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LUS CARLOS SOARES MADEIRA DOMINGUES

PROJETO URBANO E PLANEJAMENTO: O CASO DO RIO CIDADE

Dissertao apresentada ao curso de Mestrado do Programa de Ps-Graduao em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessrios obteno do grau de Mestre em Planejamento Urbano e Regional. Orientador: Prof. Dr. Adauto Lcio Cardoso Doutor em Arquitetura e Urbanismo/USP

Rio de Janeiro 1999

LUS CARLOS SOARES MADEIRA DOMINGUES

PROJETO URBANO E PLANEJAMENTO: O CASO DO RIO CIDADE

Dissertao submetida ao Corpo Docente do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos requisitos necessrios para obteno de grau de Mestre.

Aprovada em:

Prof. Dr. Adauto Lcio Cardoso Prof a. Dra. Luciana Corra do Lago

Prof. Dr. Rainer Randolph Dra. Llia Mendes de Vasconcellos

D671p

Domingues, Lus Carlos Soares Madeira. Projeto urbano e planejamento : o caso do Rio Cidade / Lus Carlos Soares Madeira Domingues. 1999. 147 f. : il. ; 30 cm. Orientador: Adauto Lucio Cardoso. Dissertao (Mestrado em Planejamento Urbano e Regional)Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999. Bibliografia: f. 141-147. 1. Planejamento urbano Rio de Janeiro (RJ). 2. Rio de Janeiro (RJ) Planos. 3. Poltica urbana Rio de Janeiro (RJ). 4. Reforma urbana. 5. Planejamento estratgico. 6. Rio-Cidade. I. Cardoso, Adauto Lucio. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional. III. Ttulo.

CDD: 711.4098153

Dedico este trabalho aos meus pais Maria Terezinha e Antonio Madeira que me ensinaram a importncia e o valor da justia e da solidariedade e sempre me ofereceram carinho e apoio incondicional minha av querida Maria da Luz

AGRADECIMENTOS

Agradeo Coordenao de Aperfeioamento Pessoal Nvel Superior (CAPES) que foi responsveis pelo financiamento das bolsas de estudo, e ao Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ), pela oportunidade de troca e aprendizado com profissionais de qualidade reconhecida no meio acadmico e engajados em questes de relevncia nacional, muitas orientadas ao resgate da imensa dvida social desse pas. Agradeo ao Prof. Dr. Adauto Lcio Cardoso, pela sua orientao ao trabalho, suas contribuies sempre valiosas e pertinentes, pela sintonia de idias e estmulo reflexes instigantes, e pelo prazeroso processo de trabalho. Agradeo Rosana Zouain, minha parceira e companheira que superando as distncias nunca deixou de me brindar e inspirar com sua presena Agradeo aos meus scios, que tanto me acrescentaram no lado pessoal e profissional. Andra Borde pela sua criatividade. Andra Sampaio por me ensinar a importncia dos detalhes. Eduardo Vasconcellos pela sua experincia e riqueza de dilogos. A todos os trs pela sua amizade. Agradeo aos meus irmos, pessoas to especiais e que mundos to diferentes me oferecem, Antonio (Z), Rosa Maria e Augusto (Gugu). Agradeo s pessoas que contriburam na pesquisa e editorao garantindo a qualidade grfica deste trabalho Renata, Flamarion, Gustavo e Andr Barroso. Agradeo Vera Tangari, pela possibilidade de acesso informaes fruto de sua pesquisa sobre projetos urbanos em matrias dos principais jornais do Rio de Janeiro. Agradeo Coordenadoria Geral do Municpio (CGM-PGM), Diviso Tcnica do IPTU (DV-IPTU) e Coordenao de Projetos da IplanRio, pela sesso dos dados solicitados, pela disponibilidade pessoal e atendimento de qualidade oferecido pelos funcionrios responsveis. Enfim, a todos os amigos e profissionais que, de alguma forma, colaboraram com este trabalho e contriburam com a minha formao profissional e para a vida.

RESUMO

PROJETO URBANO E PLANEJAMENTO: O CASO DO RIO CIDADE

O Projeto Rio Cidade uma iniciativa da Secretaria de Urbanismo da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro que consiste na reurbanizao de espaos pblicos visando sua requalificao e disciplinamento e representou o principal instrumento de poltica urbana da prefeitura na gesto 1993-1996. A formulao do projeto rio cidade pretende estar diretamente vinculada ao eixo de argumentao do discurso do planejamento estratgico e do novo urbanismo que se apiam na gesto por projetos urbanos, marcando uma posio distinta da urbanstica moderna, enfatizando a crtica ps-moderna. Esse discurso prope uma inflexo em relao ao discurso da agenda do movimento nacional da reforma urbana que iluminou o processo de elaborao do plano diretor aprovado em 1992. Assim, a hiptese central de trabalho em que nos apoiamos considera que na poltica urbana do rio de janeiro convivem dois modelos de planejamento que so conflitantes, apresentando uma diferena radical e talvez paradigmtica entre seus projetos de cidade, diagnsticos e estratgias de ao. O objetivo da dissertao centrado na caracterizao e avaliao crtica do principal instrumento de poltica urbana adotado, o programa rio cidade, tendo como pano de fundo e eixo de argumentao o debate sobre as estratgias de gesto do territrio, focando nos discursos que iluminam ambas as agendas. O que se prope neste trabalho realizar uma avaliao normativa / poltica do instrumento a partir de critrios intimamente ligados a um quadro de valores, cujos parmetros externos ao instrumento em questo so inspirados nos princpios que constituem a estrutura nuclear do discurso da agenda da reforma urbana. Mesmo apresentando o desafio de atualizar-se diante da fortes transformaes mundiais, a proposta da reforma urbana, possui um ncleo conceitual e de valores que permanece forte e representa uma conquista histrica revelada no processo de mobilizao, conscientizao e elaborao da proposta, e que representa tambm a base de reformulao de uma estratgia de gesto urbana que se adeqe a nosso momento histrico. Os resultados apontaram que o projeto rio cidade se mostrou incompatvel diante de critrios normativos do discurso da agenda da reforma urbana e ineficaz diante de critrios relacionados ao discurso que o justifica. o projeto rio cidade embora apresente alguns mritos, existem muitos problemas na sua formulao e principalmente na sua implementao. essa crtica pesa sobre a experincia especfica do rio cidade mas representa apenas uma referncia na indagao em relao aos projetos urbanos como alternativa de interveno nas cidades.

ABSTRACT

URBAN PROJECT AND PLANNING: THE CASE OF RIO CIDADE

The Projeto Rio Cidade is an initiative of Secretaria Municipal de Habitao from Rio de Janeiros City Council, consisting in the urban re-qualification of public spaces, emphasizing its regeneration and control. This represented the foremost instrument of urban policy in the interval between 1993 - 1996. Its formulations intended to be strictly engaged with strategic plannings argumentative axis of discourse, together with the planning policies of urban design, being both supported by the public desire for urban projects. This municipal policy presented a differentiated position of modern urban planning that emphasizes post-modern critique. This discourse proposes an inflection in relation with the National Movement for Urban Reforms agenda, which illuminated the elaboration processes of the master plan, approved in 1962. Thus, the central hypothesis of our work considers that Rio de Janeiros urban policies is based in two conflicting planning models, which present a radical and perhaps paradigmatic difference between their city projects, diagnosis and action strategies. The dissertations objective is centered in the characterization and critical evaluation of the main adopted instrument of urban policy in Rio, the Projeto Rio Cidade, having as background and argumentative axis the debate about territorial management strategies, observing the arguments illuminating both agendas. What is proposed throughout this work is the normative and political evaluation of this instrument of urban policy, departing from criteria which are intimately enmeshed with a value agenda whose external limits towards the observed instrument are inspired in the principles constituting Urban Reforms nuclear structures of discourse. Even demonstrating the challenge of having to be constantly actualized in confrontation with enormous world transformations, the proposal for urban reforms has a conceptual value nucleus which is preserved strong, representing an historical conquest revealed through mobilization processes, conscientization and proposals elaboration, representing also the reformulated basis of an urban management strategy that is adequate to our historical moment. The results point to the conclusion that Projeto Rio Cidade was found incompatible with the Urban Reforms agenda of normative criteria, being also weak if confronted with those of its justification discourse. The Projeto Rio Cidade, although presenting merits, bear also many formulation problems, specially in its implementation. These reviews' weights over the Rio Cidade experience, but they only serve as a reference towards the inquiry about urban projects adopted as alternatives of intervention in cities.

SUMRIO

1. 2. 2.1. 2.2.

INTRODUO CONTEXTUALIZAO O surgimento de novas abordagens no planejamento e na administrao urbana Os novos desafios impostos pela crise do regime fordista de acumulao e os limites do modelo de anlise A cidade global e as duas abordagens sobre as anlises urbanas - a sada econmica e a fragmentao social A relao entre o ps-fordismo e a ps-modernidade O rebatimento no planejamento e o novo papel do desenho urbano A AGENDA DA REFORMA URBANA. O PLANEJAMENTO ESTRATGICO E A GESTO POR PROJETOS. A POLTICA URBANA DO RIO DE JANEIRO E A SUPERPOSIO DE MODELOS. Contextualizao das transformaes na situao especfica nacional A origem da Reforma Urbana, a construo e a apresentao dos principais pontos do discurso O rebatimento do discurso da Reforma Urbana na prtica, a crtica ao discurso e o fortalecimento do discurso conservador A adoo pelo municpio do Rio de Janeiro de um modelo de poltica urbana de corte conservador baseado na gesto por projetos e inspirado no modelo de Planejamento Estratgico adotado por Barcelona 3.4.1. Principais pontos de conflito entre o modelo de planejamento tradicional e a alternativa proposta pelos tericos / consultores do Planejamento Estratgico e principais caractersticas do que se considera uma nova proposta de planejamento e de atuao sobre a cidade. 3.4.2. O Plano Estratgico O discurso catalo. 3.4.3. O Projeto Urbano e o Plano Estratgico 3.4.4. Riscos e limites da proposta

01 14 14 16 21 23 25 31

2.3.

2.4. 2.5. 3.

3.1. 3.2.

31 33 36 43

3.3.

3.4.

44

50 53 55 59 59 59 67 72

4. 4.1.

APRESENTAO DO PROJETO RIO CIDADE A Formulao terica do Projeto Rio Cidade 4.1.1. O Discurso Oficial 4.1.2. Relao Plano / Projeto e adequao ao discurso do Plano Estratgico 4.1.3. O Rio Cidade como um Projeto Urbano

4.2.

