projetil 69

24

Upload: jornal-projetil

Post on 18-Mar-2016

263 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Jornal Laboratorio do Curso de Jornalismo da UFMS

TRANSCRIPT

Page 1: Projetil 69
Page 2: Projetil 69

Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo da UFMS - 2

“Eu fiquei muito triste hoje. O nosso câmera Ava Plongeé (ver pág 04 ), supertalentoso, não vai poder vir hoje e nem amanhã porque vai cortar cana em umausina . Meu coração fica apertado, a gente vem aqui plantar uma semente, ensinarcinema, aí vem uma realidade dessas e desaba na cabeça da gente”- Joel Pizzini,durante as oficinas do Ava Marandu na Aldeia de Amanbai.

A avalanche dessa realidade também atingiu nossa equipe durante a publicaçãodo Projétil. O maior desabamento aconteceu com o assassinato de Ademir Romei-ro, personagem da matéria Hesakã, câmera, ação! que tinha como idéia inicialfugir do tripé clichê, conflito de terras-desnutrição-violência, que sustenta a maioriadas matérias sobre indígenas que são veiculadas na mídia.

Ademir adorava esportes e organizava jogos de futebol na aldeia. No dia 20 denovembro, um domingo, jogou com os amigos a tarde e depois foi para uma festaonde Derci, indígena guarani paraguaio e ex-morador da aldeia, chegou para acertarcontas com um amigo de Ademir.

Ademir foi intervir na briga e acabou atingido no pescoço pelo facão de Derci. Emorreu na frente dos amigos, na festa que já não era mais. Era agora uma reunião deamigos revoltados com a cena, que não precisaram de muita conversa para decidir queAdemir deveria ser vingado. Perseguiram Derci e o mataram logo em seguida.

No dia seguinte, uma nota apareceu em um site de notícias: “Os índios AdemirRomeiro, 20 anos, e Derci Garcete foram assassinados (...) na aldeia Jaguapirú”.

Na verdade ele tinha 19 anos e a aldeia onde nasceu e morreu não é Jaguapirú,localizada em Dourados e considerada a mais violenta do estado. E sim Jaguapiré,em Tacuru, onde na entrada existe uma placa: “área de litígio” e uma retificaçãoescrita pelos moradores por cima: “Jaguapiré para sempre”.

Acontece que nada nesses fatos faz sentido. Assim como Pizzini estranhou que oaluno talentoso tivesse que deixar de filmar para cortar cana, é difícil vincular omenino que teve a delicadeza de responder o meu e-mail com a última linha em cor-de-rosa para me agradar ao índio que da nota no site.

É que, se você perceber, o mundo está mesmo de cabeça para baixo. Mas abrutalidade do assassinato não anula a delicadeza da vida, no caso de Ademir eternizadapelas imagens dos filmes gravados por ele, como o ainda não finalizado “Enterros”,sobre uma lenda paraguaia, e o filme sobre os despejos e retomada da sua aldeia,“Jaguapiré na luta”.

Um dos ministrantes do curso de cinema, que Ademir frequentava, o bolivianoindígena da etnia quéchua, Iván Molina, ao saber da notícia, disse que apesar daslágrimas a luta continua. Agora mais forte.

Desaba na cabeçada gente

Camila Emboava

Paul

o Br

agan

tino

Jornal Laboratório do Curso de Comunicação Social - Jornalismo da Universidade Federal deMato Grosso do Sul – Produzido pelos acadêmicos do 3º ano de Jornalismo, sob orientação dosprofessores José Márcio Licerre (Planejamento Gráfico II), Mário Luis Fernandes (Edição) e MarioMarques Ramires (Redação e Expressão Oral em Jornalismo II). Jornalistas responsáveis: Mário LuisFernandes (DRT-PR 2513) e Mario Marques Ramires (DRT-SP 12602)

Produção: Camila Emboava, Cláudia Camargo, Danilo Nery, Eduardo Lyvio, Evelin Ara-ujo, Flávio Brito, Gabriela Dias, Hermano de Melo, Julio Carvalho, Kamila Jara, Katiuscia Reis,Susan Buranelo e Thaysa Freitas.

Correspondência: Jornal Projétil – Departamento de Comunicação Jornalismo (DJO /CCHS) – Cidade Universitária s/nº - CEP 79070-900 – Campo Grande – MS. Fone (67) 3345-7600 – E-mail: [email protected]. Tiragem: 5.000 exemplares. Impresso na Qualidade Empre-sa Jornalística Ltda. Distribuição Gratuita.

Visite nosso site:

www.jornalismo.ufms.br

Quando decidimos fazer uma edição do Projétil inteiramente dedicada àtemática indígena a primeira preocupação foi quanto ao modo com que deve-ríamos ou gostaríamos de apresentar esse povo.

Não ignoramos os problemas que afligem os índios e os levam à morte eao desespero. Mas, ao contrário do que costumamos ver na mídia, optamospor tratá-los como seres humanos, e não como problema ou estatística.

Mais do que divulgar as dificuldades de ser índio, buscamos entender comovivem algumas dessas comunidades. Em uma das matérias desta edição apre-sentamos artistas que têm como princípio fundamental para o tratamento daquestão indígena o tempo que dedicam para tentar entendê-la, mediante a con-vivência. Tempo que, ao contrário dos artistas, nem sempre os jornalistas têmou dedicam a essa convivência.

Vários desses índios nossos repórteres encontram no dia-a-dia na universi-dade, em oficinas culturais, e outras atividades, com urucum na cara e vestindocamiseta da coca-cola, manipulando câmeras fotográficas e cantando rap, me-xendo na internet e falando apenas em guarani na nossa frente, só pra sacanear.

São assim os meninos do Brô MC’s, um grupo rap de Dourados que canta emguarani. São assim os meninos e meninas do curso de cinema do Pontão Guaicuru(uma das quais se fez loira, quer ser atriz, mas continua guarani-kaiowá assumida).Como são assim, ou mais ou menos assim, os setecentos indígenas que se tornaramuniversitários, muitos dos quais prometem aplicar os conhecimentos adquiridospara melhorar a vida na sua aldeia. Inclusive tentando encontrar outras possibilida-des para a educação indígena, cujo maior desafio está no fato de a escola não sercoisa de índio.

Agora podemos ver esses índios também na intimidade de suas aldeias, embelas fotos coloridas feitas por eles mesmos, no encarte fotográfico que reser-vamos especialmente para esta edição.

São esses índios que, apesar de tudo, acreditam e lutam pela vida e pelo seufuturo, que vivem com dignidade, que riem, que acreditam, sonham e vão emfrente. Que busca uma vida melhor, ainda que no mundo urbano.

Nosso olhar para o índio mudou bastante depois desta edição do Projétil.Esperamos que o seu também.

Editorial

As matérias veiculadas não representamnecessariamente a opinião da UFMSou de seus dirigentes, nem da totalidadeda turma.

Page 3: Projetil 69

3 - Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo da UFMS Miscigenação musical

Rap GuaraniBruno New, Kelvin, Clemerson e

Charlie. Os nomes podem ser estran-geiros, mas esses quatro jovens sãoindígenas da etnia Guarani-Kaiowá,moradores da aldeia Jaguapiru, emDourados. Os garotos são integrantes deum grupo de hip hop diferente. Asmúsicas são cantadas em guarani e emportuguês, no ritmo tradicional do rap.Esse é o estilo do grupo Brô Mc’s.

Brô é um diminutivo da palavrainglesa brothers, que em português sig-nifica irmãos. Não é uma coincidência.Kelvin é irmão de Charlie, e Bruno éirmão de Clemerson.

Eles se conheceram em 2006, duran-te as gravações do Terra Vermelha, filme-documentário sobre conflitos pela possede terra enfrentados por índios Guarani-Kaiowá em Mato Grosso do Sul. O tra-balho do grupo começou pela dança, e sódepois passaram a compôr e a cantar.

Importante também nesse processofoi a participação deles nas atividades doPonto de Cultura Todas as Idades, projetoda UFGD (Universidade Federal daGrande Dourados), em parceria com aCUFA (Central Única das Favelas), quedesde 2008 desenvolve atividades culturaiscomo oficinas, cursos e workshops paradiferentes comunidades, inclusive asindígenas. Durante esse projeto, os integrantesdo Brô Mc’s tiveram aulas de musicalidadee breakdance (estilo de dança de rua cujaregra é não ficar com o corpo em posiçãoereta), além de oficinas de narrativasindígenas em guarani e português. Brunofoi quem começou a compor as músicas elogo encontrou parceiros com o mesmoamor pelo rap.

O hip hop, presente em periferiasdas grandes cidades, é um conjunto demanifestações culturais que incluem adefesa das minorias e a igualdade social.Bruno nos explica a intenção do grupo:“levar idéias positivas pro pessoal aquida aldeia, pra não entrar no caminho dadroga, da violência. E mostrar pro não-índio o que é a cultura indígena. Mostrarnossa identidade e nossa língua”.

Essa mistura da cultura indígenacom a norte americana já foi motivo dequestionamentos ao grupo. Mas elescontinuam defendendo a idéia de que amúsica é um forte instrumento paradivulgação de seus costumes, e nempensam na possibilidade de perder aidentidade. Como reforça Clemerson,“não é por que a gente está cantando rapque está deixando nossa cultura. A nossacara, a nossa pele e o nosso sangue jámostra que a gente é índio mesmo”.

Kelvin defende a língua guaranicomo uma das coisas mais importantesde suas vidas. E deixa claro que não mis-turam culturas, mas as colocam lado alado. “A gente não mistura. Só coloca osdois juntos. Tanto a cultura dos brancoscomo o que é da cultura dos indígenas”,explica Kelvin, e cita como exemplo, nadança, a mistura do breakdance com oguaxiré, dança típica indígena.

Não muito diferente de outros indí-genas, os meninos do Brô Mc’s tambémsentem que ainda não são vistos comoiguais pelos não-índios. “Não é porque eu

[email protected]

Eju Orendive (...) Por isso venha conosco nessa levada / Aldeia unida mostra a cara / Vamostodos nós no role / Vamos todos nós, índios, festejar / Vamos mostrar para osbrancos / Que não há diferença / E podemos ser iguais / Aquele boy passou pormim / Me olhando diferente / Agora eu mostro pra você / Que eu sou capaz e estouaqui / Mostrando pra você o que a gente representa / Agora estamos aqui / Porqueaqui tem índios sonhadores / Agora te pergunto, rapaz / Por que nós matamos emorremos? / Em cima desse fato a gente canta / Índio e índio se matando/ Osbrancos dando risada / Por isso estou aqui, pra defender meu povo / Representocada um / E por isso, meu povo / Venha conosco / Nós te chamamos prarevolucionar / Aldeia unida mostra a cara

Kelvin, Bruno, Charlie (foto) e Clemerson no Encontro da Diversidade Cultural no Rio de Janeiro

Para ouvir a m˙sica completa e o CD do BrÙ Mcís acesse osite www.radiouol.com.br. Digite ìrap indÌgenaî ou o nome

do grupo no campo de busca e divirta-se!

O espírito kaiowá / ganha ritmo em guarani / no som do Brô Mc’s

Belch

ior C

abra

l

estou criticando os brancos, mas muitagente acha que o índio é como se fosseum lixo”, diz Kelvin.

Se depender do Brô Mc’s, a culturaindígena vai se espalhar rapidamente ao

som do hip hop. O grupo já se apre-sentou em Dourados, Campo Gran-de, Rio de Janeiro e São Paulo.

Thaysa Freitas

Page 4: Projetil 69

Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo da UFMS - 4Cinema

Hesakã, câmera, ação!No curso de cinema do Pontão de Cultura Guaicuru tem cinco indígenas muito ligeiros

que querem ir bem além do youtube

Cena 1 – O salão cheio era um bor-rão amarelo na lente da câmera “AíDjalma, não to vendo nada, isso é mui-to complicado!” “Calma Camila, é sómexer no diafragma, não ali no outrolado, é porque a sala tá escura.” “Aaaahn.”

Cena 2 – Exercício de câmera efotografia – Ademir ensina Edivânia afazer os movimentos de câmera e me-xer no zoom repetidas vezes “Ele foimeu diretor de fotografia e fotógrafoao mesmo tempo.”

