projeto do rio bonito

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Livro reportagem realizado como trabalho de conclusão de curso para a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP, graduação em Comunicação Social - Jornalismo.

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Projeto do Rio BonitoMariana Resegue

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Pontifícia Universidade Católica de São PauloComunicação social com ênfase em JornalismoTrabalho de Conclusão de Curso (TCC)

Orientação Editorial: Aldo QuirogaOrientação Fotográfica: Salomon CytrynowiczOrientação Gráfica: Valdir MengardoColaboração: Nina Meirelles

Faculdade de Comunicação e Filosofia – ComfilRua Monte Alegre 984 – Perdizes – Fone 3670-8205CEP 05.014-901 – São Paulo - SP

Novembro de 2011

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À minha família, por terem me dado a mão quando eu precisei levantar, e me ajudado à alçar os voos que eu ousei fazer.Em especial à minha mãe, que me ensinou a ver as belezas das pequenas histórias das grandes pessoas.À toda a equipe do Projeto Saúde e Alegria, pela recepção, carinho e atenção com essa paulista perdida em Santarém.À família do Doutor Fábio Tozzi, Adria, Luara e Rudá que tornaram todo o trabalho ainda mais especial.Aos orientadores, à Nina e ao Danilo, pela paciência e compreensão.À todas as comunidades do Rio Tapajós, em especial às crianças.Enfm, à natureza, por poder ser tão bela e soberana.

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“(...) amo os grandes rios, pois são profundos como a alma do homem. Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profun-

dezas são tranquilos e escuros como os sofrimentos dos homens. Amo ainda mais uma coisa de nossos grandes rios: sua eternidade.

Sim, rio é uma palavra mágica para conjugar eternidade.” João Guimarães Rosa

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QUE BRASIL VOCÊ CONHECE? Histórico PSA Abaré, o amigo que cuida

NASCENTE (Belém-Santarém) Os Ribeirinhos Mães do Rio

RIO ACIMA (Maripá-Suruacá) O Circo A Alegria na Saúde O Diário

TRATAR SAÚDE E NÃO DOENÇA Atendimento Dona Francisca OS PARTOS (Samaúma - Pinhel) As Diferenças Dona Dica Escrivão - os olhares

MATA VIRGEM E O CONTATO COM O MUNDO (Cupari)

DESCENDO O RIO (Flona) Itapaiuna Seu beijinho (Prainha) Itaquara, Marituba e Bragança- índios ressurgidos

FOZ

BIBLIOGRAFIA

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.............................................................14 ..................................................................................20 ......................................................................................24

................................................................28 ..............................................................................................32 ............................................................................36 ............................................................................................40

.....................................................................................52 .................................................................................56 ....................................................................................58 .........................................................................................64 .........................................................................................66 ..........................................................................68

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ÍNDICE

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Que brasil você conhece?

Viajar pelo interior do Brasil é como conhecer o passado de nosso país. Em cada município, comunidade ou vila é possível perceber hábitos que ainda não foram sobrepostos pela globaliza-ção e pelas novas tecnologias, que muitas vezes conectam o mundo, mas suprimem as tradições regionais. No interior do Brasil, ainda há roçados tão simples como os da época da colonização; produção da farinha de mandioca ainda como era feita pelos índios; parteiras que trazem ao mun-do meninos que não chegam com hora marcada e nem cheiram a hospital. Nestes lugares é pos-sível encontrar o desconhecido...

Viajar pela Amazônia é estar ainda mais diante do mistério e do desconhecido. É estar de fr-ente com um Brasil novo, estranho, quieto. Quieto porque as notícias deste “país” nunca chegam do outro lado do rio – quando chegam – completas. Os meios de comunicação são ascéticos, não transmitem cheiro, calor: o olhar já está viciado. O que chega é parcial, inóspito. Por isso é tão difícil relatar o que vemos, vivemos e sentimos por lá. É tudo tão novo e rico, as cores, os toques, os hábi-tos, os cheiros, que o texto sempre está aquém do que está lá, pulsante. O meu esforço foi tentar trazer um relato colorido, vivo, que chegue mais próximo da realidade do trabalho de uma ONG que torna a vida nestes lugares um pouco mais bela e alegre. Aproveite a viagem deste lado do rio!

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N

O

S

L

São Domingos

SANTARÉM

RESEX FLONA

Arapiuns

Nazaré

Pedreira

Prainha II

Maguari

Tapa

jós

Tauari

Piquiatuba

Itapajuna

Jamaraquá

Amazonas

Pini

Marituba

Paraíso

Acaratinga

Taquara

Bragança

Jutuarama

Jaguarari

Prainha I

Marai

Itapuama

Tabocal

Maripá

Santhi

Capixauã

Suruacá MapiriCabeceira do UkenaVila de Amorim

Enseada do AmorimCabeceira do AmorimParauáPajurá

SurucuáMuratubaJauaritubaParanapixunaJatequaraJaca

São ToméPau-da-letraRosárioBoim TucumatubaNuquiniNova VistaSamaúma

CametáVista AlegreEscrivão

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Histórico Projeto Saúde e Alegria (PSA)

O Projeto Saúde e Alegria foi fundado em 1987 pelo médico Eugenio Scannavino e Márcia Gama, arte-educadora. Inicialmente atendendo 16 comunidades piloto, a ONG se consolidou, so-mou parceiros e apoios, e atualmente atende – com seus diversos projetos - 30 mil pessoas dis-tribuídas nas 143 comunidades ribeirinhas do Rio Tapajós e mais recentemente do Rio Arapiuns, ambos afluentes do imponente Rio Amazonas. Atualmente, a ONG é coordenada por Caetano Scannavino, que junto com o irmão Eugenio, são os grandes idealizadores e entusiastas desse pro-jeto; Magnólio - palhaço de profissão, que largou São Paulo e a cisudez para viver na alegria do Circo Mocorongo; e Fábio Tozzi velejador antes de tudo e que coordena a área de saúde do PSA.

Com sede na cidade de Santarém, a ONG trabalha em parceria com as prefeituras de Belterra, Aveiros, Juruti e a própria Santarém. Os projetos são em sua maioria interdisciplinares e envolvem saúde, educação, arte, arte-educação e comunicação.

As pessoas atendidas são de comunidades tradicionais extrativistas, algumas de difícil acesso, localizadas tão distantes que para chegar nas cidades mais próximas, leva-se cerca de 9 horas em pequenos barcos.

Os projetos são em sua maioria interdisciplinares e envolvem saúde, educação, arte, arte-educação e comunicação. Além do projeto retratado à seguir, a ONG trabalha com cooperativas de artesãos das comunidades, incentivando e divulgando o trabalho desenvolvido por essas pes-soas. Também há projetos em parcerias com as prefeituras, como as Jornadas Cirúrgicas – mutirão de equipes de saúde para realizar pequenas cirurgias – como catarata, epidídimo e vasectomia, e oficinas de instalação de pedras sanitárias, facilitando o controle de contaminação das águas em comunidades que não contam com nenhum tipo de saneamento básico.

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AS DUAS MARGENS DO RIO

Ao subir o Tapajós, na margem direita do rio, encontramos a Reserva Extrativista Tapajós – Arapiuns (Resex). Fundada em 1998 pelo Governo Federal, na Resex vivem mais de dezoito mil pessoas, que se concentram ao longo das margens dos dois principais rios, distribuídas em 64 pequenas comunidades.

Na margem esquerda está a Floresta Nacional do Tapajós (Flona). Mais antiga que a Resex, a Flona foi fundada em 1974, também por um decreto do Governo Federal que visava criar uma unidade de conservação. Está localizada entre o Rio Tapajós e a Rodovia Cuiabá-Santarém (BR-163), com uma extensão de aproximadamente 545 mil hectares. Por ter acesso pela BR-163, a região é bem mais povoada que a Resex e por menos comunidades, porém muito maiores: são 28 comunidades que totalizam 1.100 famílias. O acesso às cidades mais próximas é muito mais rápido e barato. Na Flona, o acesso às cidades mais próximas é mais rápido e barato. Por esse motivo, se comparada com a Resex, já foi mais desmatada, seja pelas construções da estrada e do linhão de energia que atravessa a floresta, seja pelas fazendas de soja, tão presentes desse lado do rio.

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O Abaré é o projeto mais diverso da ONG e o que atende o maior número de pessoas. Com uma estrutura ímpar no Brasil, é um barco que leva às comunidades ribeirinhas saúde, em seus mais diversos aspectos. O navio hospital, apesar de ter sido ide-alizado por Eugenio há mais de 20 anos, foi doado pela ONG holandesa Terre des Hommes, que, em parceria com o PSA, montou uma infra-estrutura modelo de atendimento fluvial. A Terre des Hommes doou 3 barcos com a mesma infra-estrutura: o Abaré veio para o Saúde e Alegria e dois outros barcos aten-dem diferentes regiões fluviais da África. O modelo brasileiro foi construído em Manaus (AM) e custou R$2,6 milhões. Inau-gurado em 2006, o nome foi escolhido em um concurso nas próprias comunidades: Abaré, em tupi, o amigo que cuida.

O barco é composto por um andar submerso, onde ficam as máquinas e algumas acomodações. O andar do meio é onde está o hospital, com sala de espera, dois consultórios, sala de coleta, de triagem, de curativos e de repouso; laboratório e consultório odontológico. O segundo andar é o alojamento, com cabines, sala e cozinha. Por fim, o terceiro andar é onde você pode amarrar sua rede para descansar no fim da tarde, ou, para os mais adeptos, dormir ao som do rio e da floresta.

