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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS Programas de proteção social e superação da pobreza: concepções e estratégias de intervenção Carla Bronzo Ladeira Carneiro Belo Horizonte Dezembro de 2005 1

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

Programas de proteção social e superação da pobreza:

concepções e estratégias de intervenção

Carla Bronzo Ladeira Carneiro

Belo Horizonte

Dezembro de 2005

1

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

Programas de proteção social e superação da pobreza:

concepções e estratégias de intervenção

Tese apresentada ao Curso de Doutorado em Ciências Humanas: Sociologia e Política, da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Sociologia e Política

Orientadora: Profa. Dra. Laura da Veiga

Carla Bronzo Ladeira Carneiro

Belo Horizonte

Dezembro de 2005

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AGRADECIMENTOS

Ao olhar retrospectivamente minha trajetória, percebo que não poderia ter realizado um

trabalho de tese sobre outro tema. O tema da pobreza é parte da minha história e hoje vejo

que minha primeira experiência profissional marcou profundamente minha alma e meus

objetivos de vida. Comecei a trabalhar na Associação Municipal de Assistência Social,

instituição ligada à Prefeitura de Belo Horizonte, na qual tive a oportunidade de trabalhar

com Vera Victer e sua equipe, dezenas de pessoas competentes, comprometidas e

afetivamente envolvidas com o que faziam, não perdendo de vista as pessoas, com “nome e

endereço”, atendidas em seus programas. Iniciava-se a gestão do Patrus Ananias em Belo

Horizonte e existia um forte compromisso com o processo de mudança social. As pessoas

atendidas pelas políticas sociais e, especialmente pelas políticas de assistência social, são

as mais marginalizadas, as que se encontram em situação de exclusão, segregação e

desqualificação social. Ter contato tão próximo com a realidade da pobreza mudou para

sempre minha perspectiva de vida e meus anseios de conhecimento.

Já como professora da Escola de Governo/Fundação João Pinheiro, participei de visitas a

iniciativas locais inovadoras no âmbito do Programa Gestão Pública e Cidadania

(FGV/FORD) e vi, a partir dos programas visitados, elementos que agora retomei na tese:

a complexidade de se lidar com a diversidade e heterogeneidade das situações de pobreza e

risco social (Programa Zabelê, para meninas prostituídas em Teresina/Piauí); a necessidade

de uma gestão compartilhada e integrada (Programa Sobral Criança, em Sobral/Ceará); o

tema da inclusão e da intersetorialidade (Programa Integrado de Inclusão Social de Santo

André/São Paulo). Outras ações reforçaram essa “sina” e me colocaram no caminho da

minha tese: o texto produzido para o relatório do BDMG, juntamente com Bruno

Lazzarotti; o curso sobre pobreza que ofereci na AVSI, indicada por Flávia Brasil; os

trabalhos com Cristina Filgueiras, Edgar Magalhães, Bruno e Cristina Fonseca, sobre a

PBH e os programas da Secretaria Municipal de Assistência Social; o projeto Urb-AL, com

Laura da Veiga. Reconstruindo a lógica da minha trajetória, reconheço o sentido de cada

um desses momentos e ações e a contribuição fundamental dessas pessoas que fizeram

comigo parte do percurso que levou a este trabalho de tese; e eu sou profundamente grata a

cada uma delas, do fundo do meu coração.

São muitas as pessoas a agradecer aqui: Bruno Lazzarotti, amigo tão próximo e presente

em minha vida, que me ajudou de muitas e variadas formas a delinear um problema e a

conseguir realizar o trabalho; Cristina Filgueiras, que leu uma versão preliminar do

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trabalho e descobriu argutamente a lógica e a intenção ali oculta (pobreza como problema

para o conhecimento e para a ação); Flávia Brasil, que me levou a produzir um texto que

foi o embrião desse trabalho; Ana Fonseca, que me ajudou com textos e informações

preciosas e, sobretudo, que me lembrou sempre, com sua generosidade, que o “mundo é

redondo”; Afonso Henriques, Diretor da Escola de Governo, que me liberou de parte das

minhas obrigações para que eu pudesse me dedicar a esse esforço de tese; Chico Gaetani,

que com sua amizade e presteza me colocou em contato com Vera e com Ana e, mesmo

sem saber, guiou um pouco minha trajetória e me ajudou a pensar de forma mais realista o

meu trabalho; Carlos Aurélio e Jorge Alexandre, que leram a tese na pré-defesa e fizeram

valiosas observações que contribuíram, certamente, para seu aprimoramento; José Moreira,

que me deu um lindo poema que me tocou profundamente; os amigos e colegas da Escola

de Governo – Paulo de Tarso, Telma, Marly, Vera, Ruth, Vanda, Rai – que partilharam

comigo o desassossego e a tensão de conjugar tese e trabalho. Ângela Siman e Adriano,

por serem amigos e iniciados na senda dos trabalhos de tese.

Tenho certeza que, sozinha, não teria conseguido finalizar essa etapa de minha vida e

sobretudo, o trabalho não teria sido concluído sem a orientação cuidadosa de Laura da

Veiga, grande mestra, grande figura que tem acompanhado minha trajetória há tanto

tempo. Sua seriedade, dedicação, compromisso e competência têm sido um exemplo na

minha vida acadêmica e profissional. Sua sensatez e objetividade temperaram meus

arroubos idealistas e meu viés normativo, contribuindo para que eu não perdesse o fio da

meada. A confiança que deposita em mim tem sido um estímulo, me ajudando a superar

medos e inseguranças. Minha gratidão eterna por sua presença em minha vida e, sobretudo,

por sua amizade.

Agradeço de forma especial ao Fernando, Raquel e Sarah, que sentiram, mais do que

ninguém, o que significa o esforço de um trabalho de tese. Sobrou para eles o ônus maior

dessa empreitada. Por mais de um ano, os fins de semana e as noites em família ficaram

comprometidas, mas espero que entendam que não tive outro jeito e que o esforço foi por

uma boa causa. Sem o suporte que me foi dado não teria tido a energia necessária para

concluir esse trabalho. Agradeço à minha mãe, exemplo de força e compromisso, que

buscou me ajudar de toda forma, se colocando disponível para o que fosse preciso e ao

meu pai, que não se cansou de perguntar quando terminaria. Ao meu irmão Marcelo, que

partilhou comigo minhas angústias de tese e a minha irmã Tetê, só por ser minha irmã.

Agradeço à minha avó Natalina, que me deixou o gosto pelas palavras e o exemplo de

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tenacidade e à minha avó Laura, que choraria, se estivesse viva, ao me ver concluindo esse

trabalho. Também agradeço a Conceição, que cuidou de minha casa e me forneceu, a partir

de relatos de sua vida, elementos que estão de certa forma aqui incorporados.

Dedico esse trabalho não apenas à Raquel e à Sarah, com a esperança de que possam

contribuir no futuro, de alguma forma, para melhorar o mundo, mas sobretudo a todos

aqueles que se interessam pelo tema da justiça social e não desistem de fazer alguma coisa

para torná-la algo mais presente no mundo, aqui e agora. Aos alunos da Escola de

Governo, porque ao ensinar, também aprendemos. A eles, sobretudo, pela esperança.

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RESUMO

Este trabalho identifica e situa as contribuições da literatura sobre o tema das concepções e

mensuração da pobreza, por um lado, e das políticas de proteção e superação da pobreza,

por outro, para construir um quadro analítico com as categorias chave que articulem dois

campos de tradições científicas sobre pobreza. O trabalho sustenta-se em dois grandes

pontos de apoio: a pobreza é tanto um problema para o conhecimento quanto um problema

para as políticas públicas. A idéia básica é que diferentes concepções levam a diferentes

formas de mensuração e também, ao mesmo tempo, a diferentes respostas quanto às

políticas e estratégias de intervenção. Cada concepção revela uma visão do problema e ao

mesmo tempo uma receita, um remédio para o mal da pobreza.

A pergunta principal e que orienta o trabalho é a seguinte: é possível delinear, senão um

modelo de ação, pelo menos um conjunto de questões relevantes a serem levadas em conta

no desenho das estratégias de inclusão, tendo como referência a literatura sobre o tema?

Para respondê-la, tem-se a análise de parte da literatura sobre pobreza, por um lado, e sobre

políticas públicas e especificamente de proteção social, por outro, para extrair algumas

categorias analíticas centrais, conformando um quadro conceitual a partir do qual as

experiências locais de inclusão social possam ser analisadas.

Essas dimensões – conhecimento e ação – não são tão independentes e freqüentemente

encontram-se imbricadas: toda concepção envolve formas e critérios de mensuração e

idéias implícitas (ou não) sobre as formas e alternativas de intervenção possíveis. O ponto

de partida consistiu na identificação de uma visão ampliada sobre o fenômeno da pobreza,

estruturada a partir do exame dos enfoques: monetário, necessidades básicas insatisfeitas,

capacidades, exclusão social, vulnerabilidade e riscos. Uma análise dos diferentes enfoques

sobre pobreza, com foco mais orientado para as abordagens da exclusão e da

vulnerabilidade, permite destilar alguns elementos que têm implicações para o desenho de

políticas locais de proteção social. A partir da análise dos pressupostos e da

operacionalização das diferentes concepções tem-se que estas se articulam com as

categorias de multidimensionalidade, heterogeneidade e com o reconhecimento das

dimensões subjetivas da pobreza, o que demanda estratégias de intervenção com foco na

autonomia, participação, empoderamento e em ações e políticas intersetoriais e mais

integradas, inclusive no âmbito do território.

Na segunda parte do trabalho tem-se o foco na questão da pobreza como problema para a

ação, para as políticas públicas, e nesse caso a análise volta-se para as características e

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tendências das políticas de proteção social na Europa, América Latina e Brasil,

considerando pressupostos e os desafios das alternativas em curso. Um aspecto central

nessa discussão refere-se às transformações no plano da produção das políticas de proteção

social e da gestão pública, que configuram modelos e estratégias de intervenção que são

aqui examinadas. A análise das estratégias de inclusão irá considerar, de forma prioritária,

o âmbito de gestão local. Nos novos modelos de proteção social, o principal articulador das

ações de enfrentamento da exclusão social é o âmbito local, e embora não se desconheça a

centralidade do nível nacional para a provisão de bem e serviços sociais, o foco de análise

será o nível local de gestão. No modelo de ação esboçado, as estratégias locais de inclusão

pautam-se pela perspectiva da autonomia individual e comunitária e pelo empoderamento,

orientando-se por estratégias de gestão pautadas pela integralidade das políticas, pelo foco

na demanda e na capacidade de ajustar intervenções às necessidades específicas das

populações e regiões pobres, excluídas ou segregadas.

O trabalho identifica e organiza as dimensões e categorias que emergem na literatura

examinada na primeira e segunda parte do trabalho, e a partir do quadro assim construído,

são examinadas duas estratégias locais desenvolvidas em contextos metropolitanos. Nesse

caso importa identificar, no desenho dos programas desenvolvidos em Belo Horizonte e

São Paulo, elementos do quadro analítico e do modelo de ação aqui esboçado.

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SUMÁRIO DE FIGURAS, QUADROS E TABELAS

Lista de figuras

FIGURA 1: Enfoques sobre a pobreza em uma linha temporal ................................................... 36

FIGURA 2: Modos de vida sustentáveis ..................................................................................... 70

FIGURA 3: Tipologia dos modelos de serviços pessoais, segundo Brugué e Gomá ................. 149

FIGURA 4: Relações entre enfoques, categorias e elementos das estratégias de intervenção ... 203

FIGURA 5: Relações entre elementos condutores e interruptores da pobreza crônica ............. 204

FIGURA 6: Relações entre mecanismos de superação da pobreza crônica e elementos de gestão 205

FIGURA 7: Programas Sociais Prioritários: um esquema para identificação dos componentes e suas articulações possíveis ......................................................................................................

256

Lista de quadros

QUADRO 1: Vulnerabilidade, Sensitividade e Resiliência ........................................................ 71

QUADRO 2: Tipologia de ativos, segundo C. Moser ................................................................ 73

QUADRO 3: Síntese dos principais enfoques examinados sobre pobreza .................................. 80

QUADRO 4: Pobreza absoluta e relativa: mensuração e indicadores ......................................... 84

QUADRO 5: Método Integrado de Mensuração da Pobreza ...................................................... 88

QUADRO 6: Tipologia dos sistemas de assistência social focalizada na Europa, segundo Neubourg, Castonguay e Roelen ...............................................................................................

106

QUADRO 7: Tipologia dos sistemas de proteção na América Latina, segundo Fleury e Molina 107

QUADRO 8: Vetores e diretrizes de políticas no contexto da segunda modernidade, segundo R. Gomà .....................................................................................................................................

140

QUADRO 9: Tipologia de estratégias de enfrentamento, segundo John Hills ........................... 168

QUADRO 10: Dimensões e conteúdo da análise e referenciais empíricos para a consideração sobre as iniciativas de Belo Horizonte e São Paulo ..................................................................

207

QUADRO 11: Organização dos serviços de assistência social segundo volume e complexidade do atendimento ...................................................................................................

216

QUADRO 12: Programas desenvolvidos no BH Cidadania: secretarias envolvidas e atendimento por faixa etária ......................................................................................................

221

QUADRO 13: Síntese dos Programas da estratégia de inclusão de São Paulo ............................ 257

QUADRO 14: Programas da estratégia de inclusão social: alguns resultados ........................... 271

8

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Lista de tabelas

TABELA 1: Incidência da pobreza e indigência na América Latina 1980 – 2002 ..................... 14

TABELA 2: Incidência da pobreza e indigência, Brasil 1990 – 2001 ......................................... 16

TABELA 3: Pobreza, indigência e vulnerabilidade em Belo Horizonte, São Paulo, Minas Gerais, São Paulo e Brasil – 1991 e 2000 .............................................................................................

210

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 13

a) Delimitação do problema ............................................................................................................. 22

b) Notas metodológicas .................................................................................................................... 28

c) A organização do trabalho............................................................................................................ 31

PARTE I – A POBREZA COMO DESAFIO PARA O CONHECIMENTO 33

CAPITULO 1 – - CONCEPÇÕES SOBRE POBREZA: DESAFIOS PARA O CONHECIMENTO 35

1.1 O enfoque monetário: pobreza como condição exclusivamente econômica ............................. 37

1.2. O enfoque das necessidades básicas insatisfeitas: noção de privações ..................................... 41

1.3. O enfoque das capacidades: o divisor de águas ........................................................................ 42

1.4 Exclusão social: dimensões relacionais da pobreza .................................................................. 44

1.4.1 Exclusão como processo: desfiliação e o lugar do trabalho e da sociabilidade ........ 48

1.4.2 Em busca de um quadro conceitual: características básicas do conceito de exclusão 52

a) Categoria relacional ........................................................................................... 53

b) Processos e dinâmicas ....................................................................................... 54

c) A noção de ação: onde se insere a ação pública ................................................. 55

d) Multidimensionalidade ...................................................................................... 56

1.4.3 Pobreza e exclusão: aproximações e distinções conceituais ...................................... 57

1.5 Vulnerabilidade e risco: posse de riscos, modos de vida e portfólio de ativos ...................... 63

2.5.1 Modelo da posse de ativos ........................................................................................ 66

2.5.2 Enfoque dos modos de vida ....................................................................................... 68

2.5.3 Enfoque do portfólio dos ativos ................................................................................. 71

1.6 Pobreza crônica: concepção aglutinadora? ................................................................................ 74

CAPITULO 2 - DAS CONCEPÇÕES À MENSURAÇÃO ........................................................................ 82

2.1 Mensuração pelo enfoque monetário ........................................................................................ 83

2.2 Necessidades básicas: mapas e indicadores sociais ................................................................... 86

2.3 Capacidades e Desenvolvimento Humano ................................................................................. 88

2.4 Enfoque participativo: a subjetividade em cena ....................................................................... 91

2.5 Exclusão social: complexidade da mensuração ......................................................................... 93

2.6 Vulnerabilidade e riscos: a matriz de riscos e a mensuração do empoderamento ..................... 96

10

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PARTE II – A POBREZA COMO DESAFIO PARA AS POLITICAS PÚBLICAS .............. 100

CAPITULO 3 - POLÍTICAS DE PROTEÇÃO SOCIAL E COMBATE À POBREZA: DISTINTAS CONCEPÇÕES E MODELOS DE INTERVENÇÃO ................................................................................

101

3.1 Estados de bem estar: configurações e tendências de distintos modelos de proteção social na Europa e América Latina .................................................................................................................

101

3.1.1 Modelos de Bem Estar: tipologia básica .................................................................. 102

3.1.2 O sistema de Bem Estar na América Latina e Brasil ................................................ 107

3.2 Tendências e transformações dos sistemas de proteção social .................................................. 111

3.3 Políticas de combate à pobreza: diferentes estratégias, distintas implicações .......................... 120

3.4 Combinando universalismo e seletividade: os difíceis termos da equação ............................... 134

CAPÍTULO 4 - MUDANÇAS NO CAMPO DA PRODUÇÃO DAS POLÍTICAS DE PROTEÇÃO SOCIAL 139

4.1 Poder local e governança: elementos de inovação na gestão .................................................... 141

4.2 Modelos locais de proteção social: construindo o caminho de saída ....................................... 146

4.3 Incorporação e inserção social: metodologias de intervenção .................................................. 150

4.4 A experiência do Programa Puente/Chile, como estratégia de inclusão ................................... 153

CAPÍTULO 5 - DAS CONCEPÇÕES À AÇÃO OU ELEMENTOS DE ESTRATÉGIAS DE INTERVENÇÃO 164

5.1 Pobreza crônica: a complexidade da intervenção ...................................................................... 165

5.2 Multidimensionalidade e intersetorialidade ............................................................................... 170

5.2.1 Transversalidade, intersetorialidade ou articulação: aspecto central da ação contra a pobreza .............................................................................................................................

172

5.3 Heterogeneidade da pobreza, flexibilidade na oferta dos serviços e território .......................... 179

5.3.1 Território: políticas territoriais e políticas territorializadas ...................................... 179

5.3.2 Infra-estrutura social: um enfoque pertinente sobre território e comunidade ........... 182

5.3.3 “Personalização” do atendimento e oferta flexível de serviços ................................. 186

5.4 Autonomia, capacidades e oportunidades .................................................................................. 188

5.5 Articulando as categorias em um quadro analítico .................................................................... 196

CAPÍTULO 6 – AS EXPERIÊNCIAS DE BELO HORIZONTE E SÃO PAULO: DAS IDÉIAS ÀS AÇÕES 206

6.1 Belo Horizonte: o BH Cidadania como estratégia de enfrentamento da exclusão social .......... 213

6.1.1 A estratégia do BH Cidadania .................................................................................. 214

6.1.2 Considerações sobre a experiência .......................................................................... 227

a) Autonomia, capacidades, empoderamento ......................................................... 227

b) Aspectos organizacionais: governança e intersetorialidade ............................... 236

c) Território: unidade de focalização ou de intervenção? ...................................... 243

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6.2 São Paulo: os programas sociais prioritários para inclusão social ............................................. 249

6.2.1 – Pressupostos e diretrizes da estratégia de inclusão em São Paulo .......................... 251

6.2.2 - Considerações sobre a estratégia ............................................................................. 275

a) Autonomia, empoderamento e desenvolvimento de capacidades ...................... 275

b) Intersetorialidade e redes multiníveis: os desafios da integração ...................... 286

c) Território e desenvolvimento local .................................................................... 295

6.3 Belo Horizonte e São Paulo em perspectiva .............................................................................. 298

CAPÍTULO 7 – CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................... 302

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................................... 314

ANEXOS ............................................................................................................................................ 324

Anexo I – Mensuração da pobreza e das condições de vida em Belo Horizonte 324

Anexo II – Organização dos serviços de assistência social da prefeitura de Belo Horizonte 328

Anexo III – Mensuração da pobreza e condições de vida em São Paulo 332

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INTRODUÇÃO

Esse trabalho trata do tema da pobreza, abordando diferentes concepções e implicações

para o desenho de políticas públicas locais de inclusão social. O eixo do trabalho reside na

interlocução analítica entre a dimensão relativa a concepções e formas de mensuração da

pobreza e a dimensão das políticas de proteção social e combate à pobreza.

Inicialmente é importante apresentar, ainda que apenas brevemente, alguns dados que

permitam identificar a magnitude da pobreza e da desigualdade no mundo, na América

Latina e no Brasil. Dentre as inúmeras informações disponíveis sobre a pobreza e a

desigualdade em escala mundial1, ressaltamos apenas duas: 799 milhões de pessoas em

todo o mundo são subnutridas e mais de 34 mil crianças menores de cinco anos morrem a

cada dia por causa da fome ou em razão de doenças evitáveis (Pogge, 2004, p. 242). Os

números são impactantes. Mais de 2,8 bilhões de pessoas em todo o mundo vivem com

menos de 2,15 dólares ao dia, o que totaliza uma renda anual per capita de menos de mil

dólares. A renda agregada de toda essa população é de 384 bilhões de dólares, menos de

1,5% do “produto social global de 31,5 trilhões”, conforme estimativa do Banco Mundial

(Pogge, 2004, p. 244). A disparidade de renda entre o quinto mais rico e o quinto mais

pobre da população mundial evidencia a desigualdade e seu crescimento ao longo das

décadas: em 1960, essa disparidade era de 30 para 1, passou de 60 para 1 em 1990 e de 74

para 1 em 1997 (Pogge, 2004, p. 243)2. Não apenas a desigualdade em escala mundial

aumenta, mas também a pobreza e a desnutrição:

“Nos onze anos que se seguiram ao fim da guerra fria, o número de pessoas que subsistem abaixo da linha de pobreza representada pelos 2,15 dólares diários (1993) cresceu em mais de 10%, e o número ds pessoas subnutridas permaneceu basicamente o mesmo” (Pooge, 2004, p. 243).

A América Latina apresenta dificuldades para superar altos índices de pobreza e

desigualdade, em um contexto de mercado internacional globalizado, que impõe novas

regras e dinâmicas produtivas e tecnológicas. Embora o ritmo de crescimento tenha

1 Diversos relatórios mundiais produzidos por agências multilaterais e internacionais permitem evidenciar a magnitude da pobreza e da desigualdade mundial com grande riqueza de dados. 2 O absurdo dessa desigualdade extrema fica evidente na seguinte afirmação: “os bens de três grandes bilionários ultrapassam em valor o total dos PIBs de todos os países menos desenvolvidos, com seus 600 milhões de habitantes” (Pogge, 2004, p. 245). E mais ainda quando as estimativas apontam que, se fosse duplicada a renda das populações extremamente pobres (2,8 bilhões de pessoas) , isso implicaria que o decil mais rico da população teria seus rendimentos reduzidos em cerca de 1,5%, o que não alteraria substancialmente suas vidas (Pooge, 2004, p. 244)

13

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modificado as condições de vida da população na América Latina entre os anos 50 e 703

(aumento da taxa alfabetização, queda da mortalidade infantil, aumento da esperança

média de vida, melhora nos indicadores de saúde e nutrição), este foi insuficiente para dar

conta da excessiva demanda e extrema desigualdade entre os distintos países e em diversos

grupos sociais e regionais internos. A excessiva desigualdade e exclusão social produzem

“núcleos duros” de pobreza, estratos sociais nos quais a pobreza se reproduz de geração

em geração, apresentando alto grau de vulnerabilidade e marginalização.

De acordo com o Panorama Social de América Latina (CEPAL, 2004), em 1990, 93

milhões de pessoas (22,5%) encontravam-se abaixo da linha de indigência e 200 milhões

(48,3%) eram pobres. Em 2002, são 97 milhões de indigentes (19,4%) e 221 milhões

(44%) de pessoas situadas abaixo da linha da pobreza na América Latina (Tabela 1). Em

2003 eram 226 milhões de pobres e 100 milhões de indigentes (CEPAL, 2004, p. 58).

Entre 1999 e 2002, a pobreza cresceu 0,2% e a indigência 0,9%, o que mostra o

agravamento da situação (CEPAL, 2004, p. 56). Em 22 anos (de 1980 a 2002), tem-se um

crescimento da incidência da pobreza e da indigência na América Latina, ainda que o

crescimento econômico, medido em termos do PIB per capita, tenha sido positivo.

Tabela 1 - Incidência da pobreza e indigência na América Latina 1980 - 2002

Pobres Indigentes

Milhões de pessoas

% Milhões de pessoas

%

1980 135,9 40,5 62,4 18,6

1990 200,2 48,3 93,4 22,5

1997 203,8 43,5 88,8 19,0

1999 211,4 43,8 89,4 18,5

2000 207,1 42,5 88,4 18,1

2001 213,9 43,2 91,7 18,5

2002 221,4 44,0 97,4 19,4

Fonte: Preparado pela autora a partir das tabelas existentes no documento da CEPAL, 2004, pp. 55 e 56. Dados relativos a 18 países da região, além do Haiti.

3 De acordo com Iglésias (1992, pp. 74,75), entre 1950 e 1980 o produto interno bruto da América Latina cresceu a uma taxa de 5,5% ao ano, ligeiramente maior do que a taxa de desenvolvimento dos países industrializados; crescimento acompanhado por intenso processo de inversão e transformação produtiva e tecnológica.

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Além da alta proporção de pobres e indigentes, a América Latina continua registrando

acentuada concentração de renda. Grande parte da pobreza se explica pela desigualdade

existente. Simulações realizadas mostram que alguns países da América Latina deveriam

ter um crescimento de 2,9% ao ano na renda per capita, por 11 anos, para reduzir pela

metade a pobreza extrema, meta primeira dos objetivos do milênio. Em países como o

Brasil, esse crescimento deveria ser de 3,1 % ao ano para se alcançar o mesmo resultado.

Caso haja uma redução de 0,025 pontos no valor do coeficiente de Gini (o que

corresponderia a uma queda de 5% de seu valor atual), a taxa de crescimento poderia ser

significativamente menor (2,1%) para se alcançar o mesmo resultado de superação da

pobreza (CEPAL, 2004, pp. 68-70).

“Lo anterior corrobora la importancia de la redistribución del ingreso como un factor muy importante que podría facilitar a la región el cumplimiento de las metas de reducción de la pobreza, sobre todo en aquellos casos en que las tasas de crecimiento requeridas son de difícil consecución. En este sentido, el aumento de la inversión social y de los programas asistenciales, así como la mayor integración de las personas de bajos recursos al aparato productivo, son fundamentales para avanzar en la dirección propuesta” (CEPAL, 2004, p. 70).

Observando a situação da América Latina sob o ponto de vista da desigualdade, tem-se que

os 40% mais pobres se apropriam de 13,6% da renda total, enquanto que os 10% mais ricos

se apropriam de 36,1%. No Brasil, em 2001, os 40% mais pobres ficavam com 10,2% da

renda total, os 10% mais ricos se apropriavam de 46,8% (CEPAL, 2004, p. 89). Quando se

observa a distribuição geográfica da pobreza e da indigência, tem-se que 30% dos pobres e

25% dos indigentes da América Latina encontram-se no Brasil (CEPAL, 2004, p. 57).

O estado social no Brasil não destoa do cenário da América Latina. Depois de alguns anos

de crescimento, o Brasil entra na década de 80 com grande dinamismo político, mas sob o

signo de uma crise econômica e altos níveis de inflação. Ainda que tenha, em 30 anos,

alterado profundamente sua estrutura social rural-urbana, constituído uma infra-estrutura

básica e com grande capacidade instalada - inclusive em setores de ponta - o Brasil não

apresentou projetos para a grande massa de pobres e registra um dos piores índices

mundiais relativos à concentração de renda e parâmetros de justiça social. A capacidade

do Brasil para transformar crescimento econômico em desenvolvimento social tem-se

revelado menor que a da maioria dos países latino-americanos semelhantes. Ainda que a

“década perdida” tenha mostrado avanços no campo político-social - com a criação e

expansão de novos direitos sociais, alterando o perfil e o conteúdo da proteção social,

definindo novas competências, efetuando mudanças importantes no arcabouço institucional

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para planejamento e gestão de políticas sociais - as conquistas legais e constitucionais

estão longe de efetivar a universalidade de direitos.

A magnitude tanto da pobreza quanto da indigência no país permitem confirmar a não

garantia de direitos básicos para um grande contingente da população. Quanto à incidência

da pobreza, houve uma redução, no Brasil, na última década (Tabela 2): de 48% da

população abaixo da linha da pobreza, em 1990, para 37,5% em 2001. A indigência

também decresce, passando de 23,4% da população em 1990 para 13,2% em 2001.

Outras formas de mensuração identificam valores diferentes4. Pela mensuração da pobreza

a partir do salário mínimo, usualmente utilizada para a definição da linha de pobreza no

Brasil, em 2002 havia 52,3 milhões de pobres, correspondente a 30,6% da população. Na

indigência, estavam 20 milhões de pessoas, ou 11,6% da população (PNUD, 2004, p. 15)5.

Henriques (2004) afirma que seriam 55 milhões de pobres (34% da população).

Tabela 2 - Incidência da pobreza e indigência, Brasil 1990 - 2001

Brasil Pobres % Indigentes % Apropriação renda dos 40% mais pobres

Apropriação de renda dos 10% mais ricos

1990 48,0 23,4 9,5 43,9

1996 35,8 13,9 9,9 46

1999 37,5 12,9 10,1 47,1

2001 37,5 13,2 10,2 46,8

Fonte: elaborado pela autora a partir das tabelas em Cepal, 2003, pp. 54,73

Considerando outros indicadores tem-se as medidas de intensidade da pobreza6, que

revelam que a situação piorou ao longo da década (CEPAL, 2003, p. 57). Além da

permanência e do recrudescimento da pobreza, tem-se a persistência de patamares elevados

de desigualdade social ao longo das décadas: “al analizar varios índices no cabe duda de 4 A metodologia da Cepal define a linha de pobreza a partir da estimativa do custo de uma canastra de bens e serviços que permita às pessoas satisfazerem suas necessidades básicas. Segundo o método do custo das necessidades básicas, é considerado pobre o indivíduo que apresenta uma renda per capita inferior ao valor necessário para adquirir a canastra básica (CEPAL, 2004, p. 57). 5 Outras fontes, ainda que utilizando o mesmo parâmetro (salário mínimo), identificam valores diferentes para o mesmo ano. De acordo com o documento do IPEA (2005), em 2002 eram 49 milhões de pessoas pobres, correspondendo a 29% da população. Desses, 18,7 milhões eram indigentes, correspondendo a 11,2%. Tomando como base os domicílios, tem-se em 2002, 10 milhões de domicílios pobres e 3,7 milhões em condição de indigência (IPEA, 2005a, p. 87). Como se vê, para o mesmo ano e tendo como o mesmo parâmetro (salário mínimo), os valores apresentam importantes diferenças. Não é o caso de explicá-las aqui, mas de salientar a existência dessas discrepâncias. 6 Uma medida é a da brecha da pobreza, que mede a renda média dos pobres, e a outra é o índice de Foster, Greer e Thorbecke (FGT), que mede a disparidade da distribuição de renda entre os pobres.

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que Brasil pueda considerarse, en términos generales, el país más desigual” (CEPAL,

2003, p. 80). A apropriação da renda pelos 40% mais pobres da população aumentou, ainda

que em níveis irrisórios, se comparados pelo acréscimo na apropriação da renda por parte

dos 10% mais ricos da população.

Pobreza e desigualdade são fenômenos diversos. Existem países com baixos índices de

pobreza absoluta e grande desigualdade, bem como países com grande incidência de

pobreza e baixa desigualdade. Mas no Brasil esses dois fenômenos se sobrepõem7. Parte da

pobreza persistente no Brasil decorre da forte desigualdade de renda. Embora os mais

pobres tenham melhorado, ainda que timidamente, sua participação, a distância entre os

extremos pouco se alterou, tendo, na verdade, se agravado. Em 1992, os 20% mais ricos se

apropriavam de 55,7% da renda nacional e em 2002, de 56,8% (PNUD, 2004, p. 16).

Segundo Henriques (2004), a situação da desigualdade no Brasil8 - naturalizada e não

considerada ainda seriamente como objeto de intervenção prioritária por parte do governo

e da sociedade - fica evidente ao considerar que os 10% mais ricos detêm 50% da renda do

país e que 50% mais pobres se apropriam de apenas 10%. Apenas 1% da população detêm

parcela de renda superior à renda de 50% da população brasileira (Henriques, 2004, pp. 63-

64).

Em termos de renda per capita, o Brasil não pode ser classificado como um país pobre no

plano internacional. Esta renda era, em 2003, de 2.710 dólares (IPEA, 2005b), perto de

seis mil reais nos valores de hoje, bem superior a qualquer valor que possa ser associado à

linha de pobreza. Cerca de 77% da população mundial vive em países com renda per

capita inferior à brasileira (Henriques, 2004), e aproximadamente 64% dos países do

mundo têm renda per capita inferior à brasileira. Alguns autores (Barros et al, 2000)

demonstram que, se no Brasil tem-se mais de 30% da população abaixo da linha da

pobreza, em países com renda per capita similar à brasileira esse valor é inferior a 10%, o

7.Para entender a permanência da pobreza no Brasil tem-se que olhar para a estrutura da desigualdade de renda. Apenas dois países em um conjunto de 92 países apresentam um coeficiente de Gini superior ao encontrado para o Brasil, que é próximo de 0,60. Olhando-se a distribuição por quintis, tem-se que a renda média dos 20% mais ricos representa mais de 30 vezes a renda média dos 20% mais pobres (Barros et al, 2000, pp. 23-25). Em 1992, 20% das pobres detinham 3% da renda das famílias. Dez anos depois, essa participação se elevou para 4,2%, devido, principalmente, às transferências de renda operadas através de programas de assistência e previdência. Um ponto importante de ser destacado, ainda que não aprofundado agora, refere-se ao peso das transferências na redução da incidência da pobreza e indigência. Segundo simulações do IPEA, excluir tais transferências significara um crescimento de 10% no número de indigentes no Brasil (PNUD, 2004, p. 16). 8 Uma distribuição de renda mais eqüitativa seria suficiente para erradicar a pobreza, uma vez que existem recursos para isso. A renda per capita e o PIB per capita são de 5 a 8 vezes superior à linha de indigência e de 3 a 4 vezes à linha de pobreza no Brasil (Henriques, 2004).

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que indicaria que parte expressiva da pobreza no Brasil não está associada à escassez de

recursos, mas sim à perversa estrutura de desigualdade na distribuição da renda. Os autores

afirmam que a distribuição mais equitativa dos recursos disponíveis seria mais do que

suficiente para eliminar toda a pobreza (Barros et al, 2000, p. 20; Henriques, 2004)9.

Considerando-se outros indicadores além da renda, tem-se um retrato mais completo da

pobreza no Brasil. Ainda que as últimas décadas tenham apresentado avanços nos

indicadores sociais no Brasil (aumento da expectativa de vida, redução da mortalidade,

melhoria dos indicadores de acesso à saúde, educação, habitação e transporte), tem-se, em

2003, que quase 20% da população de 40 anos ou mais é analfabeta; 11,6%, ou 14,6

milhões de pessoas com 15 anos ou mais são analfabetas; 6,6 milhões de pessoas moram

em domicílios localizados em favelas; quase 42 milhões de pessoas, ou 28,5% da

população urbana não têm acesso simultâneo aos serviços de água, esgoto e coleta de lixo

(IPEA, 2005b). O acesso a esgoto sanitário é realidade para apenas 50% dos domicílios no

Brasil, sendo essa condição pior para os pobres e indigentes: menos de 30% dos domicílios

pobres estão conectados com redes públicas de esgoto ou contam com sistemas mais

simplificados de tratamento, como fossa séptica. Entre os domicílios em condição de

indigência, apenas 26% dispõem de algum tipo de saneamento (IPEA, 2005a, p. 107).

Os indicadores relativos ao mercado de trabalho são importantes para dimensionar os

desafios para a superação da pobreza no país. Sem políticas efetivas de fomento da

produtividade e de abertura de postos de trabalho, o enfrentamento sustentado da pobreza

9 Tanto o crescimento econômico quanto a distribuição de renda são consideradas como medidas centrais para o combate à pobreza. Uma instigante simulação ressalta os diferentes impactos que uma e outra estratégia provocariam para alterar nesse cenário: um crescimento de 4% ao ano de renda per capita por um período de 10 anos reduziria a pobreza em 12,5 pontos percentuais; enquanto que a redução do grau de desigualdade ao nível existente em Costa Rica (alterando o índice de Gini de 0,60 para 0,46), por exemplo, seria suficiente para alcançar o mesmo resultado, mesmo na ausência de crescimento econômico (Barros et al, 2000, pp. 27-28). É necessário um longo período de crescimento econômico estável para que se possa chegar ao mesmo resultado que uma alteração na estrutura de desigualdade provocaria. Uma estratégia eficaz de combate à pobreza seria alterar um dos mais importantes determinantes da pobreza, que é a desigualdade. Em 2005, a simulação é feita utilizando o indice de Gini do Uruguai (o menor da América Latina) e sustenta que a redução da desigualdade no Brasil ao valor existente no Uruguai, seria suficiente para reduzir em 20% a pobreza, que passaria de 34% para 14% da população (Henriques, 2004). Isso quer dizer que o caminho do crescimento econômico é importante, embora seja lento, para combater a pobreza. A busca de maior equidade deve ser o eixo central de uma política eficaz para fazer frente à pobreza. Na avaliação dos economistas do IPEA, sem alterar de forma radical a estrutura de desigualdade vigente, pouco pode ser feito para alterar o cenário de pobreza no Brasil. Esse debate entre crescimento e desigualdade é complexo e muito especializado e não é o objetivo aqui explorá-lo diretamente. Existem evidências, segundo parte da literatura corrente, que o crescimento econômico é insuficiente para acabar com a pobreza, mas também é evidente que existem condições pré existentes mais favoráveis para que o crescimento econômico seja condição não só necessária, mas também suficiente para acabar com a pobreza. Como se vê, existe um amplo campo para pesquisas e estudos nesse campo. Embora interessante e importante, essa não constitui a preocupação central do presente trabalho.

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não se efetiva. Vale ressaltar, a esse respeito, que houve uma redução da taxa de inserção

formal no mercado de trabalho, que caiu de 22,2% para 20,7% para os pobres e de 11,2%

para 10,4% para os indigentes, no período entre 1993 e 2002. A taxa de participação na

PEA é menor entre os pobres e indigentes, abaixo da média nacional, o que revela uma

dificuldade desses em encontrar uma ocupação no mercado de trabalho. Mas quando se

observa essa taxa para as faixas etárias entre 10 e 14 anos e acima de 60 anos (que não

deveriam estar trabalhando), tem-se uma alteração, com uma presença mais significativa,

nos estratos mais baixos de renda, de uma população idosa e infantil na PEA. Esse ponto é

importante e sinaliza as estratégias utilizadas pelos pobres e indigentes, de inserção de

crianças e idosos no mercado de trabalho, como forma de enfrentar a pobreza e a exclusão

(IPEA, 2005a, p. 103).

Quando se discrimina entre o contexto urbano e rural, tem-se que a redução da pobreza

ocorreu quase que exclusivamente na área rural, e o que se assiste é um processo de

urbanização ou metropolização da pobreza, principalmente a pobreza extrema (IPEA,

2005a, p. 97). Se houve um crescimento na renda dos domicílios pobres (6,6%) e

indigentes (14,2%) no Brasil no período de 1993 a 2002, tem-se um resultado diferente

quando se observa o contexto metropolitano: os ganhos de renda domiciliar entre os pobres

e indigentes foram menores, 3,6% e 4,2%, respectivamente (IPEA, 2005a, pp. 91,92)10.

Conforme apontam Torres e Marques (2004), quando se observa em escala nacional, a

pobreza não pode ser considerada como um problema metropolitano: apenas 19% dos

indigentes (com renda abaixo de um quarto de salário mínimo per capita) estão nas

regiões metropolitanas, mais de 34% concentram-se nas zonas rurais e mais de 46% estão

em regiões não metropolitanas. As regiões metropolitanas concentram aproximadamente

30% da população nacional e menos de 20% dos indigentes. Mas considerando apenas o

Sudeste, essa proporção se altera: nas regiões metropolitanas de São Paulo, Rio de Janeiro

e Belo Horizonte se concentram 39% dos indigentes, o que mostra que a pobreza é sim um

fenômeno metropolitano (Torres e Marques, 2004).

Segundo dados do IPEA (2005a), nas regiões metropolitanas do Brasil são mais de 3

milhões de indigentes, totalizando 6% de toda a população das metrópoles em 2002.

Nessas regiões, a taxa de desocupação foi superior à taxa nacional, passando de 9,3% em

10 O aumento do valor real do salário mínimo pode ser considerado o principal responsável pelo acréscimo de renda dos pobres, enquanto que para os indigentes, os benefícios e transferências são mais relevantes para explicar ganhos de renda per capita (IPEA, 2005a, p. 95).

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1993 para mais de 13,2% em 2002. Nessas áreas, a taxa de desocupação entre os jovens

pobres com idade entre 15 e 24 anos é de 40%, e entre os jovens indigentes, ultrapassou

52%, em 200211. Ainda de acordo com as análises do IPEA, o percentual de domicílios

com chefe desocupado é maior nas metrópoles do que a média do país. Entre 1993 e 2002,

houve uma redução do setor formal de quase 7% nas regiões metropolitanas, enquanto que

para o país como um todo houve um crescimento desse setor, que passou de 37,5% para

38,4% no mesmo período (IPEA, 2005a, p. 100). Esses dados são suficientes para

identificar uma situação de agravamento da pobreza no contexto metropolitano, ou ainda

para apontar para novos perfis da pobreza e problemas que são colocados nesse âmbito.

Essa constatação justifica o foco do trabalho na questão da pobreza urbana, com ênfase nas

políticas locais de enfrentamento da pobreza e exclusão.

Como se pode verificar a partir do exposto, a questão da pobreza ainda não foi

equacionada de forma efetiva, sendo um ponto citado à exaustão no âmbito internacional e

no campo das agências multilateriais e de desenvolvimento e nos fóruns e espaços globais

de deliberação.

Na literatura sobre modelos de desenvolvimento, uma das respostas para a superação da

pobreza é o crescimento econômico, entendido como a via mais direta para reduzir a

pobreza. A concepção de que crescimento econômico seria suficiente, por si só, para

superar a pobreza é problemática. A trajetória de vários países torna evidente a

permanência da pobreza, mesmo nos casos de crescimento econômico. Por exemplo, o

relatório de 2004 do Chronic Poverty Research Centre afirma que

“although human development indicators have improved over the past two decades, aggregate per capita household expenditure has barely risen – on average less than a half a percent – despite economic recovery and positive growth in the 1990s. In some countries, such as Peru, poverty rates rose and poverty gaps widened alongside substantial economic growth” (p. 79)

Entretanto, ainda que pesem as evidências quanto a sua insuficiência, grande ênfase tem

sido dada à estimativa das taxas de crescimento econômico necessárias para acabar com a

pobreza. Essa é a perspectiva dominante, embora se argumente, inclusive através das

agências internacionais como o Banco Mundial, que devem ser identificados modelos de

crescimento que levem em conta a desigualdade. No âmbito desse debate importa

11 Para o país como um todo, no mesmo ano, a taxa de desocupação entre os jovens de 15 a 24 anos ficou em 18,1%, enquanto que para jovens pobres e indigentes foi de 22,9% e 28,6%, respectivamente (IPEA, 2005a, p. 105).

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estabelecer, ainda dentro de uma visão estritamente econômica e individualizada da

pobreza, as relações entre crescimento, desigualdade e pobreza, com evidências de que o

crescimento deve ser combinado com redução da desigualdade para produzir efeitos na

redução da pobreza. Embora expandindo a concepção tradicional sobre crescimento

econômico e desenvolvimento, essa abordagem estrutura-se sobre a mesma ordem e

conjunto de preocupações tradicionais do debate sobre pobreza e crescimento

econômico12.

Nas palavras de Ricardo Henriques, a suposição que orienta essa perspectiva é mais ou

menos a seguinte: a pobreza resulta da não riqueza, crescimento gera riqueza, logo riqueza

reduz pobreza, sendo decorrente daí a estratégia, ou seja, crescimento econômico

(Henriques, 2004, p. 65). O que é efetivamente novo nesses esforços recentes parece ser

inserir nessa equação a variável desigualdade, que intervêm nesse processo de “riqueza

reduz pobreza”, mas sem abandonar os pressupostos ou a orientação básica desse conjunto

de suposições.

A questão da distribuição e, por conseguinte, da desigualdade é complexa e não deve ser

abordada de uma forma ligeira. Não vamos nos estender nesse debate, mas apenas pontuar

que, para uma abordagem estratégica da pobreza, deve-se considerar a possibilidade de

políticas mais universais de provisão de bens e serviços sociais, além de estratégias

redistributivas para reduzir os níveis de desigualdade. Além da incorporação da temática

da desigualdade e da exclusão na agenda pública, tem-se o desafio de garantir as

condições para sua implementação, o que significa recursos, alterações no padrão de

financiamento, condições institucionais e gerenciais para maior eficiência do gasto e maior

efetividade das políticas implementadas.

Um ponto importante e que justifica o trabalho refere-se ao fato de que pouco consenso há,

entre outras coisas, quando se trata das formas e conteúdos das políticas, bem como das

condições (sociais, políticas, econômicas e institucionais) necessárias e suficientes para seu

êxito. Embora antigo, o debate permanece, desafiando a ação dos agentes públicos

encarregados de desenhar e implementar estratégias concretas e efetivas para prevenção e 12 A concepção de desenvolvimento sustentável espelha essa ordem de preocupações, ao reverter o eixo das concepções de desenvolvimento, colocando no centro e tendo como base as pessoas, sob a ótica do desenvolvimento humano. Outros modelos de desenvolvimento, como os delineados nas formulações do PNUD, ultrapassam a perspectiva da renda, abrangendo o desenvolvimento como desenvolvimento humano (PNUD, 1996). A dimensão econômica, que não deixou de ser estruturante da mensuração das condições de vida (sendo um dos três componentes do IDH), refere-se agora a desenvolvimento econômico sustentável (PNUD, 2004). Obviamente a discussão e o debate na área é bastante mais ampla e profunda da que a desenvolvida aqui.

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superação da pobreza. O presente trabalho situa-se precisamente aí, na tentativa de lançar

luz e tornar mais evidentes e articulados alguns elementos apontados na literatura sobre

pobreza e políticas públicas como necessários para alterar a realidade mundial de milhões

de pessoas que vivem com múltiplas privações. Dentre a pobreza em geral, importa

ressaltar a pobreza crônica, severa e transmitida de geração a geração, que implica perdas

muitas vezes irreparáveis em várias dimensões da existência humana. Trata-se de focalizar

um subconjunto dos pobres, os muito pobres, os que são pobres há muito tempo, que

vivenciam situações de privações objetivas e imateriais e que não apresentam, por si só,

condições de saírem dessas condições de privações e espirais negativas de fragilização e

marginalização social.

Embora muito se produza sobre o fenômeno da pobreza, suas manifestações e formas de

mensuração, não parece existir um estoque de conhecimento que permita a identificação e

o uso de “tecnologias” adequadas e suficientes para se desenhar estratégias de políticas

públicas efetivas para o enfrentamento da pobreza e de novas formas de exclusão social.

De quais modelos dispomos para orientar a intervenção nas políticas voltadas para o

enfrentamento da pobreza crônica? Obviamente existe uma pergunta prévia sobre a

possibilidade de construir modelos formalizados, identificando os elementos que emergem

na literatura como sendo importantes de serem considerados13. Deixando essa questão e

essa pretensão de lado, trata-se aqui de fornecer um arcabouço conceitual capaz de

fornecer parâmetros para análise de experiências empíricas.

a) Delimitação do problema

A pergunta principal e que orienta o trabalho é a seguinte: é possível delinear, senão um

modelo de ação, pelo menos um conjunto de questões relevantes a serem levadas em conta

no desenho das estratégias de inclusão, tendo como referência a literatura sobre o tema?

Para respondê-la, tem-se a análise de parte da literatura sobre pobreza, por um lado, e sobre

políticas públicas e especificamente de proteção social, por outro, para extrair algumas

categorias analíticas centrais, conformando um quadro conceitual a partir do qual as

experiências locais de inclusão social possam ser analisadas. Evidentemente o presente

trabalho não cobriu todo o campo de produção científica sobre o tema da pobreza, como

por exemplo a rica produção no campo da história e do trabalho social. As escolhas

13 Uma imagem insólita: como se fosse possível preparar uma poção antipobreza, com determinados ingredientes que aparecem na literatura examinada como necessários para a compreensão dos fenômenos da exclusão e também da inclusão social.

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realizadas ao longo do processo de tese inviabilizaram a incorporação de outras

abordagens. Ainda que essas pudessem acrescentar elementos para a análise, o material

identificado já se mostrava suficiente para os propósitos da pesquisa.

Para compreender a problemática da pobreza no mundo contemporâneo, o enfoque

tradicional da pobreza, calcado em uma perspectiva monetária, pode não ser mais

suficiente. Esse é um pressuposto e um ponto de partida de toda a construção do

argumento. Existe um movimento, tanto em países desenvolvidos como em

desenvolvimento, no sentido de ultrapassar a visão da pobreza para além do enfoque

monetário. Entretanto, é importante deixar claro que, para todos os enfoques examinados, a

centralidade da dimensão econômica permanece, embora essa não seja suficiente para

caracterizar, por um lado e para superar, por outro, as condições de pobreza crônica. O

enfoque econômico ampliado encontra ressonância na abordagem da vulnerabilidade e

ativos. Entretanto, quais os limites e potencialidades do uso de novas concepções para a

compreensão da pobreza, principalmente quanto ao desenho das intervenções sociais?

Qual pode ser a efetiva utilidade de conceitos tais como exclusão, vulnerabilidade e riscos

para iluminar o desenho de estratégias consistentes e adequadas para lidar com as situações

de privações múltiplas em contextos urbanos do século XXI? Uma análise dos diferentes

enfoques sobre pobreza, com foco mais orientado para as abordagens da exclusão e da

vulnerabilidade, permite destilar alguns elementos que têm implicações para o desenho de

políticas locais de proteção social.

Uma primeira aproximação do tema será o próprio exame da literatura sobre pobreza e

sistemas de proteção social. O esforço consiste em identificar e sistematizar parte da

produção sobre o tema da pobreza, algo como um survey dos estudos e perspectivas

existentes, no sentido de detectar pressupostos e categorias analíticas, apontar diferenças e

similaridades entre os enfoques e mapear em torno de quais dimensões analíticas e

estratégias de intervenção há maior ou menor convergência e até que ponto divergências e

convergências esclarecem e ajudam na composição do quadro analítico.

A visão tradicional e mais utilizada sobre pobreza considera esse fenômeno a partir da

dimensão da renda, do consumo, que se expressa pela identificação dos pobres a partir do

estabelecimento de padrões mínimos de vida que são traduzidos em um valor monetário.

Essa abordagem caracteriza a pobreza como ausência ou insuficiência de renda, dimensão

considerada suficiente para identificar privação ou pobreza. A unidimensionalidade

presente no enfoque monetário da pobreza seria um obstáculo à compreensão do caráter

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multideterminado e multidimensional das condições de privação, o que abre espaço para

outras abordagens sobre o problema da destituição.