O Processo de Implantao do Projeto Rio Cidade 4.2.1. A implantao do Projeto e algumas questes que orientaram sua elaborao. 4.2.1.1. A implantao do Projeto: do concurso execuo das obras. 4.2.1.2. Algumas questes que orientaram o exerccio de projeto. 4.2.2. As crticas experincia e a segunda fase do projeto O Rio Cidade II. 4.2.2.1. As crticas experincia da primeira fase do Rio Cidade 4.2.2.2. A segunda fase do projeto O Rio Cidade II

77 77 77 82 85 85 100 105 105 108 111 111 111 113 115 117 117 118 121 123 125 126 128 129 130 132 141

5. 5.1. 5.2. 5.3.

AVALIAO DO PROJETO RIO CIDADE Notas terico-metodolgicas sobre o processo de avaliao do Projeto Rio Cidade Justificativa dos critrios de avaliao escolhidos. A avaliao normativa do Projeto Rio Cidade 5.3.1. A inverso de prioridades 5.3.1.1. A concepo do instrumento 5.3.1.2. O Oramento Municipal 5.3.1.3. A escolha das reas projeto 5.3.1.4. Consideraes finais sobre o critrio analtico 5.3.2. A participao popular e a democratizao da gesto urbana 5.3.2.1. O Projeto Rio Cidade como objeto de um processo participativo 5.3.2.2 A fase da formulao do Projeto Rio Cidade 5.3.2.3. As fases de elaborao do projeto e execuo de obra 5.3.2.4. Consideraes finais sobre o critrio analtico 5.3.3. A Recuperao de mais valias 5.3.3.1. Consideraes sobre instrumentos 5.3.3.2 A recuperao do investimento atravs do IPTU e o ITBI 5.3.3.3. Consideraes finais sobre o critrio analtico

6. 7.

CONCLUSO REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

No centro de Fedora, metrpole de pedra cinzenta, h um palcio de metal com uma esfera de vidro em cada cmodo. Dentro de cada esfera, v-se uma cidade azul que o modelo para uma outra Fedora. So as formas que a cidade teria podido tomar se, por uma razo ou por outra, no tivesse se tornado o que atualmente. Em todas as pocas, algum, vendo Fedora tal como era, havia imaginado um modo de transform-la na cidade ideal, mas, enquanto construa o seu modelo em miniatura, Fedora j no era mais a mesma de antes e o que at ontem havia sido um possvel futuro hoje no passava de um brinquedo numa esfera de vidro. (...) No Atlas do seu imprio Grande Khan, devem constar tanto a grande Fedora de pedra quanto as pequenas Fedoras das esferas de vidro. No porque sejam igualmente reais, mas porque so todas supostas. Uma rene o que considerado necessrio, mas ainda no o ; as outras, o que se imagina possvel e um minuto mais tarde deixa de s-lo. (talo Calvino. As cidades invisveis, 1972) Kublai perguntou para Marco: -Voc, que explora em profundidade e capaz de interpretar os smbolos, saberia me dizer em direo a qual desses futuros nos levam os ventos propcios? -Por esses portos eu no saberia traar a rota nos mapas nem fixar a data de atracao. s vezes, basta-me uma partcula que se abre no meio de uma paisagem incongruente, um aflorar de luzes na neblina, o dilogo de dois passantes que se encontram no vaivm, para pensar que partindo dali construirei pedao por pedao a cidade perfeita, feita de fragmentos misturados com o resto, de instantes separados por intervalos, de sinais que algum envia e no sabe quem capta. Se digo que a cidade para a qual tende a minha viagem descontnua no espao e no tempo, ora mais rala, ora mais densa, voc no deve crer que pode parar de procur-la. Pode ser que enquanto falamos ela esteja aflorando dispersa dentro dos confins do seu imprio; possvel encontr-la, mas da maneira que eu disse. (...) O inferno dos vivos no algo que ser; se existe, aquele que j est aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de no sofrer. A primeira fcil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste at o ponto de deixar de perceb-lo. A segunda arriscada e exige ateno e aprendizagem contnuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, no inferno, e preserv-lo, e abrir espao. (talo Calvino. As cidades invisveis, 1972)

1

1

INTRODUO

O Projeto Rio Cidade uma iniciativa da Secretaria de Urbanismo da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro que consiste na reurbanizao de espaos pblicos visando sua requalificao e disciplinamento. O Projeto Rio Cidade prope aes localizadas e exemplares buscando reforar os centros de bairro da cidade. Atravs da reconstruo e revitalizao de ruas e praas, a prefeitura pretendia reverter uma situao urbana configurada, segundo seu prprio diagnstico, por ruas e caladas degradadas e inseguras para o pedestre que estaria perdendo a afetividade e o sentido de identidade com o espao urbano do Rio de janeiro. Escolhendo os centros de bairro como os locais privilegiados das obras, o projeto pretendia reforar ainda a identidade dos bairros, elevando a auto-estima e o sentido de enraizamento das comunidades locais. Os trechos selecionados para as intervenes deveriam consistir em reas de uso predominantemente comercial e cumprir o papel de plos de atrao em relao outros bairros vizinhos e a toda a cidade o que, acreditava-se, permitiria uma maior integrao interna na cidade e maior velocidade na reverso do quadro de degradao diagnosticado e eram, por isso, considerados estratgicos. As ruas representaram o objeto preciso de atuao imaginado para o instrumento. A meta genrica a atingir consistia em restituir aos cidados o direito cidade, a ordem urbana. Essa proposta de interveno que consistiu na principal ferramenta de poltica urbana da prefeitura reflete uma postura conservadora encarnada em uma nova viso de mundo onde as cidades deveriam ser meticulosamente analisadas em suas microparticularidades pontuais j que, como o mundo, constituiriam tambm um agregado incoerente de partes desconectadas, opacas s lgicas simplificadoras que percebiam o mundo como um todo racionalmente ordenado e sujeito, portanto, s subdivises hierrquicas sugeridas pelo mtodo cartesiano. Esta postura referendada pela rea de competncia do Desenho Urbano, ferramenta terica recente utilizada pelos arquitetos na elaborao de projetos 1

urbanos que surge como espao de competncia prpria, e marca uma posio distinta da urbanstica moderna enfatizando a crtica ps-moderna. Essas idias sintonizam assim com o pensamento fragmentrio ps-moderno, que aposta na colagem, na diferenciao e assim justificaram uma abordagem que permite e incentiva a liberdade e variedade formal e simblica entre as propostas de projeto, e pretende mediar a comunicao entre o projeto e o pblico atravs do espetculo. O Projeto Rio Cidade pretendia atuar de acordo com a capacidade reduzida de investimento, propondo requalificaes exemplares, de forma gradual, reforando tendncias, revisando desequilbrios, respeitando singularidades e, portanto, atuando de forma heterognea. O Projeto Rio Cidade apoiava-se na fora da imagem positiva e na alta qualidade da cidade e dos lugares como um fator competitivo importante e uma opo quase que inevitvel diante de um perodo de forte competio entre cidades e empresariamento urbano intensificados (HARVEY, 1996). A poltica urbana do municpio, sintonizada com esse discurso, pretendia inverter a prioridade no eixo de atuao do econmico para o urbano, apostando na interveno direta pontual, em diversos pontos do territrio, com a inteno de que os efeitos de contaminao irradiassem por todo o territrio, fomentando e obtendo transformaes em todas as esferas. O Projeto Rio Cidade no consistiria em um conjunto de intervenes pontuais isoladas que supostamente estariam articuladas outras intervenes pontuais, estratgicas e subjugadas a um plano geral para a cidade. A formulao do Projeto Rio Cidade pretende estar diretamente vinculada ao eixo de argumentao do discurso do Planejamento Estratgico e do novo urbanismo que se apoiam na gesto por Projetos Urbanos e incorpora a sntese da mudana na orientao do Planejamento local, sendo elas maior explicitao estratgica, maior sentido programtico, e maior contedo desenho (PORTAS, 1998; BORJA; CASTELLS, 1997). A poltica urbana implantada pela Prefeitura recebeu uma influncia determinante da experincia de Barcelona, e seu modelo especfico de planejamento estratgico, cujo discurso embalado por tericos como Jordi Borja, Manuel Castells e Manuel de Forn, aliado ao discurso sobre projetos urbanos, com consultoria direta prestada pelo arquiteto Oriol Bohigas compartilhada pelo arquiteto portugus Nuno Portas. No conjunto de planos, programas e projetos 2

formulados e postos em prtica pela prefeitura temos tambm o programa Favela Bairro (1994), a elaborao do Plano Estratgico (1996), projetos como a revitalizao da Praa XV, obras virias (linha Amarela) e uma srie de outras intervenes pontuais. Entre algumas inovaes que o Projeto Rio Cidade introduziu na poltica urbana do municpio, tivemos a realizao, no final do ano de 1993, de concurso pblico de propostas metodolgicas dirigidas por arquitetos para escolher as equipes que seriam responsveis por cada uma das 19 reas do Projeto Rio Cidade que abrangeram trechos das zonas mais ricas da cidade. Alm de valorizar a categoria profissional, o Projeto agora tinha a partir de ento essa parcela da sociedade ajudando a construir o seu discurso competente. No concurso, inscreveram-se 42 equipes e 17 destas foram escolhidas. Aps selecionadas as equipes pelo concurso, foram definidas as reas de atuao de cada uma delas. Do projeto execuo algumas inovaes foram introduzidas mas muitas foram as crticas, tendo a polmica virado notcia e assunto cotidiano mobilizando a mdia e opinies as mais variadas sobre o tema durante pelo menos dois anos (1995 e 1996). Muitas crticas se referem ao resultado esttico/formal e o custo total da obra, especificamente do conjunto do mobilirio urbano e de peas escultricas; baixa qualidade de execuo e acabamento das obras; problemas de adequao da obra ao projeto; problemas relacionados manuteno futura e uma srie de outros problemas que teriam maximizado os transtornos vividos pela populao local. Esses dois anos antecederam imediatamente a eleio majoritria para o cargo de prefeito da cidade e para as cadeiras da Cmara de Vereadores, o que acirrou o debate poltico sobre as obras e o Projeto Rio Cidade. Foi inclusive instaurada uma Comisso Parlamentar de Inqurito (CPI) pela Cmara dos vereadores para apurar irregularidades nas obras o Rio Cidade, como a denncia de favorecimento de empresas e crimes de responsabilidade contra a prefeitura. O tema deste trabalho inscreve-se no contexto de crise do planejamento e emergncia de novas estratgias de interveno sobre o urbano, associada s profundas transformaes econmicas, polticas e culturais ocorridas nos pases centrais a partir da dcada de 60, quando surgem os primeiros sinais de 3

esgotamento do modelo fordista de regulao econmica (Harvey, 1993). Uma das principais diretrizes da rea de planejamento, atualmente, se refere s interrogaes relativas ao Estado e s estratgias assumidas, pelo aparelho de governo, na legitimao de formas de controle exercidas sobre a sociedade e o territrio (RIBEIRO, 1997). O rebatimento das transformaes no planejamento aponta para a superao do modelo tradicional, na direo de novos estilos de planejamento cuja linha mais forte parece apostar na gesto por projetos urbanos. Neste sentido, Ascher (1992) acredita que est se disseminando uma forte