O Abaré atende ao todo 73 comunidades nos dois lados do rio, e ainda as comunidades localizadas no Rio Cupari. O pro-grama de atendimento seguido pelo Abaré se assemelha, em alguns aspectos, ao Programa Saúde da Família, implantado no Brasil há mais de 15 anos pelo governo federal.

As equipes do Abaré prezam pela inserção dessas pessoas de cantos escondidos do país, na cidadania. O que pude perce-

Abaré

o amigo que cuida

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ber no tempo de convívio com esse trabalho é que fornecer o acesso à saúde é muito mais do que corpo são. É sentir-se per-tencente, acolhido, cuidado.

Por isso, o dia-a-dia dos profissionais que deixam suas famí-lias por até 20 dias merece ser retratado. Por isso, o cotidiano das comunidades merece ser retratado. Retratar as origens, os hábitos, os costumes, as tradições, revela um pouco da reali-dade de uma parte do que se convencionou chamar população brasileira: as comunidades ribeirinhas.

Com exceção das comunidades maiores, nas quais o barco passa o dia todo atracado, o cronograma funciona da seguinte maneira: pela manhã ocorre o atendimento em uma comuni-dade e durante à tarde outra. Quando estamos à montante, os atendimentos são feitos todos do lado direito do rio. Quando começamos a descer o rio, os atendimentos são para as comu-nidades do lado esquerdo.

Uma característica comum no atendimento dos dois la-dos do rio, é a presença de crianças e idosos. A grande maioria dos que frequentam o Abaré é composta por essas duas faixas etárias, e ainda pelas mães. Crianças, idosos e mulheres tam-bém predominam nas visitas às comunidades. Isso porque a faixa etária produtiva, e principalmente os homens, estão ger-almente no que eles chamam de roçado: pequeno pedaço de terra onde eles fazem as suas plantações, principalmente de mandioca. Por isso um relato do dia-a-dia do Abaré fica repleto de histórias de crianças, mães e idosos, uma vez que o contato com outras faixas etárias é muito restrito.

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Nascente BELÉM – SANTARÉM

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O estado do Pará poderia pelo seu tamanho, diversidade, e peculiaridades culturais e naturais, ser considerado um país a parte do Brasil. Seu tamanho impressiona, com mais de um milhão e duzentos mil quilometros quadrados, é o segundo maior estado do país, perdendo só para o Amazonas. Alguns municípios, como Altamira, apresentam uma extensão territo-rial quase do tamanho do estado do Rio Grande do Sul e San-tarém é maior do que o estado de Sergipe. Os números dão uma ideia da sua dimensão, mas o que mais impressiona por aqui não são as estatísticas.

Peguei o avião bem cedo e me preparei para uma viagem relativamente longa, tendo em vista que são quase três horas e meia viajando direto dentro do mesmo país. Quando o avião estava se aproximando do destino, reparei como a geografia havia mudado. Diferente do sudeste e centro-oeste, as aglom-erações humanas estavam cada vez mais escassas e tudo o que eu via era um grande campo verde. O avião começou a descer mais e mais rápido, entrou em uma nuvem branca que incomo-dava os olhos com sua alvura. E então: turbulência!

O avião começou a balançar muito, a ponto de se ouvir alguns gritinhos vindos de passageiros aterrorizados. Quanto mais balançava, mais ansiosa eu ficava para ver o que me es-perava depois da nuvem. E o balanço também serviu para me chacoalhar para o novo. O novo desconhecido, que amedronta. Uma rápida descida, quase como o rápido suspiro que eu dei por causa do frio na barriga, e então avistei a pequena, porém imponente Belém.

Vi grandes curvas de água negra e marrom, cercadas da mata mais verde que meus olhos já viram. E esses mesmos ol-hos se emocionaram, encheram-se de água, da mesma água

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que preenche aquela imensidão de natureza tão soberana que causa emoção.

Belém é uma cidade muito diferente. Vista de cima, sua diferença chama a atenção. Não pelo tamanho. O que atrai o olhar na cidade é a interação entre a natureza e as construções. Os rios parecem dançar à sua volta e por fim a abraçam, em um cenário de cor e leveza. Para quem vem de grandes cidades, a diferença chama atenção. Em São Paulo, como em tantas out-ras cidades do mundo, a cidade impera sobre a natureza. Rios como o Tietê, tornam-se mortos e tristes em meio à tanta inter-venção humana.

Lá é diferente. Os rios Amazonas, Maguari e Guamá es-tão aderidos à cidade. E a arquitetura gira em torno deles. São construções que conversam com os rios, e que para eles estão voltadas. A grandiosidade destes imensos fluxos de água é res-peitada e não omitida.

Ao sair do aeroporto, o calor. Tão característico dessa região, impregna no corpo e na mente. Do ar para a terra. Fui direto para as docas, o porto na Bacia do Guajará. A cidade, aos meus olhos paulistas, pulsava, e essa sensação durou pratica-mente todo o trabalho de campo. O Pará é um estado pulsante, tanto pela sua natureza, quanto pela suas pessoas e culturas. (informação das docas???)

Na terra, a imensidão física do rio continuou a me chocar. E a imensidão simbólica é ainda mais impressionante: o rio já está tão inserido no imaginário dos que moram ali, que é fon-te de alimento e água, diversão, meio de transporte, local de vida... Por isso talvez a cidade esteja “inserida” no rio, pois o rio está dentro das pessoas.

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Da terra para a água. Embarquei em um Catamarã intit-ulado Roraima, um típico “gaiolão”, como alguns o chamam. Embarcação de carga e de passageiros, o Roraima é o maior dos barcos que fazem o trajeto Belém- Santarém via Rio Ama-zonas. Composto por um andar de máquinas; um de cargas e cozinha; outro de redes, cabines e banheiros; no terceiro deque viajam passageiros também acomodados em redes, mas em um salão com ar condicionado, além da cabine do capitão e da lanchonete. O último andar é uma espécie de terraço para o lazer, que divide o espaço com os botes.

Um dos primeiros choques, além do visual, foi a relação das pessoas com o tempo. O barco deveria sair por volta das 18:00 horas. Desde as três horas da tarde já havia pessoas che-gando de todos os lugares e de todas as maneiras. Chegavam às vezes somente com mochila, às vezes com muitas malas e mantimentos para aguentar o tempo de viagem, às vezes com verdadeiras mudanças. Porém o elemento comum a todos era a rede. Cada um com a sua, de diferentes cores e modelos, com renda ou sem renda, porém todos com redes, espalhadas pelos cantos do barco, tornando-o mais bonito de forma singela.

Às 18 horas o barco não saiu. Os caminhões de carga não paravam de chegar, os trabalhadores suavam para carregar o barco com cada “baú” (carregamento) que chegava. Alguns eram de frango, outros de tomate, outros ainda de batata. E assim foi até quase meia-noite.

A reação foi, para alguém de fora, inesperada. Por aqui, as pessoas provavelmente se rebelariam, brigariam, pediriam seu dinheiro de volta, iriam embora. Por lá, as pessoas recla-

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mavam sim, mas de forma contida, e colocavam-se a esperar. Não vi ninguém se revoltar. Fiquei observando e as pessoas que não estavam entretidas com seus próprios afazeres, estavam observando os carregamentos, um atrás do outro. Lentamente e passivamente, o barco todo ia carregando-se de carga e de espera. Espera para que a viagem começasse logo, para chegar logo em casa, ver entes queridos, conhecer uma nova cidade, visitar amigos. E a minha espera era de ver e descobrir este mundo novo que se descortinava sinuosamente para mim, quase como o caminho do rio.

O barco saiu já tarde da noite, e eu, como quase todo mundo no barco, já estava quase dormindo na minha rede. O ronco do motor se intensificou, e o ronco dos que estavam à minha volta também. Ao amanhecer, a luz entrou vagarosa-mente pelo convés e eu logo despertei. Seis horas da manhã e o impacto: quase todos os passageiros já estavam acordados, e o barco navegava rapidamente. Lá fora a floresta, fechada, intocada, hermética.

No imaginário popular, ao se falar de florestas, a ima-gem que vem é uma imensidão verde, repleta dos animais mais diversos. Ao viajar pelo Amazonas, a única coisa visível é um mundo verde, mas completamente fechado. Com exceção de algumas aves, nenhum animal se atreve a atravessar a linha entre a floresta e o rio, enquanto o monstruoso barco cortava as águas. Como a viagem era muito longa – cerca de três dias – muitas vezes fiquei sentada no último andar observando a floresta e esperando algum animal, algum movimento. Sempre fracassei. A única coisa era aquela linha verde, fronteira entre dois mundos.

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Os ribeirinhos

As comunidades ribeirinhas do rio Amazonas tiram o seu sustento da floresta. Além de pes-car e caçar, também fazem pequenos roçados, que ficam prejudicados na época das cheias. A densidade demográfica é extremamente baixa, com uma média de 2 habitantes por quilometro quadrado. Só para comparar, a densidade de-mográfica da grande São Paulo é de mais de duzentas pessoas por quilometro quadrado.

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Em alguns pontos a misteriosa linha é rompida. Existem algumas pequenas comunidades ribeirinhas que vivem ao longo do Rio Amazonas, que na época de cheia do Rio ficam sobre a água durante meses, vivendo em ilhas cercadas pelos dois mundos imensos e misteriosos: o rio e a floresta. O estreito de Breves é um local no qual o rio afunila bruscamente, assemelhando-se a uma canal, e é neste ponto que as comunidades se concentram. Ao avistarmos algumas destas vilas, um hábito peculiar me intrigou.

