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PRÓLOGO: CIDADES NO DESERTO A mina San José fica dentro de uma montanha arredondada, rochosa e sem vida no deserto do Atacama, no Chile. O vento erode lentamente a superfície da montanha, produzindo uma poeira laranja-acinzentada que desce a encosta e forma poças e dunas de pó. O céu sobre a mina é azul-claro e límpido, e permite que o sol extraia toda a umidade do solo sem nenhuma barreira. So- mente a cada doze anos, mais ou menos, uma tempestade digna do nome varre o deserto, cobrindo de chuva o terreno da San José. A poeira se transfor- ma então em uma lama tão grossa quanto concreto recém-misturado. Poucos visitantes vêm a esse canto do Atacama, embora o naturalista Charles Darwin tenha passado pelas redondezas, brevemente, no século xix durante sua viagem pelo mundo em um navio de pesquisa da Marinha Real Britânica. Os habitantes locais lhe contaram histórias cientificamente implausíveis, ligando as raras chuvas a terremotos. A vastidão do Atacama e a ausência de vida animal surpreenderam Darwin, que descreveu o deser- to em seu diário como “uma barreira bem pior do que o mais turbulento dos oceanos”. Mesmo nos dias atuais, os ornitólogos que passam por essa parte do Chile observam que há poucas, ou quase nenhuma, espécies de aves a serem encontradas. No coração do deserto, a única presença viva conspícua é a dos trabalhadores das minas, e de uma ou outra mulher, transportados em caminhões ou micro-ônibus para as montanhas de onde o ouro, o cobre e o ferro são extraídos. A riqueza de minerais sob as montanhas inférteis atrai trabalhadores vindos de Copiapó, a cidade mais próxima, e de muitos outros cantos dis-

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Page 1: PRÓLOGO: CIDADES NO DESERTO · Os habitantes locais lhe contaram histórias cientificamente ... nas quais se agitavam milhares de peixes, ... José dividem-se em dois turnos,

PRÓLOGO: CIDADES NO DESERTO

A mina San José fica dentro de uma montanha arredondada, rochosa e sem vida no deserto do Atacama, no Chile. O vento erode lentamente a superfície da montanha, produzindo uma poeira laranja-acinzentada que desce a encosta e forma poças e dunas de pó. O céu sobre a mina é azul-claro e límpido, e permite que o sol extraia toda a umidade do solo sem nenhuma barreira. So-mente a cada doze anos, mais ou menos, uma tempestade digna do nome varre o deserto, cobrindo de chuva o terreno da San José. A poeira se transfor-ma então em uma lama tão grossa quanto concreto recém-misturado.

Poucos visitantes vêm a esse canto do Atacama, embora o naturalista Charles Darwin tenha passado pelas redondezas, brevemente, no século xix durante sua viagem pelo mundo em um navio de pesquisa da Marinha Real Britânica. Os habitantes locais lhe contaram histórias cientificamente implausíveis, ligando as raras chuvas a terremotos. A vastidão do Atacama e a ausência de vida animal surpreenderam Darwin, que descreveu o deser-to em seu diário como “uma barreira bem pior do que o mais turbulento dos oceanos”. Mesmo nos dias atuais, os ornitólogos que passam por essa parte do Chile observam que há poucas, ou quase nenhuma, espécies de aves a serem encontradas. No coração do deserto, a única presença viva conspícua é a dos trabalhadores das minas, e de uma ou outra mulher, transportados em caminhões ou micro-ônibus para as montanhas de onde o ouro, o cobre e o ferro são extraídos.

A riqueza de minerais sob as montanhas inférteis atrai trabalhadores vindos de Copiapó, a cidade mais próxima, e de muitos outros cantos dis-

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tantes do Chile para as minas do Atacama. Juan Carlos Aguilar é quem mais viaja para chegar à San José: mais de 1600 quilômetros. No mapa, é possível perceber que o formato do Chile se parece com o de uma cobra, e o percurso de Aguilar para chegar ao trabalho o leva por metade do corpo da cobra. Sua viagem semanal começa nas florestas temperadas do sul do Chile. Na mina, supervisiona uma equipe de três homens que consertam carregadores frontais e os veículos atarracados, com longos braços e apa-rência de inseto, conhecidos como “jumbos”, durante um turno de sete dias que começa na manhã de quinta-feira. Mas sua viagem para o trabalho tem início 36 horas antes, na terça-feira à noite, na cidade de Los Lagos. Nenhum trabalho local paga tão bem quanto o que ele tem no deserto, então Aguilar acomoda seu corpo cansado, de meia-idade, em um ônibus Pullman e observa as sombras das florestas de faia, as fazendas de eucalipto e os rios das montanhas passarem pela janela. O clima combina com seu humor: o céu está escuro e gotas de chuva batem nas janelas, como nor-malmente ocorre quando ele sai para trabalhar. A precipitação média da região do Chile onde mora, no paralelo 40 do hemisfério sul, é de 260 centímetros por ano.

