrama.

    INTRODUOA violncia e suas expresses, principalmente a partir o final do sculo

    XX, tm instigado profissionais da Sade, da Justia, da Educao, dos Direitos Humanos, ao estudo e pesquisa quanto etiologia e prtica contra a criana e a mulher. Sabe-se que um problema complexo, multifatorial, que demanda a ateno de diversas instncias governamentais e no governamentais.

    Tanto os homens como as mulheres em situao de violncia parecem sentir necessidade de se defender e de defender seu lugar na famlia e, principalmente, no casal, como se fossem pessoas em competio pela autonomia. Isso porque um s se percebe reconhecido quando se sobrepe ao outro, no quando se v em situao de igualdade. Em especial o homem, na populao estudada, percebe o equilbrio na diferena que tende para a superioridade masculina. A cooperao e a harmonia, nesse contexto, do lugar competio pelo comando da relao. A linguagem possvel passa a ser a da agresso, que se transforma em estratgia de defesa e de educao nessas famlias, tornando-se um padro de comunicao tanto para homens como para mulheres nos papis conjugais e parentais, o que vulnerabiliza os respectivos subsistemas (RAMOS; SANTOS; DOURADO, 2009).

    Imerso nessa realidade surge este relato de experincia socioteraputica

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    que apresenta uma pesquisa em interveno em andamento, cujo trabalho segue o modelo sociodramtico de interveno com grupos.

    O Ministrio Pblico do Distrito Federal e Territrios (MPDFT), pelo Setor de Medidas Alternativas (Sema) e o Tribunal de Justia do Distrito Federal e Territrios (TJDFT), mantm, com universidades locais, parcerias para o trabalho jurdico e psicolgico com os autores de fatos de violncia. Desse modo, a equipe do Ncleo de Enfrentamento Violncia e outras Vulnerabilidades da Universidade Catlica de Braslia (NEVV - UCB), vem trabalhando desde 2007, com homens e mulheres envolvidos em situao de violncia contra a mulher.

    H um ano iniciamos o trabalho com um grupo composto por homens e mulheres, casados com ou sem seus companheiros(as) e descasados, todos envolvidos em violncia contra a mulher, das classes C e D, como a maioria da populao atendida pelos Semas, a esse grupo que nos referimos neste estudo.

    REFERENCIAL TERICOMoreno (1975) afirma que a unio conjugal implica a unio dos

    tomos sociais dos parceiros. Embora nenhum dos dois conhea todas as relaes emocionais do outro, cada um traz de seus tomos particulares os elementos com os quais, juntos, vo formar um terceiro tomo social. A par disso, ambos ganham outros papis como o de marido, esposa, dona de casa, provedor.

    Os papis adquiridos com o casamento, e o prprio casamento, resultam em satisfaes novas, mas tambm trazem novos conflitos. So papis e contrapapis a aprender e a desempenhar sem ensaio. Pode-se, ento, entender que os dois cnjuges mudam de comportamento em funo das relaes que vm dos papis novos que chegam com a unio (MORENO, 1975).

    Quando Moreno formula a Teoria dos Papis, ele os conceitua como uma unidade cultural de conduta e os apresenta como um conjunto de possibilidades identificatrias do ser humano. Os papis psicodramticos, como expresso das distintas dimenses psicolgicas do eu apresentam a versatilidade potencial das representaes mentais. Moreno prope, ainda nessa teoria, o papel como uma cristalizao final de todas as situaes em uma rea especial de operaes por que o indivduo passou... (MORENO, 1975, p.206).

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    Diante dessas consideraes, percebemos que papis como o de companheiro e companheira de vida se estruturaram nas identificaes e na diferenciao do eu, bem como na bagagem cultural significativa de cada um. O desempenho do papel de companheiro(a), assim como o de outros papis, pode revelar ou sugerir representaes mentais acerca dos relacionamentos afetivos vividos ou percebidos individual e transgeracionalmente pelas pessoas, alm de representar a traduo dos elementos introjetados durante o desenvolvimento psquico. Como o desempenho do papel a expresso psicodramtica do papel aprendido, ele envolve a comunicao verbal e no verbal que encontra no outro o receptor de sua mensagem.Temos ainda que os papis se desenvolvem em funo do gnero, o que nos leva a pensar as relaes a partir dos papis de gnero.

