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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Faculdade de Direito Projeto Nova Luz: Um Retrato da Atuação do Poder Público eo Direito à Moradia na Cidade de São Paulo Pesquisa apresentada PET-Sociologia Jurídica (SESu/MEC), ligado ao Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Orientador: Prof. Celso Fernandes Campilongo Bolsista:Carolina Langbeck Osse São Paulo 2013

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Faculdade de Direito

Projeto Nova Luz: Um Retrato da Atuação do Poder Público eo Direito à

Moradia na Cidade de São Paulo

Pesquisa apresentada PET-Sociologia Jurídica

(SESu/MEC), ligado ao Departamento de

Filosofia e Teoria Geral do Direito da

Faculdade de Direito da Universidade de São

Paulo.

Orientador: Prof. Celso Fernandes Campilongo

Bolsista:Carolina Langbeck Osse

São Paulo

2013

1

1.Introdução:

A cidade de São Paulo possui, segundo oInstituto Brasileiro de Geografia e Estatística

(IBGE),11.253.503 habitantes (dados de 2010). Destes, de1,6 a 2 milhões, aproximadamente

16% da população habita favela, segundo estudo realizado pela prefeitura, em parceria com o

Banco Mundial no ano de 2007. Esta mesma cidade também é a que possui o maior número

de imóveis ociosos no país, são 400 mil não utilizados, a maioria localizados na região

central,segundo o IBGE.

Estes dados expressam a grande desigualdade social existente no Brasil, que, segundo o

Programa das Nações Unidas para Assentamentos, é o 4º país mais desigual da América

Latina, só perdendo para Guatemala, Honduras e Colômbia (dados de agosto de 2012). A

desigualdade, contudo, não é o único dadoque podemos aferir a partir destes números. É

possível entender também que, além de existir um grande déficit habitacional, o padrão de

ocupação adotado na cidade apresenta problemas. Desta forma, se o Poder Público Municipal

possui de fato política que se preocupa com a efetivação do Direito à Moradia, ele terá que

repensar a lógica ocupacional paulistana. Só assim será possível atender ao Direito à Moradia

em toda a sua dimensão, ou seja, como porta de entrada para qualidade de vida adequada do

cidadão. Afinal, não é possível se falar em saneamento básico, iluminação elétrica, acesso a

locais de lazer e a áreas com estruturas produtivas geradoras de emprego desenvolvidas sem

se falar em moradias adequadas.1

Será este o foco deste artigo, entender como o Poder Público municipal de São Paulo vem

desenvolvendo Políticas Públicas sobre Direito à Moradia na cidade.

1.1- Direito Urbanístico:

O Direito Urbanístico, produto de transformações sociais recentes, decorre de uma nova

função do Direito, consistente em oferecer instrumentos ao Poder Público a fim de que possa,

com respeito ao princípio da legalidade, atuar no meio social e no domínio privado para

ordenar a realidade no interesse da coletividade. Estão inseridas nesta disciplina as normas

1ROLNIK, Raquel. Conflitos por moradia estão aumentando no Brasil: depoimento. Fevereiro de 2012. São

Paulo: Le Monde Diplomatique. Entrevista concedida a Luís Brasilino. (p.5)

2

que tem por objetivo organizar os espaços habitáveis, de modo a propiciar melhores

condições de vida ao homem na comunidade.2

Desta forma, é pertinente se utilizar do Direito Urbanístico para tentar desenvolver uma

análise normativa dos planos que pretendem enfrentar o grave problema do déficit

habitacional e do padrão de ocupação de São Paulo.

Esta pesquisa pretende analisar, do ponto de vista do Direito Urbanístico, o Projeto Nova

Luz, dando ênfase em seu impacto com relação ao Direito à Moradia. Através da análise deste

projeto, tentar-se-á identificar características comuns de outras reformas urbanas já realizadas

na cidade de São Paulo, e detectar semelhanças e diferenças na atuação do Poder Público

municipal paulistano, tendo por perspectiva um dos objetivos do Projeto Nova Luz, a

tentativa de diminuir o déficit habitacional da cidade.

Para fazer esta análise, na tentativa se traçar um perfil da atuação do Poder Público, é

necessária examinar de outras reformas urbanas realizadas na cidade de São Paulo ao longo

dos anos, suas motivações e suas consequências.

2. Reformas Urbanas em São Paulo

No âmbito do Direito Urbanístico, é importante a diferença entre os termos

“urbanização” e “urbanificação”. O primeiro seria o processo de crescimento populacional da

cidade em proporção maior do que o rural. Este seria um fenômeno comum na sociedade

industrial moderna. O segundo termo é o processo deliberado do Poder Público de intervir na

morfologia urbana para corrigi-la ou renová-la. Quando se fala de reformas urbanas e de

intervenção da Administração municipal com o objetivo de revitalizar ou reordenar a cidade,

estamos tratando da urbanificação.3

Neste artigo, ao fazer uma retrospectiva histórica das reformas urbanas na cidade de

São Paulo, estar-se-á fazendo a retrospectiva das intervenções de urbanificação promovidas

pelo Poder Público ao longo da história da cidade, de seus motivos e do que ele, a cada época

julgava ser necessário corrigir a fim de melhorar o espaço público.

2.1.Recorte temporal

2SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. São Paulo : Malheiros, ed. 6, 2010. (p. 27)

3SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. São Paulo : Malheiros, ed. 6, 2010. (p. 36)

3

O processo de urbanização pode ser definido como o aumento da população urbana

concomitante com a diminuição da população rural. Este movimento, típico das sociedades

modernas e industrializadas, também se tornoufrequente em países subdesenvolvidos devido à

mecanização de lavouras e plantações. No Brasil, este é um processo que se inicia no final do

século XIX, se intensificando ao longo de XX. Merece destaque a cidade de São Paulo, neste

contexto, que é, hoje, a maior cidade do país.

Já entre as décadas de 1872 e 1900, omunicípio teve um crescimento populacional de,

aproximadamente, 765%.4 Isso provocou grandes mudanças na morfologia da cidade,

trazendo a tona seus primeiros, e já enormes, problemas habitacionais. Neste período foram

criadas as primeiras normas urbanísticas de grande relevância que influenciam nossas normas

urbanísticas até hoje.

Para melhor analisar a Política Urbana paulistana iremos selecionar alguns períodos,

tendo em vista mudanças políticas vividas no país ao longo dos anos. Sabemos da limitação e

da distorção que tais recortes podem gerar, porém, a fim de facilitar o estudo, eles se tornam

pertinentes.Por esta razão, mantendo o foco do estudo na questão da moradia, o recorte que se

mostra mais adequado a ser realizado é o que usa como critério os períodos de forte

movimento migratório e intenso crescimento populacional na cidade de São Paulo.

2.1.1. Período da Imigração

Durante este período, houve dois movimentos populacionais que merecem ser

destacados. O primeiro diz respeito ao fim da escravidão no Brasil, que fez com que a

população negra se dirigisse as cidades, já que sua mão-de-obra foi substituída pela de

imigrantes, e a Lei de Terras de 1850, que determinava que as terras devolutas seriam de

propriedade do Estado, impossibilitou que os terrenos fossem ocupados pelos ex-escravos.

Artigo 1: ficam proibidas as aquisições de terras devolutas por

outro título que não seja de compra (Lei nº 601, 18 de setembro de

1850, do Império do Brasil)

4Tabela: População nos Anos de Levantamento Censitário - Município e Região Metropolitana de São Paulo,

Estado de São Paulo e Brasil1872 a 2000.Disponível em:

http://sempla.prefeitura.sp.gov.br/historico/tabelas/pop_brasil.php

4

Essa lei teve grande importância pois, ao mesmo tempo em que desvinculava o direito

de propriedade da efetiva ocupação da terra, fez com que o território adquirisse plenamente o

status de mercadoria no Brasil, o que trouxe consequências de grande relevância para o

desenvolvimento das cidades brasileiras.5

O segundo movimento que merece destaque é o dos imigrantes que chegavam,

sobretudo, para trabalhar nas lavouras de café, porém, muitos acabaram se instalando na

cidade, e se tornaram operários das primeiras indústrias da capital paulista.