Um dos mecânicos da equipe do supervisor mora um pouco mais perto da mina. Raúl Bustos é da cidade portuária de Talcahuano, próxima ao paralelo 37. Há cinco meses, Talcahuano foi atingida por um tsunami, desencadeado por um terremoto de 8,8 graus de magnitude. O desastre matou mais de quinhentas pessoas, deixou a cidade coberta de piscinas de água do mar, nas quais se agitavam milhares de peixes, e carregou a base naval na qual ele costumava trabalhar. Bustos é um rigoroso pai de dois filhos e um marido dedicado. Toma um ônibus em direção ao norte e viaja por uma paisagem plana, cheia de estufas, tratores e dos terrenos de pousio e cultivados do centro agrícola do Chile. Passa pela cidade de Chillán, onde outro membro da equipe de Aguilar inicia sua viagem em direção ao norte, passando por Talca, cidade na qual um alto e religioso operador de jumbo pega outro ônibus. Os homens que trabalham dentro da mina San José dividem-se em dois turnos, A e B, cada um trabalhando sete dias de uma vez, e todos esses homens foram escalados para o turno A. Este, por sua vez, é dividido em turnos diurnos e noturnos de doze horas, o que mantém a mina funcionando sem interrupção, das oito horas da manhã às oito da noite e das oito da noite às oito horas da manhã seguinte.

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Os homens do turno A logo chegam a Santiago, com seus arranha--céus e viadutos em construção. É bem cedo quando os sulistas entram na cidade, uma próspera capital latino-americana cuja característica mais marcante — a enorme e altiva silhueta dos vizinhos Andes — com frequ-ência se perde no nevoeiro da notória fumaça da cidade.

Nos terminais de ônibus intermunicipais no centro de Santiago, não longe do palácio presidencial, mais homens partem para a mina San José. Um deles é Mario Sepúlveda, um agitado pai de dois filhos. Sua reputação entre os colegas é a de que força demais o carregador frontal que opera (o que obriga os mecânicos a consertá-lo repetidas vezes), de que fala alto e demais e é imprevisível de modo geral. Na quarta-feira à tarde, inicia a viagem de oitocentos quilômetros de Santiago à mina San José, mais tarde do que deveria: há uma boa chance de que não consiga chegar ao trabalho na hora certa. O apelido de Mario na San José é “Perri”, uma abreviação de “Perrito”, o diminutivo da palavra perro, ou cachorro. Pergunte a Mario por que o chamam de Perri e ele lhe dirá que é porque ama cachorros (tem em casa dois vira-latas que pegou em um abrigo) e porque “tenho o cora-ção de um cachorro”. Como um cachorro, Mario é leal, mas se tentarem machucá-lo, “eu mordo”. Ele e a esposa, Elvira, têm dois filhos, o primeiro concebido em um encontro apaixonado “de pé, encostados em um poste”. Agora têm uma casa nos arredores de Santiago com um grande freezer de carnes, o bem mais valioso de Mario, e uma pequena mesa quadrada na sala de estar, seu lugar preferido para relaxar. Antes de partir para o norte, saboreia uma refeição apressada à mesa com Elvira, a filha adolescente e o filho mais novo, Scarlette e Francisco respectivamente.

Após deixarem o centro de Santiago e atravessarem os subúrbios onde moram as classes trabalhadoras, no norte da cidade, os muitos ônibus car-regando os homens do turno A penetram vales cheios de vinícolas e árvores frutíferas, tendo à sua direita os Andes cobertos com a neve do inverno de agosto. O clima é mediterrâneo, mas a paisagem se torna cada vez menos verde a cada hora e a cada paralelo atravessado: 33, 32, 31. Logo estão entrando na região árida chamada Norte Chico, ou Pequeno Norte.

Mineiros e outros aventureiros percorrem essa rota desde os primór-dios da história do Chile. O norte é a fronteira desértica do Chile, seu “Oeste Selvagem”. Era o lugar preferido do ditador Augusto Pinochet para aprisionar seus inimigos. Foi nessa região, no alojamento de uma mina de

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salitre abandonada, que Pinochet prendeu mais de mil dissidentes políti-cos, que passavam o tempo estudando astronomia sob o límpido céu do deserto. O movimento sindicalista chileno nasceu no norte, fundado no início do século xx por trabalhadores das minas de nitrato, mais tarde massacrados na cidade de Iquique. No Chile democrático de hoje, a maio-ria dos habitantes do norte ainda é eleitora fiel da esquerda. Pinochet tam-bém mandou enterrar os homens e as mulheres que assassinou em covas rasas no deserto no Norte Grande, e seus ossos ainda estão sendo descober-tos quarenta anos depois por parentes em busca dos “desaparecidos”.