Quanto mais o barco andava, mais longe eu conseguia ver e mais água aparecia na frente e nos lados do barco. Quando vemos o Rio Amazonas, é possível entender a afirmação de Mário de Andrade sobre o rio:”uma dessas grandezas tão grandiosas que ultrapassam as percepções fisiológicas do homem”. Ao entrarmos no Estreito de Breves, pela primeira vez pude ver as duas margens do rio ao olhar para frente. Avistei na água vários pontos pretos que sacolejavam com a maré criada pela passagem do imenso navio. Imediatamente, um passageiro dentro do barco jogou um saco plástico na água, que saiu boiando ao suave balanço das ondas provocadas pela passagem do barco. Então um espetáculo aconteceu.

Os pontos pretos aproximavam-se rapidamente e, mais rápidos ainda, foram ficando nítidos. Reconheci canoas apinhadas de crianças sorridentes, que remavam mais forte e habilmente do que muitos adultos. Sorriam e olhavam fixamente para o saco. De repente, outro passageiro, outro saco na água. Algumas canoas mudaram de direção, outras continuaram, em outras, as crianças ainda gritavam para o barco e pediam mais. E então uma das canoas “venceu” a corrida. O que

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teria dentro daquele saco? No primeiro havia mantimentos, no segundo roupas. Os sacos plásticos jogados – foram muitos – são ajudas dos passageiros para esses ribeirinhos, que vivem isolados e carentes nas necessidades básicas.

Conversando com algumas pessoas dentro do barco, per-cebi que este costume faz parte de uma tradição. Alguns pas-sageiros, ao fazerem esta viagem, levam objetos e mantimen-tos para os ribeirinhos. Há uma lenda que diz que ao entrarem no estreito, os navegadores devem atirar às águas uma ofer-enda para as divindades do fundo do rio, a fim de que essas per-mitam uma viagem segura. Isto acabou tornando-se um hábito comum, mesmo entre quem não conhece a tradição, mas já viajou algumas vezes neste trajeto... Os ribeirinhos, ao ouvirem o barulho do barco se encarapitam em suas canoas e vão para o meio do rio competir por uma ajuda. A diversidade da floresta diz tanto quanto à fauna e à flora como às pessoas.

Infelizmente a aventura, às vezes divertida dessas crianças que se lançam nas águas do rio, revela as dificuldades com as quais as quais as comunidades ribeirinhas convivem, muitas ve-zes em situação de extrema pobreza. Isolamento, falta de es-trutura básica de moradia e infraestrutura.

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lenda dos rios xingu e amazonas

A origem dos rios Xingu e Amazonas também faz parte do imaginário indígena. Dizem que antigamente era tudo seco. Na floresta amazônica não tinha água nem rio. A ave juriti era a dona da água e a guardava em três tambores. Certo dia, os três filhos de Cinaã estavam com sede e foram pedir água para o passarinho. Ele não deu e disse:

- Seu pai é pajé muito grande, por que não dá água para vocês? Eles voltaram para casa cho-rando muito. Cinaã perguntou porque estavam chorando e eles contaram. Cinaã disse para eles não irem mais lá que era perigoso, tinha peixe grande dentro dos tambores. Mas eles foram as-sim mesmo e quebraram os tambores. Quando a água saiu, juriti virou bicho. Os irmãos pularam longe, mas o peixe grande que estava lá dentro engoliu Rubiatá (um dos irmãos) , que ficou com as pernas para fora da boca do peixe. Os outros dois irmãos começaram a correr e foram fazendo rios e cachoeiras com a corrida. O peixe grande foi atrás levando água e fazendo o rio xingu. Con-tinuaram a correr até chegar no amazonas. Lá os irmãos pegaram Rubiatá, que estava morto. Cortaram suas pernas, pegaram o sangue e sopraram. Rubiatá virou gente novamente. Depois eles sopraram a água lá no amazonas e o rio ficou muito largo. Voltaram para casa e disseram que haviam quebrado os tambores e que teriam água por toda a vida para beber.

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Mães do RioDurante a viagem, tive a oportunidade de conversar com muitas pes-

soas diferentes. Cada uma com sua história, chamou-me a atenção de al-guma maneira. Mas um grupo em especial destacou-se: mães que estavam com seus filhos em um programa das prefeituras das cidades ribeirinhas que elas chamam de T.F.D. (Tratamento Fora de Domicílio). São mães que levam seus filhos, com problemas de saúde, para receberem tratamentos em Belém, já que a estrutura destas cidades não suportam atender casos graves que exigem mais recursos. A prefeitura em alguns casos, e o estado em outros, arcam com os custos, como transporte, alimentação e ofer-ecem uma casa de apoio em Belém durante o tratamento.

Como passam muito tempo juntas, estas mães criaram vínculos e estavam voltando juntas para casa em Santarém. Uma delas estava em Belém desde abril, com uma filha que tem insuficiência renal crônica. A outra, de apenas 18 anos, levava seu filho pela segunda vez à Belém. A primeira viagem foi para tratar um tumor no olho do filho de apenas dois anos. O resultado do tratamento foi uma cirurgia para a retirada do olho. Ao voltar para Santarém, a mãe percebeu que algum objeto havia sido esquecido dentro do olho da criança durante a cirurgia e teve que retornar. Descobriu que um tampão havia permanecido no olho da criança após a cirurgia. São casos que ilustram que o serviço de saúde no estado ainda é muito deficitário e tem muito à progredir. Mesmo na capital, Belém,

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uma falha desta dimensão ainda ocorre. Nas comunidades ribeirinhas então, que sequer possuem postos de saúde e não há a presença do Estado, a situação é ainda mais precária. Em algumas, devido ao isol-amento, é preciso viajar nove horas de barco para chegar ao hospital mais próximo.

Algumas informações sobre as comunidades ribeirinhas do Tapa-jós-Arapiuns são importantes para entender o contexto da realidade que vai ser retratada a seguir. Ao todo, existem 64 comunidades, que juntas somam mais de 18 mil pessoas. Todas as comunidades possuem escolas, elemento fundamental para a fundação de uma comunidade, mas a grande maioria não oferece ensino completo, forçando os alu-nos que queiram continuar a estudar à frequentar escolas em outras comunidades. Por isso o analfabetismo funcional ainda é muito grande e atinge quase 36% dos chefes de família.

Quanto ao que diz respeito à saúde, 90% das pessoas que vivem na Resex ainda utilizam medicina tradicional, sendo que só existem dois postos de saúde nestas comunidades: um em Boim, outro em São Pe-dro (Arapiuns).

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Rio acima MARIPÁ-SURUACÁ

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Finalmente o Abaré saiu – com 12 horas de atraso, é certo – mas enfim começamos a subir o Tapajós. Alguns elementos para começar a viagem ainda não estavam prontos, e o prin-cipal motivo do atraso foi a falta de combustível no barco, que precisa sair de Santarém completamente abastecido e ainda com galões de combustível reserva, para aguentar os vinte dias de viagem. Por causa do atraso, a comunidade de Maripá aca-bou ficando sem o atendimento previsto para acontecer pela manhã do primeiro dia.

A caminho de Maripá, na outra margem do rio, onde, apesar de não haver atendimento, o Abaré acompanharia uma sessão do Circo Mocoongo, deu para se ter uma dimensão maior desse também imenso e belo rio de águas verdes: em alguns pontos o Rio Tapajós chega a ter dez quilômetros de extensão. O vento estava forte e a água muito revolta, as águas, como os nativos chamam, se agitavam em um “banzeiro”. Por isso, foi um sur-preendente ritual de iniciação – muito balanço, objetos caindo no chão, enjoos, sustos. Só esperava turbulência no avião e em um barco navegando no mar, o rio parecia mais receptivo.

A tripulação, já acostumada com a situação, só avisava: “alguém segura a TV! E o resto se segura”. Vi algumas pessoas

“Embarca morena embarca, molha o pé mas não molha a meia...”

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segurando os objetos que poderiam cair, outras correndo para salvar seus pertences, resolvi fazer o mesmo: corri para a cab-ine – segurando nas paredes. Cheguei e as gavetas estavam abrindo e fechando, e minha mochila parecia dançar em cima da cama. Acomodei as minhas coisas no chão. Agora, em últi-ma hipótese, elas só se danificariam se o barco afundasse.

Balançou, balançou, mas não caiu: enfim chegamos em Maripá. O saldo do trajeto não foi muito bom. A ambulancha, que estava amarrada na proa do barco, com as ondulações bruscas da água, acabou se chocando com o barco e ficou um pouco danificada. Como para mim tudo era novidade, o ocor-rido só aumentou a adrenalina.

Maripá era pequena e formosa. Com poucas casas e toda de areia branca, é composta por um pequeno número de famílias, com algumas casas de alvenaria, outras de madeira. A maioria das famílias subsiste com a farinha de mandioca e o peixe, ali-mentação básica e fundamental nas comunidades ribeirinhas. Foi ali que vi o primeiro trinômio presente em todas as comuni-dades que visitei: igreja, campo de futebol e bebida. Essas três características permeiam todas as comunidades, tanto do lado direito quanto do lado esquerdo do rio.