    Em uma perspectiva sociocultural, Madureira (2010) enfatiza a dimenso cultural com cunho relacional e poltico. Contemporaneamente, as mulheres, pela situao de desvantagem, comearam a questionar posies calcadas no gnero a partir do patriarcado, que dava ao homem o lugar de poder e controle e mulher, o de subordinao. Na metade do sculo XX, Simone de Beauvoir (1949)1, citada por Toro-Alfonso (2010), j via a inferioridade da mulher como fruto de doutrinamento cultural, distinguindo sexo e gnero e abrindo espao para mudanas nas relaes entre homens e mulheres, inclusive no casal.

    A assimetria com o ganho para o homem se mantm, no sentido de corresponder aos esteretipos sociais. Tm-se as masculinidades atreladas independncia, autoridade, superioridade, infidelidade, enquanto s mulheres solicitada uma adequao ao masculino, que implica oposio e ajustamento ao homem e em dependncia, submisso, fidelidade e passividade. Esse olhar binarista e reducionista, embora seja, at certo ponto, explicativo das expectativas acerca do papel da mulher, pode ser responsvel pela naturalizao da violncia masculina e pela invisibilidade da violncia praticada pelas mulheres.

    As relaes homem-mulher tm mudado nos diferentes contextos, desde o profissional at o casamento. A famlia hoje se apresenta em configuraes tradicionais como pai, me e filhos ou em organizaes mononucleares, chefiadas por mulheres sozinhas (DINIZ NETO e FRES-CARNEIRO, 2005), o que revela uma independncia da mulher em relao ao homem.

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    A violncia no casal, entretanto, no pode ser vista apenas como violncia de gnero, mesmo porque a violncia sempre esteve presente nas relaes humanas. , como coloca Mynayo (1994), biopsicossocial e precisa ser estudada em sua dimenso scio-histrica, buscando-se entender momentos e atravessamentos polticos, psicolgicos, da individualidade, do direito, das instituies. A perspectiva de gnero, quando nica explicao para a violncia conjugal, induz a uma guerra dos sexos, que impede a autoavaliao, leva vitimizao dos envolvidos e impossibilidade de negociao. No casamento, a violncia est ligada, entre outros fatores, s expectativas entre os cnjuges, dinmica conjugal e, principalmente, comunicao construda por eles durante o relacionamento. Hirigoyen (2006) expe sobre a violncia psicolgica, dando-lhe tanta importncia quanto violncia fsica e colocando-a como ainda mais devastadora. Essa colocao releva a importncia da violncia psicolgica que tambm ocorre por meio da comunicao, embora sutil, e impe humilhao a(o) outro(a). A violncia fsica, por seu turno, acontece por uma comunicao corporalmente agressiva, mas traz, em si, a dor moral do aviltamento, da inferioridade. Isso mostra que a violncia psicolgica inerente a todas as formas de violncia, mesmo sendo de difcil reconhecimento por no deixar marcas visveis fisicamente.

    Para falar de violncia no casal ou qualquer tipo de violncia, imperioso abordar alguns postulados da teoria da comunicao. Pode-se, primeiro, lembrar que o processo comunicacional ocorre atravs da troca de cdigos que transmitem significados individuais na tentativa de manter uma interao lingustica (GRANDESSO, 2011). Se esse cdigo no estiver disponvel aos envolvidos emissor e receptor a comunicao acontecer de qualquer forma, pois, como disseram Watzlawick, Beavin e Jackson (1978, p. 44): impossvel no comunicar. Entretanto, a comunicao pode no ocorrer de forma clara, embora comunicao no seja uma palavra fiel, se pensarmos que ambos os comunicadores enviam e recebem a mensagem impregnada de significados pessoais, o que pode enviesar tanto a emisso quanto a percepo. Por outro lado, mesmo quando o cdigo est disponvel ainda ocorrem equvocos, uma vez que o relacionamento humano gera a linguagem e, principalmente, a

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    Nota:1. De Beauvoir, S. El segundo sexo. Nova york: Random House Mondadori, 1949.