Quando os homens do turno A chegam à cidade portuária de Co-quimbo, a quatrocentos quilômetros da mina San José, tomam o caminho percorrido por Charles Darwin em 1835 no trecho chileno de sua viagem. O Chile era então um país jovem, com meros 25 anos de idade, e Darwin desembarcou de seu navio, o hms Beagle, para fazer observações geológi-cas, da flora e da fauna locais com um pequeno grupo de expedição que percorria o continente com quatro cavalos e duas mulas. A estrada entre Coquimbo e Copiapó atravessa a região de mineração mais antiga do Chi-le, e o naturalista britânico encontrou muitos mineiros em seu lento per-curso por esse mesmo caminho.

Na cidade de Los Hornos, os homens do turno A avistam o oceano Pacífico quando a Rota 5, parte da Rodovia Pan-Americana, passa pelo li-toral. Há algo cruel nessa última visão do oceano e do horizonte, com o sol do fim de tarde lançando seus raios quentes na extensa superfície da água: pelos próximos sete dias, os homens passarão a maior parte do tempo cen-tenas de metros abaixo da terra, em cavernas de largura suficiente apenas para que seus veículos possam passar espremidos. Nessas semanas de traba-lho no inverno do hemisfério sul, só avistarão o sol brevemente, por alguns minutos de manhã, antes do início de seu turno, e no horário do almoço. Não muito longe da praia de Los Hornos, Darwin avistou uma montanha que estava sendo sistematicamente “perfurada, como um grande formi-gueiro”. Descobriu que os mineiros locais às vezes ganhavam grandes so-mas de dinheiro e, “como marinheiros com o dinheiro de recompensas”, encontravam maneiras de “desperdiçar” suas riquezas. Os mineiros que Darwin conheceu bebiam e gastavam em excesso, e em poucos dias retor-navam “sem um tostão” para seus trabalhos miseráveis, para “darem mais duro do que burros de carga”.

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Os homens do turno A não esperam ficar sem dinheiro tão cedo — na verdade, são bem remunerados em comparação à maioria dos trabalha-dores chilenos contemporâneos. Mesmo o mais mal pago entre eles ganha em torno de 1200 dólares por mês (quase três vezes o salário mínimo no Chile), e com o acréscimo de certos bônus pagos por fora, ganham ainda mais. Em vez de desperdiçar seus salários, usam-nos para construir um es-tilo de vida típico de classe média, com dívidas no cartão de crédito, pe-quenos negócios e financiamentos imobiliários, pensão para as ex-mulhe-res e mensalidades das universidades dos filhos. Alguns dos homens do turno A são evangélicos abstêmios, e o temperamental Mario Sepúlveda é testemunha de Jeová e também não bebe. Mas a maioria se permite um golinho ou dois após um dia de trabalho, sendo uísque, cerveja e vinho tinto suas libações preferidas. Alguns certamente bebem mais do que deve-riam: em Copiapó, a parada final do ônibus para os sulistas que atravessam o país, um de seus colegas do norte está bebendo com tanta sede que é possível que não consiga trabalhar no dia seguinte. Trabalhar debaixo da terra no Chile dos dias de hoje ainda é uma labuta árdua e cansativa que pode deixar os homens se sentindo como “burros de carga” maltratados, e a morte continua assombrando a atual mineração subterrânea. Quando Darwin cavalgava em direção ao norte, deparou com o funeral de um mi-neiro, um homem que era carregado para sua cova por quatro de seus co-legas, vestidos em estranhos trajes compostos por longas camisas de lã es-cura, aventais de couro e cinturões de cores vibrantes. Os mineiros não usam mais essas roupas, mas nos últimos anos os homens da mina San José lamentaram a morte de colegas que trabalhavam aqui. Também viram ami-gos serem mutilados pelas súbitas explosões de rochas aparentemente sóli-das, uma das causas mais imprevisíveis de acidentes na mineração subter-rânea profunda. Raúl Bustos, o mecânico da cidade portuária de Talcahuano, é relativamente novo na San José, mas já viu o santuário que os homens construíram debaixo da terra para as vítimas da mina. Agora, no ônibus, carrega um rosário que levará consigo quando o dia de trabalho começar.