A população paulistana, que, em entre 1872 e 1900 apresentou um crescimento

gigantesco, precisaria, agora, de um local para morar, e de infraestrutura básica, como

transporte, saneamento e eletricidade, para que pudesse se instalar na cidade.

Era de se esperar que o Poder Público atuasse no sentido de desenvolver tais

infraestruturas. Isso de fato ocorreu. Contudo, a ideologia da época fez com que tudo

ocorresse de maneira peculiar. O liberalismo era dominante nas mentes dos governantes

brasileiros à época, assim, antes de realizar qualquer medida de intervenção urbana,

procurava-se incentivar os particulares a fazê-la.Desta forma, o conjunto normativo utilizado

tinha o objetivo de incentivar e garantir os lucros da iniciativa privada, para que ela se

interessasse em realizar empreendimentos urbanísticos que visassem suprir a procura por

moradias e a instalação de infraestruturas.

Nesse mesmo período, epidemias como a da varíola e da febre amarela, eram problema

sombrio a ser enfrentado pelos governantes, principalmente onde ascom grandes

aglomerações e condições sanitárias precárias propiciavam uma rápida multiplicação dos

surtos.Era o caso da São Paulo do início do século XX. Dado o caráter emergencial do

problema neste caso, o governo paulistano não poderia, apenas, criar incentivos e esperar que

a iniciativa privada se mobilizasse. Para se chegar a uma solução, ele deveria agir de forma

direta e enérgica, sem intermediários.

Como já dito anteriormente, a população que chegou à cidade durante este período era

constituída, principalmente, por imigrantes europeus, ex-escravos e seus descendentes, grupos

compostos por pessoas sem nenhuma, ou quase nenhuma renda. Era necessário, portanto, que

o governo paulistano incentivasse a produção de moradias voltadas para uma população de

baixa renda.

5ROLNIK, Raquel. A Cidade e a Lei: Legislação, Política Urbana e Território na Cidade de São Paulo. São

Paulo: Studio Nobel/FAPESP, 1997 (p. 23)

5

Por outro lado, neste mesmo período, a elite cafeeira saia de suas fazendas no interior e

se deslocava para São Paulo. Para viver numa cidade habitada por ex-escravos e imigrantes, a

sociedade do café iria ter que redimensionar o espaço público, criando áreas de circulação

especiais e limpas, se não quisesse correr risco de epidemias. Para atingir esses objetivos,

instituiu política urbanística que foi positivada na legislação.6

Temos aqui um mercado altamente rentável a ser explorado pela iniciativa privada: a

construção de moradias de alto padrão em zonas especiais da cidade e, do ponto de vista do

liberalismo, o Poder Público deveria garantir o lucro neste nicho de mercado.

A política urbanística irá, desta forma, ter a tarefa de garantir os lucros do setor privado,

tanto na construção de moradias de alto padrão, quanto na de moradias para a classe

trabalhadora, ao mesmo tempo em que cria zonas especiais para a sociedade cafeeira e tenta

combater epidemias.

Para obedecer tais diretrizes, a primeira preocupação das normas urbanísticas

municipais foi eliminar formas de ocupação de habitações coletivas precárias do centro da

cidade, pois a grande densidade populacional na região seria um fator relevante para a

proliferação de doenças infecto contagiosas, e, também, porque esta área, com maior

infraestrutura instalada, seria mais valorizada, e por isso, mais propícia à construção de

moradias de alto padrão e exclusivas, pois haveria maior rentabilidade. Assim, o Código de

Posturas do Município de 1886, em capítulo intitulado "Cortiços, casas de operários e

cubículos" estabeleceu os padrões que estes tipos de imóveis deveriam possuir na região

central da cidade, com fundamento em populares teorias sanitaristas da época. Contudo, os

tamanhos e medidas eram completamente destoantes dos padrões das habitações populares

encontradas, e, caso fossem obedecidos, os preços seriam muito superiores aos pagos pela

população de baixa renda que vivia na região central até então.

É interessante também o fato de que fora desta região central delimitada pelo Código,

essas mesmas exigências sanitárias das construções de cortiço, casas de operários e cubículos

não eram necessárias.

Na prática, com o passar dos anos e a valorização do centro, a população de baixa renda

se deslocou para a periferia, onde as normas de construção e os preços dos imóveis tornavam

a moradia mais acessível e a região central se tornou exclusiva para moradias de alto padrão.7

6ROLNIK, Raquel. A Cidade e a Lei: Legislação, Política Urbana e Território na Cidade de São Paulo. São

Paulo: Studio Nobel/FAPESP, 1997 (p. 36)

7ROLNIK, Raquel. A Cidade e a Lei: Legislação, Política Urbana e Território na Cidade de São Paulo. São

Paulo: Studio Nobel/FAPESP, 1997 (p. 47)

6

Podemos notar o grande contraste entre os padrões impostos pela legislação e os

comumente adotados a partir da comparação do Código de Posturas do Município de 1886, e

da discrição dos cortiços feito no Relatório de Inspeção Sanitária no Distrito da Santa Ifigênia

de 1893.

Código de Posturas do Município de 1886: Os cortiços deveriam ser construídos em

terrenos com mais de 15m de largura, observar um espaço mínimo de 5m entre cada linha de

cortiços, e, em caso de ser constituída cada unidade por único cômodo, este deveria ter pelo

menos cinco metros quadrados de área A altura das construções do solo à cimalha deveria ser

de 4,50m e o piso elevado de 0,20m do solo. As janelas deveriam ter ao menos de 0,90m a 1m

de largura e o duplo correspondente de altura.8

Relatório de Inspeção Sanitária no Distrito da Santa Ifigênia de 1893:"raramente

cada casinha tinhamais de 3 metros de largura, 5 a 6 de fundo e altura de 3 a 3,5 metros".

Enquanto a lei impunha que os terrenos no quais os cortiços seriam construídos

deveriam ter 15m e largura, as casinhas não possuíam mais de 3m de largura. O pé-direito

deveria ter mais de 4m, mas tinham, no máximo, 3,5m Esta norma criava padrões

impraticáveis e desconectados da realidade dos preços de mercado.9

O estabelecimento do Código de Posturas Municipal de 1886, por esta razão, dificultava

a instalação de cortiços na zona central da cidade,foi apenas o primeiro passo. Mas ele foi

apenas o primeiro passo, com a edição do Código Sanitário Estadual de 1894, a construção de

cortiços foi terminantemente proibida,a única forma de moradia popular possível passou a ser

a vila operária higiênica fora chamada da aglomeração urbana, ou seja, fora da zona central,

que na época consistia na “Zona do Triângulo”, área compreendida entre o mosteiro de São

Bento, o Largo de São Francisco e Igreja do Carmo. Posteriormente, a Lei Municipal de nº

498 de 1900 ofereceu incentivos, isentando de impostos municipais os proprietários que

construíssem vilas operárias de acordo com o padrão municipal e fora do perímetro urbano

delimitado pela mesma lei.10

As proibições da produção de moradias para a população de baixa renda em

determinadas áreas da cidade foram repetidas e ampliadas diversas vezes com o crescimento

8ROLNIK, Raquel. A Cidade e a Lei: Legislação, Política Urbana e Território na Cidade de São Paulo. São

Paulo: Studio Nobel/FAPESP, 1997 (p. 35)

9ROLNIK, Raquel. A Cidade e a Lei: Legislação, Política Urbana e Território na Cidade de São Paulo. São

Paulo: Studio Nobel/FAPESP, 1997 (p. 35)

10Relatório de Inspeção Sanitária no Distrito da Santa Ifigênia de 1893

7

da cidade de São Paulo e a expansão do centro. Isso impossibilitou que a população de baixa

renda habitasse o centro e fosse forçada a se deslocar para lugares cada vez mais distantes e

com menores infraestruturas instaladas.