Esse é o primeiro ponto do argumento: a renda é, apesar de central, insuficiente para

caracterizar a pobreza, principalmente pobreza crônica, e para permitir desenhar estratégias

potencialmente mais efetivas de inclusão.

Outros enfoques consideram que outras dimensões seriam centrais e necessárias: pobreza é

um processo que envolve dimensões políticas, sociais e culturais, sendo, portanto,

inadequado abordá-la exclusivamente sob o aspecto econômico. Para uma compreensão

mais abrangente da pobreza, principalmente da pobreza crônica, extensa no tempo e

marcada pela intensidade das privações, é necessário incorporar outros fatores menos

tangíveis, para caracterizá-la, explicar sua produção, reprodução e também para sua efetiva

superação. Que categorias devem ser, então, necessariamente consideradas?

Os enfoques das capacidades, exclusão e vulnerabilidade reconhecem que processos de

inclusão e redução da vulnerabilidade social envolvem, além da renda, o acesso a serviços

públicos e sociais de qualidade; relações sociais, familiares e comunitárias de caráter mais

positivo; acesso a trabalhos qualificados, que confiram aos indivíduos não apenas renda,

mas também uma identidade e um “lugar social”. Além disso, tem-se a necessidade de se

viver em territórios dotados de adequada infra-estrutura social.

Esse é o segundo ponto do argumento: é necessário incorporar, para uma adequada

compreensão do problema e das estratégias de superação, não apenas a dimensão mais

tangível de bens e serviços oferecidos pelo Estado como também a dimensão relacional e o

foco no território, porque a pobreza é também fruto de relações sociais e de processos de

segregação e marginalização sócio-espacial. Reconhecida a centralidade do caráter

relacional da pobreza, principalmente a crônica, a pergunta seguinte é: que conseqüências

isso traz para o desenho de estratégias de intervenção?

O terceiro ponto do argumento é que, para enfrentar estrategicamente a pobreza, pode ser

imprescindível, do ponto de vista do conteúdo das políticas, desenvolver ações pautadas

pela busca da autonomia, ampliação das capacidades ou empoderamento das pessoas,

grupos e regiões. Sendo assim, as relações entre os agentes públicos e os usuários das

políticas ganham centralidade, pois esses se tornam os agentes catalisadores das mudanças,

atuando na direção do empoderamento, ampliação da capacidade de escolha e melhoria

efetiva nas condições e perspectivas de vida. A dimensão da agência tem aí um papel de

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destaque, e essa categoria é entendida como capacidade de ação e de protagonismo, de co-

autoria e co-responsabilidade do indivíduo pela sua trajetória de inserção e é utilizada para

afirmar o papel dos agentes institucionais, informais e familiares na produção de bem estar.

E finalmente tem-se a dimensão da infra-estrutura social, que identifica a ação combinada

de fatores da infra-estrutura formal (rede de bens e serviços existentes no território) e

fatores relativos à organização social (mecanismos de controle formais e informais, rede

associativa e ação de grupos diversos no processo de “auto-ajuda” comunitária), como

categoria pertinente para orientar a análise tanto do fenômeno da pobreza quanto das

estratégias para seu enfrentamento.

O aporte para essa discussão vem da literatura sobre exclusão e vulnerabilidade, englobada

no rótulo genérico de abordagens mais amplas sobre a pobreza. Claramente evidente aí é o

tom prescritivo e não vamos seguir por esse caminho. O que importa ressaltar é que os

elementos aportados por essas abordagens podem atuar como os condutores de saída das

condições de pobreza crônica, como mostra parte expressiva da literatura sobre o tema.

O ponto de chegada desse esforço de depuração consiste em definir, a partir das

concepções de capacidades, exclusão e vulnerabilidade, um quadro analítico apropriado

para compreender processos e dinâmicas sociais complexas no contexto urbano e, a partir

dessa identificação, são apontados elementos para nortear estratégias de ação para o

enfrentamento da pobreza crônica. Esse esforço analítico compõe a primeira parte da tese.

A segunda parte do trabalho recorre a outro conjunto da literatura relativa ao campo das

políticas públicas e políticas de proteção social. A pobreza aí é tratada não mais como

problema do conhecimento, mas como desafio para as políticas públicas.

A adoção das concepções de exclusão e vulnerabilidade para compreender de forma mais

abrangente as realidades de pobreza implica mudanças no marco institucional de políticas e

programas locais. Exclusão refere-se, sobretudo, ao tema da integração e manutenção da

ordem social, sinalizando as rupturas do lien social. Forçosamente, equacionar o problema

da exclusão implica rever normas e padrões de justiça que orientam as ações distributivas

em cada sociedade14. Em outro plano, bem mais modesto, estratégias locais de inclusão

14 Entretanto, sabemos que tais questões extrapolam o âmbito de atuação das políticas sociais, demandando soluções de natureza macroeconômica, que não serão examinadas aqui. As políticas sociais encontram limites muito fortes e que dizem respeito a salários, emprego e distribuição de renda, dinâmicas do mercado de trabalho, de desenvolvimento urbano e rural, o que remete a outros conjuntos de políticas do Estado. As implicações das políticas econômicas, de desenvolvimento, urbanas e de infra-estrutura estão diretamente relacionadas com as situações de pobreza e exclusão e funcionam como barreiras ou, em caso de ausência ou

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pautam-se pela perspectiva da autonomia individual e comunitária e do empoderamento, e

por estratégias de gestão orientadas pela integralidade das políticas, pelo foco na demanda

e na capacidade de ajustar intervenções às necessidades específicas das populações e

regiões pobres, excluídas ou segregadas.

A análise das estratégias de inclusão irá considerar, de forma prioritária, o âmbito de

gestão local15. Nos novos modelos de proteção social, o principal articulador das ações de

enfrentamento da exclusão social é o nível local, pois a proximidade facilitaria o processo

de capturar demandas heterogêneas e fornecer respostas adaptadas às necessidades da

população, o que poderia significar uma prestação de serviços mais qualificada.

Além disso, por sua proximidade das clientelas dos serviços, esse âmbito de gestão

desempenharia papel estratégico para viabilizar a conformação de redes, articular setores

governamentais e coordenar a cooperação entre o setor público e organizações não-

governamentais16.

A perspectiva da flexibilização dos serviços para ajustá-los à diversidade das demandas e a

alta interação entre agentes públicos e público alvo para a consecução das metas de

superação da pobreza são elementos, portanto, que pautam o campo das transformações de

natureza técnico-institucional em curso. Essa mesma perspectiva, de flexibilização da

oferta, captura da heterogeneidade e especificidades da pobreza combina-se, por outro

lado, com a necessidade de maior interação entre agentes públicos e as pessoas e famílias

atendidas, dada a natureza das mudanças ou dos efeitos pretendidos junto a essa população.

Com base no quadro assim construído, e tendo como referência as categorias analíticas e

os elementos explorados ao longo da primeira e da segunda partes do trabalho, tem-se

condições para examinar duas experiências locais de inclusão social em metrópoles

brasileiras, com o objetivo de identificar a presença desses elementos no desenho das

estratégias de intervenção. Esse termo, desenho, é aqui entendido como o conjunto de

pressupostos e concepções de natureza teórica (e normativa) que orientam ou embasam a

intervenção pública, e refere-se ao campo das teorias em uso que informam as ações ou as

má qualidade dos serviços, como elementos potencializadores e perpetuadores dessas mesmas condições de vulnerabilidade e destituição. 15 Na Europa tem-se, nas últimas duas décadas, um movimento de re-politização do âmbito da gestão local, movimento que encontra correspondência com processos de descentralização e municipalização das políticas sociais no Brasil. 16 No campo da gestão social, a perda do monopólio da gestão pelo Estado significou a ampliação das parcerias público- privadas e a presença mais direta de organizações não governamentais na provisão dos serviços.

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concepções existentes quanto à mudança social e o papel das intervenções nesse processo

de transformação social. Uma definição forte de desenho engloba outro nível de questões,

que envolve não apenas a dimensão mais conceitual e substantiva, mas também recursos e

o marco operacional e institucional das políticas. A pretensão ao se examinar as duas

experiências é ressaltar se, e em que medida, essas estratégias contemplam, em seu

desenho, elementos do quadro analítico aqui apresentado, o que representa colocar em

movimento as categorias mobilizadas e buscar identificá-las nas ações efetivamente

realizadas.

Com esses elementos em tela tem-se um quadro com as categorias necessárias para

posicionar, na contraluz, o desenho das estratégias de intervenção dos programas de São

Paulo e Belo Horizonte. A apresentação dos casos, mais uma vez, não tem a pretensão de

validar nenhum modelo ideal típico de intervenção, mas sim de prover elementos

empíricos para as categorias de análise, apontando alguns limites nos quais se esbarra na

prática quando se busca implementar, no nível local, as diretrizes de intersetorialidade e da

governança, por um lado, e metodologias e processos de empoderamento, por outro. Não

se trata de uma análise propriamente dita da implementação dos programas, ou de seus

resultados, no sentido estrito. Procura-se recuperar, a partir de fontes secundárias no caso

de São Paulo e também de fontes primárias no caso de Belo Horizonte, elementos que

fazem parte das estratégias de intervenção adotadas, identificando questões que, na prática

e no contexto da implementação, impõem limites para a tradução de ideais em ações

concretas. A idéia básica consiste em sustentar que as categorias e os elementos

identificados na literatura, tanto na primeira quanto na segunda parte do trabalho, são

fundamentais no desenho de estratégias efetivas de superação da pobreza; e também

mostrar alguns tipos de dificuldades que podem aparecer quando se tenta implementar de

fato tais estratégias.

Este trabalho identifica e situa as contribuições da literatura sobre o tema das concepções e

mensuração da pobreza, por um lado, e das políticas de proteção e combate à pobreza, por

outro, para construir um quadro analítico com as categorias chave que articulem dois

campos de tradições científicas sobre pobreza. O trabalho sustenta-se em dois grandes

pontos de apoio: a pobreza é tanto um problema para o conhecimento quanto um problema

para as políticas públicas. Para tanto, são identificados os elementos centrais de uma visão

ampliada de pobreza, que se articulam com as categorias de multidimensionalidade,

heterogeneidade e com o reconhecimento das dimensões subjetivas da pobreza, com foco

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na autonomia, participação, empoderamento, e em ações e políticas intersetoriais e mais

integradas, inclusive no âmbito do território17. A proposta é capturar e organizar as

dimensões e categorias que emergem na literatura examinada com o objetivo de analisar, a

partir do quadro assim construído, duas estratégias locais desenvolvidas em contextos

metropolitanos.

O presente trabalho não tem a pretensão de cobrir o vasto campo de produção teórica e

empírica sobre a pobreza, em todos os campos e disciplinas nos quais essa discussão ou

preocupação se insere. O esforço aqui é infinitamente mais modesto e essa escolha deixa

de fora importantes contribuições de outros campos de conhecimento, como a economia e

a história social, por exemplo. Como toda investigação científica, trata-se de proceder a um

recorte da realidade, da seleção de pontos de vista a partir do qual se constrói o objeto de

conhecimento. No caso, não se trata aqui de discutir as causas da pobreza, o que

demandaria um outro tipo de trabalho. Certamente trata-se de um tema bastante denso,

espinhoso, de difícil tratamento, cuja análise envolvera questões relativas aos processos

econômicos, demográficos e urbanos, que não foram examinados aqui. A intenção foi fazer

um balanço de parte da literatura sobre o tema da pobreza e políticas públicas e organizar

os enfoques e perspectivas em um marco integrado de análise, capaz de fornecer subsídios

para a ação, orientando o desenho de estratégias de intervenção.

b) Notas metodológicas

Para identificar as diversas concepções ou enfoques foi realizada uma pesquisa junto a

diversos organismos governamentais e não governamentais, nacionais e internacionais, a

distintos periódicos e autores que trabalham com o tema abordado. Evidentemente não foi

possível cobrir todo o material disponível e nem essa era uma meta factível de ser

colocada. A escolha foi por identificar algumas fontes básicas, que apresentassem um certo

acúmulo de reflexão, produção teórica e empírica sobre questões diversas relacionadas ao

tema da pobreza, exclusão, vulnerabilidade, etc. Não se tinha uma lista a priori, sendo que

estas instituições foram sendo identificadas ao longo do trabalho de pesquisa. Basicamente

o acesso à maioria dos textos se deu por meio eletrônico, o que não excluiu a busca e o uso

17 Uma idéia bastante preliminar desse conjunto de preocupações foi desenvolvida por mim e por Bruno Lazzarotti Diniz Costa em uma publicação em 2002. Posteriormente, quando convidada para ministrar um curso na AVSI sobre pobreza e políticas públicas pude começar a desenvolver analiticamente tanto os diferentes enfoques sobre a pobreza como suas implicações para o conteúdo das políticas de inclusão de forma mais sistemática.

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de textos e artigos disponíveis apenas em meio físico. Dentre as instituições e fontes, pode-

se enumerar as seguintes:

• Comisión Econômica para América Latina y el Caribe (CEPAL), órgão das Nações

Unidas voltado para a produção de pesquisas e publicações sobre um vasto conjunto de

temas, dentre eles, pobreza e políticas sociais.

• Chronic Poverty Research Centre (CPRC), criado em 2000 com recursos do

Departamento para Desenvolvimento Internacional do governo da Grã Bretanha

(Department for International Development/DFID), que consiste em um grupo

internacional de universidades, organizações não governamentais e institutos de pesquisas

voltados para o estudo da pobreza crônica.

• Department for International Development (DFID), ministério do governo britânico

que apresenta uma vasta produção sobre o enfoque dos modos de vida (livelihood

approach).

• Institute of Development Studies (IDS), um instituto de pesquisa independente,

fundado em 1966 e com sede na Universidade de Sussex, voltado para o desenvolvimento

internacional e também conta com apoio do Departamento de Desenvolvimento

Internacional do governo britânico.

• Social Exclusion Unit (SEU), unidade criada em 1997 pelo Primeiro Ministro da

Grã Bretanha, encarregada da produção de políticas de inclusão social.

• Overseas Development Institute (ODI), uma organização não governamental

sediada na Grã Bretanha, voltada para atuação no campo do desenvolvimento e para

questões humanitárias.

• Comparative Research Programme on Poverty (CROP), uma organização não

governamental criada em 1992 pelo Conselho Internacional de Ciências Sociais e com sede

na Noruega e atua também em parceria com a Universidade de Manchester, na Grã

Bretanha.

• Centre of Analysis on Social Exclusion (CASE), criado em 1997 pelo Conselho de

Pesquisa Econômica e Social da London School of Economics and Political Science.

• Queen Elizabeth House, da University of Oxford, que apresenta uma série de

produções teóricas e empíricas sobre os diversos enfoques sobre pobreza, exclusão.

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• Centro Latinoamericano de Administracion para el Desarrollo (CLAD),

organização pública internacional criada em 1972 por iniciativa conjunta de três países

(México, Peru e Venezuela), com sede na Venezuela, orientada para os temas da

administração pública.

• International Institute for Labour Studies (IILS), unidade da Organização

Internacional do Trabalho que produziu, a partir de um projeto de pesquisa que contou com

o apoio do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) , uma série de

textos sobre o tema da exclusão.

• Banco Mundial, organização financeira internacional que fornece uma vasta

produção teórica e empírica sobre os temas da pobreza, vulnerabilidade e risco, proteção,

capital social, desenvolvimento social, dentre outros, em suas diversas unidades e projetos.

• Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), que desenvolve

uma grande produção sobre o tema da pobreza, direitos e desenvolvimento humano.

No Brasil foram identificadas as produções realizadas principalmente pelo Instituto de

Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e as disponíveis em periódicos principais das áreas

de políticas públicas e afins (como Revista Brasileira de Ciências Sociais e Dados,

principalmente).

Os artigos, relatórios e documentos identificados a partir do survey realizado nas diversas

instituições forneceram material para a primeira parte do trabalho, principalmente. A

segunda parte, que contém relatos empíricos, foi além de fontes secundárias (documentos,

relatórios e livros produzidos sobre os programas examinados) e se utilizou também de

informações geradas pela autora. As informações, principalmente no caso de Belo

Horizonte, foram resgatadas a partir da coleta de dados primários realizada junto à

Prefeitura, no âmbito de um trabalho de consultoria realizado pela autora juntamente com

Laura da Veiga, no projeto URB-AL, orientado para a discussão da intersetorialidade nos

programas de combate à pobreza, desenvolvido no ano de 2005. No caso de São Paulo, as

fontes foram exclusivamente secundárias e, na maioria das vezes, oficiais. Na análise do

Programa Puente mesclam-se fontes oficiais e artigos e resultados de avaliação, que não

são ainda abundantes, dado o pouco tempo de implementação da estratégia. Evidentemente

o uso excessivo de fontes oficiais é um ponto sensível e para minimizar os riscos da análise

permanecer refém das informações oficiais, outras fontes disponíveis foram consultadas.

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c) A organização do trabalho

A primeira parte do trabalho tem como eixo a pobreza como um problema do

conhecimento. O primeiro capítulo aborda as distintas concepções e enfoques sobre

pobreza, vulnerabilidade, exclusão, que se ligam, no segundo capítulo, com as diferentes

formas de mensuração que se referem, no final das contas, à identificação dos grupos

destinatários das políticas de proteção social. Nesses capítulos que compõem a primeira

parte do trabalho, tem-se a relação entre concepção e mensuração, o que remete à própria

construção do objeto no campo da sociologia. A perspectiva da construção do objeto

encontra ressonância em Weber e em teóricos clássicos da sociologia como Pierre

Bourdieu, e com essa perspectiva se quer enfatizar que o analista, ao se debruçar sobre

uma realidade, procede a uma seleção de aspectos dessa realidade, no sentido de configurar

um objeto analítico, que não se confunde com a própria realidade, muito mais complexa e

disforme. A construção do objeto parte sempre de uma certa concepção, uma seleção de

categorias ou dimensões consideradas como relevantes para serem contrastadas com a

realidade empírica. Neste trabalho, esse processo envolve uma compreensão do que é a

pobreza, o que a caracteriza, como ela pode ser identificada, o que a causa, o que a faz

permanecer, o que é necessário para superá-la. Essas questões são importantes para situar

o problema da pobreza enquanto um problema de conhecimento. Contudo, elas ganham

materialidade quando a pobreza é tratada também como problema para a ação.

A segunda parte do trabalho centra-se em um ponto distinto do debate sobre a pobreza,

mais especificamente sobre as políticas de proteção social. A perspectiva da segunda parte

do trabalho é olhar a pobreza não do ponto de vista do conhecimento, mas como objeto de

ação. Essas dimensões – conhecimento e ação – não são tão independentes e

freqüentemente encontram-se imbricadas: toda concepção envolve formas e critérios de

mensuração e idéias implícitas (ou não) sobre as formas e alternativas de intervenção

possíveis.

O terceiro capítulo focaliza o tema da pobreza do ponto de vista das políticas de proteção

social, a partir da identificação de modelos teóricos e alternativas de enfrentamento da

pobreza e da exclusão, mapeando tendências em curso. Duas grandes linhas teóricas de

entendimento da questão social podem ser delineadas e são determinantes do desenho das

estratégias atuais nos países desenvolvidos e em desenvolvimento no que se refere ao

enfrentamento da pobreza e das novas formas de manifestação da questão social. A questão

social pode ser focalizada a partir da velha e estruturante questão da sociologia, relativa à

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produção e manutenção da ordem social, às relações que vinculam indivíduos à sociedade

e permitem a coesão social ou, no mínimo, a não dissolução da vida social. Uma visão

mais afinada com as perspectivas do individualismo sociológico contrapõe-se a uma visão

de matriz coletivista, e essa dualidade se expressa também nas distintas visões sobre os

sistemas de proteção social e o papel que tais políticas devem e podem cumprir na

superação da pobreza. Tem-se, nesse sentido, estratégias de proteção que tendem ao

universalismo ou ao residualismo e mais ou menos sustentadas pela ênfase nos aspectos

sociais ou coletivos da pobreza.

O quarto capítulo apresenta o conjunto de elementos que decorrem das novas agendas no

âmbito da proteção social e da gestão pública, que, somados às categorias identificadas na

primeira parte, constituem os elementos de um modelo de ação para políticas de

intervenção anti-pobreza, exclusão e vulnerabilidade social. Embora questões relativas ao

contexto da formulação e da implementação de políticas sejam cruciais para entender

processos e resultados de políticas públicas, sua consideração será secundária no âmbito

desse trabalho.

O objetivo do quinto capítulo é fornecer uma espécie de síntese dos capítulos anteriores.

Com base nas discussões realizadas, o esforço é derivar das distintas concepções e

enfoques as implicações para o desenho de políticas, enfatizando as conseqüências de se

focalizar a perspectiva da pobreza sob o prisma da exclusão, das capacidades e da

vulnerabilidade. Ao se agregar a essa questão as categorias relativas ao tema da pobreza

como problema para a ação, têm-se os elementos necessários para delinear o arcabouço

analítico que situa a problemática da pobreza enfrentada pelas políticas locais.

O sexto capítulo apresenta duas estratégias de intervenção efetivamente implantadas, tendo

como pano de fundo os mapeamentos e “modelos” anteriormente construídos. O objetivo é

identificar, no desenho das políticas em curso em duas metrópoles brasileiras (Belo

Horizonte e São Paulo), elementos do quadro analítico e do modelo de ação aqui esboçado.

O sétimo capítulo apresenta algumas considerações finais, embora não conclusivas.

Um dos objetivos da tese é estabelecer o nexo entre a pobreza como problema para o

conhecimento e como problema para as políticas públicas, algo pouco trabalhado nos dois

grandes conjuntos da literatura examinados. A pobreza crônica e a desigualdade

permanecem não equacionadas pelos processos de crescimento econômico e se somam a

novas formas de vulnerabilidade e exclusão próprias do mundo contemporâneo. A

tendência de dualização, de formação de sociedades divididas entre quem está dentro e

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quem está fora dos circuitos das trocas sociais, existe como sombra do processo de

transformação global, e os resultados desse processo não se restringem a, mas sofrem os

efeitos das políticas desenvolvidas no campo da proteção social local e da natureza da

relação que se cria entre tal sistema e os indivíduos e grupos entitulados pobres (Paugam,

2003). Pensar sobre as dimensões e características das políticas de proteção social, de

forma articulada com uma reflexão sobre distintas concepções de destituição, pode ser um

caminho para tornar mais claros e evidentes, principalmente para os formuladores e

gestores de políticas públicas, os desafios para o enfrentamento estratégico da pobreza no

âmbito local.

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PARTE I – A POBREZA COMO DESAFIO PARA O CONHECIMENTO

A primeira parte do trabalho, formada pelos capítulos um e dois, é voltada para o exame da

pobreza do ponto de vista do conhecimento e o foco permanece no exame de distintas

concepções sobre a pobreza e na sua operacionalização, na tentativa de mapear como cada

enfoque apresenta uma forma de identificar e distinguir os pobres dos não pobres.

A idéia básica aqui é que diferentes concepções levam a diferentes formas de mensuração e

também, ao mesmo tempo, a diferentes respostas quanto às políticas e estratégias de

intervenção. Explorar as diferentes visões sobre a pobreza significa identificar, dentre

outros elementos, os principais pressupostos de cada enfoque, suas categorias constitutivas,

ênfases disciplinares, os elementos pelos quais cada enfoque aborda o problema da

pobreza, sobre o que cada visão lança luz e o que deixa na sombra.

O primeiro passo é proceder à análise das diferentes concepções, enfoques ou abordagens

sobre pobreza, tendo claro que cada perspectiva envolve escolhas sobre dimensões a serem

consideradas na definição ou na caracterização da pobreza (capítulo 1). Tem-se uma forma

de mensuração embutida em cada concepção, o que leva a diferentes formas pelas quais a

pobreza pode ser empiricamente identificada ou, em outros termos, como as distintas

concepções e enfoques são operacionalizados (capítulo 2).

Essa discussão, para além do interesse propriamente conceitual e metodológico, apresenta

uma centralidade no debate sobre políticas de enfrentamento da pobreza, uma vez que

remete tanto às concepções que informam a leitura ou o diagnóstico da realidade quanto à

identificação dos públicos legítimos das estratégias de intervenção no campo da proteção

social.

Cada concepção revela uma visão do problema e ao mesmo tempo uma receita, um

remédio para o mal da pobreza, segundo Fanfani (1991). As soluções propostas para atacar

o problema espelham uma certa visão, uma perspectiva particular que revela e oculta algo

ao mesmo tempo. Os “remédios” ou a ação prescrita são objeto da segunda parte do

trabalho, ao considerar a pobreza como um problema não apenas para o conhecimento,

mas para a ação.

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CAPÍTULO 1 - CONCEPÇÕES SOBRE POBREZA: DESAFIOS PARA O

CONHECIMENTO

“Detrás de cada estilo de política publica siempre existe, en forma implícita o explicita, una determinada perspectiva teórica, es decir, un modo especifico de ver las cosas. Una teoria, en sintesis, es un sistema de categorias de percepción” (Fanfani, 1991, p. 92).

O objetivo do presente capítulo é examinar as diferentes concepções ou enfoques sobre

pobreza, entendendo por enfoque o conjunto de pressupostos conceituais que informa a

visão sobre a pobreza, aspectos e dimensões que a definem. Distintas abordagens levam a

diferenças na identificação de quem são os pobres, a partir de distintas formas de

mensuração da pobreza, o que tem implicações para a política pública, incluindo, dentre

outras coisas, o aspecto da focalização (Laderchi, Saith e Stewart, 2003, p. 26). Os critérios

de focalização utilizados para definir o público legitimamente demandatário das políticas

estão diretamente relacionados com a concepção de pobreza que lhe é anterior. Quer dizer,

os critérios, escolhas e unidades de análise da focalização decorrem de definições prévias

sobre o que é a pobreza e como ela deve ser caracterizada. Também essas definições

trazem, de forma mais ou menos explícita, uma proposta de solução para o problema da

pobreza.

Partindo da identificação e análise dos diferentes enfoques, tem-se, portanto, dois

desdobramentos. Um remete diretamente ao problema da mensuração, da identificação de

indivíduos e famílias considerados pobres e distintos de um grupo não-pobre. O segundo

remete não apenas à mensuração, mas também às alternativas de intervenção que são

desenhadas para sua superação. O esforço aqui realizado é o de analisar as concepções e as

hipóteses que lhes são subjacentes para explorar as implicações e os nexos para a

formulação e implementação de políticas locais de bem estar social. Os enfoques não

incorporam ou enfatizam o mesmo conjunto de questões, relativas à definição da pobreza,

ao que a causa, o que a faz permanecer, o que é necessário para superá-la.

Alguns estudos situam diferentes enfoques e tradições no estudo sobre pobreza (Spicker,

2005; Mideplan, 2002; Laderchi, Saith e Stewart, 2003; Feres e Mancero, 2001; Franco,

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2003), embora não haja consenso sobre os enfoques existentes18. Procura-se explorar como

cada concepção emerge e em que se fundamenta: como ausência de recursos monetários,

de não realização de capacidades, como necessidades básicas insatisfeitas, como processos

de desqualificação social, como vulnerabilidade e riscos. Cada perspectiva constrói-se em

torno de conceitos e pressupostos teóricos chaves que orientam as metodologias de

mensuração. O objetivo é construir, a partir do exame dos arcabouços nos quais tais

enfoques se enquadram, um quadro teórico abrangente para a análise da pobreza em

sociedades urbanas atuais19.

Os enfoques e as diferentes estratégias de mensuração distinguem-se em pontos diversos: o

grau em que os parâmetros utilizados em um contexto podem ser aplicados sem alterações

significativas em outros; a ênfase em métodos objetivos ou subjetivos na mensuração do

fenômeno; a visão uni ou multidimensional da pobreza; seleção de unidades de análise

(indivíduos, famílias, territórios); definições de cadeias de causalidade da pobreza e

estratégias para sua superação (Laderchi, Saith e Stewart, 2003). Uma primeira constatação

com relação a esses enfoques refere-se à identificação de uma certa linha temporal,

graficamente representada na figura 1.

Figura 1: Enfoques sobre a pobreza em uma linha temporal

Fonte: Elaborado pela autora

Pobreza como ausência de renda

Anos 70

Conceito necessidades básicas, que envolve acesso a certos bens e serviços

Enfoque das capacidades e da exclusão social, e a percepção de que pobreza é relativa e conectada com dimensões políticas, morais e culturais de cada sociedade. Noção de trajetória

Anos 80 Antes dos anos 70

Pobreza multidimensional e altamente especifica ao contexto. Foco não mais exclusivamente na caracterização da pobreza, mas nos processos. Noção de risco e vulnerabilidade. Ativos, empoderamento

Anos 90

18 O documento do Mideplan (2002), por exemplo, discute brevemente os seguintes enfoques: a) o da renda, b) o das necessidades básicas, c) o do desenvolvimento humano, das capacidades e realizações, d) o do capital social, e) o da exclusão, f) o da vulnerabilidade, g) o do direito ao desenvolvimento. Outros dois textos (Laderchi, Saith e Stewart, 2003; Franco, 2003) comparam quatro enfoques: a) monetário, b) capacidades c) exclusão social e d) participativo. 19 A pobreza, embora seja um fenômeno igualmente relevante no âmbito urbano ou rural, apresenta características diferenciadas em um e outro contexto e causas também distintas. Embora algumas categorias sejam úteis para pensar a pobreza em ambos, o foco aqui será a pobreza urbana, por uma questão de delimitar o campo de análise e tornar mais manejável o exame da literatura sobre o tema da pobreza. Além disso, e de forma mais substantiva que metodológica, a nova pobreza é essencialmente urbana e apresenta tendências de agravamento.

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1.1- O enfoque monetário: pobreza como condição exclusivamente econômica

O enfoque dominante na produção científica sobre pobreza aborda a pobreza a partir da

perspectiva monetária, focalizando a renda e o consumo de indivíduos e domicílios como

informação básica tanto para a concepção quanto para a mensuração da pobreza. Nesse

caso, são pobres aqueles que não alcançam um nível de renda suficiente para satisfazer as

necessidades, absoluta ou relativamente estabelecidas, de sobrevivência.

A percepção da pobreza como um problema sobre o qual a ciência poderia se debruçar

emerge no final do século XIX, época de constituição das ciências sociais e econômicas.

Charles Booth e Seebhom Rowntree20 seriam os pioneiros nos estudos de mensuração da

pobreza, precursores dos pesquisadores voltados para quantificação e análise do tema da

pobreza. Segundo Laderchi (2003), uma questão importante refere-se à ênfase concedida,

nesses trabalhos seminais, nos procedimentos técnicos, mais do que nas questões analíticas

(Laderchi, 2003, p. 9). Pobreza é identificada com o baixo consumo e baixa renda, sendo

possível, com as ferramentas apropriadas, estabelecer métricas monetárias uniformes que

possam, independente da heterogeneidade entre indivíduos e situações, capturar níveis de

bem estar através da renda, entendida como proxy do estado de privação individual

(Laderchi, Saith , Stewart, 2003, p. 7). A definição da pobreza é, portanto, dada por sua

20 Booth, em 1887, motivado para saber de fato se um terço das pessoas em Londres eram pobres, como afirmavam os socialistas, buscou informações junto a “school board visitors” - que eram oficiais encarregados de identificar domicílios onde crianças pobres viviam e garantir a elas educação adequada, segundo o ato de educação compulsória de 1877 (Laderchi, 2003, p. 6) – para desenhar um mapa da pobreza de Londres. Com base nessa e outras informações, Booth desenvolveu, durante dezessete anos, um retrato minucioso e detalhado sobre a vida e o trabalho em Londres no fim do século 19, com mapas sobre regiões e equipamentos existentes, documentando, em cores, a realidade existente e o modo de vida dos pobres. Com a intenção de estudar os diferentes modos de vida e trabalho, Booth teria identificado oito classes sociais, sendo quatro abaixo e quatro acima da “linha de pobreza”. Sua intenção original, mais do que estabelecer um valor monetário para distinguir entre pobres e não pobres (embora tenha feito isso), era analisar as diferenças qualitativas entre as classes, e pontuar a centralidade da dimensão do trabalho e moradia para definir a condição de pobreza. Em seus estudos, salientou a questão da cultura da pobreza, compreendendo por isso uma série de fatores que influenciavam, mais do que a renda em si, para essa condição. Em uma perspectiva distinta, pouco tempo depois, tem-se o estudo de Rowntree, em 1899, o primeiro survey realizado sobre a pobreza na cidade de York. Sua intenção foi a de estimar, com base nos padrões nutricionais mínimos recentemente estabelecidos, a linha de “pobreza primária”, definida a partir de padrões nutricionais acrescidos de custos com roupas e moradia. Diferentemente de Booth, os dados de Rowntree foram recolhidos diretamente em uma amostra de 2/3 dos domicílios existentes, sendo que os entrevistadores foram orientados para observar domicílios nos quais, embora apresentando uma renda para manter eficiência mínima, as pessoas viviam em situação de pobreza, designada “pobreza secundária”. Ao distinguir entre pobreza primária e secundária, Rowntree postulou causas diferentes para os dois tipos de pobreza como também a dimensão relativa existente a ser incorporada na mensuração da pobreza. Existem padrões de estilo de vida ou de bem estar considerados aceitáveis - contextual e temporalmente - como mínimo adequado (Laderchi, 2003, p.7) e essa condição não permitiria que se considerasse a pobreza sob uma forma absoluta, supondo, sem problematização, a possibilidade de se estabelecer uma linha de demarcação entre pobres e não pobres de forma inequívoca e imune a questões valorativas.

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mensuração: pobreza está ligada direta e substancialmente com ausência de renda, sendo

pobres os que se situam abaixo de uma linha de rendimento monetário definida de forma

absoluta ou relativa. Esse ponto tem conseqüências diretas na produção atual sobre o tema

da pobreza, que enfatiza sobretudo a dimensão metodológica, com a preocupação com a

geração de dados e desenvolvimento de técnicas “científicas e objetivas” para a

mensuração da pobreza. A suposta neutralidade seria problemática, uma vez que a conexão

com o campo dos valores políticos é direta: “searching for objectivity on the one hand and

waiting to inform political processes on the other” (Laderchi, 2003, p. 3).

Booth e Rowntree partilhavam uma concepção de pobreza como algo externamente

perceptível, e acreditavam na capacidade da ciência de propor ações efetivas para a

redução da pobreza, baseadas na objetividade dos dados obtidos (Laderchi, 2003, p. 6 e 9).

A pobreza existe “lá fora” e pode ser medida de forma objetiva, sem considerar aspectos

ou dimensões subjetivas. Os dois entendiam a pobreza sob uma perspectiva individualista,

sem percebê-la como resultado de processos sociais. Laderchi salienta a influência dos

valores vitorianos na concepção e nas proposições feitas pelos autores, que incluíam a

deportação de pobres para colônias de trabalho nas quais eles seriam bem cuidados,

empregados de manhã à noite, e onde poderiam ser fortalecidos, já que padeciam de uma

espécie de fraqueza moral (Laderchi, 2003, p. 8).

Entretanto, apesar de ambos partilharem um conjunto importante de pressupostos e

orientações, o foco de Booth incluía uma perspectiva qualitativa, definindo a pobreza a

partir da visão de agentes locais, localizando-a espacial e cartograficamente, de forma

semelhante ao que se faz hoje - com as devidas distinções dadas, sobretudo, pelo avanço

das estatísticas e da tecnologia -, nos mapas de exclusão social. Rowntree, por sua vez,

focalizou medidas estatísticas, priorizando a coleta extensa de dados com vistas a

estabelecer a distinção entre pobres e não pobres, sendo a perspectiva que dominou,

durante muito tempo e de forma quase absoluta, o campo de estudos da economia. Esses

estudos seminais, desenvolvidos no fim do o século XIX, ainda inspiram, de forma

dominante, os estudos realizados sobre o tema da pobreza no século XXI.

O enfoque da pobreza sob uma perspectiva monetária decorre diretamente dessa

abordagem pioneira de Rowntree. A concepção baseada na vertente nutricionista, que

emerge com os trabalhos pioneiros, considera a pobreza do ponto de vista de padrões de

subsistência mínimos, no âmbito da subsistência ou sobrevivência (Lavinas, 2003, pp. 29,

30). Rowntree estabeleceu uma linha monetária, calculada a partir das necessidades básicas

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de alimentação, vestuário e moradia. Apesar de se sofisticar ao longo dos anos, a idéia que

orienta os estudos e análises que fazem parte da produção atual ainda dominante no campo

da economia é a mesma presente em Rowntree. A dimensão dos requisitos nutricionais

mínimos continua pautando a estratégia de mensuração. A linha monetária da pobreza é a

mais utilizada como critério para identificação do público e para o estabelecimento de

valores de transferência de renda em grande parte das políticas de proteção social em

curso.

A abordagem econômica utiliza uma variável monetária, basicamente a renda21, como

medida de pobreza. A partir da visão da pobreza como fenômeno exclusivamente

econômico, mede-se o nível da qualidade de vida tendo como referência uma linha de

pobreza. A linha de pobreza demarca os não pobres e os pobres e, dentre esses, os

indigentes ou situados em pobreza extrema. Uma pessoa é pobre se a renda ou os gastos

agregados forem inferiores a um valor estabelecido como necessário para a sobrevivência.

Esse valor pode ter como referência um padrão absoluto (calculado a partir de requisitos

nutricionais) ou ser relativo ao padrão vigente em dada sociedade. Tal distinção orienta a

visão da pobreza absoluta e pobreza relativa.

Embora este seja o enfoque mais considerado no discurso e nas práticas de mensuração da

pobreza, ele tem fragilidades e limitações. O central desse enfoque e o que nos interessa

discutir são os pressupostos de que é possível identificar uma descontinuidade entre pobres

e não pobres que pode ser demarcada por alguma espécie de linha. Tem-se como axioma

que é possível distinguir os pobres dos não pobres de forma objetiva, ainda que seja

problemático estabelecer padrões básicos universais, válidos para todos os tempos, lugares

ou condições de vida de indivíduos e grupos. Uma das fragilidades reside na

impossibilidade de definir, de forma não controversa, um nível mínimo abaixo do qual os

indivíduos encontram-se ameaçados em sua sobrevivência. Existe esse nível, mas não se

pode desconsiderar que ele, mesmo estabelecido como ponto de demarcação, é sempre

relativo, fruto de uma convenção22.

21 A abordagem econômica é muito mais sofisticada do que a forma como é apresentada aqui, uma vez que considera renda, gastos ou consumo como medidas diferentes da pobreza. Para o propósito do trabalho, consideramos como referência básica o enfoque monetário, que engloba essas diferentes dimensões do aspecto econômico. 22 A questão reside na impossibilidade de estabelecer, de forma universal, esse mínimo necessário em termos nutricionais: existem diferenças de sexo, idade, atividades e taxas metabólicas diferenciadas, que implicam necessidades diferenciadas, em contextos também diferenciados.

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Outra limitação desse enfoque refere-se à ênfase exclusiva na dimensão econômica do

problema, que limita o âmbito, as possibilidades e a clareza sobre os limites das

alternativas de intervenção. Esse constitui, a nosso ver, o ponto central a ser considerado.

A mais grave limitação desse enfoque é o seu suposto básico – pobreza é sinônimo de

insuficiência de renda - e as conseqüências daí advindas, de que basta fornecer renda para

alterar a situação de vida das populações pobres. Além disso, considerar a renda dos

indivíduos, verificada em um momento no tempo, não permite distinguir entre pobreza

crônica e temporal, dificultando o desenho de estratégias diferentes para uma e outra

situação (Mideplan, 2002, p. 9).

Mesmo compartilhando pressupostos básicos, mudanças importantes na perspectiva

econômica da pobreza estão ocorrendo, ampliando o enfoque, sem contudo descaracterizá-

lo. Alguns estudos questionam a abordagem necessariamente individualista do enfoque

econômico (Comim e Kuklys, 2002) e outros priorizam o exame do fenômeno em uma

perspectiva diacrônica, incorporando o tempo como categoria de análise (Hills, 1998). Os

estudos de pobreza crônica enfrentam a questão do tempo para caracterização dos pobres e

da pobreza. Entretanto, mesmo assim, a idéia de processo (crucial na abordagem

sociológica da pobreza) não está presente na abordagem econômica. Incorporando a

dimensão do tempo, mensurações via renda e consumo podem ampliar o conhecimento dos

movimentos de indivíduos e domicílios no que se refere à linha de pobreza, ao longo do

tempo, mas tal enfoque da renda continua não considerando outros aspectos da pobreza

como relevantes para sua caracterização23.

23 O uso de bases de dados longitudinais, coletadas desde o inicio da década de 60 na Grã Bretanha, permitiu avançar na análise de diferentes trajetórias de indivíduos a partir de estudos sobre renda. O estudo apontado por Hills permite evidenciar essa perspectiva. No caso em questão, interessava saber, sobretudo, porque algumas pessoas, partindo de um mesmo ponto de renda, cumprem trajetórias tão distintas. Como elas se movimentam ao longo do tempo entre os diferentes grupos de renda? Existem padrões nesses movimentos ou eles são aleatórios? As pessoas saem da pobreza? Existem diferenças nessa saída? As situações de pobreza são persistentes? (Hills, 1998, p. 46). Ao longo de três períodos de tempo, a pesquisa acompanhou grupos de indivíduos, permitindo identificar trajetórias e padrões de mobilidade dos grupos ao longo do tempo. A partir de análises estatísticas, foram traçadas cinco trajetórias possíveis: a) uma denominada trajetória “flat”, na qual os indivíduos permanecem no mesmo grupo ou em limites bem próximos. Podem ser trajetórias poor-flat e non-poor flat; b) trajetórias ascendentes, nas quais todos os movimentos são de subida ou no mínimo de permanência: rising up of poverty; c) trajetórias descendentes, nas quais, por mais de dois períodos, existe uma queda: falling into poverty; d) situação na qual a trajetória básica é de permanência, mas que em um período de tempo apresenta uma situação que vai além dessa trajetória, denominada blips; e) outras trajetórias, que não se enquadram nas anteriores (Hills, 1998, pp. 49,50). Uma limitação desse estudo, como bem aponta o autor, refere-se à unidimensionalidade da medida, que não permite verificar como tais trajetórias são influenciadas por fatores como idade, circunstâncias familiares, educação, condições da vizinhança. Algumas evidências são instigantes, como as que mostram que os indivíduos mais pobres, que conseguem sair da pobreza, têm muito mais chance de voltar a cair nela do que os indivíduos menos pobres, numa proporção de 25% para 7%. Tais considerações podem condicionar o desenho de estratégias de bem

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Embora a tecnologia e o avanço das estatísticas permitam incorporar a categoria tempo no

enfoque monetário, a unidimensionalidade da perspectiva não se altera. É a renda no

decorrer do tempo a medida para identificar tipos e trajetórias de pobreza. Nesse enfoque

não se estabelecem conexões entre a renda e outras dimensões da vida das pessoas, como

se essas não existissem ou não importassem para entender o problema da pobreza e as

formas para sua superação.

1.2. O enfoque das necessidades básicas insatisfeitas: noção de privações

Abordagens mais amplas do conceito de pobreza surgem a partir das críticas quanto a

insuficiência do enfoque da renda para caracterizar o fenômeno e afirmam a existência de

variáveis não monetárias que influem na condição de pobreza. Entretanto, se a dimensão

da renda é insuficiente para identificar os pobres, que outras variáveis devem ser

consideradas para identificá-los?

A perspectiva das necessidades básicas ganha destaque na América Latina entre os anos

1970 e 1980, centrada na identificação de déficits e níveis de carência que condicionam a

pobreza. Ela sustenta que são pobres as pessoas que não têm suas necessidades básicas

satisfeitas, cujo consumo de bens e serviços não atinge o mínimo considerado necessário.

As variáveis identificadas não são padronizadas ou estabelecidas a priori de forma não

contextualizada, mas geralmente abrangem um grande leque de possibilidades: acesso aos

serviços básicos (educação, saúde, habitação, transporte etc.), o que é mais comum,

variáveis relacionadas a processos de natureza psico-social (participação, auto-estima,

autonomia, capacidades etc.), em uma versão ampliada da noção de necessidades, mais

próxima da ótica das capacidades. O enfoque das necessidades insere, de forma clara, a

relatividade presente na caracterização e mensuração da pobreza: as necessidades são

relativas a tempos e lugares e referidas aos padrões vigentes em cada sociedade.

Entretanto, embora apresentem diferenças importantes, tanto o enfoque monetário quanto o

das necessidades básicas insatisfeitas priorizam dimensões materiais da pobreza e

estabelecem um limiar entre pobres e não pobres sob a ótica dos mínimos sociais.

De toda forma, o enfoque abandona a renda como medida de pobreza, focalizando os

resultados efetivos em termos de qualidade e condições de vida. A perspectiva incorpora

uma concepção multidimensional da pobreza, apontando a inter-relação entre as diversas

estar social, ao decidir pela priorização do público em situação de pobreza extrema, construindo alternativas e “escoras” suficientemente fortes para dar conta do movimento de saída da pobreza e a sustentabilidade dessa situação.

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carências. Mas essa perspectiva, embora permita descrever parte do fenômeno, tem uma

utilidade limitada para orientar o conteúdo de programas anti-pobreza, uma vez que não

situa as conexões entre os fatores condicionantes da pobreza e sobre sua reprodução.

A partir das críticas às limitações dos da renda e do enfoque das necessidades básicas, e

também a partir do avanço das metodologias e das bases de dados que ganham força, a

partir dos anos 80, novos enfoques sobre o tema da pobreza emergiram no debate.

1.3. O enfoque das capacidades: o divisor de águas

O trabalho de Amartya Sen constitui um divisor de águas, ao colocar sob foco o conceito

de capacidades, elaborado a partir das críticas ao enfoque do utilitarismo e às concepções

de bem estar daí derivadas24. A partir de suas formulações, tem-se a expansão dos

enfoques para além da renda e da utilidade. Esse movimento de expansão conceitual tem se

dado, segundo De Haan, tanto em países desenvolvidos como em países em

desenvolvimento:

“the poverty studies (in developing countries) seem to be moving in the same direction as poverty studies in the West: from rather economic conceptualizations towards more complex “human” concepts, including social and political rights and people’s capabilities” (De Haan, 1994, p. 7).

Nessa perspectiva a pobreza é definida como carência ou privação de capacidades, sendo

pobres aqueles que carecem de capacidades básicas para operarem no meio social, que

carecem de oportunidades para alcançar níveis minimamente aceitáveis de realizações, o

que pode independer da renda que os indivíduos possuem.

Rejeitando o utilitarismo como medida de bem-estar e a maximização da utilidade como

suposição comportamental, Sen faz uma crítica aos fundamentos éticos do utilitarismo

(Laderchi, Saith, Stewart, 2003, p. 14). O bem estar, na visão de Sen, é visto em relação à

realização do potencial humano, entendido como a liberdade de indivíduos viverem a vida

que valorizam. O foco não é mais a renda, sendo que os recursos monetários são meio para

adquirir o bem estar e não o bem estar em si. Esse enfoque incorpora, de forma plena, as

diferenças entre os indivíduos, salientando que as diferenças de saúde, idade, condição

física e contexto social, dentre outras, implicam diferentes necessidades, fazendo com que

24 A perspectiva de Sen é bastante mais complexa do que a aqui apresentada. Suas contribuições têm suscitado profícuo debate no âmbito acadêmico, no campo da economia, da filosofia e também das teorias do desenvolvimento. Aqui será enfatizada a articulação que a perspectiva de Sen estabelece entre a abordagem econômica e a sociológica da pobreza.

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algumas pessoas precisem de mais recursos do que outras para obter as mesmas realizações

(Laderchi, Saith , Stewart, 2003, p. 14).

Para Sen a renda permite, em tese, a realização de uma capacidade, mas o central é a

capacidade e não a renda. Esta é apenas um meio e não o fim, sendo que os objetivos de

uma boa vida incluem viver uma vida longa, saudável e criativa, desfrutar de um nível de

vida decente, com liberdade, dignidade, auto-estima e respeito (Mideplan, 2002, p.11). O

eixo do enfoque é a ampliação das oportunidades, da expansão das capacidades

(capability) básicas para que as pessoas possam levar uma vida digna.

Embora alguns autores se esforcem para salientar as semelhanças entre os enfoques

monetário e o das capacidades25, há uma mudança de foco. Na abordagem monetária a

ênfase reside nos recursos privados aos quais os indivíduos têm acesso, enquanto que no

enfoque das capacidades o importante é examinar a vida que os indivíduos podem ter.

Nesse sentido importa perguntar, frente às oportunidades disponíveis em uma dada

sociedade, quais são os constrangimentos e possibilidades dadas pelas condições sociais,

políticas ou econômicas existentes para que seus membros possam ter uma vida digna.

A abordagem de Sen destaca-se do conjunto dos enfoques apresentados, pois vai além da

preocupação dominante com a mensuração da pobreza. Ao ser calcada em pressupostos e

concepções próprias dos estudos sobre ética, economia, teoria da justiça e filosofia política

e econômica, insere a dimensão da liberdade no centro da discussão sobre pobreza, justiça

e direitos humanos. Uma passagem, dentre outras tantas possíveis, permite evidenciar o

ponto, que trata das origens filosóficas das concepções de Amartya Sen. Para Aristóteles,

de acordo com Sen, uma vida empobrecida é aquela na qual o individuo não tem liberdade

para desenvolver atividades que tenha razões para escolher (Sen, 2000. p. 4). A mesma

concepção é partilhada por Adam Smith, na medida em que, para esse autor, as

necessidades são definidas a partir dos efeitos sobre a liberdade dos indivíduos para

viverem vidas não empobrecidas. Nesse sentido, Smith colocou no centro da análise sobre

pobreza as idéias de inclusão e exclusão, principalmente quando define necessidades para

levar a vida de forma decente, incluindo a capacidade de aparecer em público sem sentir

vergonha ou humilhação. Nas palavras de Smith,

25 Como salientado por alguns, ambos enfoques, monetário e das capacidades, adotariam uma perspectiva individualista: privação de utilidade ou fracasso das capacidades remetem ao plano do indivíduo, ainda que as comunidades e a vizinhança possam atuar como importantes determinantes para o alcance do bem estar individual. Ambos os enfoques adotam padrões de avaliação externos (objetivos, independentes das avaliações e percepções dos pobres sobre sua condição), e nenhum busca capturar as causas e a dinâmica da pobreza (Laderchi, Saith, Stewart, 2003, p. 20).

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“by necessaries I understand not only the commodities which are indispensably necessary for the support of life, but what ever the custom of the country renders it indecent for creditable people, even the lowest order, to be without....Custom has rendered leather shoes a necessary of life in England. The poorest creditable person of either sex would be ashamed to appear in public without them” (Apud Sen, 2000, p. 7).

Com o enfoque das capacidades, tem-se a expansão da visão sobre pobreza para além das

dimensões materiais. Mas ainda que essa abordagem reconheça o componente relacional,

permanece o foco no âmbito dos indivíduos, na perspectiva das capacidades que permitam

aos indivíduos o exercício da liberdade. A dificuldade de operacionalizar de forma

adequada a concepção de capacidades - também porque ela se refere, sobretudo, ao futuro,

à capacidade de ser e de fazer algo – é uma das limitações. Mas sobretudo cabe enfatizar

que as noções de autonomia e agência, decorrentes do enfoque das capacidades,

sobrevivem nos enfoques da exclusão e da vulnerabilidade e ganham mais materialidade a

partir das noções de ativos e empoderamento.