tendncia na direo do que denomina um urbanismo de resultados e Harvey (1996) aponta para uma caracterstica crescente de empresariamento administrao urbana. Evoca assim, uma transformao do antigo modelo dentro de uma nova lgica, que pressupe uma nova base operativa aliado a uma nova base normativa. A poltica urbana do municpio do Rio de Janeiro, a partir da gesto Csar Maia, recebe influncia direta dessas idias, entretanto articulando a novidade tcnica e ideolgica aos interesses da orientao conservadora do governo. O processo de reestruturao produtiva e de redefinio do papel do estado na sociedade brasileira apresenta um rebatimento especfico, resultado do desenvolvimento da crise sobre uma realidade capitalista perifrica. Esse processo marcante nos anos de estagflao da dcada de oitenta, quando o pas inicia o processo de redemocratizao que tem como marco a promulgao da Constituio em 1988. Nesta, muito embora alguns temas no tenham sido aprovados, observa-se uma srie de conquistas sociais e o avano de propostas de cunho progressista, incluindo o tema da questo urbana que ganha uma importncia jamais vista. Essas conquistas, entretanto, estavam aqum das expectativas dos diversos atores reunidos em torno do Movimento Nacional de Reforma Urbana (MNRU) e, a maior parte destas, s deveria efetivamente se concretizar quando do desenvolvimento dos planos diretores municipais anos mais tarde (RIBEIRO, 1994). O municpio do Rio de Janeiro aprovou seu Plano Diretor em 1992, incorporando uma srie de elementos que constam da agenda do Movimento Nacional de Reforma Urbana atravs da participao de amplos setores da sociedade. Junto com o Plano Diretor de So Paulo, tambm com forte influncia 4

da mesma agenda, serviram de modelo para muitos planos diretores que foram elaborados em outros municpios posteriormente (SANTOS JNIOR, 1995). A intensificao da crise econmica e a necessidade de inserir a cidade nos novos padres de produtividade e nos movimentos de luta pela competitividade, contra a excluso, contra a dualizao social e na resistncia fragmentao do tecido social - que imaginava-se unificvel em torno de objetivos de cidadania e na democratizao do acesso ao consumo coletivo - impem agenda da reforma urbana, influenciada que ainda est pela corrente marxista da escola francesa da dcada de setenta, a necessidade e o desafio de se atualizar (SANTOS JNIOR, 1995). O principal desafio estaria em construir um caminho que aponte no sentido de uma sociedade mais justa e democrtica, com qualidade de vida, e ao mesmo tempo garanta a integrao social e a competitividade do pas na economia globalizada. A adoo por parte do prefeito recm - eleito do municpio do Rio de Janeiro de uma poltica urbana de carter distinto ao modelo anterior baseado no Plano Diretor, aprovado no ano anterior (1992), observvel no conjunto de suas medidas e simbolizado no primeiro mandato (93-96) pelo Projeto Rio Cidade (1993), caracteriza uma situao de convivncia de estilos de planejamento incompatveis. Assim, a hiptese central de trabalho em que nos apoiamos

considera que na poltica urbana do Rio de Janeiro convivem dois modelos de planejamento que so conflitantes, apresentando uma diferena radical e talvez paradigmtica entre seus projetos de cidade, diagnsticos e estratgias de ao. Por um lado, o modelo representado pelo Plano Diretor que teria a agenda da Reforma Urbana como discurso justificador e, por outro, o modelo de planejamento adotado pelo governo que tem no Programa Rio Cidade, seu principal instrumento de poltica urbana, que teria no modelo catalo de planejamento estratgico, seu discurso justificador. O objetivo da dissertao centrada na caracterizao e avaliao crtica do principal instrumento de poltica urbana adotado, o programa Rio Cidade, tendo como pano de fundo e eixo de argumentao o debate sobre as estratgias de gesto do territrio, focando nos discursos que iluminam ambas as agendas. O que se prope neste trabalho realizar uma avaliao normativa/poltica do instrumento a partir de critrios intimamente ligados a um quadro de valores, cujos 5

parmetros externos ao instrumento em questo so inspirados nos princpios que constituem a estrutura nuclear do discurso da agenda da Reforma Urbana. Esta opo deve-se ao fato da avaliao das polticas geralmente ser acionada como forma de ampliar a eficincia, a eficcia e a legitimidade das aes do Estado (MELDONESI, 1996), entretanto, ao desenvolver um trabalho de avaliao, deve-se no apenas tomar como objeto a capacidade das aes desenvolvidas pelo poder pblico atingirem seus objetivos, mas tambm se colocar em questo sobre os prprios objetivos dessas aes e os seus mecanismos de implementao (RIBEIRO; CARDOSO 1999). A avaliao poltica ento demandada e consiste, segundo Figueiredo e Figueiredo (1986), em atribuir valor s polticas, s suas conseqncias, ao aparato institucional em que as mesmas se do e aos prprios atos que pretendem modificar o contedo dessas polticas. Ao optarmos pela avaliao normativa/poltica, estamos nos afastando de uma abordagem avaliativa que privilegia em geral a aplicao de critrios puramente econmicos na avaliao da eficincia, e dos problemas de avaliao da eficcia. Entre esses podemos citar a necessidade de definio clara dos objetivos e metas a serem alcanadas, e a dificuldade de avaliar os produtos e resultados da interveno, e principalmente o impacto provocado. Ao optarmos pela avaliao normativa/poltica, tambm nos afastamos dos problemas metodolgicos da avaliao comparativa relativos verificao de compatibilidade e coerncia entre objetivos, discursos, prticas e conceitos entre instrumentos de poltica urbana que convivem no municpio. Ao propor uma avaliao normativa diante de uma situao de conflito entre duas concepes de planejamento, a referncia de valores da proposta da Reforma Urbana, representa um marco importante. Mesmo apresentado o desafio de atualizar-se diante da fortes transformaes mundiais, a proposta da Reforma Urbana, possui um ncleo conceitual e de valores que permanece forte e representa uma conquista histrica revelada no processo de mobilizao, conscientizao e elaborao da proposta, e que representa tambm a base de reformulao de uma estratgia de gesto urbana que se adeqe a nosso momento histrico. Alm de proporcionar uma avaliao rica e sugestiva dada a qualidade e a fora desse quadro de valores e promove um maior nvel de 6

questionamento sobre o objeto de anlise j que expe os dois discursos face a face. Esta representa tambm uma oportunidade de refletirmos sobre a herana e o potencial de atualizao da proposta da Reforma Urbana. A avaliao normativo / poltica do Projeto Rio Cidade ser realizada a partir de trs critrios que poderamos considerar como representativos da estrutura discursiva da agenda da Reforma Urbana. A inverso de prioridades; a recuperao de mais valias; a participao popular e a democratizao da gesto urbana. Essa avaliao ser centrada nos processos de formulao e de implementao do instrumento de poltica urbana, o Projeto Rio Cidade. A estratgia de avaliao e a definio das referncias tericas e fontes documentais e de dados utilizados, considerando o compromisso de adequao entre procedimentos metodolgicos e os critrios de avaliao, sero melhor explicitados quando da apresentao individual dos critrios no captulo Avaliao do Projeto Rio Cidade. O primeiro critrio, a inverso de prioridades, se refere ao carter redistributivista dos investimentos pblicos, ligada diretamente ao princpio do direito cidade e ao valor do universalismo. Este pressupe, entre outras coisas, que os investimentos pblicos tenham como meta fundamental a diminuio das desigualdades. A anlise do instrumento a partir desse critrio adota trs formas diferentes de aproximao. A primeira se apia na prpria concepo do Projeto Rio Cidade, como instrumento de poltica pblica baseada na gesto de Projetos Urbanos. A segunda pretende analisar os dados referentes ao nvel de investimentos realizados pela prefeitura sobre o conjunto de aes pblicas que consta nos oramentos dos anos de 1995 e 1996. A terceira concentra sua anlise sobre a definio poltica das reas a serem beneficiadas na primeira fase, e posteriormente na segunda fase do Projeto Rio Cidade. O segundo critrio, a participao popular e a democratizao da gesto urbana, se refere ao aspecto fundamental do princpio da gesto democrtica, ao valor da democracia, que arroga a ampliao do direito de cidadania atravs da institucionalizao da participao direta da sociedade nos processos de gesto como forma complementar democracia representativa, e credita a sua existncia como condio de eficcia na formulao e aplicao de polticas pblicas. A anlise do instrumento a partir deste critrio pretende verificar como este foi 7

incorporado, percorrendo brevemente a formulao do escopo do programa e seus objetivos e ainda o processo de implementao, considerando desde o momento da eleio das reas projeto, a escolha dos responsveis pela elaborao do projeto, o perodo de elaborao do projeto e de execuo das obras. Para tanto, utilizo-me de informaes existentes em publicaes do rgo responsvel pelo Projeto Rio Cidade, o IPLANRIO; da experincia emprica do autor enquanto agente participante; e relatos de outros agentes participantes, onde consta uma entrevista com a responsvel no IPLANRIO pela assessoria social no processo de implantao do projeto. O terceiro critrio, a recuperao de mais-valias, se refere a uma das aplicaes da utilizao de instrumentos de interveno urbana, e est ligada diretamente ao princpio da submisso da propriedade privada sua funo social, ao valor da justia social, e prope entre outras coisas assegurar a justa distribuio dos nus e benefcios do processo de urbanizao e recuperar para a coletividade a valorizao imobiliria decorrente da ao do poder pblico. Pretendemos neste item verificar a iniciativa da prefeitura na direo na recuperao do investimento atravs de tributao, considerando a hiptese de que os imveis na rea projeto, e possivelmente em menor grau os imveis no entorno, assistiram a uma forte valorizao, principalmente naquelas localizadas em regies mais carentes, onde o contraste entre a condio de urbanizao anterior ao projeto aplicado e posterior s obras mais evidente. A hiptese sobre a iniciativa da prefeitura foi verificada a partir da anlise da planta de valores e de tributao ambas controladas pela Diviso Tcnica do IPTU. A inteno era capturar alguma variao dos valores unitrios na planta de valores e talvez alguma mudana de ndices que poderiam ser aplicados reas de exceo, como agora se constituem as reas projeto do Projeto Rio Cidade, com o objetivo final de verificar uma possvel relao com a suposta valorizao nas reas de interveno. Os critrios adotados na avaliao do Projeto Rio Cidade procuraram obedecer exigncia metodolgica de serem verificveis e aplicveis ao objeto de anlise, mesmo considerando que a estrutura conceitual do discurso que o justifica pertena outras concepes e interpretaes da realidade. Sempre que possvel, foi tambm apresentado qual seria o princpio anlogo existente no