Somam-se a isso diversas leis específicas que obrigavam futuras construções a obedecer

certos padrões nos bairros das elites,como ocorreu em 1894 no loteamento da região da

Avenida Paulista, e nas Avenidas Higienópolis e Itatiaia, nas quais a Lei Municipal nº355 de

1898 tornou obrigatório recuos mínimos de 6 metros para jardins, tornando as áreas

inacessíveis aos mais pobres. O alargamento de vias para passagem dos modernos

automóveisforam uma justificativa encontrada para destruir imóveis utilizados como moradia

popular e que deram espaço para construções modernas. Sobretudo com o advento da

República, obras de embelezamento modernizador também foram utilizadas como forma de

tentar romper com qualquer lembrança do Império. Havia a expectativa de se apagar as

expressões as suas morfológicas expressas da cidade, com o objetivo de, com isso, extinguir

junto todo o “atraso” que ele representava para a nova ordem política brasileira.

Assim, as leis da cidade foram utilizadas para demarcar o território social, construindo

barreiras segregadoras em São Paulo.

Neste período, houve, portanto, intensa transformação da morfologia de São Paulo. A

produção de moradias, seja de alto padrão ou de vilas operárias, foi dominada pela iniciativa

privada, que explorou esses dois nichos do mercado imobiliário; e o Poder Público procurou

garantir a rentabilidade desses dois tipos de empreendimentos, seja por meio de incentivos nas

periferias ou da criação de espaços exclusivos e valorizados no centro. Foi nesta época

também que os padrões de ocupação que temos até hoje em São Paulo começaram a se

estabelecer, nos quais a periferia é habitada por população de baixa renda e o centro pela

classe mais abastada.11

2.1.2. Era Vargas

Nos anos 30 há significativa mudança no fluxo migratório em São Paulo. Claro que os

imigrantes estrangeiros não deixaram, simplesmente de vir para a cidade, porém, o tipo

dominante de recém-chegados passou a ser o de migrantes internos, estamos tratando da

primeira onda migratória e brasileiros vindos das regiões Norte e Nordeste para São Paulo.

11

BAENINGER,Rosana. Fases e faces da migração em São Paulo. Campinas: Núcleo de Estudos de População-

Nepo/Unicamp, 2012. (p. 23)

8

Nesta época também houve uma profunda mudança na política habitacional do país

devido ao início do governo de Getúlio Vargas e seu plano nacional-desenvolvimentista.

Segundo esta nova perspectiva, eram fundamentais para o Brasil condições básicas de

reprodução de força de trabalho, o que implicava em garantir condições mínimas ao

operariado. Dentre outras necessidades a serem atendidas, estava a superação do déficit

habitacional. Durante este período, 70% das moradias no país eram alugadas. Então, como

forma de tentar favorecer os locatários, criou-se o Decreto-Lei nº 4.598, de 20 de agosto de

1942, que congelava os preços dos aluguéis da época. Porém, a rigidez da lei e sua vigência

demasiadamente longa, fez com que os proprietários procurassem saídas mais rentáveis para

seus imóveis, que não a locação para fins de moradia. Isso causou uma onda de despejos na

cidade de São Paulo, e mais uma vez, a população se deslocou para a periferia, pois seria mais

segura a casa própria, ainda que mais distante, e mesmo que irregular.12

Com o déficit habitacional se agravando ainda mais devido às ondas de despejo dos

anos de 1940, a população de baixa renda deu início àautoconstrução de moradias nas

periferias de São Paulo, inaugurando as primeiras favelas paulistanas.

2.1.3. Redemocratização

Nos anos de 1970 e 1980, houve a segunda onda migratória de nordestinos para a

cidade de São Paulo.

De 1965 a 1985 estabeleceu-se o Regime Militar no país, que sufocou qualquer tipo de

debate público em torno de direitos sociais, dentre ele, do Direito à Moradia. Apesar de

esforços por parte do governo federal para sanar o déficit habitacional, como a criação do

Banco Nacional de Habitação (BNH) e do Sistema de Financeiro Habitacional (SFH), eles

não foram suficientes para superá-lo. Havia também a preocupação com a modernização do

país, e, assim como no início do século XX, construir ruas largas e romper esteticamente com

os padrões arquitetônico anteriores era de grande importância para o regime. As chamadas

“obras faraônicas” foram realizadas através da lógica do alargamento de vias para a melhora

do tráfego, com a construção de túneis imensos e do alargamento das marginais durante um

longo período, perpassando quase todo o governo militar. Apenas com a mobilização dos

movimentos sociais, a partir da década de 1980, que a questão do Direito à Moradia voltou

para a pauta da política urbana.

12

BONDUKI, Nabil. Origens da Habitação Social no Brasil. Arquitetura Moderna, Lei do Inquelinato e Difusão

da Casa Própria. São Paulo: Estação Liberdade, 2011. (p. 73)

9

Este tema foi incorporado à Constituição Federal de 1988, que em seu artigo 6º,

incorpora o Direito à Moradia como direito social e trata da política urbana em seus artigos

182 e 183.Mas, é relevante destacar o artigo 5º, inciso XXIII,13

que estabeleceu que a

propriedadedeve cumprir sua função social. Isso inclui a propriedade urbana, que deve

cumprir sua função social específica, ou seja, realizar as chamadas funções urbanísticas de

propiciar habitação, condições adequadas de trabalho, recreação e circulação urbana, realizar

as funções sociais da cidade. "A utilização do solo urbano estão fica sujeita a determinações

de leis urbanísticas e do plano diretor"14

O direito de propriedade urbana fica, assim, submetido à qualificação urbanística dos

terrenos, cuja fixação é de competência do Poder Público e possui uma natureza variável, de

acordo com as necessidades da cidade, segundo a apreciação do próprio Poder Público.15

Apesar da redemocratização do país ter trazido importantes mudanças legislativas no

sentido da efetivação do Direito à Moradia, em 2012, segundo o IBGE, as regiões centrais das

cidades brasileiras tem perdido população permanente, e, como já dito anteriormente, em São

Paulo, persistem 400 mil imóveis vagos, a maioria em áreas centrais e consolidadas. Neste

sentido, é pertinente uma intervenção na região central da cidade.

3.O Bairro da Luz

A região que hoje conhecemos como bairro da Luz é uma das áreas com ocupação

mais antiga de São Paulo. Anteriormente conhecida como “campos do Guarepe” ou “campos

do Guaré”, a Luz esta localizada numa planície alagável que se estende ao longo do Rio

Tamanduateí.

Até o início do século XIX, este bairro possuía uma ocupação rural, ou semi-rural,

com baixa densidade populacional e sendo ocupado, sobretudo, por chácaras. Porém, uma

característica que foi essencial para o desenvolvimento da Luz é que a área estava localizada

em uma rota que já era utilizada por índios antes mesmo do descobrimento e depois por

13

XXIII - a propriedade atenderá a sua função social (artigo 5º, inciso XXIII. CF)

14SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. São Paulo : Malheiros, ed. 6, 2010. (p. 79)

15SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. São Paulo : Malheiros, ed. 6, 2010. (p. 81)

10

tropeiros. Isso fez com que essa região sempre tivesse um papel relevante no que diz respeito

ao comércio para a cidade de São Paulo, e para o comércio inter-regional.16

A importante rota comercial atraiu novos moradores, e fez com que a região recebesse

investimento em infraestrutura, que estimularam o desenvolvimento local. Isso só aumentou

com o crescimento da cidade de São Paulo. Por esta razão, já no ano de 1784, foi feito o

loteamento do Bairro da Santa Ifigênia (região da Luz), já quando a cidade contava com,

apenas, 8.500 habitantes. Os investimentos feitos em infraestruturaproporcionavam alternativa

diferenciada para a ocupação da cidade, e, ainda que modestos, atraíram as famílias mais

abastadas, a população mais rica deixou a região central da cidade, e se concentrou num

bairro mais exclusivo, dando início a um fenômeno que seria marcante para a cidade de São

Paulo, e que se repetiria diversas vezes.17

Um símbolo da ocupação da elite paulistana na região era o Jardim Botânico, atual

Parque da Luz, que foi referência do entretenimento paulistano, ondeos habitantes da cidade

viram, pela primeira vez, a exibição da luz elétrica, com uma multidão que precisou pagar

ingressos para ver tal maravilha tecnológica.18

Porém, já no final do século XIX, o bairro começou a se modificar com o intenso

crescimento populacional da cidade. O primeiro marco na mudança do bairro foi a construção

do Quartel da Luz, até hoje localizado na Avenida Tiradentes. Inaugurado em 1892, o quartel

trouxe um grande fluxo de soldados de origem humilde para a região. As elites que moravam

ali não viram com bons olhos este novo movimento de pessoas que não pertenciam a sua

classe.