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    compreenso do contedo. Essa compreenso est ligada reconstruo do significado, que um investimento individual, desenvolve-se desde o nascimento, mas , tambm, produto dos relacionamentos. Gergen (1994)2, citado por Grandesso (2011, p. 64), pressupe que no o indivduo que preexiste ao relacionamento e inicia o processo de comunicao, mas as convenes de relacionamento que permitem que a compreenso seja alcanada.

    Por fim, considera-se o contedo da mensagem, tal como Watzlawick, Beavin e Jackson se referiram a este e relao dos comunicantes, como pertinentes definio de eu e outro, pois os fatos comunicados so os que ocorrem dentro da relao e no fora dela (WATZLAWICK; BEAVIN; JACKSON, 1967). A aceitao do eu do outro permite a aceitao do contedo da mensagem e a concordncia no nvel da relao.

    Nesta experincia destacamos alguns tipos de comunicao, principalmente aqueles diretamente ligados agresso e violncia. Comeamos pela desqualificao da comunicao do outro, que implica rejeio, uma vez que nega que essa pessoa possa falar fazer ou ser algo que interessa. Entretanto, mesmo sendo humilhada, a pessoa que fala tem sua existncia reconhecida. Outro conceito, o de desconfirmao, pode ser considerado como uma punio cruel, por ignorar o outro. A desconfirmao do outro leva-o alienao total e, se persistente, at perda do eu. Portanto, uma comunicao patolgica. Significa: voc no existe (WATZLAWICK; BEAVIN; JACKSON, 1967).

    Como este trabalho e toda a interveno foram construdos a partir dessas compreenses, apresenta-se, a seguir, a trajetria metodolgica.

    METODOLOGIAO trabalho se inicia aps o encaminhamento de um juiz de Direito e

    do Sema para um grupo misto, que envolve casais, homens e mulheres, reunidos pelo mesmo motivo: violncia contra a mulher. Toda a interveno calcada no exerccio da percepo de si e do outro e na comunicao intraconjugal e intrafamiliar. Os encontros priorizam alguns temas decorrentes das caractersticas dos participantes e demanda em si e, quando h emergncia de alguma situao de conflito ou dificuldade, ela privilegiada.

    Este um grupo aberto com, em mdia, 30 participantes por encontro,

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    composto de homens e mulheres, com ou sem seus companheiros(as), todos envolvidos em situaes de violncia contra a mulher. Esses grupos so reunidos aos domingos, em uma escola da comunidade e se desenvolvem em 16 a 18 encontros, cada um com trs horas de durao, o que corresponde a um semestre letivo.

    Alguns participantes, no final do trabalho, pedem para continuar e sempre so aceitos em seus pedidos; por isso falamos em mdia de participantes, pois a frequncia, algumas vezes, excede o nmero encaminhado regularmente e poucas vezes h desistncia de algum membro do grupo.

    Desenvolve-se o modelo sociodramtico de interveno com grupos, obedecendo s trs etapas: o aquecimento, momento em que eles so acolhidos em seus sentimentos, queixas e avaliaes; segue-se a ao que contempla o resgate das relaes pessoais e objetais por meio de dramatizaes e outros recursos psicodramticos e, por fim, o momento de compartilhar e analisar o que foi vivido.

    As intervenes se realizam em grupos socioteraputicos (RAMOS, 2008), com abordagem sociodramtica. Estes encerram uma proposta que se destina ao atendimento de pessoas que tm problemas com a lei, com as convenes sociais, com a alteridade. Tm carter investigativo, preventivo e de tratamento e facilitam condies de promoo da qualidade de vida, bem-estar e sade social e mental da clientela atendida. Nessa interveno, o enfoque o trip indivduo-lei-sociedade, envolvendo aspectos intrapsquicos e de identidade social que do suporte s interaes interpessoais e comunitrias. Como o problema estreitamente relacionado s interaes, os papis individuais e os limites sociais so os primeiros objetos de ateno e tratamento na interveno socioteraputica.

