projecto “esperança” deixa corações guineenses a bater...

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QUINTA-FEIRA | 12 SET 2013 | 03 AVEIRO Projecto “Esperança” deixa corações guineenses a bater certo Apoio Com o objectivo de tratar crianças com problemas cardíacos, criam-se famílias intercontinentais, com laços inquebráveis. Concerto em Ílhavo em prol de quem trabalha “Movido por Paixões” de crianças a ajudar”, acredita. Adelino e Sarah: dois corações tratados Adelino Pedro Mendes, de 17 anos muito mal disfarçados, tem cara e corpo de menino. E a timidez, também. Está em Por- tugal há três anos, e foi operado duas vezes. Enquanto fala con- nosco é raro levantar os olhos. Até o sorriso é tímido. Adelino vai frequentar o 9.º ano, na es- cola João Afonso, e afirma ter “muitos amigos”. Refere que isso, para além da família de acolhimento, é o melhor de Por- tugal. Depois de tanto tempo, Adelino diz que se imagina a vi- ver no país que o acolheu, e que quando voltar à Guiné, onde se mantém a mãe, vai ter saudades “de todos os amigos que fiz, e da família de cá”, afirma. Sarah Sanca, de 13 anos é quase o oposto do colega. Por detrás do sorriso desinibido com que se apresenta, está o facto de ter sido a única criança que teve de voltar a Portugal depois de uma primeira ope- ração. A primeira vez que veio não foi trazida pela MSH, agora sim, está no país há um ano. e já foi operada duas vezes nesse período. Entretanto debate-se com sentimentos contraditó- rios, provavelmente, comuns a muitos dos compatriotas que têm recebido esta ajuda. “Gosto de estar cá, mas também gos- tava de estar na Guiné, porque tenho lá a minha família. O ideal seria poder receber os tra- tamentos na Guiné, para estar perto deles. Ou trazê-los todos para cá, porque em Portugal a vida é melhor”, reconhece. Entre o ir e o partir criam-se laços de vida. E criam-se, tam- bém, laços para a vida. As des- pedidas apertam os corações que vão, e aqueles que ficam. Mas uma certeza existe. O co- ração que vinha doente volta mais forte. Vai apertado de sau- dade, sim. Mas também vai tra- tado. Isso é o mais importante. Essa é a missão. | O Centro Cultural de Ílhavo (CCI) abre as portas, ama- nhã, para um concerto cu- jas receitas reverterão para a MSH. Darko e Emmy Curl associam os seus nomes a esta causa, num espectá- culo que custará 10 euros, e com início às 22 horas. Os dois artistas portugue- ses darão um concerto que utiliza o lema “MSH Movi- dos por Paixões”, e será uma forma de angariar fun- dos para a causa da Missão. Será a forma de a música dar o ritmo aos corações ajudados pela MSH. | Concerto “MSH Movidos por Paixões” amanhã, em Ílhavo Adérito Esteves São crianças com corações a precisar de ajuda. Corações que se não receberem tratamentos adequados correm o risco de não bater o tempo que mere- cem. Depois de tratados, batem no ritmo certo. Bombeiam vida aos pequenos guerreiros que deixam famílias e amigos para trás, e enfrentam um novo país. Deixam-se ir para o desconhe- cido, por vezes, sem sequer te- rem entrado, na idade dos por- quês. O projecto “Esperança”, da Missão Saúde para a Humani- dade (MSH) iniciou-se em Agosto de 2009 e tem como objectivo acolher crianças do- entes, provenientes da Guiné- Bissau que, sem condições pa- ra serem tratadas no seu país, necessitam de ser evacuadas, para receber os tratamentos adequados. Até ao momento, foram 38 as crianças que vi- ram o coração ganhar um novo impulso, e o objectivo é não parar. “Movidos por Paixões”. O conceito é simples. Ajudar crianças que precisam de ser operadas ao coração. Recor- rendo à vontade de ajudar, e a alguns protocolos que permi- tem custear o projecto, as crianças chegam a Portugal rumando ao Hospital S. João, no Porto, onde são tratadas. O lema não podia ser mais apro- priado: “Movidos por Paixões”. A Guiné foi escolhida depois de uma visita feita por alguns dos actuais membros da MSH que, deparando-se com a falta de condições de apoio médico, decidiriam agir, criando a or- ganização com sede na Incu- badora de Empresas da Uni- versidade de Aveiro. As crianças são seleccionadas por uma ONG (Organização Não Governamental) espa- nhola que faz o acompanha- mento dos casos e os encami- nha para evacuação, consoante a urgência. No regresso à Guiné, é essa ONG que faz o acompa- nhamento das crianças. Enquanto estão internadas, as crianças recebem visitas diárias. Os voluntários da or- ganização não deixam passar um dia sem lhes dedicar algum do seu tempo. A maioria delas chega sem falar português, o que dificulta a adaptação. “São casos complicados, mas são casos de sucesso”, orgulha-se Ana Fonseca, membro da di- recção, voluntária, e “mãe” – que se poderia escrever sem aspas – de algumas crianças que já passaram pelo projecto. “Soltar um passarinho e fazê-lo voar” Acompanhada de duas das cinco crianças que se encon- tram a receber tratamentos, Ana partilha um pouco da sua experiência. “A despedida da primeira criança que recebi em minha casa foi traumatizante. Mas é também um sentimento de missão cumprida. É como soltar um passarinho e fazê-lo voar. É sempre doloroso por- que vai-se embora um boca- dinho de nós. São nossos filhos, mas também por isso é bom sinal eles irem”, conta, num misto de emoção e orgulho. Casa de acolhimento é urgente Quando uma criança chega, vem sem data de regresso mar- cada. O regresso à Guiné só acontece depois dos problemas serem debelados. “Há crianças que ficam apenas um ou dois meses. Há outros que têm de ficar mais tempo. Nós quere- mos que os casos sejam resol- vidos o mais depressa possível, mas sem pressas”, defende Ana. Depois de saírem do hospital, as crianças vão para famílias de acolhimento, compostas por pessoas ligadas à organi- zação. O desejo é ter, num fu- turo que se quer próximo, um espaço onde as crianças pos- sam ficar, durante a estadia em Portugal. “Precisamos muito de uma casa de acolhimento. É o pró- ximo projecto que queremos concretizar. A casa faz-nos falta para podermos continuar a missão. Assim poderíamos tra- zer muito mais crianças e man - tê-las juntas no mesmo espaço. A casa, juntamente com as fa- mílias de acolhimento, possi - bilitar-nos-ia duplicar o número PAULO RAMOS Sarah Sanca, Ana Fonseca e Adelino Pedro Mendes são três dos rostos do projecto “Esperança”