O maior impacto na rotina dos moradores, contudo, foi a construção da Estação da

Luz. A princípio, a estação de trem, que foi construída numa área que pertencia ao parque e

foi entendida como sinônimo de progresso e desenvolvimento, encaixando-se plenamente

com a ideologia da alta sociedade da época. Mas por causa dela, a instalação de um novo tipo

de comércio, armazéns, pequenas manufaturas, e consequentemente, vilas operárias, foi

decisivo para que a classe alta que morava nos grandes casarões dos Elísios decidisse sair

definitivamente do bairro.

16

CAMPOS, Eudes. Nos caminhos da Luz, antigos palacetes da elite paulistana. Disponível em:

http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-47142005000100002&script=sci_arttext

17COELHO JUNIOR, Marcio Novaes, Processos de intervenção urbana: bairro da Luz, São Paulo. Dissertação

de Doutorado. São Paulo: FAU-USP, 2010. (p 2012 e 202)

18DIAS, Carlos; OHTAKE, Ricardo.Jardim da Luz: Um Museu A Céu Aberto. São Paulo: Senac, 2011.

11

O Viaduto do Chá, inaugurado em 1892, ajudou a transpor a barreira física do Vale do

Anhangabaú, e os lotes do outro ladoforam estabelecidos aos moldes da já referida Lei

Municipal nº 355 de 1898.Foi a partir daí que surgiram efetivamente os bairros exclusivos em

São Paulo.

Desde a saída da classe mais abastada da região da Luz, o bairro passou a ser habitado

predominantemente por operários. Apesar dos menores investimentos em infraestrutura, que

passaram a se concentrar na área Sudoeste da cidade, do outro lado do Viaduto do Chá, a Luz

continuou a desempenhar um importante papel na economia paulistana, sobretudo por causa

da estação de trem. É esta a situação do bairro durante as primeiras décadas do século XX.

Vilas operárias tais como aVila Marquesa de Itu, Vila Aguiar, Vila Santa Maria, Vila Bueno,

Vila Santa Clara, não paravam de se multiplicar.

Foram, também, necessárias mudanças nos arruamentos do bairro, para que eles

dessem conta de suportar o crescente fluxo de cargas e mercadorias próximo da estação.

Combinado a isso, a já referida ideologia higienista da época, e as aspirações de

embelezamento como sinônimo de desenvolvimento da cidade fez com que fossem cortadas

largas avenidas pelo bairro da Luz. Destaca-se, neste período o alargamento das Avenidas Rio

Branco e Tiradentes.

A importância do bairro vai diminuir conforme o estabelecimento da matriz de

transporte baseada em automóveis no Brasil. Nas décadas de 1940 e 1950, o governo federal

estimulou a construção de rodovias, pelo baixo custo de implantação e uma política

econômica que estimulava a produção de automóveis voltada para o consumo fez com que o

trem tivesse sua importância diminuída no país. Várias ferrovias e estações chegaram a

serdesativadas e abandonadas. Com a Estação da Luz, não foi diferente, ela perdeu muito de

sua relevância. O efeito local desta política nacional foi decisivo para que o bairro da Luz

atingisse a situação de degradação, os investi mentos no bairro foram diminuindo com o

passar dos anos, até que ele chegou a situação de deterioração em que se encontra atualmente,

merecendo ser algo de Política Pública especifica para a sua revitalização.

Os problemas referentes à mobilidade urbana na cidade de São Paulo não são objeto

de estudo do artigo, porém, também é importante destacar que, durante o Governo Militar,

este problema foi utilizado para fundamentar grandes intervenções urbanas, entre elas, o

alargamento das Avenidas Rio Branco e Tiradentes. Este processo se repetiu nos anos de

administração do Prefeito Paulo Maluf (1993-1997), que se gaba da realização de grandes

obras pela cidade. Mais uma vez, a Avenida Tiradentes foi ampliada, e se tornou em

12

verdadeira barreira física que corta o bairro no meio. É um desafio para os que desejam cruzá-

la, e, principalmente, para o pedestre. Nota-se o investimento feito por esta reforma elaborado

pensando na melhor a forma de se passar pela Luz o mais rápida possível, não houve

preocupação por parte do Poder Público com quem habita e utiliza a região.

Hoje, o bairro da Luz se encontra muito deteriorado, apesar dos esforços que tem sido

feitos. Destacam-se projetos que pretendem, através de arte e cultura, contribuir para a

revitalização da região. A criação da Sala São Paulo, inaugurada em julho de 1999, no antigo

prédio da Estrada de Ferro Sorocabana, do Museu da Língua Portuguesa, inaugurado em

março de 2006, e a restauração da Pinacoteca, entre 1993 e 1998 foram feitos que, sem

dúvida, contribuíram com a vida cultural e revitalização do bairro. Mesmo assim, na Luz se

localiza a área conhecida como “cracolândia”, que concentra dependentes químicos morando

nas ruas em situações extremamente precária. Também é notório o alto grau de violência

urbana na nesta área, segundo pesquisa realizada pelo instituto Datafolha em 2009 (época da

criação do Projeto Nova Luz), oito em cada dez moradores dizem evitar áreas da região após

o anoitecer.19

Estas intervenções no bairro não foram suficientes para revitalizá-lo. Por este motivo

que é pertinente a iniciativa da Prefeitura de intervir na região. O Projeto Nova Luz tem a

pretensão se “propor um redesenho urbano sustentável que sirva como exemplo para outros

projetos no Brasil e no exterior”.20

4. Projeto Nova Luz

No dia 7 de maio de 2009 foi promulgada a Lei 14.918, que regulamenta a aplicação

da Concessão Urbanística e autoriza a aplicação deste instrumento na área denominada Nova

Luz:

Art. 1º Fica o Executivo Municipal autorizado a aplicar a concessão

urbanística na área delimitada pelo perímetro da Nova Luz, na forma e

atendidas as normas previstas na legislação municipal específica.

19

DNA Paulistano/Datafolha, caderno “Cotidiano”, Publifolha. São Paulo: Publifolha, 2009.

20Nova Luz: Projeto Urbanístico: http://www.novaluzsp.com.br/proj_plano.asp?item=projeto

13

Parágrafo Único - Para os fins desta lei, considera-se Nova Luz o

conjunto das intervenções urbanísticas necessárias para a execução de

projeto urbanístico específico no perímetro definido pelas Avenidas Casper

Líbero, Ipiranga, São João, Duque de Caxias e Rua Mauá, no Distrito da

República.

Esta norma inaugurava o Projeto Nova Luz, um projeto com plano urbanístico

específico que teria como objetivo “definir as bases para a requalificação da região e a

implementação de equipamentos e serviços que reforcem suas características comerciais,

sociais e culturais (...) consideradas as mudanças climáticas e econômicas futuras, propondo

um redesenho urbano sustentável que sirva como exemplo para outros projetos no Brasil e no

exterior”.21

O Projetose apresenta ambicioso, com a meta de servir de modelo para futuras

reformas urbanas a serem realizadas, não apenas em São Paulo, mas no mundo todo, procura,

dentre outras coisas, atender à demanda social por moradia. Isso pode ser visto na referida Lei

e, seu artigo 2º:

Art. 2º Constituem diretrizes específicas da concessão urbanística

autorizada pela presente lei:

(...)