Djalma e Ademir são indígenasguarani e moram em aldeias no sul doestado. Camila e Edivânia, brancas, mo-ram em Campo Grande. Eles fazemparte do projeto Mídias Contemporâ-neas Narrativas Populares, um projetopromovido pelo Pontão de CulturaGuaicuru e apoiado pela empresa Oi.O curso, que começou em junho desteano, é composto por oito módulos queabordam cada um, áreas específicas docinema. Durante o período dosmódulos, que acontecem mensalmentee variam de cinco a dez dias, os partici-pantes universitários, músicos, um capi-

tão da polícia militar, funcionários pú-blicos, professores, atores, jornalistas,uma representante da Central Única deFavelas (CUFA), indígenas, brancos e ne-gros trabalham juntos.

Entre eles, cinco indígenas que viajamdas aldeias onde moram até Campo Gran-de a cada módulo. Denize, 16 anos, cursao ensino médio na escola da aldeia, sonhaem fazer medicina e ser atriz. Viviane temos cabelos pintados de um loiro claro, nãodispensa o batom e o esmalte, gosta deatuar. Cláudio adora fotografar. Djalma eAdemir são os dois cinegrafistas mais assí-duos do grupo, têm muita experiência ehabilidade com a câmera e por isso, vira emexe, protagonizam cenas como a docomeço da matéria.

Djalma: Ava PlongéeMontado com firmeza, o indígena

guarani segura seu instrumento epercorre o campo, atento. Não montaum cavalo, não segura uma lança, nãopersegue um animal. Djalma Benites, 18anos, está montado em uma moto, decostas para o motorista e amarrado aele por um cinto de segurança, com acâmera de vídeo nas mãos, busca omelhor ângulo do ator em movimento.

Djalma teve o primeiro contatocom a câmera durante as oficinas de ci-nema do Ava Marandu, projeto cultu-ral, realizado de janeiro a junho de 2010,com diversas atividades voltadas para asquestões dos direitos humanos dos Po-vos Guarani. Entre as atividades, acon-teceram oficinasde cinema com oscineastas JoelPizzini, MaurícioCopetti, Ivan Moli-na e Gilmar Gala-che, durante trêsmeses, em sete al-deias do Estado.Em uma das aulasde Copetti, Djal-ma utilizou o recém-aprendido plongée(significa mergulhado em francês e nocinema é um tipo de enquadramento emque a câmera filma o objeto de cima parabaixo) e foi apelidado de Ava Plongéepelo professor.

Djalma ou Kunumi, seu nome indí-gena, nasceu na aldeia de Tacuru, no suldo Estado, mas aos sete anos foi levadopelo pai na garupa de um cavalo, para aaldeia de Amambai, onde vive até hojecom a esposa Gisele e a filha de sete me-

ses, Kailana. Antigamente, na sua cultura,o casamento não acontecia tão cedo. Ospais de Djalma, por exemplo, se casarammais velhos, e ele mesmo não entende apressa dos casamentos de hoje na aldeia.

Em Tacuru, Kunimi teve uma infân-cia muito próxima da natureza. Hoje, em

Amambai, uma al-deia mais contem-porânea, ele sentefalta da caça e da pes-ca. A língua faladana aldeia é oGuarani, mas umGuarani diferentedo falado pelos seusavós. Com o tem-po, o idioma origi-

nal foi modificado devido influências doParaguai, o país vizinho.

Nos primeiros encontros das aulasde cinema, Djalma era um dos mais tí-midos da tur ma . Fala pouco e sorrimuito, é atento e dedicado. Não demo-rou muito para que a habilidade dele coma câmera fosse percebida pelo grupo, oque o tornou um cinegrafista cobiçadoem atividades coletivas.

A intimidade com a câmera já fezinclusive com que ele conhecesse uma

Gabriel, Djalma e Adriano durante as filmagens de “Fim da Linha”

Amor à primeira vista - encontro de Ademir com a câmera

Camila Emboava Susan Buranelo

Paul

o Br

agan

tino

Bian

ca F

reire

Conheceroutros lugares,

novas tecnologias epessoas diferentes

“é o máximo”

Page 5: Projetil 69

5 - Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo da UFMS Cinema

nova cidade. Logo depois do módulode fotografia, Djalma foi para São Pau-lo filmar cenas de um dos projetos quenasceram durante os módulos do curso.Kunumi gostou de conhecer São Paulo,mas achou a cidade um pouco triste.Nunca imaginou viver uma experiênciacomo essa. Diz que conhecer outroslugares, novas tecnologias e pessoas di-ferentes das do seu convívio na aldeia“é o máximo, só porque não conheçouma palavra melhor”.

Kunumi adora música e nas horasvagas se diverte vendo vídeos no youtubedos grupos NX Zero, Hevo84 e Rosa deSaron, seus preferidos. Gosta de cantar ede tocar violão e guitarra, integrante dabanda GDI na Aldeia, compõe músicasem português e guarani e sonha em gra-var um CD. Quer fazer faculdade de le-tras com habilitação em espanhol quan-do concluir o ensino médio na escola daaldeia, onde tem aulas em português eguarani. O idioma também predominana religião, onde o culto é celebrado nalíngua local, a bíblia é traduzida, mas Tupã(Deus em guarani), é o mesmo Pai deJesus Cristo, para quem Djalma tem comomissão ‘ganhar almas’.

Djalma gosta de falar sobre a cul-tura indígena e quer fazer um docu-

mentário sobre as tradições do seu povo.Além disso, quer disseminar o conhecimen-to de cinema na sua aldeia. Plantar umasemente no coração de cada um, comoele acredita que tenham plantado no dele.

Ademir: Orkut e Coca-ColaAdemir Romero, guarani kaiowá de

19 anos, morador da Aldeia Jaguapiré,em Tacuru, viaja 422 quilômetros atéCampo Grande e se hospeda em umapensão junto com os outros quatroindígenas participantes do Projeto.

Ademir não dormiu nem por umminuto nesta noite (entrevista feita no dia6 de novembro) e nem vai dormir napróxima. Durante a madrugada e ocomeço da manhã, ele fez acrobacias enão mediu esforços para filmar as cenasque acontecem em um carro emmovimento numa rodovia, de um dosfilmes que está sendo desenvolvido pelosparticipantes do curso. De manhã, foi auma chácara filmar cenas de capoeirapara um exercício do projeto. Depoisdo almoço quis acompanhar o grupode seus colegas em uma gravação nobairro Moreninhas. Na próxima madru-gada haverá outra gravação na rodovia,mas Ademir é um cineasta incansável, dizque não quer ir para a pensão descansar,

que “se não for assim no es cinema”. Alição foi aprendida com o professor exi-gente, cineasta boliviano Iván Molina, in-dígena da etnia quéchua que hoje é dire-tor da Faculdade de Cinema e Artes deLa Paz, que Ademir considera como um

irmão e tem como exemplo “eu quisaprender cinema porque é importanteter um cineasta indígena, que faça todotipo de filme, em Mato Grosso do Sul”.

Tranquilo, sério e interessado duran-te as aulas, está com uma câmera nasmãos sempre que possível. Está no se-gundo ano da faculdade de matemáticana UEMS de Amambai, a 67 quilôme-tros de Tacuru, pra onde vai de ônibustodos os dias. Gosta de filmes de ação eromance, como X-men e Titanic e tam-bém se diverte com comédias.

Assim como muitos sul-mato-grossenses, Ademir gosta de músicasertaneja, principalmente das duplas maisrecentes, que tocam o chamado sertanejouniversitário. Tem Orkut, e-mail, celulare uma camiseta vermelha da Coca-Cola.Gosta de viver na aldeia, que para ele separece com o bairro das Moreninhas,mas além dos carros, motos e comérciotem uma paisagem linda, rios e cachoeira.Mesmo assim, acredita que vai se mudarde lá quando estiver formado, porque édifícil encontrar emprego na área de ma-temática.

Ademir sonha em filmar cenaselaboradas de ação, românticas e trágicas.E também tem uma queda pelarealidade, quer registrar o cotidiano dopovo brasileiro, “filmar com muitorespeito a imagem das pessoas”.

O dono da câmera - Djalma registra a primeira aula do curso

Pro dia nascer feliz - Ademir e Edivânia na segunda madrugada de filmagem de “Enterros”[email protected]@hotmail.com

Gab

riel L

oure

nço

Elis

Reg

ina

Page 6: Projetil 69

Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo da UFMS - 6

O desafio de desenvolver um siste-ma oficial de educação indígena no Bra-sil é recente. Surge com a nova Consti-tuição de 1988, que assegura às popula-ções indígenas o direito de seremeducadas em sua própria língua e valo-rizando suas próprias culturas. Mas abaixa representatividade das comunida-des indígenas nos conselhos de educa-ção e a falta de material didático ade-quado dificulta, e muito, o cumprimen-to da legislação. Em Mato Grosso doSul não é diferente.

Há dois modelos de escolas queatendem à população indígena: as esco-las que são registradas como indígenas eque ficam nas aldeias rurais; e as escolascomuns que ficam nas áreas urbanas eatendem a demanda de toda a popula-ção, sendo indígena ou não. No estadoexistem 13 escolas indígenas, segundodados de 2005 da Secretária Estadual deEducação.

No distrito de Visconde de Taunay,em Aquidauana, estão localizadas sete,das nove aldeias da região, todas elas ha-bitadas por índios da etnia terena. As mai-ores são Bananal e Lagoinha. Esta últi-ma, com uma população formada porcerca de 170 famílias em uma área apro-ximada de 150 hectares, conta com umadas cinco escolas-pólo mantidas pelomunicípio.

As escolas-pólo (nas aldeias LimãoVerde, Ipegue, Bananal e Água Branca)são responsáveis pela administração e co-ordenação pedagógica de escolas me-nores situadas na mesma região. Nasaldeias Córrego Seco, Colônia Nova,Imbiruçu e Morrinho essas escolas me-nores são multisseriadas, ou seja, aten-dem alunos de séries diferentes em umamesma sala de aula.

Para o cacique da Aldeia Imbiruçu,Jurandir Lemes, “as salas multisseriadasque atendem a aldeia não são suficientese os alunos têm que se deslocar até a es-cola General Rondon, na aldeia Bananal”.

Os diretores e coordenadores dasescolas são escolhidos pelos caciques de

cada aldeia. De acor-do com a coordena-dora pedagógicaElaine Pereira de Sou-za, da escola munici-pal Marcolino Lili –localizada na AldeiaLagoinha, o cargo dedireção só pode serocupado por profes-sores que nasceramnas comunidades e acoordenação, porqualquer outro pro-fessor – mesmo quenão seja indígena,como é o caso da pro-fessora Elaine. “Osprofessores ocupamo cargo por quatroanos em média –tempo que dura omandato de um cacique – ou até que ocacique decida pela substituição”, expli-ca a professora. Elaine trabalha nas es-colas indígenas desde 2005 dando aulasde geografia e no ano passado tornou-se coordenadora.

O professor de física e língua terena,Arcenio Francisco Dias relata que os alu-nos têm aulas do idioma do 1º ao 6ºano do ensino fundamental e que as au-las só voltam a acontecer nos três anosdo ensino médio. Segundo o professor,“essa interrupção representa uma perdano aprendizado porque a produção es-colar do idioma diminui bastante”. Alémda Língua Terena, os alunos fazem aulasde Arte e Cultura Indígena do 6º ao 9ºano e durante todo o ensino médio.Nesta disciplina aprendem sobre dança,comidas, artesanato, símbolos e cores.

Além da lacuna de tempo que osalunos têm, sem o ensino da língua e cul-tura terena, há uma dificuldade aindamaior a ser superada no ensino escolarindígena: a falta de material didático ade-quado. “Essa é a reclamação de todosos professores, o material escolhido paracada disciplina no início do ano letivoacaba sendo pouco utilizado. Serve, namaioria das vezes, apenas para ilustraras aulas, pois eles são escolhidos por to-

dos os professores de cada disciplina emvotação. Professores que dão aulas nasaldeias representam um número peque-no, o que é escolhido não atende as nos-sas necessidades já que são pensados eproduzidos para alunos não-índios e quevivem na cidade”, esclarece a professo-ra Elaine Pereira.

Coisa de índioO responsável pela educação indí-

gena no município, Arcenio Dias, assu-miu o setor em março de 2009, e contaque o ensino indígena em Aquidauanacomeçou em 1998, com a implantaçãodas escolas e a criação das ementas.“Aqueles que lecionam nas disciplinas deArte e Cultura e Língua Terena se reú-nem no início de cada ano para prepa-rar o que vai ser trabalhado, já que algu-mas coisas os professores não sabem edependem da ajuda dos mais idosos”.Para dar aulas dessas matérias é precisofalar a língua e ter reconhecido sabersobre a cultura. Para tentar solucionar adificuldade com o material didático, osprofessores têm realizado oficinas emtodas as comunidades para a produçãodo material com a ajuda de todos osmoradores. Ainda é preciso investimen-to para impressão do que será produzi-

do, mas não há previsão para isso. Arcenioespera que aconteça já no ano que vem.