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O Circo “Vai, vai, vai começar a brincadeira Tem charanga tocando a noite inteira

Vem, vem, vem ver um circo de verdade Tem, tem, tem picadeiro e qualidade

Corre, corre, minha gente, que é preciso ser esperto Quem quiser ficar na frente, vê melhor quem vê de perto”

Sidney Miller

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33“Ah, divertir os outros é um dos modos mais emocionantes de existir” Clarice Lispector

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Os Doutores da Alegria tam-bém são uma ONG. Criada em 1991 por Wellington Nogueira, o objetivo deles é levar alegria e descontração para hospitais de São Paulo, Recife e Belo Horizonte. Com mais de 800 mil crianças atendidas, os Dou-tores da Alegria também for-necem formação para jovens palhaços.

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O Grupo Doutores da Alegria estava em Santarém para ministrar um workshop para os arte-educadores da ONG. Aproveitaram também para visitar algumas comunidades e participar de duas sessões em Maripá do Circo Mocorongo (nome dado às pessoas que nascem em Santarém). Adaptan-do-se ao trabalho da ONG nas comunidades, os doutores da alegria e os palhaços do circo montaram esquetes que envol-viam problemas recorrentes da região: higiene das crianças; como escovar os dentes; alimentação; alcoolismo, organização comunitária e agricultura sustentável.

A dinâmica da apresentação é bem interessante. O circo utiliza geralmente alguma estrutura física simples já existente na comunidade, como galpões ou tendas. Os palhaços en-volvem os moradores, que também participam como autores e atores. A hora da apresentação é uma verdadeira festa: apre-sentações lotadas com todas as gerações, do mais velho ao mais novo. Risos, euforia e muitos, muitos gritos.

Durante a viagem do Abaré, também há oficinas de arte-educação nas comunidades, que podem ou não contar com a participação de toda a equipe circense. Assim como o circo, os temas tratados pretendem divertir mas também educar, com temas relacionados ao dia-a-dia das comunidades.

De um jeito diferente, divertindo e educando, os arte-edu-cadores tentam ensinar principalmente prevenção de doenças, uma ideia ainda não tão disseminada. Ao deixar o tema leve e simples, atingem mais pessoas nas comunidades, além de traz-er a alegria por onde passam. Afinal, como diz o lema da ONG: “Saúde, alegria do corpo; alegria, saúde da alma”.

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“O homem está no menino, só que o menino não sabe.O menino está no homem, só que o homem esqueceu.”

Ziraldo (1997)

As crianças atendidas pelo Abaré merecem um capítulo à parte. Como o atendimento à estas comunidades acontece de diversas maneiras, o contato com as crianças também se dá por diversas portas. Quando o contato se dá através do Circo Mocorongo, as crianças são só alegria. São risos intermináveis, gritos de euforia, todos querem participar.

Elas são agitadas, sapecas, às vezes estridentes. De tão ativas, algumas poderiam receber o diagnóstico de hiperativas. Jogam futebol, nadam no rio diversas vezes, pulam das árvores no rio mais vezes ainda. São crianças que não tem medo de serem crianças.

Quando o contato é feito através dos médicos, a coisa muda um pouco de figura. O medo muitas vezes surge. A cara é de curiosidade e receio. O que o médico quer de mim? Às vezes o choro vem à tona antes mesmo do exame médico, tamanho o medo da situação adversa. Estas crianças não estão acos-tumadas a ficarem enclausuradas em salas ou consultórios, tem medo só de sentir o cheiro de remédio: o cheiro natural é o da floresta. Quando se sentem presas e diante do mistério do médico, o medo vem à tona.

Algumas conseguem perder o medo, e se divertem mesmo dentro do consultório. Outras só vão perder o medo quando atravessarem a ponte entre o barco e a terra, aí sentem-se aliviadas.

Mas independentemente de qual é a via da aproximação, é uma experiência incrível estar perto dessas crianças. Elas são

A alegria da saúde

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de uma vivacidade peculiar e intrigante. A sabedoria da na-tureza vem desde criança: sabem onde podem brincar, onde é perigoso, como funciona as leis do rio e da floresta. Remar é coisa que se aprende na barriga.

Elas são elemento fundamental para a riqueza desse pro-jeto. Sem elas, o Saúde e Alegria seria só saúde, cizuda, como já a conhecemos. Elas são as cores mais bonitas da floresta, a alegria mais fugaz da saúde.

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O Diário

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Após a apresentação do circo, o Abaré foi atracar na próxima comunidade atendida. Como quis acompanhar algumas ofici-nas de comunicação, desembarquei com minha rede, algumas roupas e a ansiedade de conhecer melhor aquele mundo que se descortinava diante de mim e ver de perto essa parte do trabalho.

A integração entre o projeto e as comunidades é visível. Os moradores recebem o jornalista Bob Barbosa e uma parte do grupo de comunicação do PSA – os jovens Gabriel e Maickson, nascidos na região - com a maior hospitalidade, mesmo diante de suas limitações. Ficamos na casa do Agente Comunitário de Maripá, Seu Tadeu. Família ainda jovem, o casal com quase 40 anos e três filhos, com o mais velho de 15 anos. O asseio de Preta, mulher de Tadeu, é visível. No primeiro jantar em que estávamos ali, ela fez questão de servir diversos pratos, carne, peixe, macarrão e arroz, tudo regado a um ótimo papo, histórias sobre a comunidade, melhorias na qualidade de vida, histórias de pescador...

O próprio Tadeu é uma lenda. Já foi ferroado por arraias (acidente muito comum na região, já que as arraias costumam ficar camufladas na areia das beiras do rio) simplesmente 23 vezes, e mostra pelo corpo as marcas. A última ainda muito vi-

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sível, também por ter sido a mais grave. Em uma pescaria, pisou na arraia e ela ferroou seu tornozelo e atingiu uma artéria que passa nessa região, o que acarretou grande perda de sangue e alguns dias de internação. A ferroada da arraia, descrita muitas vezes por diferentes pessoas durante a viagem, provoca uma dor alucinante, que pode durar dias.

A casa de Preta e Tadeu, como a maioria das casas por lá, distribuía-se da seguinte maneira: na parte de alvenaria é onde ficam os quartos e, às vezes, o banheiro. Na parte construída de madeira e palha, localiza-se a cozinha e a lavanderia. A água en-canada, que chega até a cozinha é “luxo” muito recente. As co-munidades mais estruturadas tem um microssistema de água e indicações de como construir as fossas sanitárias, para gerar o menor impacto ambiental possível. A luz também é novidade, e ainda é escassa. As famílias receberam pequenas placas de luz para utilizarem energia solar, mas a potência é ainda muito baixa, servindo apenas para o uso de lâmpadas durante algu-mas horas. Ambos os projetos foram desenvolvidos como par-ceria do PSA com as prefeituras.

Ao fim do jantar, todos nós deitamos em nossas redes – com exceção do casal que dorme em uma cama de estrado. Fui alocada em uma pequena sala no fundo da casa, sozinha. Foi uma preocupação de Tadeu que eu não ficasse junto com o resto da equipe, que dormiria na cozinha, talvez por eu ser mulher, ou talvez porque eu parecia muito assustada com tudo aquilo? Só que ainda não eram nem dez horas da noite. Como dormir tão cedo com tantas histórias excitantes? Apesar de es-tar acordando muito cedo, como todos com os quais eu estava convivendo, meu sono resolveu não comparecer de acordo com os hábitos da região. Fiquei ali, deitada na rede, na completa

Jornais produzidos pelas comunidades do rio Tapajós como parte do projeto de comunicação do PSA

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escuridão e silêncio. As imagens desse primeiro dia no rio Tapa-jós me vinham à cabeça, as comparações com o Rio Amazonas, os traços marcantes das pessoas e da natureza, as piadas do circo, a luminosidade do sol...

Adormeci... e logo no começo do meu sono, acordo assus-tada com um barulho ensurdecedor que vem de fora. A floresta resolveu se mostrar viva e pulsante. Na minha ignorância, fiquei assustada. No meio de um lugar perdido na floresta, dormindo sozinha em uma rede em um cômodo completamente escuro, a imensidão da floresta me amedrontou. Abri os olhos e não via nada, só enxergava os sons. O que eu ouvia era uma verdadeira sinfonia de cantos, urros, pios, e todos os tipos de sons que um animal pode fazer. Porque aquilo estava acontecendo? Alguma coisa estava fora da ordem natural da floresta? Tive vontade de gritar para os que dormiam tranquilamente enquanto os ani-mais faziam a festa. Porque dormiam? Não estavam ouvindo?

Não tive coragem. O barulho de fora me deixou muda. O primeiro momento de pavor passou, e eu fiquei entorpecida ouvindo aquela verdadeira sinfonia de sons. Depois de muito tempo adormeci. Acordei bem cedo e fui para a cozinha, onde quase todos já estavam. E então perguntei, vivamente, o que havia sido aquilo. E a resposta foi a mais simples possível: - Ah! o barulho? é só a algazarra... Ser estrangeira nunca é fácil.

A algazarra, depois de explicada, é o barulho que as guaribas (ou bugios) fazem no momento do acasalamento, uma verdadeira cantoria que acorda toda a floresta e alguns animais passam a gritar também, tamanho o barulho. Quantas vezes eu ia ser batizada nessa viagem? Estava sendo iniciada de todas as maneiras.