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discurso justificativo do objeto de anlise, em relao ao critrio normativo em questo, e realizada sua verificao. As informaes sobre o programa Rio Cidade, o objeto emprico da dissertao, dado o fato da experincia e a temtica serem recentes, contam com escasso material de informao, to somente fontes primrias que se referem ao material oficial disponvel na prefeitura a seu respeito, disponveis ao pblico e s equipes participantes do programa, alm de palestras e artigos apresentados por seus consultores e representantes, bem como ntegras de propostas de concursos realizados e matrias de jornal. Isso permitiu caracterizar o discurso, a estrutura do programa e a experincia - inclusive as crticas mais comuns e a polmica instaurada poca - de forma bastante abrangente, embora, por outro lado, no haja qualquer base de informaes e dados sobre a realizao da experincia, desde a fase de elaborao de projetos, realizao das obras e de avaliao dos impactos, ou quaisquer dados anteriores e posteriores interveno. A prefeitura no conta com essas informaes, embora sejam fundamentais para a avaliao do processo, para a aperfeioamento do programa e verificao do impacto dos projetos e de eficcia interna em relao aos objetivos preconizados pelo programa. Foram disponibilizadas tambm na caracterizao do objeto, no captulo Apresentao do Projeto Rio Cidade uma sequncia de imagens mostrando a obra e o resultado do Projeto, com a pretenso no somente de ilustrar e oferecer uma aproximao visual aos resultados da interveno, mas tambm de fornecer um item fundamental para a compreenso deste instrumento que tem na imagem uma das suas justificativas e sentido de existncia. Essa dissertao se estrutura da seguinte forma. No captulo

Contextualizao apresentado o processo de surgimento de novas abordagens no planejamento e na administrao urbana a partir de uma srie de transformaes na economia e na sociedade em geral que configuram uma situao de crise. Foi adotada a leitura da crise na perspectiva da escola da regulao, e a leitura de Harvey sobre a relao entre as transformaes econmicas, polticas e culturais, e as transformaes na relao espao-tempo, que indica mudanas profundas no entendimento e na interveno sobre as cidades. 9

O captulo A poltica urbana do Rio de Janeiro e a superposio de modelos prope apresentar como se d o rebatimento das transformaes na realidade de um pas perifrico, especificamente o Brasil; prope tambm apresentar os dois discursos que iluminam, por um lado, a proposta atual de diagnstico e interveno na cidade baseada no discurso do Planejamento Estratgico e gesto por projetos e, por outro, a proposta anterior baseada no discurso da Agenda da Reforma Urbana, mostrando por fim a inusitada situao de superposio de planos e projetos caracterstica deste momento na prefeitura. O captulo Caracterizao do Projeto Rio Cidade pretende apresentar o instrumento desde sua formulao onde h uma preocupao com o discurso oficial, as principais referncias, a relao entre projeto e plano onde verificamos sua adequao ao plano estratgico e a seu discurso justificativo e logo em seguida pretendemos qualific-lo segundo o discurso que o justifica como um projeto urbano. Neste captulo tambm descrevemos tambm a implementao do Projeto, as crticas onde se fazem uso de recortes de jornal e charges no intuito de maximizar a compreenso da experincia, e ainda a reformulao do projeto quando passa para a segunda fase. O captulo Avaliao do Projeto Rio Cidade procura desenvolver, inicialmente, alguns elementos tericos que permitissem a caracterizao dos modelos metodolgicos disponveis para a avaliao do instrumento de poltica urbana, o Projeto Rio Cidade, procurando pontuar sempre os limites do exerccio proposto. Em seguida, definido o modelo de avaliao, so esclarecidos os critrios avaliativos adotados, e ento desenvolvidos e apresentados os mtodos de verificao. Finalmente, realizada a avaliao e so traadas breves consideraes. A dissertao que desenvolvo, Projeto Urbano e Planejamento o caso do Rio Cidade, orientada pelo Prof. Dr. Adauto Lcio Cardoso, o resultado de um longo processo decisrio sobre o objeto de tese que envolve diretamente minha trajetria profissional fora do instituto e a experincia acadmica vivenciada internamente. Aps terminado os crditos do curso de mestrado em Planejamento Urbano e Regional no IPPUR/UFRJ, tive oportunidade de participar de duas experincias de trabalho, no campo do Planejamento Urbano, que no apenas 10

enriqueceram minha vivncia profissional, como tambm me levaram a um redirecionamento dos objetos de estudo, buscando trazer para a reflexo acadmica um pouco da riqueza experimentada. Essas experincias foram a participao da equipe que elaborou o Projeto de Estruturao Urbana de Campo Grande e a participao na equipe responsvel pela elaborao de projeto e acompanhamento de obra do Rio Cidade Campo Grande. Ao longo desse perodo trilhei basicamente trs caminhos em busca do objeto de tese, que se articulam em reas de interesse comuns. O primeiro deles pretendia investigar as aes negociadas entre poder pblicos e agentes privados a partir do seu carter intersubjetivo e tinha como tema os instrumentos fiscais de interveno urbana. Este tema j recuperava o discurso pela reforma urbana e o entendimento do desenvolvimento da cidade atravs da inverso de prioridades e a busca da equidade, da justia social, atravs de formas compensatrias e redistributivas na gesto urbana. Tratava tambm da falncia dos mtodos de controle sobre o desenvolvimento urbano, o fortalecimento do discurso da flexibilizao das normas de uso e ocupao do solo e novas teorias sobre a localizao. Participava ento do Grupo de Trabalho: Instrumentos fiscais de Interveno Urbana orientado pelo Prof. Dr. Martin Smolka, originado em seminrio de leitura de mesmo nome, do qual faziam parte alguns alunos do Instituto. O segundo caminho, inspirado na experincia da elaborao do PEU Campo Grande (1996/1997) e do desenvolvimento do projeto e acompanhamento da obra do Rio Cidade Campo Grande (1994 /1995), sugeria uma investigao sobre o desafio do desenvolvimento urbano em reas perifricas e pretendia refletir especificamente sobre a aplicabilidade de uma legislao de uso e ocupao do solo nestas reas. O desenvolvimento do Projeto de Estruturao Urbana de Campo Grande contou com a participao de muitos alunos e professores e representou um rico aprendizado alm da possibilidade de poder aplicar os conhecimentos apreendidos no instituto, construindo a ligao entre a teoria e a prtica. A reflexo criteriosa sobre o objeto e aquela experincia de planejamento surgia como uma possibilidade sedutora de trabalho. Este tema trata de questes como a lgica de ocupao irracional,

desordenada e muitas vezes contraditria da cidade; a existncia de um crculo 11

vicioso na dinmica dos agentes responsveis pela produo do espao urbano aliado cumplicidade do estado incapaz de resolver a questo; a busca de alternativas para a superao de problemas de acessibilidade da populao servios e equipamentos pblicos retratada na carncia de condies mnimas de garantia da cidadania ao indivduo; e de como promover o controle em uma rea que sobrevive margem do estado e possui suas prprias regras em sua dinmica especfica. O retrato da situao, comum s cidades latino-americanas, clama pelo enfrentamento desse enorme desafio relacionado gesto urbana, renovao de seus mtodos de controle, de interveno e de definio de polticas pblicas. Como so reas de fronteira, introduzem sempre questes as mais atuais e relevantes no debate sobre a cidade. O interesse continuava nutrindo-se do desafio gerado pela falta de instrumento de gesto eficaz do territrio. Este desafio permanece mas, depois de investigar as possibilidades de desenvolvimento do trabalho, conclu no ser possvel realiz-lo neste momento, embora ainda pretenda faz-lo no futuro. O terceiro e definitivo objeto se refere ao desenvolvimento de uma apresentao e avaliao do Projeto Rio Cidade. Entre os motivos que me fizeram escolher este tema est a experincia de ter participado da fase I do programa (1994 e 1995) desenvolvendo em equipe o projeto Rio Cidade Campo Grande, acompanhando a obra, e todo o processo de desenvolvimento do escopo do programa. Desde ento, a experincia prtica e os estudos tericos j se complementavam. Recentemente, fui novamente selecionado, agora para o desenvolvimento de um dos projetos da segunda fase do programa (rea projeto Jardim Botnico), o que me abriu a perspectiva de continuar o acompanhamento desse processo e aprofundar o conhecimento e a crtica ao escopo do programa. A escolha do objeto se deve tambm ao papel fundamental que o programa desempenha na poltica urbana do municpio e importncia de se apresentar ao meio acadmico uma aproximao deste objeto que no seja atravs da abordagem do desenho e da imagem urbana, afastando preconceitos e permitindo um debate mais esclarecido sobre o mesmo por profissionais e acadmicos. Vale frisar a oportunidade nica de elaborar, como aluno do IPPUR, uma avaliao sobre o programa, tendo participado da elaborao do projeto Rio

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Cidade na fase I e estando selecionado para a fase II, garantindo assim a continuidade do processo de investigao aps a dissertao.

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CONTEXTUALIZAO

Esse captulo pretende apresentar um panorama geral das transformaes na economia e na sociedade em geral, que configuram uma situao de crise, visualizando seu rebatimento no planejamento e no modo de interveno nas cidades, abordando a tendncia ao empresariamento na administrao urbana, a valorizao dos projetos urbanos, e ressaltando o novo papel do desenho urbano. Para tanto, utilizamos a hiptese central do argumento de Harvey - ao tratar da condio ps-moderna que estabelece a relao entre as transformaes econmicas, polticas e culturais ocorridas a partir da dcada de 60, associando o ps-fordismo, centrado no regime de acumulao flexvel, sociedade psindustrial e base cultural do ps-modernismo. A construo do argumento percorre os fatos e fundamentos polticos, econmicos e culturais, antes de explorar a relao espao-tempo diferenciado que vem sendo experimentada com aquelas transformaes, por ser esta um vnculo mediador singularmente importante entre o dinamismo histrico - geogrfico e complexos processos de produo cultural e transformao ideolgica.2 1

2.1

O surgimento de novas abordagens no planejamento e na administrao urbana

Ascher3 afirma que se durante os anos 60 e 70 os poderes pblicos se preocupavam bastante com o controle dos processos de urbanizao, nos anos 80 e 90 a principal preocupao , antes de mais nada, com a criao de empregos. Conscientizando-se de que um certo nmero de qualidades urbanas1

HARVEY, David. Do gerenciamento ao empresariamento: a transformao da administrao urbana no capitalismo tardio. Espao & Debates, So Paulo, n. 39, p. 48-64, 1996. 2 HARVEY, David. Condio ps-moderna. 2 ed. So Paulo: Loyola, 1993. 3 ASCHER, Francois. Projeto pblico e realizaes privadas: o planejamento das cidades refloresce. Cadernos IPPUR / UFRJ, Ano VIII, n. 1, p. 83-96, abr./1994.