As escolas nas aldeias urbanas tam-bém têm dificuldades em oferecer aosindígenas uma educação que ensine epreserve tradições de seus antepassados.Como é o caso da Escola MunicipalSulivan Silvestre Oliveira, criada em 1999para atender crianças da aldeia urbanaMarçal de Souza, em Campo Grande. Aescola é aberta a todos e oferece ensinoregular do 1º ao 5º ano do ensinofundamental, mas a prioridade é atenderas crianças indígenas da comunidade.

Diferente das aldeias rurais, a Marçalde Souza é habitada por moradores ín-dios e não-índios. Dos 408 alunos ma-triculados, apenas 30% deles são indíge-nas. Lucimar Trindade Azevedo, respon-sável pela direção, esclarece que a escolanão é registrada como indígena, por issosegue padrões e regulamentos do siste-ma de ensino do município. A escola,até 2005, oferecia a disciplina de línguaterena, mas a pedido dos próprios paisela foi retirada da grade curricular e agoraé oferecida como projeto de extensão.“Os pais acreditam que atrapalha a alfa-betização das crianças, mas não se im-portam que, na mesma idade, elas apren-dam inglês” conta o professor de língua

A escola precisa aprender a ser aldeiaO problema da educação indígena é que escola é coisa de branco

Educação

Cl·udia CamargoFl·vio Brito

Aldeia Lagoinha: mesmo na escola-polo falta material didático e mais aulas na língua terena

Flá

vio

Brito

Page 7: Projetil 69

7 - Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo da UFMS

terena Itamar Jorge Pereira. Atualmen-te, 30 alunos freqüentam as aulas de lín-gua terena e mais da metade deles não éindígena.

Maria Eugênia Gerônimo, 10 anos,mudou para a Marçal de Souza com afamília há um ano. Ela morava na aldeiarural Bananal, da cidade de Aquidauana,e foi alfabetizada na língua terena. MariaEugênia freqüenta as aulas de línguaterena porque sentiu falta de conversarno idioma materno, já que os morado-res da aldeia urbana conversam apenasem português. A intenção da diretora éque o ensino da língua retorne à gradecurricular em um futuro próximo e quese torne obrigatório. Enquanto isso, “ainstituição fica de mãos amarradas, poisos que mais deveriam se interessar emcultivar sua cultura não fazem questãode impedir que ela se perca no meio doseu próprio povo”. Além do idioma, acultura do povo Terena é celebrada ape-nas uma vez ao ano, 19 de abril, no dia

do Índio, quando danças, brincadeiras ecomidas típicas são apresentadas.

O antropólogo e professor daUFMS Antônio Hilário Aguilera Urquizaadverte que não podemos cair no errode culpar a própria vítima, “nenhumpovo abandona a própria língua, um dostraços mais importantes para a constru-ção da identidade, se não for por muitapressão social ou violência, mesmo queindireta. Os pais dos alunos querem queseus filhos tenham garantias de um bomfuturo, mas para isso é preciso se integrare ser aceito pelo resto do grupo. Falar alíngua materna só servirá para conversarcom os pais em casa. Para garantir umemprego é necessário falar inglês, saberinformática. O que todos querem é fugirdo preconceito, mesmo tendo que aban-donar aspectos culturais importantes”.

Não há escolas indígenas em nenhu-ma aldeia urbana do estado. E a implan-tação de escolas com este modelo deensino, nas cidades, “acaba criando uma

espécie de gueto e exclui as pessoas deuma determinada cultura do resto da so-ciedade”. O ideal nesses casos, segundoo antropólogo, é a implantação de es-colas com uma Educação Intercultural,capaz de receber pessoas de todas as cul-turas que vivem no contexto urbano,como índios, negros e ciganos, porexemplo. Integrando todas elas no pro-cesso de aprendizagem e valorizando asdiversas culturas envolvidas.

Quanto às escolas nas aldeias rurais,também não basta sua implantação, épreciso que elas estejam integradas à re-alidade local e atenda a suas necessida-des. Deve começar cumprindo a legisla-ção e impedindo a violação de direitosadquiridos: “As pessoas precisam conhe-cer mais a questão cultural indígena. Amídia precisa parar de generalizar osproblemas e conflitos, e ajudar a com-partilhar as conquistas. A universidadetem de estar mais presente”, enfatiza oprofessor Arcenio Francisco Dias. “A

cultura indígena e a cultura Terena nãoacabam, elas vão aumentando e se trans-formando, mas é preciso se preocuparcom o seu futuro. O que vai ser?”, inda-ga o vice-cacique Nivaldino Pereira José.

Antônio Hilário propõe uma refle-xão mais profunda acerca do modocomo vem sendo tratada essa questãoda educação indígena. “Essas dificulda-des todas acontecem porque escola nãoé uma invenção do índio. O indio querutilizar essa ferramenta para preservar suacultura, mas o sistema educacional temque ser para todos, não importa se é ín-dio ou não”. Hilário entende que em vezde introduzir na aldeia um sistema deeducação que lhe é estranho, essa educa-ção indígena deveria ser construída emfunção dos valores e formas de organi-zação das próprias sociedades indígenas.

Tribo Universitária

Ter uma formação universitária foi ocaminho que alguns índios encontrarampara se integrar ao universo não indígena elevar os conhecimentos adquiridos na aca-demia de volta para sua comunidade.Mesmo com o intenso choque cultural, osíndios mantém suas raízes, reafirmandosua identidade. Há cerca de 700 matricula-dos em cursos regulares nas universidadesdo estado de Mato Grosso do Sul e essenúmero tende a subir.

Eles são mais de 700,de várias etnias,

e muitos prometemvoltar para a aldeia

com suas conquistasem nível superior

[email protected]@gmail.com

Car

olin

e M

aldo

nado

- N

EPPI

Educação

O acadêmicos indígenas se esforçam para utilizar todas as ferramentas disponíveis na universidade

Katiuscia ReisGabriela Dias

Page 8: Projetil 69

Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo da UFMS - 8

Sidney Morais de Albuquerque resi-de na aldeia urbana Marçal de Souza, emCampo Grande. Para ele, fazer o cursode Jornalismo foi uma forma de com-plementar o trabalho. Sidney trabalhavano jornal O Estado de Mato Grosso doSul quando percebeu sua admiração pelaprofissão. “Eu queria trabalhar a questãoindígena dentro da imprensa. Eu sei queé muito difícil ter liberdade dentro da em-presa, mas eu pensava que, como indíge-na, poderia mostrar questões como saú-de, educação e terras. E com isso falardos problemas, das soluções e, também,momentos tristes e alegres”. Depois determinar o curso, o acadêmico pretendelevar oficinas e feiras de profissões paraas crianças da aldeia, e incentivá-las a se-guir uma carreira acadêmica.

Luiz Henrique Eloy Amado, quereside na aldeia Ipegue em Aquidauana,optou pelo Direito, curso com o qualsempre sonhou, principalmente porque,quando ingressou na universidade, em2006, eram poucos os acadêmico indíge-nas nessa área. Antes mesmo de se formar,Luiz Henrique já está colocando emprática o que aprende. Junto com outrosalunos da UCDB, implantou uma ofici-na de Direito Indigenista em sua aldeia,com o objetivo de ensinar aos índios so-bre seus direitos. “Nós vemos muito dosdireitos indígenas serem desrespeitados.Nós queremos, no futuro, quando esti-vermos já advogando, dar uma maior as-sistência à nossa comunidade”.

DesafiosMuitos alunos enfrentam dificuldades

para frequentar as aulas porque não po-dem pagar, não têm como se deslocar atéa universidade ou não conse-guem acom-panhar a metodologia de ensino. Em fun-ção disso a UCDB (Universidade Católi-ca Dom Bosco), a UFMS (UniversidadeFederal de Mato Grosso do Sul), campusAquidauana, a UEMS (Universidade Es-tadual de Mato Grosso do Sul) e a UFGD(Universidade Federal da Grande Doura-dos) se uniram com a Fundação Ford ecriaram, em 2005, o Programa Rede deSaberes. O projeto auxilia os alunos custe-ando gastos com livros, xerox, desloca-mento, disponibiliza tutores para quemtêm dificuldade para acompanhar as aulase incentiva a participação em seminários econferências.

Para o coordenador do Rede de Sa-beres, o professor e historiador AntônioBrand, o programa é um forma desuavizar problemas como a falta de apoiodas universidades aos acadêmicos indíge-

nas, mas existem questões mais comple-xas. “Fundamental aí é que, pelo Rede,sabemos que temos feito alguma coisa:criar espaços internos de apoio aos aca-dêmicos indígenas. A verdade é que essesacadêmicos são representantes de povosque têm saberes, e que não são saberes,digamos, da academia. Eles têm outraslógicas de produçãode conhecimentoque são igualmenterele-vantes”, explicaBrand.

O professordiz ainda que os ín-dios têm muita cla-reza no que se refe-re a afirmação daidentidade indígena.“Eu costumo brin-car que quanto maisestudam mais índiosficam”. Brand acre-dita que a integração das culturas é neces-sária, mas indaga se realmente o que seaprende na universidade serve para a al-deia em que vivem, pois o ensino superi-or mal prepara para viver na nossa socie-dade, quanto mais uma cultura diferente.

Para Luiz Henrique, deveria existiruma cobrança maior do Poder Públicoacerca da questão indígena na universi-dade. “Hoje em dia, as portas da uni-versidade estão abertas, mas como vaiser a permanência dos indígenas na aca-demia? Não se pode entender perma-nência apenas como a necessidade finan-ceira, que existe, porque o indígena dei-

xa a sua comunidade. Mas há tambémoutras questões como o preconceito, opreparo dos professores, a questão dalíngua. A maioria deles é alfabetizada deacordo com sua língua materna, qual seráo impacto disso quando o indígena in-gressar na universidade?”, indaga o aca-dêmico. Outra questão a ser discutida é

a inclusão digitaldestes alunos. Luizdefende a identida-de cultural porqueeles nasceram emuma comunidadeindígena e, portan-to, possuem línguamaterna e modode vida diferente.Segundo ele, a di-ferença de hábitoscausa um impactoquando vão para acidade. “Pelo fato

de que hoje o índio cursa uma universi-dade, do indígena ter celular, ter com-putador, ter carro, e nem por isso pode-mos deixar as nossas raízes”.

Sidney Albuquerque diz que não sen-tiu resistência dos colegas quando entrouna universidade. Ele conta que leva as brin-cadeiras dos colegas na esportiva. “Temum professor aqui que tem fama de mal,assim bem rígido, e ele me trata bem, atéque um dia vieram com a brincadeira:“Cara, mas o que você faz pra ele te tra-tar tão bem? É porque você é índio?”,fala, rindo, o acadêmico. “Eu acredito quenão, porque estou aqui como qualquer

outro, tudo que ele (o professor) pedepara sala é obrigatório apresentar, entãoeu faço. Eu sei que é brincadeira, então vejoque é uma aceitação. Mas não respondo portodos. Sempre existe um obstáculo pra umou pra outro”, completa.

Luiz Henrique discorda. Antes de virpara Campo Grande, o acadêmico pas-sou por outra instituição na cidade de Dou-rados, e diz que sofreu preconceito dosalunos e até mesmo dos professores. “Por-que existe o sistema de cotas, parece quehá uma maior discriminação por parte dosnão índios. A sala fica bem dividida, aténas questões de trabalho em grupo, nasrodas de conversa fica bem marcado isso.E na minha área, de Direito, eu acho que opreconceito ainda é muito maior, até porparte dos professores, às vezes mesmo quepor despreparo”, afirma o indígena.

CotasA única universidade no estado que

conta com sistema de cotas para índios éa UEMS, que disponibiliza cerca de 700vagas para ingresso através do Sisu(Sistema de Seleção Unificada), sendo que235 são para alunos indígenas. Para utilizaro sistema de cotas é necessária a apresen-tação da cédula de identidade indígena,expedida pela Funai (Fundação Nacionaldo Índio).

Para a indígena Edicléia José, o siste-ma de cotas ajuda muitos índios que mo-ram em Campo Grande e não conseguementrar numa universidade federal. “Desdeque terminei o terceiro ano, queria estudarenfermagem. Tentei na federal e nãoconsegui, então fiz um ano de cursinho.Daí fiquei sabendo que existia bolsa praindígenas na UCDB”. A estudante moracom os avós e em casa a língua falada é aterena, “a gente vive a cultura dentro danossa casa”.

