pscicodelia à brasileira

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O GLOBO SEGUNDO CADERNO PÁGINA 1 - Edição: 19/01/2011 - Impresso: 18/01/2011 — 14: 26 h SEGUNDO CADERNO SEGUNDO CADERNO QUARTA-FEIRA, 19 DE JANEIRO DE 2011 AZUL MAGENTA AMARELO PRETO ‘Tropa de elite 2’ inicia a carreira internacional no Festival de Sundance, que começa amanhã • 2 Conheça Tiãozinho da Mocidade, compositor bamba que lança seu primeiro disco aos 61 anos • 10 Psicodelia à brasileira A história do raríssimo disco ‘Paêbirú: Caminho da Montanha do Sol’, de Zé Ramalho e Lula Côrtes, lançado em 1975 e hoje o mais caro do Brasil, valendo até R$ 5 mil, é investigada no documentário ‘Nas paredes da pedra encantada’ Divulgação ZÉ RAMALHO na épóca do disco ( acima) e Lula Côrtes dando entrevista para o documentário na Pedra do Ingá, na Paraíba, onde tudo começou Leonardo Lichote I nscrições rupestres mis- teriosas, mitos indíge- nas, boas doses de psi- codelia, uma busca para reconstruir as obscuras origens de uma lenda da música brasileira... O ro- teiro tem elementos que pare- cem moldados para a ficção, al- go como um Indiana Jones lisér- gico. Mas “Nas paredes da pe- dra encantada”, filme de Cris- tiano Bastos e Leonardo Bon- fim, é um documentário — um road doc”, como define Cristia- no — que investiga a história do raríssimo disco “Paêbirú: Caminho da Montanha do Sol”, de Zé Ramalho e Lula Côrtes, lançado em 1975. — Há vários motivos para se falar de “Paêbirú” — defende Cristiano. — É o disco mais ca- ro do Brasil, sua última cotação está entre R$ 4 mil e R$ 5 mil, o dobro do “Louco por você”, o primeiro de Roberto Carlos (existe uma edição pirata, em vi- nil, de “Paêbirú”, lançada na Eu- ropa, mas que não vem com o li- vro que acompanhava o origi- nal, trazendo estudos sobre a re- gião e informações sobre a len- da do Caminho da Montanha do Sol). Mais que a raridade, ele é o fundador de uma psicodelia genuinamente brasileira, com elementos da cultura indígena. E sua história tem toda uma mística. Das únicas 1.300 có- pias da prensagem original, 1.000 foram perdidas numa en- chente em Recife. Nunca vi uma história tão fantástica como a que circunda esse álbum. Jornalista, Cristiano tomou contato com a fantástica histó- ria quando fez uma reportagem para a revista “Rolling Stone” sobre o disco. Quando perce- beu que sua apuração poderia render um documentário, se lançou com Leonardo Bonfim na aventura de tentar reconstituir os fatores que permitiram o sur- gimento do álbum. O termo “aventura” não é exagero. Cris- tiano morou entre Pernambuco e Paraíba por três meses, inves- tiu dinheiro do seu bolso no fil- me — atualmente em fase de montagem — e penou para en- contrar seus personagens. Mais que isso, quase foi preso duran- te as filmagens: — Estávamos na cidade do Ingá do Bacamarte (município da Paraíba onde se localiza a Pe- dra do Ingá, onde estavam as inscrições que serviram de esto- pim para o processo criativo que gerou o disco) quando a polícia nos abordou, com vários car- ros e armas apontadas para nós. Estava havendo uma onda de assaltos a bancos na região, e eles, vendo aquele grupo an- dando de um lado para o outro e fazendo ligações, acharam que éramos ladrões. Tivemos que ser libertados pelo prefei- to, que já sabia do projeto e in- clusive colaborou com dinhei- ro para as filmagens. O filme — ao qual O GLOBO teve acesso exclusivo — traz entrevistas com personagens como os músicos Lula Côrtes e Alceu Valença (que toca no dis- co), o arqueólogo Raul Córdula (que apresentou a Pedra do In- gá a Lula e a Zé Ramalho) e a ci- neasta Kátia Mesel (compa- nheira de Lula então e sócia