    O trabalho socioteraputico caracteriza-se pela busca do esclarecimento sobre a qualidade dos vnculos sociais estabelecidos pelo sujeito e suas consequncias diretas e indiretas sobre os relacionamentos que desenvolve. Como os vnculos interacionais, na maioria das vezes, envolvem afetividade, emoo e inteno, o mtodo socioteraputico

    Nota:2. Gergen, Kenneth J. Realities and relationships: Soundings in social construction. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1994.

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    facilita ao sujeito percepes e anlises prprias que terminam, no raro, por elucidar as motivaes, os desejos e as expresses afetivo-emocionais presentes nas aes humanas em geral e naquelas especificamente em questo.

    Neste trabalho, os contedos intrapsquicos so relevantes por serem inerentes s pessoas, mas no so privilegiados como nos processos psicoteraputicos. Entretanto, seu desvelamento pode ser o iniciador para mudanas pessoais e sociais.

    Os norteadores do trabalho com os grupos so: a relao subjetiva eu comigo ; a relao intersubjetiva eu e tu e eu e os outros/sociedade ; a relao com a lei.

    Outro importante instrumento utilizado, alm das tcnicas psicodramticas, a elaborao da Linha da Vida Amorosa, ocasio em que so relatados fatos da vida do casal, desde o conhecimento at o presente ou at a separao. Nela so percebidos padres de comportamento que evidenciam atitudes diante da mulher, o enfrentamento de dificuldades prprias dos ciclos de vida familiar a que McGoldrick (2003) se refere e, frequentemente, a prazeres que se perdem na rotina da famlia ou so sabotados pelos cnjuges.

    Fala-se de grupo aberto pela possibilidade de pessoas entrarem at o momento em que se trabalha o eu, o tu e o ns e os modelos de identificao; aberto, tambm, no sentido dado por Moreno (1975, p. 237) segundo o qual grupos abertos so os formados por numerosos sujeitos que compartilham da mesma sndrome mental ou cultural. Assim, por muito vasto que seja o pblico, como um paciente coletivo, que consiste em componentes individuais. Os grupos tm, ainda, uma ao mobilizadora e facilitadora da interao e da aprendizagem e ensejam a descoberta de diferenas subjetivas da percepo e da qualidade do desempenho dos papis sociais que aparecem na recriao dos fatos (MORENO,1975; BUSTOS, 1979).

    Neste artigo esto focados os encontros em que foram trabalhados aspectos ligados ao acolhimento e ao entendimento da proposta, aos papis conjugais e comunicao entre os casais, e os resultados encontrados.

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    ACOLHIMENTO TRABALHANDO O EUA percepo de si, das queixas e a compreenso so inexistentes

    no incio. Com o reconhecimento do espao como de escuta, reflexo e compartilhamento, sem julgamentos ou censuras, os participantes se mostram vontade para falar na primeira pessoa.

    AUTOPERCEPO E PERCEPO DO OUTRO. TRABALHANDO O EU-TU, O EU E O OUTRO

    Reflete-se sobre a mulher e o homem contemporneos, papis de gnero e heranas transgeracionais na construo desses papis. Trabalham-se as expectativas prprias e as do outro quanto relao. So identificados sentimentos prprios das vivncias conjugais e familiares, as aes e a harmonia destas com o pensamento e o sentimento.

    SIGNIFICADO DO CASAMENTO E DOS PAPIS CONJUGAIS. TRABALHANDO EU-TU-ELE; NS, A FAMLIA

    Abordam-se o valor do companheirismo, o respeito ao outro, s diferenas, tarefas e obrigaes que cada um exige do outro. Neste ponto do desenvolvimento do grupo, atm-se, mais profundamente, ao padro disfuncional de comunicao do casal e s possveis mudanas comportamentais decorrentes da mudana desse padro.