II - equilíbrio entre habitação e atividade econômica, de forma a

propiciar a sustentabilidade da intervenção;

III - implantação de unidades habitacionais destinadas à população

de baixa renda, de acordo com as normas urbanísticas aplicáveis às

Zonas Especiais de Interesse Social;

Em primeiro lugar, é importante destacar a forma de atuação escolhida pelo

PoderPúblico para realizar o Projeto Nova Luz: não é a atuação indireta, através do particular

com ocorria no início do século XX, nem a intervenção direta da municipalidade, mas da

operação urbana consorciada, que se utiliza de recursos e da participação da iniciativa privada

para intervir na área delimitada pelo perímetro da Nova Luz.

21

http://www.novaluzsp.com.br/proj_plano.asp?item=projeto

14

Em segundo lugar, também é inovador o local no qual estão pretendendo implantar

unidades habitacionais destinadas à população de baixa renda, incentivando a população

pobre a ocupar a região central da cidade, e não, apenas sua periferia. Este é um

acontecimento incomum em São Paulo, tendo Projeto Nova Luz, por este aspecto,se mostrado

inovador, mais do que por qualquer outro.

O modelo urbano criado pelo projeto, entretanto, já foi questionado por urbanistas,

agentes públicos e juristas, e o resultado disso foi o seu engavetamento em janeiro deste ano.

No conjunto de críticas, se encontram censuras dos mais variados tipos, que vão desde a

forma com a qual o plano urbanístico foi elaborado, de críticas de ordem técnica, e de

desrespeito ao modelo democrático adotado pelo nosso ordenamento, até a inviabilidade

econômica do projeto.

Para fazer uma análise de ponto de vista do Direito Urbanístico, o artigo irá retomar as

normas do Projeto Nova Luz que tem por objetivo organizar os espaços habitáveis na Nova

Luz, dando destaque para a legislação que contém as normas organizadoras relativas ao

Direito à Moradia.

4.1. Construção Legislativa do Projeto Nova Luz

A retrospectiva histórica feitasobre asnormas de urbanismo e zoneamento de São

Paulo revela que, em diversos casos, foram construídas verdadeiras barreiras físicas seletivas

na cidade através do ordenamento jurídico.

O Projeto Nova Luz objetivava exatamente o contrário,criar uma área na qual

convivessem pessoas de diferentes classes sociais estimulando a diluição dos bairros

residenciais exclusivos e bolsões de pobreza na cidade. Trazer a população de baixa renda de

volta para o centro é uma proposta inovadora na história da política urbanística da cidade e é

uma proposta que responde aos clamores dos movimentos sociais que ocupam as construções

do centro.

Levando-se em conta o discurso que justifica a implementação do Projeto Nova Luz e,

a situação de degradação da região poderia afirmar que ele se trata de projeto de urbanização

necessário e pertinente para que se realizasse uma intervenção urbanística significativa, que

recuperaria área urbana deteriorada, alojando em “imóveis saudáveis famílias que se

depauperam física e moralmente em pardieiros ou favelas” e ainda restituiria“às áreas urbanas

deterioradas ou carentes de remodelação uma estrutura e uma arquitetura dignas da época

15

presente.” Seria “uma operação urbanística que se realiza em áreas previamente delimitadas,

entre nós, mediante um plano especial de urbanificação, aprovado por lei municipal, e se

caracteriza pela demolição dos imóveis existente, seguida da reordenação urbanística da área

e da construção de novas casas e edifícios.” 22

Seria um planode renovação urbana propício

para ser aplicado a esta área que mereceria, segundo o entendimento do Poder Público, ser

corrigida, ou seja, urbanificada.

O Projeto Nova Luz foi criado a partir de um complexo conjunto normativo. No

âmbito constitucional, temos os artigo 182 e 183dispõem sobre a política de desenvolvimento

urbano a ser executada pelo poder público municipal.

O artigo 182 “caput”23

dispõe sobre os objetivos da política de desenvolvimento

urbano: 1- ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e 2- garantir o

bem-estar de seus habitantes. Estes dois princípios devem orientar todo plano de

desenvolvimento urbano no Brasil.

As "diretrizes gerais" destes objetivos foram fixadas pela Lei nº 10.257/2001, o

Estatuto da Cidade, que, através de diretrizes inovadoras e instrumentos singulares, levando-

se em conta uma gestão democrática e com a possibilidade de participação popular direta,

procura realizar os preceitos constitucionais. O Estatuto da Cidade trouxe grande esperança

para os movimentos sociais que acreditaram que esta norma iria possibilitar a construção de

centros urbanos menos excludentes, e mais justos. Porém, apesar dele ser considerado um

grande avanço, mais de uma década depois de sua implantação, que ainda estamos muito

longe do que se esperava alcançar.

O Estatuto da Cidade trouxe novos meios para se intervir na cidade, dentre eles, são

importantes para este artigo a Concessão Urbanística e a Zona Especial de Interesse Social.

4.1.1 Operações Urbanas Consorciadas

AsOperações Urbanas Consorciadasconsiste numa parceria entre um ente privado e o

Poder Público para realização de empreendimentos necessários que visem promover

22

SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. São Paulo : Malheiros, ed. 6, 2010. (p. 361)

23CAPÍTULO II - DA POLÍTICA URBANA

Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes

gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir

o bem- estar de seus habitantes.

16

transformações urbanísticas estruturais. Nos artigos 32 a 34 do Estatuto da Cidade, a lei

dispõe sobre as operações urbanas consorciadas. No artigo 32, § 1º determina-se que as

intervenções e medidas tomadas serão coordenadas pelo Poder Público, e terá a “participação

dos proprietários, de moradores, usuários permanentes e investidores privados com o objetivo

de transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e a valorização ambiental.”24

4.1.2. Zonas Especiais de Interesse Social

As ZEIS foram criadas com o objetivo de “garantir o respeito aos usos de algumas

ocupações já consolidadas ou reservar à população de baixa renda espaços em área já provida

de infraestrutura(...) visando efetivar o planejamento inclusivo a partir de realidades já

consolidadas”.25

Assim, as ZEIS devem observar a realidade fática da zona suas

particularidades e necessidades, para, a partir daí, intervir. Essa norma está inserida no âmbito

dos estudos do Direito Urbanístico, que, como dito anteriormente, preocupa-se com as normas

que tem por objetivo organizar os espaços habitáveis, de modo a propicias melhores

condições de vida ao homem na comunidade.

As ZEIS estão previstas no Estatuto da Cidade em seu artigo 4º, inciso III, f, porém, só

foram efetivamente regulamentadas pela Lei nº 11.977/2009, no artigo 47, inciso V.26

Tanto as operações urbanas consorciadas quanto as ZEIS possuem grande

preocupação com a participação popular para a formulação de seus planos de reforma urbana.

O Estatuto da Cidade expressamente determina a “participação dos proprietários, de

moradores, usuários permanentes e investidores privados com o objetivo de transformações

24

Art. 32. Lei municipal específica, baseada no plano diretor, poderá delimitar área para aplicação de operações

consorciadas.

§ 1o Considera-se operação urbana consorciada o conjunto de intervenções e medidas coordenadas pelo Poder

Público municipal, com a participação dos proprietários, moradores, usuários permanentes e investidores

privados, com o objetivo de alcançar em uma área transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e a

valorização ambiental.