de- le no selo Abrakadabra, que lançou o disco). As gravações registram muitos momentos musicais espontâneos e até ce- nas que reforçam as lendas em torno do disco. — Cada lado do álbum duplo de “Paêbirú” tem um conceito: fogo, terra, ar e água. Cada um tem uma sonoridade. Fogo é o lado mais roqueiro, ar são músi- cas mais etéreas... No lado da água, tem uma parte que faz lou- vações a Iemanjá. No filme, quando Kátia Mesel canta isso, começa a chover — narra Cris- tiano, que alimenta mais um tanto a mística ao dedicar o fil- me ao deus Sumé (parte da mi- tologia de “Paêbirú”). Zé Ramalho — que até hoje vi- sita a Pedra e acredita que ex- traterrestres estão por trás de suas inscrições — não dá depoi- mento para o filme. Mas autori- zou os diretores a usar todas as Outros olhos voltados para Zé Ramalho músicas para contar a história. — Existe uma rusga entre Zé e Lula, e Zé preferiu não falar sobre o álbum. Mas todos no fil- me falam dele com muito cari- nho — nota Cristiano. — Ape- sar de negar a entrevista, Zé foi muito gente fina, fez um docu- mento liberando a música... Só não queria ter a imagem dele hoje no filme. Ele pergunta por que não falaram do disco quan- do ele foi lançado (o álbum foi completamente ignorado na época). Aquilo foi muito decep- cionante. Além de tudo, Zé Ra- malho considera a obra que ele fez solo, posteriormente, muito mais importante. Como o disco tinha um aspecto coletivo, ele ali não tem o peso de ser o por- tador da mensagem, é só mais uma das vozes. Mesmo antes da finalização, os diretores já receberam convites pa- ra apresentar o filme em festivais. — Nosso desejo é estrear no “É tudo verdade” — diz Cristiano. — Seria ótimo também ter a exibi- ção na TV, num espaço como o Canal Brasil. Eles contam com a força da his- tória. E os poderes de Sumé. Sua história tem toda uma mística. Das 1.300 cópias da prensagem original, 1.000 foram perdidas numa enchente em Recife. Nunca vi história tão fantástica como a desse álbum Cristiano Bastos, diretor Além do documentário sobre “Paêbirú”, há outros olhos vol- tados para a história do autor de “Admirável gado novo”. O di- retor Elinaldo Rodrigues filmou “Zé Ramalho — O herdeiro de Avôhai”, lançado em DVD e exi- bido em festivais no ano passa- do, e a jornalista Christina Fus- caldo prepara uma biografia so- bre o músico. O filme tem como guia um depoimento de Zé Ramalho, que é cruzado com entrevistas dadas por amigos seus da épo- ca em que ele tocava em con- juntos de bailes, colegas da in- fância, produtores e músicos como Elba Ramalho, Alceu Va- lença e Geraldo Azevedo. — Vejo Zé como símbolo do povo nordestino, que encontra na arte seus instrumentos mais poderosos. Ele superou todos os desafios, como artista e como pessoa. Houve a pobreza no iní- cio, o desejo da família que que- ria que ele fosse médico, e mes- mo assim ele largou o curso em busca de seu sonho. Depois fo- ram inúmeros outros até lançar um disco, vieram a dependência química, o desinteresse das gra- vadoras mesmo depois de todo o sucesso... — diz o diretor. Uma trajetória que Christina pretende detalhar em sua bio- grafia, atualmente em fase de coleta de depoimentos e pes- quisa. Ela tem a carta branca do compositor, que entregou em suas mãos todo o seu arquivo pessoal. A autora destaca — as- sim como Elinaldo e Cristiano — a força do mito de Zé Rama- lho e o tamanho de seu público espalhado pelo Brasil, mas tem dificuldades para encontrar uma editora interessada. — Um editor chegou a me di- zer que Zé Ramalho venderia apenas dois livros — conta. — Sua vida é riquíssima, única, as- sim como seu caminho na MPB. Divulgação/Ricardo Moura