O sistema de bolsas oferecido aosalunos ajuda a mantê-los na universidade.Mas, mesmo com 50% de desconto namensalidade, é difícil para alguns arcaremcom as despesas do curso. A Funai tambémoferecia um auxílio de 25%, mas foisuspenso. “A Funai não dá mais bolsa,disseram que o dinheiro que vem de Brasílianão vem mais, que não há recursosfinanceiros. E agora eles querem mandaros acadêmicos pra UFSCAR (Universi-dade de São Carlos) em São Paulo. Só quepra se manter lá como que fica?” questio-na Edicléia.

[email protected]@gmail.com

Lançamento do Projeto Rede de Saberes 2 na UF Grande Dourados

Foto

: Car

olin

e M

aldo

nado

- N

EPPI

Educação

“Eles têm outraslógicas de produção

de conhecimentoque são igualmente

relevantes”

(Prof. AntÙnio Brand)

Car

olin

e M

aldo

nado

-NEP

PI

Page 9: Projetil 69

9 - Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo da UFMS

“Sabe como que o branco lida como índio? Com uma tremenda in-com-pe-tên-cia! Não somos capazes de ajudá-los, não entendemos nada sobre eles”,é a opinião de Jair Damasceno, prepa-rador de cena e diretor de movimentodo grupo Funk-se no espetáculo “Frágilou o sentido da ruptura”.

O espetáculo tinha como intençãoinicial abordar os casos de suicídios dosKaiowá, mas acabou falando sobre todaa juventude indígena, seus sonhos e comoquerem ser iguais aos não-índios. Du-rante as visitas às aldeias constataram oquanto os indígenas são alegres e sorri-dentes. Então, ao invés de falar somentesobre tristezas, o Funk-se optou pormostrar as possibilidades que os jovensindígenas buscam.

O grupo estudou durante seis mesesos costumes, anseios e conflitos dos índiosKaiowá. O espetáculo é um show de hip-hop com toques de arte contemporânea.Cada parte do espetáculo tem como ob-jetivo revelar várias facetas do mundo in-dígena com o olhar do coreógrafo. O tra-balho conta uma história através dosmovimentos, do cenário e da música.

Diferentemente dos demais espetáculosde dança de rua, além da batida eletrônica,a trilha sonora inclui sons regionais, como apolca paraguaia e falas indígenas.

Os dançarinos utilizaram com águaterra da aldeia que visitaram misturadapara se pintar. Uma forma de marcar oaprendizado proporcionado pelo con-tato direto e marcar a presença física dosíndios em cena. Além disso, o gestual ca-racterístico indígena funde-se o tempotodo com os movimentos do hip hop.Jair contou que os gestos que o grupoaprendeu com os Kaiowá foram respei-tados e que os dançarinos não tentaramimitar. “Nós queríamos fazer algumacoisa que fosse apenas nosso olhar”, ex-plica o preparador.

Edson Clair, diretor e coreógra-

fo do Funk-se, disse que escolheu atemática indígena porque é muito co-mum grupos de street dance basearemsuas pesquisas no que acontece no mer-cado internacional. Para ele, as pessoasolham muito para o que está lá fora e seesquecem de voltar os olhos para o queestá bem ao nosso lado, de dar atençãopara aquilo que é da nossa terra.

Os Kaiowá ainda não tiveram aoportunidade de assistir ao espetáculo. OFunk-se chegou a se apresentar em Dou-rados, tendo como convidados especiaisos índios que participaram dos estudosdo grupo, mas por problemas de trans-porte não conseguiram sair da aldeia. Pelomenos foi o que afirmou a prefeitura deDourados. Jair Damasceno acredita quehá problemas políticos envolvidos, “naúltima hora disseram que o ônibus que-brou, e ficou por isso, mas eu acho quenão foi isso, eu acho que esse ônibus nãosaiu de lugar nenhum”, afirma.

Após convivência nas aldeias deMS, Jair concluiu que os não-índios agemde maneira opressora com os indígenas.“Nós temos o poder de matá-los. Elesse suicidam porque eles não conseguemcompetir. E cada vez mais gostaríamosque eles pensassem como nós, aceitas-sem nossas leis, aceitassem nossa educa-ção, o que pensamos como religião. Nãorespeitamos eles. É tudo equivocado. AFunai é equivocada, o governo é equi-vocado, não há nada que sirva absoluta-mente pra eles.”

Artes plásticas e protestoA cantora e artista plástica sul-mato-

grossense Miska Thomé também retra-tou nossos ancestrais em muitas de suasobras. Formada em Comunicação Vi-sual pela PUC do RJ, quis fazer seu tra-balho de conclusão de curso vinculadoa alguma questão relativa a sua terra na-tal. Como o descaso com a populaçãoindígena no MS é enorme, Miska optoupor trabalhar com esse tema para cha-mar a atenção da sociedade.

Ainda pequena, Miska visitava com

freqüência a região sul do estado e fica-va indignada ao ver índios pedindo co-mida nas ruas e sendo enxotados pelosbrancos. “Pensando nisso resolvi enten-der qual é a visão que a gente tem, e porque índio bebe, porque vai pedir comi-da, o que está faltando, por que eles nãovivem na aldeia, por que eles não plan-tam e não caçam”, relata a artista.

Na época, década de 80, não conse-

guiu autorização da Funai para visitar asaldeias e fazer estudo de campo. Apeloupara teses de mestrado e livros. Percebeuque os ilustradores retratavam um índioeuropeizado, branco, índias com seiosfartos e resistentes, então achou melhoranalisar fotografias de jornais e cedidaspelos museus do índio do RJ e de MSpara poder pintar ou desenhar seus qua-dros. “Me apaixonei definitivamente

O índio da obra de arte é bem diferente daquele do noticiário.Faz diferença algo fundamental no tratamento da temática indígena: a convivência

Vivenciar para compreenderEvelin AraujoThaysa Freitas

No espetáculo do Funk-se, alegrias e possibilidades dos jovens indígenas

Arte

Thay

sa F

reita

s

Page 10: Projetil 69

Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo da UFMS - 10

e resolvi dar um grito de protesto. Eupodia fazer alguma coisa por eles pelomenos chamando a atenção da socieda-de para a beleza das suas característicasfísicas, que eu particularmente acho mui-to bonitas, e para a cultura, que é total-mente diferente”.

Miska acredita que temos a obriga-ção de entender a cultura indígena comouma cultura diferente, nem maior nemmenor que as outras. Sabe que hoje eles sãoinfluenciados pela cultura dos não-índios eentende que se algumas tribos aprisionamanimais silvestres, por exemplo, para ven-der a preço de dólar, é para que possamsobreviver. Mas continua admirando oamor que várias tribos possuem pela terra.

Ao longo desses mais de 20 anosde trabalho, Miska notou que existemalguns desenhos que fazem parte de to-das as culturas, formas da natureza queencontramos não só na cultura indígena.“Eu uso, por exemplo, pinturas de ros-to Kadiwéu. O mesmo elemento vourepetindo e formando uma mandala.Alguns desses trabalhos, no final, pare-cem um bordado ou crochê”, explicaMiska Thomé. Talvez isso signifique quediferentes culturas estão mais entrelaçadasdo que imaginamos, e que um traço apa-rentemente indígena pode estar dentrode qualquer cultura humana.

O índio pelo índioOutra forma de arte que contribui

para que o não-índio compreenda o ín-dio dentro do contexto cultural de cadaaldeia é a fotografia. Elis Regina e VâniaJucá são fotógrafas e participaram doAva Marandu em MS, projeto nacional

que desenvolveu atividades voltadas paraas questões dos direitos humanos dospovos Guarani. Vânia e Elis, juntamentecom Leonardo Prado, foram as respon-sáveis por uma oficina destinada a ensi-nar técnicas aos indígenas de sete aldeiasde MS para que pudessem se expressaratravés da fotografia. Cada aluno deve-ria registrar e documentar a cultura desua aldeia como gostaria de ser visto.

Elis Regina deixou claro que não foio olhar delas que sobressaiu no produtofinal. “Não impusemos olhar nenhum,falamos de fotografia de uma forma ge-ral, sem querer colocar nenhum estilo paraque eles se expressassem”, explica a fotó-grafa. Os indígenas das aldeias visitadasreceberam instruções técnicas, mas nadade simbologia estética. Nos primeirosexercícios, as duas professoras estavampor perto, mas para a produção do en-saio eles trabalharam sozinhos. Alguns in-dígenas saíram no início da tarde e só vol-taram à noite. Elis explica que a idéia eraque eles fotografassem o que eles acha-vam importante na própria cultura. Paramostrar para as pessoas quem eles são. Emesmo não recebendo nenhuma infor-mação em termos de estética, os indíge-nas das aldeias mais próximas às cidadesse apresentaram com muito da nossa cul-tura impregnada à deles. “Foi até engra-çado. Eles produziram um trabalho re-fletindo o que eles vêem da gente”, lem-bra Vânia.

Vânia e Elis começaram a ter con-tato com os indígenas há três anos, noprojeto Vídeo Índio Brasil, que visamostrar o cotidiano indígena através defilmes produzidos por eles mesmos e por

não-índios. Com toda essa convivência,a percepção que elas têm acerca das etnias,das mais variadas aldeias, é diferente doque comumente pensa a sociedade. ElisRegina sabe que o índio é geralmenteapontado como preguiçoso por quemdesconhece sua cultura, mas não concor-da nem um pouco com essa ideia. Vâniapensa de maneira parecida, e ela é bemclara quando afirma que acha essa ideiaridícula, “exatamente porque o valor de-les é outro”, explica. Elis complementa,“na verdade é outra lógica. Vivemos emum mundo absolutamente capitalista econsumista onde você tem que produzirpra acumular e ostentar. A lógica delesnão é essa. O que importa pra eles é terterra onde eles possam produzir paracomer. Eles não querem lucro. Isso foimuito importante percebermos lá”.

Durante os trabalhos com o AvaMarandu, as duas profissionais estiveramem Dourados e algo chamou a atenção:o preconceito gritante que os índios so-frem nas ruas. As pessoas os vêem comoum ser inferior, um bandido. Em Cam-po Grande há situações parecidas. VâniaJucá contou que passou um trabalho depesquisa a seus alunos para que analisas-

sem e discutissem algumas fotografiasde indígenas. Um desses alunos foi ca-tegórico ao afirmar “eu não vou, euodeio índio”. “A gente vive isso na pele”afirma Elis ao relatar as recriminaçõesque sofreu, inclusive, de amigos. “O quevocê está fazendo com índio? Vai fo-tografar gente da sociedade” é um dosabsurdos que a fotógrafa já ouviu.

Quem tem esse tipo de pensamen-to não muda de opinião da noite parao dia, por isso o trabalho que elas vêmdesenvolvendo é importante. O AvaMarandu leva suas produções para asescolas, trabalha e discute com crian-ças, a fim de desconstruir, desde a in-fância, a imagem negativa que nossasociedade tem do índio. Mudar o mun-do ou resolver todos os problemasnunca foi a intenção. Como Elis Regi-na explica, elas querem “tentar fazercom que no futuro as crianças cresçamcom uma visão menos distorcida dequem é o indígena. É uma sementinhaque queremos plantar. É o mínimo quepodemos fazer”.

[email protected]@gmal.com

Miska: a partir da beleza física, a compreensão de uma cultura diferente

Nas oficinas do Ava Maranducoordenadas por Vânia Jucá (foto) e Elis Regina, os participantes aprenderam as

técnicas básicas e ficaram com a câmera um dia todo para fotografarem sua aldeia o que achavam importante na própria cultura, para mostrar

a outras pessoas quem eles são.

VEJA NO ENCARTE FOTOGRÁFICO AO LADO FOTOS QUE OS ÍNDIOS ESCOLHERAMCOMO DAS MAIS REPRESENTATIVAS ENTRE AS QUE ELES MESMOS FIZERAM.

Arte

Elis

Reg

ina

Page 11: Projetil 69
Page 12: Projetil 69
Page 13: Projetil 69
Page 14: Projetil 69
Page 15: Projetil 69

Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo da UFMS - 15

Conflito entre índios terena e Polícia Militar na aldeia Cachoeirinha, em Miranda, em 17 de maio deste ano.

CrÈ

dito

: Cam

apu„

New

s

eu trabalhar. Mas eu gosto, vou traba-lhar enquanto puder”.