Depois da noite no interior da floresta, acompanhei duran-te todo o dia a conexão da floresta com o mundo, através de

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duas oficinas: uma de blog, dada por um aluno que havia apren-dido com o próprio Saúde e Alegria, e uma oficina de vídeo, co-ordenada pelo jornalista da ONG, Bob Barbosa. As crianças e adolescentes vibram. Tudo é novo e divertido, ficam eufóricos ao se sentirem incluídos nesse imenso mundo virtual, que de certa forma abarca todas as diversidades.

Aprendem a linguagem do blog e do vídeo para poderem se retratarem. O projeto já deu muitos frutos: um repórter de uma das comunidades virou encarregado especial de uma mí-dia de Santarém para as pautas que envolvem as comunidades; Maickson, que hoje trabalha na equipe de comunicação dando oficinas de blog aprendeu com o PSA, e atualmente participa de reuniões com jovens do Brasil e do mundo.

Além dessas oficinas, a ONG estimula dois outros meios de comunicação: as rádios e os jornais. Organizados de formas simples, ambos os meios de comunicação visam desen-volver uma certa coesão nas comunidades – que muitas vezes são divididas por diferentes religiões – e criar uma identidade, que provavelmente desde a colonização se perdeu e até hoje continua muito deteriorada. Todos os meios de comunicação fazem parte de uma rede criada pelo projeto: a Rede Mocoron-ga de Comunicação Popular. A rede agrupa o que há de mais importante do conteúdo produzido pelos 32 jornais comunitá-rios e lança um jornal mensal, intitulado O Mocorongo.

No fim da tarde desse dia, após as oficinas, tomamos um lanche com a família de Tadeu e nos despedimos, agrade-cendo a hospitalidade e o bom papo com que nos recebeu. Pe-gamos uma lancha rápida que nos levaria a Suruacá, comunida-de onde eu encontraria o Abaré no dia seguinte. No caminho, um lindo pôr-do-sol no Tapajós, com as mais diversas cores no

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céu, brincando com o verde da floresta que começava a su-mir. “E principiou um dos crepúsculos mais imensos do mundo, é impossível descrever. Fez crepúsculo em toda abóbada celeste, norte, sul, leste, oeste. Não se sabia pra que lado o sol deitava, um céu todinho em rosa e ouro, depois lilá e azul, depois negro e encarnado se definindo com furor. As águas negras por baixo. Dava vontade de gritar, de morrer de amor, de esquecer tudo. Quando a intensidade do prazer foi tanta que não me permitiu mais gozar, fiquei com olhos cheios de lágrimas”.

Suruacá é muito diferente de Maripá. Mais estruturada, ela é uma das maiores comunidades da região, com mais de 110 famílias e uma forte organização comunitária. Possui um microssistema de água, um dos quatro telecentros da região (local com computadores e internet que funcionam à base da energia gerada por painéis solares) construído em mutirão com apoio do Saúde e Alegria, e ainda: uma antena de telefonia ce-lular, instalada recentemente.

Quando chegamos já havia anoitecido e não havia luz, o que tornou a caminhada para chegarmos à casa do Sr. Dijalma, agente comunitário e palhaço da ONG, ainda mais difícil, já que não há ruas delimitadas e o chão também é de areia. Aqui eu presenciei um hábito peculiar dessa comunidade. Ao chegar-mos, o filho do seu Dijalma nos alertou de que a janta já havia sido servida na cozinha central e que devíamos nos apressar.

No centro da comunidade há uma igreja - como sempre -, um galpão de um time de futebol e uma simples cozinha comu-nitária, onde alguns dias é servida uma refeição para todos da comunidade que comparecerem. Os custos são divididos entre as entidades da comunidade (organização de moradores, igre-jas, às vezes até o time de futebol e até o próprio PSA). Esse há-

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LENDA DA MANDIOCA

Reza a lenda que a filha de um cacique apareceu grávida, sem que se soubesse como, para a tristeza do pai, que a queria casada com um bravo e ilustre guerreiro. Muito triste e decepcionado com a filha, o cacique vivia infeliz, até o dia que um homem branco lhe apareceu em sonho e lhe disse que sua filha não o havia enganado; ela continuava pura e imaculada. Isso fez voltar a alegria ao coração do índio, que se desculpou com a filha pelos maus tratos que a submetera antes. Passado alguns meses nasceu uma linda menina, de pele muito branca, que recebeu o nome de MANI, e se tornou querida por todos da tribo, sendo a alegria de sua mãe e do velho cacique, seu avô. Porém a alegria foi de pouca duração: a criança amanheceu morta em sua rede. Em desespero a índia resolve enterrá-la à entrada da maloca, para poder ficar mais perto da filha. E todos os dias ela ia chorar sobre o túmulo da pequenina. Suas lágrimas fizeram brotar uma planta nova e estranha a todos os índios. A mãe lacrimosa alegrou-se e começou a cuidar da plantinha, vendo ali a presença de sua amada filha, até que algum tempo depois percebeu algo saindo da terra em volta da planta. Pensando tratar-se da filha que retornava à vida, a índia cava a terra com as mãos, porém encontra umas raízes grossas que retira da terra imaginando ser o corpo da pranteada filha. Todos se aproximaram curiosos, querendo saber que milagre era aquele. Ao retirarem a casca grossa viram que as raízes eram brancas como o corpo de Mani e deram-lhe o nome de manioca, a casa ou corpo de Mani. “Acreditando ser um milagre de Tupã, os índios comeram essas raízes e fizeram com as mesmas um vinho delicioso.”

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bito mostra um pouco da solidariedade tão comum nas comu-nidades, que pude observar muitas vezes depois, em mutirões para limpeza de escolas e montagem de quermesses, vizinhos que se ajudam em diversas situações, mães que levam os filhos de outras mães para serem atendidos no Abaré, já que a outra mãe não podia comparecer.

Outra característica nova em Suruacá foi a presença de uma grande líder comunitária, Dona Martinha. Anciã (quase noventa anos), cheia de história para contar, cheia de vida para mostrar, ela representa a comunidade de Suruacá muito bem, com o espírito acolhedor, mas que não deixa de lutar pelos seus direitos. Quando é preciso Dona Martinha canta, discute, pede. Por isso talvez a comunidade seja uma das mais avançadas do Rio Tapajós.

Desta vez dormi na minha rede no mesmo lugar da equipe, todos na cozinha. Um pouco antes de adormecer, olhei pelo vão entre a cozinha e a casa, e me deparei com o céu mais estrela-do que eu já havia presenciado. A Amazônia realmente guarda belezas inacreditáveis, incomparáveis e incontestáveis. Pendu-ramos nossas redes e meu sono resolveu aparecer até rápido demais, dormi profundamente.

No dia seguinte a radio comunitária de Suruacá, a Japiim – pássaro da região que possui canto característico e que tem uma de suas famílias vivendo na árvore ao lado da sede da rá-dio, por isso o nome – começou a tocar logo às 5h30 da manhã. A vida já ia longe neste horário.

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Tratar Saúde Não Doença O ATENDIMENTO

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“A arte da Medicina está em observar.Curar algumas vezes, aliviar muitas vezes, consolar sempre.”

Hipócrates Nesse dia, voltei para o Abaré e foi curioso perceber como

aquela vivência já tinha um outro sentido, conseguia entender muito mais os hábitos, as falas, a realidade do lugar. Acompa-nhei pela primeira vez o tão esperado atendimento. O sistema é organizado e funciona nos moldes do SUS e do Programa Saú-de da Família na região, que foi sistematizado para tentar apro-ximar pessoas e comunidades do atendimento. O processo se inicia com a participação dos Agentes Comunitários – uma pes-soa de cada comunidade que torna-se encarregada da saúde: agenda as consultas dos que precisam, até atingir o limite de 25 pessoas; mede a pressão dos hipertensos e observa quando há a necessidade de uma visita domiciliar (quando o paciente não pode se locomover até o barco, um médico ou uma equipe faz o atendimento no domicílio); entre outras atividades.

O dia no Abaré começa bem cedo. Às 7h30, quando o o barco hospital inicia suas atividades, tudo tem de estar pronto. Por isso às 5h30 todos já estão acordados, dessa vez sem rádio, e muitos já estão até com o banho tomado – devido ao calor, há o costume de se tomar vários banhos por dia. O café é servido das 6h às 7h, horário perfeito, pelo espetáculo de tomar café assistindo ao nascer do sol.

Os pacientes que marcaram consulta já sabem que o barco vai chegar, por isso já estão, na maioria das vezes, esperando. Passam pela triagem (medem altura, peso e pressão) e aguar-dam serem chamados. Dependendo do procedimento a ser real-izado, são encaminhados para as enfermeiras – que realizam pré-natais, vacinas e curativos; para os médicos – consultas em geral; ou ainda para o dentista – que realiza procedimentos odontológi-cos, infelizmente na sua grande maioria composto de extrações.

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A rotina dos atendimentos é pesada. Durante a viagem, o número de atendimentos normais por turno (manhã ou tarde) era de 25 pacientes, divididos entre duas médicas. Porém em lo-cais nos quais a situação era mais crítica, o número de pacientes chegou perto dos 80 por dia. Durante as consultas, o paciente que necessitar de exames simples, pode fazê-los ali mesmo no barco. O resultado sai algum tempo depois, e o médico pre-screve o remédio, que é retirado também no barco.

Para os pacientes que necessitam de um atendimento mais específico, é realizado um encaminhamento para as ci-dades mais próximas. Porém, o sistema mostra suas falhas. Houve queixas da maioria desses pacientes, relatando que o encaminhamento já havia sido feito anteriormente, mas não havia vagas para agendamento de consultas e exames nas ci-dades, revelando um pouco mais da carência dessas regiões em relação à saúde.