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so fatores chave para suas atratividades, as cidades se entregam a uma concorrncia aguda sobre esses fatores para atrair empresas. Ascher argumenta que, com as novas responsabilidades das administraes locais das cidades, o recurso ao emprstimo e a parceria pblico-privada se tornam obrigatrios e facilmente aceitos no clima neoliberal que impera. Harvey4, em texto que trata da transformao do gerenciamento ao empresariamento na administrao urbana no capitalismo tardio, esclarece como o novo empresariamento urbano deslocou-se para o centro do palco na formulao da poltica urbana e das estratgias de crescimento urbano. Diante das recentes e rpidas mudanas desiguais dos sistemas urbanos, Harvey identifica quatro causas bsicas, no excludentes que, em conjunto com determinadas condies especficas, fornecem a chave para a sua compreenso. Entre elas esto: a explorao de vantagens especficas para a produo de bens e servios; a competitividade a partir da diviso espacial do consumo5; a luta para conseguir assumir o controle e funes de comando de altas operaes financeiras, de governo ou de centralizao e processamento6 e os limites da competio sobre a redistribuio dos excedentes pelos governos centrais. Nesse novo contexto, para impulsionar e controlar o desenvolvimento urbano, Ascher (1994) acredita que h necessidade de meios menos rgidos e mais eficazes. Nessa direo, observa uma abordagem em planejamento urbano que parece estar se desenvolvendo, baseada no esforo de empresas na direo da gerncia heurstica ou estratgica, onde seria necessrio um projeto de cidade, explcito ao longo prazo e detentor de um largo consenso. Acentua, entretanto, que facilmente o pragmatismo estratgico pode cair no empirismo e no oportunismo. Afirma que se faz sentir a necessidade de um planejamento que fixe as regras do jogo, que influencie as escolhas e que oriente para a busca de resultados considerados satisfatrios.

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HARVEY, David. Do gerenciamento ao empresariamento: a transformao da administrao urbana no capitalismo tardio. Espao & Debates, So Paulo, v. 16, n. 39, p. 48-64, 1996. 5 Esta idia baseada principalmente na valorizao do espao, na inovao cultural, nos atrativos de consumo, entretenimento e nos espetculos urbanos, pois a cidade tem de parecer um lugar inovador, criativo, excitante e seguro para viver, visitar, jogar ou consumir. 6 Neste caso, a competio interurbana muito cara e particularmente forte por se tratar de um domnio no qual as economias de aglomerao continuam a ser as mais importantes, assim como o poder de monoplios estabelecidos.

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Com a dificuldade de emergir um planejamento de mdio e longo prazo, entre outros motivos tambm por causa dos parceiros envolvidos, as cidades so feitas a golpes de projeto, de pedaos, ou seja, de operaes com contornos definidos, freqentemente introvertidas, substituindo em parte as lgicas de zoneamento e de setorizao do perodo precedente. Este fenmeno concerne no somente realizao de atividades comerciais, de escritrios, de habitao mas tambm as de infra-estruturas de transportes, onde a lgica de projeto desempenha um papel cada vez mais importante (ASCHER, 1994).

Nos debates sobre projeto urbano, surgem interrogaes sobre o papel da composio urbana, pois, de um lado, a planificao estratgica, a gerncia heurstica e o urbanismo de resultados7 tendem antes a uma minorao do papel do plano em proveito do projeto e do processo decisrio; de outro lado, parece que o plano-desenho pode ser um meio poderoso, maiutico e operatrio para formular o plano estratgico. A noo de projeto urbano seria, assim, uma espcie de sntese dos dois planos.

2.2

Os novos desafios impostos pela crise do regime fordista de acumulao e os limites do modelo de anlise

Estamos assumindo, ao abordar a transformao poltico-econmica do capitalismo do final do sculo XX, a perspectiva da crise a partir da escola da regulao. A marca dessa linha de pesquisa dada pela dupla insistncia sobre as caractersticas do processo concreto de produo e sobre as formas sociais globais dentro das quais se opera a reproduo do modo de produo. Harvey (1993) acredita que a virtude do pensamento da escola da regulao est no fato de insistir em que levemos em conta o conjunto total de relaes e arranjos que contribuem para a estabilizao do crescimento do produto e da distribuio agregada de renda e de consumo, num perodo histrico e num lugar particulares, aceitando amplamente a viso de que o longo perodo de expanso do psguerra, que se estendeu de 1945 a 1973, teve como base um conjunto de prticas de controle do trabalho, tecnologias, hbitos de consumo e configuraes poltico-

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econmicas, e de que este conjunto pode, com razo, ser chamado de fordistakeynesiano. O colapso desse sistema a partir de 1973 teria iniciado um perodo de rpida mudana, de fluidez e incerteza. No est claro se os novos processos de produo e de marketing, caracterizados por processos de trabalho e mercados mais flexveis, de mobilidade geogrfica e de rpidas mudanas das prticas de consumo garantem ou no o ttulo de um novo regime de acumulao, e nem se o renascimento do empreendimentismo e do neo-conservadorismo, associado com a virada cultural para o ps-modernismo, garante ou no se existem sinais de um novo modo de regulao. Mesmo assim considera ser esta uma reveladora maneira de caracterizar a histria recente a hiptese da passagem do fordismo para o que poderia ser chamado de regime de acumulao flexvel. Harvey (1993) relaciona o fordismo com o modernismo pois, segundo ele, o fordismo tambm se apoiou e contribuiu para a esttica do modernismo particularmente na inclinao desta ltima para a funcionalidade e a eficincia - de maneiras muito explcitas, enquanto as formas de intervencionismo estatal (orientadas por princpios de racionalidade tcnico-burocrtica) e a configurao do poder poltico, que davam ao sistema sua coerncia, se apoiavam em noes de democracia econmica de massa que se mantinham atravs de um especial equilbrio de foras de interesse. Com relao rigidez do fordismo identifica uma srie de dificuldades pois haviam problemas com a rigidez dos investimentos de capital fixo de larga escala e de longo prazo em sistemas de produo em massa que impediam a flexibilidade de planejamento e presumiam crescimento estvel em mercados de consumo invariantes. Haviam problemas de rigidez nos mercados, na alocao e nos contratos de trabalho. Alm disso, a tentativa de superar esses problemas sempre enfrentava a fora aparentemente invencvel do poder da classe trabalhadora. A acumulao flexvel, por outro lado, marcada por um confronto direto com a rigidez do fordismo. Ela se apia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e dos padres de consumo. Caracteriza7

ASCHER, Francois. Projeto pblico e realizaes privadas: o planejamento das cidades refloresce. Cadernos IPPUR / UFRJ, Ano VIII, n. 1, p. 83-96, abr./1994.

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se pelo surgimento de setores de produo inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de servios financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovao comercial, tecnolgica, e organizacional. A acumulao flexvel envolve rpidas mudanas dos padres do desenvolvimento desigual, tanto entre setores como entre regies geogrficas, criando, por exemplo, um vasto movimento de emprego no chamado setor de servios, bem como conjuntos industriais completamente novos. Envolve tambm o que o autor vai chamar de compresso do espao-tempo, no mundo capitalista. Ao tempo de giro de consumo menor corresponde um tempo de giro de produo menor e uma esttica adequada, ps-moderna.[...] os horizontes de tomada de deciso privada e pblica se estreitaram, enquanto a comunicao via satlite e a queda no custo dos transportes possibilitaram cada vez mais a difuso imediata dessas decises em um espao cada vez mais amplo e variado. Isso significou, complementado por outras medidas, em um srio golpe na fora de trabalho (HARVEY, 1993).

Preteceille e Valladares8 (1988) localizam algumas abordagens crticas centradas na teoria da regulao desenvolvidas por uma srie de autores, a partir de trabalhos de Aglietta (1976), Boyer e Mistral (1978), Coriat (1978) e Lipietz (1979) onde se questiona fundamentalmente se podemos atribuir exclusivamente s mudanas econmicas, que acompanham a globalizao dos processos econmicos, as transformaes urbanas que vm ocorrendo. So apontados limites ao modelo de anlise e propostos caminhos para a superao dos desafios, apresentando uma multiplicidade de respostas a tais questes, a partir de distintas vertentes de anlise. Harvey (1993) aponta que o fordismo do ps-guerra tambm teve muito de questo internacional devido ao longo perodo de expanso neste perodo e, de modo crucial, de uma macia ampliao dos fluxos de comrcio mundial e de investimento internacional. O progresso internacional do fordismo significou a formao de mercados de massa globais e a absoro da maior parte da populao mundial, fora do mundo comunista, na dinmica global de um novo tipo

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VALLADARES, L.; PRETECEILLE, E. (Coord.). Reestruturao urbana: tendncias e desafios. So Paulo: Nobel, 1990.

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de capitalismo. O fordismo, entretanto, se disseminava desigualmente entre as naes.[...] medida que cada Estado procurava seu prprio modo de administrao das relaes de trabalho, da poltica monetria e fiscal, das estratgias de bem-estar e de investimento pblico, limitados internamente apenas pela situao das relaes de classe e, externamente, somente pela sua posio hierrquica na economia mundial e pela taxa de cmbio fixada com base no dlar. Assim, a expanso internacional do fordismo ocorreu em uma conjuntura particular de regulamentao poltico-econmica mundial e uma configurao geopoltica em que os EUA dominavam por meio bem distinto de alianas militares e relaes de poder (HARVEY, 1993).

No caso latino-americano, os pases da regio compartilham das mudanas gerais que ocorrem no sistema mundial; convm observar, contudo, que estas mudanas no se do de maneira idntica nestes pases. Se, por um lado, na dcada de 60, no pleno apogeu em que parecia estar o fordismo, h nos prprios pases centrais um forte movimento cultural, fundindo vrias correntes de opinio, em crticas e prticas de contracultura, por outro lado, nos pases de terceiro mundo, a grita se d pela insatisfao com um processo de modernizao que prometia desenvolvimento, emancipao das necessidades e plena integrao ao fordismo, mas que, na prtica, promovia a destruio de culturas locais, muita opresso e numerosas formas de domnio capitalista em troca de ganhos bastante pfios em termos de padro de vida e de servios pblicos, a no ser para uma elite nacional muito afluente que decidira colaborar ativamente com o capital internacional. Essa repercusso, especfica no terceiro mundo, cria uma situao que Harvey (1993), citando Lipietz (1986) chama de fordismo perifrico. Essa idia complementada pelo fato de que a forma organizacional e a tcnica gerencial apropriadas produo em massa padronizada em grandes volumes, nem sempre eram convertidas com facilidade para o sistema de produo flexvel. Onde a produo podia ser padronizada, mostrou-se difcil parar seu movimento de aproveitar-se da fora de trabalho mal remunerada do terceiro mundo. Harvey (1993) considera que, se h algo realmente especial no perodo iniciado em 1972, o florescimento e transformao extraordinrios dos mercados financeiros. Esse sistema financeiro foi o que permitiu boa parte da flexibilidade geogrfica e temporal na acumulao capitalista. O autor se v tentado a afirmar 19

que a flexibilidade conseguida na produo, nos mercados de trabalho e no consumo seriam antes um resultado da busca de solues financeiras para as tendncias de crise do capitalismo do que o contrrio. O autor considera que, se quisermos procurar alguma coisa verdadeiramente peculiar na atual situao, devemos concentrar nosso olhar nos aspectos financeiros da organizao capitalista e no papel do crdito. Foram abertas tambm arenas de conflito entre o Estado nao e o capital transnacional, comprometendo a fcil acomodao entre o grande capital e o grande governo, to tpica da era fordista. O Estado-nao, embora seriamente ameaado como poder autnomo, continua com poder de intervir sobre o controle do trabalho, e sobre o mercado financeiro, mas, por outro lado, fica extremamente vulnervel crises, e ao mesmo tempo em que precisa controlar os capitais volteis, tem que tentar atra-los, estando subjugado, portanto, dinmica e ao humor do capital internacional, da especulao.O Estado agora em situao difcil, chamado a regular as atividades do capital corporativo ao mesmo tempo, tambm no interesse nacional, a criar um bom clima de negcios, para atrair o capital financeiro transnacional e global e evitar a fuga de capitais para paisagens mais verdes e mais lucrativas (HARVEY, 1993).