25MARQUES, Sabrina Durigon. A efetividade da gestão democrática das cidades nas Zonas Especiais de

Interesse Social. Dissertação de Mestrado. São Paulo. PUC-SP, 2012

26 Art. 47. Para efeitos da regularização fundiária de assentamentos urbanos, consideram-se:

V – Zona Especial de Interesse Social - ZEIS: parcela de área urbana instituída pelo Plano Diretor ou definida

por outra lei municipal, destinada predominantemente à moradia de população de baixa renda e sujeita a regras

específicas de parcelamento, uso e ocupação do solo;

17

urbanísticas estruturais, melhorias sociais e a valorização ambiental” nas operações urbanas

consorciadas. As ZEIS possuem mecanismos legalmente previstos de participação

popular.Merecem destaque os artigos 175, § 1º da Lei Municipal nº 13.430/200227

, que cria o

Conselho Gestor das ZEIS, formado por moradores da região onde o plano urbano será

executado e que deve participar de todas as etapas de elaboração e implementação do plano, e

o artigo 17828

desta mesma lei que tem o objetivo de garantir a participação dos moradores da

região, do representante da subprefeitura envolvida e dos proprietários dos imóveis

localizados nas ZEIS através da forma de aprovação do Plano de Urbanização a ser

implantado no local.

4.1.2.1. ZEIS 3

Há diferentes categorias de ZEIS conforme a região e o plano urbanístico a ser

desenvolvido nela. Isso só reforça a preocupação no momento de criação das ZEIS em aplicar

um projeto de reforma na cidade já tendo em vista a situação de um determinado local.

Procura-se entender quais os principais problemas de uma região do ponto de vista de quem a

utiliza e a habita. Seria uma tentativa de evitar planos descolados da realidade local e que

garantam a participação democrática da população, pois seria a partir das necessidades dela,

de acordo com a opinião da própria população, que o plano seria desenvolvido. A população

moradora que já está instalada na área onde o plano urbanístico será implementado possui

papel fundamental, pois ela auxiliará na elaboração do projeto de urbanização de forma ativa.

A ZEIS 3, segundo o artigo 171, inciso III da Lei nº 13.430/2002, o Plano Diretor,

deve ser aplicada à: “áreas com predominância de terrenos ou edificações subutilizadas

27

Art.175, § 1º Deverão ser constituídos em todas as ZEIS, Conselhos Gestores compostos por representantes

dos atuais ou futuros moradores e do Executivo que deverão participar de todas as etapas de elaboração do Plano

de Urbanização e de sua implementação.

28 Art.178. Os Planos de Urbanização de cada ZEIS deverão ser subscritos pelo Conselho Gestor da respectiva

ZEIS e aprovados pela Comissão de Avaliação de Empreendimentos Habitacionais de Interesse Social –

CAEIHIS, da SEHAB, garantindo na elaboração e implementação do respectivo plano de Urbanização a

participação dos seguintes setores:

I- Da população moradora da ZEIS, ou daquela para a qual as ZEIS estiverem destinadas ou de representantes

das suas associações quando houve;

II- De representantes da Subprefeitura envolvida;

III- De representantes dos proprietários de imóveis localizados nas ZEIS.

18

situados em áreas dotadas de infraestrutura, serviços urbanos e oferta de empregos, ou que

estejam recebendo investimentos desta natureza, onde haja interesse público, expresso por

meio desta lei, dos planos regionais ou de si específica, em promover ou ampliar o uso por

Habitação de Interesse Social – HIS ou do Mercado Popular – HMP, e melhorar as condições

habitacionais da população moradora”. Na zona específica do Projeto Nova Luz se enquadra

muito bem nesta descrição. Sabemos que, em toda região da central São Paulo, há um

significativo número de imóveis subutilizados ou desocupados.Isso fica claro quando

observamos o grande número de movimentos sociais que ocupam estas construções no centro

da cidade. Também se localizam na região central da cidade o maior número de ofertas de

empego, além de a área ser dotada de infraestrutura. Nesta região, o Poder Público

determinou, por lei específica, que deseja promover e ampliar o uso de HIS (Habitação de

Interesse Social) e HMP (Habitação de Mercado Popular), e melhorar as condições

habitacionais da população moradora.

Em outras palavras, o público alvo da ZEIS do tipo 3, a ser implantada pelo Projeto

Nova Luz é a população de baixa renda. Este projeto tem por objetivo trazê-la para o centro

da cidade, onde há grande oferta de empregos e infraestrutura, para que ela possa ocupar uma

região, que se encontra hoje degradada, e revitalizar a área, proporcionando melhores

condições habitacionais para a população moradora.

4.2. Leis Municipais

O Projeto Nova Luz foi oficialmente criado no dia 7 de maio de 2013, quando duas

leis foram sancionadas pela Prefeitura de São Paulo. A primeira, a Lei Municipal nº 14.917,

que dispôs sobre a concessão urbanística na cidade de São Paulo. A segunda, a Lei Municipal

nº 14.918 que autoriza a aplicação de concessão urbanística na área denominada “Nova Luz”.

Este pacote legislativo possibilitou a criação do Projeto objeto de estudo deste artigo.

4.2.1. Lei Municipal nº 14.917/2009

Desde sua homologação, esta norma foi alvo de muitas críticas, sobretudo no que diz

respeito a seu artigo 11,29

pois ele permitiria que a concessionária promovesse a

29

Art. 11. A Prefeitura Municipal efetuará a declaração de utilidade pública e de interesse social dos imóveis a

serem objeto de desapropriação urbanística para a execução do projeto urbanístico específico mediante

19

desapropriação, seja amigável ou judicial, de imóveisnos quais, posteriormente, ela irá

construir elucrar através da revenda das unidades imobiliárias.

Em primeira análise, podemos observar queuma concessão pública, em geral,

implicaria a celebração de um contrato que irá transferir ao particular vencedor de licitação a

execução de um serviço público mediante pagamento de tarifa pelo usuário. A concessão

pública envolveria, necessariamente, um serviço público a ser prestado, e seria a partir da

prestação deste serviço que a concessionária teria a sua perspectiva de lucro. Não é o que

ocorre com a concessão urbanística. Vender imóveis, com perspectiva de lucro, a princípio,

não se enquadra nas obrigações do Executivo de prestação de serviço público, principalmente

se levarmos em consideração que o serviço público é regido pelo princípio da continuidade;

assim, sua prestação não poderia se dar por meio do oferecimento de produto consumível

finito.

Já a empreitada que envolveria a obra de reurbanização prevista em plano urbanístico

específico poderia ser realizada mediante um contrato de comum de empreitada celebrado

entre Poder Público e um particular.

A maneira com a qual foi introduzida a “concessão” urbanística no ordenamento

paulistano é forma sui generis, que fundiria dois tipos contratuais já existentes.

A principal implicação deste novo modelo contratual é que, ao final, o consórcio

incorporador seria a proprietário de boa parte de uma região revitalizada. Ele, com

exclusividade, e nenhuma outro, iria explorar economicamente as unidades imobiliárias

construídas. No limite, a Prefeitura estaria dando autorização para que o consórcio retirasse a

população local de determinada região, a reformasse, e revendesse,realizando o trabalho de

incorporadora em uma escala gigantesca, no caso do Projeto Nova Luz, em 44 quadras do

centro da cidade.

concessão urbanística nos termos autorizados na alínea "i" do art. 5º do Decreto-lei nº 3.365, de 21 de junho de

1941, e no art. 44 da Lei Federal nº 6.766, de 19 de dezembro de 1979.

§ 1º. O concessionário, com fundamento no art. 3º do Decreto-lei nº 3.365, de 21 de junho de 1941, e na

declaração a que se refere este artigo, promoverá a desapropriação judicial ou amigável dos imóveis a serem

desapropriados, pagando e negociando integralmente a respectiva indenização, bem como assumindo a condição

de proprietária dos respectivos imóveis, com poderes para promover as alterações registrárias necessárias para a

realização de incorporações imobiliárias e a implementação do projeto urbanístico específico, nos termos do

contrato de concessão urbanística.