Mesmo vivendo entre o concreto eo asfalto há tempos, ela tenta se manterdistante dos tentáculos da cultura dohomem branco. Ela pode ter algunshábitos urbanos, como pegar ônibus,andar de carro, ir à padaria. Afinal, é umaíndia morando na cidade. Mas fazquestão de deixar bem claro que é índiade verdade, que é diferente. Não deixade lado suas raízes, sua essência. Tentamantê-las vivas, enquanto sua vida durar.Além do artesanato indígena e das frutasvindas da aldeia, dona Élida costumafazer a dança típica terena sempre quelhe convém. Não fala português à toa.Somente quando é preciso. No ônibus,as conversas com as outras índias sãoapenas em terena. Não se senteenvergonhada em expor sua cultura,sotaque, costumes, seu jeito. Tratou deensinar seu idioma aos filhos. E aindafoi além. Na casa dela também só se falana sua língua nativa, o terena.

Atualmente, a aldeia oferecemelhores condições. As crianças têm àsua disposição seis colégios, todos commerenda, aula de computação eprofessores da própria etnia. Ônibus le-

vam estudantes de maior grau paraMiranda. Há carros, motos. No caso deenfermidades, existe médico e farmá-cia. “Se, antigamente, a aldeia fosse as-sim, eu jamais sairia”.

A ligação com o lugar de origem éforte. O mato, a terra, o lago, os bichos,a plantação. A simplicidade da aldeia éalgo que a atrai. Ao mesmo tempo, elaparece não querer deixar a sua vida indí-gena na cidade,onde se tem umaboa estrutura e sedá a continuida-de de suas cren-dices e tradições.Entretanto, tudoisso remonta osentimento deuma possível vol-ta. Somente nofim da vida.“Uma sombrabonita, um açudegrande... Você senta lá, lava roupa à von-tade... Aqui não temos isso. Lá não tempreocupação com nada, não paga con-ta. No dia que eu morrer eu vou pra lá.Eu tenho a minha terra querida, é praonde eu vou”. Caso dona Élida voltassea morar na sua aldeia, ela encontraria umambiente de incertezas e lutas na justiça.

Fazendeiro sem-terraA terra querida a que dona Élida

quer voltar é a morada indígena da suainfância, onde havia espaço de sobrapara as pessoas, para os bichos e tudomais. Mas essa terra, como ela lembraque era, já não existe mais.

Uma mudança radical, que elamesma presenciou, aconteceu cerca de30 anos atrás, quando um grande fa-zendeiro vizinho decidiu se apossartambém de uma parte das terras da

aldeia. Era umhomem pode-roso, que haviasido governa-dor do MatoGrosso de1966 a 1971 ede MatoGrosso do Sulnos períodosde 1980 a 1983e 1991 a 1995.Há três déca-das, o ex-go-

vernador obteve na justiça o direito deposse sobre os 1,9 mil hectares da Re-serva Terena Cachoeirinha que, pelademarcação ocorrida no ano de 1904,abrangia uma área de 2.660 hectares.Mas os índios terena nunca se confor-maram com essa expropriação.

Em 2008, os indígenas haviam ten-tado reaver os 1,9 mil hecates, que fo-ram aderidos à Fazenda Petrópolis,doex-governador Pedro Pedrossian. Ti-

[email protected][email protected]

veram de abandonar o local, devido àdecisão judicial.

No dia 17 de maio deste ano, apolícia expulsou cerca de mil índiosterena, após outra tentativa de reapro-priação da terra que eles alegam ser de-les. A força policial, disposta em 60 fe-derais e 70 militares, usou cavalaria, cães,bombas de efeito moral, balas de bor-racha e escudos. Os índios terena, inclu-sive um sobrinho de dona Élida, foramagredidos e expulsos da região. A or-dem de despejo havia sido determinadapor meio de liminar concedida peloministro do Supremo Tribunal Federal(STF), Gilmar Mendes.

Dona Élida não se contenta com asituação de seu povo e seus parentes queestão na Aldeia, que sofreram agressõesapenas por querer de volta uma terra quepertencia aos seus ancestrais. “Metade dafazenda do Pedro Pedrossian é nossa.Mandaram o trator acabar com tudo.Virou as casinhas com o trator. Ele foi láe quebrou tudo. Tomou conta”.

O caso está na justiça. Dona Élidasabe que um possível desfecho feliz aindaestá longe. Por isso ela deposita esperançasde que seus netos consigam, no futuro,reconquistar as terras que pertenceram aosíndios terena no século passado.

“Metade da fazenda doPedrossian é nossa.Mandaram o trator

acabar com tudo. Virou as casinhas com o trator.Ele foi lá e quebrou tudo.

Tomou conta”

Perfil

Page 16: Projetil 69

16 - Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo da UFMS Perfil

Saudade da aldeiaNa cidade há vinte anos, Elida pensava a língua, crenças e costumes terena.

Mas não volta para sua aldeia, que hoje te outro dono.

Na feira do Mercadão, um território terena em Campo Grande.

No centro de Campo Grande, háuma feira indígena localizada em frenteao Mercado Municipal, na Praça OshiroTakemori. A feira possui três quiosquesem formato de oca, onde sãocomercializadas iguarias como raízes me-dicinais, palmito, algumas variedades depimenta, milho verde, ervas, mel e peçasde artesanato. A origem dos produtos sãoas aldeias dos índios terena. O espaço éocupado por muitas mulheres, que se re-vezam na organização e venda dos pro-dutos. Entre elas, está dona Élida, umasenhora de 55 anos que trabalha na feirahá mais de 20 e atualmente mora na Ca-pital. Ela nasceu na Aldeia Cachoeirinha,que fica no município de Miranda.

A infância de dona Élida na aldeiaindígena não foi fácil. O cotidiano de umamenina da tribo se divide entre ajudar nastarefas, fazer a comida, ir para o meio domato em busca de frutas, comparecer ao

colégio. Correr para a casa da mamãepara tomar uma garapa quente e comermandioca assada, porque não há meren-da na escola. Caminhar quilômetros atrásde água, carregar um latão de 18 litros nacabeça. Usar a água para cozinhar e lavara louça. O trabalho se inicia cedo. Aos 13anos de idade, ela começou a trabalharcom artesanato, juntamente com sua mãee sua cunhada. Casou-se. Enquanto seumarido plantava milho, mandioca, feijãoe arroz, as mulheres ficavam incumbidasde colher a produção.

Morar na aldeia tem suas adversida-des. Principalmente na época que donaÉlida viveu lá. Não havia posto de saú-de, farmácia, nem remédio. Colégio, ape-nas um. A água, salobra. Assim comoacontece com muitos indígenas, que sãoobrigados a deixar a sua terra, a vida dedona Élida passava por um divisor deáguas. De um dia a dia extrativista e desubsistência, ela migrava para o desafiode viver num ambiente totalmente novoe desconhecido: a cidade. O motivo da

mudança era a saúde debilitada do espo-so, que teve de vir para a Capital em bus-ca de tratamento apropriado.

Após se curar na Casa do Índio, querecebe apoio da Funai, o esposo de donaÉlida arranjou emprego como seguran-ça de agência bancária. Ela, na procurado que fazer para se sustentar, conheceualgumas senhoras que ficavam sentadasem caixotes, na frente do Mercadão. Bas-tou algum tempo de prosa para donaÉlida inteirar-se do trabalho realizado poraquele grupo de mulheres. Mal ela sabiaque este seria seu ofício pelos próximos20 anos. Neste trabalho cooperativo, asfrutas como manga, guavira e jatobá vêmdireto da aldeia Cachoeirinha. São lim-pas, sem o uso de nenhum tipo de quí-mica ou agrotóxico. Na presidência dafeira por cinco anos, ela trabalhou commais de 300 mulheres. A maioria já fale-ceu, mas ela segue firme. Criou seus fi-lhos na feira, conseguiu sua própria casana cidade. “Eu já to com idade, tenho 55anos. Não era mais para

Eduardo LyvioJulio Carvalho

Janiele é uma garota muito tímida.Tem 13 anos, é casada com um rapazde 15 e está grávida de cinco meses.Nenhum dos dois estuda mais. O ma-rido trabalha na usina de álcool.

A agente indígena de saúde Mariade Fátima, que faz o acompanhamen-to de Janiele, conta que a orientavasobre como prevenir a gravidez. Amenina tomou uma injeçãocontraceptiva, mas se esqueceu da dataem que deveria repetir a dose. O re-sultado foi uma gravidez não planeja-da. Maria atribui o esquecimento àpouca idade da menina.

Janiele mora com a família de seumarido em uma casa de alvenaria muitopequena, na aldeia indígena Bororó, deDourados. Ela diz que não estuda e nãopretende voltar a estudar depois que oneném nascer. Explicou que os colegasvão caçoar dela por causa do bebê, entãoprefere ficar em casa. Faz o pré-natalno posto de atendimento da Funasa, atrês quilômetros de sua casa, e tem queir a pé na estrada de terra vermelha. Suasogra já a orientou sobre como seráquando o neném nascer, mas Janiele nãosoube explicar como são os primeiroscuidados com o filho.

A agente de saúde conta que anti-gamente, na cultura dos Guarani eKaiowá, logo após o nascimento dobebê, mãe e filho permaneciam qua-renta dias de repouso. A mãe não po-dia sair de casa e não podia comer car-ne de porco. Tomava canja de galinha,comia milho saboró socado e alimen-tos nativos. O bebê só mamava no pei-to, e algumas crianças até aos sete anosde idade. Hoje, a maioria das mães co-meça a dar comida aos bebês com trêsou quatro meses de idade e, mesmodando o leite materno, também dão oleite artificial para complementar a ali-mentação. E dificilmente cumprem oresguardo.

Maria de Fátima orienta Janiele afazer o acompanhamento regular da gra-videz com um médico. E já está tendoresultados: “Ela não falta às consultas”.

Apesar de algumas famílias indíge-nas resistirem em admitir a gravidez pre-coce das jovens, o que dificulta a realiza-ção do pré-natal, o atendimento dosagentes de saúde tem contribuído paraa garantia dos direitos tanto da mãe ado-lescente quanto do bebê.

[email protected]@gmail.com

Jeffe

rson

Fra

nça

Page 17: Projetil 69

Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo da UFMS - 17

Kamila JaraThaysa Freitas

A aldeia indígena Bororó, localizadaa cerca de 5 km da cidade de Dourados,no interior de Mato Grosso do Sul, estálonge de oferecer boas condições devida para os índios da etnia Guarani-Kaiowá. Além das dificuldades que aaldeia enfrenta com álcool, drogas eviolência, há ainda o que vem secaracterizando como mais um pro-blema: a gravidez precoce. As meninasque engravidam cedo, casadas ou não,são vítimas de discriminação pormembros da própria aldeia. Soma-se aisso a falta de alimentação adequada,maus tratos ou abandono das crianças eo resultado é, no mínimo, uma situaçãodelicada que merece maior atenção.

Na tradição indígena dos Guarani-Kaiowá, a mulher já pode se casar logoapós a primeira menstruação. Segundoo Kaiowá e enfermeiro Silvio Ortiz,quando a menina engravida muito cedo,sendo casada, não é vista como proble-ma para a comunidade. Ainda assim,existe rejeição por parte de algumasmulheres mais velhas da aldeia quandojulgam a jovem muito nova para casar.Uma menina que engravida aos 12 ou13 anos, por exemplo, fica muitoconfusa e sozinha. Já houve caso,inclusive, em que a jovem se suicidou,tomando veneno, por vergonha de estargrávida.

Se a menina não é casada e engra-vida, a situação é mais grave. A famílianão aceita a gravidez e tenta esconderda comunidade. “Alguns pais até ex-pulsam a filha de casa”, diz Silvio. De-pois que a notícia da gravidez se espalhana aldeia, a jovem sofre o repúdio dacomunidade. Esse comportamentomoralista também sofre forte influênciada igreja Deus é Amor, que chega a termais de 30 capelas na aldeia. A agenteindígena de saúde Geise Rodriques dizque quando uma família freqüenta essaigreja, a orientação sobre a prevençãoda gravidez precoce fica mais difícil. A

religião, apesar de não admitir relaçõessexuais antes do casamento, não permiteo uso de métodos contraceptivos,mesmo após a união.

Além disso, a grávida solteira tem queenfrentar uma situação difícil com o paida criança, que muitas vezes não querassumir o filho. Mesmo quando a meninaé casada, Geise diz que geralmente o rapazé influenciado por sua própria família alargar a esposa. “O pai nega o filho,mesmo que o neném seja a cara dele enão tenha nem como negar”.