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Page 1: Pscicodelia à Brasileira

O GLOBO ● SEGUNDO CADERNO ● PÁGINA 1 - Edição: 19/01/2011 - Impresso: 18/01/2011 — 14: 26 h

SEGUNDO CADERNOSEGUNDO CADERNOQUARTA-FEIRA, 19 DE JANEIRO DE 2011

AZUL MAGENTA AMARELO PRETO

‘Tropa de elite 2’ inicia a carreira internacional noFestival de Sundance, que começa amanhã • 2

Conheça Tiãozinho da Mocidade, compositor bambaque lança seu primeiro disco aos 61 anos • 10

Psicodelia à brasileiraA história do raríssimo disco ‘Paêbirú: Caminho da Montanha do Sol’, de Zé Ramalho e Lula Côrtes, lançado em 1975

e hoje o mais caro do Brasil, valendo até R$ 5 mil, é investigada no documentário ‘Nas paredes da pedra encantada’Divulgação

ZÉ RAMALHO na épóca

do disco (acima) e Lula

Côrtes dando entrevista

para o documentário na

Pedra do Ingá, na Paraíba,

onde tudo começou

Leonardo Lichote

Inscrições rupestres mis-teriosas, mitos indíge-nas, boas doses de psi-codelia, uma busca parareconstruir as obscurasorigens de uma lenda damúsica brasileira... O ro-

teiro tem elementos que pare-cem moldados para a ficção, al-go como um Indiana Jones lisér-gico. Mas “Nas paredes da pe-dra encantada”, filme de Cris-tiano Bastos e Leonardo Bon-fim, é um documentário — um“road doc”, como define Cristia-no — que investiga a históriado raríssimo disco “Paêbirú:Caminho da Montanha do Sol”,de Zé Ramalho e Lula Côrtes,lançado em 1975.

— Há vários motivos para sefalar de “Paêbirú” — defendeCristiano. — É o disco mais ca-ro do Brasil, sua última cotaçãoestá entre R$ 4 mil e R$ 5 mil, odobro do “Louco por você”, oprimeiro de Roberto Carlos(existe uma edição pirata, em vi-nil, de “Paêbirú”, lançada na Eu-ropa, mas que não vem com o li-vro que acompanhava o origi-nal, trazendo estudos sobre a re-gião e informações sobre a len-da do Caminho da Montanha doSol). Mais que a raridade, ele éo fundador de uma psicodeliagenuinamente brasileira, comelementos da cultura indígena.E sua história tem toda umamística. Das únicas 1.300 có-pias da prensagem original ,1.000 foram perdidas numa en-chente em Recife. Nunca vi umahistória tão fantástica como aque circunda esse álbum.

Jornalista, Cristiano tomoucontato com a fantástica histó-ria quando fez uma reportagempara a revista “Rolling Stone”sobre o disco. Quando perce-beu que sua apuração poderiarender um documentário, selançou com Leonardo Bonfim naaventura de tentar reconstituiros fatores que permitiram o sur-g imento do álbum. O termo“aventura” não é exagero. Cris-tiano morou entre Pernambucoe Paraíba por três meses, inves-tiu dinheiro do seu bolso no fil-me — atualmente em fase demontagem — e penou para en-contrar seus personagens. Maisque isso, quase foi preso duran-te as filmagens:

— Estávamos na cidade doIngá do Bacamarte (municípioda Paraíba onde se localiza a Pe-dra do Ingá, onde estavam asinscrições que serviram de esto-pim para o processo criativo quegerou o disco) quando a polícianos abordou, com vários car-ros e armas apontadas paranós. Estava havendo uma ondade assaltos a bancos na região,e eles, vendo aquele grupo an-dando de um lado para o outroe fazendo ligações, acharamque éramos ladrões. Tivemosque ser libertados pelo prefei-to, que já sabia do projeto e in-clusive colaborou com dinhei-ro para as filmagens.

O filme — ao qual O GLOBOteve acesso exclusivo — trazentrevistas com personagenscomo os músicos Lula Côrtes eAlceu Valença (que toca no dis-co), o arqueólogo Raul Córdula(que apresentou a Pedra do In-gá a Lula e a Zé Ramalho) e a ci-neasta Kátia Mesel (compa-nheira de Lula então e sócia de-le no selo Abrakadabra, quelançou o disco). As gravações

registram muitos momentosmusicais espontâneos e até ce-nas que reforçam as lendas emtorno do disco.