Outros processos de transformao que esto em curso nas cidades, e que no so capturados pelo modelo, valorizam o aspecto relativo territorializao das transformaes que, embora pouco considerado nas anlises, um dos aspectos importantes para o debate do planejamento e das alternativas de gesto de nossas cidades. Esse o caso do reforo das centralidades; do crescente fracionamento scio-espacial e da segregao urbana; da elitizao de bairros e da expanso da pobreza, do aumento da violncia e da delinqncia, do aumento das atividades informais e do trabalho desqualificado, entre outras. Tudo isso leva a relativizar as anlises, a ter prudncia sobre os resultados, com a conscincia de que devemos ter explicaes complexas para processos cada vez mais complexos, sempre atentos ao perigo de simplificaes empobrecedoras e inadequadas. Ajuda tambm a esclarecer as formas especficas em que pode se dar a insero das cidades globais no processo de

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globalizao econmica, e a forma de regulao que deve ser preparada para o impacto espacial da dinmica econmica esperada.

2.3

A cidade global e as duas abordagens sobre as anlises urbanas - a sada econmica e a fragmentao social.

As anlises sugeridas para o diagnstico da crise e as alternativas existentes para sua superao possuem uma srie de imprecises, limites, resultados contraditrios e, embora funcionem bem como estratgia de reforo e indiquem linhas de ao, essas polticas no so auto - suficientes. Falta definir uma nova concepo de solidariedade e de democracia, nas sociedades urbanas, dentro da atual ordem econmica internacional, pois necessrio ter em mente numerosos casos em que estas polticas marginalizam vastos setores populares. Preteceille (1994) afirma que duas preocupaes primordiais esto presentes h, pelo menos, uma dcada nos debates sobre a cidade: o desenvolvimento econmico e a fragmentao social:[...] apesar dos vnculos existentes entre ambos os problemas, os paradigmas que determinam as polticas econmicas locais e as polticas sociais dela decorrentes obedecem a lgicas distintas que se desconhecem mutuamente: as primeiras voltadas para a competitividade, a modernizao e a concorrncia, as segundas destinadas a conter e a amenizar as conseqncias mais dramticas e mais perturbadoras das primeiras (PRETECEILLE, 1994).

Segundo Preteceille (1994), o desenvolvimento das pesquisas sobre as chamadas cidades globais - tendo como objetivo avaliar a contribuio das anlises das cidades globais e dos processos de reestruturao e globalizao para o entendimento das transformaes da estrutura social das grandes metrpoles, situando vertentes tericas e caminhos exploratrios - leva a unir essas duas perspectivas. Os trabalhos mais elaborados sobre as cidades globais (SASSEN, 1991) prope, entre suas hipteses centrais, a existncia de um vnculo estrutural entre o tipo de transformao econmica caracterstica dessas cidades e a

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intensificao de sua dualizao social e urbana. A constatao de que o xito econmico acompanhado dos mais violentos contrastes e conflitos sociais leva a questionar a hiptese de que o sucesso na competio econmica garantia de soluo para problemas sociais urbanos. Essa questo desvia o centro do

espectro do econmico e novamente o coloca em uma questo conjunta, intimamente interdependente e condicionada uma postura firme relacionada questo social, de forma imediata, e no mdio e longo prazo. Preteceille (1994) aponta dois macroprocessos de globalizao em curso que diferenciam seus efeitos econmicos, sociais, polticos e urbanos: se a hegemonia for do circuito financeiro ou se for do circuito produtivo. A diferena, ento, se d no papel que esta economia deve desempenhar no rebatimento sobre a estrutura social e espacial da cidade e do pas. Em vista disto, Preteceille levanta a hiptese de que inexorvel que a retomada do ciclo de desenvolvimento se far com base no novo padro de produtividade, e aponta cenrios possveis de desindustrializao, desmetropolizao, e por conta da desassociao profunda entre a reproduo do capital e a reproduo de um vasto contingente populacional cuja qualificao no o habilita a entrar no novo sistema produtivo, estaramos inevitavelmente observando a consolidao de uma cidade dual. Mesmo considerando que o modelo seja interessante para compreenso da dinmica e para vislumbrarmos qual o cenrio a longo prazo, o prprio autor da anlise desconfia da consistncia desta idia. Segundo Harvey (1993), entre vrias constataes em sua abordagem do empresariamento urbano, esse processo deve provocar uma maior polarizao na distribuio social da renda, ao subsidiar o capital e desprivilegiar os menos favorecidos, embora no esteja claro se governos progressistas conseguiriam resistir, por estarem apoiados sobre ambientes de concorrncia urbana extremada - subjacente, portanto, lgica do desenvolvimento capitalista, onde a competio parece operar como uma lei coerciva externa, que induz a oferta de um menor denominador comum da responsabilidade social e da proviso do bem-estar social, como se os governos estivessem sem sada diante de sua prpria sobrevivncia.

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[...] atrs da mscara de muitos projetos bem sucedidos, se encontram srios problemas sociais e econmicos, os quais esto, em muitas cidades assumindo a forma geogrfica de uma cidade dual: um centro renovado cercado por um mar de pobreza crescente [...] os impactos regressivos na distribuio de renda, volatilidade no interior da rede urbana e a qualidade efmera de benefcios trazidos por muitos projetos, e a concentrao no espetculo e na imagem mais do que no contedo dos problemas econmicos e sociais que pode se tornar deletria a logo prazo, apesar que benefcios polticos podem ser obtidos at fcil demais (HARVEY, 1993).

De positivo, lembra a idia da cidade como uma corporao coletiva, na qual um sistema democrtico de decises pode existir, e que seria por isso dotada de um agudo senso poltico de como construir alianas e conexes espaciais, caractersticas importantes para mitigar ou mesmo desafiar a dinmica hegemnica da acumulao capitalista e dominar a geografia histrica da vida social. Para Ribeiro e Santos Jnior (1994), a globalizao e a reestruturao em curso no cenrio internacional implicam em mudanas nos paradigmas de gesto das cidades, passando-se a exigir eficincia, produtividade e focalizao das polticas urbanas. A adaptao de cada cidade a esse novo modelo de gesto vai depender de vrias caractersticas e condicionantes, entre as quais aquelas decorrentes do sistema poltico local. No existe determinismo sobre a alternativa a ser tomada pelas cidades. Como nada garante que as mudanas que esto ocorrendo tragam maior qualidade de vida e justia social, o desafio est em buscar modelos de polticas que combinem as novas exigncias da economia urbana globalizada regulao pblica da produo da cidade e o enfrentamento do quadro de excluso social, buscando garantir uma cidade justa, mais equilibrada, com maior qualidade de vida.

2.4

A relao entre o ps-fordismo e a ps-modernidade

Harvey (1993) acredita ainda que a crise do fordismo, em larga medida, foi uma crise da forma temporal e espacial. Sobre a experincia do espao e do tempo destaca algumas passagens sobre o aspecto que trata da compresso do 23

tempo-espao e a condio ps-moderna. Entre as inmeras conseqncias da acelerao generalizada dos tempos de giro do capital, aquelas que tem influncia particular nas maneiras ps-modernas de pensar e de agir est a de acentuar a volatilidade, a efemeridade de modas, produtos, tcnicas de produo, processos de trabalho, idias e ideologias, valores e prticas estabelecidas. A sensao de tudo o que slido se desmancha no ar raramente foi mais pervasiva.[...] h fortes indcios de que a modificao da experincia do espao e do tempo est, ao menos de modo parcial, na base da impulsiva reviravolta na direo de prticas culturais e de discursos filosficos ps-modernistas (HARVEY, 1993).

O ps-modernismo, com sua nfase na efemeridade, sua insistncia na impenetrabilidade do outro, sua concentrao antes no texto do que na obra, sua inclinao pela deconstruo que beira o niilismo, sua preferncia pela esttica ao invs da tica, leva as coisas longe demais. Ele as conduz para alm do ponto em que acaba a poltica coerente, enquanto a corrente que busca uma acomodao pacfica com o mercado o envereda firmemente pelo caminho de uma cultura empreendimentista que o marco do neo-conservadorismo reacionrio. O sucesso poltico do neo-conservadorismo tm sido atribudo a uma mudana geral das normas e valores coletivos que tinham hegemonia, para um individualismo muito mais competitivo como valor central numa cultura empreendimentista que penetrou em muitos aspectos da vida. Hoje o empreendimentismo caracteriza no somente o setor de negcios, mas os mais diversos setores da vida, acadmica, literria, ou artstica. O individualismo tornase condio necessria mas no suficiente para a transio do fordismo para a acumulao flexvel, sendo esta a meta central do impulso de crescimento do controle do trabalho.[...] o ps-modernismo quer que aceitemos as reificaes e parties, celebrando a atividade de mascaramento e de simulao, todos os fetichismos de localidade, de lugar ou de grupo social, enquanto nega o tipo de metateoria capaz de apreender os processos poltico-econmicos (fluxos de dinheiro, divises internacionais de trabalho, mercados financeiros..) que esto se tornando cada vez mais universalizantes em sua profundidade, intensidade, alcance e poder sobre a vida cotidiana (HARVEY, 1993).