Os agentes contam que antigamenteos homens tinham muito cuidado comas esposas quando descobriam a gravidez.A parteira ensinava o marido a fazer umpreparo de ervas para passar na barrigada mulher e ele se dedicava a cuidar demãe e filho. A futura mamãe não ia maispara a roça, não fazia nenhum esforço eapós o nascimento do bebê era respeitadoo resguardo de quarenta dias.

Algumas agentes indígenas relatamque hoje é comum a mãe retornar à vidasexual com apenas 20 dias após o parto.O marido, hoje em dia, não tem mais asmesmas responsabilidades de pai. Àsvezes ele se envolve com outra mulher eabandona a esposa e o filho. Silvio contaque em muitos casos conseguem garantirque os pais paguem pensão para os filhos.“O exame de DNA nunca foi feito naaldeia e quando há uma divergênciamuito grande, na qual o homem nega apaternidade, as lideranças se mobilizame o pai acaba assumindo o filho”, explicao enfermeiro.

Geise diz que algumas mães ori-entam as filhas que já casaram a procu-rar o posto de saúde e a prevenir a gra-videz a fim de esperar o marido ter es-tabilidade financeira para sustentar a fa-mília. Outro fator que dificulta bastan-te a prevenção à gravidez precoce é otipo de anticoncepcional utilizado. Ide-al para as jovens indígenas é a injeçãocontraceptiva que deve ser tomada umavez ao mês. Porém, a Funasa (Funda-ção Nacional de Saúde) só distribuianticoncepcionais em comprimidos,

que devem ser tomados diariamente. Asmeninas se esquecem de tomar regular-mente e acabam engravidando. “Elasentendem tudo errado, é difícil lidarcom isso. Principalmente as que não vãoà escola, aí não entendem mesmo”, la-menta Geise.

Silvio acrescenta que as mãesesperam que as filhas busquem orien-tação sobre a sexualidade em casa oucom as agentes, mas elas aprendem deforma errada fora de casa, ou mesmopela televisão. Os jovens são muitotímidos e têm vergonha de buscar opreservativo que é distribuído nos postosda Funasa. Normalmente, as agentes desaúde, durante suas visitas, fazem adistribuição do preservativo para osjovens. Tudo escondido da família.

Como se não bastassem as difi-culdades para prevenir a gravidezprecoce, o abandono e preconceito queas mães sofrem após o nascimento dobebê, alimentar essa criança não será umatarefa fácil. Silvio reclama que agora nãohá mais como buscar o alimento natu-

ralmente, pelo plantio, caça ou pesca, porexemplo. Afirma que “quando a ado-lescente tem uma criança, mesmo nocasamento, ela não vai ter aquela garan-tia de que a criança vai ser bem alimen-tada, e aí depende da assistência do go-verno pra poder alimentar a criança”.

Segundo o antropólogo LeviPereira, entre os Kaiowá e Guarani afiliação é bastante dependente docasamento. Ele explica que “a separaçãotende a diluir ou neutralizar o vínculo defiliação”. Em nossa cultura falamos emex-esposo(a), mas a relação com osfilhos é indissolúvel e eterna. No sistemaGuarani-Kaiowá a relação de parentescoentre duas pessoas pode ser descons-truída ou colocada em suspenso pelaseparação geográfica ou vinculação aoutro grupo. No caso de divórcio, a avómaterna fica responsável pelo neto. Masnem sempre ela tem boas condições desaúde para cuidar do bebê. Essa falta deatenção adequada, somada à máalimentação, já caracterizaria situação demaus tratos à criança.

Comportamento

Ben

Hur

Ave

lino

O apoio da mãe é muitas vezes a única esperança da menina grávida

Meninas que engravidam cedo enfrentampreconceito em aldeias indígenas

Mães, porém rejeitadas

Page 18: Projetil 69

18 - Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo da UFMS

Genocídio é definido como “crimecontra a humanidade, com o intuito dedestruir, total ou parcialmente grupo na-cional, étnico, racial ou religioso”. Exem-plo: extermínio de milhões de judeus nascâmaras de gás durante a Segunda Guer-ra Mundial. O exemplo citado é um casoextremo de genocídio, mas existem ou-tros mais sutis. O que dizer sobre o queaconteceu com os aborígenes australianosque foram praticamente dizimados aolongo da história e permanecem segre-gados da sociedade branca até hoje? Cal-cula-se que na chegada dos ingleses àAustrália em 1770 eles eram em torno de300 mil, chegaram a 40 mil cem anosdepois e representam hoje 2% da popu-lação australiana.

No Brasil, a estimativa é de que havia cincomilhões de índios na época do descobrimento em1500, e hoje essa população gira em torno de 400 mil.Embora exista há muito tempo uma lei específicaantigenocídio (lei 2.889/56), só recentemente alguémfoi condenado com base nela. Em agosto de 2006, oSupremo Tribunal Federal (STF) manteve acondenação de quatro garimpeiros acusados degenocídio contra índios Yanomami, em Haximu,Roraima, no episódio conhecido como “Massacre deHaximu”.Na época, o procurador da FundaçãoNacional do Índio (Funai), Luiz Fernando Villares, in-formou que “pela primeira vez houve uma condena-ção por esse tipo de crime no país”.

Na ocasião, o assessor jurídico do ConselhoIndigenista Missionário (Cimi), Paulo Machado Guima-rães, disse: “A decisão do Supremo é importante por-que demonstrou a diferença entre os crimes de homicí-dio e genocídio, pois este último agride o princípio dadiversidade que, no caso dos índios, é a étnica”. Eleavalia que a forma como a Justiça tratou o caso Haximu,em 2006, serve como precedente para situações seme-lhantes de agressão aos indígenas e violação dos seusdireitos. E que “em Mato Grosso do Sul está havendopráticas de genocídio. Estamos analisando a reprodu-ção das ações de Haximu para aquele Estado”.

A julgar pelo que acontece nos dias de hoje comos índios da etnia Guarani-Kaiowá em Mato Grossodo Sul, cuja população gira em torno de 30 mil índiospara um total de 67 mil vivendo em 1,7% do territóriosul-mato-grossense, as colocações de Guimarães, em

Hermano Melo

Genocídio guarani

[email protected]

agosto de 2006, soam perfeitamente verdadeiras. Nestetrecho da carta que a senadora Marina Silva enviou aopresidente Lula em fevereiro deste ano, ela se refereao “grau extremo da crise humanitária em que agonizao povo Guarani-Kaiowá”: (...) ”Em situações-limite,grupos familiares extensos são forçados a buscar es-paço nos seus Tekoha (territórios tradicionais) de queseus pais foram banidos, no que são violentamenterechaçados pelos recentes “donos da terra” – aindahoje, com o viciado apoio das estruturas de governoem todos os níveis. Resultam disso, os já 21 precáriosacampamentos Kaiowá, entre as estradas e a cerca dasimensas fazendas ao sul do Mato Grosso do Sul”.

Em reportagem na edição especial da revista “Ca-ros Amigos” de outubro/2010, intitulada “Ogenocídio surreal dos Guarani-Kaiowá”, que trata “daluta do maior grupo indígena do país para escapar doextermínio”, sob o título “Na beira da estrada”, estáescrito: “Entre os tantos acampamentos de sem-terrana rodovia que liga Campo Grande a Dourados, des-tacam-se os barracos da comunidade Kaiowá de La-ranjeira Nhanderu. Despejados em setembro de 2009de uma fazenda que ocuparam em 2008 em Rio Bri-lhante (MS), reivindicando-a como terra tradicional,as cerca de 40 famílias da comunidade agora driblamautomóveis em alta velocidade para tentar sobreviveraté que suas terras sejam identificadas e demarcadas”.

Devido ao estado de penúria em que vive grandeparte dos Guarani-Kaiowá no MS, ameaçando à suaprópria sobrevivência como etnia, e levando em consi-deração as denúncias feitas por antropólogos, historia-

dores (ver matéria “Estratégia de domina-ção”), existem fortes indícios de que esse povoesteja sofrendo um tipo de genocídio lento eprogressivo. Conforme afirmou o ministroPaulo Vanuchi, na abertura do Encontro Na-cional da 6ª Câmara de Coordenação e Revi-são do Ministério Público Federal (MPF), quese realizou de 22 a 26 de novembro últimoem Campo Grande (MS), e tratou, dentreoutros temas, dos impasses no processo dedemarcação das áreas indígenas, “o proble-ma fundiário é o ‘nó górdio’ da questãoGuarani no MS”.

Mas as terras que estão sendo demarcadas,e que conforme laudos antropológicos per-tencem aos Guarani-Kaiowá, estão localizadasna região sul do estado, em área muito rica ondese faz a criação de bovinos, o cultivo da soja emais recentemente o plantio da cana-de-açú-car, e que o professor Tito Carlos Machado

de Oliveira denomina de “filé-mignon da atividade eco-nômica do estado”. Essas terras são ocupadas por fa-zendeiros que foram levados pra lá no início do séculopassado pelo então presidente Getulio Vargas e que são,portanto, portadores de títulos da terra de “boa fé” for-necidos pelo Governo Federal. Para desocuparem a pro-priedade eles exigem do governo federal o pagamentointegral da terra nua (valor da terra incluídas as benfeitorias),o que só será possível fazer com a aprovação da emendaconstitucional, PEC No. 3/04, ora em tramitação no Con-gresso Nacional. Há também uma história de ódio,preconceito e violência contra os povos indígenas noestado, o que dificulta também a demarcação definitivade suas terras em Mato Grosso do Sul.

Diante disso, a saída para concluir a demarcaçãodas terras indígenas no estado – conforme pensamentoquase uníssono das autoridades presentes ao Encontrodo MPF,em Campo Grande, MS, inclusive do atualpresidente da Funai, Marcio Meira, é: urgente aprovaçãoda PEC No3/04 no Congresso Nacional; compra deterra de proprietários que possuam títulos de boa fé,pagando pelo valor da terra nua. Essas medidas sãoessenciais para assentar os Guarani-Kaiowá em terrascontínuas, não fragmentadas, conforme parecer do pró-prio STF, quando do julgamento no ano passado dahomologação da Reserva Raposa do Sol, em Roraima.Dessa forma, talvez seja possível estancar em definitivoo genocídio guarani que se delineia em terras sul-mato-grossenses no futuro próximo.

Artigo

Luiz Vasconcelos

Page 19: Projetil 69

Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo da UFMS - 19

Qual impacto teve a guerra doParaguai nos povos indígenas de MS?

Muitos estudos deste período tra-tam de uma grande mágoa dos Terenaporque a guerra trouxe como conseqü-ência para eles a perda total da terra.Então eles caracterizam este período depós-guerra como um período de escra-vidão. O que foi que aconteceu? Antesda guerra, havia uma convivênciabastante respeitosa entre os não índios eos índios. Depois da guerra isso se alteraradicalmente. Primeiro porque houveuma estratégia de ocupação da fronteirapor ex-combatentes, inclusive houveprogramas de incentivo para que aspessoas se fixem nesta região, ignoran-do a presença dos índios. Os índios setornam invisíveis e são reduzidos a mãode obra mais ou menos escrava dos no-vos donos que chegam.

Qual o papel de Rondon naquestão indígena ? E como foi criadoo Serviço de Proteção ao Índio?

Rondon tem uma forte ligaçãocom os Terena. Ele teve um papel im-portante para tentar reverter a situaçãode escravidão dos Terena no pós-guer-ra. Ele interfere e consegue garantir pe-daços pequenos de terras que foram uma

Danilo NeryHermano Melo

garantia importante.O SPI (Serviço de

Proteção ao índio) foi cri-ado no bojo desses con-flitos gerados pela expan-são territorial. O SPI é umórgão do governo que ti-nha o objetivo de fazercom que os povos indí-genas se integrassem noprocesso de desenvolvi-

mento. A partir dessa visão, sãodemarcadas áreas pequenas cuja função épermitir que os índios sejam preparadospara se transformarem em pequenosprodutores e trabalhadores rurais.

Qual o objetivo do SPI com estapolítica?