— Cada lado do álbum duplode “Paêbirú” tem um conceito:fogo, terra, ar e água. Cada umtem uma sonoridade. Fogo é o

lado mais roqueiro, ar são músi-cas mais etéreas... No lado daágua, tem uma parte que faz lou-vações a Iemanjá. No f i lme,quando Kátia Mesel canta isso,começa a chover — narra Cris-tiano, que alimenta mais umtanto a mística ao dedicar o fil-

me ao deus Sumé (parte da mi-tologia de “Paêbirú”).

Zé Ramalho — que até hoje vi-sita a Pedra e acredita que ex-traterrestres estão por trás desuas inscrições — não dá depoi-mento para o filme. Mas autori-zou os diretores a usar todas as

Outros olhos voltados para Zé Ramalhomúsicas para contar a história.

— Existe uma rusga entre Zée Lula, e Zé preferiu não falarsobre o álbum. Mas todos no fil-me falam dele com muito cari-nho — nota Cristiano. — Ape-sar de negar a entrevista, Zé foimuito gente fina, fez um docu-mento liberando a música... Sónão queria ter a imagem delehoje no filme. Ele pergunta porque não falaram do disco quan-do ele foi lançado (o álbum foicomple tamente ignorado naépoca). Aquilo foi muito decep-cionante. Além de tudo, Zé Ra-malho considera a obra que elefez solo, posteriormente, muitomais importante. Como o discotinha um aspecto coletivo, eleali não tem o peso de ser o por-tador da mensagem, é só maisuma das vozes.

Mesmo antes da finalização, osdiretores já receberam convites pa-ra apresentar o filme em festivais.

— Nosso desejo é estrear no “Étudo verdade” — diz Cristiano. —Seria ótimo também ter a exibi-ção na TV, num espaço como oCanal Brasil.

Eles contam com a força da his-tória. E os poderes de Sumé. ■

“Sua história tem toda uma mística. Das 1.300cópias da prensagem original, 1.000 foramperdidas numa enchente em Recife. Nunca vihistória tão fantástica como a desse álbumCristiano Bastos, diretor

● Além do documentário sobre“Paêbirú”, há outros olhos vol-tados para a história do autorde “Admirável gado novo”. O di-retor Elinaldo Rodrigues filmou“Zé Ramalho — O herdeiro deAvôhai”, lançado em DVD e exi-bido em festivais no ano passa-do, e a jornalista Christina Fus-caldo prepara uma biografia so-bre o músico.

O filme tem como guia umdepoimento de Zé Ramalho,que é cruzado com entrevistasdadas por amigos seus da épo-ca em que ele tocava em con-juntos de bailes, colegas da in-fância, produtores e músicos

como Elba Ramalho, Alceu Va-lença e Geraldo Azevedo.

— Vejo Zé como símbolo dopovo nordestino, que encontrana arte seus instrumentos maispoderosos. Ele superou todos osdesafios, como artista e comopessoa. Houve a pobreza no iní-cio, o desejo da família que que-ria que ele fosse médico, e mes-mo assim ele largou o curso embusca de seu sonho. Depois fo-ram inúmeros outros até lançarum disco, vieram a dependênciaquímica, o desinteresse das gra-vadoras mesmo depois de todoo sucesso... — diz o diretor.

Uma trajetória que Christina

pretende detalhar em sua bio-grafia, atualmente em fase decoleta de depoimentos e pes-quisa. Ela tem a carta branca docompositor, que entregou emsuas mãos todo o seu arquivopessoal. A autora destaca — as-sim como Elinaldo e Cristiano— a força do mito de Zé Rama-lho e o tamanho de seu públicoespalhado pelo Brasil, mas temdificuldades para encontraruma editora interessada.

— Um editor chegou a me di-zer que Zé Ramalho venderiaapenas dois livros — conta. —Sua vida é riquíssima, única, as-sim como seu caminho na MPB.

Divulgação/Ricardo Moura