1.4 Exclusão social: dimensões relacionais da pobreza

A abordagem das capacidades, ao trazer para o centro do debate o tema da liberdade,

recuperando suas raízes aristotélicas, relativas ao pertencimento a um todo social (Sen,

2000), articula-se com a perspectiva da exclusão social, a partir dos temas relacionados ao

pertencimento, identidade e coesão social. A emergência da concepção de exclusão social

agrega um outro olhar sobre a pobreza, ressaltando a presença, na caracterização desse

fenômeno, de aspectos subjetivos, relativos a valores, identidade, crenças e

comportamentos, apontando para a dimensão relacional presente na produção e reprodução

da pobreza.

A idéia subjacente ao termo exclusão é bastante antiga e constitutiva do próprio objeto das

ciências sociais. Entretanto, esse termo é um dos mais controvertidos no debate atual sobre

pobreza. Sem contornos claros, com fronteiras amplas e ambíguas, o conceito é abordado

diferentemente por diversas tradições disciplinares e enfoques. É criticado por alguns

autores, por um lado, devido à sua generalidade, imprecisão e ambigüidade26, e defendido

por outros pelas possibilidades abertas de investigação empírica. Mesmo tendo emergido

tão recentemente, e apresentando contornos fluidos e consensos fracos sobre o seu

significado e alcance, ganhou centralidade nos discursos e na agenda política internacional,

26 Exclusão é um termo utilizado, freqüentemente, para se referir a todo tipo de mazela social, e é usado de forma pouco parcimoniosa com sentidos sobrepostos, referindo-se a fenômenos diversos tais como pobreza, desigualdade, isolamento, preconceito, privação, vulnerabilidade, dentre outros.

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nos conselhos de decisão mundial e nas agências internacionais, ocupando grande espaço

na produção acadêmica e de pesquisa atual (Laderchi, Saith, Stewart, 2003, p. 20)27. O

enfoque da exclusão foi adotado recentemente pela União Européia28 para analisar

processos e condições de pobreza nos países europeus contemporâneos, ganhando espaço

cada vez maior nos discursos programáticos e nos estudos e produção teórica e acadêmica

latino-americana.

Uma explicação para a plasticidade do conceito de exclusão é dada por Hilary Silver

(1995), que relaciona diferentes visões sobre a exclusão com diferentes contextos e

tradições políticas e intelectuais. Grande parte da ambigüidade e excessiva plasticidade do

conceito decorrem, a partir dessa leitura, de visões distintas que cada sociedade tem sobre a

natureza da ordem social e da relação entre indivíduo e sociedade, bem como do papel do

Estado nesses processos. A amplitude do conceito de exclusão não se deve apenas à

multiplicidade de referenciais empíricos capazes de traduzir processos de exclusão29, mas

principalmente pelo fato de os diferentes usos e significados do conceito estarem

embebidos em diferentes paradigmas das ciências sociais e distintas ideologias políticas,

revelando visões diferentes sobre a reintegração social e, em suma, traduzindo diferentes

valores e visões de mundo (Silver, 1995, pp.60, 61). Como tipos ideais weberianos, os

paradigmas – da solidariedade30, da especialização31 e do monopólio32 – apontam para

27 Uma rápida pesquisa nas bibliotecas virtuais e nas publicações disponibilizadas pelas agências internacionais pode comprovar isso: Citamos, dentre outras: Centre for Analysis of Social Exclusion/London School of Economics; Banco Mundial; Banco Interamericano; International Institute for Labour Studies/UNDP; Cepal; United Nations Development Programme/UNDP; Comparative Research Programme on Poverty/CROP. 28 Resolução do Conselho de Ministros sobre a luta contra a exclusão social (1989); Carta Comunitária dos direitos fundamentais dos trabalhadores (1989) (Guibentif e Bouget, 1997, pg. 4) 29 Existem, dessa forma, inúmeros campos e dimensões a partir das quais podem-se posicionar os indivíduos excluídos: do trabalho, do acesso ao crédito, da educação, de níveis básicos de consumo, de habilidades e capacidades básicas para uma vida digna, do estado de bem estar e dos direitos de cidadania, do acesso a terra, segurança, bens públicos, habitação, respeito, vivência familiar e comunitária, dentre um campo quase infinito de possibilidades, o que remete à questão: excluído de quê? 30 A perspectiva original do conceito de exclusão, tal como cunhada na França, assenta-se em uma matriz republicana, inspirada em Rousseau e Durkheim, que salienta a dimensão coletiva, coercitiva e vinculadora da ordem social e concebe a exclusão como ameaça à ela. 31 Tal visão compreende a ordem social sob uma ótica individualista quanto ao método: “it thus conceives of the social order, like the economy and politics, as networks of voluntary exchanges between autonomous individuals with their own interests and motivations” (Silver, 1995, p. 67). Essa perspectiva, afinada com o liberalismo, partilha uma visão da sociedade como formada por esferas autônomas, salientando as múltiplas causas e dimensões da exclusão, afirmando que a exclusão em uma esfera não implica necessariamente exclusão em relação a outras esferas sociais. A exclusão, nesse sentido, refere-se à impossibilidade dos indivíduos participarem livremente das trocas sociais. 32 Na perspectiva do monopólio, bastante influente no pensamento da esquerda européia, a exclusão é conseqüência da disputa e dos interesses conflitantes existentes na sociedade, tendo como categoria central a noção weberiana de status, sendo o status de grupos uma manifestação de relações de poder (Silver, 1995, p. 69). Weber usa o termo social closure para se referir a “process of subordination where by one group

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visões diferentes sobre a ordem social, sobre os seus fundamentos e os seus elementos

explicativos centrais. Tais considerações, segundo a autora, iluminam os diferentes usos do

termo exclusão: “choosing one definition means accepting the theoretical and ideological

baggage associated with it” (Silver, 1995, p. 70).

A origem do termo exclusão não pode ser atribuída a um autor em particular33. A aparição

do termo data de meados da década de 196034 e, naquele momento de prosperidade

econômica, a noção remete a uma população mantida à margem do progresso econômico e

da partilha dos benefícios do desenvolvimento. O sentido e o sentimento que tal termo

carrega dizem respeito a uma desilusão com o progresso que, em sua marcha, não

consegue erradicar os mecanismos de reprodução da miséria. A concepção de exclusão,

nesse momento, refere-se a uma espécie de “resíduo inevitável”, que não confere ameaças,

entretanto, à sobrevivência do conjunto da sociedade.

Em 1974, René Lenoir, então Secretário de Ação Social da França, utilizou o termo para se

referir a 10% da população do país, delimitando um conjunto diversificado de pessoas, tais

como deficientes físicos e mentais, crianças sexualmente abusadas, delinqüentes, suicidas,

usuários de drogas, idosos, inválidos, dentre outros, que não estavam, naquele momento,

incorporadas no sistema francês de proteção social (Silver, 1995, p. 63; Saith, 2001, p. 3;

Mideplan, 2002, p. 29). A noção envolvia diferentes tipos de problemas e condições

individuais e coletivas, relacionadas à inserção precária ou não inserção no mercado de

trabalho, situações de dependência, segregação, grupos vulneráveis afetados por situações

de desestruturação familiar, por doenças e incapacidades ou por condições específicas

ligadas ao ciclo de vida familiar (Lavinas, 2003; p.37; Haan, 1999; Laderchi, Saith,

Stewart, 2003, p.20; Burchardt, Le Grand, Piachaud, 2002, p. 3). O conceito chamava a

atenção para diversos tipos de pessoas - os inadaptados sociais - que não conseguiam viver

de forma socialmente adequada, que não compartilhavam dos frutos do crescimento ou das monopolizes advantages by closing off opportunities to outsiders whom it defines as inferior or ineligible….By restriction access to opportunities and resources, closure allows collectivities to maximize rewards. The group of insiders share a common culture and identity and hence, norms legitimating exclusion” (Silver, 1995, p. 69). Esse paradigma assenta-se, em termos ideológicos, na perspectiva da social democracia, sendo os direitos de cidadania as fontes de integração, diferentemente dos outros paradigmas, nos quais tais fontes estariam ou na integração moral (como no paradigma da solidariedade) ou nas trocas livres (como no paradigma da especialização) (Silver, 1995, p. 62). 33 Mesmo René Lenoir, a quem se atribui a paternidade da categoria de exclusão, afirmou ter escolhido o título de seu livro (Les Exclus, un français sur dix) a partir de uma lista de outros títulos fornecida por seu editor, tendo esse termo sido raramente utilizado ao longo do texto (Paugam, 1996, p. 9). 34 De acordo com Paugam, o termo exclusão aparece inicialmente em uma obra (L´exclusion social) publicada no auge do movimento internacional ATD Quart Monde, por seu fundador, Joseph Wrésinski e também no documento (Les dividendes du progrés) de Pierre Massé, secretário geral do Plano do governo francês (Paugam, 1996, p.9).

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marés cheias dos ciclos de prosperidade econômica. Lenoir não era um teórico e o uso do

termo exclusão não tinha pretensões de funcionar como categoria analítica, mas antes

como elemento que norteasse a formulação de políticas, que dirigisse a ação

governamental de forma consistente a grupos menos favorecidos.

O termo se expande a partir dos anos 80 na Europa, quando os analistas articulam o

fenômeno da exclusão aos processos de instabilidade dos vínculos entre indivíduos e

sociedade, tendo como referência central a dimensão do trabalho. As mudanças no

mercado de trabalho e os processos decorrentes da globalização levam à ampliação do

conceito de exclusão para referir-se aos fenômenos provocados pelo desemprego

recorrente, de longa duração, pela inserção pouco qualificada de indivíduos no mundo do

trabalho, ressaltando as conseqüências, também sociais, daí advindas. Os temas da nova

pobreza e a dimensão da precariedade ocupam a cena e os debates na França, sendo sob

esse registro que o fenômeno da pobreza passa a ser enfocado nos anos 80. O foco não são

mais os grupos marginais, mas sim grupos de pessoas que tinham um emprego e um lugar

social e foram deslocados em função da instabilidade econômica e do mercado de trabalho,

os novos pobres.

Os estudos nessa época e com essa abordagem centram-se na análise das trajetórias sociais

e profissionais, nos comportamentos e formas de adaptação diferenciadas frente às

mudanças do mercado de trabalho e novas configurações do Estado e da sociedade. A

constatação, cada vez mais clara, era que o desemprego e a precariedade do trabalho

tinham conseqüências para além da renda, provocando alterações em outras dimensões da

vida social, enfraquecendo laços e redes sociais, diminuindo a auto-estima, provocando o

isolamento e a apatia (Saith, 2001, p. 3).

O conceito de exclusão deixou de referir-se a grupos periféricos ou desviantes para

constituir-se em uma situação que afeta a todos em uma sociedade, remetendo à natureza

dos vínculos que unem indivíduos e sociedade, ligada ao tema da coesão social. O conceito

sinaliza, e essa constatação é sua marca, processos de desintegração social, ameaças de

ruptura nas relações entre indivíduo e sociedade. O conceito de exclusão coloca com toda a

ênfase a questão da ordem social - “in sum, exclusion became a new way to describe the

difficulty of establishing solidarities between individuals and groups and the larger

society” (Silver, 1995, p. 64) – e também aponta para os limites da excessiva desigualdade

e destituição para a vigência da democracia e o efetivo exercício dos direitos sociais. A

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partir dessa perspectiva, inúmeros programas35 foram desenvolvidos nos anos 80, no

âmbito do sistema francês de proteção social, todos ancorados em uma visão republicana

do Estado e da sociedade, sustentados pelas noções de solidariedade, coesão, laços sociais

(Silver, 1995, p. 64). Trata-se, portanto, da dimensão da integração social, eixo central para

compreender a vida social (Mideplan, 2002, p. 31). “Le succes de la notion d´exclusion est

qu´elle met l´accent, au moins implicitement, sur une crise du lien social” (Paugam, 1996,

p. 15). Essa concepção é usual no entendimento da exclusão: “la exclusión implica

fracturas en el tejido social, la ruptura de ciertas coordenadas básicas de integración. Y,

en consecuencia, la aparición de una nueva escisión social en términos de dentro/fuera”

(Gomá, 2004, p. 4).

1.4.1 Exclusão como processo: desfiliação e o lugar do trabalho e da sociabilidade

Um autor central no debate sobre a exclusão social é Robert Castel. O livro de Robert

Castel - As metamorfoses da questão social – concentra-se na importância das trajetórias

para a compreensão dos processos de exclusão, que o autor denomina de desfiliação.

Tendo como base as mudanças no mundo do trabalho, esse termo relaciona-se com o

sentido de perda de raízes e “situa-se no universo semântico dos que foram desligados,

desatados, desamarrados, transformados em sobrantes, inúteis e desabilitados

socialmente” (Kowarick, 2002, p. 73).

Castel aborda o conjunto das transformações econômicas e sociais tendo como base a

questão social, entendida a partir das possibilidades de manutenção do tecido social:

“a aporia fundamental sobre a qual uma sociedade experimenta o enigma de sua coesão e tenta conjurar o risco de sua fratura. É um desafio que interroga, põe em questão a capacidade de uma sociedade (o que, em termos políticos, se chama de uma nação) para existir como um conjunto ligado por relações de interdependência” (Castel, 2003, p. 30).

35 No campo da ação pública, em 1981, o documento do Primeiro Ministro na França articula a noção de pobreza com a noção de precariedade e começa a se reportar a uma nova questão estruturadora das ações destinadas a grupos vulneráveis e desfavorecidos. A Renda Mínima de Inclusão (RMI) constitui a resposta da sociedade francesa aos processos de ameaça de coesão da ordem social, como “modo de regulação do liame social” (Paugam, 1996), relacionado com a problemática do trabalho e seus efeitos sociais. Busca dar respostas às vítimas da degradação do trabalho e de seus efeitos sociais, e constitui a tentativa e a aposta de resposta coletiva do governo francês para a ameaça de ruptura do tecido social. O RMI pauta-se pela idéia de direito e não pelo mérito da necessidade. Foi estabelecido fora das instituições tradicionais de ajuda social na França, embora não tenha sido também incorporado nas instituições de seguridade e segundo o princípio de seguro social (Guibentif, Bouget, 1997, p. 61). Reconhecer o beneficio como um direito e não como necessidade limita a atitude de discricionaridade presente nessa última perspectiva.

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Analisando as mudanças no campo social, Castel enfatiza, sobretudo, a emergência de

“inúteis para o mundo”, “pessoas e grupos que se tornaram supranumerários diante da

atualização das competências econômicas e sociais” (Castel, 2003, p. 32). Os assalariados

de ontem, mesmo que explorados e ocupando posições desfavorecidas, não eram

dispensáveis no conjunto das trocas sociais. As mudanças das sociedades contemporâneas

colocam outras questões, que não estavam postas no horizonte do debate sobre o

pauperismo. Os integrados, os vulneráveis e os desfiliados de hoje “pertencem a um

mesmo conjunto, mas cuja unidade é problemática”. Nas palavras do autor: “o que é

possível fazer para recolocar no jogo social essas populações invalidadas pela conjuntura

e para acabar com uma hemorragia de desfiliação que ameaça deixar exangue todo o

corpo social?” (Castel, 2003, p. 34). O autor prefere os termos desfiliação e invalidação

social ao de exclusão36 e afirma que o conceito de exclusão é estanque, e não captura

processos, percursos e trajetórias que a determinam. O foco da concepção de desfiliação

está na visão dos processos que levam da integração à vulnerabilidade, ou da

vulnerabilidade para a “inexistência social”. Seu objetivo, como ele próprio afirma, é:

“dimensionar este novo dado contemporâneo: a presença, aparentemente cada vez mais insistente, de indivíduos colocados em situação de flutuação na estrutura social e que povoam seus interstícios sem encontrar aí um lugar designado. Silhuetas incertas, à margem do trabalho e nas fronteiras das formas de troca socialmente consagradas – desempregados por período longo, moradores dos subúrbios pobres, beneficiários da renda mínima de inserção, vítimas das readaptações industriais, jovens à procura de emprego e que passam de estágio a estágio, de pequeno trabalho à ocupação provisória...- quem são eles, de onde vêm, como chegaram ao ponto em que estão, o que vão se tornar?” (Castel, 2003, p.23).

O autor privilegia a categoria de trabalho e assalariamento, na análise da questão social,

identificando a emergência de uma nova instabilidade com o fim do trabalho como eixo

privilegiado de integração social, ou como ele diz, como “suporte privilegiado de

inscrição na estrutura social” (Castel, 2003, p. 24). O foco reside nas relações existentes

entre a precariedade econômica e a instabilidade social, sendo a “vulnerabilidade social

uma zona intermediária, instável, que conjuga a precariedade do trabalho e a fragilidade

dos suportes de proximidade” (Castel, 2003, p. 24). Trabalho e sociabilidade, de forma

geral, constituem os dois grandes eixos estruturadores da concepção de vulnerabilidade.

Para esse autor, a dimensão econômica, pautada pela estabilidade e regularidade do

36 Parece não haver uma diferença substantiva entre esses dois conceitos - exclusão e desfiliação - , ao se considerar que a dimensão do processo é essencial para a caracterização do fenômeno da exclusão. Mas Castel enfatiza essa distinção.

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trabalho, e a dimensão social, referindo-se às redes de sociabilidade primária – família,

vizinhança, comunidade – configuram quatro zonas: de integração, vulnerabilidade,

assistência e desfiliação. A primeira, integração, reflete uma situação de emprego estável e

relações sociais sólidas; a vulnerabilidade é marcada por uma fragilização das condições

de inserção produtiva e social; a assistência configura uma situação na qual o recebimento

de subsídios públicos constitui a forma de se evitar um desligamento social e econômico e

a desfiliação marca uma situação de desemprego e de perda dos laços sociais (Kowarick,

2002, p. 73).

A coesão de um conjunto social é dada, segundo Castel, a partir do equilíbrio existente

entre essas zonas. A redução e o controle das zonas de vulnerabilidade é condição para

manutenção do equilíbrio social, para a “estabilidade de sua estrutura”. Castel se pergunta,

contudo, se a expansão da zona de assistência seria a única saída para fazer frente à fratura

na zona de integração, à expansão da zona de vulnerabilidade e à desfiliação (Kowarick,

2002, p. 73).

O foco na abordagem da exclusão (ou da desfiliação, nos termos de Castel) chama a

atenção para os processos e trajetórias e para dimensões que salientam o peso das

relações sociais na produção do fenômeno.

Um exemplo dessa abordagem fica evidente no trabalho de Serge Paugam (2003). Esse

autor, de forma mais concreta que Castel, ao analisar o processo da exclusão tendo como

referência o sistema francês de proteção social, incorpora as categorias de dinâmica e

processo na análise das trajetórias das famílias em situação de pobreza, destituição ou

exclusão social, enfatizando as diversas situações de vulnerabilidade que minam a ordem e

a coesão social. Na esteira da produção francesa sobre o tema da exclusão social, esse

autor aborda o tema da “desqualificação” social37, relacionando os processos de

desqualificação aos serviços de proteção social. A abordagem de Paugam insere-se no

campo de uma sociologia compreensiva38 que busca recuperar, para além das condições

37 A origem da noção de desqualificação relaciona-se diretamente com o termo desfiliação, cunhado por Castel para dizer dos mesmos processos e dinâmicas aos quais estão sujeitos indivíduos e grupos ao longo do tempo. 38 A perspectiva original é de Simmel que, dentre os clássicos da sociologia, analisou a construção social da pobreza, vendo a pobreza sob a perspectiva das representações sociais, das interações que delimitam um problema e denominam a realidade e o grupo dos pobres e excluídos. Essa abordagem traduz uma visão sociológica da pobreza, salientando a construção social dessa categoria, sendo os pobres definidos a partir de sua inserção nos sistemas de assistência social. Simmel afirma que a “pobreza não pode ser definida como um estado quantitativo em si mesmo, mas tão somente a partir da reação social que resulta dessa situação específica” (Simmel, apud Lavinas, 2003, p. 32). Além da pobreza ser considerada como uma construção social, que existe a partir de critérios de identificação, ela envolve, já em Simmel, uma relação de

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objetivas da pobreza, o sentido e o significado que as pessoas conferem à sua situação

vivida, tendo como pano de fundo questões relativas à construção da identidade, status e

resistência ao estigma, variáveis centrais para compreender o processo de desqualificação

social, tendo como foco grupos e indivíduos que gravitam, com intensidade distinta, em

torno do sistema francês de proteção social.

Paugam não está interessado na análise propriamente dita das situações de pobreza, mas

aborda essa questão relacionando-a com o

“status das populações que ocupam os últimos degraus da hierarquia social, isto é, a identificação parcial ou total com um conjunto de comportamentos mais ou menos sistematizados e relativamente fixos, que correspondem a papéis sociais reconhecidos como legítimos por elas próprias e pela sociedade” (Paugam, 2003, p.48).

O autor identifica diversas categorias de públicos que sinalizam três fases do processo de

desqualificação social: os fragilizados, os assistidos e os marginalizados. O primeiro grupo

refere-se à fragilidade na qual se encontram indivíduos que estão em uma situação de

temporária vulnerabilidade, sem emprego, sem renda, e que relutam em serem inseridos

nos serviços sociais, temendo o estigma e a perda da dignidade. Os assistidos relacionam-

se com a dimensão da dependência dos indivíduos que fazem parte da rede de serviços,

que foram capturados pelo sistema de proteção e que se encontram resignados com a

situação, mantendo relações estáveis com os profissionais da área. Os marginalizados

representam a ruptura do processo de assistência, e constituem o último grau do processo

de desqualificação social (Paugam, 2003, pp. 31-41).

Paugam denomina desqualificação social a esse processo de marginalização, a partir do

foco nos serviços e na natureza das relações que se criam entre o sistema e os grupos

demandatários. Essa leitura da pobreza, que a vincula ao campo dos direitos e das ações de

assistência, é um nexo importante, principalmente tendo em vista os desafios para

intervenções mais consistentes no campo social. O ponto pelo qual a formulação de

Paugam é pertinente refere-se à abordagem da pobreza a partir dos processos de

identificação operados pelos serviços sociais. Os pobres, e, portanto, legítimos

demandatários das políticas de proteção social, constituem uma categoria construída pelos

agentes das políticas de proteção, e a pobreza é examinada sob a ótica dos serviços sociais,

a partir das relações que se processam entre os beneficiários e agentes da intervenção

pública. O mérito do trabalho de Paugam reside em analisar como processos e trajetórias interdependência e de vínculos entre os pobres e os não pobres, dentre os quais se destaca de forma proeminente os prestadores de serviços sociais.

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de exclusão interagem com dinâmicas que ocorrem no campo do sistema de proteção

social, cuja atuação pode ter um impacto profundo nas condições de vida dos indivíduos

intitulados pobres, redefinindo ou reforçando essas mesmas trajetórias. Esse ponto é

fundamental para o exame das implicações para as políticas públicas de inclusão social.

Voltaremos a ele adiante, quando essa questão será analisada sob uma outra perspectiva.

Ao enfatizar a dimensão dos processos e trajetórias essa abordagem lança luz sobre as

estratégias de prevenção e não apenas de superação das condições de pobreza e exclusão.

Esse pode ser um grande mérito que tende a passar despercebido nas discussões

conceituais sobre pobreza: em que medida a concepção de exclusão resulta em uma nova

orientação na intervenção social, no conteúdo e na forma de prestação de serviços sociais.

Sob a perspectiva da exclusão, a estratégia de ação pode estar mais fortemente orientada

para a prevenção, com maior atenção aos processos que levam da vulnerabilidade e

precariedade à desqualificação e exclusão social. Ainda que tal enfoque não apresente as

categorias analíticas que permitam operacionalizar essa perspectiva da prevenção, ele lança

as bases que serão ampliadas e consolidadas com a abordagem da vulnerabilidade e dos

ativos, decorrentes da concepção de processos e trajetórias de desqualificação social.

Os estudos levados a cabo tendo como objeto a alteração das situações dos desfavorecidos

e os efeitos das ações desenvolvidas permitiram ver diferentes fases do processo de

desqualificação social, “d´un cumul de handicap set d´une rupture progressive des liens

sociaux” (Paugam, 1996, p. 14), contribuindo para a constituição de um novo enfoque para

a compreensão da pobreza que ganha força nos anos 90. Um ponto importante, presente

nos estudos sobre processos de exclusão, consiste em afirmar que estes processos são

dinâmicos, mas não inexoráveis. As políticas públicas, econômicas e de proteção social,

são fundamentais na reversão de processos de exclusão, desfiliação ou desqualificação

social.

1.4.2 Em busca de um quadro conceitual: características básicas do conceito de exclusão

Alguns elementos são comuns em praticamente toda a literatura analisada sobre o tema da

exclusão. Vários autores salientam tais características, configurando um mesmo, ou

bastante similar, conjunto de questões39. De forma geral, entretanto, encontra-se

39 Atkinson identificou, de forma pioneira, três características principais que serviram de base para o debate sobre o conceito de exclusão, que ele denominou como relatividade, dinâmica e agência (Atkinson, 1998; Laderchi, Saith, Stewart, 2003, p. 20). Posteriormente foram sendo agregadas outras dimensões, tais como a perspectiva da multidimensionalidade e da vizinhança (“ausência ou deficiência de facilidades de uso comum”) (Laderchi, Saith, Stewart, 2003, p. 21).

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estabelecido na produção sobre o tema (Atkinson, 1998; Laderchi, Saith, Stewart, 2003;

de Haan, 1999, 2004; Hills, 2002) um conjunto de aspectos ou elementos que fazem parte

estruturante da noção de exclusão.

• a) Categoria relacional

O conceito de exclusão envolve, de uma forma ou de outra, uma dimensão contextual. A

idéia básica é que o todo processo de exclusão traduz um fenômeno contingente e

modelado a partir de características próprias de diferentes sociedades e culturas: “people

are excluded from a particular society, it refers to a particular place and time” (Atkinson,

1998, p 13). Exclusão se define a partir dos padrões de integração vigentes em cada

sociedade particular: “la exclusión es una construcción social contingente que realiza

cada sociedade de modo particular” (Mideplan, 2002, p. 30). Ao contrário da concepção

de pobreza centrada em parâmetros absolutos, a noção de exclusão é relativa, dependente

do contexto. Não é possível olhar para o indivíduo, isolado do contexto, para julgar se ele é

ou não excluído (Saith, 2001, p.12). Existe, com o enfoque da exclusão, uma ampliação do

foco para além da renda de modo a considerar dimensões sociais, políticas e culturais

envolvidas. Essa dimensão relacional não se expressa apenas no fato de a exclusão ser

socialmente construída, na medida em que cada sociedade define seus padrões de

integração social, mas também no fato da exclusão ser produto de relações e interações

sociais.

O enfoque da exclusão identifica como base de análise as relações sociais, os grupos e

comunidades mais do que indivíduos (Mideplan, 2002, p 30; Atkinson, 1998, p 14; Sen,

2000; Hills, 2002; Laderchi, Saith, Stewart, 2003, p. 21). A ênfase nas relações sociais, a

natureza e a qualidade dos laços sociais, é o que constitui, de acordo com vários autores, a

matriz genética básica do conceito. A situação na qual um indivíduo se encontra não

depende apenas ou é decorrente somente de seus recursos próprios, mas também dos

recursos da comunidade local, familiares e tradições locais, padrões de cooperação e redes

de sociabilidade.

Uma idéia estruturante da concepção de exclusão consiste, portanto, na ênfase dada às

dimensões relacionais, à centralidade dos aspectos mais especificamente sociológicos

envolvidos na construção social da pobreza. Estão presentes, nas condições de pobreza e

exclusão, elementos simbólicos, de natureza subjetiva, relacionados à discussão clássica da

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sociologia sobre a constituição e manutenção da ordem social (identidade, valores e

crenças, normas e padrões sociais). A atenção às dimensões menos tangíveis do processo

da pobreza, tais como perda da auto-estima e da identidade, enfraquecimentos dos laços

familiares, sociais e comunitários, com repercussões na manutenção da coesão social, das

redes de reciprocidade e solidariedade, é o que constitui, para vários autores, a

especificidade e a relevância da concepção de exclusão social (Sen, 2000; Atkinson, 1998).

Considerar a subjetividade como dimensão importante na compreensão da privação

significa destacar que nas situações de pobreza estão envolvidos aspectos relacionados a

valores, condutas e atitudes, que acabam por reforçar a manutenção de situações de

vulnerabilidade e destituição (Raczinsky, 2002). Baixa auto-estima, resignação, apatia,

ressentimento, subalternidade, baixa expectativa quanto ao futuro, são expressões de

natureza não-material que acabam por limitar as possibilidades de as pessoas pobres se

apropriarem de sua vida e acharem saídas para a situação em que se encontram. É

importante ter claro, entretanto, que tais atitudes de natureza psico-social são construídas

nas interações que os indivíduos estabelecem com vizinhos, família, comunidade e

instituições.

• b) Processos e dinâmicas

Além de ser contextual, relativa e relacional, exclusão aponta sempre para um processo,

devendo ser vista como uma dinâmica e não como um estado, o que valoriza uma

compreensão mais ampla do problema (Mideplan, 2002, p 30; Hills, 2002) e envolve

expectativas sobre o futuro: “people are excluded not just because they are currently

without a job or income but because they have little prospects for the future” (Atkinson,

1998, p. 14; Saith, 2001, p.13). Isso significa que as expectativas de futuro são tão

relevantes quanto as circunstâncias correntes para a definição da exclusão, bem como

ganha centralidade o processo que gera privação: “the definition of social exclusion

typically includes the process of becoming poor, as well as some outcomes of deprivation”

(Laderchi, Saith, Stewart, 2003, p. 21). Na concepção de exclusão a dimensão do tempo é

central. Na abordagem monetária da pobreza, o tempo não é considerado como categoria

privilegiada de análise. As estratégias de mensuração não captam diferenças entre pobreza

crônica e temporária e só recentemente estudos longitudinais, que medem a renda de um

mesmo conjunto de indivíduos ao longo de vários anos, têm-se referido à dimensão do

tempo e das trajetórias (Hills, 1998). Já a perspectiva da exclusão, ao chamar atenção para

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o caráter dinâmico da pobreza, enfatiza os processos que favorecem a entrada em situações

de exclusão e as baixas perspectivas de futuro (Saith, 2001, pp. 12,13)

• A noção de ação: onde se insere a ação pública

Atkinson (1998) chama atenção para a noção de agência, outra característica que, ao lado

da relatividade e do caráter dinâmico do fenômeno, constituem o conjunto de

características definidoras da concepção de exclusão. Isso significa que exclusão implica

ato, tem sempre presente uma dimensão de ação: “people may be excluded by the decisions

of banks who do not give credit, or insurance companies who will not provide cover.

People may refuse jobs preferring to live on benefit or they may be excluded from work by

actions of other workers, unions, employers or government” (Atkinson, 1998, p. 14).

Embora pouco explorado pelo autor, o tema remete à responsabilidade de atores diversos

na produção do fenômeno da exclusão, dimensão ausente nas perspectivas do enfoque

monetário ou no das necessidades básicas (Laderchi, Saith, Stewart, 2003, p. 23).

Gomà salienta, nesse sentido, embora em outros termos, que a exclusão é um fenômeno

politizável. Uma das características definidoras da exclusão, para esse autor, consiste no

fato deste ser um fenômeno inscrito em atos e decisões de agentes. Isso quer dizer que a

exclusão, a desigualdade ou marginalização não estão inscritas de forma fatalista no

destino das sociedades e seriam passíveis de reversão. Nesse caso, o que se pontua é que

se deveria falar de exclusões e não de exclusão, já que cada sociedade, cada tempo e lugar,

apresenta seus limites próprios de inclusão /exclusão. A agência relaciona-se com atitudes

e decisões de agentes públicos, mas também com atos e escolhas dos próprios excluídos.

“O fato de dotar a idéia de exclusão de uma clara dimensão estrutural deve ser articulado com sua natureza relativa e emoldurada por uma rede de agentes que tomam decisões, das quais podem originar-se processos de exclusão. Em outras palavras, estrutura e agência se combinam nas raízes da exclusão, de forma específica, em lugares e tempos concretos” (Gomà, 2004, p. 4).

Essa característica, embora pouco enfatizada na literatura examinada, é fundamental para

reposicionar o conjunto da sociedade no enfrentamento da exclusão. Nessa perspectiva, a

pobreza deixa de ser um atributo ou condição individual e sua solução remete ao conjunto

da sociedade e suas instituições, em especial aos sistemas e serviços de proteção social.

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• d) Multidimensionalidade

Outra característica essencial da perspectiva de exclusão, embora Atkinson não o

reconheça explicitamente, relaciona-se com o fato de a exclusão ser um fenômeno

multidimensional40. Este remete ao mesmo tempo a uma questão econômica (acesso de

indivíduos aos meios para satisfazer suas necessidades básicas); ao campo político

(direitos) e a aspectos sócio- culturais (participação de indivíduos em redes e relações entre

atores, grupos e instituições sociais). Essas dimensões estão inter-relacionadas, com

intensidade e gradações variadas, o que faz com que as situações de exclusão sejam

múltiplas (Mideplan, 2002, p. 30).

É bastante consensual na literatura tratar a exclusão como um fenômeno multidimensional:

a exclusão não se explica segundo uma única causa; trata-se, antes de tudo, de um acúmulo

de circunstâncias desfavoráveis, freqüentemente interrelacionadas, o que torna

problemática uma intervenção unidimensional e setorial da exclusão social.

“Marginalização, como temática da agenda pública, requer abordagens integrais em sua

definição e horizontais ou transversais em seus processos de gestão” (Gomà, 2004, p. 18).

Se a exclusão não se refere a uma única dimensão, a ênfase recai prioritariamente nas

interações entre diversas dimensões do problema (Hills, 2002), mais do que em observar

cada dimensão individualmente (Saith, 2001, p.11). Outros autores (Subirats, 2002;

Burchardt, Le Grand, Piachaud, 2002) também salientam que a exclusão não é passível de

ser explicada por referência a uma única causa e grande parte do esforço investigativo atual

dos estudos sobre pobreza busca estabelecer as correlações ou os nexos entre as diversas

dimensões.

Tem-se, como síntese, que o enfoque da exclusão social enfatiza e confere centralidade às

relações sociais, focalizando os grupos, mais do que os indivíduos isoladamente; diz

respeito a processos e trajetórias e não a condições estáticas; aponta para a natureza

multidimensional dos fenômenos da pobreza, destituição e privação, abrindo caminhos

amplos para o uso de indicadores sociais e para o desenvolvimento de metodologias mais

qualitativas, que resgatam dimensões também subjetivas do fenômeno da pobreza e da

exclusão.

40 Essa dimensão foi agregada por Room, que concordou com os aspectos apontados por Atkinson como definidores da exclusão, mas agregou a eles a questão da multidimensionalidade e da vizinhança (Laderchi, Saith, Stewart, 2003, p. 21).

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Em síntese, uma abordagem bastante presente na literatura sobre a exclusão a concebe

como

“fenômeno inserido no molde das transformações das sociedades pós-industriais, relacional, cambiante, complexo e susceptível a mediações políticas coletivas. Como conceito que engloba a pobreza – ou seja, a insuficiência de renda- mas vai mais além à medida em que se define também pela impossibilidade ou dificuldade intensa de ter acesso tanto aos mecanismos culturais de desenvolvimento pessoal e inserção social, como aos sistemas preestabelecidos de proteção e solidariedade coletiva” (Gomà, 2004, p.19.)

1.4.3 Pobreza e exclusão: aproximações e distinções conceituais

Ainda que os termos de pobreza e exclusão possam ser fronteiriços e muitas vezes

sobrepostos, Atkinson afirma as distinções entre os dois conceitos e sustenta que pobreza

relaciona-se mais diretamente com ausência de renda e de bens materiais, enquanto

exclusão soa melhor como “shut out from society”, como afirmou Tony Blair, em 1997.

Esses processos podem ou não convergir, e nesse caso pessoas podem ser pobres sem

serem excluídas e podem ser socialmente excluídas sem serem pobres (Atkinson, 1998, p.

9). Embora pobreza e exclusão não sejam termos idênticos, ter renda (e nesse sentido, não

ser pobre) é parte essencial de um programa de redução da exclusão, como afirma o autor:

“while poverty is not the same as exclusion, raising people´s incomes via social security is

an essential part of any programme to reduce exclusion” (Atkinson, 1998, p. 11). Uma

hipótese de trabalho, aqui considerada, é que o conceito de exclusão complementa o de

pobreza, ao contemplar um espectro maior e mais diversificado de aspectos.

Quando se adota uma concepção ampliada de pobreza, tais termos (pobreza e exclusão)

tendem a se confundir. Contudo, tradicionalmente o conceito de pobreza apresenta uma

forte perspectiva econômica e um viés unidimensional, enquanto o conceito de exclusão

aponta não apenas para a multidimensionalidade como também para as dimensões não

materiais e relacionais (Mideplan, 2002, p. 30). Pode-se argumentar que essa perspectiva

seja mais adequada para abordar processos que têm lugar em sociedades complexas.

Uma crítica forte à concepção de exclusão é a de que esse seria um termo vago, impreciso

e sobreposto ao conceito de pobreza. Para alguns autores, dentre eles Amartya Sen,

concepções mais amplas sobre a pobreza não teriam nada a dever a concepções emergentes

ligadas à exclusão social. Nesse sentido, consideram que exclusão não acrescenta nada ao

conceito de pobreza, sendo irrelevante ou, em alguns casos, servindo para identificar um

subgrupo de pobres, “os mais pobres dos pobres” (Burchardt, Le Grand, Piachaud, 2002,

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p.3). Essa não parece ser, contudo, uma interpretação justa do alcance do termo exclusão.

A condição de exclusão inclui ausência de renda mas vai além dela, e aponta para uma

acumulação de barreiras e limites para uma inserção minimamente qualificada na vida

econômica, política, social e cultural de uma dada sociedade, ainda que seja sempre

problemático estabelecer o ponto de corte entre exclusão e inclusão social. Existe algo

mais do que a privação de renda na concepção de exclusão e esse algo, de natureza social

e cultural, remete aos processos de estigmatização e segregação, também espacial.

Embora reconhecendo que a concepção de exclusão seja uma formulação engenhosa,

alguns autores salientam que não há verdadeira inovação no uso dos termos exclusão em

relação ao de pobreza, muito menos no que se refere a formas de mensuração e nesse caso

seria um exagero afirmar que se trata de um novo enfoque:

“so neither the widening of the range of indicators relevant to identifying a lack of resources, nor the broadening of the focus from an individual – or household – level to include the community and locality should be seen as entirely new. Expanding the time horizon to facilitate dynamic analysis can be seen, at least in part, as the product of improvements in information technology and the availability of longitudinal data. Dynamic analysis has been part of the economist´s toolkit for some time, especially in the USA where longitudinal datasets are more mature” (Burchard, Le Grande e Piachaud, 2002, p. 5).

A mesma perspectiva da irrelevância do conceito de exclusão, principalmente nos casos

dos países em desenvolvimento, é expressa por Ruhi Saith:

“most studies although labelled as ‘social exclusion’ are thus quite similar to earlier multidimensional poverty studies performed in the respective countries. Poverty research that earlier looked at landlessness now looks at exclusion from land; those that looked at gender, caste or race based discrimination now look at exclusion on the basis of gender, caste or race; those that looked at access to health, nutrition, education now look at exclusion from basic rights or basic capabilities; studies on child labour are recast as looking at exclusion from a secure childhood; earlier studies on income or monetary poverty are recast as exclusion due to poverty. Thus the concept of ‘social exclusion’ as it originated in Western Europe, seems to have played a role in the re-opening of old debates and discussions in developing countries under new terminology” (Saith, 2001, pp. 9,10).

Em outro registro, Amartya Sen (2000) desenvolve um argumento forte para atenuar a

novidade conceitual da exclusão. O que o autor faz é inserir essa concepção no marco de

análise da pobreza como privação de capacidades, entendendo a privação de relações

sociais – termo equivalente ao de exclusão, para esse autor – como uma privação em si e

como causa de outras privações. Esse autor afirma, de forma categórica, que o enfoque da

exclusão representa uma continuidade e uma ampliação do enfoque das capacidades, mais

do que sua negação ou superação.

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Sen reconhece que a importância do conceito reside menos na novidade conceitual que

supostamente apresenta e mais na ênfase que essa perspectiva coloca nos aspectos

relacionais. O argumento de Sen consiste em entender o conceito de exclusão sob a

perspectiva do enfoque da pobreza como privação de capacidades, o que permitiria,

segundo esse autor, apreciar a ênfase e a especificidade que a noção de exclusão social

ajuda a iluminar, fortalecendo as bases conceituais e analíticas do conceito de exclusão ao

conectá-lo com uma perspectiva bem estruturada nos estudos sobre pobreza e privação

(Sen, 2000, pp.5-8). “The perspective of social exclusion reinforces – rather than competes

with – the understanting of poverty as capability deprivation” (Sen, 2000, p. 46). Isso

porque a abordagem da exclusão adota uma perspectiva mais especializada para analisar

os aspectos relacionais das privações, o que acaba por reforçar um e outro enfoque:

“if (as is the case in many traditional analyses of deprivation and underdevelopment) poverty is seen in terms of income deprivation only, then introducing the notion of social exclusion as a part of poverty would vastly broaden the domain of poverty analyses. However, if poverty is seen as deprivation of basic capabilities, then there is not real expansion of the domain of coverage, but a very important pointer to a useful investigative focus. In this essay, social exclusion has been placed within the broader perspective of poverty as capability deprivation, and this conceptual linkage both provides more theoretical underpinning for the approach of social exclusion and helps us to extend the practical use of the approach” (Sen, 2000, pp. 44-45).

A ênfase prática que o conceito de exclusão coloca nos aspectos ou dimensões relacionais

abre um vasto campo de investigações e reside aí, para esse autor, a maior contribuição que

pode ser dada pela perspectiva da exclusão social. De acordo com o argumento de Sen, a

“vantagem investigativa” da concepção de exclusão está em possibilitar a análise de causas

e inter-relações entre as diversas privações, ao ajudar a compreender como aspectos

relacionais influenciam a geração de outras privações, mais tradicionalmente reconhecidas

no escopo do enfoque das capacidades (Sen, 2000, p. 10)41. Para entender melhor como a

perspectiva relacional, eixo da noção de exclusão, pode funcionar como categoria analítica,

Sen distingue entre a relevância constitutiva da exclusão social e sua importância

instrumental. No primeiro caso, ser excluído é, em si mesmo, uma privação, na medida em

que torna o indivíduo incapaz de se relacionar e de tomar parte da vida da comunidade,

41 Ao buscar exemplificar alguns casos que podem ser beneficiados com o uso da perspectiva da exclusão, Sen identifica e discrimina diversas explicações causais possíveis para os fenômenos da fome e da inanição: dentre essas causas, tem-se as que apresentam um caráter mais “natural" (perda da colheita devida a fenômenos climáticos), outras que referem-se a causas macroeconômicas (desemprego) e relativas às alterações no mercado (mudanças nos padrões de preço relativos), e outras que apresentam um caráter mais diretamente relacional e, portanto, melhor focalizadas sob as lentes da exclusão social. A fome pela retirada dos subsídios concedidos a alguns grupos envolve uma forma ativa de exclusão que é central para um bom entendimento da questão, como afirmado por Sen (2000, p. 11).

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levando a uma vida empobrecida (impoverishment of human life). Do ponto de vista

instrumental, a exclusão pode levar a outros tipos de privações, levando ao

empobrecimento da vida humana através de suas conseqüências (Sen, 2000, p. 13). Com

isso o autor sustenta que as privações relacionais podem ter uma importância constitutiva

ou instrumental, sendo importantes em si mesmas ou enquanto meios ou canais para outras

privações42. Dessa forma reconhece explicitamente seu valor, ao enfatizar a

multidimensionalidade das privações e o foco nos processos relacionais, pontos centrais da

abordagem da exclusão social.

“The real issue is not whether the idea of “social exclusion” deserves a celebratory medal as a conceptual advance, but whether people concerned with practical measurement and public policy have reason to pay attention to the issues to which the idea helps to draw attention. The answer, I believe, is in the affirmative, despite the misgivings that the somewhat disorganized and undisciplined literature has often generated” (Sen, 2000, p. 47).

Apesar de Sen não reconhecer a ruptura trazida pela concepção de exclusão nos estudos

sobre pobreza, uma parte significativa da literatura pontua exatamente o oposto: a fissura

radical que esse enfoque traz na percepção sobre a natureza da pobreza e sobre as formas

de mensuração. Para esses, o foco da exclusão expressaria uma outra perspectiva para

entender a ordem e a vida social, sendo que as diferenças entre o enfoque monetário e o

enfoque da exclusão espelham divergências no campo das teorias e paradigmas sobre a

sociedade e o Estado. Tais perspectivas ancoram-se em diferentes tradições intelectuais e

políticas, sendo que em uma perspectiva tem-se a pobreza como atributo individual, sendo

que o papel das políticas sociais consiste, nesse caso, em assegurar os recursos suficientes

para que as pessoas possam sobreviver em um cenário competitivo. Em outra perspectiva,

a sociedade não é um agregado de indivíduos atomizados, mas é vista como uma estrutura

mantida coesa por direitos e obrigações mútuas, em uma dimensão coletiva. A função

básica das políticas sociais, nesse caso, consiste em uma tarefa de reintegração do

indivíduo na sociedade, na reconstrução dos “liames” sociais (Saith, 2001, pp.11,12).

Nenhuma outra abordagem da pobreza coloca tanta ênfase na dimensão coletiva

quanto o enfoque da exclusão e daí sua relevância para o presente trabalho.

A polarização no campo das teorias e paradigmas nas ciências sociais não é recente, nem é

um problema irrelevante. Ao contrário, ter essa perspectiva em tela reforça o fato de que as

42 Um exemplo óbvio é quando a privação da sociabilidade reduz as oportunidades econômicas que advêm dos contatos sociais, seja através do conhecimento da oferta de vagas de trabalho, acesso a créditos e subsídios econômicos.

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formulações conceituais vigentes em cada tempo e lugar são marcadas por fatores de

natureza extra-científica, de ordem social, política, cultural. Essa constatação – de que

diferentes concepções sobre exclusão estão ancoradas ou embebidas em contextos, valores

e ideologias distintas – fornece um elemento a mais para entender os diferentes usos e

significados do termo exclusão e, dessa forma, compreender melhor sua plasticidade e

ambigüidade. Mesmo abandonando o campo da sociologia do conhecimento, vale ressaltar

que considerar dimensões menos tangíveis, o caráter relacional e o aspecto de construção

social da pobreza, resulta em um modelo mais compreensivo no entendimento da

pobreza43.

Exclusão insere uma cunha sociológica ao tema da pobreza, trazendo em cena os temas da

identidade e das relações sociais, tendo como pano de fundo ou marco mais geral de

análise, os processos de manutenção ou ruptura dos mecanismos de coesão social44.

Exclusão seria o termo mais adequado do que o de pobreza para designar processos de

destituição no contexto da globalização. Seria a expressão de uma corrente ideológica

cultural (republicanismo ou normativismo francês) em contraposição à concepção anglo-

saxã da pobreza; aquela foca na coesão social e diz respeito à responsabilidade do coletivo

para reverter situações de exclusão, ao contrário da concepção da pobreza que focaliza o

indivíduo e sua responsabilidade por sua situação (Corera, 2002, p. 333).

Algumas críticas à idéia de exclusão devem ser, contudo, incorporadas. Segundo Saith, por

exemplo, uma questão importante refere-se às implicações de se buscar traduzir a

concepção de exclusão, forjada em contextos de países desenvolvidos, centrada nos eixos

do trabalho e proteção social, para países em desenvolvimento, com altos níveis de

desemprego e privação básica, que não contam com sistemas consolidados de bem estar

social. Segundo a crítica, o uso do termo exclusão, forjado na Europa ocidental e

identificado com os eixos do trabalho e da proteção do Welfare State, encontraria limites

para ser aplicado a outros contextos.

43 O ponto central é que o uso do conceito de exclusão é relevante por apontar de forma enfática para elementos e dimensões pouco consideradas no debate sobre o tema da pobreza. Logicamente essa relevância não existe para todas as ciências, sendo que para a economia, por exemplo, de caráter mais uniparadigmático, pode ser irrelevante, o que não é o caso nas ciências sociais, multiparadigmáticas. 44 O problema dos subúrbios franceses (banlieues), realidade social que emerge com força nos anos 80, não pode ser explicado apenas segundo as concepções de segregação espacial e estrutura de desigualdades, uma vez que se trata também de processos de natureza subjetiva, psico-social, que remete a sentimentos de solidão, abandono, perda de sentido da existência, o que acentua a questão da crise da coesão social (Paugam, 1996, p. 15).

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O status em relação ao emprego é definidor da condição ou não de excluído, na concepção

original do termo. Também a inserção ou não no sistema de proteção caracteriza a

exclusão social: ser excluído é ser excluído do sistema. Nos países desenvolvidos, a

vigência de sistemas mais estruturados de proteção social garante seguros, renda e inclusão

no sistema de bem estar. Entretanto, ainda que incluídos no sistema, os desempregados são

considerados excluídos socialmente. Isso porque a questão do desemprego não diz respeito

somente à renda ou à produção, como visto a partir de Castel (1998), mas também tem a

ver com a dimensão da sociabilidade, da identidade, dos laços sociais e sentimento de

pertencimento e auto-estima. Os excluídos são excluídos, sobretudo, do ponto de vista das

relações sociais. No entanto, nos países em desenvolvimento, a estrutura do mercado de

trabalho (tendo a informalidade e sazonalidade como características principais) tornaria

problemática a aplicação do conceito (Saith, 2001, p.8).

Nos países em desenvolvimento é utilizada uma pluralidade de perspectivas e enfoques,

tais como o das capacidades básicas, risco, vulnerabilidade, sendo diferente a apropriação

da concepção de exclusão. Na visão de Saith, dadas as diferenças estruturais entre os

contextos, seria preferível incorporar algumas vantagens do conceito de exclusão – tal

como a ênfase nos processos – no interior dos enfoques existentes e dominantes nos países

em desenvolvimento, a tentar modificar e adaptar, para países em desenvolvimento, uma

concepção formulada para o contexto e a realidade de países desenvolvidos (Saith, 2001,

pp.13,14).

Essa crítica é pertinente, uma vez que as realidades da Europa e América Latina são

distintas quanto à incidência/magnitude e severidade da pobreza e quanto à abrangência

dos sistemas e políticas existentes. Entretanto, se o foco permanece na dimensão relacional

e multidimensional, como afirma De Haan, o termo exclusão pode ser adequado mesmo

nos contextos de países em desenvolvimento.

“A notion of social exclusion – especially as defined within a ‘solidarity’ paradigm – may take us a step further in the direction of an holistic understanding of deprivation. The application of the notion is not restricted to particular situations of deprivation – the value of the notion lies in the light it sheds on these situations, and hence would be equally relevant for deprivation in richer countries as in situations of mass poverty. The policy implications of such an understanding may also be different” (De Haan, 1999, pp. 7, 8).