    PERTENCIMENTO SOCIEDADE E RECONHECIMENTO DAS LEIS

    Este tpico importante pela ilegalidade do ato cometido. Os papis sociais so revisitados a partir de suas relaes com as convenes sociais e as leis. Trabalha-se a temtica dos direitos humanos, da proteo pessoal e do companheiro e da segurana necessria para a autonomia e a liberdade nas interaes sociais, principalmente no casamento.

    CORRESPONSABILIDADE PELA QUALIDADE DA RELAOAs reflexes comeam pelo conceito de harmonia, conflito e violncia

    e como se aplicam vida conjugal e familiar. Um dos exerccios utilizados a elaborao da Linha da Vida Amorosa do Casal, anteriormente explicada. O casal conta sua histria, um de cada vez, colocando episdios importantes de sua vida em comum. Pede-se que, medida que se lembrem, coloquem os pontos que julgam positivos acima da linha norteadora e os negativos abaixo da linha.

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    PROJETO CONJUNTO PARA O FUTUROO trabalho sobre os projetos para o futuro teve incio com uma

    discusso sobre os sonhos do casal. Embora devesse ser um projeto anterior ao casamento, pois diz respeito vida da futura famlia, os casais envolvidos com a violncia, em geral, no o realizaram antes nem depois de se unirem.

    RESULTADOS E DISCUSSONa Linha da Vida Amorosa, comum termos a avaliao de um

    mesmo fato como positiva para um e negativa para o outro, o que leva discusso sobre o tema e reflexo sobre como resolveram o problema na poca e como o resolveriam agora. Ambos percebem quanto deixam guardados desentendimentos importantes, que os problemas no se resolvem por si, apenas se acumulam em uma caixinha de mgoas (tal como eles se referem). Algumas vezes, o casal prope uma soluo alternativa para o conflito durante o prprio exerccio. Destacam-se dois fatos que surgiram neste instrumento e que so da maior importncia: as circunstncias em que o casal se conhece e as expectativas de cada um em relao ao outro. Os casais deste e de outros grupos similares se conheceram em lugares pblicos como o metr ou o ponto de nibus; nenhum deles foi apresentado por algum amigo ou conhecido. A partir da, comeam o relacionamento e se unem casando ou morando juntos em uma mdia de trs meses, tempo que no permite que eles se conheam e aprendam a conviver, segundo eles mesmos.

    A importncia do conhecimento do outro confirmada quando se questiona sobre os projetos do casal. percebido pelos casais que esses planos no existem, que os projetos so individuais, ligados a sonhos, fantasias e expectativas de cada um. Como eles se conhecem e se unem em tempo muito curto, muitas vezes j espera de um filho, no tm oportunidade de conhecer os desejos e os planos um do outro. A vida se torna uma atuao no aqui-e-agora sem planejamento e sem dilogo, mas frequentemente com muita cobrana porque cada um espera do outro o que pensa que o melhor, mesmo que isso no tenha fundamento nos interesses e nas possibilidades do outro, nem na relao conjugal, mas, apenas, nas prprias fantasias.

    Ao falar dos sonhos do casal, foi verificado que eles simplesmente no existem; ao se unirem, um no tem conhecimento dos sonhos do outro, isso no compartilhado, ao contrrio, guardado como um

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    segredo. A grande questo que surgiu, ao se conhecer o sonho do(a) companheiro(a) foi: o que fazer com o sonho do outro: matar ou manter?

    A reflexo sobre essa questo foi exaustiva por perpassar desejos, sentimentos, objetivos de ambos os cnjuges. Foi discutido se o sonho tem prazo de validade, como se consegue matar o sonho do outro e a facilidade com que isso feito, afinal basta que no se considere o (a) parceiro(a) ou no se respeite o direito de sonhar. Como saber que se est matando os sonhos do companheiro se estes no so conhecidos? O grupo entendeu que uma das funes do sonho levar a famlia para uma vida melhor, porque ningum sonha piorar ou sofrer; outra juntar a famlia em direo mudana, pois o sonho de um pode ser o sonho dos dois. Alguns se sentiram assassinos de sonhos, outros identificaram o sonho de manter a pessoa que amam, alguns reconheceram que se casaram com um sonho e descobriram que o companheiro tambm acalentava um sonho, mas, se eles no conheciam o sonho do outro, no podiam sonhar juntos, muito menos, realiz-los.