§ 2º. A desapropriação, uma vez obtida a imissão na posse, será irretratável e irrevogável, sendo defeso ao Poder

Público Municipal ou ao concessionário desistir ou renunciar aos direitos e obrigações a ela relativos.

20

Contra este dispositivo, o Sindicato do Comércio Varejista de Material Elétrico e

Aparelhos Eletrodomésticos no estado de São Paulo (Sincoelétrico), em nome de lojistas da

região da Santa Ifigênia moveram ação argumentando que a norma seria inconstitucional pois

feriria o direito à propriedadeSegundo o Sindicato, a lei também seria ilegal, pois o sistema

jurídico brasileiro permitiria a concessão de serviço público seguida de execução de obras, e

não a fusão destes dois modelos contratuais simultaneamente.

Sobre o modelo adotado de operação urbana consorciada do Projeto Nova Luz, alega-

se ainda que o Poder Público não estaria justificandoespecificamente a desapropriação dos

imóveis, mas somente apresentando uma justificativa genérica de utilidade pública, a de que o

imóvel estaria localizado em área destinada à obra de reurbanização, sem que houvesse

avaliação particular sobre subutilização, ou deterioração. Esta generalidade levaria a

arbitrariedades por parte do Poder Público e da concessionária autorizada a desapropriar.

4.2.2. Lei Municipal nº 14.918/2009

Esta é a lei específica de criação do Projeto Nova Luz. Aprovada no mesmo dia da lei

que regulamenta a concessão urbanística na cidade de São Paulo, pode-se imaginar que o

modelo de concessão urbanística criado foi feito sob medida para a região da Nova Luz. Além

da autorização da concessão, a lei também prevê a “implantação de unidades habitacionais

destinadas à população de baixa renda, de acordo com as normas urbanísticas aplicáveis às

Zonas Especiais de Interesse Social” (art. 2, III).

Interessante notar que a ZEIS 3 aplicada ao Projeto Nova Luz engloba apenas um

quarto da área da Nova Luz. Das quarenta e quatro quadras onde haveria está grande

revitalização urbanística, somente em doze delas existe a obrigação de implantação de

imóveis de baixa renda segundo as normas aplicáveis à ZEIS 3.

21

Assim, nas outras trinta e duas quadras, as normas a serem observadas para a

implantação de habitação social são outras, cujas exigências de construção de moradia

popular tende a diminuir muito. Fora das ZEIS, não há previsão de construção de Habitação

de Interesse Social(HIS), moradias cujo público alvo ganha até seis salários mínimos, são

prevista apenas construções do tipo Habitação de Mercado Popular (HMP), moradias cujo

público alvo ganha de seis a dezesseis salários mínimos.30

Isso pode ser observado na tabela

abaixo:

Retirada do Projeto Nova Luz, São Paulo, Brasil: Plano de Urbanização, julho de 2011. Disponível

em:http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/desenvolvimento_urbano/arquivos/nova_luz/2011

08_PUE.pdf (p. 7-4)

“A ZEIS Nova Luz deve ser configurada por 40% de HMP e 40% de HIS (Habitação

de Interesse Social), restando os outros 20% para serviços e outras atividades. A faixa de

30

Projeto Nova Luz, São Paulo, Brasil: Plano de Urbanização, julho de 2011. Disponível

em:http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/desenvolvimento_urbano/arquivos/nova_luz/2011

08_PUE.pdf.

22

renda atendida pelo HIS é de até 6 salários mínimos, enquanto a de HMP (Habitação de

Mercado Popular) é de mais de 6 até 16 salários mínimos. Ou seja, 50% da população a que

se destina esse tipo de habitação estão concentradas nas classes sociais D e C, enquanto os

outros 50% serão atendidos pela HMP, pertencentes à classe B.” 31

Segundo levantamento feito por pesquisa Datafolha em 2009 (mesmo ano da referida

lei), na área da região da República, onde está localizada a Nova Luz 59% da população da

região ganha até 5 salários mínimos. Se levarmos em conta que a população paulistana total

que ganha até 5 salários mínimos é de 69%, veremos que a região da Nova Luz é

relativamente próspera.

Segundo o Plano de urbanização, das 11.679 pessoas que habitam a área do Projeto

Nova Luz, 60,6% tem renda domiciliar de até seis salários mínimo, ou seja,

aproximadamente, 7.077 pessoas.

Toda esta população estaria obrigada a se mudar para as 12 quadras da ZEIS, e habitar

40% dos imóveis lá construídos. Isso implicaria dizer que, apenas nas 12 quadras, a população

chegaria a 14.154 habitantes (40% moradora de HIS somadas as 40% moradoras de HMP).

Isso se considerarmos que os outros 20% da ZEIS será destinada a outros fins, que não

residenciais, caso contrário, a população destas doze quadras seria ainda maior

Quando o objetivo final do projeto é de que residam na Nova Luz 23.657 pessoas ao

fim da sua implementação, vislumbramos duas hipóteses:ou 60% da população irá viver em

apenas um quarto da área total destinada ao Projeto, o que tornaria a pretensão de integrar

áreas comerciais e áreas voltadas para a moradia impossível, ou número de pessoas que

31

Projeto Nova Luz, São Paulo, Brasil: Plano de Urbanização ZEIS (PUZEIS), julho de 2011. Disponível

em:http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/desenvolvimento_urbano/arquivos/nova_luz/2011

08_PUZEIS.pdf.

Retirada do Projeto Nova Luz, São Paulo, Brasil:

Plano de Urbanização, julho de 2011. Disponível

em:http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretaria

s/upload/desenvolvimento_urbano/arquivos/nova_lu

z/201108_PUE.pdf (p. 7-2)

23

viveram em imóveis do tipo HIS será menor do que a população de baixa renda que vive hoje

na região da Nova Luz. Ou seja, ou o Projeto possui grave inconsistência interna por

inviabilizar a integração de áreas comerciais e residenciais; ou possui grave vício por se

utilizar de uma ZEIS, que deveria garantir a efetivação do Direito à Moradia à população de

baixa renda, mas força esta população já residente na área a sair do local.

Não há como este Projeto atrair mais pessoas de baixa renda para a região, uma vez

que a população já residente e espalhada na área já é suficiente para ocupar todos os imóveis

HIS concentrados na ZEIS. Os novos moradores que o bairro irá atrair sãotodos,

necessariamente, de uma classe social mais alta.

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 6º, “caput”,32

estabelece o Direito à

Moradia como um direito social resguardado pelo Estado. A finalidade da ZEIS é garantir que

a proteção à população de baixa renda, estimulando a criação de moradia popular. O Projeto

Nova Luz afirma possuir este objetivo, no entanto, não consegue realizá-lo. Ele apenas irá

promover o processo denominado gentrificação, de substituição da população de classe

inferior por população com maior poder aquisitivo, no centro da cidade de São Paulo.

5. Implantação do Projeto Nova Luz

Além deste descompasso, a população moradora da área da Nova Luz não teria sido

devidamente consultada no planejamento, criação e implantação do projeto. Isso desrespeita

participação democrática legalmente prevista para a intervenção urbana realizada. O Conselho

Gestor da ZEIS foi formado apenas um junho de 2011, o Plano de Urbanização Específica e o

Plano de Urbanização ZEIS da Nova Luz foram consolidados em julho de 2011. Houve,

portanto, pouquíssimo tempo para ouvir a população local, suas demandas, problemas e

anseios, e para que ela pudesse elaborar propostas que pudessem ser incluídasno Projeto.

Outro fato que coloca em cheque o grau de democracia do Projeto é que apenas os moradores

que viviam na região da ZEIS foram chamados a participar ativamente desta construção

32

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a

previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta

Constituição. (CF)

24

pormeio do Conselho Gestor, enquanto os moradores das outras trinta e duas quadras não

puderam participar da deliberação que os afetaria diretamente.33

Em meio a tantas polêmicas, o projeto foi suspenso por ordem judicialdiversas vezes:

Em 25 de abril de 2011, sendo retomado em agosto do mesmo ano; em 27 de janeiro de 2012,

sendoretomado em 24 de fevereiro; e em 6 de junho de 2012, sendo retomado 20 dias depois.