24

Harvey (1993) prope uma releitura da modernizao a partir de Marx e associa as mudanas e transformaes constantes do capitalismo gerao das energias dos movimentos estticos. Marx descreve os processos sociais que agem no capitalismo caracterizados por promover o individualismo, a alienao, a fragmentao, a efemeridade, a inovao, a destruio criativa, o

desenvolvimento especulativo, mudanas imprevisveis nos mtodos de produo e de consumo (desejos e necessidades), mudana na experincia do espao e do tempo; bem como mudana social impelida pela crise. Se essas condies de modernizao capitalista formam o contexto material a partir do qual pensadores e produtores culturais modernos e ps-modernos forjam suas sensibilidades, princpios e prticas estticas, parece razovel concluir que no h nenhuma mudana fundamental da condio social. No importa qual a hiptese, a descrio do capitalismo por Marx fornece, se for correta, uma base muito slida para pensar as relaes gerais entre a modernizao, a modernidade e os movimentos estticos que extraem energias dessas condies.[...] h mais continuidade do que diferena entre a ampla histria do modernismo e o movimento denominado ps-modernismo. Parece-lhe mais sensvel ver este ltimo como um tipo particular de crise do primeiro, uma crise que enfatiza o lado fragmentrio, efmero, catico, da formulao de Baudelaire, enquanto exprime um profundo ceticismo diante de toda prescrio particular sobre como conceber, representar ou exprimir o eterno e imutvel (HARVEY, 1993).

2.5

O rebatimento no planejamento e o novo papel do desenho urbano

Dessa forma, Harvey (1993) investiga o ps-moderno como condio histrica e, considerando que o nico ponto de partida consensual para a compreenso do ps-moderno sua possvel relao com o moderno, explora inicialmente o sentido deste ltimo. Observa que o modernismo, depois de 1948, era, em larga medida, um fenmeno urbano, tendo existido num relacionamento inquieto, mas complexo com a experincia do crescimento urbano explosivo, de

25

forte migrao para os centros urbanos, da industrializao, da mecanizao, da reorganizao macia de ambientes construdos e de movimentos urbanos.A crescente necessidade de enfrentar problemas psicolgicos, sociolgicos, tcnicos, organizacionais e polticos da urbanizao macia foi um dos canteiros em que floresceram os movimentos modernistas (HARVEY, 1993).

No

contexto

dos

anos

sessenta

apareceram

vrios

movimentos

contraculturais e antimodernistas, antagnicos s qualidades opressivas da racionalidade tcnico-burocrtica de base cientfica manifesta nas formas corporativas, estatais monolticas e outras formas de poder institucionalizado. Alm disso,[...] as contraculturas exploravam os domnios da auto realizao individualizada por meio de uma poltica neo esquerdista da incorporao de gestos antiautoritrios e de hbitos iconoclastas e da crtica vida cotidiana (HARVEY, 1993).

Em algum ponto entre 1968 e 1972, o autor percebe o ps-modernismo emergir como um movimento maduro. Segundo Harvey, Charles Jencks anuncia o fim simblico do modernismo em 1972, quando foi dinamitado um exemplo da arquitetura moderna, exemplo de ambiente inabitvel. Venturi, Scott-Brown e Izenour9 apresentam crticas aos arquitetos que tinham que aprender a construir para pessoas e no para o modelo do homem moderno, que tinham que aprender mais com o estudo de paisagens populares e comerciais do que com a busca de ideais doutrinrios, tericos e abstratos. Os rebatimentos no planejamento das transformaes se identificam com um afastamento dos modelos de planejamento de larga escala, abrangentes e integrados, na direo de planejadores radicais, inspirados em Jacobs (1984), que fizera ataques impiedosos aos pecados do planejamento urbano modernista dos anos 60. A cidade colagem agora o tema, e a revitalizao urbana substitui a renovao urbana. Este constitui tambm o discurso de fundo da disciplina de desenho urbano, esta que, com a utilizao de conhecimentos de sua competncia, ancora e d suporte terico s intervenes pontuais e aos projetos urbanos. A arquitetura e o projeto urbano passam a encontrar um novo posicionamento em relao ao planejamento. a partir doVENTURI, R; SCOTT-BROWN, D; IZENOUR, S. Learning from Las Vegas. Cambridge; Massachusetts, 1972.9

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incio da dcada de setenta que o desenho urbano volta a ser revalorizado, surge como demanda e depois se legitima como linha profissional (RIO, 1990). No planejamento, a primeira estratgia aponta para o planejamento de curto prazo. A volatilidade torna extremamente difcil qualquer planejamento de longo prazo. Hoje, referindo - se ao planejamento de empresas, seria to importante aprender a trabalhar com a volatilidade quanto acelerar o tempo de giro. Isso significa uma alta adaptao e capacidade de se movimentar com rapidez em resposta mudanas de mercado, ou o planejamento da volatilidade. Cresce a importncia da publicidade e do cuidado com a imagem, pois a publicidade e as imagens da mdia passaram a ter um papel muito mais integrador nas prticas culturais, tendo assumido agora uma importncia muito maior na dinmica de crescimento do capitalismo. A efemeridade e a comunicabilidade instantnea no espao tornam-se virtudes a serem exploradas e apropriadas pelos capitalistas para seus prprios fins.A produo e venda dessas imagens de permanncia e de poder requerem uma sofisticao considervel, porque preciso conservar a continuidade e a estabilidade da imagem enquanto se acentuam a adaptabilidade, a flexibilidade e o dinamismo do objeto, material ou humano, da imagem (HARVEY, 1993).

A preocupao com o controle do trabalho, mesmo sendo central, compete com muitos outros aspectos de organizao geogrfica que assumiram uma nova proeminncia sob condies de acumulao flexvel. Pequenas diferenas naquilo que o espao contm de oferta de trabalho, recursos, infra-estrutura, as diferenas de capacidade de empreendimento, capital para associaes, conhecimento tcnico e cientfico e de estratgias de acumulao das elites dirigentes locais (em oposio s polticas da nao-Estado), disponibilidade local de recursos materiais de qualidades especficas, ou mesmo custos marginalmente inferiores, podem ser determinantes na acirrada competio entre regies e especificamente entre as cidades mundiais. As observaes sobre o processo de recentragem urbana e a importncia das cidades mundiais no novo sistema global corroborada por vrios outros autores referenciados na dissertao, pois

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[...] a necessidade de informaes precisas e comunicaes rpidas enfatizam as cidades mundiais no sistema financeiro e corporativo, assim como a diminuio de barreiras espaciais resulta na reafirmao e realinhamentos hierrquicos no interior do que hoje um sistema urbano global (HARVEY, 1993).

Sobre a queda de barreiras espaciais, considera-se que isto no implica no decrscimo da significao do espao, pois o aumento da competio em condies de crise coagiu os capitalistas a darem mais ateno s vantagens locacionais relativas, precisamente porque a diminuio das barreiras espaciais d aos capitalistas o poder de explorar, com bom proveito, minsculas diferenciaes espaciais.[...] as qualidades do lugar passam a ser enfatizadas em meio s crescentes abstraes em seu espao. A produo ativa de lugares dotados de qualidades especiais se torna um importante trunfo na competio espacial entre localidades, cidades, regies e aes (HARVEY, 1993).

O ps-modernismo, no campo da arquitetura e urbanismo, promove uma ruptura com o modernismo na idia deste de concentrar-se em planos urbanos de larga escala, de alcance metropolitano, tecnologicamente racionais e eficientes, sustentados por uma arquitetura absolutamente despojada. O ps-modernismo cultiva um conceito do tecido urbano como algo necessariamente fragmentado, uma superposio de formas passadas e outras mais atuais e uma colagem de usos correntes, muitos dos quais podem ser efmeros. Como impossvel comandar a metrpole, exceto aos pedaos, o projeto urbano (os que o defendem focam antes no projeto do que no planejamento) privilegia somente a sensibilidade sobre as tradies vernculas, as histrias locais, aos desejos, necessidades e fantasias particulares, gerando formas arquitetnicas

especializadas, desde os espaos ntimos ao esplendor do espetculo, passando pela monumentalidade tradicional, podendo se utilizar de um ecletismo exacerbado como recurso.Enquanto os modernistas vem o espao como algo a ser moldado para propsitos sociais, e portanto sempre subserviente construo de um projeto social, os ps modernistas o vem como coisa independente e autnoma a ser moldada segundo princpios estticos, sem necessariamente nenhuma relao com um objetivo social abrangente (HARVEY, 1993).

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Harvey (1993) reconhece que o ambiente construdo vital para a forja de novas sensibilidades, e a aparncia de uma cidade e a forma como seus espaos se organizam formam a base material a partir da qual possvel pensar, avaliar e realizar uma gama de possveis sensaes e prticas sociais. Temos tambm que a importncia da imagem positiva e a alta qualidade da cidade e dos lugares, com arquitetura e projetos urbanos que atendam a estas necessidades, representam um fator competitivo importante, em um momento em que as cidades sofreram muito com a desindustrializao e a reestruturao, que deixaram a maioria, no mundo capitalista avanado, com poucas opes alm da competio entre si, em especial atuando como centros financeiros, de consumo e de entretenimento. nesse contexto que se situa o esforo das cidades para forjar uma imagem distintiva e criar uma atmosfera de lugar e de tradio atravs de espaos urbanos espetaculares, como um meio de atrair tanto o capital como as pessoas de tipo certo , num perodo de competio entre cidades e empreendimentismo urbano intensificados. Fico, fragmentao, colagem e ecletismo, todos dotados de um sentido de efemeridade e de caos, so talvez os temas que dominam as atuais prticas da arquitetura e do projeto urbano. Esse debate entretanto deve ser relativizado diante das condies especficas apresentadas pelos pases, j que a situao scio econmica europia completamente diversa da situao scio econmica brasileira. Os pases europeus desenvolvidos, por exemplo, assistiram, pode-se dizer, concluso do ciclo de oferta de garantias sociais mnimas ao conjunto da populao na fase fordista de sua economia. Os pases latino americanos, subdesenvolvidos, perifricos no sistema capitalista global, especificamente o Brasil, esto longe de concluir esse ciclo, tendo ao contrrio mantido e at10

ampliado uma imensa dvida social. centrada no resgate desta dvida social que nasce um movimento com a proposta de elaborar uma agenda progressista no diagnstico e nas propostas para as cidades, a agenda da Reforma Urbana. No prximo captulo veremos o rebatimento especfico das transformaes globais na

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Essa expresso se refere preferncia sobre a atrao de pessoas que tenham maior poder aquisitivo e que possam apresentar um nvel elevado de consumo, e que no criem problemas imagem da cidade.

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situao especfica brasileira e a apresentao de ambos os discursos que iluminam a poltica urbana do municpio do Rio de Janeiro.

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3

3 A AGENDA DA REFORMA URBANA, O PLANEJAMENTO ESTRATGICO E A GESTO POR PROJETOS: A POLTICA URBANA DO RIO DE JANEIRO E A SUPERPOSIO DE MODELOS.

Esse captulo pretende contextualizar o rebatimento das transformaes do sistema capitalista global e da sociedade, na situao especfica nacional, e apresentar ambos os discursos que servem de base formulao e aplicao dos principais instrumentos de poltica urbana adotados pela prefeitura do Rio de Janeiro. Conflitantes quanto linha poltica e incompatveis segundo ambos os discursos, apresentam uma situao de superposio de modelos que procuramos caracterizar.