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QUINTA-FEIRA | 12 SET 2013 | 03

AVEIRO

Projecto “Esperança” deixacorações guineenses a bater certoApoio Com o objectivo de tratar crianças com problemas cardíacos, criam-se famílias intercontinentais,com laços inquebráveis. Concerto em Ílhavo em prol de quem trabalha “Movido por Paixões”

de crianças a ajudar”, acre dita.

Adelino e Sarah: doiscorações tratados

Adelino Pedro Mendes, de 17anos muito mal disfarçados,tem cara e corpo de menino. Ea timidez, também. Está em Por-tugal há três anos, e foi operadoduas vezes. Enquanto fala con-nosco é raro levantar os olhos.Até o sorriso é tímido. Adelinovai frequentar o 9.º ano, na es-cola João Afonso, e afirma ter“muitos amigos”. Refere queisso, para além da família deacolhimento, é o melhor de Por-tugal. Depois de tanto tem po,Adelino diz que se imagina a vi-ver no país que o acolheu, e quequando voltar à Gui né, onde semantém a mãe, vai ter saudades“de todos os amigos que fiz, eda família de cá”, afirma.

Sarah Sanca, de 13 anos équase o oposto do colega. Pordetrás do sorriso desinibidocom que se apresenta, está ofacto de ter sido a única criançaque teve de voltar a Portugaldepois de uma primeira ope-ração. A primeira vez que veionão foi trazida pela MSH, agorasim, está no país há um ano. ejá foi operada duas vezes nesseperíodo. Entretanto debate-secom sentimentos contraditó-rios, provavelmente, comuns amuitos dos compatriotas quetêm recebido esta ajuda. “Gostode estar cá, mas também gos-tava de estar na Guiné, porquetenho lá a minha família. Oideal seria poder receber os tra-tamentos na Guiné, para estarperto deles. Ou trazê-los todospara cá, porque em Portugal avida é melhor”, reconhece.

Entre o ir e o partir criam-selaços de vida. E criam-se, tam-bém, laços para a vida. As des-pedidas apertam os coraçõesque vão, e aqueles que ficam.Mas uma certeza existe. O co-ração que vinha doente voltamais forte. Vai apertado de sau-dade, sim. Mas também vai tra-tado. Isso é o mais importante.Essa é a missão.|

O Centro Cultural de Ílhavo(CCI) abre as portas, ama-nhã, para um concerto cu-jas receitas reverterão paraa MSH. Darko e Emmy Curlassociam os seus nomes aesta causa, num espectá-culo que custará 10 euros, ecom início às 22 horas.