De acordo com o autor (De Haan, 1999), existem razões pelas quais o conceito de exclusão

apresenta vantagens ao ser utilizado em países em desenvolvimento e com pobreza de

massa. Para o autor, duas características seriam centrais na definição da exclusão: o

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enfoque multidimensional e o foco nas relações e aspectos sociais e psicológicos da

privação (De Haan, 1999, p. 10). Pelo fato de nos países em desenvolvimento existirem

distintos e múltiplos níveis de privações, a perspectiva da exclusão, com o foco na

multidimensionalidade, poderia funcionar melhor do que nos países desenvolvidos, para

analisar como se sobrepõem os diversos vetores de privação em cada contexto específico.

Nessa perspectiva, a pobreza como ausência ou insuficiência de renda seria um elemento

da exclusão social, sendo que as políticas de redução da pobreza fazem parte,

necessariamente, de estratégias de integração social (De Haan, 1999, p. 11).

Quanto ao aspecto relativo às dimensões relacionais do fenômeno da privação, o autor

sustenta que não há diferenças substantivas entre as agendas dos países desenvolvidos e em

desenvolvimento no combate à exclusão e por isso considera útil a utilização do conceito

também nos países em desenvolvimento:

“The social aspects of deprivation are not only a result of deprivation, but is integral part of it, and also causes the overall situation of deprivation.... Both see social relations and social integration as determining for and a crucial element of deprivation… The central point for the discussion here is that the building of such policies depart from an holistic view of society, and places social relations in the broad sense in the centre of the analysis of deprivation” (De Haan, 1999, p. 10,11).

É essa perspectiva do conceito de exclusão que importa reter: sua ênfase na

multidimensionalidade, no aspecto relacional (com o tema também da identidade,

confiança, estigma etc.) e a idéia de processo, como elementos que caracterizam e

explicam a condição de exclusão. Ainda que se reconheçam as especificidades do contexto

europeu no qual a concepção de exclusão surge e as restrições para sua aplicação em

países em desenvolvimento (como afirma Saith, 2001), a perspectiva adotada no trabalho

reconhece a relevância de se adotar o enfoque da exclusão como concepção que permite

entender processos em curso nos países em desenvolvimento, uma vez que essa concepção

incorpora privações básicas e materiais, mas vai além delas, sendo uma concepção mais

abrangente para entender o problema e mais adequada para iluminar a produção da

proteção e a inserção social.

1.5 Vulnerabilidade e risco: posse de ativos, modos de vida e portfólio de ativos

O conceito de desfiliação, tal como trabalhado em Castel (1998), ao ter como foco as

trajetórias que levam à invalidação social, permite agregar ao conceito de exclusão outro

elemento importante, o da vulnerabilidade. Essa concepção permite uma aproximação

mais imediata com a empiria, ao estabelecer posicionamentos distintos dos indivíduos e

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grupos no processo de exclusão, e possibilita distinguir áreas e tipos distintos de

vulnerabilidade, o que abre caminhos mais diretos para a intervenção pública no campo da

assistência e proteção social.

O enfoque da vulnerabilidade contribui para alterar a forma de entender a pobreza. Os

enfoques mais tradicionais adotam uma perspectiva ex post da pobreza, enquanto que a

literatura afinada com a concepção de vulnerabilidade preocupa-se com a vulnerabilidade

ex-ante, para identificar as causas da vulnerabilidade à pobreza. A visão da pobreza pela

ótica da renda e necessidades concentra-se nos resultados, enquanto que a visão da pobreza

na perspectiva da exclusão e vulnerabilidade orienta-se para os processos, examinando as

estratégias que as famílias utilizam para lidar com os eventos e a queda de bem-estar. Há

estratégias que permitem escapar da pobreza e outras que a fazem perpetuar, o que remete

à contribuição possível e necessária das políticas públicas no fortalecimento das

capacidades de indivíduos, famílias e regiões para o enfrentamento e a superação da

condição de pobreza.

A concepção de vulnerabilidade encontra ressonância no enfoque da exclusão, que também

focaliza processos, trajetórias, em uma visão dinâmica dos processos de privação.

Entretanto, se a exclusão apresenta-se matizada pela perspectiva mais claramente

sociológica, o enfoque da vulnerabilidade e dos riscos permite uma ponte mais direta com

o campo das políticas públicas ao explicitar as diferentes estratégias que devem ser

desenvolvidas para fazer frente a riscos específicos45.

O enfoque que associa pobreza à vulnerabilidade parte de uma literatura distinta da que

examina o fenômeno da exclusão. Vulnerabilidade articula-se freqüentemente com a idéia

de risco e, conseqüentemente, com as estratégias de enfrentamento, prevenção e mitigação

dos riscos. Liga-se diretamente com o campo da proteção social, o que não ocorre com o

enfoque da exclusão, cujos trabalhos concentram-se ou na discussão conceitual sobre

características peculiares do conceito e sua novidade ou se dedicam ao esforço de

mensuração e estabelecimento de indicadores, tanto objetivos quanto subjetivos, para a

identificação dos excluídos. A hipótese aqui é que a junção entre essas duas

formulações - exclusão e vulnerabilidade – pode ampliar a capacidade das políticas

45 O enfoque da vulnerabilidade, tal como tratado em Castel, tendo como eixo o olhar da desfiliação, não se desdobra em conseqüências diretas em termos de políticas e estratégias para o enfrentamento das diferentes formas de privação. Embora Castel trabalhe de forma seminal a noção de vulnerabilidade, o faz em uma abordagem de natureza mais sociológica, de forma bastante aproximada à concepção de exclusão. Como visto anteriormente, a noção de vulnerabilidade em Castel situa-se nos eixos ou dimensões do trabalho e das relações sociais, que também constituem eixos privilegiados da concepção de exclusão social.

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locais para enfrentar a pobreza, pois possibilitaria adotar um marco analítico mais

abrangente para subsidiar o desenho de alternativas de inclusão e redução das zonas

de vulnerabilidades, tendo como foco a pobreza crônica.

A noção de vulnerabilidade, trabalhada em Castel sob uma perspectiva de zonas de

vulnerabilidade configuradas a partir das alterações nos eixos relações de sociabilidade e

trabalho, distancia-se das abordagens tradicionais de pobreza. Estes dois universos –

pobres e vulneráveis – não são necessariamente os mesmos. Nem todos os que se

encontram em situação de vulnerabilidade são pobres e nem todos os pobres são

vulneráveis da mesma forma. O estudo da vulnerabilidade no campo da análise da pobreza

e do desenvolvimento46 emerge vinculado ao estudo das ameaças e desastres,

principalmente à fome. A temática do risco é a contra face da vulnerabilidade, e por riscos

entende-se uma variedade de situações, que englobam riscos naturais (como terremotos e

demais cataclismas), riscos de saúde (doenças, acidentes, epidemias, deficiências), riscos

ligados ao ciclo de vida (nascimento, maternidade, velhice, morte, ruptura familiar), riscos

sociais (crime, violência doméstica, terrorismo, gangues, exclusão social), econômicos

(choques de mercado, riscos financeiros), riscos ambientais (poluição, desmatamento,

desastre nuclear), riscos políticos (discriminação, golpes de estado, revoltas), tal como

sistematizado pela unidade de proteção social do Banco Mundial47. Nessa perspectiva,

vulnerabilidade significa “un proceso multidimensional que confluye en el riesgo o

probabilidad del individuo, hogar o comunidade de ser herido, lesionado o dañado ante

cambios o permanencia de situaciones externas y/o internas” (Mideplan, 2002, p.32).

O conceito de risco refere-se a eventos que podem prejudicar o bem estar das pessoas, que

são incertos quanto à magnitude dos danos que podem causar. Esse enfoque baseia-se na

idéia de que todas as pessoas estão sujeitas a riscos diversos, sejam esses naturais ou 46 O foco da concepção de vulnerabilidade emergiu inicialmente nos estudos sobre desenvolvimento rural (Prowse, 2003, p.4). 47 Não existe um único conceito de vulnerabilidade, sendo essa uma concepção que se expande em vários campos disciplinares, com enfoques, ênfases e estratégias de mensuração distintas. Um estudo interessante feito por Alwang, Siegel e Jorgesen (2001) contribui para entender as diversas perspectivas sobre vulnerabilidade. Fornecendo um panorama dos estudos sobre vulnerabilidade em diferentes campos disciplinares, entende-se melhor a inconsistência por vezes observada na literatura examinada. Na literatura econômica, a concepção de vulnerabilidade concentra-se no exame dos resultados – poverty status -, sem considerar com ênfase os diferentes processos ou respostas aos riscos. A intenção é achar uma medida que possa comparar diferentes resultados, sendo essa métrica do tipo monetário. Ainda no campo econômico, uma outra literatura sobre dinâmica da pobreza reconhece a pobreza como resultado de um processo, incorporando a dimensão do tempo. Essa perspectiva faz uma diferenciação entre pobreza crônica e temporária ou transitória, mas o foco permanece no resultado do processo e não no processo. Outro enfoque, baseado nos princípios econômicos, é o de ativos (asset-based). Nesse enfoque, a pobreza é produto de um acesso inadequado a ativos tangíveis e não-tangíveis, sendo que o foco reside na compreensão das respostas dadas aos riscos por parte dos indivíduos, domicílios e regiões.

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provocados pelos seres humanos. Entretanto, os pobres apresentam menos condições para

enfrentá-los. O enfoque do manejo dos riscos associa pobreza à vulnerabilidade, pois as

pessoas pobres estariam mais expostas a riscos e teriam menos instrumentos para enfrentá-

los (Mideplan, 2002, p. 36).

O foco, nessa abordagem, reside nas condições que pessoas, famílias e comunidades

apresentam para fazer frente aos riscos, às mudanças do entorno. A vulnerabilidade

apresenta gradações, sendo que indivíduos e grupos se posicionam diferentemente quanto à

capacidade de resposta aos riscos e às mudanças do entorno. Fortalecer a capacidade de

resposta significa diminuir os níveis de vulnerabilidade de indivíduos e coletividades

diante de choques externos. Vulnerabilidade mede a resistência ao choque, a capacidade de

resistência quanto ao declínio do bem estar (Sojo, 2003, p. 134).

Entretanto, embora as distintas abordagens calcadas na perspectiva da vulnerabilidade e

riscos partilhem de pressupostos comuns como os acima apresentados, pode-se distinguir,

pelo menos, três sub-abordagens que sinalizam matizes e ênfases diferentes dentro de um

mesmo campo de preocupações de um “paradigma”. O manejo de riscos, modelo de modos

de vida e do portfólio de ativos constituem essas três perspectivas, que consideram

diferentes ativos e enfatizam diferentes aspectos e elementos do enfoque da

vulnerabilidade e dos riscos.

1.5.1 Modelo da posse de ativos

O enfoque da vulnerabilidade, de forma geral, apresenta três componentes, que conformam

a cadeia de risco (risk chain): os eventos de risco, a resposta a eles, e os resultados em

termos de bem estar (Alwang, Siegel, Jorgensen, 2001, p. 2). Riscos e eventos do risco,

combinados a respostas a eles, levam a distintos resultados quanto ao bem estar. Os

resultados dependem do evento do risco e do sucesso ou fracasso dos instrumentos de

manejo, ou das respostas dadas ao evento negativo. Essa é a lógica. Os resultados são

identificados a partir de um parâmetro, que constitui um mínimo socialmente aceito que

serve como benchmark para os diferentes tipos de vulnerabilidade48. As respostas aos

riscos podem ser, basicamente, de dois tipos: ex ante e ex post, relativas a estratégias

desenvolvidas antes da ocorrência do evento de risco ou após sua existência. No primeiro

48 Nesse sentido, a vulnerabilidade à desnutrição, por exemplo, é vista tendo como parâmetro os valores de índices antropométricos que avaliam relação peso, altura e idade.

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caso, as ações podem se dar ou na perspectiva da redução do risco ou de sua mitigação49.

No caso de estratégias ex post, o objetivo é enfrentar os riscos, uma vez que os eventos

tenham ocorrido (ex post risk coping activities)50 (Alwang, Siegel, Jorgensen, 2001, p. 3).

A partir do mapeamento das vulnerabilidades, tem-se os riscos e as populações mais

sujeitas a eles, o que permite, pelo menos em tese, a elaboração de matrizes de risco e de

estratégias de prevenção, mitigação e enfrentamento, que permitiriam delinear, pelo menos

idealmente, sistemas de proteção social. Ao partir do reconhecimento da natureza

multidimensional da pobreza, agregando ao âmbito do emprego e do mercado de trabalho

outras fontes de vulnerabilidade, o enfoque da vulnerabilidade incorpora o de exclusão e

agrega com centralidade a categoria de ativos. Em nenhuma outra abordagem essa

noção aparece como categoria analítica central, como é o caso do enfoque da

vulnerabilidade e dos riscos. Embora a abordagem das capacidades tenha essa

dimensão implícita, somente a partir da abordagem da vulnerabilidade e dos riscos a

noção de ativos passa a integrar o modelo de explicação e de ação. Na perspectiva de

superação da pobreza, a noção de manejo de riscos envolve três componentes centrais: a

noção de ativos, as estratégias de uso dos ativos, e o conjunto de oportunidades que o

Estado, a sociedade e o mercado oferecem a indivíduos e comunidades (Mideplan, 2002, p.

32). Os ativos (humanos, físicos, financeiros e sociais), bem como as estratégias de uso,

condicionam a capacidade de resposta de indivíduos e comunidades e a mobilização deles

é condição para acesso às oportunidades do entorno.

A noção de ativos articula-se diretamente com risco e vulnerabilidade. Um exemplo

permite elucidar essa articulação: para os pobres, as estratégias que podem parecer como

as mais adequadas no curto prazo implicam conseqüências e perturbações no médio e

longo prazo, de magnitude bem maior do que os eventos que lhes deram origem. A venda

de ativos (propriedades, bens), o “desinvestimento” em capital humano (como o abandono

da escola) ou a redução da ingestão de calorias, constituem estratégias utilizadas pelos

pobres para lidar com riscos imediatos, mas exigirão esforços maiores, no futuro, para que

49 Um exemplo do primeiro tipo, de ações ex ante de redução de riscos, os autores apresentam o uso de redes de proteção contra mosquitos, para prevenir o risco de contaminação por malária, bem como estratégias de redução dos focos de mosquito. Um exemplo de estratégia de mitigação seria a poupança ou a compra de seguros de vida (Alwang, Siegel, Jorgensen, 2001, p. 3). 50 Um exemplo desse tipo seria a venda de ativos, a migração de membros da família, o recurso ao trabalho infantil como estratégia para compensar a perda de renda familiar (Alwang, Siegel, Jorgensen, 2001, p. 3).

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sejam sanados os efeitos produzidos (Sojo, 2003, p. 123; Holzman, Jorgesen, 2000, p.

10)51.

Os enfoques dos ativos (asset-based approaches) focalizam, de forma geral, a categoria de

ativos e a cadeia de riscos. Apresentam um recorte basicamente econômico, sendo que o

enfoque do manejo de riscos é o que sustenta o modelo ideal de proteção social tal como

concebido, dentre outros atores, pelo Banco Mundial. Voltaremos a esse ponto adiante,

explicitando os pressupostos desse enfoque de proteção e sua relação com a perspectiva do

enfoque dos ativos.

1.5.2 Enfoque dos modos de vida

A segunda abordagem que tem como base a concepção de vulnerabilidade e riscos é o dos

meios de vida, modos de vida ou livelihood approach52. A definição dada por Chambers e

Conway, em 1992, tem sido a mais adotada. Nessa perspectiva,

“a livelihood comprises the capabilities, assets (including both material and social resources) and activities required for a means of living. A livelihood is sustainable when it can cope with and recover from stresses and shocks and maintain or enhance its capabilities and assets both now and in the future, while not undermining the natural resource base” (Murray, 2001, p. 6).

Essa perspectiva é bastante ampla e não se configura como uma abordagem com fronteiras

muito demarcadas53. Diversas outras abordagens (“urban assets vulnerability framework,

entitlements analysis, or food security and survival strategy frameworks”) poderiam ser

incluídas no campo de “livelihoods approaches” (ODI, 2002). O enfoque teve sua origem

no estudo da pobreza nas zonas rurais54, no campo de interesse e especialidade dos estudos

51 Holzman e Jorgesen (2000, p. 9) incluem tais estratégias no rol dos mecanismos informais de superação de riscos, com altos custos futuros para os indivíduos pobres que a eles recorrem. Os sistemas informais de compartilhamento de riscos, por sua vez, são freqüentes em sociedades mais tradicionais e estão sustentados por princípios de reciprocidade, obrigações e cuidados mútuos. No entanto, tais mecanismos e sistemas de seguros recíprocos seriam precários, frágeis, inadequados em caso de riscos e choques de grande envergadura e tenderiam a excluir do sistema de troca os mais pobres, que não teriam condições de retribuir favores de forma compensatória (Holzman e Jorgesen, 2000, p. 9). O isolamento e a fragilização dos vínculos sociais e comunitários são manifestações desse tipo de vulnerabilidade social. 52 A idéia de modos de vida sustentáveis (sustainable livelihoods) pode ser identificada de forma pioneira no trabalho de Robert Chambers e outros, em finais de 80, ganhando corpo no início dos anos 90, em um trabalho do Instituto de Estudos sobre Desenvolvimento (Institute of Development Studies-IDS) da Universidade de Sussex, envolvendo pesquisas em países da África, em particular (Murray, 2001). 53 Na literatura podem ser encontradas definições distintas: “livelihoods are taken as ways in which people satisfy their needs and earn a living” (Alwang, Siegel, Jorgensen, 2001, p. 11). Em outro lugar, Livelihoods approaches “are concerned largely with household-based productive activities and (generally to a less extent) with risk management, voice and social protection” (ODI, 2002). De toda forma, os modelos de modos de vida e da noção de ativos, de forma geral, articulam-se com a perspectiva das capacidades. 54 Uma referência importante para a sistematização e divulgação da abordagem é a DFID, Department for International Development, Ministério para o Desenvolvimento Internacional do governo britânico, e ODI –

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sobre desenvolvimento, e posteriormente ganhou espaço em agências de pesquisa e de

financiamento no campo das políticas para o desenvolvimento (como CARE, OXFAM,

PNUD, DFID).

Algumas características são centrais nessa abordagem. O foco nas pessoas, o que significa

privilegiar a participação e a visão dos pobres na orientação das estratégias de intervenção.

A concepção de modos de vida sustentáveis é compreensiva, por reconhecer a

multiplicidade tanto de atores, quanto de fatores e elementos causadores da pobreza,

diferentes estratégias e resultados. Trata-se de uma abordagem dinâmica, centrada na

perspectiva das mudanças e processos, orientada para identificar potencialidades e

recursos de domicílios e comunidades, sustentada por uma visão múltipla de

sustentabilidade - econômica, ambiental, social, institucional, ainda que não seja claro a

que se refere essa sustentabilidade, para quem e sob quais critérios ela pode ser avaliada

(Murray, 2001, pp. 6,7).

As unidades de análise das pesquisas são grupos sociais identificáveis, sem pressupor uma

homogeneidade a priori.

“Relevant social divisions may include those relating to class, caste, age, ethnic, gender; they can only be defined and agreed through an iterative process of participatory enquiry at community level” (Norton e Foster, 2001).

O modelo dos modos de vida busca cobrir um amplo leque de dimensões e categorias

analíticas, dentre os quais têm-se alguns dos elementos dos enfoques anteriores, conforme

pode ser visualizado na Figura 2. Como no enfoque da exclusão, centra-se nas relações

sociais, tanto as que ocorrem no contexto intra-domiciliar quanto as externas aos

domicílios, além de reconhecer os contextos histórico, institucional, social, que

constrangem o modo de vida de domicílios e comunidades (Murray, 2001, p.5) 55. A

questão que permanece refere-se à dificuldade de, também nesse caso, se estabelecer o

patamar abaixo do qual se situaria a vulnerabilidade.

O diagrama abaixo representa a abordagem dos modos de vida, conforme consta em

diversos textos examinados:

Overseas Development Institute -, situado em Londres, um centro de pesquisa independente que publica pesquisas, artigos e boletins na área. www.odi.org.uk/nrp/ 55 Não foi possível esclarecer, sem ambigüidades, as unidades de análise consideradas em cada uma das abordagens sustentadas pela perspectiva da vulnerabilidade. Em alguns casos (asset-based approach), parece que a unidade são domicílios; no enfoque dos modos de vida (livelihood approach) , parece ser domicílios e comunidades; no enfoque do manejo de portfólio de ativos (asset vulnerability framework), as unidades referem-se a indivíduos, famílias e comunidades.

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Figura 2 - Modos de vida sustentáveis

Legenda: Ativos H (humanos),

S (sociais), N (naturais), F

(físicos), F (financeiros)

Contexto de

vulnerabilidade

Recursos de meios de vida

Processos e estruturas em transformação

Estratégias de meios de vida Resultados dos

meios de vida Acesso

Ativos influência

H, S, N, F, F

Fonte: Norton, A. e Foster M. (2001, p. 34); DFID (1999, p. 2).

Essa abordagem também recorre à noção de ativos dos pobres, entendidos como elementos

centrais para examinar as estratégias de respostas, os resultados e o contexto de

vulnerabilidade. Capital humano, social, natural, financeiro e físico seriam os ativos

principais, incluindo os ativos naturais, ausentes no enfoque anterior. A perspectiva dos

modos de vida focaliza as potencialidades e as fortalezas dos pobres, mais do que suas

debilidades e ausências; reconhece as múltiplas determinações que influenciam as

condições de vida das pessoas e domicílios; a diversidade de respostas de estratégias

possíveis, bem como de resultados, frutos dessas estratégias. O enfoque resgata a

centralidade do papel do Estado no campo das políticas públicas. Esse ponto aparece no

diagrama e no modelo sob o termo Processos e estruturas em transformação. As

estruturas, organizações e processos (leis, políticas, normas sociais e incentivos)

influenciam o acesso, o uso e o controle de ativos por parte dos pobres e é a partir daí que

se estabelece a conexão entre o plano micro (indivíduos, domicílios e comunidades) e o

plano macro (regional, governo, negócios privados). A noção de agência aparece

implicitamente, na medida em que as políticas e as leis apontam a responsabilidade do

poder público, e o uso dos ativos e a escolha de estratégias remetem às decisões de agentes

no plano micro. Dependendo dos ativos disponíveis, das estruturas e processos vigentes e

do contexto de vulnerabilidade, as pessoas escolhem estratégias, que por sua vez podem

produzir distintos resultados quanto ao bem-estar.

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1.5.3 Enfoque do portfólio dos ativos

A terceira abordagem no campo de estudos sobre vulnerabilidade refere-se à

vulnerabilidade de ativos (asset vulnerability framework). Vulnerabilidade é tratada a

partir de dois eixos: um que reflete a sensitividade56 do sistema (indivíduo, família,

comunidade) quanto aos eventos externos; e outro que expressa sua resiliência, ou a

facilidade e rapidez com que um sistema se recupera do stress (Moser, 1998, p. 23). Na

definição mais comum,

“resilience is the household´s ability to resist downward pressures and ability to recover from a shock. Resilience depends on, among other things, the effectiveness of the risk response and the capability to respond in the future. Sensitivity is the extent to which the household’s asset based is prone to depletion following responses to risk” (Alwang, Siegel e Jorgesen, 2001, pp. 12,13).

Essas duas dimensões permitiriam identificar situações distintas de vulnerabilidade,

conforme explicita o quadro abaixo. O que define a vulnerabilidade é a combinação

peculiar das dimensões de resiliência e sensitividade/sensibilidade (Quadro 1)

Quadro 1 – Vulnerabilidade, Sensitividade e Resiliência

Resiliência alta Resiliência baixa

Sensitividade alta vulnerável muito vulnerável

Sensitividade baixa não vulnerável vulnerável

Fonte: (Alwang, Siegel e Jorgesen, 2001, p.13)

Nessa perspectiva o foco está nas estratégias e nos recursos que os pobres utilizam para

fazer frente a situações de privação. A concepção de portfólio de ativos, que tomou forma

a partir dos trabalhos de Caroline Moser, contribui para expandir a base de ativos,

incorporando aspectos como capital social e o papel das relações familiares como

elementos de um portfolio de ativos. Pode-se sugerir, nesse sentido, que a abordagem aqui

enfatiza elementos de natureza mais propriamente sociológica, tais como laços e relações

familiares e comunitárias. Um estudo levado a cabo em 1996 por uma equipe do Banco

Mundial em quatro comunidades urbanas57 (Moser, 1998) forneceu as bases para entender

as estratégias de nível micro, adotadas pelos pobres para fazer frente aos processos de

56 O termo, conforme tradução feita em português, é esse, embora possa ser mais adequadamente traduzido como sensibilidade. Optamos por manter aqui essa tradução (sensitivity) direta do termo em inglês. 57 Os estudos tiveram lugar em quatro comunidades pobres situadas em 4 países: Zâmbia, Equador, Filipinas e Hungria (Moser, 1996, p. 23)

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deterioração econômica58. “There is a growing recognition that the poor are strategic

managers of complex asset portfolios” (Moser, 1998, p. 26). A partir do mapeamento dos

ativos (tangíveis e não tangíveis), é possível identificar estratégias de manejo dos ativos

(asset portfolio management), as formas pelas quais indivíduos, famílias e comunidades

lançam mão de seus ativos durante períodos de crises e mudanças e se conseguem ou não

sobreviver a elas. A ênfase dessa abordagem concentra-se nos processos e estratégias de

enfrentamento, o que pode contribuir, na outra ponta, para o desenho de intervenções mais

adequadas do ponto de vista da proteção social.

A concepção de pobreza no enfoque da vulnerabilidade de ativos não parte da renda como

variável determinante para caracterizar a pobreza, e busca uma compreensão abrangente

das realidades locais, complexas e diversas. Uma decorrência é reconhecer a interação

entre os diferentes tipos de ativos. Diferentes estratégias mobilizam diferentes conjuntos

de ativos que podem produzir resultados diferentes quanto à vulnerabilidade, o que faz

com que não haja sempre uma relação unívoca e unidirecional entre pobreza e

vulnerabilidade. Por exemplo: “households that keep children in school, rather than send

them out to work, were poorer in income terms; however in the longer term their strategy

was intended to reduce vulnerability, through consolidating human capital as an asset”

(Moser, 1998, p. 38). Embora algumas famílias possam se situar acima da linha da pobreza

com o rendimento do trabalho de seus filhos, elas encontram-se em um nível maior de

vulnerabilidade do que famílias que abdicaram dessa estratégia, comprometendo ativos e

condições de vida presente e futura. Algumas estratégias de curto prazo das quais as

famílias lançam mão (trabalho infantil) podem danificar, a longo prazo, sua base de ativos.

De forma semelhante, a erosão do ativo relações familiares pode ter implicações

econômicas, na medida em que a saída de um dos cônjuges do espaço doméstico pode

implicar na diminuição da renda familiar.

Os ativos considerados no estudo foram agrupados em três níveis (Quadro 2), incluindo

três níveis ou unidades de análise – indivíduo, família e comunidade - e cinco ativos

principais: trabalho, capital humano, moradia, relações familiares, capital social59.

58 A pesquisa buscou entender como, em situações de crise, as famílias utilizam seus portfólios de ativos, mapeando a capacidade dos pobres em usar seus recursos para reduzir sua vulnerabilidade, enfrentar os eventos negativos e se recuperar deles. 59 Não existe um consenso na literatura sobre os tipos de ativos existentes. A perspectiva de Moser salienta esses cinco ativos, enquanto que em outras análises, a denominação é diferente. O “assets pentagon”, por exemplo, é constituído de capital natural, físico, humano, financeiro e social. Talvez as diferentes agregações sejam devidas a perspectivas de diferentes tradições disciplinares, que enxergam a realidade segundo seus conceitos e categorias. Provavelmente, a perspectiva do “asset pentagon” seja de cunho mais econômico,

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Vulnerabilidade está diretamente relacionada com a propriedade de ativos: “The more

assets people have, the less vulnerable they are. And the greater the erosion of their assets,

the greater their insecurity” (Moser, 1998, p. 24).

Quadro 2 – Tipologia de ativos, segundo C. Moser

Planos ou níveis de análise Ativos

plano individual - trabalho

- capital humano

plano da família ativos produtivos (principais):

- moradia,

- relações familiares

plano comunitário - capital social (confiança, normas e redes de reciprocidade).

Fonte: Elaboração própria a partir de C. Moser (1998)

O trabalho é um dos ativos no plano individual. Em contextos de crise, o primeiro e

principal recurso do qual as famílias pobres se utilizam é o aumento no número de

trabalhadores da família, inclusive fazendo uso do trabalho infantil. As respostas dadas

quanto ao uso do trabalho como ativo dependem da estrutura e composição dos domicílios,

o que acarreta uma heterogeneidade de respostas possíveis. O ativo capital humano

encontra-se ligado à provisão da infra-estrutura econômica e social (educação, saúde, água,

transporte e eletricidade). Uma adequada provisão de serviços60 pode viabilizar que os

indivíduos utilizem suas habilidades e conhecimentos de forma produtiva. Os ativos

produtivos englobam uma variedade de itens, desde carro e utensílios domésticos a

moradia e terra, principais ativos produtivos na zona urbana e rural, respectivamente. As

relações familiares constituem outro importante ativo e diz respeito à composição,

estrutura e coesão dos laços familiares. Em tempos difíceis, a família pode atuar como

importante rede de suporte, antes mesmo da assistência externa (Moser, 1998, p. 34). As

relações familiares e as estratégias das quais as famílias lançam mão em momentos de crise

ou mudança, seja interna (nascimento, morte, separação dos cônjuges) ou externa

(desemprego, por exemplo), constituem recursos centrais para a redução da vulnerabilidade

moldada segundo as tradições e perspectivas desse campo disciplinar. Muitos críticos dizem que falta nesse conjunto, por exemplo, a dimensão política e outros autores diferenciam, no campo do ativo social, entre capital sócio cultural e capital sócio político (Hulme, Moore e Stepherd, 2001, p. 30). Entretanto, agregar ou suprimir dimensões de ativos depende da perspectiva a ser salientada na análise. 60 Quando os serviços públicos são ineficientes, influenciam a capacidade de mobilização de outros ativos. A esse respeito a autora cita como exemplo as mulheres que gastam horas de seu dia carregando água na cabeça, ao invés de utilizar esse tempo para atividades de renda e trabalho.

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e da capacidade de resposta aos riscos. O capital social, tal como as relações familiares, é

um ativo não tangível e dinâmico, podendo aumentar ou diminuir em função do uso, se

consolidar ou erodir em função das mudanças externas61. Nessa perspectiva, quanto maior

a colaboração de instituições de base social, maior o estoque de capital social.

“Ensure that social capital is not taken for granted. Social capital is the key to communities´ ability to cope with economic crises and reverse the downward spiral of misery. It needs to be strengthened by, for example, improving trust between communities and the government and giving greater value to volunteer community work” (Moser, 1996, p. vi).

O enfoque dos modos de vida e do portfólio de ativos, bem como o enfoque dos ativos

(assets based), apresentam um conjunto de categorias comuns, organizadas, contudo, de

forma e com ênfases diferenciadas. As noções de capacidades e da pobreza como privação

de liberdade fornecem o arcabouço mais geral. O enfoque dos ativos é mais fortemente

lastreado na economia; a abordagem dos modos de vida é mais utilizada no campo do

desenvolvimento rural e a abordagem do portfólio de ativos, mais sociológica, centra-se

mais diretamente nas estratégias de respostas das famílias em situação de pobreza.

Elementos das três abordagens são pertinentes na conformação de um quadro analítico;

embora a perspectiva do portfólio de ativos seja mais abrangente ao contemplar

elementos dos outros dois, e configura-se como o mais adequado para perceber

processos que ocorrem nos contextos urbanos. O enfoque dos modos de vida, por outro

lado, embora tenha sido formulado e usado no âmbito da pobreza e do desenvolvimento

rural, agrega uma dimensão importante ao quadro analítico, ao enfatizar o peso dos

processos e estruturas na conformação das condições de vulnerabilidade ou em sua

superação. Além de sua parcimônia analítica, no enfoque do portfolio, os ativos são

discriminados em três âmbitos: o dos indivíduos, o das famílias e o das comunidades,

o que permite delinear estratégias de ação mais apropriadas para cada nível.

1.6 Pobreza crônica: concepção aglutinadora?

Para finalizar este capítulo, é importante salientar que os diferentes enfoques, de forma

geral, não distinguem entre tipos de pobreza. No entanto, a pobreza não é apenas múltipla,

mas apresenta gradações, intensidades, níveis e tipos distintos de privações. A noção de

pobreza crônica aponta exatamente as diferenças entre tipos de pobreza. Pobreza crônica

61 A concepção de capital social utilizada é a de Putnam: “as the informal and organized reciprocal networks of trust and norms bedded in the social organization of communities – with social institutions both hierarchical and horizontal in structure” (Putnam, apud Moser, 1998, p. 25).

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remete à intensidade da pobreza bem como à sua duração. Nas análises de pobreza

crônica as unidades de análise envolvem indivíduos, domicílios62, grupos sociais e áreas

geográficas.

“These are the chronic poor: those who suffer poverty for many years, often for a lifetime, and who are likely to transfer their poverty to their children. They are the people who benefit least, or suffer most, from the current process of globalisation and policies for development and who are the most difficult to assist. They are found in poor and rich countries, remote rural areas and inner city slums. They experience social exclusion because of their gender, age, ethnicity, disability, caste and social position, among others”63.

Quais são, contudo, as ligações entre a perspectiva da vulnerabilidade e dos riscos e a

concepção de pobreza crônica? De fato, não parece existir um vínculo entre a literatura da

vulnerabilidade e a que trata mais especificamente da pobreza crônica.64 A pobreza

crônica é objeto de outro conjunto de abordagens e métodos de mensuração65.

Em um certo sentido, o olhar sobre a cronicidade da pobreza é convergente com a

perspectiva da exclusão, ao apontar para situações onde as privações são múltiplas e nas

quais as relações sociais desempenham um importante papel. Novamente, os contornos

entre as diferentes concepções sobre o tema da pobreza se diluem, para dar lugar a uma

distinção mais matizada entre os cronicamente pobres e os excluídos.

62 Definidos como grupos de pessoas que “comem do mesmo pote” e dividem a mesma unidade residencial (household), constituem a unidade de análise mais utilizada para analisar a pobreza crônica. O sentido é de unidade domiciliar, de família. O uso do domicílio como unidade preferencial para análise da pobreza crônica tem levado a uma maior atenção aos processos e dinâmicas dentro do domicílio, percebendo que o bem estar é estratificado no âmbito familiar por variáveis como gênero, idade, sexo, status de saúde. Pesquisas qualitativas podem contribuir para entender melhor tais dinâmicas e suas implicações em termos de políticas públicas. 63 Citação retirada de documento Escaping poverty. Can policy reach the chronically poor? Insights Issue #46, March 2003, denominado ID21: “id21 is the free development research reporting service, bringing you the latest and best UK-resourced research on developing countries”. 64 Pode-se dizer, de forma geral, que existem três definições de pobreza crônica que sustentam as análises no campo, e que em duas percebe-se a ausência de articulação da concepção de pobreza crônica com a concepção de risco (Barrientos e Sheperd, 2003, p. 8). Uma enfatiza a continuidade da pobreza no tempo, medida a partir de uma linha de renda ou consumo, em diversos pontos de observação. Outra (shortfall approach) reconhece que a renda e o consumo contêm elementos permanentes ou constantes e outros flutuantes e consideram cronicamente pobres os domicílios cuja renda e consumo constantes estejam abaixo da linha durante um certo período de tempo. Uma terceira definição considera a probabilidade de renda e consumo futuro, que pode ser estimado pela posição atual da renda e consumo do domicilio em relação à linha de pobreza. Essa definição, ao considerar a variação futura na renda e no consumo, é a única que leva em conta a vulnerabilidade e os riscos na identificação e caracterização da pobreza crônica (Barrientos e Sheperd, 2003, p. 9). 65 Os enfoques da vulnerabilidade e da pobreza crônica são trabalhados de forma preferencial pelo CPRC, Chronic Poverty Research Centre, instituído em 2000, com financiamento do Departamento de Desenvolvimento Internacional (DFID) do Reino Unido. Trata-se de uma parceria internacional de universidades, centros de pesquisa e organizações não governamentais que tem como foco a pobreza crônica, com o objetivo de estimular o debate, ampliar o conhecimento sobre as causas e contribuir, assim, como guia de políticas para sua redução.

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Em uma perspectiva mais limitada e na esteira das pesquisas de corte mais econômico, a

idéia de pobreza crônica destaca, fundamentalmente, o tempo de duração da pobreza. A

categoria tempo é necessária e suficiente para demarcar situações de pobreza crônica.

Geralmente esse tempo é variável, mas gira em torno de cinco anos66 (Hulme, Moore e

Stepherd, 2001). A pobreza temporária ou transitória constituiria uma situação distinta da

situação de pobreza crônica e a abordagem de cada uma delas exigiria elementos e

estratégias diferentes. Essa distinção não é consensual e críticas consistentes têm sido

feitas, afirmando que tais grupos e condições são realidades superpostas, com contornos

fluidos e não “crisp sets”. Voltaremos a esse ponto adiante, salientando suas implicações

para o desenho de políticas de proteção social.

A partir do tempo de duração, pode-se definir uma tipologia de pobreza que considera os

que sempre foram pobres, os usualmente pobres, os pobres “flutuantes” (“churning

poor”), os ocasionalmente pobres e os nunca pobres.

Além do tempo, a pobreza crônica pode ser ainda identificada a partir de uma característica

fundamental, a severidade, ou seja, a profundidade da pobreza67. Similarmente a outros

enfoques, têm-se aqui problemas para delimitar o ponto de corte: que grau de severidade

da pobreza é suficiente para caracterizar a pobreza crônica. “It is hypothesised that a

significant proportion of people experiencing chronic poverty are severely poor, and that

those suffering extreme poverty have a high probability of experiencing chronic poverty”

(Hulme, Moore e Stepherd, 2001, p. 18). Agregando duração e severidade, poder-se-ia

identificar como cronicamente pobres68 os que apresentam renda muito abaixo da linha da

pobreza por um longo período de tempo.

Outra dimensão considerada para definir pobreza crônica seria a transmissão entre as

gerações (IGT - Poverty Intergenerationally Transmitted). Em uma definição mais restrita

de pobreza crônica, a ênfase recai sobre essa dimensão e transmissão intergeracional seria,

ao mesmo tempo, uma característica e a causa da pobreza crônica. Entretanto, existem dois

conjuntos distintos de questões envolvidas na transmissão intergeracional da pobreza. 66 Achados empíricos têm mostrado que se uma família ou domicílio permaneceu pobre nos últimos 5 anos, são muito grandes as chances de continuarem pobres pelo resto de suas vidas. Entretanto, tal periodicidade varia inclusive tendo como base a periodicidade dos dados disponíveis. 67 Em algumas abordagens, pobreza crônica é associada com a multidimensionalidade das privações e é nesse sentido que a noção de severidade é também considerada. 68 Uma outra noção é a de pobreza extrema relativa, definida a partir da renda média nacional. Quando utilizada essa medida - que é definida a partir de uma linha de pobreza e indigência definida em termos de percentuais da renda nacional e não de forma absoluta - na América Latina e Caribe, por exemplo, passaríamos de 6,5% da população vivendo com menos de 1 dólar ao dia para 51,4% da população com menos de 1/3 da renda média nacional. (Hulme, Moore e Stepherd, 2001, p. 18).

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Trata-se de saber, por um lado, o que é de fato repassado ou transferido entre as gerações.

Quanto a isso, a literatura aponta a questão do capital humano, do capital financeiro e

material, meio ambiente e recursos naturais, elementos culturais e psicológicos. Por outro

lado, é importante indagar: porque algumas pessoas, sob certas circunstâncias, são

incapazes de escapar da pobreza enquanto outras conseguem sair? “What are the

likelihoods are that a child born into poverty will suffer as a poor child, become a poor

adult and pass poverty on to her or his own descendents?” (Hulme, Moore e Stepherd,

2001, p. 18). Uma primeira exigência analítica para abordar a transmissão intergeracional

da pobreza consiste em saber como os fatores se relacionam, reforçando-se mutuamente

para a perpetuação da situação através das gerações.

O conhecimento maior das interações entre as diferentes dimensões, que se reforçam

mutuamente, permite não apenas desenhar redes de proteção mais apropriadas mas também

pode contribuir para prevenir a transmissão intergeracional da pobreza. Os pobres crônicos

experimentam várias formas de destituição ao mesmo tempo e essas combinações, sempre

sujeitas tanto a fatores estruturais quanto idiossincráticos, configuram situações de

perpetuação da pobreza, com crescente bloqueio às oportunidades de escape (Barrientos,

Shepperd, 2003, p. 8).

A ligação entre riscos, vulnerabilidade e pobreza crônica é direta. Para lidar com os riscos,

preveni-los e enfrentá-los, os que estão em condições de pobreza crônica apresentam muito

mais dificuldade do que os pobres “transitórios” e muito menor capacidade para utilizar, de

forma não predatória, sua base de ativos. É evidente, quase senso comum, que os pobres

crônicos são mais expostos a riscos, apresentam menos recursos e capacidades para

enfrentá-los, sendo que as respostas e estratégias utilizadas levam freqüentemente a

armadilhas que acabam por aprofundar e aprisionar ainda mais os indivíduos, famílias e

grupos na condição de pobreza.

O reconhecimento de que existem tanto fatores estruturais quanto idiossincráticos que

contribuem para a manutenção da pobreza crônica e também o reconhecimento de que esta

se inscreve, em certa medida, nos atos e decisões de agentes69 podem orientar modelos de

ação (políticas de proteção social) mais sensíveis para captar e se adequar às diversas

situações que conformam os modos de vida e as estratégias (ou falta de alternativas) a que

69 A dimensão da agência expressa-se pelas decisões que ocorrem no espaço micro e cotidiano, tais como as discriminações intradomiciliares, até decisões mais momentâneas, como a de retirar a criança da escola, por exemplo, como salientado por Barrientos e Sheperd (2003, p. 8).

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as famílias cronicamente pobres estão submetidas. O exame de riscos e vulnerabilidade

para grupos específicos poderá funcionar como mecanismo para ajustar as intervenções à

preservação e/ou recuperação de ativos.

Com a concepção de pobreza crônica conclui-se o primeiro capítulo do trabalho. A

perspectiva da pobreza crônica - que não é propriamente inovadora nos estudos, sobretudo

econômicos, sobre pobreza - pode ser uma categoria central tanto para analisar o fenômeno

quanto para atuar sobre ele. A dimensão inovadora consiste em apontar como elementos

definidores dessa condição não apenas a renda muito baixa por um longo período de

tempo, mas também a multidimensionalidade e a intensidade das privações. A perspectiva

da pobreza crônica complementa os enfoques anteriores, embora a pobreza crônica não

seja propriamente um enfoque e se configure mais uma forma de delimitar um sub-

conjunto do universo dos pobres, que se constituem em públicos específicos para

determinados tipos de políticas de proteção social.

As categorias e elementos presentes na concepção de pobreza crônica e nos enfoques de

exclusão e vulnerabilidade constituem as bases do arcabouço analítico que busca

compreender a pobreza como um problema para o conhecimento. O cerne da inovação do

conceito de exclusão reside na centralidade que ele confere às relações sociais, às

dimensões do processo, trajetória e dinâmicas que levam à privação e a fazem persistir.

Nesse enfoque, essas perspectivas não são acessórias. Como também não é acessória a

percepção de que a pobreza é uma condição que ultrapassa a questão da ausência ou da

baixa renda. A concepção de pobreza crônica, em certo sentido, pode se sobrepor à de

exclusão ou complementá-la. Pobreza crônica salienta a dimensão do tempo, focaliza a

severidade e a perpetuação intergeracional da pobreza e, como o conceito de exclusão,

enfatiza a multidimensionalidade e a centralidade das relações sociais na explicação e

enfrentamento das condições de pobreza.

Para entender de forma mais abrangente a produção e a reprodução da pobreza crônica, o

aporte dos vários enfoques é fundamental. Esse grupo ou tipo de pobreza pode permitir a

confluência dos distintos enfoques, na medida em que é necessário considerar que essa

condição geralmente envolve, além da precariedade da renda por um longo período de

tempo, necessidades insatisfeitas, relações sociais fragilizadas, aspectos psico-sociais

negativos e baixa capacidade de mobilização de ativos.

Uma vez tendo apresentado as matrizes e os elementos conceituais de distintos enfoques

sobre a pobreza, o capítulo seguinte continua na mesma trilha, mas aborda uma outra

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dimensão do processo de construção do objeto, que se refere à operacionalização, ou

mensuração do problema. O próximo passo é examinar as implicações de cada enfoque ou

abordagem quanto às formas de mensuração, sendo que esse ponto não é importante

apenas em termos metodológicos, mas sobretudo práticos, uma vez que as formas de

mensuração têm conseqüências diretas na definição dos grupos de pobres e indigentes e,

portanto, nas estratégias e parâmetros para focalização. O percurso a ser trilhado parte da

análise da pobreza como problema do conhecimento – o que justifica os capítulos onde se

apresentam as concepções e formas de mensuração da pobreza – em direção à pobreza

como problema de ação, de políticas públicas. O capítulo dois aproxima a discussão

conceitual do plano da ação, ao focalizar como cada enfoque delimita a pobreza, como

operacionaliza suas definições e concepções de forma a delimitar, empiricamente, o

fenômeno da pobreza.

O Quadro 3, sinóptico, sintetiza alguns elementos centrais dos enfoques apresentados.

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Quadro 3 – Síntese dos principais enfoques examinados sobre pobreza Enfoques Histórico, autores, campos Concepção Modelo, dimensões, tipologias

Monetário Concepção pioneira: Rowntree. Abordagem majoritária na análise e mensuração da pobreza.

Pobreza focalizada a partir da renda e do consumo. Concepção unidimensional da pobreza.

Distinção entre pobreza absoluta (sustentada em padrões nutricionais mínimos) e relativa (em relação a renda média de uma dada sociedade). Linha de pobreza (renda suficiente para cobrir necessidades alimentares e demais necessidades) e indigência (renda abaixo do necessário para cobrir os custos de uma cesta de alimentos). Unidade de análise: indivíduos e domicílios

Necessidades Básicas

Insatisfeitas

Booth foi um dos primeiros a representar a pobreza a partir do acesso a bens e serviços localizados. Como enfoque mais sistematizado, emerge por volta dos anos 70 na América Latina.

Pobreza como condição de privação de necessidades consideradas básicas. Geralmente a lista de necessidades básicas envolve educação, saúde, moradia, infra estrutura.

Mensuração direta da pobreza. Identificação das necessidades é relativa e dependente do contexto. Abordagem fortemente orientada para dimensões mais tangíveis da pobreza. Unidade de análise: indivíduos e áreas (mapas de pobreza, índices de qualidade de vida urbana)

Capacidades Perspectiva de Amartya Sen. Críticas ao utilitarismo (economia clássica do bem estar).

Pobreza definida a partir da perspectiva da liberdade. Identificada com carência ou privação de capacidades que permitam às pessoas viver uma vida digna. Considera dimensões menos tangíveis, como auto-respeito, autonomia, dignidade, senso de liberdade.

Noção de capability set: conjunto de capacidades, não previamente identificadas, capazes de possibilitar aos indivíduos viver com liberdade de fazer escolhas, de forma digna e autônoma.

Matriz francesa dos estudos sobre exclusão social. Concepção original do termo exclusão, relativo aos processos de ruptura ou fragilização dos laços de coesão social. - Presença da noção de “trajetória” e dinâmica dos processos de destituição.

Entendida na perspectiva dos processos de desqualificação e desfiliação social. Castel: Eixos de análise: precariedade econômica e a instabilidade social. Vulnerabilidade social como zonas que se situam entre os eixos da precariedade do trabalho e a fragilidade dos suportes de proximidade. Paugam: Eixos de análise: processos de natureza sociológica, tais como construção e perda de identidades sociais e o papel dos serviços sociais na construção do fenômeno da pobreza.

Castel: Trabalho e redes de sociabilidade (família, comunidade). Processos de Desfiliação Integração (situação de inserção qualificada no mercado de traba lho e laços sociais fortes) Vulnerabilidade (fragilidade da inserção no trabalho e debilidade dos laços sociais) Assistência (benefícios do Estado como fonte de integração social) Desfiliação (desemprego e perda dos laços sociais) Paugam: Tipologia baseada na categoria de status e relação com serviços sociais. Processos de desqualificação social Fragilizados – fragilidade e vulnerabilidade quanto aos processos econômicos e sociais, que relutam pela inserção no sistema de proteção (identidade e estigma) Assistidos – dependência dos serviços sociais. Resignação Marginalizados – ruptura e recusa do processo da assistência. Último degrau da desqualificação social Unidade de análise: indivíduos e grupos

Exclusão Social

União Européia adotou o enfoque da exclusão como base das estratégias de proteção.

Exclusão implica ausência ou precariedade de renda, mas a ultrapassa. Insere uma perspectiva mais claramente sociológica nos estudos sobre pobreza.

Características da exclusão: multidimensional, relacional, processual, ligada ao contexto, envolve aspectos psico-sociais (auto-estima, identidade, auto-respeito)

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Enfoques Histórico, autores, campos Concepção Modelo, dimensões, tipologias Banco Mundial / BIRD– Setor de Proteção Social. Segunda metade década de 90, para redesenhar ação do Banco no campo da proteção social. Referências: Holzman, Jorgesen (2000)

Vulnerabilidade:“un proceso multidimensional que confluye en el riesgo o probabilidade del individuo, hogar o comunidade de ser herido, lesionado o dañado ante cambios o permanencia de situaciones externas y/o internas” Articulação da noção de vulnerabilidade com a idéia de risco. A noção de risco envolve riscos naturais, de saúde, ligados ao ciclo de vida, sociais, econômicos, ambientais, políticos.

O enfoque da vulnerabilidade apresenta três componentes, que conformam a cadeia de risco (risk chain): os eventos de risco, a resposta a eles, e os resultados em termos de bem estar. Os ativos (humanos, financeiros, físicos e sociais) condicionam as respostas quanto: a) aos níveis de enfrentamento: prevenção, mitigação ou superação do evento de risco; b) Estratégias de enfrentamento: sistemas informais, sistemas mercado, setor público; c) Atores:indivíduos e famílias, comunidades, organizações (governamentais e não governamentais)

DFID (Departament for International Development - governo britânico) e Universidade de Sussex; ODI (Overseas Development Institute). Noção de meios de vida sustentáveis. Utilizado por diversas agências no campo de estudos e políticas para o desenvolvimento. Origem: estudos sobre comunidades e desenvolvimento rural.

Foco nos processos que causam pobreza e nas estratégias ou respostas dadas pelos domicílios para lidar com eventos negativos. Ênfase em metodologias participativas, em abordagens “centradas nas pessoas”. Reconhecimento do caráter dinâmico dos modos de vida (ao longo do tempo e do espaço) e da multiplicidade de fatores causais, de estratégias e de resultados possíveis e reconhecimento da multiplicidade de atores. Atenção aos processos e estruturas de natureza institucional, social, econômica, política. Foco nos ativos.