A base do trabalho da ONG, porém, é fundamentado em medidas mais simples. O soro caseiro (água, sal e açúcar, mistura que pode salvar vidas, principalmente de crianças) para os casos de diarréia, vermífugos, antibióticos para algumas infecções. Além de medidas como o fornecimento de hipoclorito para tratar a água de beber, filtros e pedras sanitárias – material que imper-meabiliza as fossas sanitárias por apenas cinco reais a unidade – a ONG dá a preferência para a prevenção, evitando muitos surtos de diarréia – apesar de ainda ocorrerem de forma recorrente.

Casos mais graves não são comuns. Porém alguns sem-pre aparecem, como o do menino de cerca de 12 anos que pos-sui uma doença cardíaca crônica e perigosa, podendo levar a morte. O garoto necessitava de atendimento especial, exames

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específicos, e segundo o parecer médico, talvez até de um transplante, mas não conseguia nada disso nos hospitais das cidades próximas. À mãe, só ca-bia chorar pela situação do filho, e o filho, pela sua situação, calava-se ou embrutecia-se. O Abaré não possui estrutura para este tipo de atendimento mais grave, e às médicas só coube o papel de consolar a mãe e escrever car-tas para responsáveis que talvez pudessem se mobilizar e ajudar: no caso, os Secretários de saúde dos municípios próximos.

Outra característica dos atendimentos é a dificuldade na comunicação entre os profissionais e a população. As médicas do barco eram do sul e do sudeste. Lidar com diferentes realidades não era fácil para elas nem para os pacientes: as diferenças entravam no consultório. Muitos foram os casos de dificuldade no entendimento por parte da equipe quanto algumas ex-pressões ou descrições de sintomas, tudo somado ao jeito matuto e à timi-dez. A maioria dos pacientes é muito acanhado dentro do consultório, diante de uma realidade completamente estranha e a parte do seu mundo.

Alguns exemplos que depois se tornaram comuns no linguajar da equi-pe, mas que no começo foi de difícil entendimento: as chamadas pustemas ou nascidas. Quando essas palavras foram faladas dentro do consultório, a cara das médicas era de interrogação, e a dos pacientes de constrangi-mento por não conseguirem se expressar. Depois de algumas conversas, foi descoberto que as pustemas ou nascidas são verrugas ou feridas nascidas na pele ou em qualquer outro lugar do corpo. Muitos outros foram os casos de dificuldade de comunicação dentro do consultório, com nomes de doenças e órgãos no linguajar do lugar: dor no pente (apêndice), o menino tá banzado (com febre)... O Brasil é muito grande e muito diverso para uma só língua!

A rotina dos atendimentos segue este modelo em todas as comuni-dades, permeados por acontecimentos específicos de cada lugar e de cada situação. Daqui para frente contarei os acontecimentos dentro ou fora da rotina de atendimento que mais destacaram-se.

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Em Parauá tem uma senhora de cem anos, Dona Francisca. E que vai muito bem, obrigada. Ao chegarmos para a visita domiciliar, Dona Francisca estava dormindo em sua rede, tranquilamente. Depois de acordada, disparou a falar. Lúcida, contou histórias, reclamou, cantou, gesticulou. Suas histórias são dos tempos mais remotos, quando essas comunidades eram ainda mais isoladas do que são hoje em dia. Chegar emu ma cidade levava dias, já que não havia motor, apenas os remos podiam levar essas pessoas por esse imenso rio.

De voz mansa e jeito matuto, Dona Francisca contava seus “causos” em meio à umas boas pitadas no seu querido fumo, e algumas cuspidas para tirar o excesso. Aliás, o fumo é velho e inseparável companheiro. A filha conta que recentemente o bisneto tentou sumir com o fuma de Dona Francisca. Escondeu para que ela parasse de fumar. Foi o suficiente para ela enlouquecer todos na cas atrás do “pito”. Foi tamanho fuzuê, que tiveram que devolver para ela fumar em paz.

Ela mesma conta que há mais ou menos uns dois anos, resolveu, depois de tanto tempo, parar de fumar. Ficou dois meses sem encostar o cachimbo na boca. Mas um dia acordou com vontade de fumar. E aí não teve jeito: voltou a fumar. Simples assim. Porque a vida aqui tem dessa simplicidade.

Dona Francisca

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Os Partos SAMAÚMA - PINHEL

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O grande número de crianças por aqui não é novidade. As taxas de natalidade são altíssimas, e o parto na maioria das vez-es ainda é realizado por parteiras nas próprias comunidades. Quando o Abaré está por perto, não é incomum que apareçam mães em trabalho de parto. Nessa viagem, as mães resolveram dar à luz aos seus filhos de madrugada, acordando toda a trip-ulação no susto, o que depois virou motivo de piada. Quando alguém acordava mais cedo, já perguntava: tem alguém na-scendo lá embaixo?.

O primeiro caso foi um parto mais complicado, pois a mãe apresentava alguns riscos: tinha mais de 50 anos; era o seu déci-mo terceiro filho; não tinha feito pré-natal, e para completar a situação, quando a mãe entrou em trabalho de parto, colo-caram-na em uma bajara (espécie de barco muito comum na região, com um pequeno motor, que às vezes chega a ser de cortador de grama) e foram procurar o Abaré. Só que as infor-mações que eles tinham do local no qual o Abaré se encontrava estavam erradas. Para completar estava muito escuro, o que dificultou o transporte até o barco.

Resultado: quando pai, mãe e amigo conseguiram chegar ao Abaré, a bebê já tinha nascido, mas ainda estava com o

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cordão umbilical. O atendimento que veio a seguir foi bem com-plicado, e por isso eu não pude acompanhar os procedimentos de dentro da sala. A recém-nascida estava com hipotermia; a mãe perdeu muito sangue e como consequência sua pressão despencou, quase provocando uma parada cardíaca. No fim, tudo transcorreu bem, mãe e filha sobreviveram. Porém a aven-tura não acabou por ai. Por precaução, ambas foram encamin-hadas para Santarém. Com apenas um dia de vida, a pequena Camila ia enfrentar uma longa viagem pelas águas do Tapajós, a bordo de uma lancha do SAMU - já que a Ambulancha estava com problemas após uma ida à Santarém para levar um senhor que estava com suspeita de enfarte.

O segundo parto transcorreu mais tranquilamente, e por isso eu pude acompanhar. A mãe chegou também de madru-gada, acompanhada apenas de uma enfermeira que residia na mesma comunidade que ela. Já com as dores há algum tempo, ela foi deitada na maca, introduziram o soro, pegaram o cartão do pré-natal, que dessa vez havia sido realizado. A mãe tinha 26 anos e esse era o seu sexto filho. Quando questionada, ela disse que a maioria dos filhos haviam nascido na comunidade

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mesmo, pelas mãos das parteiras, com exceção de um filho que havia nascido no hospital em Santarém.

A médica mediu a dilatação e esperou. Após algum tem-po e um pouco mais de força a bolsa estourou já com a mãe na posição do parto, o que assustou a todos que estavam na sala, uma vez que o barulho foi grande e uma grande quantida-de de líquido amniótico saiu em seguida. Estávamos ainda nos recuperando do susto, quando a cabecinha do bebê apareceu, e então foi tudo muito rápido. Quando me dei conta a médica já tinha puxado o bebê para fora e preparava-se para cortar seu cordão umbilical.A cena em si não vou dizer que é bonita. Muito cheiro, líquido e sangue. Mas os olhos são a questão: a criança abrindo os olhos e os olhos da mãe ao vê-la são cenas realmen-te emocionantes, é um momento único para todos que acom-panham. Larissa nasceu muito saudável, chorona e é a caçula de cinco meninos!

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A mãe, Valdete, já havia passado diversas vezes pela situa-ção do parto, na maioria das vezes realizado de forma tradicio-nal: pelas parteiras. No barco ela não falou muito, chegou sem a família, interagiu o necessário. Teve a Larissa de madrugada, algumas horas depois, quando o barco atracou em Pinhel ela já desembarcou, carregada em uma rede.

Para as médicas e as acadêmicas, o choque foi a postura dela diante da dor do parto. Na região sul e sudeste do país, aonde atuam, estão acostumadas a acompanhar partos nos quais as mulheres gritam, berram, e às vezes até urram de dor na hora de dar à luz. Com Valdete foi ao contrário, seu silêncio chegava a in-comodar. Sabíamos que ela estava com contrações pela sua cara de dor, mas gritos mesmo, só na hora que a bebê saiu.

Para Valdete, o choque foi a diferença dos partos. No bar-co, realizou-se um parto normal padrão, e logo após o parto, as enfermeiras pediram que ela evitasse de se locomover muito pois estava de resguardo. Posteriormente, conversando com uma antropóloga que faz seu trabalho de mestrado na comuni-dade descobri que ela chegou do parto reclamando que as en-fermeiras não a deixavam se mexer, e que isso obviamente só pioraria as dores do pós-parto. Ficar deitada era a pior posição neste momento, ela já sabia das experiências anteriores com as

As diferenças

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parteiras. Há muitas coisas que a ciência precisa aprender com as tradições.