    A importncia de se conhecerem melhor reafirmada quando se abordam os papis que chegam com o casamento, o de marido e de esposa, por exemplo, pode-se perceber que a aprendizagem desses papis, para o homem e para a mulher, hoje, seja de difcil realizao pela necessidade de se afastar de um papel de gnero cristalizado e avalizado socialmente para a construo de um novo. Como Moreno (1975) pontua, cada um traz consigo os elementos com os quais o casal vai formar um terceiro tomo social, que do casal e da futura famlia. Pode-se pressupor, ento, que o conhecimento dos relacionamentos emocionais do outro e de elementos de seu tomo social , no mnimo, necessrio para o desenvolvimento da relao. Se isso no ocorre, tem-se a consequente frustrao relativa s expectativas de cada um quanto ao casamento e pelo fato de os parceiros no aceitarem os tomos sociais do outro. A cooperao e a harmonia do lugar, ento, competio pelo comando da relao. Assim, a linguagem possvel tem sido a da agresso. Parece que cada um espera que o outro esquea sua famlia de origem para se dedicar ao casal, o que no acontece pela prpria impossibilidade de abafar afetos com sucesso. Outro aspecto relevante a transgeracionalidade, que um legado norteador das formas de resoluo de conflitos pela violncia, pelo poder e pela fora, herana da sociedade ao homem, para que seja o dono da relao e chefe da famlia.

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    Por outro lado, com os movimentos feministas, as mulheres, hoje, so chamadas a rever seus valores e a mudar comportamentos, emancipando-se e reivindicando o direito de ser respeitadas pelos homens. Em virtude da dificuldade do homem em compreender essa nova posio feminina, medida que as mulheres buscam seus direitos, sua autonomia nas relaes e a construo do papel profissional, surge uma disputa de poder surda para os argumentos e prdiga em aes e reaes impregnadas de agressividade e desrespeito mtuo. E a mulher usa, muitas vezes, as mesmas estratgias ditas masculinas, das quais se queixa, com comportamentos violentos e inadequados em relao harmonia do casal. Essa disputa est relacionada falta de dilogo e de negociao: Ela sabe o que eu gosto e o que eu quero, portanto, tem de fazer..., que tm como resposta: Ele que faa o que quiser... ele no faz nada para mim...

    medida que as necessidades da vida em comum vo se instalando na relao do casal, as aes vo se revezando entre exigncias e respostas que no correspondem ao esperado, transformando-se em conflitos. As ofensas e as agresses vo se intensificando, tornando-se mais contundentes, mais desrespeitosas e inadequadas, se tivermos como parmetro a harmonia conjugal e familiar.

    Outra constatao se refere correspondncia dos motivos pelos quais homens e mulheres justificam a violncia que praticam e a luta pelo espao de poder dentro da famlia, que so vistos de maneira particular; as aes so carregadas de interpretao pessoal e as verses de um no so reconhecidas pelo outro, o que leva a pensar na singularidade dos significados como diz Grandesso (2011), e na qualidade de emisso e percepo das mensagens. Nesse grupo de homens e mulheres que protagonizam a violncia conjugal, percebe-se que a comunicao intrafamiliar se ancora na desqualificao e na desconfirmao do outro, levando todos desorganizao que culmina na agresso.