Ativos de modos de vida (livelihood assets): capital humano, natural, social, físico e financeiro. Papel das estruturas e processos na definição das estratégias dos modos de vida

vulnerabilidade e ativos

Banco Mundial/BIRD. Debate sobre o desenvolvimento; originalmente desenvolvimento rural. Referência: Caroline Moser com trabalhos na área urbana. Relação com enfoque dos direitos humanos

Foco na dimensão dos ativos que indivíduos, domicílios e comunidades pobres mobilizam e gerenciam para fazer frente a situações de pobreza. Agrega dimensões de mensuração de renda e consumo, mas agrega dimensão dos ativos, olhando a perspectiva da vulnerabilidade não somente do ponto de vista das ameaças e riscos, mas também da resiliência e sensitividade, que expressam a capacidade de resposta aos choques e a resistência aos choques e alterações do entorno.

Idéia de mobilização de ativos (Moser) Plano individual Trabalho Capital humano Plano familiar Ativos produtivos Relações familiares Plano comunitário Capital social (confiança, normas e redes de reciprocidade)

Pobreza crônica

Chronic Poverty Research Centre (CPRC) - O reconhecimento da pobreza crônica é comum no campo de estudos da economia.

Pobreza crônica definida a partir da duração da situação de pobreza, severidade e multidimensionalidade das formas de privação. Foco na transmissão intergeracional da pobreza. Cronicamente pobres: os que apresentam renda muito abaixo da linha da pobreza por um longo período de tempo.

Tipologia baseada nas posições de indivíduos e domicílios quanto à duração da pobreza: sempre pobres, usualmente pobres (posições que caracterizam pobreza crônica), “churning poor”, ocasionalmente pobres (ambos conformando a pobreza transitória, temporária), nunca pobres.

Fonte: elaboração própria, a partir dos autores considerados 81

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CAPITULO 2 - DAS CONCEPÇÕES À MENSURAÇÃO

Esse capítulo trata do tema da operacionalização das diferentes concepções sobre pobreza,

ou seja, das formas de mensuração que decorrem dos diferentes enfoques. Esse é um tema

bem amplo e por demais complexo para ser devidamente tratado em algumas poucas

páginas. A pretensão aqui é mais modesta e consiste em identificar em linhas gerais como

cada um dos enfoques anteriormente analisados considera a pobreza sobre o aspecto de sua

mensuração.

Se do ponto de vista teórico e analítico os diferentes enfoques divergem e se distinguem

quanto à caracterização da pobreza, e se tais concepções divergentes levam a diversos

métodos de mensuração e a diferentes resultados, as conseqüências práticas não são

irrelevantes, principalmente do ponto de vista das políticas públicas. A questão, antes de

tudo, consiste em saber se os diferentes enfoques identificam as mesmas pessoas como

pobres. Esse ponto ganha importância não pela questão propriamente metodológica, mas

pelo fato de que diferentes enfoques podem levar, entre outras coisas, a identificar

diferentes grupos de pobres, o que tem implicações diretas na provisão de bens e serviços

públicos, definindo público alvo das intervenções, orçamentos e alocações de recursos

públicos. Que diferenças ocorrem na prática quando métodos alternativos são usados? Os

universos delimitados são os mesmos? Se sim, o uso da renda como base de mensuração,

apesar de suas deficiências teóricas, poderia ser utilizado como proxy de outras privações.

Em torno dessas questões, Laderchi, Saith e Stewart (2003) identificaram estudos

empíricos levados a cabo em diferentes países e que são instigantes do ponto de vista de

seus resultados. Comparando a medida de pobreza pela renda (pobreza monetária) com a

mensuração sob o enfoque da capacidade (mensurada pelo acesso à água, esgoto e pelos

indicadores de educação e saúde) não há uma congruência ou uma grande sobreposição

dos universos mensurados pelos dois enfoques. Existe uma “limitada consistência

empírica” entre os enfoques, sendo que essa questão não é banal. O que é difícil de aceitar

é como baixos níveis de pobreza medidos por um enfoque sejam compatíveis com alto

índice de pobreza em outro70.

70 E o que os estudos mostram é uma significativa ausência de sobreposição em identificar os indivíduos pobres em um e outro enfoque. Por exemplo, na Índia, 43% das crianças e mais de 50% dos adultos considerados pobres pelo enfoque das capacidades, não eram pobres no enfoque monetário e no Peru um terço dos adultos e crianças considerados pobres do ponto de vista da capacidade educacional não eram pobres na medida monetária. Quando a comparação é com o enfoque participativo, as distâncias são ainda maiores. Na Índia, apenas metade dos classificados com baixo bem estar (enfoque participativo) eram pobres quanto a renda. No Peru, 48% não pobres quanto a renda foram identificados como pobres de acordo com o

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O tema da mensuração a partir de diferentes concepções teóricas ganha assim uma

importância analítica adicional. Este capítulo discutirá as diferentes formas de mensuração

relacionadas a cada um dos enfoques, com ênfase nos da exclusão e vulnerabilidade.

2.1 Mensuração pelo enfoque monetário

A mensuração da pobreza mais utilizada é a decorrente do enfoque monetário,

operacionalizada a partir do estabelecimento de linhas de pobreza e indigência71. A

primeira é estimada tendo como base o custo de uma cesta de alimentos que cubra as

necessidades nutricionais da população, agregando a esse valor os recursos necessários

para satisfazer necessidades básicas não alimentícias (Mideplan, 2002, p. 6). Como itens

não alimentares tem-se, por exemplo, habitação, vestuário, saúde e cuidados pessoais,

transporte e comunicação, artigos de residência, entre outros (Rocha, 2003, p. 63). A linha

de pobreza é, portanto, a soma dos valores calculados para cesta alimentar e para as demais

despesas básicas não alimentares. A linha de indigência, por sua vez, refere-se ao custo da

cesta alimentar mínima, sem considerar as demais necessidades. Os indigentes são, dessa

forma, um subconjunto dos pobres.

Tem-se, com essas duas linhas assim estabelecidas, a definição da pobreza absoluta. O

conceito de pobreza relativa, por sua vez, agrega uma medida de desigualdade, para indicar

que a pobreza se define em termos de carências materiais expressas por meios monetários,

mas também que as necessidades são determinadas culturalmente, parâmetros do que uma

sociedade considera como mínimo de vida aceitável (Rocha, 2003, pp. 11-12). Essa

perspectiva ganha corpo a partir dos anos 70, considerando a pobreza mais explicitamente

tendo como referência um padrão médio. Ênfase é dada às medidas de intensidade da

pobreza, que buscam capturar a desigualdade entre os pobres, na tentativa de mensurar o

hiato que separa os pobres de um padrão médio considerado (Lavinas, 2003, p. 36).

ranking do bem estar e 39% dos extremamente pobres quanto ao bem estar não eram pobres do ponto de vista da renda. Quase 30% dos que se auto declararam pobres quanto ao bem estar eram não pobres quanto à renda e 42% dos pobres quanto à renda não se consideravam pobres quanto ao nível de bem estar (Laderchi, Saith e Stewart, 2003, p. 33). 71 Uma boa referência sobre este tema encontra-se em Sônia Rocha (2003), que desenvolve uma extensa produção sobre a composição e mensuração das linhas de pobreza e indigência no Brasil.

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Como afirma Amartya Sen, pobreza absoluta e relativa são complementares, e existiria um

núcleo irredutível de pobreza que se manifesta na ausência ou precariedade de um mínimo

necessário para a sobrevivência física (Mideplan, 2002, p. 8)72.

Quadro 4 – Pobreza absoluta e relativa: mensuração e indicadores

O que mede Como mensura Indicadores

Linha de pobreza: identifica pobres e não pobres

custo de uma cesta de alimentos que cubra as necessidades nutricionais da população, agregando a esse valor os recursos necessários para satisfazer necessidades básicas não alimentícias, tais como vestuário, moradia, saúde e cuidados pessoais, transporte e comunicação, entre outros.

Pobreza absoluta

Identifica as pessoas que estão abaixo de um padrão de vida considerado minimamente aceitável.

Linha de Indigência: identifica os miseráveis e a pobreza extrema

custo de uma cesta básica de alimentos.

Pobreza relativa

identifica as pessoas que tenham um nível de vida baixo em relação à sociedade em que vivem.

Linha de pobreza

Definida a partir de um valor considerado mínimo na sociedade em questão, definido mais ou menos arbitrariamente.

Fonte: Elaboração própria

A principal vantagem do uso de enfoques baseados na renda consiste na possibilidade de se

identificar, sem muito problema, o universo alvo da intervenção. Uma vez estabelecidos os

parâmetros para as linhas de demarcação entre pobres e não pobres, simplifica-se o

processo de identificação dos pobres, indigentes e não pobres.

Estabelecer a distinção entre pobres e não pobres constitui uma primeira etapa na

quantificação da pobreza. Tem-se, além dessa distinção básica, alguns índices que

permitem avaliar outros aspectos. A incidência da pobreza, por exemplo, refere-se a essa

quantificação da pobreza para áreas ou populações específicas. A brecha (ou hiato) da

pobreza, por sua vez, permite determinar a profundidade da pobreza, através da distância

média entre a renda dos pobres e a linha da pobreza. Essa medida permitiria identificar

quanto é necessário acrescentar na renda média dos pobres para que eles superem a

condição de pobreza ou indigência. Finalmente, a terceira medida captura a severidade da

pobreza e procura discriminar grupos e subgrupos mais vulneráveis. Ela é extremamente

importante por permitir comparar populações pobres, o que possibilita identificar grupos

onde a magnitude da pobreza é maior.

72 A abordagem da pobreza relativa é mais freqüente nos países mais desenvolvidos, nos quais o mínimo vital é mais universalmente garantido para todos. Trata-se, nesse caso, de apontar situações de privação que ultrapassam as questões de sobrevivência física.

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Cabe aqui ressaltar o caráter intrinsecamente relativo do estabelecimento das linhas de

pobreza e indigência, mesmo que se parta da noção de pobreza absoluta e baseada no

consumo mínimo. Laderchi, Saith e Stewart apontam a centralidade dos julgamentos de

valor que formam um aspecto intrínseco da metodologia de mensuração, na definição do

que deve compor a cesta de consumo, por exemplo (2003, p. 13). No que se refere à cesta

básica, trata-se de definir a composição da cesta e escolher os preços adequados para cada

produto. Não se tem uma única solução possível e a questão se complica quando se trata

de outras necessidades que não as nutricionais mínimas (vestuário, moradia etc). Quando

se diz não ter uma solução única, o que se quer enfatizar é o caráter controverso do que

deve ser considerado mínimo, que envolve sempre uma normatividade. Como estabelecer

o que é mínimo para uma pessoa viver? Isso aponta para a complexidade de se estabelecer

o que seja considerado mínimo, seja para identificar pobreza ou até mesmo indigência

(Rocha, 2003, p.14).

Sob a aparente objetividade das medidas baseadas na renda, tem-se uma série de operações

e decisões mais ou menos arbitrárias que acabam por definir os padrões mínimos a partir

dos quais se delimita a pobreza e a indigência. Alguns autores têm pontuado a questão de

múltiplos ajustes nas estimativas empíricas sobre a pobreza, que fazem com que as taxas

de pobreza variem entre 13% e 66% na mensuração da pobreza em 17 países latino-

americanos (Laderchi, Saith, Stewart, 2003, p. 12). A magnitude da variação pode indicar,

de acordo com os autores, que muitas estimativas monetárias da pobreza não são robustas.

Sônia Rocha, para o Brasil, chega a conclusões semelhantes (Rocha, 2003, p. 174). Os

ajustamentos técnicos requeridos para a mensuração em termos monetários envolvem

numerosos julgamentos de valor, apesar da aparente objetividade.

Na medida em que a arbitrariedade relativa das definições e ajustes técnicos fica implícita,

corre-se o risco de atribuir maior “objetividade” às medidas de renda como síntese de

pobreza, o que pode contribuir para uma oposição entre métodos que procuram captar

dimensões mais objetivas ou dimensões menos tangíveis da pobreza.

A outra ressalva seria que o enfoque monetário estabelece os parâmetros para definição de

pobreza independente dos pobres e externamente a eles, sem levar em conta a percepção

que os pobres têm de sua própria situação73. Claramente, percebe-se aqui a dimensâo das

73 A emergência do enfoque participativo tem como contraponto exatamente essa questão: os critérios de identificação não são externos, impostos pelos pesquisadores, mas decorrem de categorias elaboradas a partir de percepções dos próprios pobres sobre a sua situação.

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diferentes ênfases disciplinares que marcam o debate sobre a pobreza. Aqui a ênfase é

basicamente econômica.

A segunda fragilidade, também de natureza metodológica, decorre da ambigüidade do

enfoque, que considera pobreza como atributo individual, mas ao mesmo tempo utiliza

dados da renda de domicílios. Têm-se informações sobre domicílios e, a partir de

procedimentos estatísticos, calcula-se um valor per capita médio, sem discriminar portanto

as diferenças de necessidades entre os indivíduos em função da idade e condições de vida,

por exemplo, ou os mecanismos internos às famílias – de poder, culturais - para

distribuição dos recursos existentes (Laderchi, Saith , Stewart, 2003, p. 12; Lavinas, 2003,

p. 35). Embora as medições utilizem escalas de equivalência para tentar chegar a valores

individuais a partir da composição familiar, os procedimentos podem alterar a incidência

da pobreza entre famílias com grande número de dependentes e não captar desigualdades e

relações de poder intrafamiliar, relativas ao gênero e faixa etária (Lavinas, 2003, p. 35).

A terceira objeção refere-se às dificuldades e limitações do uso da renda como indicador de

pobreza. Vários autores discutem a questão (Mideplan, 2002; Laderchi, Saith e Stewart,

2003; Franco, 2003), salientando a fragilidade da medida quanto à confiabilidade dos

dados, o que pode levar à superestimação da pobreza. Muitos rendimentos podem ficar

fora do radar e não serem considerados, tais como os benefícios públicos, por exemplo.

Além disso, a medida não considera bens e serviços adquiridos fora do mercado, tais como

os que são providos pelo Estado ou pelas redes de solidariedade familiar ou comunitária ou

produzidos de forma autônoma, como a auto-produção de alimentos, por exemplo

(Mideplan, 2002, p. 7). A ênfase exclusiva na dimensão econômica desconsidera recursos

sociais que são fundamentais para o bem estar das pessoas, como saúde e nutrição, por

exemplo.

2.2 Necessidades básicas: mapas e indicadores sociais

O enfoque monetário, ao adotar um corte unidimensional para distinguir entre pobres e

não-pobres, seja em termos de linhas ou de valores monetários (um ou dois dólares ao dia),

pretende estabelecer uma métrica universal para possibilitar, inclusive, a comparação entre

países. No caso do enfoque das necessidades básicas, obter indicadores que possibilitem a

comparação entre países é ainda mais discutível, pois a definição de necessidades básicas é

altamente dependente do contexto. A solução adotada, de forma geral, é uma

operacionalização do conceito através de variáveis relacionadas às condições de

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residência, aglomeração dos domicílios, disponibilidade de serviços (água potável,

eletricidade, serviços sanitários), acesso à escola, capacidade econômica do chefe de

família, dentre outras. Esse enfoque, ao estabelecer os graus mínimos de satisfação de

necessidades básicas, define uma linha de pobreza a partir da noção de mínimos sociais.

Ao centrar-se no exame das condições de acesso e usufruto, em cada sociedade, de bens e

serviços tais como moradia, água potável, energia elétrica, serviços sanitários, educação,

saúde, nutrição, entre outros, esse método incorpora a noção de pobreza relativa. Mas não

há consenso sobre quais são as dimensões relevantes e sobre o peso a conferir a cada

uma74. Aprender a ler e escrever é uma necessidade básica, mas em um contexto de

população alfabetizada, pode ser irrelevante para definir pobreza, sendo mais adequado

utilizar como critério um nível de escolarização mais alto. Saneamento é uma necessidade

básica, mas a forma de a atender varia de acordo com o contexto: na zona rural, o uso da

fossa pode ser adequado, situação distinta da área urbana, onde a existência de rede de

captação de esgoto é necessária (Rocha, 2003, p. 19).

Uma vantagem desse enfoque é que, ao focar na mensuração dos bens e serviços, ele

permite combinar zonas geográficas e nível de satisfação de necessidades básicas,

possibilitando capturar a heterogeneidade de situações que podem ser expressas, por

exemplo, em mapas de pobreza. O enfoque monetário, em sua forma pura, ao considerar

como base indivíduos, não incorpora de forma natural outras unidades de focalização,

como território, por exemplo. Os problemas, também aqui, decorrem da operacionalização

do método, da dificuldade de ponderar valores para necessidades básicas insatisfeitas,

definir que necessidades são mais ou menos importantes; ou da dificuldade de comparar

regiões, sem levar em conta as especificidades de cada uma (Mideplan, 2002, p. 10). Além

74 Dentre alguns índices utilizados na Grã Bretanha para mensurar privações, tem-se: A) Department of the Environment: Desemprego: residentes ativos economicamente que estão desempregados; Pensão: domicílios com pessoas sozinha acima de 60 / 65 anos; Habitação: domicílios com mais de 1 pessoa por quarto; Pais sozinhos: famílias monoparentais (com crianças abaixo de 15 anos);Ausência de amenidades: domicílios sem banho ou banheiro dentro da casa;Etnicidade: moradores em domicílios nos quais o chefe nasceu em paises da nova comunidade européia ou no Paquistão. B) Peter Townsend: Desempregado: residentes ativos economicamente com idade entre 16-59/64 anos desempregados; Sem carro: domicílios que não possuem um carro; Aluguel: domicílios não ocupados pelo proprietário; Habitação: domicílios com mais de 1 pessoa por quarto. C) Breadline: Desemprego: pessoas economicamente ativas desempregadas; Sem carro: domicílios sem carro; Aluguel: domicílios não ocupados pelos proprietários; Pais sozinhos: domicílios com pais sozinhos como proporção de todos os domicílios; Doenças de longa duração:domicílios contendo uma pessoa com doença limitante de longa duração; Baixa classe social: pessoas em classe social IV ou V (Peter Lee, Alan Murie, David Gordon, ano?)

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disso, os indicadores adotados para mensuração tendem a desconsiderar potencialidades e

os aspectos de natureza cultural, associativa e relativos à capacidade de organização

social das comunidades (Raczynski, 1999, p. 196).

A combinação do enfoque da renda com o das necessidades básicas originou uma tipologia

para identificar diferentes condições de pobreza que permite caracterizar os domicílios em

quatro situações distintas: pobreza crônica, renda se encontra abaixo da linha de pobreza e

com ao menos uma necessidade básica não satisfeita; pobreza inercial, renda acima da

linha de pobreza e pelo menos uma carência; pobreza recente, renda abaixo da linha e

nenhuma carência e integração social ou não pobreza, renda acima da linha de pobreza e

nenhuma carência. Esse método, conhecido como “método integrado de medição da

pobreza”, permite captar a mobilidade de grupos em relação à linha de pobreza e

estabelecer perfis diferentes da pobreza (Mideplan, 2002, p.10).

Quadro 5 – Método Integrado de Mensuração da Pobreza

Renda abaixo da linha Renda acima da linha Pelo menos uma necessidade insatisfeita

Pobreza crônica

Pobreza inercial

Nenhuma carência

Pobreza recente

Não pobreza/integração

Fonte: elaborado pela autora a partir Mideplan (2002)

2.3 Capacidades e Desenvolvimento Humano

O enfoque das capacidades encontra mais dificuldades para sua operacionalização. A

definição do que sejam capacidades básicas e do grau de realização dessas capacidades é

uma questão central (Laderchi, Saith, Stewart, 2003, p. 17) e não existe nesse enfoque, de

forma explícita, uma lista de necessidades, para deixar em aberto tais especificações para

serem definidas de acordo com as normas societárias vigentes em diferentes culturas.

Identificar capacidades básicas é um problema análogo ao de identificar as necessidades

básicas. Toda tentativa de especificação envolve uma concepção do que seja uma boa vida,

tal como apontam Laderchi, Saith, Stewart (2003, p. 17), ao comentar a definição de

requisitos essenciais para uma vida humana plena. Além disso, tais especificações seriam

muito gerais, não permitindo definir pontos de corte para definir privação.

O desafio está, portanto, em operacionalizar o conceito das capacidades em algo

mensurável - “all the possible achievements an individual may have, which together

constitute the capability set” (Laderchi, Saith, Stewart, 2003, p. 18). O conceito aponta

88

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para resultados potenciais - a capacidade de realizar algo, e não a realização em si - e isso

torna problemático identificar esse resultado empiricamente. Algumas tentativas de

operacionalizar a concepção de capacidades elaboram listas que definem os aspectos de

saúde, educação e nutrição considerados como mínimos, adotando os mesmos elementos

do enfoque das necessidades básicas, o que demonstra uma forte tendência para medir

funcionamentos mais do que capacidades. Os indicadores concentram-se em expectativa de

vida, morbidade, alfabetização, níveis de nutrição, o que os aproxima e os torna

virtualmente idênticos aos utilizados no enfoque das necessidades básicas (Laderchi, Saith,

Stewart, 2003, p. 18). As implicações disso é que a distância que pode separar a concepção

de necessidade da concepção de capacidade diminui consideravelmente quando se observa

a mensuração decorrente de cada um dos enfoques, uma vez que as variáveis e indicadores

podem ser tão parecidos.

Como em outros, o enfoque das capacidades necessita identificar quebras na distribuição

das capacidades que possam diferenciar pobres e não pobres. A escolha de tais cortes é

também, como nos casos anteriores, dependente do contexto e em certa medida arbitrária.

Um problema adicional, nesse mesmo sentido, refere-se à agregação das diversas

dimensões a serem consideradas, particularmente relevante em um enfoque que adota a

multidimensionalidade como perspectiva básica. Entretanto, embora haja um nível de

arbitrariedade nas escolhas para operacionalizar o conceito, semelhante ao do enfoque

monetário, alguns autores sustentam que no enfoque das capacidades as escolhas feitas são

mais visíveis e portanto estão mais sujeitas ao escrutínio do que as do enfoque monetário

(Laderchi, Saith, Stewart, 2003, p. 20). Além da complexidade em operacionalizar o

conceito de capacidades, tem-se ainda o desafio de estabelecer medidas que permitam

comparações entre grupos diferentes, que partilham valores e normas culturais distintas,

muitas vezes irredutíveis umas às outras. Essa limitação também vale para o enfoque da

exclusão e para todas as abordagens que utilizam critérios adicionais ao de renda.

Portanto, o enfoque das capacidades parece padecer de uma curiosa situação: do ponto de

vista conceitual seus supostos o aproximam de uma concepção da pobreza entendida como

exclusão (Sen, 2000), quando se trata de mensuração, as limitações dos métodos fazem

com que tal enfoque sofra um encolhimento, reduzindo-se à mensuração no nível das

necessidades básicas. A perspectiva do desenvolvimento humano e do seu índice (IDH)

permite ilustrar o ponto. O enfoque do desenvolvimento humano decorre diretamente da

abordagem das capacidades. Forjado e divulgado pelo Programa das Nações Unidas para o

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Desenvolvimento (PNUD) a partir dos anos noventa, ele marca uma inovação importante

na abordagem do desenvolvimento. O eixo desse paradigma reside na constatação da

insuficiência do crescimento econômico em produzir, mecanicamente, maiores índices de

desenvolvimento social. Tal concepção rompe com um viés tradicionalmente

economicista, ao propor um desenvolvimento das pessoas, pelas pessoas e para as pessoas,

e como componentes o aumento da produtividade, a procura da equidade e o compromisso

com a sustentabilidade. Combinada a essa diretriz, a noção de empowerment, traduzida

como empoderamento, reflete a preocupação com o capital social, enfatizando a

participação ativa das pessoas no próprio desenvolvimento.

Para mensurar os avanços e os desafios dos diversos países quanto à consecução dos

objetivos do desenvolvimento humano, o PNUD investiu na construção de índices

referenciais, como o Indice de Desenvolvimento Humano-IDH75, elaborado e divulgado a

partir de 1992 para 175 países, um sistema integrado de “medições sociais” e um

importante instrumento de desenho e orientação de políticas e programas sociais. Os

indicadores utilizados para caracterizar o desenvolvimento humano têm a vantagem de

permitir a comparação entre países, mas essa vantagem é também a causa principal de sua

insuficiência, pois a necessidade de dados comparáveis faz com que se adote indicadores

muito básicos e incapazes de refletir adequadamente o conceito de capacidades proposto

por Sen. O conceito de desenvolvimento humano, bastante ambicioso, sofre uma notável

redução na sua operacionalização, sendo mensurado a partir dos anos de vida, níveis de

escolaridade e do nível de renda76.

75 O IDH compreende, basicamente, três componentes: longevidade, conhecimento e padrão de vida. Todas as pessoas devem poder desfrutar uma vida longa e saudável, adquirir conhecimento e ter acesso aos recursos necessários a um padrão de vida decente. Como indicador de longevidade, utiliza-se a esperança de vida ao nascer. Como indicadores de nível educacional, a taxa de alfabetização de adultos combinada com taxa de matrícula nos ensinos fundamental, médio e superior e como indicador de acesso a recursos, a renda per capita (Fonte: Relatório do Desenvolvimento Humano/ PNUD, 2004) 76 Essa limitação da medida do IDH é reconhecida por Sen: “Devo reconhecer que não via no início muito mérito no IDH em si, embora tivesse tido o privilégio de ajudar a idealizá-lo. A princípio, demonstrei bastante ceticismo ao criador do Relatório de Desenvolvimento Humano, Mahbub ul Haq, sobre a tentativa de focalizar, em um índice bruto deste tipo - apenas um número -, a realidade complexa do desenvolvimento e da privação humanos” (Relatório de Desenvolvimento Humano, 1996). Outros índices têm sido criados, na tentativa de lançar luz sobre aspectos específicos das condições de vida em países diversos. O Indice de Pobreza Humana, o IPH, é introduzido no relatório do Desenvolvimento Humano de 1997, e leva em consideração “se as pessoas do mundo em desenvolvimento dispõem das escolhas e oportunidades básicas que lhes permitam ter uma vida longa e saudável e gozar de um padrão de vida aceitável” (PNUD, 1997). Desenvolvido para 78 países, o IPH pondera três variáveis: curta duração de vida (percentual da população cuja expectativa de vida não atinge os 40 anos), falta de educação elementar (percentual da população que é analfabeta), falta de acesso aos recursos públicos e privados (porcentagem das pessoas com falta de acesso aos serviços básicos de saúde, água potável e nutrição razoável). Existem dois índices de pobreza humana:

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No que tange à mensuração, tanto os estudos mais restritos sobre pobreza, que se limitam

ao uso de indicadores como baixa renda, até estudos que ampliam esse conceito, adotando

um enfoque mais abrangente, não conseguem de fato apreender outros aspectos da pobreza

que não os aspectos mais tangíveis. O enfoque das capacidades, embora centrado nas

condições materiais, tem abertura para incorporar dimensões da política e da cultura,

condição impensável para o enfoque monetário, preso a uma dimensão única do fenômeno

da pobreza.

2.4 Enfoque participativo: a subjetividade em cena77

Os três enfoques – monetário, das necessidades básicas e das capacidades – fornecem

parâmetros objetivos e externos aos indivíduos para caracterizar situações de privação. A

noção de externo é definida a partir do uso de padrões adotados pelos pesquisadores para

avaliar a pobreza, externos aos indivíduos analisados. Outro enfoque sobre pobreza

(participatory poverty assessments) vem ganhando evidência crescente e utiliza métodos

qualitativos e centrados nas falas e interpretações dos pobres sobre sua condição de vida,

fazendo emergir a partir daí outra compreensão de fatores, dimensões e processos que

criam e reproduzem a pobreza em condições, lugares e tempos específicos. Nesse caso a

mensuração é feita a partir das definições dos próprios atores imersos nas condições de

pobreza.

A abordagem enfatiza o uso de métodos e técnicas qualitativas para apreender a visão dos

pobres sobre suas condições e sobre o que é necessário fazer para solucionar ou minimizar

a situação de privação. Essa abordagem não configura, propriamente, um enfoque teórico,

tendo sido forjada por pesquisadores do Banco Mundial78 para complementar a análise

monetária da pobreza. Inicialmente restrito a projetos em pequena escala, em sua maioria

rurais, tal enfoque vem ganhando proeminência no interior de agências internacionais

como uma perspectiva complementar e necessária para analisar a pobreza. No relatório de

desenvolvimento mundial de 2000/2001, o Banco Mundial publicou uma pesquisa extensa

um relativo aos países em desenvolvimento (IPH 1) e outro (IPH 2) para países desenvolvidos, sendo que varia, basicamente, os parâmetros das variáveis. 77 Esse enfoque participativo não foi trabalhado no capítulo anterior pelo fato de não se constituir, a nosso ver, em uma concepção sobre pobreza, sobre o que a define, o que a produz, o que a faz permanecer. O enfoque participativo não tem, digamos assim, conteúdo substantivo, configurando-se mais como ferramenta metodológica, como uma perspectiva para a mensuração da pobreza. Dado o tema desse capítulo, justifica-se a sua inserção aqui. 78 Um dos expoentes dessa perspectiva é R. Chambers, que em 1994 inicia essa abordagem (Laderchi, Saith, Stewart, 2003, p.23).

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que envolveu 60 países e cerca de 60 mil homens e mulheres79, denominada Voices of the

Poor. “The poor are the true poverty experts”, é a senha que marca tal enfoque.

Recentemente, políticas e estratégias de redução da pobreza do Banco Mundial e do FMI

consideram o uso de metodologias participativas como condição para empréstimos aos

países pobres (Laderchi, Saith, Stewart, 2003, p.23).

O enfoque da vulnerabilidade e riscos, bem como o enfoque da exclusão, caracterizam-se

pela abertura a dimensões menos tangíveis da pobreza, com o uso intensivo de métodos e

indicadores que buscam captar aspectos de natureza subjetiva, coletados através de

técnicas participativas. Configurando formas alternativas de mensuração da pobreza, tais

métodos são fortemente contextuais, e adotam o pressuposto de que as pessoas pobres

sabem, mais do que ninguém, analisar a própria realidade. Essa perspectiva, embora tenha

seus méritos, padece de uma certa ingenuidade ou, no mínimo, de uma recusa da

capacidade analítica dos pesquisadores, que abdicam de sua perspectiva para assumir como

verdade a perspectiva do que o outro diz sobre sua própria situação. Críticas mais

contundentes a esse enfoque salientam a dificuldade de escolher as vozes a serem ouvidas

em comunidades heterogêneas ou com divisões e conflitos internos, sendo que o uso de

tais métodos acabam por fortalecer vozes dominantes, ou favorecer relações sociais

existentes (Laderchi, Saith, Stewart, 2003, p.25). As críticas são também de outra natureza

e referem-se ao uso de técnicas subjetivas e ao uso de amostras pouco representativas da

população. Fica difícil, dessa forma, chegar a medidas estatísticas significativas ou

conseguir comparar realidades. Além disso, aceitar a visão do pobre sobre sua condição

como base para análise não pode significar passar por cima das condições objetivas da

pobreza.

Talvez seja preciso incorporar, nos métodos “objetivos”, a interpretação dos pobres sobre

sua condição, o que não significa adotar a definição deles do que seja pobreza. O uso de

enfoques participativos, contudo, poderia contribuir para resolver alguns problemas

encontrados nos outros métodos, uma vez que poderia permitir ajudar a validar o que pode

ser considerado mínimo para o consumo alimentar, qual seria o conjunto das necessidades

básicas ou os elementos que contam para identificar os excluídos sociais.

79 A pesquisa gerou três séries distintas de documentos: O primeiro - Can anyone hear us- ouviu 40 mil homens e mulheres em 50 países. O segundo – Crying out for change – envolveu um outro trabalho de campo em 23 países e o terceiro – From many lands – é o produto de um estudo de caso realizado em 14 países. Trata-se de um esforço considerável do Banco Mundial em inserir uma perspectiva qualitativa na mensuração da pobreza.

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2.5 Exclusão social: complexidade da mensuração

Para além de suas virtudes, a abordagem multidimensional da pobreza encontra

dificuldades de ser operacionalizada, tanto no enfoque das necessidades básicas quanto no

das capacidades ou no da exclusão. Uma pessoa pode ser pobre em apenas uma das

dimensões ou em relação a um número crítico de dimensões. Estudos sobre pobreza,

principalmente os que se utilizam de enfoques multidimensionais, têm mostrado que os

grupos de pobres e não pobres não configuram realidades estáticas ou bem delineadas,

sendo denominados como fuzzy sets (como afirmado por Chiappero Martinetti, apud

Barrientos e Sheperd, 2003, p. 14). Como estabelecer o corte? No campo conceitual,

embora muito se produza tendo como inspiração a concepção de exclusão, esta ainda não

encontrou um razoável consenso na literatura de maneira a subsidiar processos de

mensuração e distinção entre excluídos e não excluídos.

Alguns estudos de natureza empírica concentram-se na análise de situações concretas de

exclusão, sem se deter no emaranhado conceitual de questões de definição ou na busca de

uma concepção geral de exclusão social80. Tais estudos, a partir da definição da exclusão

como ausência de participação em aspectos chave da sociedade, se dedicam, na esteira dos

estudos de mensuração da pobreza e privação, a verificar empiricamente tais questões,

definindo indicadores e índices variados para medir a exclusão social. Tal perspectiva não

altera, de forma radical, as dimensões consideradas em enfoques anteriores, no registro dos

estudos de pobreza. A novidade talvez esteja, como visto, na ampliação do arco de

indicadores utilizados (Burchard, Le Grande e Piachaud, 2002, pp. 4, 5). De acordo com os

críticos do enfoque da exclusão, essa concepção, embora agregando um número maior de

indicadores para mensuração, estaria localizada na esteira dos estudos de mensuração da

pobreza e da privação, sem apresentar uma real novidade, pelo menos quanto à

mensuração da exclusão. Tal perspectiva insere, contudo, uma visão mais ampla da

pobreza, rompendo com a unidimensionalidade e abarcando outras dimensões e aspectos

das desvantagens ou destituições sociais; priorizando análises dinâmicas e não estáticas do

80 Estudos bastante instigantes têm sido realizados por diversas agências internacionais e centros acadêmicos em todo o mundo sobre o tema da exclusão e diversas formas de expressão de situações de vulnerabilidade e risco. Um exemplo é o Centro de Análise da Exclusão Social (Center of Analysys on Social Exclusion-CASE) da London School of Economics, que apresenta um conjunto expressivo de publicações e pesquisas em curso sobre o tema, com uso intensivo de dados longitudinais (Atkinson, Hills etc), dados urbanos espaciais, métodos qualitativos e quantitativos de mensuração da exclusão social. Um dos focos dos estudos consiste no exame da exclusão em áreas e espaços urbanos, o que configura um importante aporte para a análise das situações de pobreza urbana.

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fenômeno e alterando o foco do indivíduo para o nível da comunidade (Room, citado por

Burchard, Le Grande e Piachaud, 2002, p. 5). Amplia a compreensão do fenômeno, ao

articular dimensões objetivas e subjetivas, aspectos mais e menos tangíveis, expandindo o

arco de dimensões consideradas como relevantes na caracterização e explicação da

pobreza. Nenhuma dessas questões é tratada com centralidade nas concepções mais

tradicionais sobre pobreza. Isso em si, não é pouco.

A mensuração da exclusão avança em relação aos enfoques anteriores. Embora o foco na

ausência de recursos materiais permaneça central, têm-se outros fatores de exclusão -

discriminação, doenças crônicas, localização geográfica, identificações culturais,

fragilização ou ruptura de laços sociais – que precisam ser considerados na mensuração. O

uso da noção de exclusão social contribui para uma compreensão mais aprofundada da

privação, embora do ponto de vista da mensuração não exista de fato muita novidade em

relação ao que vem sendo feito há dezenas de anos com o uso de indicadores múltiplos de

privações, em estudos orientados para verificar correlações entre eles.

Entretanto, ao considerar a dimensão relacional, contextual e relativa à ordem social da

concepção de exclusão, um desafio nada trivial consiste em definir os limites pelos quais

se demarcam os excluídos em sociedades particulares, especialmente em países em

desenvolvimento ou em sociedades tradicionais, nas quais as desigualdades e os sistemas

de castas naturalizam a exclusão. Definir os marcos da normalidade para então se demarcar

as fronteiras da exclusão pode ser uma tarefa impossível e vários estudos empíricos em

países em desenvolvimento têm adotado uma variedade de enfoques, sem uma devida

problematização ou justificativa da escolha particular, ou mesmo sem ter como referência

o que é considerado “normal” nas diferentes sociedades (Laderchi, Saith, Stewart, 2003, p.

22).

Examinando estudos empíricos sobre a mensuração da exclusão em países em

desenvolvimento, Saith reconhece uma grande diversidade de abordagens e de usos de

indicadores diversos. Nos estudos sobre a Índia, por exemplo, onde 83% da força de

trabalho está na economia informal e apenas 14% tem salário regular e estabilidade de

benefícios, outros critérios e variáveis têm sido utilizados (Appasamy et al; Nayak, apud

Saith, 2001) e enfatizam a exclusão em termos de direitos de bem estar básicos (saúde,

educação, moradia, acesso a água potável, serviços sanitários e seguridade social,

desagregados por gênero, idade, nível de renda, religião e casta). Outra pesquisa enfatiza a

exclusão de bens básicos devido à baixa renda, a exclusão do emprego e a exclusão de

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direitos, focalizando situações de trabalho infantil e exclusão via castas (Nayak, apud

Saith, 2001). No estudo sobre a exclusão social no Peru (citado por Saith), considerou-se

três dimensões, econômica, política e cultural, agregando indicadores diversos: acesso ao

mercado de trabalho, a crédito e seguros, direitos de propriedade e direitos de proteção

social e acesso a serviços públicos básicos (saúde, educação e justiça) e exclusão cultural

(participação em redes sociais). Em um outro conjunto de estudos da Organização

Internacional do Trabalho (ILO), os grupos em risco de exclusão são definidos a priori, e

incluem uma diversidade de coletivos possíveis81.

Saith destaca, ao identificar a variedade de estudos de mensuração da exclusão em países

em desenvolvimento, que não há uma convergência clara entre as dimensões consideradas

e o que deve ser considerado em cada uma delas. As realidades são distintas e, dada a

multiplicidade de carências e a baixa capacidade de discriminação da dimensão do trabalho

para caracterizar a exclusão em países em desenvolvimento (dada pelo contingente

expressivo de desempregados e pela estrutura do mercado de trabalho), a mensuração da

exclusão nesses países é muito parecida com os estudos orientados por uma concepção

multidimensional de pobreza (Saith, 2001, p.9).

O cerne da crítica de Saith quanto ao conceito de exclusão – entendido da forma utilizada

nos países da Europa, com referência às dimensões do trabalho e do estado de bem estar

social – reside na tentativa de adaptá-lo ao cenário dos países em desenvolvimento. Nesses

contextos, a mensuração da pobreza não pode se ampliar para além de formas mais

consolidadas de medir a pobreza e nesses casos são utilizados, de forma predominante,

enfoques das necessidades básicas insatisfeitas, das capacidades, do desenvolvimento

humano, vulnerabilidade e risco social.

Vale salientar, concordando com Saith, que o enfoque das capacidades tem uma ampla

aplicação em países desenvolvidos e em desenvolvimento, e sua operacionalização vai

além das necessidades básicas, podendo capturar aspectos de auto-estima, identidade,

dignidade, liberdade e auto-respeito, categorias centrais na perspectiva de Sen. Mas nos

casos dos países em desenvolvimento, com tantas privações básicas, a mensuração tem se

81 Como na Tanzânia urbana, mendigos, cortadores de pedras, traficantes, comerciantes de rua, vendedores de alimentos nas ruas, cortadores de peixe, trabalhadores casuais. Nos grupos rurais da Tanzânia, os excluídos referem-se aos sem terra ou com acesso precário a ela e o não acesso a fertilizantes. Na Rússia, a exclusão é mensurada a partir do desemprego a longo prazo, salário do estrato social médio, e proporção de moradores em zonas rurais. Na Tailândia, os grupos excluídos são formados por minorias étnicas, mulheres, doentes, camponeses com pouca educação, trabalhadores do setor informal e pessoas sem casa, vivendo debaixo das pontes (Saith, 2001).

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restringido às capacidades mais básicas (Saith, 2001, p.12). A adoção de parâmetros de

mensuração relativos é pertinente em países desenvolvidos, mas no caso dos países em

desenvolvimento, ainda tem sentido adotar padrões absolutos para medir privações, tais

como os enfoques das necessidades básicas e, de certa forma, o enfoque das capacidades.

Isso quer dizer que adotar a característica de relatividade do conceito de exclusão para

pensar realidades tais como a brasileira, com altos e múltiplos níveis de privações, pode ser

dispensável. Entretanto, não estamos no Brasil na mesma situação de diversos países da

África, por exemplo, que se encontram, de forma mais homogênea, no nível de ampla

insatisfação de necessidades básicas. No caso do Brasil, as grandes diferenças regionais e

intra-regionais demandam e justificam o uso de critérios relativos de mensuração, capazes

de capturar, de forma mais clara, as dimensões da desigualdade.

2.6 Vulnerabilidade e riscos: a matriz de riscos e a mensuração do empoderamento

A abordagem da vulnerabilidade e riscos aumenta a complexidade da mensuração da

pobreza, ao agregar, além das dimensões objetivas de privações, aspectos de resiliência e

sensitividade. Por outro lado, esse enfoque permite ultrapassar as dificuldades decorrentes

de uma concepção multidimensional da pobreza, ao focar os ativos, que permitem um

ponto estável para construção de parâmetros para mensuração. A abertura para estratégias

mais qualitativas possibilitaria capturar a visão dos pobres sobre suas necessidades e

potencialidades, e dar voz às suas reivindicações.

Um viés importante da abordagem de livelihood é que, ao reconhecer a diversidade de

ativos os quais as pessoas lançam mão para fazer frente aos riscos, dificulta dizer de

antemão que ativos seriam mais centrais. As matrizes de risco consolidam a leitura dos

riscos, sendo organizadas segundo lógicas distintas em diferentes lugares82. Considera-se

que os riscos estão associados a condições próprias do ciclo de vida e a condições do meio

familiar, comunitário, social e econômico, configurando matrizes de vulnerabilidades que

mapeiam, por um lado, fatores individuais e, por outro, dimensões mais coletivas, como

famílias e comunidades.

82 A matriz elaborada pelo FOSIS (Fondo de Solidaridad e Inversion Social), por exemplo, situa necessidades e riscos a partir de faixa etária ou ciclos de vida e contempla a identificação dos principais riscos em cada faixa e de suas formas de expressão; as condições para reduzir a exposição aos riscos e a presença de fatores protetores que incidem sobre o nível de vulnerabilidade; os indicadores de proteção; o mapa das oportunidades (ações, programas e projetos que atuam na prevenção, mitigação ou superação) (Carneiro e Veiga, 2004, pp. 10-12).

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Vulnerabilidade situa-se, como vimos, a partir da dimensão de exposição ao risco e da

capacidade de resposta, material e simbólica, que indivíduos, famílias e comunidades

conseguem fornecer para fazer frente ao risco ou ao choque (que significa a materialização

do risco). São múltiplos os fatores de riscos, que atuam de forma interdependente e em

interação complexa. Tem-se, como básico, que a vulnerabilidade consiste em uma soma de

vulnerabilidades diversas. A baixa renda, a ausência ou precariedade de trabalho, acesso

precário a serviços básicos e a condições básicas de vida constituem elementos produtores

de vulnerabilidade. As relações sociais, que envolvem as relações com os agentes públicos,

meio comunitário e familiar, conformam outro importante ativo, nos termos de Moser. A

partir dessa perspectiva entende-se que “incluir” significa melhorar as condições materiais

das pessoas, famílias e comunidades; melhorar o acesso a serviços públicos básicos;

viabilizar a melhoria da infra-estrutura do território; promover alteração nas dimensões

psico-sociais; ampliar as capacidades, entendidas aqui sob a perspectiva do capital

humano e capital social.

Ao considerar a perspectiva da vulnerabilidade e, principalmente, do portfólio de ativos e

dos modos de vida, tem-se uma conexão com a questão do empoderamento, entendido

tanto como o processo quanto o resultado do fortalecimento da capacidade de resposta dos

indivíduos e grupos, e da ampliação da capacidade destes fazerem escolhas efetivas e de

transformarem escolhas em atos e resultados (Alsop, 2005). Considerar essa perspectiva

implica mensurar tanto a dimensão dos ativos (nível dos indivíduos, domicílios e

comunidades) quanto as estruturas de oportunidades que permitem transformar a escolha

em ações efetivas83.

O ponto é que a adoção de formas de mensuração capazes de mensurar processos

complexos como os processos de empoderamento não é algo simples, mas também não

representa uma impossibilidade, além de ser necessário para intervenções com metas e

objetivos mais claros. Indicadores objetivos de empoderamento podem ser elencados, tais

como aumento da escolarização, acesso a crédito, poupança, aumento de renda e melhoria

das condições de saúde etc. Indicadores que buscam capturar outro nível de mudanças,

mais qualitativas em sua natureza, requerem medidas indiretas que permitam verificar

alterações no âmbito subjetivo e relacional, de natureza mais intangível, mas possível de

ser considerado na mensuração. Para delimitar um modelo de análise e de mensuração 83 Por exemplo, não adianta muito ampliar a capacidade das pessoas fazerem escolhas se não existem estruturas de oportunidades (entendidas como regras e instituições formais e informais) que tornem possível efetivar as escolhas, transformar agência (como capacidade de agir) em ação efetiva (resultados).

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pertinente para o tema do empoderamento, Ruth Alsop (2005) reconhece distintos graus de

empowerment que se manifestam em diferentes domínios - do Estado, mercado e

sociedade -, em vários subdomínios: justiça, política e entrega de serviços (no caso do

domínio do Estado); quanto ao crédito, trabalho e bens (no caso do domínio do mercado) e

no âmbito da família e da comunidade (no caso do domínio da sociedade). Além dos

diferentes domínios e subdomínios, a autora reconhece diferentes níveis nos quais as

pessoas experimentam empoderamento: local, intermediário e nível macro. Esse arcabouço

permite analisar processos e resultados quanto ao aumento da capacidade de escolha das

pessoas e as estruturas de oportunidades, entendidas como características do contexto, que

permitem efetivá-las e produzir resultados. O que fica evidente, nessa perspectiva, é a

dificuldade de se encontrar medidas universais de empoderamento, uma vez que estas são

relativas aos contextos e por eles determinadas.

O tema da mensuração encontra seu sentido maior quando se relaciona com a questão da

focalização, estando assim situado no plano mais específico das estratégias e ferramentas

de intervenção no campo de formulação e avaliação de políticas públicas, identificando os

usuários das políticas de proteção social, os sujeitos e objetos das políticas de inclusão

social. Nesse ponto tem-se que, para cada visão da pobreza, identifica-se um conjunto de

pessoas, grupos ou regiões, conforme o modelo e o arcabouço de mensuração, e que esses

conjuntos não são os mesmos.

O sentido maior do esforço até aqui desenvolvido consiste em situar, a partir da análise da

literatura, o conjunto de dimensões e processos que configuram o arcabouço conceitual à

partir do qual possa-se definir que alternativas e desenhos são mais adequados, pertinentes

e eficazes. O que cada abordagem aporta para estruturar um modelo, ou melhor, uma

hipótese de trabalho, sobre os elementos constitutivos básicos de uma política de inclusão

social adequada aos problemas da população urbana de grandes metrópoles, em países com

grande incidência de pobreza e indigência, notável e estável desigualdade, com uma

posição não central nos processos de globalização?

O que se quer enfatizar aqui é que existem tantas formas e resultados da mensuração

quanto são as concepções sobre o que é a pobreza. Diferentes enfoques identificam

dimensões distintas, salientam aspectos da realidade como mais legítimos e adequados de

serem considerados na mensuração do fenômeno, enquadrando as diversas situações de

privações sob certas matrizes cognitivas e também valorativas e assim delimitam a

realidade, construindo-a como objeto de análise e de intervenção social.

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Não se trata, contudo, somente de uma disputa teórica ou metodológica, uma vez que

diferentes enfoques e formas de mensuração que lhes são correspondentes conduzem à

seleção de grupos distintos de beneficiários, o que impacta fortemente não apenas o

processo de focalização mas também a proposição de alternativas de solução. Que

implicações ocorrem no campo das políticas sociais quando se considera a

multidimensionalidade da pobreza, quando se afirma sua heterogeneidade e a presença de

elementos de natureza mais propriamente sociológica em sua produção e reprodução? Esse

ponto será retomado adiante, no capítulo 5. Por agora importa reter que a questão da

mensuração extrapola o âmbito de interesse especificamente metodológico e remete ao

tema das políticas públicas pela via da focalização, da identificação de quem são os pobres

e de como deve ser feita a distinção entre pobres e os não pobres de forma a identificar o

público alvo das políticas de proteção voltadas para pobreza crônica. A parte seguinte do

trabalho é orientada para o exame da pobreza como problema para a ação, para as políticas

públicas.

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PARTE II – A POBREZA COMO DESAFIO PARA AS POLITICAS PÚBLICAS

Na primeira parte, a pobreza foi focalizada do ponto de vista conceitual, como um objeto

que ainda desafia o conhecimento nas ciências sociais. A segunda parte concentra-se no

exame da pobreza do ponto de vista das políticas públicas, a partir de uma discussão, sem

dúvida não exaustiva, das políticas de proteção social e, principalmente, de enfrentamento

da pobreza.

No primeiro capítulo partiu-se do exame de distintas concepções sobre pobreza,

identificando as categorias relevantes em cada enfoque ou abordagem. Cada concepção

constrói (no sentido metodológico de construção do problema do conhecimento) a pobreza

sob uma perspectiva, colocando luz em determinados aspectos e deixando outros

elementos ocultos, não problematizados. A cada enfoque corresponde uma forma de

operacionalização, uma certa compreensão de como a pobreza pode ser mensurada, objeto

do segundo capítulo. Uma vez identificado o “mal”, tem-se que ter o remédio adequado

para seu enfrentamento, nas palavras de Fanfani, o que remete à segunda parte do trabalho:

toda estratégia de intervenção tem implícita ou explícita uma “teoria” ou uma visão

construída sobre o problema, que fornece o arcabouço para a ação.

Na segunda parte do trabalho o eixo reside no exame das políticas de enfrentamento da

pobreza, identificando elementos que inspiram as diferentes alternativas e modelos de

proteção social (capítulo 3) e elencando aspectos do processo de produção de políticas de

proteção social que têm impactos no desenho de estratégias para o enfrentamento da

pobreza e da exclusão. Destaca-se aí a centralidade do nível local de gestão (capítulo 4).

É a partir do mapa construído a partir dos dois percursos, realizados na primeira e segunda

parte do trabalho, que se pode identificar elementos e categorias analíticas que decorrem,

por um lado, do uso de concepções mais amplas sobre pobreza e, por outro, das

considerações sobre a produção de políticas no cenário contemporâneo. A perspectiva da

intersetorialidade, a ênfase no empoderamento e na autonomia e a temática do

território são elementos que se combinam a considerações de natureza política e

institucional e que conformam o arcabouço analítico sugerido para o exame de

experiências empíricas de estratégias locais de enfrentamento da pobreza. O capítulo 5

apresenta uma síntese das categorias identificadas previamente e o capítulo 6 constitui

uma ilustração empírica das discussões anteriores, desenvolvidas na primeira e segunda

parte do trabalho.