Um caso de como essas duas vertentes podem conviver e até se completarem é o caso da Dona Francisca, enfermeira da equipe do Abaré. Já mais velha, Dona Francisca aprendeu com a vida a ser sisuda, mas isto é só aparência. Quando sentamos para conversar com ela, o sentimento é de acolhimento, como se estivéssemos conversando com alguém muito íntimo. A in-fância difícil e pobre em Mujuí – espécie de vilarejo de Santarém - também deixou boas lembranças dessa época, quando suas avós, uma parteira e outra conhecedora de umas “tais ervas me-dicinais”, ajudavam a cuidar de sua mãe, e dos muitos filhos.

Já no seu sangue estavam os costumes ancestrais. Talvez por um parto malfeito – realizado pela sua própria avó – Dona Francisca sentiu durante muito tempo fortes dores de cabeça, que só foram curadas, segundo ela, com um remédio caseiro trazido do Ceará. Todas estes costumes não abandonaram Dona Francisca quando ela foi estudar para tornar-se enfermei-ra. O sincretismo da ciência com os costumes há muito adquiri-dos dos índios mostra que os dois podem conviver, e um tem muito o que aprender com o outro.

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Aqui, vou adiantar um pouco um acontecimento que ocor-reu algum tempo depois, já na Flona, mas que faz um certo sentido ser contado agora, pois diz muito à respeito dessas diferenças latentes entre os dois mundos do cuidar: a medicina ciência e a e sabedoria popular.

Em uma volta das visitas domiciliares, na comunidade de Pini, nos deparamos com uma senhora sentada em uma cadei-ra de balanço de plástico, tomando uma “fresca” embaixo de uma árvore, atrás de sua casa. A curiosidade foi instantânea. Ela tinha um olhar dócil e misterioso. Nos aproximamos, a con-versa começou a fluir, e ela contou que tinha quase 90 anos, morava sozinha numa pequena casa muito bem arrumada.

Tinha tido três filhos, e durante muito tempo morou no roçado sozinha com eles – o marido trabalhava e vivia ausente. Como ela mesma disse, teve que ser forte para sustentar os rebanhos sozinha no meio do mato, em uma época em que a floresta era muito mais fechada e muito mais perigosa: “o que sobrou da floresta foi só mesma eu”.

Só algum tempo de conversa depois, Dona Dica revelou sua verdadeira essência: foi parteira durante cinquenta anos de sua vida. Falou isso como se fosse a profissão mais natural que ela poderia ter, o dom mais simples, o que tinha nascido para fazer. Foi descobrir sua vocação já com 30 anos, quando uma cunhada

Dona Dica,

parteira da Floresta

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estava grávida, e na boa hora, Dona Dica foi a primeira a dizer: esse bebê não vai nascer, ele está mal virado aí dentro. Quando a verdadeira parteira de mais de 80 anos chegou, afirmou o que Dona Dica tinha dito: “foi aí que eu descobri o meu dom.”

Até onde contou, tinha ajudado a trazer ao mundo mais de quatrocentas crianças, das quais é mãe de umbigo – denomi-nação dada para a parteira que ajuda trazer ao mundo essas crianças que nascem com cheiro de natureza, e não de hospi-tal, chegam ao mundo pelas mão de uma parteira, e não pe-los instrumentos frios e de aço de um médico. “Tenho filho de consideração em todas essas comunidades aí. Eu andava isso tudo para trazer ao mundo esses bebês. Ia à pé quando me chamavam. Porque quando chega a hora de o bebê vir pra esse mundo, se ele estiver certo, não tem quem o segure, nem preci-sa de ninguém para trazer ele. Criança quando tem que nascer, nasce. Na verdade, o díficil mesmo é virar o bebê na barriga, isso sim é o que a parteira precisa saber fazer”.

Dona Dica verbalizou o que eu tinha percebido no parto da Larissa. Na hora que ela quis vir ao mundo, não teve quem a segurasse. Ela “pulou” tão rápido para esse mundo, que a médica só fez cortar o cordão umbilical. Dona Dica um achado da floresta.

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“Às vezes Deus me tira a poesia: olho uma pedra e vejo apenas uma pedra.”

Adelia Prado

Após os acontecimentos turbulentos, a rotina do barco voltou a ser a mesma. Após um longo dia de consultas, acom-panhei uma visita domiciliar na casa mais distante que fomos até o momento. De onde o Abaré estava atracado, tivemos que pegar uma voadeira para chegarmos a uma casa muito isolada. Nessa casa vivia um senhor de 62 anos que havia sofrido um derrame e vivia imobilizado e sem conseguir falar. Sua vida resumia-se à rede e ao rio que conseguia enxergar pela porta.

Os filhos acompanharam a consulta atentos: o contato com pessoas diferentes já é escasso, devido ao isolamento. Contato com pessoas estrangeiras como nós, ainda mais difícil, por isso os olhinhos acompanhavam cada movimento, cada fala de cada um da equipe que estava na casa. Ele não conse-guia mais falar, mas entende tudo o que se passa à sua volta. Respondeu as perguntas com gestos e olhares. E que olhar mais dramático: estar preso no próprio corpo deve ser o que aquele olhar dizia. Ao sairmos, todos os olhares nos acompanharam, dramaticamente, até entrarmos na voadeira e nos distan-ciarmos, a perder de vista.

Depois do último atendimento na margem direita do rio, a equipe de apoio mudou. Os funcionários da prefeitura de Santarém foram embora e chegaram os funcionários da cidade de Aveiros.

Escrivão Os Olhares

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RIO CUPARI

A mata virgem e o contato com o mundo

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Depois de atendermos às comunidades da Resex, o barco fez a sua viagem mais longa até então. Durante cinco horas viajamos adentrando o Rio Cupari, até chegar na comunidade de São Domingos. O Rio é estreito e sinuoso e viajar durante à noite é ainda mais intrigante. Aquela mata fechada vai passan-do bem ao lado do barco, os barulhos chegam, mas a vista não vai longe. A água é mais turva do que a do Tapajós, aumentan-do ainda mais a sensação de desbravamento. Chegamos quase meia-noite na comunidade, ao som dos mais variados cantos da floresta.

Nessas comunidades, o atendimento destoa um pouco das de outras comunidades mais acessíveis. Devido ao isolamento, o Abaré, em apenas um dia, atende pessoas de quase doze co-munidades do Rio Cupari, dentre elas: Açaituba, Godinho, São Francisco das Chagas, Uruará, Tavil, entre outras. As pessoas de outras comunidades chegam de rabetinha – uma espécie de ba-jara com motor – e algumas viagens até o barco podem durar quatro horas. Quando o barco começa os atendimentos, mui-tas pessoas já estão acordadas desde as três horas da manhã.

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E as rabetas não param de chegar. Há um trâmite interessante para essas pessoas que vem de rabeta até o barco: o Abaré for-nece o combustível de volta.

Quem não vem de rabeta e está nas comunidades próxi-mas, os marinheiros dos barcos levam nas voadeiras do Abaré. Acompanhei alguns pacientes voltando para a comunidade de Açaituba. Apesar do isolamento, diferentemente das comu-nidades da Resex que só tem luz através de luz solar – aqui há energia elétrica, por causa do chamado “linhão” que atravessa a floresta.

A comunidade é bem simples e a estrutura se assemelha muito às comunidades já visitadas. Casas de madeira, em sua maioria, mas com uma diferença – todas com televisão. E a outra característica marcante: som muito alto, com o melhor do tecnobrega do Pará.

Voltamos para o barco, e a mata por aqui realmente im-pressiona. Há um manto verde que encobre praticamente toda a floresta, tornando-a ainda mais fechada. O manto se con-funde com o reflexo na água. Um lugar isolado e lindo.

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Descendo o rioFLONA

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Depois do Rio Cupari, viajamos mais uma vez por cinco horas até chegarmos na cidade de Aveiros, já do lado esquerdo do rio. As comunidades que foram atendidas no Rio Cupari fa-zem parte deste município. Aveiros tem jeito de cidade do in-terior, apesar de ser bem na beira do rio. Pequena e silenciosa, suas ruas são cheias de árvores frutíferas – jambeiros principal-mente – e há muitas pessoas nas ruas, à pé ou de bicicleta, elas passam tranquilamente. Senhoras conversam na rua. Crianças correm. O pôr-do-sol acontece, esplendoroso. Por aqui, as pes-soas já parecem acostumadas.

A viagem ainda estava na metade, mas as recentes despe-didas começaram a dar o gosto de encerramento. Só a sensa-ção, porque a Flona ainda guardava incríveis segredos sobre a realidade desse lugar.

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Amanhecemos na comunidade de Itapaiuna. Quando o sol nasceu, a comunidade revelou-se. Com uma praia de areia muito branca e água esmeralda, a beleza impressiona. Hoje me permiti sair sem acompanhar as visitas domiciliares, e me surpreendi. Cheguei em uma casa onde es-tavam uma senhora de 83 anos e seus três netos. Começamos a conversar, e a senhora explicou que nunca tinha casado e nunca tinha tido filhos. Sua filha era de criação. A vida era muito simples. Ela havia acabado de voltar do rio, onde havia lavado a louça do almoço. Agora era a hora de prosear.

Sentada na mesa da sala, ela jogava conversa fora com dois senhores também da comu-nidade. Estava atenta à conversa quando uma das netas veio até mim. Havia me apresentado ao chegar, e comentei que eu era de São Paulo. A menina tinha 16 anos, frequentaca a escola e começou a me perguntar onde ficava São Paulo. “São Paulo é perto do Estados Unidos?”. “E da Argentina?” “E da Colômbia?”. A cara de espanto dela quando eu disse que ela estava mais perto dos Estados Unidos do que a cidade de São Paulo foi notável. Aproveitei então e perguntei se ela não tinha uma apostila com mapas, para poder explicar onde eu morava. Mostrei então os lugares no mapa, e ela estava muito curiosa e intrigada.