No último trecho da viagem de ônibus, os homens entram na extre-midade sul do deserto do Atacama, uma planície onde Darwin teve dificul-dades para encontrar alimento para seus animais. No Atacama, que pode ser o deserto mais antigo do mundo, além de ser o mais seco, existem esta-

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ções meteorológicas que nunca receberam uma gota de chuva. Das janelas do ônibus, parece que Deus decidiu arrancar todas as árvores e a maioria dos arbustos, deixando apenas algumas plantas resistentes que pontilham a planície marrom pálido com manchas de um monótono verde-oliva. A bei-ra da estrada lentamente recupera a vivacidade quando os ônibus entram no vale do rio Copiapó, com sua terra irrigada, coberta de diferentes tons de verde. As pimenteiras, abundantes nas cidades desérticas dos Estados Uni-dos, são nativas desse canto do Chile e começam a aparecer pela beira da estrada, pingando folhas finas no chão enquanto os ônibus chegam à cidade de Copiapó. Nos últimos quatrocentos metros do percurso, os homens pas-sam pelo velho cemitério público de Copiapó, onde estão enterradas muitas gerações de mineiros, incluindo o pai de um dos homens do turno A, um mineiro aposentado que bebeu até morrer e foi enterrado há poucos dias. Depois do cemitério, o ônibus passa rápido, rangendo, por uma vizinhança coberta de barracos de latão, uma das áreas mais pobres da cidade, e então cruza a ponte curta que atravessa o canal do rio Copiapó.

A maioria dos homens que trabalham na San José mora em Copiapó, a cidade mais próxima à mina. Muitos são mineiros veteranos, de quarenta e muitos, cinquenta ou sessenta e poucos anos, e têm memórias agradáveis desse leito de rio. O rio Copiapó estava vivo quando eram garotos e atra-vessavam correndo suas águas refrescantes, que chegavam apenas à altura dos tornozelos. Na época, trevos cresciam em poças no local onde a Rota 5 atravessa o rio, assim como quando Darwin chegou a Copiapó e mencio-nou em seu diário o aroma agradável. Há uma geração, o rio Copiapó co-meçou a morrer e hoje é uma imagem desagradável aos olhos, de cor cáqui e enfeitada com lixo e arbustos espinhosos. A precipitação anual média em Copiapó não chega sequer a um centímetro e meio, e a água não escoa pelo canal desde que a última grande tempestade caiu na cidade, há treze anos.

Quando o ônibus chega ao terminal, os trabalhadores do turno A saltam e descarregam as malas. Dividem táxis de Copiapó, e atravessam a cidade até uma das duas pensões nas quais dormirão pelas próximas sete noites. Nas últimas poucas horas antes do início do dia de trabalho, em 5 de agosto, todos os homens do turno A, à exceção de um, estão em Copia-pó ou nos subúrbios da cidade.

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A geologia era uma ciência incipiente quando Darwin visitou o Chile em 1835: em sua viagem de navio para a América do Sul, lera um dos textos fundadores da nova ciência, Princípios da Geologia, de Charles Lyell. Ao chegar ao Chile, Darwin presenciou uma erupção vulcânica nos Andes e notou a presença de conchas no chão, algumas dezenas de metros acima do nível do mar. Também passou por um terremoto de dois minutos enquanto descansava em uma floresta próxima ao porto de Valdivia. Es-sas experiências e observações levaram Darwin a deduzir, mais de um sé-culo antes da formalização da teoria das placas tectônicas, que o solo so-bre o qual se encontrava estava sendo gradualmente empurrado para cima pelas mesmas forças que causavam explosões vulcânicas. “Podemos che-gar com segurança à conclusão de que as forças que lentamente e com pequenos impulsos elevam continentes, e aquelas que em períodos suces-sivos fazem expelir matéria vulcânica de orifícios abertos, são idênticas”, escreveu. Hoje os geólogos dizem que o Chile está localizado sobre o chamado “círculo de fogo” — aquela vasta fenda na Terra onde os peda-ços da crosta do planeta do tamanho de continentes se encontram. A placa de Nazca empurra por baixo a placa Sul-Americana. Como uma criança que se enfia na cama e levanta as cobertas, formando um caroço, a placa de Nazca levantou a Sul-Americana, criando os picos de 6 mil metros de altura dos Andes, um processo chamado pelos geólogos de orogênese.

A rocha das montanhas ao norte de Copiapó nasceu do magma das profundezas da Terra e é atravessada por vastas redes de depósitos minerais. Esses veios foram criados há mais de 140 milhões de anos, durante a era dos répteis, aproximadamente 20 milhões de anos após a aparição das plantas com flores, mas antes da chegada das abelhas, e 40 milhões de anos antes de o maior dos dinossauros — o Argentinosaurus — ter vagado pelo continente. Um líquido rico em minerais subiu pela crosta terrestre, espre-mendo-se pelas fissuras do sistema de falhas do Atacama por mais de 100 milhões de anos, desde o fim do período Jurássico até o início do Paleóge-no. Finalmente, o líquido solidificou-se, formando os cilindros de rocha de duzentos metros de altura carregados de minério, conhecidos como “cha-minés de brecha”, e as finas camadas de veios entrelaçados às quais os geó-logos se referem como stockwork. Esses depósitos enterrados de quartzo, calcopirita e outros minerais atravessam as montanhas do sudoeste ao nor-

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deste, adicionando ao mapa dos prospectores linhas que são como um eco das gigantescas placas continentais muitos quilômetros abaixo.