    Quanto comunicao do casal, vrias dificuldades so apontadas e nos atemos aos conceitos de Watzlawick, Beavin e Jackson (1967) aqui apresentados. Nos casais atendidos tem-se, frequentemente, a concordncia quanto ao contedo com a discordncia se deslocando para o nvel da relao. Os conceitos sobre a comunicao interpessoal presentes na interao dos casais acompanhados neste programa so os de desconfirmao e de desqualificao, ambos com conotao agressiva, que tm significado de humilhao. Um exemplo de desqualificao :

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    Voc s fala besteira. O que voc diz no se escreve. Aqui, a mulher desqualificada, humilhada, mas vista como algum que est ali, na sua frente, uma pessoa. Diferente da fala desconfirmadora: Ele no me elogia nunca nem diz se gosta ou no do que fao, que implica a eliminao do outro. como se no existisse para seu marido, no legitimada por ele como uma pessoa, pois no merece um elogio ou uma crtica.

    Alguns aspectos cruciais da interao do casal foram descobertos durante os encontros e os principais se revelaram no processo comunicacional. Os casais criam razes para a violncia e culpados por ela. A culpa da cachaa foi devidamente expurgada em uma dramatizao do grupo, na qual a bebida era colocada entre o casal, como a culpada de todos os seus infortnios. Na cena, reconheceram que o lcool servia de intermedirio na relao e de justificativa para a agresso, pois a bebida autoriza qualquer ao e, portanto, responsabilizada pelas consequncias. No se v, nessas situaes, nenhuma preocupao com o parceiro(a), com os atos, com os desdobramentos para a relao conjugal e familiar.

    Essas discusses trouxeram outras, como as razes para desprezar o outro em sua subjetividade, suas avaliaes, seus desejos, seus valores. A comunicao e seus vieses foram o centro de todo o trabalho, descoberta como a principal causa dos conflitos conjugais e familiares. A violncia conjugal foi avaliada por homens e mulheres, ao final do trabalho, diferentemente do incio. Foram construdas novas percepes acerca das relaes estabelecidas com o cnjuge, dos papis de gnero, das dificuldades individuais que resultaram nos conflitos conjugais.

    CONSIDERAES FINAISBraslia uma cidade de muitas culturas. Nela convive-se com

    famlias que vm de todas as regies, com diferentes usos e costumes, com olhares singulares para a vida. Em algumas regies do pas a agresso mulher ainda aceita como uma ao comum. O homem reconhecido como senhor da casa, da mulher, da famlia. Entretanto, a mulher no tem mais aceitado essa situao. As diversas campanhas de repdio violncia contra a mulher tm tido eficcia para criar um sentimento de emancipao no relacionamento, principalmente no que se refere ao direito de a mulher se proteger e denunciar o companheiro que a agride.

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    Podemos ver que ambos se sentem agressores e vtimas, mas a agresso justificada pelos dois. Percebe-se tambm que, com o incio do trabalho grupal, medida que os participantes reconhecem o outro na relao, compreendem seus papis conjugais e familiares, e se do conta da qualidade de suas interaes e comeam a conversar com os (as) companheiros(as) sobre o cotidiano e sobre o que gostam e o que os irrita na relao. Segundo relatam, veem que as relaes vo sofrendo mudanas e vo construindo novas formas interacionais e de convvio; e passam a aspirar pela paz e a harmonia. Mais ao final, por volta do dcimo segundo encontro, entendem as vrias formas de agresso que protagonizam. As mulheres reconhecem suas aes e intenes agressivas dirigidas ao companheiro e o potencial de mgoa contido em alguns de seus comportamentos. V-se que esses grupos tm sido uma oportunidade para que homens e mulheres reflitam sobre seus comportamentos e, antes de tudo, sobre suas atitudes diante das diferenas e da vida. Essas descobertas foram acontecendo aos poucos e com sofrimento, mas cada insight era seguido de alvio e de propostas de novidades na relao.

    Outro indicador do valor do trabalho com o grupo so os discursos dos envolvidos quanto a novas formas de se comportar na relao com o outro: esposa, esposo, filhas, filhos, namoradas, namorados, mes, pais, irms e irmos e mesmo com amigos e amigas.

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    Maria Eveline Cascardo Ramos

    Maria Eveline Cascardo RamosSGAS 910 - Cj B - Bloco D - sala 225

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    Recebido: 25/07/2012Aceito: 21/03/2013

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