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CAPITULO 3: POLÍTICAS DE PROTEÇÃO SOCIAL E COMBATE À POBREZA: DISTINTAS CONCEPÇÕES E MODELOS DE INTERVENÇÃO

O objetivo desse capítulo é situar o debate sobre as alternativas de políticas e estratégias de

proteção social84 e de combate à pobreza que estão sendo delineadas e efetivamente

implementadas, como um primeiro passo para problematizar a questão da pobreza

enquanto objeto das políticas públicas.

Procura-se aqui identificar os elementos que compõem a proteção social no âmbito

europeu85 e latino-americano, no sentido de ampliar o conhecimento sobre o que existe,

em termos de componentes das políticas, sob essa denominação de proteção social,

identificando as ações voltadas para os públicos mais vulneráveis, ou para a pobreza

crônica, que estão designadas, geralmente, como do âmbito da assistência social.

3.1 Estados de bem estar: configurações e tendências de distintos modelos de proteção social na Europa e América Latina

A temática dos modelos, sistemas e regimes de bem estar é inevitavelmente importante

para análise das políticas de combate e superação da pobreza, uma vez que as políticas

sociais constituem as respostas desenvolvidas pelo Estado para fazer frente aos problemas

da pobreza, vulnerabilidade e desigualdade social. Nas palavras de F. Filgueira (2005)

“Las políticas sociales pueden ser definidas de múltiples maneras. Aquí siguiendo a Esping Andersen se considera que las mismas son instrumentos y dispositivos de desmercantilización y desfamialirización estructurados en torno a principios de necesidad, estamento o ciudadanía y operativizados en base al esfuerzo social organizado con el estado como el actor privilegiado para dar respuesta a las necesidades sociales de la población. Entre ellas se distinguirán aquí al menos cuatro grandes sectores que tradicionalmente estructuran los esfuerzos nacionales en políticas sociales: educación, salud, pensiones, y asistencia social, las cuales se complementan y pujan entre sí por recursos, y que históricamente no siguen el mismo recorrido ni se mueven en las mismas arenas político institucionales” (F. Filgueira, 2005).

O debate sobre esse tema, contudo, é bastante extenso e complexo para ser reproduzido

aqui em sua amplitude, o que superaria o espaço disponível nesse trabalho.. A perspectiva

que orienta o nosso olhar é mais restrita e não se pretende aqui uma discussão ampla sobre

84 É preciso deixar claro, novamente, que não existem definições consensuais sobre o que está contido no termo proteção social, sendo que esse conceito é permeado por valores, culturas, estruturas políticas e institucionais que afetam o que a proteção social engloba em diferentes contextos. 85 Essa parte tem como base um estudo cross survey sobre as redes de segurança social em nove países europeus (Alemanha, Bélgica, Espanha, França, Holanda, Itália, Portugal, Reino Unido, Suécia), que fornece informações valiosas para entender o estágio atual dos sistemas de proteção social nessa região e os desafios enfrentados (Neubourg, Castonguay e Roelen, 2005). Esse trabalho servirá de base da presente exposição, dada sua abrangência, atualidade, qualidade e pertinência ao tema aqui tratado.

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os modelos e tipologias existentes, histórico e tendências das configurações institucionais

dos modelos de Welfare State, mas salientar apenas alguns pontos que podem ser mais

diretamente relacionados ao eixo principal do trabalho. Uma vez que pretendemos olhar

“mais para dentro” das políticas de proteção social (especificamente políticas de combate à

pobreza), salienta-se na tese mais as dimensões do marco conceitual das estratégias de

intervenção do que seus aspectos históricos, políticos e institucionais, que constituem a

ênfase de grande parte do debate sobre Estados de Bem Estar Social. Entretanto, não é

possível delimitar um campo de análise da pobreza do ponto de vista das políticas públicas

sem identificar os principais elementos do debate sobre modelos, sistemas e regimes de

bem-estar.

3.1.1 Modelos de Bem Estar: tipologia básica

As políticas sociais emergem timidamente nos fins do século XIX e ganham corpo a partir

da segunda metade do século XX, como um conjunto coerente de intervenção do Estado na

garantia de direitos sociais. Esse esforço de organização da ação social do Estado tem

profundas implicações na estrutura e dinâmica social: “A partir de los modelos de

protección y más generalmente de las politicas sociales se está, constantemente,

redisenando la composición de la estructura social en términos de la distribución de poder

y de recursos” (Fleury e Molina, 2000, p. 28). Os diferentes sistemas de bem estar

espelham visões distintas sobre a realidade da pobreza, suas causas e características, sobre

o papel do Estado na produção do bem estar, as relações necessárias e adequadas com o

mercado e com a sociedade civil, uma certa visão de mundo sobre as relações entre

indivíduo e sociedade, uma dada conjugação de forças e grupos de interesses de tipos

diversos, em dinâmicas institucionais complexas e específicas. A tipologia elaborada por

E. Andersen86 (1991) continua válida como referência para a compreensão dos distintos

modelos de Estados de Bem Estar Social que emergiram nesse momento (meados do

século XX) na Europa e Estados Unidos.

O modelo liberal de Welfare State enfatiza uma intervenção seletiva, limitada no tempo,

para aqueles comprovadamente necessitados. Com caráter residual, as políticas vêm ex-

86 Esping-Andersen identifica diferentes regimes de Estados de Bem Estar, a partir dos arranjos diferenciados existentes entre o Estado, mercado e a família. O primeiro tipo, liberal, enfatiza assistência mediante a comprovação da carência, com transferências modestas e também modestos planos de seguros. Outro tipo, de caráter corporativo, se caracteriza pela manutenção de status diferenciado e a vigência de direitos acoplados a diferenciais de classes e status. O terceiro tipo, social democrata, segue os princípios do universalismo e busca a igualdade em padrões altos e não uma igualdade em termos de necessidades mínimas (Esping-Andersen, 1991).

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post, quando os canais “naturais” de satisfação de necessidades mostram-se insuficientes.

As políticas de proteção nessa perspectiva buscam prover o padrão de vida mínimo para

aqueles que não conseguem se inserir no mercado. Nesse regime os benefícios são

focalizados, operando uma distinção entre deserving poor e underserving poor, sendo os

primeiros os inválidos, incapacitados para o trabalho e os últimos considerados como tendo

potencial de inserção no mercado, para quem os benefícios são menores. Nesse modelo

(cujo exemplo típico é os Estados Unidos), geralmente, os benefícios apresentam valores

mais baixos (World Bank, 2003, p. 6).

Uma segunda forma (ou tipo ideal) de Welfare State apresenta caráter corporativo,

meritocrático ou particularista, de cunho conservador, sendo os benefícios aplicados para

categorias selecionadas, principalmente pelo corte ocupacional (caso da França e

Alemanha e marca da “cidadania regulada” vigente no Brasil até fins dos anos oitenta).

O terceiro tipo, predominante nos países de tradição social-democrata, é o sistema de bem

estar universal, previsto para todos, sob a ótica da equidade e solidariedade, sendo a Suécia

a referência desse modelo. Uma concepção universalista de direitos sociais coaduna-se

com a busca de maior igualdade via políticas de Estado, com ênfase nos mecanismos

redistributivos. Sua premissa básica é que o mercado não é capaz de realizar, deixado à sua

própria dinâmica, uma alocação de recursos que elimine a pobreza e a desigualdade. De

forma geral os benefícios são universais e com valores relativamente altos, voltados para

indivíduos mais do que para domicílios. Não se utiliza muito o sistema de verificação de

renda para discriminar receptores de benefícios de seguro e de assistência social87. Em

alguns casos, há uma atuação ativa do Estado voltada para desenvolver programas

relacionados ao mercado de trabalho.

Olhando não apenas do ponto de vista das estruturas do Estado de Bem Estar mas em

termos da composição da proteção social, tem-se, de forma mais abrangente, uma

distinção básica entre benefícios contributivos (aposentadoria, seguro desemprego,

enfermidade funcional, ligados a riscos diretamente relacionados com o mercado de

trabalho) e não contributivos, que cobrem uma gama ampla de ações88. Os benefícios não

contributivos incluem renda mínima, benefícios de moradia, benefícios familiares

(universal ou verificação de carência), benefícios para atenção à criança, benefícios para

87 Embora com o aumento do desemprego essa situação esteja mudando, estando os sistemas se orientando em direção a critérios de verificação de carência (means tested) para concessão dos benefícios, uma vez que benefícios universais têm estado sob pressão (World Bank, 2003, p. 7) . 88 Esses componentes variam de país para país e mesmo de região para região no âmbito da OECD.

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pais solteiros e benefícios condicionais de emprego. A assistência social89 é apenas uma

parte desses conjuntos de benefícios não contributivos:

“A assistência social focalizada com base na renda, na Europa Continental, é o instrumento de proteção social de último recurso. Ela fornece uma rede de segurança para todos aqueles que já caíram pela bem construída rede de provisões de outros tipos de proteção social” (Neubourg, Castonguay e Roelen, 2005, p.37).

De acordo com Neubourg, Castonguay e Roelen, têm-se outras distinções possíveis entre

os componentes dos sistemas de proteção que não reconhecem apenas dois tipos de

benefícios ou componentes - contributivos e não contributivos -, mas três: intervenções

voltadas para o mercado de trabalho90, iniciativas orientadas pela perspectiva do seguro

social, que se refere aos sistemas de benefícios contributivos, e assistência social, também

denominada por social safety nets. A última é definida como o conjunto de benefícios

monetários ou em espécie que são repassados a partir de critérios de elegibilidade pautados

por alguma linha de focalização (World Bank, 2003, p. 3). É problemático considerar a

assistência social sem ter em conta as outras políticas de proteção, constituídas pelos

benefícios contributivos e pelas intervenções no mercado de trabalho. Mas o que

geralmente se faz, tanto no campo do conhecimento quanto no campo da ação, é localizar o

problema da pobreza, principalmente a pobreza crônica, no âmbito da assistência e

focalizar as políticas para superar a pobreza que são aí desenvolvidas.

Os programas de assistência social, nos países de economia avançada, constituem uma

parte, pequena, marginal, de um amplo sistema de proteção, que inclui benefícios

universais e generosos. Esse é um ponto que deve ficar bem marcado quando se pretende

contrapor estratégias de enfrentamento da pobreza crônica (e exclusão) na América Latina

e Europa. No Brasil, a política social de transferência de renda, maior política distributiva

desenvolvida até então, atende a mais de sete milhões de famílias, tendo como base a

verificação de carência e exigências de contrapartidas91.

Para se ter uma visão mais adequada do lugar da assistência social no conjunto da proteção

social no modelo europeu, tem-se que ter claro a magnitude do gasto social nesses países.

89 Programas não contributivos de assistência social de apoio à renda para os pobres é o termo utilizado para identificar as redes de segurança social (social safety nets) (Neubourg, Castonguay e Roelen, 2005) 90 Políticas de criação de empregos, regulamentação, incentivos, informação, formação etc. 91 O Bolsa Família, o mais importante programa de transferência de renda no país, atende 7,3 milhões famílias beneficiárias, com renda per capita de até R$ 100, em 5.542 municípios. O programa beneficia 12,9 milhões de crianças e adolescentes, com idades entre 6 e 15 anos (dados do site do MDS, em 22 de julho de 2005). Verificação de carência refere-se à necessidade comprovação da condição de pobreza como critério de acesso ao benefício e condicionalidade refere-se ao conjunto de exigências que são feitas ao beneficiário em troca do recebimento do benefício (manter filhos na escola, vacinação e cuidados básicos de saúde em dia, manter-se ativo para buscar trabalho etc. ).

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Quando se observa o desempenho da proteção e o volume de gastos, percebe-se de forma

clara a orientação dos sistemas de proteção da Europa Continental92. Esse gasto é superior

a 31% do PIB na Suécia, entre 20 e 30% para os demais países da Europa; já nos Estados

Unidos, o gasto é menor que 15% do PIB.

Cobertura ampla e benefícios altos caracterizam o padrão vigente na Europa Continental

(95% dos benefícios são universais), em comparação com Estados Unidos. A assistência

social não contributiva apresenta uma participação tímida no conjunto dos gastos sociais,

cerca de 1,5% nos países europeus93. Os gastos com benefícios focalizados como

proporção dos gastos sociais totais totalizam 40% nos Estados Unidos, cerca de 32% Reino

Unido e perto de 20% no Canadá. Para outros 10 países da Europa e Japão, os gastos

focalizados não chegam 10% do total de gastos sociais (Neubourg, Castonguay e Roelen,

2005, p.13).

Programas de assistência social com verificação de renda assumem formas diversas em

diferentes países, e diferentes tipologias são construídas no sentido de identificar padrões e

conformações institucionais distintas. Neubourg, Castonguay e Roelen (2005), por

exemplo, distinguem entre procedimentos de apoio, procedimentos seletivos ou

procedimentos inclusivos.

Nos procedimentos de apoio, têm-se benefícios universalmente acessíveis, garantidos

como direitos e em um nível generoso, com ênfase na inserção ou reintegração dos

beneficiários no mundo do trabalho. Os países como Bélgica, França, Alemanha, Holanda

e Suécia pertencem a esse grupo. Nos procedimentos seletivos, existe uma forte pressão

para a vigência de mecanismos de solidariedade dentro e entre as famílias, com alto poder

discricionário do poder local no desenho e implementação do sistema, com o

financiamento sob a responsabilidade dos níveis regionais e locais, com grandes diferenças

entre os países. Itália, Espanha e Portugal pertencem a esse grupo. Nesses países, a

assistência social é menos residual do que na Alemanha e França, e as outras partes dos

sistemas de proteção também são menos amplas quando comparadas com os sistemas

existentes em países como Bélgica, Suécia ou Dinamarca. O procedimento inclusivo, por 92 Não apenas o volume dos gastos varia. As diferenças na ênfase dos benefícios são expressivas. Na Espanha, aparece o alto gasto com benefícios aos desempregados, enquanto que na Itália grande parte do gasto é para idosos e sobreviventes de guerra. Na Suécia, Portugal e Holanda cerca de 12% do gasto é com benefícios pagos aos portadores de necessidades especiais e França, Suécia e Bélgica enfatizam os benefícios pagos a famílias e crianças (Neubourg, Castonguay, Roelen, 2005, p. 3). 93 Não custa enfatizar que a participação pequena e residual dos programas de assistência social nesses paises deve-se, em parte, ao bom funcionamento dos serviços universais de educação e saúde, que atuam como redes de segurança anteriores à entrada da assistência social com verificação de renda.

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sua vez, tem uma grande parte do sistema de proteção voltada para os pobres, com maior

centralidade a verificação de carência, como o que ocorre no Reino Unido (Quadro 6).

Quadro 6 – Tipologia dos sistemas de assistência social focalizada na Europa, segundo Neubourg, Castonguay e Roelen

Tipos de sistemas de assistência social

Princípios e benefícios países

procedimentos de apoio

benefícios universalmente acessíveis, garantidos como direitos a todos os cidadãos e em um nível generoso, com ênfase na inserção ou reintegração dos beneficiários no mundo do trabalho.

Bélgica, França, Alemanha, Holanda e Suécia

procedimentos seletivos

forte pressão para a vigência de mecanismos de solidariedade dentro e entre as famílias. Alto poder discricionário do poder local no desenho e implementação do sistema, com o financiamento sob a responsabilidade dos níveis regionais e locais, com grandes diferenças entre os países.

Itália, Espanha e Portugal

procedimentos inclusivos

grande parte do sistema de proteção voltada para os pobres, tendo centralidade a verificação de carência.

Reino Unido

Elaborado pela autora a partir de Neubourg, Castonguay e Roelen, 2005

Uma outra classificação dos sistemas de proteção é proposta por Fleury e Molina (2000,

pp. 6,7) e estabelece distinções entre modalidades de proteção do tipo assistência social,

seguro social e seguridade social. O primeiro tipo puro assenta-se em uma perspectiva

residual da proteção, sustentada pelo princípio da caridade e pela ideologia liberal. Para

aqueles que “fracassaram”, tem-se um conjunto de ações, freqüentemente fragmentadas e

pontuais, com uma cobertura focalizada, voltada para grupos vulneráveis ou focos de

pobreza. A cidadania invertida se expressa no fato de os indivíduos tornarem-se objeto da

ação pública somente a partir de seu próprio fracasso social (Fleury e Molina, 2000, p. 8).

No modelo de seguro, denominado também meritocrático, tem-se o princípio da

solidariedade94 e a ideologia corporativa, com a cobertura dada pelos critérios

ocupacionais, base da cidadania regulada, estruturada a partir da inserção dos indivíduos

na estrutura produtiva. No tipo de seguridade social, do tipo institucional, tem-se o

princípio da justiça e a ideologia da social democracia, com os benefícios alinhados com a

perspectiva dos direitos - cidadania universal - e não vistos de forma desqualificante

(assistência) ou como privilégios (seguro).

94 Deve-ser ressaltar aqui que esta noção de solidariedade se refere à solidariedade entre uma mesma classe e grupo, mais do que um princípio que tenha como referência a sociedade como um todo e um pacto inter-classes, em uma concepção mais republicana (e durkheimiana) da noção de solidariedade.

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Quadro 7 – Tipologia dos sistemas de proteção segundo Fleury e Molina componente Princípios e tipos Benefícios e cobertura Assistência social

Principio da caridade e pela ideologia liberal. Tipo liberal. Cidadania invertida

Perspectiva residual da proteção

Seguro social Principio da solidariedade e a ideologia corporativa. Tipo meritocrático. Cidadania regulada

Cobertura dada pelos critérios ocupacionais

Seguridade social

Principio da justiça e a ideologia da social democracia. Tipo institucional. Cidadania universal

Benefícios alinhados com a perspectiva dos direitos

Elaborado pela autora a partir de Fleury e Molina, 2000

A tipologia acima apresentada não se distancia das anteriores. Pode-se dizer que existe um

relativo consenso na literatura quanto à utilização de uma tipologia que reconhece três

modelos básicos de proteção social que são suficientes para identificar as experiências de

sistemas de bem estar na Europa: um de matriz universalista, outro residual e um terceiro

de base corporativa ou ocupacional. Na América Latina, a realidade apresenta-se mais

matizada.

3.1.2 O sistema de Bem Estar na América Latina e Brasil

Na América Latina não se pode, a rigor, afirmar a existência de estados de bem estar da

mesma forma que ocorreu nas democracias capitalistas avançadas. Como salienta Bryan

Roberts, na América Latina, mesmo nos países que procuram viabilizar sistemas de

cobertura ampla, os níveis de seguridade social alcançados não são comparáveis nem

mesmo ao existente nos países avançados que adotaram modelos de tipo liberal, no qual o

Estado tem a participação mais reduzida (Roberts, 1997, p. 9).

Na América Latina os modelos de proteção social ganham corpo nas décadas de 40, 50 e

60, a partir do desenvolvimento de políticas setoriais, guiadas pelo governo e planejadas e

executadas de forma centralizada (Raczynski, 1999, pp. 172,173)95. Entre os anos 30 e 40,

a América Latina desenvolveu uma profunda alteração na sua base produtiva e em sua

organização social. Processos de urbanização, industrialização e a fratura de uma ordem

tradicional de base agrária constituem o cenário para a emergência dos sistemas de

políticas sociais, fortemente orientados para o setor urbano e para trabalhadores vinculados

ao mercado formal de trabalho (Raczynski, 1999, p. 174; Filgueira, 1999, p. 80).

95 Fleury e Molina apontam, entretanto, que alguns países da América Latina contavam, já a partir dos anos 20, com “fortes e complexos mecanismos de engenharia política e institucional no campo do seguro ou da seguridade social, antecedendo os Estados Unidos e países nórdicos”.Os autores citam, reproduzindo Mesa-Lago, países como Uruguai, Argentina, Brasil, Chile e Cuba, que desde os anos 20 começaram a estruturar medidas de proteção social (Fleury e Molina, 2000, p. 11)

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Altamente permeável a segmentos organizados da sociedade (como classe média,

funcionários públicos, trabalhadores urbanos, burguesia industrial etc), que pressionavam

para o acesso diferenciado aos benefícios disponíveis, esse modelo gerou um esquema

segmentado, fragmentado e com benefícios muito diferenciados, destinados a grupos

específicos (Raczynski, 1999, pp. 173,174; Roberts, 1997, p. 10). A estratificação é a

marca do sistema na maioria dos países latino americanos, sendo que grande parte da

população se encontra excluída dos benefícios da seguridade social, por não estar

vinculada ao mercado formal de trabalho. Nos sistemas de base contributiva, os benefícios

são fortemente determinados pela atuação de grupos de pressão e elites burocráticas

(Fleury e Molina, 2000, p. 15). A expansão do sistema também foi marcada pela

segmentação, privilegiando grupos com organizações mais fortes, que obtiveram mais e

contribuíram menos com o financiamento do sistema (Raczynski, 1999, p. 175).

No plano institucional, a prestação de serviços sociais se estabeleceu a partir de

burocracias grandes e centralizadas, geridas diretamente pelo Estado. Homogeneidade e

padronização dos serviços e a escassa possibilidade de adaptação aos contextos e

condições específicas de cada lugar constituem características centrais do modelo adotado

com mais vigor na década de 60. A homogeneidade e a uniformidade dos programas e

procedimentos, bem como a participação social inexistente,96 eram marcas do modelo

vigente na América Latina, na maioria dos países (Raczynski, 1999, p. 177).

Em relação ao financiamento e distribuição dos benefícios, tem-se na América Latina um

progressivo aumento da responsabilidade do Estado pelo financiamento do sistema e um

caráter altamente regressivo do gasto social. O modelo enfatizava o financiamento de

serviços de maior complexidade, tais como atenção curativa na saúde (e não prevenção e

serviços primários). Além disso, se beneficiam do sistema os que menos precisam, sendo

isso especialmente verdadeiro para os gastos em seguridade social, educação secundária e

superior e habitação, embora na maioria dos países a educação básica e saúde materno-

infantil apresentem um caráter progressivo (Raczynski, 1999, p. 177).

Grande parte dos sistemas de seguridade social na região é financiada por contribuições de

empregados e empregadores, o que torna essa base instável. As alterações e crises no

mercado de trabalho formal e na massa salarial disponível dificultam a estabilidade de

96 Quanto ao lugar da participação e envolvimento da sociedade civil, a leitura de Raczynski é que a presença dominante do Estado minou ou enfraqueceu as iniciativas comunitárias, e mesmo nos países onde existiram nesse período experiências de promoção social, estas eram “de cima para baixo”, e dificilmente moldadas às realidades locais (Raczynski, 1999, p. 176).

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financiamento do sistema (Fleury e Molina, 2000, p. 16). O volume do gasto não é

desprezível. Embora essa questão seja suficientemente complexa para exigir um estudo a

parte, vale ressaltar que algumas análises do comportamento do gasto social97 na América

Latina mostram que para grande parte dos países, o gasto público social per capita é bem

maior do que 400 dólares, média para a região em fins dos 90, valor não desprezível no

contexto internacional. Os países com maior gasto per capita também apresentam maior

participação do gasto social em relação ao PIB, com valores que chegam a quase 20% para

o Brasil e a mais de 22% no Uruguai, entre 1996 e 1997, segundo Fleury e Molina (2000,

p. 18)98.

Embora o ritmo de crescimento econômico tenha modificado as condições de vida da

população na América Latina entre os anos 50 e 7099 (aumento da taxa alfabetização,

queda da mortalidade infantil, aumento da esperança média de vida, melhora nos

indicadores de saúde e nutrição), ele foi insuficiente para dar conta da excessiva demanda e

extrema desigualdade entre os distintos países e entre diversos grupos sociais e regionais

internos.

O Brasil acompanha a tendência da América Latina. Tomando como marca os anos 30, em

50 anos o Brasil teve sua produção nacional multiplicada por 18,2 vezes, a uma taxa de 6%

ao ano, estabelecendo uma nova base da estrutura produtiva no país, centrada na produção

urbano industrial (Pochmann, 2004 b, p. 9). Entretanto, apesar da expansão das políticas

públicas de educação, saúde, previdência e assistência, não se constituiu, no país, um

esquema de proteção social de base universalista. O modelo adotado no Brasil, consolidado

entre os anos 30 e 70, de caráter meritocrático e de forma autoritária e tecnocrática, tinha

como base a posição ocupacional e de renda adquirida na estrutura produtiva, a

universalização ficando restrita a educação básica e saúde para atendimento de urgência.

A posição ocupada pelos indivíduos na estrutura ocupacional é que definia a incorporação

no sistema de proteção brasileiro, em uma perspectiva particularista, configurando um 97 Estão contemplados nessa referência de gasto social os gastos com seguridade social, educação, saúde e habitação (Fleury e Molina, 2000, p. 20) 98 Na análise da estrutura do gasto social na década de 80, Draibe contraria, de certa forma, a perspectiva de Fleury e Molina, quando afirmam que 400 dólares per capita não seria algo desprezível no contexto internacional. Draibe aponta o baixo volume do dispêndio público social no Brasil. Dado o volume do PIB brasileiro em 1986, 18,3% do gasto significa um gasto de aproximadamente 400 dólares per capita, enquanto que nos Estados Unidos e nos países da OCDE o montante per capita era superior a 2.000 dólares (Draibe, 1990, p. 24). 99 De acordo com Iglésias (1992, pp. 74,75) , entre 1950 e 1980 o produto interno bruto da América Latina cresceu a uma taxa de 5,5% ao ano, ligeiramente maior do que a taxa de desenvolvimento dos países industrializados; crescimento acompanhado por intenso processo de inversão e transformação produtiva e tecnológica.

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modelo de cidadania regulada, na denominação de Wanderley Guilherme dos Santos

(1979).

Aberto a interesses corporativos e fisiológicos, as políticas não geraram um sistema de

proteção social e de garantia de mínimos sociais de caráter mais universalista, mas sim um

esquema assistencial denso e expressivo em termos de recursos, mas ineficiente e ineficaz

(Draibe, 1990, pp. 10,11; Draibe, 1997, p. 216). Na área da assistência, principalmente, a

conformação da política caracterizou-se pelo caráter precário, fragmentado e insuficiente

dos programas, o que não permitiu a estruturação de um sistema abrangente e consistente

de garantia de cidadania social. De nenhuma forma, nem com a expansão do sistema, este

foi capaz de reverter a situação dos bolsões de pobreza ou a desigualdade no país (Draibe,

1993, p. 202). Para grupos específicos, formou-se um denso esquema de base não

contributiva, com uma profusão de programas pulverizados, sobrepostos, fragmentados,

focalizados, sustentados pelo clientelismo, assistencialismo e pela ótica da caridade e da

filantropia.

De acordo com a caracterização do modelo brasileiro de proteção social, até meados da

década de 80, a estrutura burocrática era caracterizada pela centralização de recursos e

serviços na esfera federal; pela opacidade nas transferências, corrupção, ineficiência,

desperdício e pulverização dos recursos, excessiva superposição e fragmentação de

programas, clientelas e instituições. A demora na alocação dos recursos e seu desvio em

relação aos objetivos e público alvo, o caráter regressivo do gasto social100, a excessiva

permeabilidade da máquina social aos interesses corporativos, privados e burocráticos,

somados à ausência de mecanismos de avaliação e controle, e a uma distância total entre os

formuladores e beneficiários dos programas, estão entre as características fundamentais do

sistema de proteção social no Brasil (Draibe, 1990, pp. 15,16).

O sistema de proteção no Brasil combina elementos dos três modelos: caracterizado como

meritocrático-particularista (Draibe, 1993b), articula-se com um esquema assistencial

denso, com um amplo conjunto de ações focalizadas e pulverizadas de combate à pobreza,

por um lado, e com elementos de um modelo de base universalista, por outro (no que se

refere à educação básica, saúde e benefícios da Lei Orgânica de Assistência Social/LOAS).

Os processos de mudança nos sistemas de proteção tornam incerta a configuração futura

100 Quanto a esse ponto, os dados para 1986 mostram que famílias que recebiam de 1 a 2 salários mínimos per capita beneficiavam-se de 56% do gasto social, enquanto que as famílias de até um quarto do salário mínimo recebiam 6% dos benefícios sociais (Draibe, 1990, p. 23).

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das políticas de proteção social no Brasil. Os sistemas de proteção social, tanto na Europa

quanto na América Latina, têm sofrido pressões para produzir alterações em sua estrutura e

composição. A seção seguinte examina as tendências em curso para posteriormente, em

outro nível de análise, focalizar estratégias de intervenção que se pautam por uma

perspectiva mais residual ou universal de proteção social.

3.2 Tendências e transformações dos sistemas de proteção social

Os anos 70 marcam o fim da Idade de Ouro, com a perda do dinamismo das principais

economias ocidentais. Há uma baixa nas taxas de lucro e produtividade, desorganização do

sistema financeiro internacional, elevação das taxas de desemprego, aceleração

inflacionária e desequilíbrios financeiros dos Estados-nação que, aliados à descrença na

capacidade do Estado em gerenciar as desigualdades, levam a uma renovada crítica do

Estado de Bem Estar Social.

Conforme aponta Faria (2002), recuperando Esping Andersen, a discussão sobre a crise do

Welfare State é presente desde a década de 50, com os argumentos se concentrando seja no

impacto do gasto social nos processos inflacionários, na excessiva burocratização do

sistema ou na incapacidade deste de processar novas demandas que surgem a partir das

décadas de 70 e 80 (Faria, 2002, pp. 203, 204). Entretanto, a crise atual, a partir dos anos

noventa, aponta para um conjunto de questões que combinam o reconhecimento do caráter

estrutural do desemprego; a fragilização da capacidade de atuação social do Estado, dada

pelo impacto dos processos de globalização101; mudanças nas configurações e dinâmicas

familiares; surgimento de novas demandas e novas desigualdades, o que confere à crise

atual uma maior amplitude.

101 Os processos de globalização, ao acirrarem a competição internacional por investimentos, provocariam uma redução da atuação do Estado no campo social, com a queda nos valores dos benefícios e na provisão de serviços (Faria, 2002, p. 205). A análise dos processos de globalização nas dinâmicas mundiais extrapola claramente os limites desse trabalho. Dentre o conjunto de autores que poderiam ser aqui indicados (Anthony Giddens, Ulrick Beck, Zygmunt Baumann, dentre outros) destaca-se aqui David Held (Democracy and the global order, 1996. Polity Press) que focaliza os desafios da democracia na nova ordem global salientando as mudanças políticas que alteram os sistemas nacionais como núcleos centrais das estratégias humanas organizadas; ou seja, examina o deslocamento e a perda da centralidade dos estados-nação como eixo de iniciativas econômicas, sociais e políticas. Seja do ponto de vista da lei internacional (cuja implantação limita o princípio de soberania do Estado), seja a partir do exame dos processos de decisão políticos (cujo papel dos organismos internacionais coloca sob pressão a autonomia dos estados-nação), ou a partir do exame das estruturas de segurança internacional (estando as estratégias de defesa nacional constrangidas pelo sistema internacional de relações de poder), o que Held enfatiza é que tais mudanças ou disjunções colocam novos desafios para a garantia da soberania nacional e impactam a discussão sobre a democracia nas próximas décadas. Junta-se a essas três disjunções – lei, política, segurança – a questão da globalização da cultura (e a emergência dos movimentos transnacionais) e a internacionalização da produção, para se ter um cenário realista da magnitude dos processos que afetam a organização das democracias no mundo contemporâneo.

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A crescente interpenetração das economias mundiais, aliada às mudanças radicais no

padrão tecnológico e à crise do próprio modelo de desenvolvimento impõe mudanças nos

modelos de proteção social. Excessiva centralização e burocratização, incapacidade de dar

respostas mais flexíveis e a inadequação entre demanda e oferta, dualização da

sociedade102, gasto social significativo são algumas das razões apontadas para a crise do

Welfare State (Fanfani,1991; Gomà e Brugué, 1998)103. Nesse contexto de crítica ao

estado de bem estar, os defensores das teses do Estado Mínimo recusam a intervenção do

Estado e de sistemas de bem estar sobre os mecanismos do mercado, o que estimularia a

perda de confiança na capacidade do Estado de resolver os problemas sociais. Do ponto de

vista social e cultural, há os que afirmam uma crise de valores nas sociedades pós-

industriais, uma crise de solidariedade e sustentam a necessidade de promover um novo

compromisso social, um novo pacto entre as classes. Nesse sentido, Neubourg, Castonguay

e Roelen (2005) não reconhecem que as mudanças econômicas sejam a principal causa

para alterações e reformas realizadas nos sistemas europeus. Os argumentos de

insustentabilidade financeira dos sistemas não seriam os mais centrais para explicar as

mudanças, mas sim a indisposição de um número crescente da população em pagar pelas

transferências sociais, o que, segundo percepções vigentes, alimentaria a dependência de

uma parte da população em relação ao sistema de proteção. O discurso político foi alterado

e a idéia da cultura da dependência do bem estar104 muito contribuiu para isso105.

102 Com esse termo Fanfani quer enfatizar que uma implicação desse modelo está na emergência de sociedade duais, com duas velocidades, uma regida pela lógica do setor produtivo e outra pela lógica da provisão de bens e serviços para grupos marginalizados (Fanfani, 1991, p. 116). 103 Segundo Draibe e Henrique (1988), a crise do Estado de Bem Estar Social permite diversas leituras. Elementos econômicos, políticos, institucionais e culturais têm sido apontados como centrais para explicar a crise do Welfare State. Na dimensão econômica, tem-se a ênfase nos limites de financiamento do sistema em função da expansão da demanda e da crise fiscal. Uma vez que o financiamento dos gastos sociais assenta-se nas contribuições de massas ativas de trabalhadores, há uma relação direta entre a capacidade de obtenção de recursos e as oscilações da economia. Entretanto, para além dos desequilíbrios macroeconômicos e financeiros que sacudiram as economias mundiais nas décadas de 70 e 80, tem-se a difusão da ideologia neoliberal, baseada nos modelos de mercado e em formas de provisão privada dos serviços. 104 Um ponto salientado pelos autores refere-se à armadilha da dependência, que pode surgir e frequentemetne surge quando o sistema de proteção social mantém as pessoas assistidas por um tempo longo, capaz de criar dependência do beneficio, com todas as conseqüências negativas daí advindas, seja quanto ao financiamento e sustentabilidade econômica do sistema seja em relação aos processos de reconhecimento e de integração social. Um dos pontos para se julgar a efetividade dos programas de assistência e de proteção social é verificar a recorrência da entrada e a duração do beneficio, que podem ser indicadores de uma relação de dependência. Na Suécia, por exemplo, apenas 14% dos beneficiários permanecem por 24 meses ou mais, ao contrário de países como Espanha, Portugal ou Reino Unido, onde essas taxas chegam a 61, 58 ou 70%, respectivamente (Neubourg, Castonguay e Roelen, 2005, p. 27). 105 Obviamente os problemas de financiamento se colocam como elementos de restrição. Mas além da dimensão econômica, financeira e fiscal, tem-se ainda elementos culturais (como o individualismo que marca a sociedade ocidental moderna) que deslegitimam as políticas centradas na redistribuição de renda e nas prestações dos sistemas de bem estar (UAB, 1998, p. 18).

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Entretanto, por mais que o Estado de Bem Estar social seja criticado sob variados pontos

de vista, o fato é que o processo em curso aponta para uma transição mais do que para uma

superação ou “desmantelamento” de sua estrutura (Faria, 2002, p. 207). A mudança

demográfica, com o aumento da taxa de fecundidade, e a mudança no comportamento das

mulheres, com a entrada dessas no mercado de trabalho são elementos importantes,

salientados pelo autor, para explicar a natureza mais aguda da crise atual, em um cenário

de desemprego estrutural e crescente. Existe uma pressão para a ampliação da cobertura

dos programas de assistência social, com a emergência de outros grupos de “titulares” de

direitos e também com a expansão do desemprego. Novas necessidades, demandas e novos

riscos106 aos quais as populações estão sujeitas demandam remodelagens nos padrões de

socialização dos riscos, reposicionando Estado, mercado e a família nesse processo. Nesse

sentido, o Welfare State é “apenas um dos três elementos de gestão dos riscos sociais. Os

outros dois são a família e o mercado” (Faria, 2002, p. 214) 107.

Embora reconhecendo que os procedimentos da proteção social na Europa estão sob

pressão, seja em razão dos recursos fiscais ou em função dos supostos resultados perversos

que produzem, Neubourg, Castonguay e Roelen (2005) sustentam, baseados em um estudo

cross survey sobre sistemas de proteção social na Europa, que o modelo europeu apresenta

uma certa estabilidade, sendo que as alterações introduzidas não provocam mudanças

substantivas nos sistemas, mantendo-se praticamente inalterado o conjunto dos benefícios

e os mecanismos redistributivos existentes. Isso aponta não para a idéia de dissolução ou

desaparecimento dos estados de bem estar, mas para sua renovação.

Os países europeus, no processo de reforma dos sistemas de proteção, têm como eixo duas

ordens de questões, relacionadas, mas distintas: por um lado, a dimensão dos incentivos ao

106 Novos riscos dados, sobretudo, pelas novas dinâmicas produtivas e tecnológicas que reduzem as chances de o trabalho atuar como elemento de integração social e pelas alterações no âmbito social e cultural que provocam mudanças nos padrões familiares e fragilizam a posição da família como suporte de proteção (Faria, 2002, pp. 220,221). 107 A importante contribuição da crítica feminista à literatura sobre os modelos e sistemas de bem-estar reside na atenção que confere à família como um elemento central de provisão de bem estar, como produtora de bens e serviços, o que a coloca como central no debate atual sobre as reconfigurações dos regimes de bem estar (Faria, 2002, p. 215). O lugar da família como provedora de bem estar é variável, de acordo com os tipos de sistemas de proteção vigentes. Na caracterização dos diversos regimes de bem estar formulado por E. Andersen, a família é central no modelo conservador, enquanto que no modelo liberal o caráter central cabe ao mercado, sendo que no modelo social-democrata o papel central cabe ao Estado (Faria, 2002, p. 218). Nos processos de transição, as respostas quanto ao lugar da família na provisão da proteção variam de acordo com os distintos modelos. Conforme aponta Faria, os regimes conservadores enfatizam transferências monetárias e reforçam o papel da família na gestão dos riscos; no modelo social democrata, as respostas reforçam a provisão de serviços e transferências pelo Estado; no modelo liberal, cabe ao mercado a gestão dos riscos, ponto que fica evidenciado na ênfase pela privatização e pelo incentivo ao trabalho (Faria, 2002, p. 222).

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trabalho, ponto central nas estratégias de reforma. Por outro, as questões trazidas pela nova

pobreza ou exclusão social invocam outras demandas, advindas das mudanças

demográficas e das transformações nas estruturas econômicas e nas instituições (World

Bank, 2003, p. 11)108.

Algumas mudanças têm sido introduzidas no sentido de reduzir a duração e mesmo alterar

a postura dos beneficiários no sistema. Para tanto se procura tirar os beneficiários da

passividade, ativá-los, e, para os autores, a perspectiva da “ativação” dos beneficiários tem

sido a tônica das alterações realizadas109(Neubourg, Castonguay e Roelen, 2005, pp. 33-

35; Guibentif, Bouget, 1997, pp. 35-37).

O segundo conjunto de alterações refere-se ao que os autores denominaram “reforma dos

incentivos aos provedores”, que diz respeito a alterações “na organização da administração

da proteção social”, que envolve, em graus diferentes para os países, a descentralização, a

privatização e uma maior integração dos serviços110 (Neubourg, Castonguay e Roelen,

2005, p. 35).

São alterações institucionais que acompanham novas demandas e conteúdos das políticas.

De acordo com Filgueira, os eixos da reforma em curso e dos novos modelos propostos

enfatizam a focalização, a descentralização, a integralidade na gestão e a delegação ao 108 Para uma diferenciação entre os distintos regimes de bem-estar (liberais, corporativos ou universalistas) quanto a provisão de serviços sociais, principalmente os voltados para atendimento infantil em creches, ver Faria, 1998. Esse autor demonstra, a partir de uma análise do tipo e volume de atendimento, as diferentes lógicas que presidem a provisão de serviços: a lógica da máxima responsabilidade privada ou da máxima responsabilidade pública. Ainda que tenha havido mudanças expressivas na provisão de serviços dos modelos escandinavos, a lógica subjacente ao modelo permanece, afirmando a centralidade do Estado na provisão e garantia de direitos sociais. 109 Desconsiderar ganhos mais altos, quer dizer, que a renda do trabalho não seja suficiente para excluir o beneficiário do programa; fornecer incentivos financeiros diversos para inserção e permanência no emprego; utilizar pressão administrativa para que os beneficiários ingressem no mercado (trabalho social, por exemplo); estabelecer maior rigidez das regras e sanções; inserir mudanças nos critérios e direitos de elegibilidade (por exemplo, excluindo grupos ou restringindo os direitos de outros, tais como decidir se os jovens e os imigrantes na Europa devem ou não ser elegíveis ao recebimento dos benefícios); assistência individualizada (que prevê uma orientação mais personalizada, com foco na elaboração de planos de ação, tais como existe na Alemanha, Reino Unido, Holanda, França) dentre outros, constituem medidas em curso em vários países da Europa após 1997 para viabilizar a inclusão, antecipar a saída e possibilitar a independência e a autonomia dos beneficiários (Neubourg, Castonguay e Roelen, 2005, pp. 33-35). Vale ressaltar que as diretrizes de privilegiar a inclusão ou a reintegração no mercado de trabalho (o foco na “ativação” e “reciclagem”) produzem efeitos perversos, ao privilegiar, como beneficiários, aqueles que dispõem de maiores recursos e condições de serem incluídos, deixando para trás o conjunto de indivíduos e grupos menos “ativáveis”. Além da dualização entre os “ativáveis” e os “não ativáveis”, a exigência de uma “ativação” dos beneficiários, visando um ingresso rápido no mercado de trabalho, leva à aceitação de empregos precários, que favorece uma situação de desempregado no futuro, com o retorno ao sistema de proteção. De acordo com os autores, o fenômeno da “porta giratória”, com as freqüentes reentradas no sistema de proteção, aponta para uma vulnerabilidade de longo prazo, permeada por estigmas e por uma condição de dependência. 110 Os autores referem-se, na verdade, a postos de atendimento integrado, e com isso remetem a uma preocupação com a qualidade, eficiência e transparência no uso dos recursos públicos.

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mercado de certas funções sociais (Filgueira, 1999, p. 77)111. As reformas têm alterado

não a quantidade, mas a distribuição dos benefícios, o que leva à constituição de dois

grupos de beneficiários: os que podem ser incorporados ao mercado e aqueles que não

podem ou que são mais difíceis de serem ativados, que permanecem no sistema de

proteção. As opções, para esse grupo, são duas: a permanência no sistema de proteção ou a

saída da condição de beneficiário. No caso do término do benefício, os custos recaem sobre

as famílias, redes, terceiro setor ou para o mercado informal; enquanto que a permanência

na condição de beneficiário pode levar a uma inserção em segmentos específicos do

mercado de trabalho112 (Neubourg, Castonguay e Roelen, 2005, p.37).

Nos países europeus, que adotaram de forma mais enfática a concepção da exclusão social

como pressuposto conceitual para definição das políticas, ocorre o reconhecimento de

novos grupos de excluídos e condições específicas de exclusão, ocasionando uma pressão

pela ampliação da cobertura da assistência social. As respostas dos distintos sistemas de

proteção diante da exclusão têm sido diferentes113. As mudanças para viabilizar o escape

das armadilhas da pobreza e da dependência não são homogêneas ou na mesma intensidade

ou direção nos diversos países e variam em função da duração e do nível dos benefícios,

das condições e critérios para deixar de receber os benefícios, dos requisitos de busca ativa

de empregos, das diferenças que se estabelecem entre os benefícios de seguro social e de

assistência social, dentre outros fatores (World Bank, 2003, p. 13; Guibentif, Bouget, 1997,

pp. 49-50).

A situação da Europa, seja quanto aos índices e tipos de pobreza seja quanto às condições

institucionais para enfrentá-la, é distinta da que se observa na América Latina e Brasil,

onde existe pobreza de massa, situações de pobreza crônica e grande parte da população

vivendo situações de intensa vulnerabilidade. Além da escala e da maior complexidade, a

111 Faria também aponta mudanças que ocorrem no sistema sueco de proteção social a partir da década de 90, quando as dotações orçamentárias discriminadas por tipo de serviço passaram a ser parte de um repasse único de verbas, que seriam alocadas segundo as necessidades e decisões das municipalidades, o que provocou alterações significativas na universalidade da provisão de serviços de atendimento às crianças pequenas (Faria, 1998, pp. 296,297). 112 Tal como estabelecido no sistema belga, que prevê oportunidade de trabalho para beneficiários de longo prazo em setores de serviços de baixa produtividade. Os salários modestos, pagos pelos compradores de serviços, permitem que os beneficiários encontrem uma condição de inclusão, sem serem forçados a competir livremente no mercado de trabalho (Neubourg, Castonguay e Roelen, 2005, p. 37). 113 Os sistemas de cunho liberal enfatizam a dimensão dos incentivos ao trabalho. Sistemas conservadores enfatizam a coesão social e a nova pobreza, com os esforços orientados para o treinamento e nos incentivos ao trabalho, gradualmente adotando reformas políticas em direção a um viés mais liberal de bem estar. Já nos sistemas de natureza universal, social democrata, as reformas têm sido no sentido de reduzir o valor dos benefícios, que permanecem ainda bem altos em relação a outros países da OECD e do fortalecimento da intervenção no mercado de trabalho (World Bank, 2003, p. 16).

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capacidade institucional do Estado brasileiro tem se revelado limitada para implementar as

políticas de proteção de base assistencial. A citação abaixo abaixo elucida, ainda que na

contraluz, o ponto:

“Os sistemas europeus são todos caracterizados por uma alta densidade de escritórios regionais de assistência social, que operam em áreas com alta densidade populacional e relativamente urbanizadas. Os escritórios são bem equipados e possuem funcionários bem treinados, com considerável poder discricionário. Os funcionários desses escritórios dispõem de um extenso portfolio de benefícios e de assistência não financeira. O sucesso dos sistemas de assistência social da Europa é em parte devido ao fato de que eles possuem um número reduzido de beneficiários, visto que muitas pessoas são atendidas pela rede de segurança antes que cheguem à última instância, que é a assistência social. Em parte devido ao fato de que eles operam na proximidade dos recebedores e dispõem de uma ampla gama de instrumentos. A proximidade dos escritórios de assistência social reduz o problema de abrangência, facilita o controle e fortalece o caráter pessoal dos serviços com relação aos beneficiários” (Neubourg, Castonguay e Roelen, 2005, pp. 40,41)114.

Embora promovendo ajustes e revisões no modo de funcionamento, critérios e valor dos

benefícios, o modelo europeu ainda mantém um sistema de ampla cobertura, sustentado

por princípios mais universalistas, orientados pela ótica dos direitos, de cidadania e de

pertencimento social. Nessa perspectiva, a proteção social não se restringe a uma ação

residual de bem estar para os mais pobres, mas expressaria o fundamento de uma ordem

baseada na promoção da justiça e na coesão social. As conquistas em termos de direitos

sociais constituem o patamar no qual o reordenamento exigido pela “segunda

modernidade” parte. Quer dizer, a dimensão universalizante das políticas de proteção

“forman parte indisoluble de la legitimidade y de la cultura políticas de los países de la

Europa occidental” (UAB, 1998) e constitui o patamar no qual a discussão das mudanças

nos modelos de bem estar se coloca.

Nos países desenvolvidos, com sistemas de bem estar robustos e estáveis, a perspectiva

universal persiste, ainda que sofrendo mudanças. Na América Latina, a transição nos

sistemas de proteção tem se dado em um sentido diferente. O desafio aqui é como

implementar tais sistemas de provisão pública universal em países em desenvolvimento,

com pobreza de massa, expressivo número de indigentes, poucos recursos para

investimento e capacidades institucionais frágeis para a formulação, gestão e avaliação de

políticas públicas. Uma equação desafiadora, sem dúvida e marcada por distintos

114 Um modelo equivalente para o Brasil, que tem como público definido para o Bolsa Família o conjunto de 11 milhões de famílias, exigiria o total de 22 mil escritórios (supondo que cada um atendesse a um conjunto de 500 famílias). A precariedade das políticas de proteção no país deixa na órbita das políticas de assistência um volume nada desprezível de pessoas, o que dificulta a adoção de modelos de proteção similares aos existentes nos países europeus.

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determinantes: econômicos, políticos, ideológicos, sociais, culturais. Obviamente a

implementação de modelos mais ou menos universalistas e agendas mais amplas ou

restritas de proteção social é dependente de vontade política, de decisão, de financiamento,

capacidade de implementação e coordenação, marcada por disputas entre valores e

interesses nem sempre facilmente conciliáveis.

A forma de conceber os problemas sociais mudou durante as décadas de 80 e 90, segundo

Raczynski (1999), tendo maior peso questões como a restrição do gasto, descentralização,

privatização, focalização, subsídios pela demanda e introdução de mecanismos de mercado

no setor público (Raczynski, 1999, p. 179). A América Latina, ao contrário dos países

europeus, tem intensificado o desenvolvimento de modelos afinados com uma perspectiva

mais residual de proteção social (Faria, 2002, p, 209; Molina, 2003; Filgueira, 1999;

Raczynszi, 1999).

As transformações em curso nas políticas sociais no Brasil apontam para a criação de uma

nova institucionalidade, dinâmicas, princípios e formas de cooperação entre atores e

instituições diversas. E a princípio, na perspectiva normativa, a partir da Constituição de

1988 ocorre um adensamento do caráter redistributivo das políticas sociais e um inegável

avanço do sistema de direitos sociais. A assistência social adquire, pela primeira vez, o

status de política pública. Novos direitos são reconhecidos e emerge uma tendência à

maior universalização da proteção, combinada a novos modelos institucionais e gerenciais

fundamentados nas diretrizes de descentralização e participação social, como apontado por

Sônia Draibe. Embora tenha havido um reconhecimento na legislação da universalização

dos direitos e da ampliação do escopo da proteção, na prática das políticas e programas a

tendência tem sido distinta. Além de o gasto ser reduzido, sua estrutura de financiamento,

de base contributiva e atrelado ao emprego assalariado formal, levou a que o sistema de

proteção, ao ampliar a cobertura, gerasse uma queda no valor dos benefícios e a

precarização dos serviços oferecidos pelo setor público (Pochmann, 2004 b, p.12)115.

Novos elementos entram na agenda das políticas públicas e sociais – descentralização,

participação, novas relações entre Estado e sociedade civil, setor público e privado,

parcerias e co-gestão, eficiência, eficácia, accountability, dentre outros – e apontam para

115 Esse processo levou a que a classe média buscasse serviços de educação e saúde no setor privado, fragilizando a aliança entre classes que poderia dar suporte político à universalização da proteção social. As estratégias de focalização rígidas, pautadas pela busca de contenção dos gastos e maior eficiência do gasto social, contribuíram para polarizar a sociedade, afastando as classes médias dos serviços públicos, o que estimulou ainda mais a precarização dos mesmos (Filgueira, 1999).

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uma outra maneira de conceber a produção, organização e distribuição de bens e serviços

sociais. Que modelo de proteção social está sendo delineado? Ao indagar sobre as

perspectivas que se colocam para a América Latina, Filgueira sustenta que

“las propuestas y tendencias centrales, hoy, apuntan a modificar el modelo y las políticas de protección social drásticamente allí donde existieron y fueran desarrolladas bajo modelos centralistas con pretensiones de universalidad, y apostar, en los países que conocieran bajo o nulo desarrollo de los sistemas de protección social a un modelo emparentado a la tradición residual-liberal “ (Filgueira, 1999, p. 77).