Em Copiapó, dois micro-ônibus da empresa, conhecidos como liebres (le-bres), começam a apanhar os homens do turno A nas pensões e em diversas paradas nos bairros das classes trabalhadoras da cidade. Nessa manhã, há muitos desses ônibus indo e voltando em Copiapó, pois esse é um momen-to de alta na cidade, o mais recente em um ciclo de altos e baixos que dura mais de trezentos anos. Uma corrida pelo ouro na Copiapó do século xviii foi seguida por uma corrida pela prata três anos antes da chegada de Darwin. Antes do fim do século xix, a prata já havia acabado, mas a inven-ção de explosivos à base de nitrato levou a um boom na mineração de sali-tre mais ao norte, no deserto do Atacama. Os mineiros chilenos forneciam o ingrediente essencial com o qual os europeus guerreavam e se matavam aos milhares: essa bonança, por sua vez, levou o Chile a invadir as terras ricas em nitrato dos vizinhos Peru e Bolívia, transformando Copiapó em base de operações militares. Mas a vitória na Guerra do Pacífico resultou em mais um declínio na economia de Copiapó quando os investimentos foram retirados da cidade e transferidos para os territórios recém-conquis-tados pelo Chile. No entanto, a crescente demanda global por cobre no século xx levou a mais um boom e à construção de uma fundição de cobre no local em 1951. Uma série de “milagres” econômicos na Ásia no fim do século xx aumentou ainda mais a demanda pelos minerais chilenos e trou-xe mais mineiros para Copiapó, especialmente após a abertura da Cande-laria, uma mina de cobre a céu aberto, em 1994. Esse boom mais recente ajudou a drenar e finalmente matar o rio Copiapó, pois tanto a cidade em crescimento quanto os métodos de mineração modernos necessitavam de grandes volumes de água.

Na primeira década do século xxi, a quadruplicação do preço do ouro (para quarenta dólares o grama) e uma alta recorde nos preços do cobre levaram os homens a se aventurarem mais fundo na mina San José, antes não tão lucrativa, e em outras minas no vale do rio Copiapó. A população de Copiapó cresceu para 150 mil habitantes, e prédios mais altos foram construídos, incluindo o mais alto da cidade, um luxuoso edifício residen-cial de quinze andares na rua Atacama, juntamente com o primeiro resort

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de Copiapó, o Antay Cassino e Hotel, uma construção cujos toques mo-dernistas incluem uma cúpula carmesim com o formato de um chapéu turco. Os preços crescentes dos minérios também colocaram mais dinheiro no bolso dos homens que trabalhavam na mina San José, e nos últimos meses e anos, os homens do turno A vêm comemorando seus lucros ines-perados adicionando quartos a suas casas e organizando grandes festas, com frequência para os filhos e netos. Às vezes essas reuniões de família são organizadas no parque El Pretil, uma área com gramados irrigados, euca-liptos e pimenteiras e um pequeno zoológico com lhamas, corujas e dois leões desmazelados em uma jaula pintada de lilás.

No final de sua última semana de trabalho, cerca de vinte homens do turno A compareceram a uma festa na casa de Víctor Segovia, um operador de jumbo com gosto pela música e um fraco pela bebida. Encheu-se uma grande panela com carne de boi, frango, porco e peixe, e o anfitrião prepa-rou o guisado localmente conhecido como cocimiento, um prato que é por si uma espécie de celebração da abundância. Alguns dias depois, o primo de Víctor, Darío Segovia, planejava uma grande festa de aniversário para sua filhinha no dia 5 de agosto, quando chegou a notícia de que estava sendo requisitado para um turno extra naquele mesmo dia (um dia que tinha tirado de folga). A remuneração por esse único dia de trabalho (90 mil pesos chilenos, ou cerca de 180 dólares) era boa demais para ser recu-sada, e ele disse à mãe de sua filha, sua companheira, Jessica Chilla, que teriam de adiar a festa de aniversário. Só por despeito, Jessica se recusou a falar com ele ou a preparar o jantar na noite anterior a sua partida para o trabalho.