O SPI quando começa a atuar naregião sul de MS tinha clareza de que ha-via muitos guarani. No entanto, o SPI de-marca, a partir de 1915, a reserva deAmambaí com 2,6 mil hectares. Depoisvem Dourados e Caarapó com 3,6 milhectares cada. O que levou o SPI a de-marcar pedaços tão pequenos de terras epróximos dos núcleos urbanos? A res-posta encontramos nos objetivos princi-pais do SPI, o objetivo não é proteger asculturas indígenas. O objetivo é que o ín-dio se transforme da forma mais rápidapossível para a categoria de trabalhadorrural. Por isso que no início o nome doSPI era mais amplo (Serviço de Proteçãoaos Índios e Localização de Trabalhado-res Nacionais). Este ponto é fundamen-tal para a gente entender os problemasde hoje. As escolas tiveram um papelimportante neste contexto, pois as cri-anças indígenas começaram a aprendera ler e falar em português. Era fortemen-te reprimida qualquer prática culturalporque era considerada sinal de atraso.Enfim, foi criada toda uma estratégia dedominação.

Existe hoje o argumento de queos colonos possuem os títulos da ter-ra, este argumento é correto?

Este problema permite compreen-der os conflitos, pois o SPI, ao demarcaresses pequenos pedaços, afirmou que orestante não era terra indígena. E orestante podia ser legalmente apossadopor terceiros. Por isso, este conflito atualé muito difícil porque a maior parte dostítulos existentes são de boa-fé, pois foramconcedidos pelo próprio Estado. Diantedisso, a grande culpa está na omissão doEstado porque a partir da Constituiçãode 1934 começa-se a reconhecer o direitodas terras que os índios ocupam. Entãoquem ignora a lei é o Estado. Foi o Esta-do quem deu os títulos aos colonos daregião de Dourados.

Como a Colônia Agrícola Naci-onal de Dourados afetou os guarani? Devido a preocupação de Getúlio Vargascom a questão da integração nacional, elecria o programa Marcha para o Oeste que seconstituiu na criação de grandes colôniasagrícolas pelo Brasil, dentre elas, a ColôniaAgrícola Nacional de Dourados em 1943.Contudo, esta colônia agrícola se instala empleno território guarani. A Colônia crianovos e gravíssimos problemas aos guarani.A maioria dos colonos que vieram erampobres e vieram com o sonho da terra pró-pria. E terra para ocupar, derrubar, plantar.Então instala-se o conflito, uma incompati-bilidade total entre o colono e o índio. Esteperíodo é extremamente difícil e geroumuitos conflitos para os guarani-kaiowána região de Dourados. É impressionan-te sempre a omissão dos governos. Nofundo, olhando para este conflito de ter-ras, ele é antes de tudo conseqüência deuma política de Estado feita desde a épocado SPI e de uma profunda omissão doEstado no período mais recente e comisso o conflito entre índios e proprietário

acaba se acirrando. É isso o que vemoshoje em nossa região.

Qual a situação dos indígenashoje? E existe solução?

Acho que a situação está muito precáriaporque existe uma questão que é pouco vistapor nossas autoridades, pela imprensa e pelaelite econômica de nosso estado. A questãodo confinamento. Este extremo confi-namento que existe hoje está provocandoconseqüências em outros campos de difícilrecuperação. O sintoma mais grave disto éo crescimento da violência interna. Nos últi-mos anos, verificamos um crescente aumen-to de mortes em conflitos muitas vezes en-volvendo parentes. O que é uma questão ex-tremamente grave e é um sinal de uma gran-de tensão interna. Além disso, existe um gran-de número de jovens sem qualquer perspec-tiva, totalmente expostos ao consumo da dro-ga e do álcool . E entre esses jovens existe omaior índice de violências. Então esta situa-ção mostra também como pano de fundouma fragilização da organização social inter-na. Este contexto preocupa muito. E semfalar ainda dos índices elevadíssimos de suicí-dio que atinge cada vez mais jovens e crianças.Tudo isso seria resolvido se começarmos adevolver as parceles do território indigena,que são pequenas. Essas aldeias poderiam setornar grandes centros produtores dealimentos, o que ajudaria esses povos amanter suas culturas sem depender de pro-gramas assistenciais como distribuição decestas básicas.

Professor Antônio Brand* explica como o governoincentivou a ocupação de terras indígenas

“Estratégia de dominação”

*ANTÔNIO BRAND, professor e historiadorda UCDB é especialista na história recentedos guarani e coordenador do NEPPI(Núcleo de Estudos e Pesquisas sobrePopulações Índigenas) da UCDB.

[email protected]@terra.com.br

Entrevista

Katiu

scia

Rei

s

Page 20: Projetil 69

20 - Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo da UFMS

Laudo Antropológico

Um dos mitos sobre a demarcação de terras indígenas no estado é ogrande impacto que esta causaria à economia estadual. Para o professor deeconomia da UFMS Tito Carlos Machado de Oliveira esse tipo de pensamen-to não tem fundamento. Segundo o professor, MS possui 35 milhões de hec-tares, que descontadas áreas urbanas, áreas protegidas, terras indígenas e o pan-tanal, restam 18 milhões para a agropecuária.

Segundo Tito Machado, especialistas da causa indígena dizem que os índi-os de MS reivindicam cerca de 700 mil hectares, o que significa cerca de 2%dos 35 milhões de hectares.

Conforme o professor Machado, mesmo se esses 700 mil hectares fos-sem colocados na região cone-sul do estado, poderia acarretar uma queda de12 % na produção. Porém, nem todas as terras reivindicadas estão no cone-sul,o que diminui bastante o possível prejuízo.

O economista explica que, mesmo somando as perdas de todos os pro-prietários rurais prejudicados, o resultado seria insignificante comparado aototal das terras não atingidas pela demarcação.

Para Tito Machado, o avanço da cana sobre terras de alta qualidade no cone-sul do estado, com insenção de 67% no ICMS (Imposto sobre circulação de mer-cadorias e serviços), é muito mais prejudicial para a economia de Mato Grosso doSul do que a demarcação das terras indígenas. Inclusive porque os canaviais deveri-am ser plantados nas regiões menos férteis e menos desenvolvidas.

Mitos e verdades

[email protected]@terra.com.br

realizados seja por conflitos no campoou por motivos judiciais.

Segundo especialistas em direitoindigenista, o principal impasse entre aFunai e os proprietários rurais de MSocorre porque a constituição de 1988determina que todo título de proprie-dade privada situada em terra indígenaé nulo. Diante disso, quando uma área édemarcada, os proprietários não são in-denizados, salvo as benfeitorias nelaconstruídas quando o título é de boa fé.

De acordo com o Procurador daRepública Emerson Kalif, o Estado Bra-sileiro como um todo (governos fede-ral e estadual) concedeu títulos erronea-mente para terceiros ocuparem terrasindígenas. “O título que o Estado con-cedeu é um direito nulo, pois criou umdireito que a pessoa não tem”.

Segundo o diretor da Famasul, a de-marcação de terras fere o direito à propri-edade privada. “Provoca uma inseguran-ça jurídica no campo quanto à proprieda-de privada, portanto, relativiza a questãoabsoluta da propriedade privada”.

Para o Procurador Kalif, a consti-tuição é clara ao dizer que mesmo o di-reito à propriedade deve ceder a umdireito anterior, o direito dos indígenasàs suas terras tradicionais.

Disputas judiciaisEmbora o processo de demarca-

ção de terras indígenas realizado pelaFunai estabeleça o contraditório (direitoda parte atingida de apresentar contra-provas para invalidar a demarcação), emMato Grosso do Sul todos os proces-sos de demarcação estão sendo contes-tados na Justiça.

Para o diretor da Famasul, a formacomo é feita a demarcação de terras atu-almente é uma expropriação e não umadesapropriação. “Isso é um forte moti-vo para haver uma reação no judiciário,uma avalanche de ações.”

Segundo o Procurador Kalif, oprocesso de demarcação de terras indí-genas é constitucional. “ O Supremo Tri-bunal Federal disse várias vezes que odecreto presidencial que regula a demar-cação é constitucional.”

Ambas as partes criticam a atuaçãoda justiça nesta questão. Para o diretorda Famasul, os tramites judiciais são“morosos, infindáveis, caros e de certaforma decepcionantes”. Segundo o Pro-curador Emerson Kalif, muitas vezes ojudiciário não deixa a demarcação ca-minhar por meio de liminares.

Segundo o antropólogo do MinistérioPúblico Federal Marcos Homero Lima,devido aos trâmites judiciais, o processode demarcação que deveria durar três anos,pode levar até vinte anos para terminar.

AlternativasDiante desta conjuntura complexa, fica

a pergunta se poderá existir algum desfechosatisfatório para este conflito. Especialistas dediferentes esferas dos três poderes da Repú-blica apontam para possíveis soluções. A pri-meira alternativa, esta a nível nacional, seria aaprovação pelo Congresso Nacional de umaPEC (Projeto de Emenda à Constituição)que autoriza a indenização da terra nua, maisas benfeitorias, aos proprietários que possu-am títulos de boa-fé.

Outra alternativa seria Mato Gros-so do Sul seguir o exemplo do Rio Gran-de do Sul e Santa Catarina. Esses esta-dos indenizam os proprietários rurais quecompraram títulos concedidos pelo go-verno estadual. Na maioria dos casos, aUnião repassa recursos federais para queesses estados paguem as indenizações.

Vontade política Para especialistas do tema é funda-

mental que exista vontade política detodas as partes envolvidas para que seresolva a questão da demarcação de ter-ras indígenas em MS.

Segundo o presidente da Funai, aaprovação dessa PEC contribuiria bas-tante para resolver muitos problemasdeste tipo em MS e no Brasil. “Muitosfazendeiros querem apenas que a suatitularidade que foi concedida pelo Es-tado seja indenizada”.

Para o diretor da Famasul, o pro-blema seria de fácil solução se houvesseuma vontade política firme, o que evita-ria o conflito entre proprietários e indí-genas. “Vale, eu desistir de ter aquilo, emfunção do interesse coletivo medianteindenização plena em valor comercial.Onde eu recomeçaria em outro lugarcom igualdade de condições”.

Para o Procurador Kalif, na atual con-juntura deve haver muita vontade políticaentre a União e o governo estadual pararesolver este problema como um todo,pois se a PEC for aprovada, só indenizaráos títulos concedidos pelo governo fede-ral. No caso dos títulos estaduais, o gover-no estadual deveria fazer o mesmo.

Demarcação de terras

A demarcação de terras indígenas éuma determinação constitucional, porém aConstituição de 1988 não diz como deveser realizada. Diante disso, foi promulgadoo Decreto presidencial 1.775 de 1996 queestabelece os procedimentos admi-nistrativos da demarcação.

A primeira fase deste procedimento éconhecida como “Estudos de identi-ficação e delimitação” que é regula-mentada pela portaria n°14 do Ministérioda Justiça de 1996. O grupo de trabalhoque realiza esses estudos é coordenadopor um antropólogo, e geralmente éformado por profissionais de diferentesáreas: antropólogos, sociólogos, ecólogos,engenheiros ambientais, engenheirosagrimensores, etc.

Segundo a antropóloga MirtesBorgonha, coordenadora do grupo detrabalho das áreas guarani e kaiowá na região da bacia do rio Apa (extremo sul doestado), o trabalho do antropólogo consiste em realizar pesquisa documental ebibliográfica. Além do trabalho de campo, no qual são realizadas entrevistas, coletade dados de parentesco, caminhadas guiadas e coletas de dados georreferenciados.Todos esses dados devem verificar se as terras são tradicionalmente indígenas.

As informações são então reunidas no “relatório de identificação e delimitação”,que precisa ser aprovado pela Funai e pelo ministro da Justiça, para depois a terraser declarada indígena. A última etapa é a homologação da terra pelo presidenteda República.

Arqu

ivo p

esso

al

Mirtes Borgonha em trabalho de campo

Page 21: Projetil 69

Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo da UFMS - 21

Danilo NeryHermano Melo

Cerca de 12% do território brasilei-ro são demarcados como terras indíge-nas, a maioria localizada na Amazônia.Mato Grosso do Sul, que tem a segundamaior população indígena do país, possui2,12% de seu território demarcado.

A demarcação de terras indígenasestá prevista no artigo 231 da Constitui-ção Federal de 1988, o qual reconheceaos índios “os direitos originários sobreas terras que tradicionalmente ocupam,competindo à União demarcá-las, pro-

teger e fazer respeitar todos os seusbens”. Cabe à Funai (Fundação Nacio-nal do Índio) a missão de identificar asáreas que serão demarcadas por meiode estudos antropológicos (veja Box).