No mesmo sentido, para Molina (2003), o caminho que se está trilhando na América Latina

é o de um modelo de proteção para os pobres, sob uma matriz residual de proteção social.

A proposta neoliberal enfatiza, como estratégia de políticas de proteção, a transferência de

recursos monetários, desenhadas “sob medida” para os públicos desfavorecidos, com

ênfase em políticas focalizadas e na provisão privada de bens e serviços, tendo o mercado

como o grande disciplinador, nas palavras de Fanfani (1991). Ao Estado cabe reservar a

cada indivíduo ou família uma renda mínima; o resto é feito pelo mercado.

“En este modelo el Estado se concentra en atender a parte de la población pobre, a través de la oferta subsidiada de servicios sociales y de transferencias de ingresos de carácter temporal, buscando con ello aliviar su condición de pobreza. La población que no califica en este grupo debe, por su parte, intentar proveerse directamente los servicios sociales que necesita. En este modelo, la población a la cual se dirige la acción estatal -parte de los pobres-, se reconoce a través de criterios técnicos y formales” (Molina, 2003, p. 3) .

A diferença quanto ao modelo residual é que nesse novo modelo de proteção social para os

pobres os critérios de seleção são institucionalizados e não pautados pelo caráter

discricionário e pela ótica da caridade. A responsabilidade de proteção, na nova versão do

tipo residual de proteção social, recai sobre o Estado. A seleção se faz com base

fundamentalmente em critérios de renda individual ou familiar, sem muita atenção a outros

indicadores de acesso a serviços ou critérios mais coletivos (Molina, 2003, p. 3). As

modalidades de proteção predominantes são transferências diretas de recursos monetários

para os mais pobres e vulneráveis. São transferências temporais, de emergência, não

necessariamente ligadas a direitos, ao contrário de modalidades de caráter estrutural (por

oposto a emergencial e de curto prazo), que se referem à oferta de bens e serviços

permanentes, universais e que respondem a direitos de cidadania (Molina, 2003, p. 14).

Um modelo que apresentaria um corte residual de proteção social é o denominado Manejo

Social de Risco, tal como formulado pelo Departamento de Protección Social, Red de

118

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Desarrollo Humano, do Banco Mundial, na segunda metade da década de 90, no contexto

de revisão das estratégias do Banco na área de proteção social (Holzmann e Jorgensen,

2000)116. De acordo com a formulação original, o manejo de riscos envolve a definição de

estratégias para enfrentar os riscos, estabelecendo um marco que inclui três estratégias

(prevenção, mitigação, superação), três níveis de formalidade (informal, de mercado e

público)117 e vários atores envolvidos (pessoas, comunidades, governos, agências

internacionais, ONGs etc) (Holzmann, Jorgesen, 2000, p. 11).

Segundo Sojo (2003) e Lavinas (2003), críticas da concepção de manejo de riscos118, essa

abordagem focalizaria a questão da proteção sob o ponto de vista das redes de segurança

(safety nets), que apresentaria um caráter mais residual e focalizado, o que configura um

retrocesso em relação às concepções norteadoras dos sistemas de bem estar social que

dominaram no século XX. O enfoque do manejo social de risco, segundo seus críticos,

limitaria o papel do Estado no campo da proteção social, via redes de proteção e políticas

focalizadas. A proteção social se reduziria à noção de redes de proteção (safety nets), um

conjunto flexível de programas desenvolvidos para atender padrões específicos de riscos.

Essa concepção não potencializaria a solidariedade social, uma vez que estaria centrada na

responsabilidade dos indivíduos de assegurar-se contra os riscos (Sojo, 2003, p. 122).

Além disso, essa concepção apontaria para a diluição do papel do ator governamental em

meio a uma pluralidade de stakeholders que entram em cena (Barrientos e Sheperd, 2003).

No documento oficial do Banco Mundial (Holzmann e Jorgesen, 2000), relativo ao

enfoque do manejo de riscos, contudo, a afirmação não é a de reduzir o papel do Estado,

mas de ir além do setor público e recuperar mecanismos de mercado e mecanismos

informais que possam atuar na promoção do desenvolvimento e do crescimento, afirmando 116 Fazendo uma conexão com o que foi visto na primeira parte do trabalho, a proteção social calcada no enfoque do manejo de riscos está diretamente relacionada com a questão da vulnerabilidade. Esta lhe é constitutiva. A proteção seria promovida ao se diminuir a vulnerabilidade, que é um elemento central e determinante das condições de vida de grupos em situação de pobreza. 117 Quanto ao nível de formalidade, tem-se as estratégias informais, que incluem, dentre outras, migração (no caso da prevenção), matrimônio, família e relações comunitárias (no caso da mitigação), venda de ativos (no caso da superação). Além das estratégias informais, tem-se as estratégias de mercado, que incluem capacitação (no caso da prevenção), seguros (no caso de mitigação) e venda de ativos ou empréstimos (no caso da superação). E no campo governamental, tem-se as políticas de trabalho e de prevenção de doenças, por exemplo (no caso da prevenção), de transferência de ativos (no caso da mitigação) e transferências monetárias e subsídios (na superação) (Holzmann, Jorgensen, 2000). 118 Na ótica da sociedade de risco, “matizada pela perspectiva individualizante do self de Giddens, os indivíduos seriam responsáveis por sua própria biografia, sendo que os excluídos – aqueles sem condições de fazer valer suas escolhas, porque não as têm - poderão ser apoiados, quando necessário, por ações tópicas, residuais e por prazo determinado, via redes de segurança” (Lavinas, 2004). Frase proferida por ocasião do seminário promovido pela PBH/FJP/UFMG/PUC-MG, em dezembro de 2004.

119

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ainda a expansão do conceito de proteção, e não seu esvaziamento, como foi interpretado

por Sojo (2003). Ao incorporar as questões de acesso aos serviços básicos, de participação

e vocalização dos pobres como dimensões centrais na concepção de manejo de riscos, esse

enfoque estaria ampliando e não restringindo, a concepção de proteção (Holzmann,

Jorgesen, 2000, p. 4). A proteção social segundo o manejo de riscos seria, de acordo com

seus formuladores, uma abordagem realista, ao considerar os limites dos gastos públicos e

a diminuição da capacidade de financiamento dos países diante do crescimento da

demanda por proteção, e, além disso, seria mais adequada para fazer frente às condições

atuais, ao incorporar esforços do mercado e reconhecer os mecanismos e sistemas

informais119.

A concepção de manejo de riscos tem sido dominante, mas não é a única que orienta as

ações, as pesquisas, ou o discurso da proteção social atual, nos países desenvolvidos ou em

desenvolvimento. Bob Deacon (2005) sustenta que não existe uma linguagem única no

debate sobre política social, pautada pela noção de redes de proteção (safety nets). O

enfoque universal de bem estar e o tema das reformas no âmbito da governança capaz de

promovê-lo também estão em cena, ou, como diz o subtítulo do artigo (Deacon, 2005), a

maré está mudando. Se nas décadas de 80 e 90 o projeto político das reformas de cunho

liberal foi o dominante, existem sinais de mudança no discurso global em direção a

políticas de solidariedade social e universalismo (Deacon, 2005)120. Os arranjos e projetos

políticos dominantes dependerão, sobretudo, de legitimidade, como fica claro na citação

abaixo:

“Hoy en dia parece evidente que el futuro de la protección social y, por consiguiente, de las políticas y de los programas que las desarrolan, dependerá fundamentalmente del mantenimiento de su legitimación social. En la medida en que la expansión del individualismo no sea capaz de hacer desaparecer los valores de la solidaridad, y que éstos sigan existiendo en la conciencia colectiva y en la opinón pública, la actual crisis no conducirá hacia la destrucción del sistema de bienestar, sino hacia um reajuste cualitativo de la protección social” (UAB, 1998, p. 19).

3.3 - Políticas de combate à pobreza: diferentes estratégias, distintas implicações

Correndo o risco de exagerada simplificação, mas com a perspectiva de maior clareza

analítica, recorremos ao trabalho de Fanfani (1991) que distingue duas concepções básicas

sobre o fenômeno da pobreza que sustentam as estratégias de distintos modelos de 119 Na concepção do manejo de riscos, a proteção social “refers to the public actions taken in response to levels of vulnerability, risk and deprivation which are deemed socially unacceptable within a given polity or society” (Norton, Conway, Foster, 2001. p. 21). 120 Talvez a presença de representantes de países nórdicos entre os consultores e pesquisadores do Banco Mundial esteja contribuindo para uma tensão positiva entre perspectivas residuais e abrangentes da proteção social e do papel do Estado na provisão dos serviços públicos (Deacon, 2005).

120

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proteção. Uma primeira visão de pobreza, presente nas primeiras fases do desenvolvimento

dos estados-nação, considerava a pobreza de um ponto de vista moral, marcada por forte

viés punitivo, presente na idéia de “pobres que merecem” e “pobres que não merecem”.

Isso significa um olhar centrado no exame das condutas e mentalidades dos pobres, e

sustentou sistemas de intervenção baseados em relações de tutela, benevolência. As

características desse modelo apontam para a centralidade da prática da caridade e da

beneficência pública no desenvolvimento de ações pontuais, descontínuas e desarticuladas,

“baseadas na vontade e no dever de quem dá e não no direito de quem recebe” (Fanfani,

1991, p. 97). A tradição assistencialista tem uma característica que se mantém, mais

ou menos evidente, nas práticas e discursos de determinadas estratégias de políticas

de enfrentamento da pobreza nas sociedades atuais: a perspectiva individualista

presente na concepção do problema. Isso quer dizer que não existe a pobreza como

fenômeno social, mas sim como algo que decorre de um conjunto de situações individuais;

não existe pobreza, mas sim pessoas pobres. Nas palavras de Fanfani,

“la pobreza solo es social cuando alcanza ciertos niveles críticos y genera problemas que deben ser administrados por la sociedad, pero no es social en su génesis ni en su significación, puesto que siempre remite al sujeto que la padece” (Fanfani, 1991, p. 98).

Nas políticas calcadas nessa visão, o beneficiário não tem um direito, mas ele se torna

elegível para um determinado bem ou serviço a partir da comprovação de sua miséria,

sendo visto permanentemente sob suspeita e com avaliação permanente dos requisitos que

o tornam apto a receber ajuda do Estado. Os benefícios são concedidos a grupos

específicos, que são tratados de forma isolada, como categorias separadas (idosos,

deficientes, desocupados, mães solteiras e outras tipificações), formando um mosaico de

iniciativas isoladas, fragmentadas e descontínuas.

Uma outra visão aponta para outro entendimento da questão da pobreza, sustentada por

uma perspectiva, pode-se dizer, coletivista, contrapondo-se ao individualismo que marca o

modelo assistencialista. A coletividade é o componente central, instaurando a primazia do

todo sobre as partes, marcando uma perspectiva afinada com os elementos salientados

pelas concepções de exclusão e vulnerabilidade. O direito à vida, o direito social, nessa

perspectiva, não é algo que remete exclusivamente ao indivíduo, mas fundamentalmente

diz respeito à sociedade que se torna responsável pela partilha dos custos, sob o princípio

da solidariedade social. O foco, nesse modelo, não são os indivíduos, mas suas interações e

relações. A abordagem que sustenta a ótica dos direitos é de natureza universalista,

121

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sendo o beneficiário elegível por sua condição de cidadão. Nessa perspectiva, se a

pobreza é relativa ao todo social, a intervenção para superá-la deve se orientar para a

própria sociedade, para os meios e as causas estruturais e não para os pobres. As

políticas de luta contra a pobreza, dirigidas a públicos focalizados, estão presentes,

mas ocupam, nessa perspectiva analítica, um lugar marginal dentre as políticas de

corte universal.

Para os objetivos do presente trabalho é importante a análise de algumas estratégias

adotadas nas políticas de combate à pobreza, identificando os contornos e as características

gerais de distintas estratégias de ação, em que medida elas espelham as distintas visões

sobre a pobreza. As discussões apresentadas por Lo Vuolo (1999, 2004) e Fanfani (1991)

fornecem o caminho para avançarmos na compreensão dos dilemas envolvidos na

definição dessas estratégias e na relação delas com os diferentes modelos e tendências do

estado de bem-estar social nas sociedades contemporâneas dos países desenvolvidos e em

desenvolvimento. Elas situam o debate sobre a questão social, ou seja, sobre as

dificuldades das sociedades modernas em promover a inserção e a coesão social. Como

Castel121, os autores pautam-se pela idéia da metamorfose da questão social, na qual a

nova questão social, da mesma forma que a velha questão social, tem como eixo as

relações capital-trabalho. O trabalho segue sendo o suporte privilegiado de inserção social,

embora a organização social e econômica dominante não permita de forma plena esse tipo

de inserção. O termo inserção social é a base de um enfoque estratégico (por oposição a

um modo de regulação estática da pobreza), sendo usado preferencialmente ao de

exclusão122, para demarcar um “registro original de existência”, que tem a ver com a

participação das pessoas em uma relação social intermediada por instituições sociais

diferentes das instituições do mercado, ou do emprego remunerado123. Inserção social é

121 Lo Vuolo (1999) explicitamente compartilha da visão de Castel, utilizando o termo desafiliação para descrever e explicar o processo dinâmico que determina dissociações entre indivíduos e sociedade. O processo de desafiliação aponta para trajetórias descendentes, que levam à invalidação de alguns, sendo esse um fato que concerne a toda a sociedade. Os autores utilizam ainda a noção de zonas de vulnerabilidade, tal como Castel, que são demarcadas pela inserção dos indivíduos e grupos no trabalho e nas redes de sociabilidade e de proteção social. 122 O conceito de exclusão remete a uma idéia de exclusão da sociedade e os autores pontuam que a existência de excluídos inscreve-se na própria dinâmica social, sendo um produto da forma como se organiza a sociedade em termos econômicos e sociais. Lo Vuolo enfatiza, contudo, que se trata de exclusão na sociedade, para apontar as condições que permitem ou facilitam que certos membros da sociedade sejam apartados, rechaçados ou simplesmente seja negada a eles a possibilidade de acesso aos “arranjos operativos e aos rendimento das instituições sociais” (Lo Vuolo, 1999, p. 219). 123 A concepção de inserção ultrapassa, segundo Lo Vuolo (2004), a de exclusão, uma vez que aquela remete ao conjunto da organização social e das formas de solidariedade que necessitam ser criadas para dar conta da superação efetiva da pobreza e não apenas de sua administração, como vem sendo enfatizado no modo de

122

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uma “figura institucional que pretende ocuparse de aquellos que son válidos, pero que son

temporalmente inválidos” (Lo Vuolo, 1999, p. 209). Ter-se-ia um outro patamar de

compreensão da interdependência social. Nas palavras de Lo Vuolo,

“se debe orientar la mirada hacia aquellos principios universales que integren las partes saludables y enfermas, pobres y ricas, empleadas y desempleadas, de un modo radicalmente diferente del que actualmente existe en nuestras sociedades” (Lo Vuolo, 2004, p. 18).

Ao apontar para a centralidade da idéia de coesão social e para um registro positivo

(inserção) e não negativo (exclusão), Lo Vuolo sustenta a existência e a necessidade de

uma outra forma para lidar com a questão da pobreza, um modo estratégico que se

contraporia ao modo de regulação estático da pobreza. O argumento central do autor (Lo

Vuolo, 1999 e 2004) refere-se à necessidade de ultrapassar o modo de regulação estática

da pobreza, que se caracteriza pela abordagem tecno-liberal ou caritativa do problema.

Para a abordagem tecno-liberal, a solução da pobreza estaria ligada ao crescimento

econômico, ao emprego e ao fortalecimento de micro-empreendimentos que valorizem os

ativos econômicos dos pobres.

Na visão caritativa da pobreza, valoriza-se a solidariedade moral como ética pessoal e

enfatiza-se a auto-organização dos pobres. De cunho assistencial repressivo, o modo de

regulação estática focaliza a pobreza como algo transitório, que pode ser explicada em

grande parte a partir das características pessoais dos pobres e não enfatiza a superação do

problema, mas tão somente sua administração.

Em termos operacionais, a perspectiva residual de proteção social e do combate à pobreza,

de forma particular, enfatiza focalização precisa da população alvo da intervenção. A idéia

básica dessa visão, conforme sustentado pelo autor, é que a ação do Estado não deve se

orientar para toda a população, mas concentrar-se em zonas espaciais, a partir do

conhecimento das necessidades básicas da população, com o uso de mapas com a máxima

desagregação territorial.

Ao adotar essa estratégia de forma prioritária, as políticas inspiradas pelo modelo residual

de proteção social fortalecem, em certa medida, a discriminação e a desigualdade, ao

adotarem um processo de identificação, de assignação de identidade, a partir de regulação estático da pobreza. Entretanto, não fica totalmente clara em que se baseia essa distinção, uma vez que exclusão refere-se a uma situação negativa, enquanto que inserção sinaliza uma dimensão positiva, mas ambos os termos compartilham de um conjunto de pressupostos básicos, que se referem à centralidade da perspectiva da coesão social e dos laços de solidariedade.

123

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determinadas características dos indivíduos que os tornam passíveis de serem considerados

pobres e tratados socialmente como tais (Fanfani, 1991, pp. 128-130). Nas palavras de

Fanfani, para ser beneficiário, o indivíduo tem que marcar sua condição de indigente ou

cidadão NBI (necessidades básicas insatisfeitas) ou outra tipificação qualquer. A

focalização envolve sempre identificação e seleção dos demandatários das políticas, com

todos os custos sociais advindos dessa discriminação. O mercado fica com o atendimento

dos não pobres, o que, aliado à pobreza dos recursos do Estado destinados aos sistemas de

prestação de serviços para os pobres, configura um modelo dual de proteção,

institucionalizando e cristalizando as desigualdades (Fanfani, 1991).

A institucionalização dos fundos de combate à pobreza, que proliferaram na América

Latina nas últimas décadas, pode ser vista como uma expressão, ainda que apenas indireta,

de um modelo residual de proteção. A estratégia em curso na América Latina a partir de

meados de 80, foi induzida externamente por importantes agências e bancos multilaterais,

para fazer frente aos efeitos negativos das políticas de ajuste estrutural, e enfatizou a

criação de fundos de inversão social, concebidos como elementos centrais para a

implementação da “reforma social”124. Dada a capacidade institucional débil dos

organismos governamentais da área social na maioria dos países, a criação dos fundos é

entendida como saída possível para oferecer uma resposta rápida e temporária ao

recrudescimento da pobreza na região125.

Os fundos oferecem um cardápio de projetos passíveis de serem financiados, a partir do

qual as entidades, associações e demais agentes podem apresentar propostas. Os fundos,

124 Por esse termo, reforma social, estamos designando um conjunto de prescrições sobre os passos e medidas para a reforma das políticas sociais na América Latina a partir do fim dos anos oitenta e noventa. As respostas à crise econômica mundial de fins dos anos setenta na América Latina focalizaram, em um primeiro momento, políticas de ajuste estritamente monetário, com forte impacto recessivo, principalmente sobre a parcela mais pobre da população. As diretrizes pautavam-se pela austeridade fiscal, com ênfase em políticas e processos de ajuste ortodoxo. A não execução de reformas tributárias efetivas, o elevado déficit fiscal e a inflação marcaram a cena na América Latina nos anos oitenta. Até fins dos anos oitenta, os países latinoamericanos começam a transcender políticas de ajuste (de caráter recessivo) e a encarar programas de estabilização e reformas estruturais, orientadas para criar as bases do crescimento econômico (liberalização de mercados, privatização de estatais e de certos serviços sociais, abertura ao comércio internacional e fluxos privados de capital). Como lições da década perdida, tem-se uma “transformação silenciosa” na América Latina, na qual os processos de redemocratização, a ênfase na estabilidade econômica como condição necessária para o desenvolvimento; abertura externa (redução de tarifas, promoção exportações); revisão do papel e reestruturação do Estado constituem eixos centrais (Iglesias, 1992, pp. 83-88; Glaessner et alli, 1995, p. 1). 125 Além de serem potencialmente mais eficazes e eficientes, os fundos também contribuíram para recuperar a credibilidade do governo frente à sociedade, atuando, em muitos lugares, no fortalecimento da coesão social e política, desmoronada após a recessão econômica, crises políticas e os conflitos civis (Glaessner et alli, 1995, p. 3 e 44- 48).Até 1995, existiam doze fundos em onze países: Bolívia (2), Chile, Equador, El Salvador,Guatemala, Guyana, Haiti, Honduras, Nicarágua, Panamá, Peru.

124

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criados para serem provisórios, para durarem até que os efeitos positivos do ajuste

econômico começassem a aparecer, acabaram por se tornar o instrumento privilegiado para

a mitigação da pobreza no continente. Em sua maioria, os projetos financiados via fundos

são de infra-estrutura social e econômica (75 a 90% dos fundos para financiamento),

serviços sociais (distribuição de cupons alimentação, por exemplo), programas de micro-

crédito, cooperativas, dentre outros. Entretanto, em alguns lugares, os fundos melhor

administrados podem desenvolver programas massivos com rapidez e agilidade,

imprimindo inclusive mudanças na organização e nas formas de gestão dos ministérios

sociais126. De forma geral, os custos administrativos são baixos (8 a 13% dos orçamentos

anuais) (Glaessner et alli, 1995, p. xi). A participação por parte dos beneficiários nos

custos dos projetos ou a exigência de contrapartidas são importantes características dos

fundos na região. A capacidade de mobilização de entidades não-governamentais,

religiosas, comunitárias e privadas na gestão dos fundos também é ressaltada (Glaessner et

alli, 1995, p. xi). Dentre os resultados, tem-se o fortalecimento da participação

comunitária e o reforço da descentralização, favorecendo uma maior participação dos

governos municipais na provisão de serviços sociais básicos (Glaessner et alli, 1995, p. x).

Quanto aos desafios, permanece o da sustentabilidade dos projetos, com a ameaça sempre

presente de não continuidade.

O que interessa aqui são os contornos gerais das estratégias implementadas através dos

fundos, pautadas pela focalização e pelo desenvolvimento de pequenos projetos de cunho

comunitário, participativo, voltados para melhorias das condições de vida de populações

urbanas e rurais da América Latina e Caribe. Não se trata de julgar o valor ou o impacto

que essas institucionalidades estão imprimindo nas condições de vida do conjunto de

famílias e comunidades por elas atendidas; mas de ressaltar a concepção que as sustenta.

Primeiro os fundos foram criados na suposição de que tanto o crescimento econômico

quanto o fortalecimento do aparato governamental seriam condições que se efetivariam no

curto prazo, o que não se verificou. Além disso, nesse tipo de estratégia, tem-se uma

atuação focalizada no problema da pobreza, com projetos em pequena escala, o que de

certa forma mantém esse problema periférico em relação às estruturas centrais dos

governos, sob permanente ameaça de descontinuidade. Os fundos, em síntese, parecem

126 Um exemplo de um fundo com essas características é o FOSIS (Fondo de Solidaridad e Inversion Social), do Chile.

125

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caber melhor em uma matriz residual de proteção do que em uma matriz de corte

universal127.

A perspectiva alternativa em termos de estratégias e instrumentos de enfrentamento da

pobreza parte de um ponto diverso. Ao se assumir o problema da pobreza do ponto de vista

da questão social, tem-se que essa se relaciona com o conjunto de princípios da

organização social, sendo entendida (seguindo Castel) como relativa às dificuldades das

sociedades modernas para sustentar a inserção de todos os cidadãos e viabilizar a coesão

social. A questão da pobreza liga-se, nessa perspectiva, à questão do trabalho, entendido

como principal suporte de inserção das pessoas na estrutura social. Assumir a pobreza

como sendo um problema emergente da questão social implica afirmar que uma política

efetiva de combate à pobreza leva a uma visão da pobreza como matéria de interesse

público e generalizável (Lo Vuolo, 1999)128.

Ao focalizar as zonas de vulnerabilidade social, espaços sociais instáveis onde se

conjugam de forma perversa a precariedade do trabalho e a fragilidade das redes de

sociabilidade e de proteção social, tem-se a possibilidade de abordar a questão social

tal como ela se manifesta atualmente, quando não há empregos suficientes para

garantir o acesso à renda, elemento básico para evitar e reduzir a pobreza e a

vulnerabilidade. Contra um modo de regulação estática da pobreza, tem-se a

proposta e a efetiva construção de redes universais de seguridade que pautem novos

princípios de organização social. De acordo com essa visão, a pobreza não é matéria

para ficar a cargo de programas assistenciais, que são ineficazes para a inserção e se

justificam, nessa perspectiva, apenas como exceção, como complemento das redes

universais de garantia de recursos básicos. De forma mais concreta, Fanfani (1991)

aponta a necessidade de redefinir ação assistencial como intervenção excepcional,

127 Entretanto, é preciso enfatizar que existem fundos, como o Fosis/Chile, que desenvolvem ações de ampla cobertura, mobilizando uma quantidade considerável de prestígio e protagonismo efetivo na formulação e gestão de políticas sociais. O Fosis é o responsável, no Chile, pela execução do componente mais importante do Sistema Chile Solidário, que constitui o sistema de proteção social naquele país voltado para o combate da pobreza extrema e que atende a um volume considerável de famílias, mais de 220 mil em todas as regiões (Fosis, 2002, p.12). 128 A aceitação dessa diretriz, feita de forma “verdadeira” e não meramente retórica ou normativa, tem implicações para o desenho de estratégias de intervenção que, em decorrência da percepção coletiva do problema da pobreza, precisam estar presentes de forma prioritária e efetiva na agenda pública e com repercussões no plano institucional e organizacional, no âmbito da gestão das políticas, integrando políticas sociais e econômicas, fortalecendo práticas de gestão intersetorial e políticas mais integradas, inclusive no território.

126

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delimitada e pontual, concentrada na atenção às necessidades urgentes dos grupos em

situação de pobreza extrema (alimentação, vestuário, abrigo etc.).

Na visão de Fanfani, é o fracasso das políticas sociais de educação, saúde, moradia, meio

ambiente, obras e serviços públicos para satisfazer as necessidades da maioria da

população o que alimenta e justifica a proliferação de administrações e políticas

assistenciais paralelas (educação não formal, moradia e promoção social, saúde assistencial

etc.). O ponto chave de sua argumentação é que não é desejável ter dois subsistemas

de prestação de bens e serviços sociais, um normal e outro assistencial, quer dizer,

para pobres. E que a chave para delinear um modelo capaz de cumprir ao mesmo tempo

com as promessas da igualdade e liberdade exige novas formas de ver, novos paradigmas.

O ponto central dos autores examinados (e aqui estamos nos referindo a Ruben Lo Vuolo

e Emilio Fanfani, principalmente, e em certa medida também a Fernando Filgueira), é

argumentar a favor de um novo modo de enfrentar a pobreza, baseado em profundas

mudanças políticas, econômicas e institucionais, e em outros princípios de organização

social.

“La necesidad de discutir nuevos conceptos que modifiquen los que prevalecen actualmente en los modos de organización de nuestras sociedades no se limita a un objetivo ni a una política en particular. El tema de la pobreza se inscribe en una discusión mas amplia sobre la falta de racionalidad y la injusticia del tipo de sociedad que se está imponiendo” (Lo Vuolo, 1999, p. 299).

No mesmo sentido, Fanfani afirma:

“Ninguna estrategia asistencial, que por definición es marginal y estrecha, podrá llevar a superar las graves situaciones de pobreza absoluta que padecen grandes masas de población en los países en vías de desarrollo” (Fanfani, 1991, p. 132).

Embora seja difícil não concordar com essas afirmações, é também inevitável, diante delas,

fazer a pergunta: se é assim, que alternativas temos? O que fazer? De forma sensata, o

autor alerta:

“Hay que evitar la tendencia al desarrollo de políticas asistenciales extremadamente ambiciosas y masivas que siempre terminan con el fortalecimiento de las administraciones (ministerios, secretarias, programas etc.) paralelas a las clásicas instancias administrativas de formulación y ejecución de políticas sociales” (Fanfani, 1991, p. 133).

Como desenvolver políticas estratégicas e efetivas para superação da pobreza em um

contexto de pobreza de massa, grande desigualdade e situações de intensa precariedade e

pobreza extrema? A pobreza não é residual e nem se apresenta como excepcional no

127

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contexto da maioria dos países da América Latina. Quando afirma a necessidade da

pobreza se constituir como interesse público e generalizável, Lo Vuolo segue Habermas,

ainda que apenas implicitamente, ao apontar para a necessidade de um outro tipo de

racionalidade, para além de uma racionalidade instrumental, e para a vigência de interesses

para além daqueles não generalizáveis (particulares). O que se tem no caso de interesses

não generalizáveis são discursos e ações estratégicas, pautadas em compromissos e

negociações entre as partes interessadas; sempre confrontadas por relações de força e

poder. O desafio é demonstrar que a inserção social não é uma questão que pode ser

equacionada dentro desse paradigma, tratada como uma questão de repressão ou

assistência, mas que exige colocar no centro o conteúdo distributivo do problema e

envolver não políticas isoladas mas sim o conjunto do sistema de políticas públicas,

outros atores e domínios para além do Estado (como o mercado e a sociedade civil).

Nessa perspectiva, a coletividade surge com primazia sobre as partes (os indivíduos),

afirmando que se a pobreza é algo relativo ao todo social, as intervenções devem ser

orientadas para meios e causas estruturais e não para os pobres. O objeto de intervenção

passa a ser a própria sociedade.

Em um outro registro, no campo institucional das políticas públicas, decorre dessa

perspectiva mais “coletivista” da pobreza que as estratégias para enfrentamento da pobreza

não são objetos exclusivos das políticas de assistência ou ainda das políticas sociais, mas

sim do conjunto das políticas públicas. Uma afirmação explicita o ponto: “La clave está tal

vez, en pedirle a las políticas sociales su parte en la construcción de ciudadanía social y

no toda la labor” (Filgueira, 1999, p. 104).

Como modelos de políticas que podem dar materialidade ou operacionalizar essa

perspectiva estratégica de enfrentamento da pobreza, a proposta defendida por um conjunto

expressivo de pesquisadores e agentes atuantes no campo de estudos e ação sobre a

pobreza consiste no estabelecimento de uma renda de cidadania, desenhada para ser

universal e incondicional. Essa renda permitiria o acesso aos bens sociais que definem

“la capacidade para funcionar en el sistema social en cuestión, en tanto lo que una persona puede hacer depende de su control sobre ciertos bienes, de las características de los bienes que controla. En economías monetarias como las sociedades modernas, ese acceso y control depende en gran medida del ingreso del que disponen las personas para demandar bienes” (Lo Vuolo, 2004, p. 16).

128

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A renda de cidadania, por seu caráter universal, incondicional e sua ênfase na inserção,

inspirada por um sistema de conceitos e valores distintos dos que animam o modo de

regulação estática da pobreza, aparece como possibilidade para o enfrentamento da

pobreza, como um dos elementos importantes para promover a inserção e a coesão social

(Lo Vuolo, 1999). No debate sobre a renda mínima de inserção, não se pode desconsiderar

o que foi apresentado no primeiro capítulo sobre a insuficiência, embora se reconheça a

necessidade, da dimensão da renda para caracterizar a pobreza. Entretanto, em sociedades

monetarizadas, sem renda não é possível efetivar a inclusão social. Essa estratégia consiste

em uma efetiva garantia de renda que tem como características básicas ser universal e

incondicional, independente do emprego, que atua em uma perspectiva preventiva e com

níveis de cobertura mais amplos possíveis, pautada por princípios universalistas e pela

ótica dos direitos. Trata-se de um piso de cidadania e não de um teto ou medida única de

inserção social.

Essa estratégia aponta para novas bases de um acordo social, para a necessidade de

repensar os princípios de organização social, que compatibilizem eficiência econômica e

justiça social (Lo Vuolo, 2004, p. 18). De acordo com o autor, a concepção de renda de

cidadania ressalta o “título de direito” (entitlement) que garante o acesso à cidadania. E é

por essa razão a preferência pelo termo renda de cidadania em relação ao de renda básica,

na medida em que esse último se associa com idéias de necessidades básicas ou de pisos

mínimos de pobreza e indigência e a renda de cidadania vincula-se à idéia de

pertencimento, igualdade e ao papel fundamental do Estado na garantia de acesso das

pessoas a condições básicas de bem estar, que devem estar à disposição de todos fora do

mercado (Fanfani, 1991, p. 125).

As políticas de suporte de renda são comuns no conjunto de ações de proteção social129,

embora estas não sejam homogêneas, apresentando distintos critérios de acesso, estando

voltadas para grupos diversos, condicionadas ao cumprimento de requisitos (obrigação de

ser) e comportamentos (obrigação de fazer) por parte dos beneficiários. A maioria dos

129 Em 1961, dispositivos de rendimento mínimo tiveram início na Dinamarca. No ano seguinte, na Alemanha e em 1963 nos Países Baixos. No Reino Unido, um sistema criado na década de 40 apresenta características de rendimento mínimo a partir dos anos 60. O rendimento mínimo (minimex) é criado na Bélgica em 1974 e na França a RMI aparece em 1988, e na Espanha também no fim dos anos oitenta. As políticas de rendimento mínimo na Europa apresentam uma diversidade de arranjos, critérios e procedimentos que decorrem de distintas visões sobre pobreza (na forma de pobreza absoluta, pobreza relativa e exclusão social) e também de distintos contextos e constrangimentos no âmbito das instituições sociais e políticas. A diversidade entre os tipos de políticas de rendimento mínimo não existe apenas entre os países, mas também no interior dos países, variando quanto ao público, quanto ao valor das prestações, aos critérios de elegibilidade, tempo de duração, dentre outros fatores (Guibentif e Bouget, 1997).

129

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programas exige verificação de carências, focaliza a complementação do que falta para o

alcance de determinado piso ou teto e exige o cumprimento de certas condicionalidades

para a manutenção do benefício. As políticas de rendimento mínimo na Europa, embora

diversificadas, distanciam-se das políticas de alocação universal pautadas pela

incondicionalidade. A incondicionalidade não é a tônica das experiências em curso, que

contam sempre com algum tipo de condição a cumprir por parte do beneficiário, inclusive

porque isso indicaria o envolvimento do beneficiário com o seu processo de inserção.

Os dispositivos de garantia de rendimentos ou de mínimos sociais, em que pese a

diversidade empírica, têm uma dimensão que extrapola a questão da renda e vincula-se

com a reorganização da proteção social. Nesse sentido, esses dispositivos de rendimento

mínimo têm como vocação

“responder a estas três dimensões da exclusão social (econômica, política e social): a alocação diferencial garante um mínimo de recursos e de consumo; o facto de o rendimento mínimo integrar-se na proteção social pretende evitar que possa ser percepcionado (sic) como uma espécie de esmola, e garantir que seja aplicado efectivamente como um direito entre outros direitos sociais; finalmente, o rendimento mínimo opera ao nível do laço social, profissional e familiar, através quer dos programas de inserção profissional, quer das acções mais localizadas ao nível da célula familiar” (Guibentif e Bouget, 1997, pp. 54,55).

No debate sobre as políticas de rendimento mínimo, não se discute apenas a renda, mas

também a natureza e a intensidade das relações que se estabelecem com outros

componentes do sistema de proteção (políticas de seguro social e de assistência social),

configurando experiências distintas nos diversos países da Europa. Pode-se identificar,

segundo um importante estudo feito sobre o tema do rendimento mínimo na Europa130, três

modelos de rendimento mínimo: rendimento mínimo garantido, imposto negativo e

alocação universal (Guibentif e Bouget, 1997, pp. 55,56). O primeiro (guaranteed

minimum income) é uma alocação diferencial que impede que os rendimentos caiam abaixo

de um patamar considerado mínimo. Seria um dispositivo que, em tese, atuaria como um

desincentivo ao trabalho, pois qualquer ganho com o trabalho seria debitado do valor do

benefício. O imposto negativo (negative income tax) também é uma alocação diferencial,

mas que busca incentivar a procura pelo trabalho, na medida em que o rendimento aferido

130 Trata-se de um livro produzido por Pierre Guibentif e Denis Bouget, em 1997, a partir das análises feitas para a produção do Seminário Europeu sobre o Rendimento Mínimo, também conhecido como Seminário de Lisboa, promovido pela União das Mutualidades Portuguesas com o apoio da Comunidade Européia e do Ministério da Solidariedade e Segurança Social, em 1996. Esse seminário buscou possibilitar o debate e a reflexão entre agentes governamentais dos diversos países e acadêmicos em torno dos dispositivos de rendimento mínimo nos países da Europa.

130

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pelo trabalho implica um aumento no valor do beneficio recebido. A alocação universal

(basic income), por sua vez, consiste em um montante igual para todos, de forma

independente dos rendimentos do trabalho, sendo essa a proposta – parece que ainda não

implementada em nenhum lugar - defendida por Lo Vuolo.

Um elemento básico nos dispositivos de rendimento mínimo nos diferentes países é que se

trata de uma alocação diferencial, o que significa que o valor do beneficio é definido a

partir da diferença entre o rendimento familiar per capita e um montante considerado

mínimo e, em alguns casos, levando-se em conta também o patrimônio do requerente

(Guibentif e Bouget, 1997, p. 22). Em todas as legislações analisadas pelo estudo em

questão, o foco reside nas condições materiais do requerente, existindo variações entre os

países quanto ao grau de discricionaridade dos serviços competentes sobre a inclusão ou

não do requerente no rol dos beneficiários e de sua permanência. Os dispositivos de

rendimento mínimo são dirigidos para combater a pobreza e, como prestação subsidiária,

articulam-se diferentemente, nos diversos países, com outras prestações sociais e também

quanto ao peso dado aos mecanismos de solidariedade familiar (Guibentif e Bouget, 1997,

pp. 19-21)131.

Na análise das legislações sobre as políticas de rendimento mínimo na Europa, os autores

(Guibentif e Bouget, 1997) identificam dois grandes grupos de países que enfatizam

dimensões distintas da problemática da pobreza: um salienta a relação da ausência de renda

com a ausência de emprego (como por exemplo a Alemanha, Luxemburgo, Áustria,

Espanha – algumas regiões, Irlanda, Holanda, Finlândia, Suécia, Reino Unido), e outro

grupo situa o problema da ausência de recursos com a exclusão social, em uma abordagem

mais ampla do que a ausência de emprego (França, Portugal, Bélgica e algumas regiões da

Espanha) (Guibentif e Bouget, 1997, pp. 14,15). No primeiro grupo, a disponibilidade para

aceitar emprego é uma das condições de acesso aos benefícios, o que é revelador dessa

preocupação. Quanto às legislações que se sustentam na perspectiva da exclusão social,

dois elementos são básicos: a) as medidas de reinserção não se concentram unicamente na

dimensão do emprego e b) as medidas se baseiam em um contrato estabelecido entre o

131 Também as experiências variam quanto aos critérios de determinação do montante de base para o rendimento e as modificações que podem ser feitas nesse valor em razão da composição da família (Guibentif e Bouget, 1997, pp. 26,27) a duração da prestação (Guibentif e Bouget, 1997, pp. 31, 32) ou o papel de cada nível federativo quanto ao financiamento das medidas de rendimento mínimo (Guibentif e Bouget,1997, pp. 37-39). Quanto à comparação em relação ao número de beneficiários dos rendimentos mínimos nos diferentes países, bem como a evolução da despesa com esse dispositivo ao longo do tempo, os autores apresentam uma série de constrangimentos e dificuldades estatísticas que tornam temerária uma comparação dos países quanto a esses pontos (Guibentif e Bouget, 1997, pp. 45-49).

131

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requerente/beneficiário e a coletividade e não é algo que remete exclusivamente ao

interessado, como no caso anterior (Guibentif e Bouget, 1997, p.p. 16,17).

Diferentemente dos rendimentos mínimos, a renda cidadã132, ou alocação universal, por

sua vez, não requer verificação de carências, porque é paga a todos. É garantida ex ante e

de forma preventiva, é um piso sobre o qual as pessoas podem acumular qualquer renda e

dessa forma evitam tanto a armadilha da pobreza como o estigma133. Essa renda

constituiria o meio mais direto para possibilitar a inserção social, em um contexto onde o

trabalho não opera mais como o elemento principal de vinculação e posicionamento social.

A suposição básica é de que os cidadãos desenvolvem ações socialmente úteis e que

merecem ser pagos com parte da riqueza criada socialmente, ainda que tais ações ocorram

fora do âmbito do mercado (Lo Vuolo, 2004, p. 27). Nas palavras do autor,

“no se requiere trabajar (como es el caso del salário), ser declarado incapaz (jubilación por invalidez), haber contribuído com uma prima de seguro (jubilación ordinária, obras sociales), demonstrar que se está desocupado (seguro de desempleo) o ser pobre (programas asistenciales focalizados)” (Lo Vuolo, 2004, p. 21).

As alterações necessárias para implementar políticas efetivas de enfrentamento da pobreza

não se reduzem à escolha entre políticas de transferência de renda mais ou menos

universais, embora essa seja uma questão que tem monopolizado a discussão sobre

estratégias de intervenção, como pode ser visto pelo extenso debate sobre rendimento

mínimo de inserção e renda de cidadania na Europa. Ao se examinar essas alternativas

(renda mínima, renda de cidadania), está-se considerando apenas um elemento, necessário,

mas de toda forma não suficiente, para enfrentar de forma efetiva situações de pobreza

extrema. Essa quantia, calculada como suficiente para possibilitar um certo padrão mínimo

de consumo das famílias pode de fato fazer a diferença entre ter ou não ter a refeição para

o dia. Mas uma intervenção estratégica contra a pobreza requer outras ações, bem mais

complexas e articuladas.

No Brasil, o Bolsa Família é um programa de alocação diferencial de renda, pautado por

condicionalidades e orientado para atender ao conjunto das 11,2 milhões de famílias em 132 Também conhecida como renda básica (ingreso básico), salário do cidadão (citizen´s wage), dividendo social (social dividend), subsídio universal, renda social (social income, revenu social) (Lo Vuolo, 2004, p. 21). 133 A armadilha da pobreza é decorrente do desincentivo dos beneficiários em buscar outras fontes de renda, uma vez que isso implicaria o não acesso ao benefício. O estigma relaciona-se aos efeitos perversos advindos da verificação de carência. Tanto o desincentivo ao trabalho quanto o estigma são elementos comuns em alternativas de repasse de renda tradicionais (Lo Vuolo, 1999, p. 250). Para esse autor e para os defensores de uma política de renda de cidadania, uma política que marca ou registra o pobre não é uma política de combate à exclusão, mas a consolida, no final das contas.

132

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situação de pobreza e indigência134. É um programa federal executado com a participação

dos municípios e que supõe o desenvolvimento de ações e programas complementares por

parte do poder municipal (Cohn, 2004, p. 10). A aposta do Programa é buscar

“uma articulação horizontalizada na área social entre as distintas esferas de governo, buscando-se sempre ter como prioridade o público alvo dos programas de transferência como foco prioritário de articulação dos programas que vêm sendo implementados na área social, independentemente da origem da iniciativa por esfera da federação” (Cohn, 2004, p. 10).

Não se trata de um programa que tenha a transferência de renda como um fim em si

mesmo, mas que supõe a inserção dessa estratégia em um conjunto mais amplo de ações

voltadas para um efetivo desenvolvimento social no país, conforme afirma Cohn (2004, p.

10). Trata-se de uma aposta e ainda de uma promessa, cuja viabilidade está condicionada,

dentre outros fatores, por uma coordenação mais articulada entre os diversos entes

federativos, por uma articulação maior entre políticas econômicas e sociais e por uma visão

mais estratégica, por parte dos diversos setores das políticas públicas, sobre a pobreza e a

questão social que ela manifesta (Cohn, 2004).

Conforme discutido no primeiro capítulo, a problemática da pobreza e, principalmente, da

pobreza crônica, exige uma atenção a outras dimensões que não a renda. Para a pobreza

crônica, sobretudo, políticas de transferência de renda são claramente insuficientes, embora

necessárias. Não é mais possível, dado o conteúdo e a abrangência do debate atual sobre o

tema da pobreza, principalmente crônica, insistir na renda como categoria suficiente para

caracterizar de forma apropriada situações de privações intensas, nas quais a ausência ou a

precariedade de renda é apenas um componente, ainda que seja um componente central.

Considerando a possibilidade de redução da pobreza crônica pela via da transferência de

renda algumas questões são pertinentes de serem avaliadas: qual é o impacto desses

programas, centrados na renda, na redução da pobreza crônica? Para medir esse impacto,

quais devem ser as dimensões, variáveis e indicadores escolhidos? Reconhecendo as

múltiplas formas pelas quais a pobreza se expressa, como a renda contribui para alterar

outras dimensões da vida? É suficiente transferir renda? Se sim, em que proporção e por

quanto tempo? Estudos sobre esses pontos ainda são incipientes, embora sejam necessários

134 As famílias com renda per capita de até R$ 50,00 recebem um valor fixo de R$ 50,00 além de R$15,00 por criança; famílias com renda per capita entre R$ 50,00 e R$ 100,00 recebem apenas o valor variável por criança (Cohn, 2004, p. 9). De acordo com os dados do site, de agosto de 2005, o Ministério do Desenvolvimento Social investe mais de R$ 474 milhões, por mês, no programa.

133

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e mesmo centrais para nortear o desenvolvimento mais consistente de estratégias de

enfrentamento e superação.

3.4 Combinando universalismo e seletividade: os difíceis termos da equação

Entender as posições metateóricas, os substratos teóricos dos modelos, suas implicações e

limites constitui um exercício necessário para pensar alternativas de inclusão social.

Novamente aqui fica clara a distinção entre as duas grandes matrizes que organizam os

termos do debate sobre modelos e alternativas de proteção social. Por um lado, tem-se a

perspectiva da reforma do setor social pelo viés liberal, que enfatiza os efeitos benéficos da

focalização e descentralização, ao possibilitarem maior eficiência, equidade e participação

dos beneficiários na gestão dos programas135. A segunda perspectiva defende os princípios

de incorporação universalista e de forte institucionalização, passando muitas vezes ao largo

das dificuldades e problemas que tais modelos de corte mais universal enfrentam no

contexto atual (Filgueira, 1999, p. 78).

Como visto no início do capítulo, a tendência dominante na América Latina e Brasil

quanto à produção das políticas sociais alinha-se com um modelo residual de proteção

social, com as garantias universais estabelecidas no plano normativo e legal, mas ainda

pouco efetivas em seu processo de implementação. Os desenhos das políticas de proteção,

nesses contextos, conferem prioridade para estratégias de focalização e seletividade, ainda

que as determinações constitucionais apontem para maior universalismo na provisão dos

serviços. O argumento que justifica e legitima a focalização136 nas políticas sociais advém

da possibilidade de maior eficiência do gasto social, que poderia chegar de forma mais

efetiva aos setores mais pobres e necessitados de proteção social.

Entretanto, essa estratégia apresenta muitos efeitos perversos que não são irrelevantes,

principalmente se levarmos em conta as dimensões relacionais e o papel das dimensões

135 Ao lançar luz sobre os pontos potencialmente positivos pode-se deixar na sombra também os efeitos negativos e perversos das mudanças em curso. Dentre elas, a apropriação clientelista de programas focalizados, por exemplo, a depender das configurações políticas e da organização social local. Programas focalizados limitam também a interação entre classes e grupos sociais, alimentando o estigma e diminuindo o capital político, ao destruir as coalizões entre as classes que sustentavam a existência dos bens coletivos. Basicamente os modelos de cunho liberal se apóiam fortemente no mercado e na sua capacidade de atuar como elemento de incorporação social (Filgueira, 1999, p. 78). 136 Nas políticas focalizadas, segundo Raczynski (1999), as categorias para as quais se destinam as ações são definidas a partir de critérios de necessidades, pobreza ou risco. Como mecanismos operacionais nos quais a focalização apóia-se tem-se: a) focalização por demanda, na qual se parte da identificação de indivíduos e domicílios pobres; b) focalização por oferta, que parte de estabelecimentos que já desenvolvem serviços de natureza focalizada e c) focalização geográfica, que delimita territórios onde se supõe ter uma alta concentração de pessoas que cumprem os critérios de acesso (Raczynski, 1999).

134

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psico-sociais envolvidas na produção e reprodução da pobreza. Discriminar pobres e não

pobres pela renda pode ter como conseqüências perversas o crescimento do estigma, a

dependência, a diluição do protagonismo e da criatividade dos usuários.

Um ponto central da caracterização dos modelos mais ou menos residuais de proteção

social é, portanto, o da focalização. Ao priorizar políticas de transferência de renda

extremamente focalizadas e baseadas na verificação de carências, tem-se a presença da

velha instituição do certificado da pobreza, como lembra Fanfani, com todas as

conseqüências que essa perspectiva acarreta, de gerar uma discriminação explícita e

formal. Outro efeito perverso correlato refere-se ao fato de que, ao se adotar políticas

muito focalizadas, estas minam as chances de sustentabilidade e de garantia de qualidade

dos serviços. Isso porque ao focalizarem exclusivamente os mais pobres, excluem setores

não-pobres, camadas médias, que possuem maior poder político e voz, o que reduz a base

de sustentação, pois as políticas se apoiariam em grupos com pouca capacidade de

mobilização e de pressão. Com essa estratégia, não existem pontes de comunicação ou de

construção coletiva entre os dois grupos, o que gera segmentação e dualidade social e

indisposição para o financiamento do sistema por parte dos não pobres (Molina, 2003, p.

14). A crítica central à focalização reside precisamente no potencial intrínseco de

estigmatização que essa estratégia espelha, minando as possibilidades reais de construção

de cidadania a partir de uma relação de estigma, dependência e identidade negativa. Esse

ponto, por si só, favorece a adoção de uma perspectiva orientada para diminuir a

“segmentação institucional” do programa em relação a outros de corte universal e enfatizar

a ótica da solidariedade e do direito e não da caridade, filantropia ou tutela (Filgueira,

1999, p. 102). O ponto aqui é que não são irrisórios os efeitos estigmatizantes e de

“etiquetamento” que essas estratégias acarretam, produzindo “cidadãos de segunda classe”,

que se encontram permanentemente ameaçados em sua dignidade (Fanfani, 1991, p. 125).

O modelo de proteção para pobres não favorece a participação, a autonomia e o

empoderamento, e dessa forma fortalece a cidadania invertida, que não gera deveres e

responsabilidades, mas dependência (Fleury, apud Molina, 2003, p. 15; Filgueira, 1999, p.

102).

As políticas de corte universais, por sua vez, favorecem as bases de solidariedade

inter classes e esse é um ponto relevante e com conseqüências importantes para o

desenho de estratégias de intervenção.

135

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Outro ponto permite reforçar a justificativa para a adoção de modelos mais amplos de

proteção. Existem evidências (Neubourg, Castonguay e Roelen, 2005)137 de que os

modelos mais universalistas de proteção social podem estar mais fortemente associados

com menor pobreza e desigualdade e essa constatação pode servir para orientar o caminho

que se pretende seguir na América Latina, que sofre os constrangimentos dos processos de

globalização e apresenta condições mais débeis para enfrentá-los. Embora seja difícil

estabelecer, sem ambigüidades, relações de causa e efeito, os autores sustentam a

correlação entre sistemas de proteção mais universalistas e a existência de menor nível de

pobreza nos países que os adotam. Para além das disputas programáticas, valorativas e

meta-teóricas, têm-se evidências de que os sistemas de proteção social da Europa

Continental, com investimentos altos, estão associados a menos pobreza, absoluta e

relativa, e a menor desigualdade. As evidências apontam que o gasto social nesses

países reduz a proporção de pessoas na pobreza, seja esta medida em termos relativos

ou absolutos. Os sistemas mais universalistas de proteção social são claramente

exitosos na redução da pobreza, principalmente se comparados com sistemas de

matriz liberal ou residual138.