Antes do amanhecer e do início do turno, o casal faz as pazes. Apro-ximadamente às seis e meia, Darío beija Jessica, desce os degraus que levam do segundo andar de sua casa à porta da frente, para e volta para envolver com os braços a mulher que ama. Abraça Jessica por vários segundos, um momento de delicadeza e afetividade por parte daquele homem de 48 anos, musculoso e calejado. Abraçá-la talvez seja sua maneira de pedir des-culpas, mas é também um intervalo de sua rotina doméstica, e Jessica fica ansiosa quando Darío sai pela porta.

Luis Urzúa parte de um bairro de classe média em Copiapó. É o su-pervisor do turno A, e outros homens em sua posição são conhecidos por dirigir seus próprios veículos até a mina, mas Urzúa faz o percurso junto de

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seus subordinados. Pega o ônibus não muito longe de outro ponto em Copiapó, onde conheceu a esposa, Carmen Berríos, vinte anos antes. Ur-zúa vem de uma família de mineiros e começou a trabalhar no subterrâneo ainda adolescente, mas quando conheceu Carmen tinha um cobiçado em-prego na superfície e viria a obter uma qualificação técnica como topógrafo. Carmen é uma mulher inteligente, romântica, que escreve poesia quando bate a inspiração e que, no decorrer dos anos, fez do esforçado Luis Urzúa seu projeto: entre outras coisas, tenta fazer com que ele fale de maneira mais clara, pois frequentemente resmunga, com a mesma dicção de um mineiro pobre. Quando ele termina o trabalho, às oito da noite, ela já está com o jantar pronto e o casal se senta para comer com os dois filhos cres-cidos, ambos já na faculdade.

Do lado de fora, uma espessa névoa matinal desce sobre a cidade es-curecida. Em um lugar onde quase nunca chove, a água paira no ar, flutua sobre os postes de luz e sobe as ravinas que cortam a cidade. A névoa é uma ocorrência quase diária nessa parte do Chile e tem até nome: la camancha-ca. Algumas vezes, a neblina é tão espessa que os veículos não conseguem transitar com segurança pelas rodovias que levam à mina, e o início do trabalho é postergado até que ela se dissipe, embora hoje não seja um des-ses dias. Nas esquinas de Copiapó, os homens aguardam o ruído das “le-bres” surgir da neblina.

Cada membro do turno A, de uma maneira ou de outra, está indo para a San José nesta manhã pela mulher ou pelas mulheres de sua vida: esposa, namorada, mãe, filha. Jimmy Sánchez, que tem dezoito anos e, portanto, não está legalmente autorizado a trabalhar na mina (é preciso ter no mínimo 21), tem uma namorada que está grávida, uma complicação que levou seus familiares a implorarem aos gerentes da mina para que lhe dessem um em-prego. No bairro batizado em homenagem a Arturo Prat, um herói da Guer-ra do Pacífico, o miúdo e belo Alex Vega acaba de se despedir da esposa, cujo nome também é Jessica. Ela se recusou a dar o costumeiro beijo de despedida no marido, pois está zangada com ele, embora logo vá esquecer por quê. A pouco menos de um quilômetro de distância, em um bairro batizado em homenagem ao papa João Paulo ii, um dos membros das equipes que forti-ficam os corredores da mina deixa a casa da namorada. Yonni Barrios é um Romeu barrigudo, de fala mansa e cicatrizes nas bochechas. Vive com sua mais nova namorada, a menos que esteja brigado com ela. Neste caso, mora

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com a esposa. Convenientemente, as duas moram a menos de um quarteirão de distância, e ao caminhar para pegar o ônibus Yonni vê a porta da casa da esposa. Fez um empréstimo para pagar pela lojinha que ela mantém em casa, e quitar essa dívida (além de ajudar a namorada com a casa dela) é uma das razões pelas quais está acordado tão cedo hoje, ouvindo o som do ônibus que se aproxima e que o levará ao trabalho.

Existem muitas superstições a respeito de mulheres e minas que cons-tituem expressões ambivalentes acerca das mulheres e do trabalho subter-râneo em uma cultura dominada pelos homens. Reza uma das lendas que a própria montanha é uma mulher e que, de certa forma, “você a está vio-lando cada vez que entra nela”, o que explica por que a montanha com frequência tenta matar os homens que entalharam corredores em seu corpo rochoso. Segundo outra, mulheres trabalhando no subterrâneo atraem má sorte (embora pelo menos um dos mineiros tenha uma irmã que trabalhou durante décadas em sua própria mina) e quase nunca se vê uma mulher nas cavernas da San José. A separação entre a esfera doméstica e urbana, domi-nada pelas mulheres, e a mina no deserto, centrada nos homens, é tão grande que a maioria das esposas e namoradas dos trabalhadores do turno A nunca foi à San José nem sabe ao certo sua localização.