A Constituição estipulou um prazode cinco anos para a conclusão do pro-cesso de demarcação de terras indíge-nas no Brasil. Passados dezessete anos,doprazo estabelecido, este trabalhocontinua pendente. Após a promulga-ção da constituição foram demarcadasáreas principalmente na região amazô-nica. Os processos demarcatórios foramrelativamente fáceis nesta região porque

a maior parte das terras indígenas estáem localidades pouco povoadas e amaioria dos proprietários rurais atingi-dos eram “grileiros” com títulos de pro-priedade falsos.

Em Mato Grosso do Sul, o proces-so de demarcação de terras indígenas en-contra sérias dificuldades devido a váriosfatores; um dos principais se deve ao tipode ocupação de populações não-indíge-nas nesta região ser incentivada pelo Es-tado no final do século XIX e início doséculo XX (Ver pág. 06).

De acordo com o diretor-secretá-rio da Famasul (Federação da Agricul-

tura e Pecuária de Mato Grosso do Sul)Dácio Queiroz, a entidade vê com apre-ensão a demarcação porque da formacomo é feita atualmente não prevê a in-denização da terra nua, só as debenfeitorias. “É difícil aceitar regras quedizem que você vai perder a fazenda,vai sair sem valores justos, mediante ahipótese que ancestrais indígenas ocupa-ram aquela terra”.

Para o presidente da Funai (Fun-dação Nacional do Índio) Márcio Meira,a existência de um embate político noestado impede algumas vezes que os es-tudos antropológicos continuem sendo

Cena do filmeTerra Vermelha(2008)do diretor Marco Bechis. O filme mostra a luta deindÌgenas guarani-kaiow·para retomar terraocupada por fazendeiros

O cumprimento da determinação constitucional de demarcação das áreas indígenas está muitoemperrado em MS porque o próprio Estado estimulou a ocupação indevida dessas terras.

Demarcação de terras

Território ocupado

Page 22: Projetil 69

22 - Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo da UFMS

sem leiPaulo explica que isso torna as famíliasvulneráveis, pois desestabiliza a culturado índio, acostumado a estar produ-zindo na terra e permanecendo semprepróximo aos seus parentes.

Entre os guaranis a violência e opreconceito têm causado o suicídio de muitosjovens, que não têm qualquer perspectiva demelhora nas condições de vida.

Paulo Ângelo afirma que opreconceito contra o índio ainda é muitogrande em MS. “No presídio deAmambai, o índice de presos indígenasé o maior do Brasil, e temos razões paraacreditar que isso se deve ao preconceito.A defensoria pública não tem uma açãoforte, temos um judiciário conservador,o poder executivo não elabora projetospara a erradicação da violência em áreasindígenas e ainda não há uma presençaforte do governo federal”.

Na reserva indígena de Douradosa situação de violência é cada vez maisgrave. A área é pequena para a populaçãoque ali foi confinada, e quando isso acon-tece não há possibilidades de reproduçãoda vida, de plantar para a subsistência.

“Além disso, explica Paulo, a reservaé muito próxima da cidade e dafronteira, e assim eles estão vulneráveisao consumo excessivo de álcool e dedrogas, e às pessoas interessadas na suaexploração como mão-de-obra barata”.

Outra questão delicada é a inserçãodas igrejas nessas comunidades, quetambém contribui para desestabilizar aorganização social existente, pois a formade liderança original é quebrada com aimposição de outra estrutura religiosa.“Quando se quer matar um povo,extingue-se a tradição religiosa”, explicaPaulo.

Um indígena de uma das aldeias deDourados e funcionário da Funai confir-ma que a falta de uma autoridade morale efetiva também tem levado ao aumen-to da violência entre os próprios mora-dores da comunidade.

Segundo o funcionário, nas aldeiasJaguapirú e Bororó é comum adolescen-

tes assaltarem casas vizinhas durante anoite, com uma camiseta no rosto e umfacão na mão. Até a produção de subsis-tência fica ainda mais difícil na medidaem que mesmo as hortas plantadas tam-bém costumam ser roubadas.

O enfermeiro kaiowá Silvio Ortizconta que as usinas de açúcar próximasà aldeia acabam se tornando à primeiravista uma opção de trabalho, mas oproblema é que quase nunca os índioscontratados recebem o esperado, e nofinal do mês é comum um pai de famíliaestar endividado. Isso o deixa constra-ngido perante a comunidade, e ele acabase refugiando na pinga e nas drogas. É oexemplo que algumas crianças têmdentro de casa. “Algumas famílias aindatentam conversar com suas crianças paraamenizar a violência dentro da aldeia,mas isso não é suficiente”, explica Sílvio.

Antigamente as lideranças locaisexerciam sua autoridade e controlavama organização social da aldeia. Mas hoje,quando acontece de um homem baterna esposa, por exemplo, não é mais dacompetência do cacique resolver isso.Uma agente indígena de saúde conta queuma mulher que apanhou do marido feza denúncia na delegacia de Dourados, omarido foi preso por algumas horas elogo depois estava em liberdade. A moçateve que fugir com os filhos porque oagressor ameaçou matá-la.

Também há casos de crianças quesofrem violência sexual, e não adiantafazer a denúncia, pois o Conselho Tutelarda Criança e do Adolescente alega queo problema não é de sua competência esim do Ministério Público Federal, quelida com as questões indígenas. Este, porsua vez, alega que não se mete em“picuinhas”, e não interfere no que elesdizem ser “parte da cultura indígena”.Dessa maneira, os casos ficam semsolução, e quando alguém, mesmo comessas dificuldades, faz a denúncia, recebeameaças do agressor.

Sobre a violência sexual contra acriança ser parte da cultura indígena,

Paulo Ângelo afirma que é um argumen-to fraco, e que os órgãos competentesdevem se basear na Constituição Fede-ral que garante a proteção integral dacriança e não faz distinção de etnia. Nes-sa questão a responsabilidade é do mu-nicípio: “O conselho tutelar é que ga-rante os direitos da criança, seja brancaou indígena, mas o conselho não temestrutura para atender todas as criançasde Dourados. O governo do estadotambém tem responsabilidade pelos pro-gramas sociais, mas o que parece é quecada órgão lava as mãos e passa para ooutro a sua responsabilidade”.

Segundo Paulo Ângelo, o confina-mento em Dourados é intencional esignifica destruir a língua, as relaçõesfamiliares e a cultura para, depois deaniquilados todos os costumes, esse povopoder ser expulso desse território. “Orisco é olhar naquele lugar daqui a vinteanos e ver que não existe mais a culturaindígena, que a violência brutalizou o índiode tal forma que não vamos maisreconhecê-lo como tal”.

Paulo Ângelo lamenta que o poderpúblico tenha escolhido o seu lado nessabatalha, mas contra os índios: “Se fosseapenas um descaso do governo, osindígenas teriam uma chance. Mas o fatoé que o poder público está contra os

povos indígenas”. Ele cita como exem-plo episódio recente em que o governoestadual liberou cerca de quinhentos milreais para municípios moverem açõesjudiciais contra comunidades indígenas,quando deveria estar destinando essesrecursos para a defesa dos próprios ín-dios.

Na reserva indígena de Douradosa polícia se nega a entrar desde 2007,quando ocorreu um conflito em quepoliciais invadiram a aldeia semautorização, fazendo disparos, os índiosse sentiram acuados e reagiram. Doispolicias foram mortos. Desde então ajustiça não entra mais na aldeia. Aslideranças se reuniram para buscar ajudafora da comunidade, junto à PolíciaFederal e o Ministério Público, mas atéhoje não obtiveram resposta. E assimessas aldeias indígenas permanecemcomo uma terra sem lei, na qual aslideranças locais não são mais respeitadas,e os poderes de estado externos,responsáveis pelo desmantelamento dahierarquia social antes existente,simplesmente lavam às mãos, deixandoos moradores dessas comunidadestotalmente abandonados, acuados eindefesos. Sem futuro.

Acampamento Kurussu Ambá, Coron el Sapucaia: 3 assassinatos por ano

[email protected]

Violência

Arqu

ivo

CD

DH

Page 23: Projetil 69

Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo da UFMS - 23

Kamila Jara

Mato Grosso do Sul é o estadobrasileiro que tem a segunda maiorpopulação indígena do Brasil e os maioresíndices de violência contra esses povos. Nosúltimos cinco anos foram registradas 255mortes de líderes indígenas no país, dosquais 153 em MS.

Segundo o presidente do Centro deDefesa da Cidadania e dos DireitosHumanos de Campo Grande, PauloÂngelo de Souza, essas estatísticas devemser ainda maiores, pois “o que temacontecido é que muitos casos ficam semregistro”. E em sua opinião a situação vai seagravar ainda mais se não for resolvida aquestão das demarcações de terras.

Recentemente Paulo ajudou asocorrer cinco indígenas em Amambai

Confinamento em áreas reduzidas,violência crescente nas aldeias e falta de

acesso a direitos básicos tornam cada vezmais difícil a vida dos índios em MS.

que foram alvejados na beira da rodo-via onde estavam acampados. Outroepisódio recente ocorreu próximo aCaarapó, onde dois professores forammortos. “Quando lideranças como essesprofessores, que falavam e lecionavama língua materna, são mortos, também éassassinada uma parte da cultura dopovo”, explica.

Apesar de muitos desses assassinatosestarem diretamente ligados a disputasde terras, as aldeias indígenas vemsofrendo também, no seu dia-a-dia, como crescimento assustador da chamadaviolência interna.

A exploração do trabalho indígenaé comum na maioria das aldeias, ecomumente os homens que trabalhamno corte da cana vão para as fazendas eficam mais de sessenta dias longe de casa.

Terra

Jornal Laboratório do Curso de Comunicação Social - Jornalismo da Universidade Federal deMato Grosso do Sul – Produzido pelos acadêmicos do 3º ano de Jornalismo, sob orientação dosprofessores José Márcio Licerre (Planejamento Gráfico II), Mário Luis Fernandes (Edição) e MarioMarques Ramires (Redação e Expressão Oral em Jornalismo II). Jornalistas responsáveis: Mário LuisFernandes (DRT-PR 2513) e Mario Marques Ramires (DRT-SP 12602)

Produção: Camila Emboava, Cláudia Camargo, Danilo Nery, Eduardo Lyvio, Evelin Ara-ujo, Flávio Brito, Gabriela Dias, Hermano de Melo, Julio Carvalho, Kamila Jara, Katiuscia Reis,Susan Buranelo e Thaysa Freitas.

Correspondência: Jornal Projétil – Departamento de Comunicação Jornalismo (DJO /CCHS) – Cidade Universitária s/nº - CEP 79070-900 – Campo Grande – MS. Fone (67) 3345-7600 – E-mail: [email protected]. Tiragem: 5.000 exemplares. Impresso na Qualidade Empre-sa Jornalística Ltda. Distribuição Gratuita.

Visite nosso site:

www.jornalismo.ufms.br

Editorial

As matérias veiculadas não representamnecessariamente a opinião da UFMSou de seus dirigentes, nem da totalidadeda turma.

Dedicamos este número do Projétil aos povos indíge-nas, principalmente de Mato Grosso do Sul. Dividimosnossa edição 69 em duas frentes: uma que relata a espe-rança de índios que batalham por uma vida melhor, aindaque no mundo urbano; e outra que aborda as mazelas queatingem as reservas dos povos indígenas, cada vez mais.

Os problemas enfrentados por esses brasileiros todosconhecem bem, pois sempre estão sendo noticiados pelamídia: disputas por terras, violência, etc. Porém, quase nuncaessas notícias abordam de forma razoável as causas e ori-gens desses problemas.

Por isso o Projétil foi conversar com pessoas que vi-vem na pele ou vivem mergulhados nesses problemas, e oresultado está nas próximas páginas.

Nesta edição mostramos como a violência, interna ouexterna às aldeias, afeta as comunidades indígenas. Abor-damos o tema polêmico da demarcação de suas terras,desde as origens até os impasses atuais, com os pontos devista das partes envolvidas. Enfocamos a história recentedesses povos para mostrar como o governo brasileiro in-centivou a ocupação indevida de seus territórios pelos fa-zendeiros. Conhecemos a tristeza de uma senhora que teveparte de sua aldeia engolida por um poderoso da cidade. Ea tristeza de uma menina que ficou grávida muito cedo e,mesmo sendo casada, sofre com a intolerância, estimuladapor oportunismos religiosos que invadiram sua aldeia.

A compreensão que tínhamos dos problemas indíge-nas mudou bastante depois deste trabalho. Esperamos quea sua também.

As aldeias da Grande Dourados estão há anos sem segurança pública

Page 24: Projetil 69

Vâni

a Ju