Perguntei então como funcionava a escola da comunidade. Ela explicou que em Itapaiuna só havia escola até a oitava série. Quem quisesse continuar a estudar tinha que se locomover diari-amente até a comunidade de Prainha, onde havia o ensino completo. Além dessas dificuldades, ela explicou que o ensino é bem simples, com uma ou duas professoras, e que muitas vezes ficam sem aula durante bastante tempo.

Itapaiuna

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Mais essa deficiência mostra como o Estado por aqui é quase incipiente. Na maioria das vezes, as obrigações do Es-tado não são cumpridas, e quando são, é de maneira desestru-turada. O que torna o isolamento dessas pessoas ainda pior. Há o isolamento geográfico, mas há ainda mais o isolamento do conhecimento do mundo lá fora.

Prainha é tão bonita quanto Itapaiuna, com o diferença de ter uma pequena ilha à sua frente, formada na época das cheias, que a isola do restante do rio. Exatamente por isso tam-bém, Prainha tem uma história que se assemelha muito com as lendas indígenas antigas, mas é uma história recente. A história da Cobra Grande. Há mais ou menos três anos atrás, a época das secas começou a chegar, e quando o rio seca, essa “ilha” na frente da comunidade ajuda, junto com a profundidade do rio, a formar um lago de águas profundas, isolado por areia dos dois lados. Nessa época, eles contam que uma cobra muito grande acabou ficando presa no lago, e era vista frequentemente boi-ando ou tomando sol. Por esse motivo, eles criaram a festa da Cobra Grande, para celebrar a presença do animal na região. Perguntei se ela ainda estava lá, e alguns moradores juraram que ela ainda é vista de tempos em tempos na água.

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Além dessa bela história, Prainha tem uma outra história incrível. Há cinquenta anos atrás, quando a comunidade era ai-nda mais isolada do que é hoje, sem acesso a nenhum tipo de recurso, havia uma espécie de médico das ervas, ou curandeiro, na região. Seu Waimberg era conhecido como Seu Beijinho, e cuidou durante muito tempo das pessoas dessa comunidade.

Conhecemos Seu Beijinho, infelizmente, em uma visita domiciliar. Na cama, iluminado por uma luz bem amarela que vinha da janela logo acima da sua cama, estava um senhor bem magro, coberto por um fino lençol. De tão pequeno, o simples fato de ele estar coberto dava a impressão de que ele não pos-suía mais pernas e um braço. Após alguns derrames, ele está ac-amado há dois anos, e a situação é muito grave. Devido à falta de recursos, e não dos cuidados da família, as escaras (feridas no corpo de quem está acamado, formadas pela pressão e pelo atrito contínuo na mesma região do corpo) estão profundas e a desnutrição é grave. Mas nem por isso Seu Beijinho perdeu a simpatia. Quando chegamos, apesar de estar daquela maneira, ele puxou a mão da médica para dar um beijo de boas-vindas.

Após os exames, as médicas acharam melhor levar Seu Beijinho para o hospital de Santarém, onde ele poderia ser mel-hor tratado e se recuperar da desnutrição. Nada disso abateu Seu Beijinho. Após algumas horas de conversa com a família, que não queria que ele fosse levado, foi removido para o barco

Seu Beijinho Prainha

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acompanhado da neta. Nos momentos em que estava acor-dado, conversava e contava casos. Uma figura o Seu Beijinho, capaz só de existir, com a sua história tão peculiar, em um lugar tão diferente como é o Rio Tapajós e suas comunidades.

Devido à situação um tanto quanto grave, resolvi não foto-grafar Seu Beijinho, apesar da história marcante e da imagem primeira, na visita domiciliar, ter sido tão bela ao mesmo tempo que trágica. Apesar de não ter fotos dele, achei que sua história valia a pena ser contada.

LENDA DA LUA

A lenda indígena da Lua conta que Manduka namorava sua irmã. Todas as noites ia deitar-se com ela, mas não mos-trava o rosto e nem falava , para não ser identificado.

A irmã, muito curiosa,tentando descobrir quem era que deitava com ela, passou tinta de jenipapo no rosto de Man-duka. Ele ao levantar-se pela manhã lavou o rosto, porém a marca da tinta não saiu. Foi assim que ela descobriu com quem deitava-se. Ficou muito brava, com muita vergonha e chorou muito. Manduka também ficou com vergonha pois todos ficaram sabendo o que ele tinha feito. Então Man-duka subiu numa árvore que ia até o céu. Depois desceu para dizer a sua tribo que ia voltar para árvore e não desce-ria nunca mais. Levou com ele uma cotia pra não sentir-se muito só.

Foi assim que Manduka virou a lua. E é por isso que a lua tem manchas escuras, umas são por causa da tinta de jeni-papo que a irmã passou em seu rosto e as outras manchas na lua é a cotia que ele levou, comendo um coco.

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Essas três comunidades são chamadas de comunidades de índios ressurgidos. Por serem formadas por descendentes dire-tos dos índios Mundukuru, essas comunidades conseguiram na Funai essa categorização. A partir disso, puderam criar reservas de terras indígenas nas suas comunidades, o que os protege ainda mais do avanço de grileiros e exploradores de terra, além dos benefícios da Funai, como a Funasa, dentre outros.

Nas visitas a essas comunidades, ficou claro a descendên-cia. Todos tem os traços muito semelhantes aos índios, e alguns costumes ainda são preservados, principalmente os festivos, como a festa para a lua cheia. O ensino médio indígena foi im-plantado, com o ensino da língua geral dos índios da região, chamada de Nheengatw, língua que deu origem ao tupi.

Índios Ressurgidos Taquara, Marituba e Bragança

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Foz

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“No meio do meu caminho,Sempre haverá uma pedra

Plantarei a minha casa Numa cidade de pedra”

Milton Nascimento

Chegando ao fim. A viagem teve muitos sentidos, desde conhecer lugares novos até me sen-tir mais repórter, mais conhecedora desses tantos brasis que formam o nosso país.

Alguns fatos ficaram claros nesse caminho traçado. Não me lembro de ter visto um projeto social que envolvesse tantas pessoas, de tão diversas formas. É um projeto voltado para as ne-cessidades concretas das pessoas que vivem nas regiões ribeirinhas do Tapajós. Da diversão à assistência à saúde, do conhecimento à tecnologia, o PSA permeia quase todos os benefícios que essas comunidades obtiveram nos últimos anos. Para tal, possuem um orçamento anual de R$ 2,7 milhões, que é distribuído entre os diversos projetos. O Abaré é o mais caro: manutenção de uma equipe de 20 pessoas, durante 20 dias, além dos custos com combustível, mantimentos e remédios. É preciso muito investimento.

Mas todo o capital investido aqui faz sentido, já que traz uma melhora evidente na qualidade de vida dos ribeirinhos do Tapajós. De acordo com o pesquisador José de Jesus Sousa Lemos, da Universidade Federal do Ceará, o Abaré contribuiu para que a mortalidade infantil da região caísse pela metade . Nos locais onde a ONG não atua, a mortalidade infantil atinge 52 crianças por mil nascidas vivas. Nas áreas atendidas, a mortalidade caiu para 27 crianças por mil, número ainda maior que a média nacional, que é de 19 óbitos para cada mil crianças nascidas vivas .

Esses números demonstram o trabalho do Abaré. São muitas conquistas. No ano passado, por meio de uma portaria ministerial (portaria 2191, de agosto de 2010), o barco-hospital Abaré tornou-se a primeira unidade de Saúde Fluvial da Família do país. Com essa portaria, o Abaré ser-virá de modelo para o funcionamento de uma política pública que pretende construir 80 barcos hospitais para atender toda a região da Amazônia e do Pantanal.

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Essa transição entre os dois poderes é um caminho am-bíguo. Por um lado, é importante que o projeto tenha se tor-nado política pública, uma vez que deixa de ser uma iniciativa regional, para se tornar algo que abarque todo o país, principal-mente as regiões que tem o problema da distância e da carên-cia como ponto central.

Porém, ainda são necessários muitos ajustes para que o poder público consiga administrar bem o projeto - repassando e administrando o dinheiro e a gestão - para que o Abaré con-tinuem atendendo às necessidades das pessoas como sempre fez. Quem trabalha desde o começo no projeto, ainda quando a administração era feita pelo PSA e pela Terre des Hommes, comentou que a qualidade do serviço caiu muito. Desde atra-sos – como o que aconteceu na minha viagem – até falta de remédios e o mais grave: de médicos.

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Ao mesmo tempo, uma nova unidade do Abaré, o Abaré II acabou de ser inaugurada, no dia 14 de outubro desse ano. Com uma estrutura um pouco menor – e mais barata – o novo barco hospital atenderá às comunidades do rio Arapiuns. É preciso conciliar a expansão com a manutenção da qualidade do atendi-mento oferecido à essas comunidades.

Como foi dito no começo dessa viagem e no começo desse livro, o cotidiano desse projeto merece ser retratado porque ini-ciativas como essas podem servir de exemplo. O caminho para a construção de bons projetos nesse país é sempre árduo, ainda mais em regiões distantes e sem interesse específico por parte do governo. Mas é sempre bom perceber que existem pessoas que quando encontram pedras no caminho, resolvem construir em cima delas.

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