Os ônibus chegam e os homens, ainda sonolentos, tomam seus luga-res. Arrastam-se pela cidade e pela névoa, passando pelos prédios de cor mostarda da Universidade do Atacama, próximos ao limite norte da cidade, onde a filha de um dos homens do turno A estuda Engenharia Civil. Che-gam à pista da Rodovia Pan-Americana que leva ao norte, deixam Copiapó e rumam em direção aos restos mortais dos desaparecidos e às antigas minas de salitre do interior do deserto do Atacama. A San José fica a 56 quilôme-tros de Copiapó, e o último ponto de referência no caminho é uma monta-nha rochosa logo além dos limites da cidade, conhecida como “Monte Ber-rante”. Darwin viu esse monte, o Cerro Bramador, e escreveu sobre o barulho singular que fazia. Hoje o som é frequentemente comparado àquele de um instrumento latino-americano conhecido como pau de chuva. Uma lenda local conta que o barulho é o rugido de um leão que guarda um tesouro dentro da montanha; segundo outra, é o fluxo de um rio subterrâneo ainda não descoberto. A explicação semicientífica é que os depósitos de magnetita da montanha atraem e repelem grãos de areia que vibram no vento.

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Darwin seguiu a estrada que passa pela montanha sibilante até chegar ao porto onde o hms Beagle esperava por ele; navegou então até as ilhas Ga-lápagos, nas quais suas observações das aves locais o levariam a elaborar a teoria da seleção natural. Mas os homens do turno A viram à direita logo depois da montanha berrante, saindo da Rodovia Pan-Americana e diri-gindo-se ao norte e para o interior em uma estrada estreita de asfalto gasto. Pelos primeiros poucos quilômetros, a estrada atravessa em uma linha longa e reta uma planície feia de areia marrom-acinzentada, coberta com pedras quebradas e plantas sopradas pelo vento. Os ônibus passam por um atalho para o Cerro Imán, ou Monte Ímã, que contém uma mina de minério de ferro, depois a estrada começa a se curvar, entrando em um vale estreito cercado por montanhas rochosas e áridas. Os montes se er-guem como ilhas avermelhadas em um mar de areia cinza-claro, e arbus-tos com a forma e o tamanho de ouriços-do-mar aparecem ao longo da beira da estrada. Um homem que depare com essa paisagem hoje ainda vê o implacável vazio do Atacama percebido por Darwin: não há animais perambulando ou correndo, nem postos de gasolinas ou lojas de beira de estrada, ou qualquer outro sinal de habitação humana. As montanhas adquirem uma coloração marrom-avermelhada e laranja e parecem foto-grafias da superfície de Marte. Finalmente, os ônibus entram em outro vale e passam por uma placa azul que anuncia a divisa entre as terras da Companhia de Mineração San Esteban e suas duas minas irmãs, a San Antonio e a San José. Daqui, os homens começam a avistar as estruturas de madeira, latão e aço da mina, corroídas e desgastadas pelo vento, com um aspecto tragicamente solitário na paisagem estranha. Lentamente, ini-ciam uma subida suave, e logo os prédios familiares na encosta vão en-trando em foco: os bangalôs da administração, os vestiários, as cantinas. Mas os homens sabem que a mina é como um iceberg, pois essas estrutu-ras na superfície representam apenas uma pequena fração de sua vastidão subterrânea.

Abaixo da terra, a mina se expande em passagens que levam a vastos espaços interiores abertos com explosivos e maquinário, trilhas para gale-rias e canhões artificiais. A cidade subterrânea da mina San José tem um clima próprio, com temperaturas que sobem e caem e brisas que mudam em diferentes horas do dia. Seus atalhos subterrâneos têm placas e regras de trânsito para manter a ordem, e diversas gerações de topógrafos planejaram

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e mapearam sua expansão terra abaixo. O caminho central que liga todas essas passagens à superfície chama-se La Rampa. A mina San José forma uma espiral descendente de profundidade quase igual à altura dos maiores arranha-céus da Terra, e o percurso pela Rampa desde a superfície até a parte mais profunda da mina é de quase oito quilômetros.