3.1

Contextualizao das transformaes na situao especfica nacional.

No Brasil, a crise que tem origem nos pases centrais na dcada de setenta, bate s nossas portas com uma dcada de atraso. Nos anos oitenta, os problemas estruturais da economia, at ento em forte crescimento, se agudizam e comeamos a passar por ajustes recessivos visando a reestruturao econmica, tentando evitar uma escalada inflacionria. A crise fiscal apresentava reflexos diretos na deteriorao das contas pblicas, nas polticas sociais e na imposio de limites srios ao desenvolvimento de polticas setoriais e do desenvolvimento econmico. Os problemas enfrentados ento pelo Estado no eram apenas de carter fiscal. Vivia-se uma crise poltica marcada, por um lado, pela emergncia de novos sujeitos polticos e sociais, forando a democratizao e, de outro, as foras conservadoras buscando a manuteno de sua hegemonia. Os setores progressistas viviam um momento de permanente mobilizao e de crena na ruptura institucional e da transformao do regime e do modelo de 31

desenvolvimento. As estratgias privilegiavam o confronto com o aparato estatal, forando a democratizao e o desenvolvimento de polticas de cunho social (CARDOSO, 1997). O processo social recente apontava na direo de novos fenmenos sociais, novos sujeitos e nova cultura poltica, o que sugere a redefinio da esfera poltica aps sua revalorizao. Identificam-se nos novos movimentos sociais os agentes fundamentais da transformao social. So apontados como portadores de um impacto transformador por apresentarem demandas que contrariam a lgica de atuao do Estado autoritrio capturado por interesses capitalistas. Essas transformaes apresentam reflexos no planejamento.Aps vinte anos de institucionalizao de prticas de planejamento e poltica urbana no Brasil, assistimos na dcada de 80 uma reverso acentuada, marcada por essa conjuntura de crise econmica, crise poltica e crise do Estado. Um dos reflexos o abandono do planejamento de mdio e longo prazo (CARDOSO, 1997).

A partir de 1983, inicia-se uma reviso crtica destas anlises onde no existe mais a iminente transformao do capitalismo, protagonizada pelo novo sujeito revolucionrio, mas sim uma transformao na esfera da cultura poltica e da democracia. Algumas anlises apontavam que, ao transformar demandas em direitos, esses movimentos indicavam a constituio de uma noo de cidadania e de democracia. Isso implicava no reconhecimento da legitimidade das novas organizaes e na crescente mudana qualitativa nas burocracias pblicas, que se tornavam mais flexveis s demandas. Nesse momento, a crtica ao autoritarismo resultou em uma negao da necessidade e da importncia do planejamento, marcada pela revalorizao do saber popular e a crtica ao saber tcnico (CARDOSO, 1997). Ao tratar da agenda reformista na Nova Repblica, Santos Jnior (1995) afirma que o governo federal, frente ao fracasso do modelo de planejamento aliado s crticas de importantes setores tcnicos e acadmicos, fez com que, j a partir de meados da dcada de setenta, comeasse o abandono das tentativas globalizantes e integradas de planejamento, iniciando o que, nos anos oitenta, seria chamado de planejamento participativo. Formalmente o governo abandonou

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o antigo modelo de planejamento e, ao mesmo tempo, buscou implementar uma agenda de reformas no Pas.A participao popular passa a ser a panacia para a recuperao da eficcia social da ao do poder pblico. No campo do planejamento a idia de participao e de gesto enfatizada em detrimento da definio de planos e polticas nacionais e globais (CARDOSO, 1997). A descentralizao da gesto municipal e a participao popular passaram a ser sugeridas no s pelo princpio democrtico que encerram, mas sobretudo, pela eficcia gerencial que supostamente permitiriam (MELO, 1993, p. 121)11.

Em sntese, a agenda reformista construda no bojo dessa trajetria pode ser caracterizada a partir de trs caractersticas gerais: O universalismo, o redistributivismo e a democratizao do estado e a descentralizao da gesto. O colapso do projeto da Nova Repblica no significou, contudo, o fim da proposta reformista na sociedade brasileira, que ganha novos contornos a partir da Constituio de 1988 (SANTOS JNIOR, 1995).

3.2

A origem da Reforma Urbana, a construo e a apresentao dos principais pontos do discurso.

Na mesma dcada de oitenta, assistimos, na rea de planejamento, construo de uma agenda progressista, o projeto da Reforma Urbana que teve, como grande catalisador, o processo de elaborao da Constituio de 1988.O projeto da reforma urbana constitui parte de um projeto mais amplo e estratgico alternativo para o Brasil, um projeto de democracia poltica e social pelo qual a sociedade pde construir um novo caminho de desenvolvimento econmico, poltico e cultural (SANTOS JNIOR, 1995).

Santos Jnior (1995) analisa a agenda da reforma urbana como a sntese de um novo diagnstico da questo urbana brasileira, um iderio deMELO, Marcus Andr B. C. de. Anatomia do fracasso: intermediao de interesses e a reforma das polticas sociais na Nova Repblica. Dados, Rio de Janeiro, v.36, n.1, 1993 apud SANTOS JNIOR, Orlando A dos. Reforma urbana: por um novo modelo de planejamento e gesto das cidades. Rio de Janeiro: FASE: UFRJ/IPPUR, 1995.11

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transformao da cidade e um modelo de interveno. O movimento expressava uma tendncia de pensamento dos problemas urbanos que possuiria um diagnstico centrado nas desigualdades e nos direitos sociais e que estabeleceria uma distino entre ganhos lcitos e ilcitos na produo da cidade. A excluso social e poltica das camadas populares seria o eixo do discurso. A nova concepo de planejamento e gesto da cidade estaria apoiada em dois fundamentos: (1) O diagnstico de que o capitalismo tardio gerou uma dinmica intra-urbana que produz e reproduz as desigualdades sociais, traduzidas pela segregao e pela espoliao urbana12 (KOWARICK, 1979)13. (2) Os princpios polticos e ideolgicos calcados no iderio de democracia e da justia social, concepo que recebe fortes influncias das idias e anlises identificadas como a sociologia urbana marxista francesa. (SANTOS JNIOR, 1995). Esse iderio tem como ncleo uma cidade justa, democrtica e autosustentada, que ser construda a partir de uma poltica urbana universalista e redistributiva. Tal proposta tem como sujeito os novos movimentos sociais urbanos nascidos na dcada de setenta que tiveram grande ascenso durante a dcada seguinte, em aliana com tcnicos e pesquisadores reformistas. A constituio do sujeito social e poltico capaz de implementar a estratgia concebida um dos temas recorrentes na trajetria da Reforma urbana e uma das principais dificuldades consolidao do projeto. Os movimentos populares so o principal alvo das preocupaes, dado o seu carter local e especfico e a enorme dificuldade de alcanarem um nvel mais global de articulao e compreenso da lgica urbana, necessrios transformao das cidades. O processo de elaborao da Constituio de 1988, junto com a consagrao da funo social da propriedade e da cidade que seria definida pelos Planos Diretores, ilumina dois aspectos. Por um lado, a dimenso local ganha uma dimenso estratgica, somada a toda uma tendncia j verificada municipalizao e descentralizao poltico-administrativa e ao fortalecimento do poder municipal na repartio entre recursos e responsabilidades nas trs12

Esse conceito foi sintetizado como o somatrio de extorses que se opera atravs da inexistncia ou precariedade de servios de consumo coletivo que se apresentam como socialmente necessrios em relao aos nveis de subsistncia e que agudizam ainda mais a dilapidao que se realiza no mbito das relaes de trabalho (KOWARICK, 1979, p.59).

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instncias de poder. Por outro lado, ao se redefinir o campo do debate poltico da esfera do direito para o do plano, esse fato deu nova vida a um planejamento em crise (CARDOSO, 1997). A proposta do MNRU, segundo Cardoso (1997), centrou-se principalmente em termos do estabelecimento de uma nova esfera de direitos- os direitos urbanos- diretamente ligados ao papel do Estado na garantia da reproduo social e na defesa de uma nova concepo de democracia, pautada na participao popular na gesto da cidade. Esses princpios envolviam uma maior regulao da ao dos capitais privados no urbano, o que se expressava principalmente na idia de limitao ao direito de propriedade. Os princpios gerais da proposta final, associados a uma srie de proposies, podem assim ser sintetizados (RIBEIRO; SANTOS JNIOR, 1993, CARDOSO, 1997): A obrigao do estado a assegurar os direitos urbanos a todos os

cidados. Princpio fundamental que caracteriza a emenda; A submisso da propriedade privada sua funo social. Parte do

princpio de que a propriedade privada um dos principais causadores dos mecanismos geradores de desigualdades sociais na produo e na estruturao do espao urbano. Seria necessrio, assim, redefinir o direito de propriedade, de modo a tirar-lhe o carter privatista e no social, devendo ser impostos limites propriedade privada, submetendo-a ao interesse pblico atravs da sua funo social. Se pressupe o estabelecimento de novos instrumentos de poltica fundiria que fortaleam a regulao pblica do uso do solo urbano e que garantam o funcionamento do mercado de terras condizente com os princpios da funo social da propriedade imobiliria, e da justa distribuio dos custos e benefcios da urbanizao; O direito cidade. Pressupe a adoo de uma poltica redistributiva

que inverta prioridades relativas aos investimentos pblicos. Em oposio cidade como mercadoria, fragmentada e injusta, contraposta a cidade como valor de uso, onde todos tenham acesso aos custos e benefcios da urbanizao, prevalecendo o direito cidade. A inverso de prioridades, no tocante poltica de13

KOWARICK, Lcio. A espoliao urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979 apud SANTOS JNIOR, Orlando A dos. Reforma urbana: por um novo modelo de planejamento e gesto das cidades. Rio de

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investimentos urbanos, deve favorecer as necessidades coletivas de consumo das camadas populares, e minimizar a diferena que no se d somente na distribuio de renda operada pelo mercado de trabalho, mas tambm, e de forma importante, da regulao seletiva do acesso o uso da cidade. A gesto democrtica da cidade, que busca ampliar o direito de

cidadania atravs da institucionalizao da participao direta da sociedade nos processos de gesto, como forma complementar democracia representativa. A instituio da gesto democrtica teria a finalidade de ampliar o espao de cidadania e aumentar a eficcia/ eficincia da poltica urbana. Pressupe tambm reformas nas relaes intergovernamentais e nas relaes governo-cidadania; a primeira com a municipalizao da poltica urbana e a segunda pela adoo de mecanismos que institucionalizem a participao direta da populao no governo da cidade.

3.3

O rebatimento do discurso da Reforma Urbana na prtica, a crtica ao discurso e o fortalecimento do discurso conservador

Para Cardoso (1997), o resultado na constituinte no foi considerado favorvel tendo em vista a propos