Trecho da decisão que suspendeu o projeto em 27 de janeiro de 2012 mostra a

preocupação com o descumprimento das normas relativas à participação democrática:

“Portanto, sob pena de inconstitucionalidade e ilegalidade da ação governamental,

não há dúvida de que a participação da população e de associações representativas de vários

segmentos da comunidade é norma geral da qual o administrador municipal não pode se

esquivar na formulação, na execução e no acompanhamento de planos, projetos e programas

de desenvolvimento urbano. Em outros termos, como concretização do "direito à cidade" e

exercício da democracia direta, a efetiva (nem meramente consultiva, nem 'teatral')

participação popular no planejamento e na gestão das cidades é um direito inalienável.”34

Além disso, a mesma decisão afirma que a alegação de que não seriam necessários

grandes investimentos públicos utilizados no projeto se revelou falsa, tornando a execução do

Projeto injustificada:

“Segundo se observa do ofício do Prefeito Municipal (fl. 269), que encaminhou o

projeto de lei da autorização de aplicação da concessão urbanística nas áreas do projeto

Nova Luz, o motivo preponderante para a utilização desse instrumento no aludido projeto era

o de que ele propiciaria, com investimentos da iniciativa privada (concessionária), a

execução de obras e serviços públicos sem a "necessidade de grandes investimentos pela

Prefeitura”(...) No entanto, dois anos depois, os estudos de viabilidade econômica do futuro

contrato de concessão urbanística, elaborados pela FGV integrante do consórcio contratado

pela prefeitura para elaboração do projeto urbanístico, também composto pelas empresas

Concremat Engenharia, Companhia City, e a AECOM Technology Corporation -, sinalizam

que o projeto só se concretiza com investimentos públicos em torno de seiscentos milhões de

33

MARQUES, Sabrina Durigon. A efetividade da gestão democrática das cidades nas Zonas Especiais de

Interesse Social. Dissertação de Mestrado. São Paulo. PUC-SP, 2012

34Trecho da decisão sobre pedido liminar da Ação Popular nº 0043538-86.2011.8.26.0053, TJSP.

25

reais, (...) Ora, nesse contexto fático e incontroverso, sem muito esforço, denota-se que o

motivo preponderante que justificou a aplicação da concessão urbanística nas áreas do

projeto Nova Luz se revelou falso. Em outros termos, a lei de efeitos concretos, ora atacada,

enquanto ato administrativo em sentido material, encontra-se viciada pela falsidade do

motivo (ausência de grande investimento público) que levou à sua edição.”35

Os trechos apresentam algumas limitações do Projeto Nova Luz. A nova gestão

municipal que assumiu o mandato no ano de 2013 concordou com as alegações apresentadas,

decidindo que o melhor a fazer seria engavetar definitivamente o projeto.

6. Revitalização da Nova Luz e Direito à Moradia

Ninguém nega a importância de que revitalizar a região da Nova Luz é

fundamental,ainda mais se nos recordarmos que ela engloba a “cracolândia”. O Projeto Nova

Luz poderia, se aplicado, efetivamente reurbanizar a região, revitalizá-la, trazer mais pessoas

para morarem no centro da cidade, que ficariam mais próximas do seu trabalho, o que também

levaria a uma melhora nas questões de deslocamento urbano.

Não é improvável que se ele fosse levado até o fim, tudo isso aconteceria. Contudo,

ele teria se utilizado de mecanismos institucionais que não foram feitos para o que o Projeto

Nova Luz seria. Não há atração de população de baixa renda para a região central da cidade,

como determina a implantação de uma ZEIS tipo 3; na Nova Luz, só poderiam viver pessoas

que fazem parte do grupo dos 31% mais ricos da cidade de São Paulo,36

e é provável que estas

pessoas já vivessem em regiões dotadas de infraestrutura no centro expandido da capital. A

parceria com que se desenvolveu entre o Poder Público e a Concessionária não se mostrou

viável. No início do ano de 2013, a nova gestão municipal considerou o gasto estimado em

seiscentos milhões de reais seriainsustentável do ponto de vista econômico e que, de fato,

haveria desrespeito às normas de participação popular na elaboração do projeto.

O Direito à Moradia seria garantido, apenas, à parcela mais rica da população. Nem a

população mais pobre que habita as periferias de São Paulo, nem os habitantes de baixa renda

da área da nova Luz teriam os seus direito resguardados.

35

Trecho da decisão sobre pedido liminar da Ação Popular nº 0043538-86.2011.8.26.0053, TJSP. 36

DNA Paulistano/Datafolha, caderno “Cotidiano”, Publifolha. São Paulo: Publifolha, 2009.

26

Há, ainda, a questão simbólica que envolve a renomeação do bairro de “Nova Luz”.

Repete-se a lógica já utilizada em outros momentos em São Paulo com a tentativa de romper

com o velho e degradado. O bairro ganhará o status de “novo”, assim como é comum hoje

áreas da cidade que se valorizaram terem acrescidos aos seus tradicionais nome os termos

“jardim”, “alto” ou “novo”. Até as conhecidas Avenidas Rio Branco e Cásper Líbero serão

promovidas para bulevares.

O Projeto Nova Luz propunha conciliar a revitalização da cidade com a efetivação do

Direito à Moradia da população e baixa renda. Para isso ele se utilizou de instrumento que foi

desenvolvido especificamente para garantir o direito destas pessoas, a ZEIS. Mesmo assim,

ele não conseguiria realizar este objetivo, seria suficiente, apenas para revitalizar a região.

Seria um grande feito, porém não cumpre o objetivo ao qual projeto se impõe.

É pertinente ponderar, ainda, os impactos causados por uma reforma urbana que se

estendem além das transformações físicas de um determinado lugar. O que constitui o bairro

da Luz não é apenas um conjunto de construções localizadasprivilegiadamente no centro a

cidade. Os moradores do bairro e sua rotina, o principal ramo comercial da região também faz

parte de sua estrutura.

7. Conclusão

As reformas urbanas na história da cidade de São Paulo foram marcadas, em grande

parte, pela expulsão da população de baixa renda da região central da cidade. O Projeto Nova

Luz alega tentar romper com esta lógica. Contudo, seu desenho institucional, mais uma vez,

perpetuar a tendência de criar bairros de luxo exclusivos no centro e bolsões de pobreza nas

periferias.No que diz respeito ao Direito à Moradia, o Projeto não consegue efetivar seu

objetivo de trazer para a região central da cidade aqueles que foramforçados a se retirar por

questões econômicas.

Não houve, ou não houve como deveria ter ocorrido, a participação popular na

elaboração do Projeto. Isso fere a própria legislação municipal e as diretrizes do Estatuto da

Cidade. Soma-se a isso o fato de ele ter se revelado ao longo dos anos economicamente

inviável.

Verificou-se na análise do caso do Projeto Nova Luz, que ainda prevalece, por parte

do Poder Público Municipal a tendênciade perpetuar o padrão ocupacional iniciado no século

XIX, que reserva áreas com alto grau de infraestrutura para as classes mais abastadas. Outra

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vez, temos um desenho institucional legislativo que funcionaria como barreira seletiva,

permitindo a passagem de poucos, em detrimento dos que precisam.

Hoje, mesmo com uma série de novos instrumentos institucionais como a ZEIS e a

operação urbanística consorciada que promoveriam, em tese uma nova lógica de composição

da cidade, a legislação urbanística ainda é utilizada para organizar a cidade de forma

excludente, e o Projeto Nova Luz como possibilidade de uma Política Pública para a

efetivação do Direito àMoradia, neste sentido, seria apenas uma continuidade de reformas

urbanas que não deram conta de solucionar nemo déficit habitacional de São Paulo,nem

supera o padrão ocupacional existente na cidade.

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