A mina San José, fundada em 1889, está posicionada sobre depósitos minerais que têm a forma de duas faixas paralelas de rocha mais maleável, incrustadas a um ângulo de sessenta graus dentro de uma rocha muito mais dura, cinza e semelhante ao granito, chamada diorito. Uma velha construção de madeira em uma encosta marca o local onde o minério che-gava mais perto da superfície. A construção costumava abrigar um guincho que içava homens e minerais para fora da mina, mas não é usado há déca-das e hoje parece uma relíquia de um velho faroeste. Passados 121 anos da abertura da mina San José e seiscentos metros abaixo daquela antiga cons-trução, o turno da noite está terminando. Homens cobertos de fuligem cinza e encharcados de suor começam a se reunir em uma das cavernas da mina, em um local que funciona como um ponto de ônibus subterrâneo, para esperar pelo caminhão em que farão o percurso de quarenta minutos de volta à superfície. Durante o turno de doze horas, os homens observa-ram uma espécie de estrondo lamuriento à distância. Muitas toneladas de rocha estão caindo em cavernas esquecidas nas profundezas da montanha. As vibrações e os sons causados por essas avalanches são transmitidos atra-vés da estrutura rochosa da montanha da mesma forma que as ondas de choque de descargas atmosféricas viajam pelo ar e pela terra. A mina está “chorando” muito, os homens dizem uns aos outros. “La mina está llorando mucho.” Esse gemido estrondoso não é incomum, mas sua frequência, sim. Para os homens da mina, é como se estivessem ouvindo uma tempestade distante ganhando intensidade. Felizmente, seu turno está prestes a acabar. Alguns dirão ao próximo grupo de homens a entrar na mina, os homens do turno A diurno, “La mina está llorando mucho”, mas é improvável que a San José feche por isso. Os homens que trabalham aqui já ouviram essas tempestades se formando antes. O trovão sempre acaba se afastando e, cedo ou tarde, a montanha volta a seu estado de tranquilidade e estabilidade.

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Ao chegarem ao terreno da mina, os homens do turno A passam pela gua-rita da segurança e depois pela entrada da Rampa, um túnel aberto com explosivos no diorito da montanha há mais de uma década. A entrada para a mina San José é um orifício de cinco metros de largura por cinco de al-tura, e as bordas que dão para o mundo exterior assemelham-se a uma série de dentes de pedra. Caminhões cheios de homens e minério agora come-çam a emergir dessa boca, pois o turno anterior está terminando. Foram removidas algumas centenas de toneladas de rocha contendo minérios, co-berta de partículas de sulfeto de cobre do tamanho de unhas, brilhando com os mesmos pastéis marmóreos dos quadros da art nouveau: carmesim, verde-floresta, marrom-avermelhado e amarelo metálico, cristais tetrago-nais do minério de cobre conhecido como calcopirita. Quando processada, cada tonelada métrica dessa rocha chega a produzir dezoito quilos de cobre (com um valor em torno de 150 dólares) e menos de trinta gramas de ouro (no valor de algumas centenas de dólares). O ouro é invisível, embora mui-tos dos homens mais velhos do turno A tenham crescido ouvindo seus pais dizerem ser possível senti-lo em rochas como essas.

Os homens entram em fila nos vestiários tão mofados e apertados quanto os de um velho navio. Vestem aventais, prendem pacotes de pilhas recém-carregadas aos cintos e lâmpadas aos capacetes azuis, amarelos e ver-melhos. Luis Urzúa coloca o capacete branco, símbolo de seu status de supervisor, e também amarra ao cinto de couro um tubo de oxigênio de “autossalvamento” do tamanho da palma da mão. Urzúa é relativamente novo na San José, tranquilo para um supervisor de turno, e não conhece a equipe tão bem quanto gostaria, em parte porque ela está sempre mudan-do de um dia para o outro. Hoje, um homem se juntará ao turno A e tra-balhará no subterrâneo pela primeira vez; e ao entrar na mina, Urzúa per-cebe que outro das duas dezenas de homens que trabalharão para ele hoje ainda nem chegou ao trabalho.

Após sua longa viagem de Santiago, Mario Sepúlveda chegou a Co-piapó tarde demais para pegar os micro-ônibus para a mina. Está parado em uma esquina de Copiapó e feliz com a situação. Da última vez que es-teve na cidade, conversou com um amigo que administra outra mina, não muito grande. Esse amigo sabe bem que a San José está perpetuamente em estado precário, tanto financeira quanto estruturalmente, e ofereceu a Se-púlveda outro emprego. Agora são nove horas da manhã, o turno A diurno

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da San José começou há uma hora e Sepúlveda acha que, se tiver sorte, vai ser despedido da San José por não ter comparecido ao trabalho hoje, o que permitirá que o amigo o contrate para a outra mina com facilidade. Esses pensamentos estão passando por sua mente quando o motorista de outro micro-ônibus passa e o avista.

“Perri!”, grita o motorista da janela, usando o apelido de Sepúlveda. “Perdeu seu ônibus? Estou indo para aqueles lados. Te dou uma carona. Entra aí.”

O homem chega à mina San José depois das nove e meia, com mais de noventa minutos de atraso, e o coração apertado. A essa altura, a neblina já se dissipou, e Sepúlveda fica parado sob a luz do deserto por alguns mi-nutos finais antes de pegar a condução para descer à mina e ao trabalho.