Os dois artistas portugue-ses darão um concerto queutiliza o lema “MSH Movi-dos por Paixões”, e seráuma forma de angariar fun-dos para a causa da Missão.Será a forma de a músicadar o ritmo aos coraçõesajudados pela MSH.|

Concerto “MSH Movidos por Paixões”amanhã, em Ílhavo

Adérito Esteves

São crianças com corações aprecisar de ajuda. Corações quese não receberem tratamentosadequados correm o risco denão bater o tempo que mere-cem. Depois de tratados, batemno ritmo certo. Bombeiam vidaaos pequenos guer reiros quedeixam famílias e amigos paratrás, e enfrentam um novo país.Deixam-se ir para o desconhe-cido, por vezes, sem sequer te-rem entrado, na idade dos por-quês.

O projecto “Esperança”, daMissão Saúde para a Humani-dade (MSH) iniciou-se emAgosto de 2009 e tem comoobjectivo acolher crianças do -entes, provenientes da Gui né-Bissau que, sem condições pa -ra serem tratadas no seu país,necessitam de ser evacuadas,para receber os tratamentosadequados. Até ao momento,foram 38 as crianças que vi-ram o coração ganhar umnovo impulso, e o objectivo énão parar.

“Movidos por Paixões”.O conceito é simples. Ajudar

crianças que precisam de seroperadas ao coração. Recor-rendo à vontade de ajudar, e aalguns protocolos que permi-tem custear o projecto, ascrianças chegam a Portugalrumando ao Hospital S. João,no Porto, onde são tratadas. Olema não podia ser mais apro-priado: “Movidos por Paixões”.

A Guiné foi escolhida depoisde uma visita feita por algunsdos actuais membros da MSH

que, deparando-se com a faltade condições de apoio médico,decidiriam agir, criando a or-ganização com sede na Incu-badora de Empresas da Uni-versidade de Aveiro.

As crianças são seleccionadaspor uma ONG (OrganizaçãoNão Governamental) espa-nhola que faz o acompanha-mento dos casos e os encami-nha para evacuação, consoantea urgência. No regresso à Guiné,é essa ONG que faz o acompa-nhamento das crianças.

Enquanto estão internadas,as crianças recebem visitasdiárias. Os voluntários da or-ganização não deixam passarum dia sem lhes dedicar algumdo seu tempo. A maioria delaschega sem falar português, o

que dificulta a adaptação. “Sãocasos complicados, mas sãocasos de sucesso”, orgulha-seAna Fonseca, membro da di-recção, voluntária, e “mãe” –que se poderia escrever semaspas – de algumas crianças

que já passaram pelo projecto.

“Soltar um passarinho e fazê-lo voar”

Acompanhada de duas dascinco crianças que se encon-tram a receber tratamentos,

Ana partilha um pouco da suaexperiência. “A despedida daprimeira criança que recebi emminha casa foi traumatizante.Mas é também um sentimentode missão cumprida. É comosoltar um passarinho e fazê-lovoar. É sempre doloroso por-que vai-se embora um boca-dinho de nós. São nossos filhos,mas também por isso é bomsinal eles irem”, conta, nummisto de emoção e orgulho.

Casa de acolhimentoé urgente

Quando uma criança chega,vem sem data de regresso mar-cada. O regresso à Guiné sóacontece depois dos problemasserem debelados. “Há criançasque ficam apenas um ou doismeses. Há outros que têm deficar mais tempo. Nós quere-mos que os casos sejam resol-vidos o mais depressa possível,mas sem pressas”, defende Ana.

Depois de saírem do hospital,as crianças vão para famíliasde acolhimento, compostaspor pessoas ligadas à organi-zação. O desejo é ter, num fu-turo que se quer próximo, umespaço onde as crianças pos-sam ficar, durante a estadia emPortugal.

“Precisamos muito de umaca sa de acolhimento. É o pró-ximo projecto que queremosconcretizar. A casa faz-nos faltapara podermos continuar amis são. Assim poderíamos tra-zer muito mais crianças e man -tê-las juntas no mes mo espaço.A casa, juntamente com as fa-mílias de acolhimento, pos si -bilitar-nos-ia duplicar o número

PAULO RAMOS

Sarah Sanca, Ana Fonseca e Adelino Pedro Mendes são três dos rostos do projecto “Esperança”