Embora as evidências do impacto positivo dos sistemas de proteção mais amplos sobre a

pobreza estejam presentes no debate, a decisão de se adotar modelos de proteção social

mais universalistas ou residuais é prisioneira de interesses e condições que extrapolam o

reconhecimento de sua eficácia. A magnitude do problema, os recursos existentes, os

137 Não se trata aqui de recuperar essas evidências ou avaliar a sua consistência de forma a permitir confirmar ou não a existência de um nexo causal entre políticas universais e maior redução da pobreza e desigualdade, mas de apontar que essa é uma afirmação que supostamente se mantém, segundo os autores examinados (Neubourg, Castonguay e Roelen, 2005). 138 Os Estados Unidos encontram-se na posição de maior pobreza e menor gasto social, ao contrário de países como Dinamarca ou Suécia. Evidências também demonstram que, além de mais pessoas serem pobres nos Estados Unidos e no Reino Unido, quando comparados com países da Europa Continental, a duração da situação de pobreza para os americanos é maior. Quando se observa a pobreza por faixa etária nos diferentes países, essas distinções ficam ainda mais evidentes. Na Suécia e na Bélgica, por exemplo, menos de 5% das crianças vivem na pobreza. Esse número sobe para 10% na França e Alemanha e chega a 20% na Itália, Estados Unidos ou Reino Unido (Neubourg, Castonguay e Roelen, 2005, p.5). Do ponto de vista da estrutura de desigualdade, Suécia, Bélgica, França, Alemanha e Holanda apresentam uma desigualdade menor do que a existente nos países anglo-saxões. Os autores chamam atenção para um aspecto interessante na análise de taxas de pobreza entre países. Buscando captar o impacto do gasto na redução da pobreza, as simulações apontam que, embora Suécia seja um dos países de menor pobreza e desigualdade após as transferências, encontra-se em uma situação de “alta” taxa de pobreza antes das transferências; ao contrário dos Estados Unidos, por exemplo, cuja porcentagem de pobres antes das transferências é mais baixa do que em qualquer país europeu. A proteção social de caráter universalista dos países da Europa Continental contribui para alterar, a partir dos impostos e benefícios, situações de grande desigualdade antes das transferências:“Em realidade, ao comparar as taxas de pobreza antes e depois dos impostos e transferências, fica claro que os impostos diretos e as transferências sociais contribuem bastante para o alívio da pobreza em todos os países, mas nos Estados Unidos menos que nos outros” (Neubourg, Castonguay e Roelen, 2005, p.8).

136

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grupos e interesses em jogo condicionam essa escolha, que não se faz com base

exclusivamente nas virtudes ou na efetividade do modelo de intervenção.

A combinação virtuosa de políticas distintas, universais e focalizadas, desenhadas

estrategicamente, orientadas para o futuro e também para provocar profundas alterações no

tratamento da questão social, é o que decorre do exame da literatura sobre o tema das

políticas de combate à pobreza. Em outros termos, R. Carneiro (2005) aponta, de forma

incisiva, para o mesmo conjunto de preocupações:

“sem desconhecer ou negligenciar os ganhos potencializados por ações focalizadas, iniciativas com tal configuração não são suficientes para lidar com as desigualdades, à medida que não incidem sobre as causas estruturais do fenômeno e sua reprodução no tempo. Indo direto ao ponto, não bastam medidas de cunho compensatório voltadas para amenizar os efeitos perversos que acometem grupos marginalizados ou perdedores na dinâmica competitiva de mercado. Por mais meritórios que sejam os resultados obtidos, programas ou projetos focalizados que não estejam articulados a políticas sociais de orientação universalista dificilmente potencializam transformações substantivas na realidade com a qual interagem, prestando-se mais àquilo que, numa linguagem coloquial, é tratado como ´enxugar gelo´” (R. Carneiro, 2005, p. 8)

Combater a pobreza é, contudo, uma meta antes de tudo política e demanda o compromisso

da sociedade como um todo. Esse é um dos pontos destacados por Raczynski, Lo Vuolo,

Fanfani, Filgueira. Sem essa alteração de fundo ou perspectiva no horizonte, que acena

para um ideário mais republicano que liberal, as formas de enfrentamento da pobreza

permanecerão pouco estratégicas, configurando uma administração da pobreza e não

efetivamente orientadas para sua superação.

Entretanto é importante salientar, como afirma de forma lúcida e bastante arguta R.

Carneiro, que as respostas ao problema da exclusão não apresentam o mesmo significado

em países desenvolvidos e em desenvolvimento. Embora extenso, vale a pena citar a

passagem na qual o autor sintetiza seu argumento:

“Evitar a exclusão, prevenindo ou minimizando sua manifestação, é uma realidade que tem mais a ver com os países capitalistas desenvolvidos, cujas políticas de bem estar apresentam conteúdos abrangentes e orientações universalistas. Trata-se, mais especificamente, de bloquear a retroação de direitos que se supunham consolidados e de assegurar o efetivo direito a ter direitos, impedindo a emergência ou aprofundamento de uma situação de dualidade no tocante às condições de acesso da população à seguridade social e aos serviços provisionados pelo Estado, típica de países periféricos, como o Brasil. Promover a inclusão, por sua vez, representa uma realidade mais próxima dos países periféricos, com políticas de bem estar restritas em termos de conteúdo e de cobertura. Em países como o Brasil, vale lembrar, os excluídos não são residuais, mas parte importante da população, nem temporários, mas estruturais, refletindo direitos que são instituídos e apenas parcial ou seletivamente assegurados, bem como déficits expressivos no direito a ter direitos, num processo que segrega e reifica a pobreza, para reproduzi-la de forma ampliada através do acúmulo de precariedades....(nos países capitalistas avançados) .... o risco principal é o da

137

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exclusão, com a segregação ou marginalização vindo de encontro aos princípios estabelecidos de organização da solidariedade e da integração na sociedade, o que abre, ou pode abrir, fraturas importantes no tecido social...(nos países em desenvolvimento)... o risco principal é a ocorrência de uma segmentação ainda maior num tecido social institucionalmente frágil” (R. Carneiro, 2005, p. 7).

Um ponto para o qual as considerações acima chamam a atenção refere-se à necessidade de

condições institucionais adequadas para a produção de políticas efetivas de enfrentamento

da pobreza, que sejam suficientemente amplas para garantir direitos de forma universal e,

ao mesmo tempo, suficientemente específicas para fornecer respostas a demandas

heterogêneas. A adoção do enfoque da exclusão tende a considerar com ênfase a

perspectiva dos direitos e da solidariedade. Mas direitos, sem condições de efetivação, são

como prescrições inócuas. Para viabilizar direitos, é necessário desenvolver capacidades

institucionais. As opções políticas no campo da proteção social devem ser, em uma

perspectiva mais normativa, porosas às necessidades e realidades dos indivíduos,

domicílios e comunidades. A implementação de estratégias de proteção social depende de

capacidade institucional e de governo, e recursos humanos, financeiros e físicos. Portanto,

essa condição traduz-se em institucionalidades com estruturas relativamente estáveis de

governança e implementação. O desafio de fortalecer a capacidade dos governos e das

políticas públicas para os pobres em situação de pobreza crônica, ou os mais pobres, requer

uma capacidade institucional mais sofisticada e meios mais robustos para identificar e

atender os que demandam uma atenção especial (Norton, Conway, Foster, 2001, pp.

15,16).

Ao conjunto de questões relativas aos conteúdos das políticas, como visto nesse capítulo,

somam-se outras, relativas a alterações no campo da gestão e das formas de

operacionalização da ação pública, das relações entre os níveis de governo e entre o

governo e sociedade. Mudanças na forma de produção das políticas combinam-se com as

alterações substantivas, relativas ao conteúdo das políticas de proteção social e,

principalmente, das políticas de combate à pobreza. O próximo capítulo mapeia os

principais pontos de ruptura e inflexão no âmbito da gestão pública, com foco nas

alterações que são mais significativas para o campo das estratégias de superação da

pobreza e exclusão.

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CAPÍTULO 4 - MUDANÇAS NO CAMPO DA PRODUÇÃO DAS POLÍTICAS DE PROTEÇÃO SOCIAL Ao longo das duas últimas décadas importantes redefinições têm sido feitas nos sistemas

de proteção sociais. Além das mudanças substantivas nas políticas setoriais, que envolvem

alterações na cobertura e nos critérios de acesso, nos tipos de políticas desenvolvidas,

discutidas no capítulo anterior, ocorrem mudanças no âmbito operativo das políticas, que

marcam a passagem de uma gestão pública tradicional para uma gestão pautada por outros

vetores, tais como flexibilidade, participação, pluralismo, integração. Além disso, observa-

se alterações no âmbito territorial, com a perda do monopólio dos estados-nação no

desenho e provisão de políticas, o que remete à emergência dos planos de ação local e

transnacional (Brugué e Gomà, 1998, pp. 41-42). Tal movimento permite afirmar uma

dimensão local do bem estar social, com o fortalecimento dos governos locais, que

expandem sua agenda e são chamados a desempenhar papéis mais estratégicos.

As questões de fortalecimento do âmbito local relacionam-se com as mudanças no

contexto atual - “contexto da segunda modernidade”139 – que envolvem alterações na

ordem social, econômica, política, cultural e institucional e que afetam, inclusive, a forma

de organização da produção de políticas sociais. Os desafios de construção de uma

institucionalidade de proteção social adequada para o enfrentamento estratégico da pobreza

não se processam em um vazio histórico ou social.

Ricard Gomà (2004) identifica três eixos de alterações, que envolvem mudanças

socioeconômicas e sócio-culturais, exigindo, mas ao mesmo tempo impondo

constrangimentos à ação do Estado e do setor público. Os vetores são: a) o vetor da

complexidade, que sinaliza a passagem de uma sociedade fortemente estruturada em

classes para uma sociedade cruzada por outros tipos de desigualdade (etnia, religião,

gênero etc.); b) o vetor da subjetivação, que marca a alteração de uma sociedade

estruturada, de caráter mais previsível e conformada por amplos coletivos com interesses e

valores padronizados para uma sociedade de riscos e incertezas e na qual as

individualidades apresentam menos conexões com estruturas coletivas e c) o vetor da 139 Este termo – segunda modernidade – é usado na literatura para designar processos contemporâneos que são abordados via o tema da globalização, para designar um momento histórico com diferenças substantivas e radicais em relação ao contexto da primeira modernidade, que instituiu o modo de produção industrial, capitalista. Alguns autores – Anthony Giddens, Ulrich Beck – usam outros termos (como modernidade reflexiva) para identificar também essa transição; enquanto outros remetem ao tema da pós-modernidade. De toda forma, tem-se marcado aí o caráter específico do contexto atual em relação ao momento anterior, da modernidade tal como a conhecemos.

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exclusão, que expressa a passagem de uma sociedade de relações verticalizadas e de

subordinação para uma sociedade polarizada segundo uma outra lógica, em termos de

dentro e fora (Gomà, 2004, p. 15). Tais vetores implicam mudanças no campo das políticas

e da conformação de estruturas de bem estar, conforme sintetizado no quadro abaixo.

Quadro 8 - Vetores e diretrizes de políticas no contexto da segunda modernidade,

segundo R. Gomà

Vetores Implicações Diretrizes e Políticas

Complexidade Redefinição conceitual e operativa das políticas sociais

Integralidade na formulação e transversalidade como lógica de implementação das políticas: políticas transversais (capazes de integrar a complexidade)

Subjetivação Redefinição dos aspectos relacionais das políticas de bem estar

Oportunidades de participação e ampliação da dimensão deliberativa e comunitária (rede de compromissos pessoais). Políticas participativas (capazes de assumir processos de subjetivação)

Exclusão Redefinição da dimensão substantiva das políticas

Nova agenda de inclusão orientada a debilitar fatores geradores de marginalização e de inserção multidimensional. Políticas de inclusão (capazes de promover novas lógicas de coesão e redistribuição)

Fonte: Elaboração própria a partir do texto de Gomà, 2004, p. 15.

Transversalidade, participação e o foco na inclusão são os elementos das políticas de bem-

estar que decorrem das mudanças no contexto da segunda modernidade, como formulado

por Gomà (2004). Na fase de profundas alterações dos sistemas de bem estar, ganha

evidência o papel dos governos locais, entendidos como sendo mais capazes de

desenvolver políticas flexíveis, territorializadas, com componentes que enfatizam a

dimensão pessoal e comunitária das políticas de proteção social, requeridas para responder

às transformações em curso (UAB, 1998, p. 21). A maior capacidade do nível local para

identificar necessidades e fornecer respostas mais moldadas a elas constitui, a nosso ver, o

principal argumento em direção a políticas com ênfase na dimensão local, em uma

perspectiva de governo de proximidade, no sentido mais direto de ser mais próximo e mais

sensível às necessidades identificadas, para formular respostas flexíveis e adaptáveis a

situações heterogêneas e a demandas mais específicas.

Na primeira parte do capítulo são mapeados elementos da perspectiva emergente no campo

da gestão de políticas públicas, que enfatizam a politização da gestão, o fortalecimento dos

governos locais, a concepção de redes e governança, centrais no marco das políticas locais

de inclusão social. As políticas locais de inclusão social constituem o objeto da segunda

seção, examinadas a partir da modelagem das políticas de serviços pessoais, uma

formulação que busca exprimir a nova conformação das políticas de bem estar com base no

140

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âmbito local140. Na terceira parte, tem-se um exemplo de estratégia em curso no Chile que

utiliza uma perspectiva centrada em aspectos e dimensões também presentes nas políticas

de inclusão em curso na Europa, voltadas para um público em situação de maior

vulnerabilidade social.

4.1 Poder local e governança: elementos de inovação na gestão

Desde o pós-guerra, a autonomia local entra na agenda como forma de melhor realizar os

objetivos das políticas de proteção social. Dois argumentos são mobilizados para justificar

a valorização do âmbito local: um que se pauta pela perspectiva alocativa, e outro que

enfatiza a dimensão da accountability e controle público, em uma perspectiva que valoriza

a participação e ampliação e adensamento da prática democrática (Brasil, 2004). A noção

de governança local apresenta uma dimensão normativa, que agrega eficiência alocativa

com accountability, e delimita os contornos e as características centrais dos modelos de

cidades e de gestão local, que servem de referência e pautam a ação de governos locais

(Brasil, 2004), também no âmbito da proteção social.

Para dimensionar o alcance e a natureza das mudanças em curso na conformação de

sistemas de proteção social, Brugué e Gomà reconhecem dois modelos básicos em torno

dos quais se organiza, na Europa entre os anos 50 e 80, o papel dos municípios no sistema

de proteção141. Por um lado tem-se o modelo anglo-saxão e escandinavo, no qual os

140 Até onde pode-se perceber, a formulação de políticas de serviços pessoais é fruto de pesquisas e elaborações analíticas dos pesquisadores ligados à Universidade Autônoma de Barcelona (UAB) e do Centre d´Investigació, Formació i Assessorament (CIFA). O marco inicial dessa abordagem parece ter sido a publicação do Mapa de los Servicios Personales Locales: hacia um modelo integral, estratégico, comunitário y participativo, publicado por essas instituições e pela Diputació de Barcelona/Patronat Flor de Maig, em 1998. Trata-se de uma forma de organizar os serviços locais de proteção social que foi implantada em Barcelona e também em outras regiões da Espanha. 141 Analisando a questão do ponto de vista dos governos locais e não especificamente dos governos locais nas políticas de proteção social, Brugé e Gomà consideram a questão sob dois eixos: o localismo, contraposto à nacionalização; e a politização, contraposta ao gerencialismo. Por meio dessas categorias, os autores consideram duas tradições. A primeira é a tradição francesa e de outros países da Europa, nas quais os municípios contam com grande autonomia, segundo o princípio das competências gerais, “que se aplica a estos municípios proclama su potestad para desarrrollar todas aquellas actividades que, sin ir en contra de la ley, se destinen a la mejora o la promoción de su comunidad” (Brugué e Gomà, 1998, p. 16). A esse modelo se contrapõe o anglo-saxão, nos quais os municipios não têm autonomia, e aos quais não se delega poder, mas sim funções, conforme afirmam os autores. Esse último modelo foi adequado para a fase de vigência do estado de bem estar, que requeria grande capacidade executora dos municípios para provisão de bens e serviços; capacidade de ação e não de formulação. A tese que os autores desenvolvem apontam para uma substituição, por um lado, da tese da nacionalização pela do localismo e, por outro, pela substituição da tese da gerencialização pela tese da repolitização do nível local, analisando essa alteração substancial em três campos ou setores: no âmbito das políticas de proteção social, no campo da promoção econômica e na área de urbanismo. De acordo com a tese da nacionalização, o governo local seria irrelevante pelo fato de não apresentar autonomia decisória, recursos ou capacidades de atuação. De acordo com a tese da gerencialização, o governo local é irrelevante porque concentra-se em desenvolver tarefas gerenciais ou administrativas que o justificam (Brugué e Gomà, 1998, p. 17).

141

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municípios apresentam uma alta capacidade gerencial, grandes burocracias, sendo os

“braços executores” das políticas universais; contudo, eles têm baixa autonomia e

capacidade política, sendo concebidos como “agências territoriais do estado” central. Esse

modelo, denominado administração municipal de bem estar, contrapõe-se ao modelo de

governo local residual, próprio dos países continentais, que apresenta alta capacidade

política para formular intervenções comunitárias e redes de assistência social mas que fica,

segundo os autores, à margem dos grandes serviços do estado de bem estar social. Os

governos locais, no segundo modelo, apresentam baixa capacidade de gestão e alta

capacidade política, sendo que a definição e a gestão do que é significativo em termos de

proteção (transferências no âmbito da seguridade social) são implementadas nos níveis

acima do nível local. Modelos de governo local residual (baixa capacidade gerencial e alta

capacidade política) se contrapõem a modelos de administração local de bem-estar (alta

capacidade gerencial e baixa capacidade política) e é a partir dessa distinção que os autores

analisam as tendências de mudanças na provisão local de bem estar social (Brugué e

Gomà, 1998, pp. 40,41).

Os movimentos dos diversos países da Europa sinalizam uma maior ou menor proximidade

com cada um desses tipos ideais de relações entre nível local e o nível central da decisão

política e da ação pública. No Brasil, as competências do Estado federativo impõem

condições e limites de atuação aos municípios, que envolvem aspectos como o

financiamento e a arquitetura legal e institucional das políticas, apesar de os municiípios

gozarem de autonomia como entes federados. Independente das diferenças registradas, é

importante destacar o papel crescente dos municípios na provisão dos serviços sociais,

sendo que esses municípios enfrentam sérias dificuldades de manter políticas estruturadas,

de corte universal, com a cobertura e com o escopo necessário para conter processos de

pobreza e exclusão.

Uma primeira aproximação desse tema é pela via da concepção de governança. O termo,

embora não seja específico à literatura de políticas de combate à pobreza, introduz um

componente institucional importante para a discussão das políticas de inclusão. A

concepção de governança é entendida aqui sob a dupla perspectiva da repolitização do

nível local e da constituição de redes horizontais e multiníveis (Blanco e Gomà, 2003).

O reconhecimento da complexidade, da participação e de redes plurais e a emergência de

novos papéis, relações e instrumentos do poder público constituem a base do termo

142

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governança, que diz respeito, de forma geral, à “capacidade para afrontar nuevas

temáticas y satisfacer nuevas expectativas”. Essa noção remete à “profundización

democrática en clave más ciudadana y participativa” (Blanco e Gomà, 2003, p. 22).

Governança refere-se tanto à existência de “espaços locais politizados” quanto à gestão de

“redes participativas”, horizontais e com múltiplos níveis (Brugué, Gomà, Subirats,

2002)142.

Para Blanco e Gomá (2003), flexibilidade, coordenação e transversalidade constituem os

elementos enfatizados nesse modelo de gestão, com conseqüências na forma do Estado

atuar também no campo da proteção social. Nesse contexto de mudanças143, a valorização

da proximidade, entendida no mesmo registro do fortalecimento do âmbito local, pode

corresponder a uma gestão pública mais próxima dos cidadãos e emerge como locus mais

adequado para lidar com a diversidade de situações e onde é possível desenvolver novas

dinâmicas de participação nos processos de governo.

O espaço local tem sido apontado como locus no qual a inovação nas políticas pode surgir,

a partir da interação de esforços entre um amplo conjunto de atores da sociedade civil e do 142 Em uma abordagem menos “pós-moderna”, tem-se uma visão de governança entendida como capacidade de gestão, um atributo do Estado. Genericamente definido como “capacidade de ação do Estado na implementação das políticas públicas e na consecução das metas coletivas” (Diniz,1998, p.13), o conceito de governança apresentaria três dimensões fundamentais. A primeira diz respeito à capacidade de comando e direção do Estado, tanto interna quanto externamente, o que significa não só este assumir a direção efetiva do processo de produção de políticas como também a definição e ordenamento de prioridades, garantindo a continuidade das políticas ao longo do tempo. A segunda dimensão, complementar à primeira, diz respeito à capacidade de coordenação do Estado, que se refere à integração necessária entre as diferentes áreas do governo, visando garantir a coerência e a consistência da política governamental e também o equilíbrio entre políticas de maior alcance e abrangência e políticas mais setorializadas e focalizadas. Uma dimensão distinta da capacidade de coordenação envolveria também a capacidade de agregar politicamente os diversos interesses, incluindo a administração dos conflitos e a organização das formas de cooperação entre interesses e visões diversos. A última dimensão é a capacidade de implementação. Esta se refere à capacidade de mobilizar os recursos organizacionais, financeiros e políticos necessários à execução das decisões governamentais, referindo-se à disposição e à capacidade de criação de instrumentos e de condições operacionais satisfatórias para a viabilização das ações (Diniz,1995, pp. 401-403; Diniz,1996, p.17; Diniz,1998, p.16). Portanto, o aumento da eficácia da ação estatal não depende apenas de aspectos técnicos e administrativos, mas também envolve a dimensão política das atividades governamentais. O sucesso das políticas governamentais demanda algo mais que recursos institucionais e financeiros: requer a mobilização dos meios políticos de execução. Isso envolve a preocupação com a sustentação política das ações governamentais, a adesão de atores diversos na implementação das políticas; requer a ruptura com o insulamento burocrático dominante no estilo tecnocrático e a adoção de práticas cooperativas de gestão. Os requisitos contemplados pelo conceito de governança envolvem, necessariamente, a adoção de mecanismos e procedimentos que favoreçam não apenas a participação e a incorporação política e uma maior articulação entre Estado e sociedade, mas também que viabilizem o controle público da ação governamental (Clad,2000). 143 Nesse momento de transição, os limites entre as distintas perspectivas não são tão nítidos e não existe um solapamento total do governo tradicional para dar vazão a uma governança participativa e de proximidade. Tais perspectivas se sobrepõem na forma concreta dos governos atuarem, mas é importante aqui sinalizar uma tendência em curso, que enfatiza novas lógicas participativas e novas dinâmicas e modelos de gestão pautados pela transversalidade. Trata-se, como alguns autores assinalam, de um processo de mudança não apenas instrumental, formal ou organizativo, mas principalmente ético e cultural (Blanco e Gomà, 2003, p. 32).

143

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mercado, configurando novas ambiências favoráveis a modelos e práticas de governos

relacionais, de proximidade, pautados pelas diretrizes da participação, governança e

intersetorialidade, que ganham materialidade nas políticas de serviços pessoais e nas

metodologias de inserção ou incorporação social, em curso em algumas cidades da Europa

e América Latina. A idéia de “governo de proximidade” (Blanco e Gomà, 2003) acentua o

peso dos governos locais na formulação e provisão de bens e serviços sociais, e aponta

para a centralidade de processos participativos, tendência na Europa que encontra paralelo

nos movimentos recentes na América Latina e Brasil (Raczynski, 1999), também marcados

pelos processos de descentralização e de fortalecimento dos governos locais.

O ponto a ser ressaltado sobre o papel do âmbito local é que, no campo da produção

das políticas de inclusão, os governos locais apresentam tanto uma maior capacidade

de diagnosticar e captar as demandas e necessidades que se encontram cada vez mais

heterogêneas, múltiplas e fragmentadas quanto uma maior capacidade de fornecer

respostas mais adequadas a elas, a partir da flexibilização na provisão dos bens e

serviços (Brugué e Gomà, 1998, pp. 43, 44). Trata-se, sobretudo, de uma aposta e de uma

expectativa de que os governos locais possam de fato desempenhar esse papel estratégico,

dada a centralidade que têm para um adequado diagnóstico dos problemas, de sua

legitimação e para a proposição de ações mais adequadas às realidades e demandas locais.

No âmbito local é mais factível a atuação integral sobre os problemas identificados e torna-

se mais viável a criação de vínculos e uma participação efetiva dos cidadãos no

desenvolvimento das políticas. O descolamento entre as políticas de bem estar

desenvolvidas desde o âmbito central em relação às demandas efetivamente existentes no

nível local, diagnóstico comum nas análises sobre a crise do Estado de Bem Estar, trouxe a

necessidade de um contato mais direto com a realidade cotidiana (UAB, 1998, p. 26). Não

se trata, ao afirmar a centralidade do nível local, de afirmar a irrelevância do nível central

na provisão de bens e serviços de proteção social, mas de salientar que cabe a cada nível de

governo um aporte específico na produção das políticas de bem estar e que essa definição,

que envolve atribuição de competências e recursos, é sempre uma escolha política, o que

coloca a centralidade da politização da gestão como um dos atributos da perspectiva da

governança local.

Um segundo componente que, na visão de Blanco e Gomà, juntamente com a politização

dos espaços locais marca a idéia de governança, é o das redes participativas horizontais e

multiníveis (Blanco e Gomà, 2003, p. 26). A idéia de rede tem se tornado um referente

144

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central nas discussões em diversos campos, para sinalizar a interconexão, a

interdependência, a conformação necessária para dar conta da complexidade dos processos

e da realidade social (Blanco e Gomà, 2003, p. 26)144.

Programas sociais voltados para públicos em situação de risco, pobreza e vulnerabilidade

social exigem ou dependem, para sua execução, de uma multiplicidade de atores

(organizações governamentais, ONGs com perfis diversos, conselhos, associações,

entidades filantrópicas e religiosas etc.) que apresentam visões diferentes sobre o problema

e sobre os meios para enfrentá-lo. omam decisões em relação a projetos compartilhados

A noção de redes multinível amplia a perspectiva de redes horizontais e remete não apenas

à articulação entre atores de um mesmo nível, mas à interdependência entre níveis de

governo. Na concepção de redes multiníveis, os municípios desenvolvem um papel

estratégico, de forma compartilhada e na perspectiva de interdependência com os diversos

níveis de governo (Blanco e Gomà, 2003, p. 29). Esse ponto remete, novamente, ao tema

do federalismo e das relações entre governo central e subnacionais e não será aprofundado

aqui, mas vale destacar a sua centralidade para a produção de políticas de proteção social

mais efetivas, que combinem, necessariamente, políticas de corte universal, tendo como

base demandas e necessidades mais homogêneas (UAB, 1998, p. 28) e políticas seletivas,

que adotam modelos de produção mais flexíveis, que respondem a demandas e

necessidades heterogêneas. Um e outro tipo de política se adequam de forma mais clara a

distintos níveis de governo, mantendo-se, de forma geral, uma perspectiva mais universal

para o âmbito nacional e políticas mais seletivas e focalizadas no âmbito dos governos

locais, sob a perspectiva do governo de proximidade.

144 A idéia de rede sustenta-se em alguns elementos centrais, dentre os quais os autores apontam três: a) ausência de um centro hierárquico que define de forma monopolista os processos de governo, b) a interdependência entre os diversos elementos da rede, que vai além do pluralismo de atores e sinaliza a existência de “heterarquias” (dependências mútuas) entre os atores ao definir problemas e buscar o alcance dos resultados e c) uma certa institucionalização das relações e processos. Partindo de quatro dimensões básicas, os autores constroem uma tipologia de redes, em função da sua configuração básica (número, tipos de atores e de interações); das relações internas de poder (assimetrias e recursos que os atores manejam); dos valores e interesses em jogo e disposição para negociação, e das relações com o entorno. Da combinação dessas dimensões, tem-se fenômenos empíricos distintos, que fazem com que existam distinções entre as configurações de governo local em redes. Essas podem ser mais ou menos heterogêneas, mais ou menos assimétricas, mais ou menos abertas ou permeáveis ao entorno, mais ou menos participativas (Blanco e Gomà, 2003, p. 27). No campo da gestão social, a perda do monopólio da gestão pelo Estado significou a ampliação das parcerias público-privado e a presença mais direta de organizações não governamentais na provisão dos serviços, o que aponta para a centralidade da perspectiva das redes e do governo relacional no debate sobre o desenvolvimento de políticas locais de inclusão social.

145

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4.2. Modelos locais de proteção social: construindo o caminho de saída

Algumas análises (UAB,1998; Brugué e Gomà, 1998) propõem o modelo de serviços

pessoais locais para traduzir o conjunto de mudanças na forma e conteúdo das políticas de

bem estar na Europa e particularmente na Espanha. A categoria de serviços pessoais

constitui o aporte específico dos governos locais de bem estar no fim dos anos 90 e, nas

palavras dos autores,

“las politicas de servicios personales adquiren pues, um significado sustantivo y diferenciado respecto a las políticas sociales porque incluyen elementos de territorialización que aquellas no prevén y que hacen de la identidad territorial y su desarrollo un elemento implícito y central de su conceptualización” (UAB, 1998, p. 29).

Brugué e Gomà (1998) ressaltam que as idéias-força da concepção ou modelo de serviços

locais de bem estar social, ou serviços pessoais145 seriam: repolitização, estratégia e

participação.

A primeira idéia, repolitização, diz respeito aos valores e paradigmas que guiam a

intervenção. Trata-se, sobretudo, da atuação dirigida e coordenada do governo local para

implementar o modelo social de cidade, a partir da formação de consensos, de construção

de espaços de negociação e deliberação e da busca pela legitimação da ação pública

governamental. Uma questão prévia é a definição de um modelo de cidade, que

“parte del conocimiento detallado de las capacidades y de la carencias que ya existen en el próprio territorio y se articula a través de la transformación de sus elementos para configurar una nueva realidade social y territorial” (UAB, 1998, p. 25).

A segunda idéia-força, estratégia, remete ao tema do planejamento, à definição de

objetivos e metas, à implementação de uma ação coordenada e robusta no campo das

políticas de proteção. Trata-se, nas palavras dos autores, de “reubicar el diseño de

políticas de bien estar en una perspectiva estratégica de funcionamiento, asumiendo todas

sus implicaciones” (Brugué e Gomà, 1998, p. 47).

Participação, por fim, aponta para o adensamento de práticas democráticas e para o

fortalecimento da dimensão cívica da cidadania. A questão, também segundo os autores,

articula-se diretamente com a noção de empowerment, de transferência de poder às pessoas

e comunidades, da participação dos beneficiários e de diversos atores não-governamentais

na produção das políticas e programas sociais. As políticas de serviços pessoais, ao

145 A referência para a construção desse modelo, embora não seja explícito pelos autores, é a Espanha. Não fica de todo evidente, pela leitura do artigo, se o modelo é algo efetivamente em curso nos governos locais da Espanha ou se consiste em uma proposta analítica.

146

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incorporarem os elementos de repolitização, participação e estratégia, se traduziriam em

“una nueva dimensión político-cultural del bienestar: el desarrollo comunitario a partir de

la promocion de relaciones sociales participativas, integradoras y solidarias en el ambito

territorial” (UAB, 1998, p. 29) ou , em uma tradução livre, como o “conjunto de ações

públicas locais articuladas em torno das pessoas, grupos e comunidades, sobre a base de

relações integradoras e participativas” (Brugué e Gomà, 1998, p. 44). O modelo local de

serviços pessoais, delineado pelos autores, configura-se como um modelo integral,

estratégico, participativo e comunitário de bem estar local, nos termos colocados por

Brugué e Gomà (1998, p. 45), que inclui tanto intervenções específicas, como respostas a

situações conjunturais, quanto intervenções de caráter mais geral que remetem a situações

estruturais (UAB, 1998, p. 29). Os serviços pessoais não se referem a uma política ou setor

específico das políticas, mas envolvem distintos setores das políticas municipais que

tenham como eixo articulador das ações a atenção direta às pessoas, grupos e comunidades

(UAB, 1998, p. 30). Os serviços pessoais incluem o conjunto de âmbitos de atuação

setorial de competências e distintos níveis de governo, relacionado à assistência social,

políticas de ocupação, habitação, saúde, educação, cultura (UAB, 1998, p. 63)146. Em

termos operativos o modelo demanda um “marco organizativo integrado, intersectorial,

con predomínio de estructuras transversales y descentralizado” (UAB, 1998, p. 36).

O modelo local de bem estar social é, por um lado, um modelo integral, estratégico e

participativo, mas é também e fortemente marcado, segundo Brugué e Gomà, pela

dimensão comunitária. Ultrapassando uma visão tradicional de enfrentamento da pobreza -

de caráter reativo e de base individualista -, o modelo promocional, comunitário e

estratégico de serviços pessoais emerge como alternativa para as políticas locais de

proteção social.

O desenho das políticas de serviços pessoais a partir da definição de necessidades segundo

critérios político-normativos, como é o caso do modelo de serviços pessoais, que identifica

as necessidades a partir da definição de um padrão desejável de provisão e acesso a

determiandos bens e serviços definidos como direito. Esse suposto implica que o volume

da oferta de serviços decorrerá de uma decisão tomada com base em diagnósticos e como

fruto de decisão política e programática, e não realizada de forma errática e altamente 146 Um ponto interessante dessa discussão é a distinção, no âmbito dos serviços pessoais, entre “direitos subjetivos fortes” e “direitos subjetivos débeis”. Os primeiros estão consolidados e garantidos nas leis, como direito à educação e saúde; e os segundos não têm explicitação jurídica suficiente, ou quando têm, essa é abstrata e pouco concreta quanto aos critérios de elegibilidade. Como exemplo desses, têm-se os direitos à cultura, moradia, serviços sociais e trabalho (UAB, 1998, p. 65).

147

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dependente das modificações do entorno. Brugué e Gomà utilizam duas variáveis,

intensidade da ação (intensidade protetora) e cobertura para elaborar uma tipologia de

serviços pessoais (1998, p. 51).

O eixo da cobertura refere-se à combinação de seletividade e universalismo, articulando

ação afirmativa com aumento qualitativo e quantitativo de cobertura. O segundo eixo,

intensidade protetora, refere-se ao desafio para superar o assistencialismo e residualismo

nos serviços pessoais. Trata-se, nesse sentido, de ultrapassar um nível de intensidade

protetora baixa, de “adoptar un posicionamiento municipal por unos servicios personales

de calidad, blindados en su dimenión cuantitativa, no vulnerables a consideraciones

economicistas y competitivos con los estándares que puedan ofrecer los mercados

privados de bienestar” (UAB, 1998, p. 37).

As políticas de serviços pessoais integrais decorrem de mudanças em dois eixos e a aposta

é por um modelo de extensão e intensidade elevada, combinando “dinamização

comunitária” e “ação contra a exclusão” (Brugué e Gomà, 1998, p. 55). O modelo de

serviços pessoais integrais supõe o universalismo no atendimento e ao mesmo tempo a

intensidade da intervenção. Ao contrário da perspectiva assistencialista, que estigmatiza e

fortalece a dualização da sociedade, a perspectiva dos serviços pessoais, tal como

formulada pelos autores, contempla o elemento de integração e coesão social. Nas palavras

dos autores,

“situar los servicios personales en la línea de la simple garantía de mínimos tiene un efecto dualizador y de estigmatización de colectivos sociales. En cambio, situar los servicios personales como un componente central de los itinerários de inserción social de base comunitaria tiene um impacto integrador y cohesionador” (Brugué e Goma, 1998, p. 52).

148

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Figura 3 – Tipologia dos modelos de serviços pessoais, segundo Brugué e Gomà

Mínimo Máximo Nível cobertura

Alta Intensidade de atuação(gasto

per capita) Baixa

Serviços pessoais residuais

Serviços pessoais intensivos seletivos

Serviços pessoais integrais (políticas de desenvolvimento comunitário e políticas contra exclusão)

Serviços pessoais assistenciais

Fonte: Elaborado por Bruguè e Gomà, 1998, p. 51.

Ultrapassando a visão tradicional de enfrentamento da pobreza - de caráter reativo e de

base individualista, que não considera a dimensão das relações e sem capacidade de

antecipar situações e de desenvolver respostas adequadas aos problemas colocados - o

modelo promocional, comunitário e estratégico de serviços pessoais instaura uma nova

perspectiva no plano da proteção social. Esse modelo requer, para sua operacionalização,

uma

“gestión que supere la segmentación y el centralismo tecnoburocrático y los sustituya por un modelo de producción de servicios integrado, descentralizado, participativo y pluralista. Es decir, un modelo con participación transversal del conjunto de las áreas, con plena responsabilización de la base y con combinación entre la provisión directa y la habilitación de agentes asociativos” (Brugué e Gomà, 1998, p. 50).

Os serviços pessoais locais têm uma tarefa central. Nas palavras dos autores,

“tienen que hacer posible que, a pesar de la diversidad de redes de servicios de organización verticales que hay, como ensenanza, sanidad o trabajo, su acción como conjunto sea coherente mediante la definición de objetivos y estratégias de tipo horizontal”.

O modo de se alcançar essa articulação, segundo os autores, seria através de mecanismos e

processos de participação que permitam a definição de estratégias de ação conjuntas dos

diversos atores envolvidos (UAB, 1998, p. 66). Ao contrário dos efeitos estigmatizantes e

149

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dualizadores da visão que focaliza a garantia dos mínimos sociais, a perspectiva dos

itinerários aponta para a idéia de coesão e inclusão social (Brugué e Gomà, 1998, p. 52).

4.3 - Incorporação e inserção social: metodologias de intervenção

Um processo de incorporação social (ou inserção, em outros termos), é composto por um

mix de dimensões e elementos que são centrais em distintas visões sobre a pobreza, de

forma combinada e não excludente. De acordo com Corera, um processo de incorporação

social envolve: a) ter condições de vida mínimas em termos de moradia, saúde, educação;

b) ter recursos econômicos que possibilitem ao cidadão ser um consumidor; c) ter uma

atividade que possibilite a ele ou ela o reconhecimento social; d) participar de espaços de

cultura, lazer, de sociabilidade; e) “tener un lugar en el mundo, pintar algo” (Corera,

2002, p. 352). O desenvolvimento de relações comunitárias locais e o fortalecimento de

redes sociais que possam acolher e responder as demandas são básicos aí. Além da

perspectiva de atuar via redes, têm-se os princípios de organização que incluem a

cooperação entre instituições e departamentos de setores diversos; articulação de

iniciativas governamentais, comunitárias, filantrópicas e privadas e a complementaridade

estrutural entre os âmbitos econômicos e sociais (Corera, 2002, p. 373). A terminologia

varia - itinerários de inserção, incorporação social, intervenção integral –, mas aborda um

conjunto de questões similares.

Na Europa, principalmente Espanha, o modelo dos serviços pessoais articula-se

diretamente com a proposta de itinerários de inserção. Os “itinerários personalizados de

incorporación social” (Corera, 2002, p. 366) configuram os caminhos a serem percorridos

pelos indivíduos ou “unidades de convivência” no sentido de saída da condição de

exclusão. O itinerário personalizado parte da adesão voluntária dos participantes e não

representa uma contrapartida obrigatória ao recebimento de uma renda básica. O

conhecimento da diversidade de situações de exclusão e o mapeamento das possibilidades

e limites são elementos fundamentais para uma intervenção de inserção diferenciada e

flexível. O reconhecimento da diversidade de situações de exclusão implica, como visto

antes, a flexibilidade na oferta de bens e serviços, o que exige uma gestão com ritmos,

modelos, níveis e graus distintos de incorporação (Corera, 2002, p. 351).

“los itinerários de exclusión son personales, familiares, pero su origen es estructural y está causada tanto por los mecanismos de funcionamiento general de la sociedad como por el funcionamiento de las instituciones. La exclusión es generada socialmente, pero la posición de los colectivos afectados también confluye y, por tanto, es necesario que a la par que se transforman aspectos estructurales se intervenga de manera personalizada” (Corera, 2002, p. 349).

150

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Esse tipo de metodologia é muito sensível às turbulências do ambiente e é necessário

contar com um forte compromisso, de longo prazo, de ambos os lados: do público e dos

agentes governamentais. O trabalho de acompanhamento do processo de inserção envolve,

além da aplicação de recursos, um trabalho de intensa relação pessoal, continuada e

duradoura, sustentada pela confiança recíproca entre agentes públicos e pessoas

acompanhadas e fortalecida pela motivação e desejo dos “assistidos” de procurarem saídas

sustentáveis das situações de exclusão.

Chega-se aqui ao mesmo ponto, por outras vias: o papel do componente relacional nas

estratégias de proteção. Um modelo de intervenção pautado pela incorporação exige, do

ponto de vista da capacidade governamental, a existência de recursos, bens e serviços que

possam ser repassados à população, em quantidade e na forma adequada às necessidades

personalizadas. Pelo lado dos indivíduos em processo de incorporação, tem-se que ter a

adesão, o protagonismo e o compromisso efetivo das pessoas com seu projeto de

incorporação. A combinação de ambos requer o trabalho de acompanhamento, atividade

que gera vínculos, que se realiza a partir da confiança, forte expressão de uma das

dimensões do componente relacional.

O desafio, mais uma vez, refere-se a como implementar de fato tais diretrizes, identificar

os fatores e mecanismos que favorecem esse componente central nas políticas de inclusão.

Um modelo de intervenção tão próximo, intenso e integral dificilmente poderá ser

viabilizado em contextos com alto grau de pobreza. A implementação de estratégias de

intervenção focadas em itinerários personalizados de inserção social não é viável quando

se tem cerca de 20 milhões de pessoas em condição de extrema pobreza, como é o caso da

indigência no Brasil, que não contam sequer com as condições mínimas para alimentar-se

de forma adequada. Não é nada trivial desenhar estratégias que dêem conta, efetivamente,

de lidar estrategicamente com a pobreza, visando a incorporação sustentável da população

em condição de pobreza crônica, em um movimento de saída da exclusão147.

A possibilidade de financiamento de uma política com esse desenho de intensa atuação e

ampla cobertura não é uma questão irrelevante e sem dúvida esse é um limitador para

qualificar ou apontar os limites empíricos de determinados modelos de intervenção. A 147 Além disso, tem-se que garantir a não deterioração das condições de vida e trabalho da sociedade como um todo, ou seja, a manutenção de um nível de desenvolvimento econômico e social que não seja excludente e produtor de novos indigentes, atuando no nível da prevenção e mitigação da entrada em situações de exclusão.

151

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existência e disponibilidade de redes de serviços para atender demandas de inserção é

outro constrangimento e ambos exigem, como elemento fundamental, um amplo e forte

consenso político em torno da adoção de determinadas estratégias de intervenção e

políticas consistentes e duradouras nas redes de serviços públicos. É totalmente diferente

desenhar uma política de serviços pessoais para uma cidade da Europa que conheceu um

passado de bem estar social e conta com uma estrutura de proteção ampla e efetiva – na

qual somente algumas centenas de pessoas dependeriam dos serviços personalizados de

inserção – de desenhar uma política para uma cidade ou centro urbano na maioria dos

países da América Latina, nos quais existe uma pobreza de massa e grande contingente de

indigentes, para os quais as privações são múltiplas e superpostas, em um contexto de

capacidade de financiamento baixa148. A magnitude dos problemas ou a escala do

fenômeno, as condições prévias das políticas (o nível e a cobertura dos programas e ações

de proteção social existentes em um e outro contexto), as condições de financiamento e

implementação fazem toda a diferença entre um e outro contexto. Essa metodologia de

intervenção se aplica somente com muitos ajustes à realidade de pobreza e exclusão em

massa, que envolve dezenas de milhares de pessoas nas metrópoles brasileiras e na maioria

das cidades latino-americanas. Como financiar e operacionalizar uma metodologia com

estas características em municípios de grande porte com alta incidência de pobreza e

indigência?

Abordar adequadamente os constrangimentos para implementação de políticas estratégicas

de proteção social exigiria a análise cuidadosa das condições financeiras, técnicas e

políticas que as viabilizem, mas não é esse o objetivo principal aqui. O objetivo da tese é

explorar a natureza mais metodológica da proposta, seus supostos e componentes. Como

ilustração, é apresentada a seguir uma estratégia de inclusão social para famílias em

situação de pobreza crônica, calcada na perspectiva dos itinerários de inserção. O exame

dessa estratégia permite descrever como a proposta dos itinerários pode ser traduzida em

uma situação concreta. Mas não se tem a pretensão de analisar resultados ou impactos,

inclusive pelo fato de que, somente em 2005, a experiência começou a ser objeto de

avaliação externa naquele país.

148 Na pesquisa realizada via projeto Urbal os itinerários estavam sendo aplicados em centenas e não em milhões de pessoas.

152

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4.4 - A experiência do Programa Puente/Chile, como estratégia de inclusão

Na América Latina, o Programa Puente constitui uma experiência que se pauta pela

perspectiva dos itinerários de inserção, ainda que não assuma essa terminologia de forma

explícita. Não é, certamente, a única experiência existente e será aqui recuperada como

exemplo de uma estratégia de inclusão social que incorpora dimensões trabalhadas nos

capítulos anteriores. A experiência do Programa Puente, que se iniciou em 2002 no Chile,

pode ser um exemplo para examinar parte dos desafios de políticas de inclusão social em

cidades onde a incidência da pobreza é grande. Trata-se de um programa do nível central,

voltado para a melhoria das condições de vida das famílias em extrema pobreza, sendo o

principal componente de uma estratégia de inclusão social - Chile Solidário, que constitui o

sistema de proteção social para os mais pobres no Chile. O Chile Solidário e o Programa

Puente constituíam duas iniciativas paralelas que surgiram no período 2001-2002

(Winchester, 2005), mas que foram posteriormente integradas. Nesse período o FOSIS

(Fondo de Solidarid e Inversión Social), demandado pelo Mideplan (Ministério de

Planificación y Cooperación), desenha um programa voltado para atendimento psico-

social para o conjunto da população indigente no país (225 mil famílias no Chile). A

Dirección de Presupuesto del Ministério de Hacienda, por sua vez, orientou-se para a

construção e implementação de um sistema de proteção social, que operasse a prestação de

benefícios e programas para população mais pobre, na tentativa de aumentar a eficiência

do gasto social (Winchester, 2005, p. 5).

O Sistema Chile Solidário149 tem como público o universo de 225 mil famílias mais pobres

do país, sendo executado com a participação dos governos locais150. São 209.398 famílias

atendidas e outras 15.675 são famílias compostas com uma pessoa com idade acima de 65

anos, o que totaliza 225.073 famílias assistidas pelo Chile Solidário – e também pelo

Puente - entre 2002 e 2005 (Cohen e Gómez, 2005, p. 25).

149 O Sistema Chile Solidário está sob a responsabilidade do Ministério do Planejamento e Cooperação (Mideplan) e é operacionalizado por uma secretaria executiva central e regionais; por comitês técnicos, formados pelas instituições que oferecem serviços e programas para as famílias; por comitê executivo e comitê técnico regional, que se ocupam de aspectos políticos e técnicos do programa, respectivamente; e comitê consultivo regional da sociedade civil, que constitui uma instância de apoio (Fosis, 2002, pp. 9 e 10). 150 O Programa Puente é o componente principal do Chile Solidário. Segundo informações da Casen, em 2000 existiam 4,6% dos domicílios abaixo da linha de indigência, o que totaliza aproximadamente 850 mil pessoas que não satisfazem necessidades básicas de alimentação (Fosis, 2002, p. 13). A incorporação do total de 225 mil famílias, selecionadas a partir da ficha CAS, se processou de forma gradual entre 2002 e 2005: 56.055 famílias em 2002; 60.318 famílias em 2003; 15.675 famílias de uma pessoa com idade acima de 65 anos em 2003; 59.806 famílias em 2004 e 33.219 famílias em 2005 (Fosis, 2002, p. 6)

153

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A concepção do Chile Solidário enfatiza o reconhecimento das múltiplas causas associadas

com a produção e reprodução da pobreza extrema e consideram que a superação exige

mais do que a transferência de renda. Sustentado fortemente pelo enfoque das capacidades,

o programa é orientado para ampliar as oportunidades e os recursos das famílias

indigentes, na perspectiva de ampliação da autonomia das famílias e redução das

vulnerabilidades e dos riscos. Combina ações de assistência e promoção, buscando a

operação de um sistema articulado de transferência de benefícios para os mais pobres, uma

“ventanilla única”, nas palavras de Lucy Winchester (2005). As dificuldades de inserção

dos mais pobres nas redes de serviços existentes são enfatizadas no diagnóstico e orientam

as estratégias de intervenção. A desinformação, o isolamento e as características psico-

sociais que marcam situações de extrema pobreza dificultariam o acesso aos bens, serviços

e programas existentes e um dos pressupostos do Sistema Chile Solidário é atuar também

sobre essa dimensão. Com o objetivo de incorporar as famílias em situação de pobreza

crônica à rede de proteção do Estado, “el sistema busca organizar la oferta programático-

institucional, asistencial y promocional otorgando prestaciones asistenciales garantizadas

a las famílias (bonus de protección y prestaciones monetárias tradicionales)”

(Winchester, 2005, p. 5).

A operação do Sistema supõe a articulação das estruturas setoriais e entre níveis de

governo e, por isso mesmo, o programa também exemplifica arranjos baseados na

intersetorialidade e na gestão em redes e multinível, embora esses não sejam termos

utilizados explicitamente pelo Chile Solidário ou pelo Puente. A articulação entre setores é

orientada pelos 53 indicadores de inclusão definidos pelo Programa Puente, condições que

dependem da ação de setores diversos, que garantam os sete pilares da “puente”, como será

visto na seqüência. Mas a articulação da rede pode se ampliar para além do atendimento

dessas condições mínimas, a depender da capacidade de coordenação e liderança dos

gestores nos distintos níveis do Sistema (local, regional, central) (Winchester, 2005, p. 5).

Além da transferência de renda, cujo valor decresce à medida do tempo de permanência no

programa, tem-se uma metodologia de acompanhamento às famílias, para fornecer-lhes

apoio psico-social e facilitar o acesso à rede de serviços. A metodologia de intervenção

consiste em uma “estratégia de intervención integral” sobre as famílias em extrema

pobreza (Cohen e Gómez, 2005, p. 25), que define a atuação do Puente como um dos

componentes do Sistema Chile Solidário. Os componentes do Sistema Chile Solidário,

154

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conforme descrito no documento oficial do programa (Fosis, 2002, pp. 7,8), são os

seguintes:

• O Programa Puente (executado pelo Fosis), o componente do sistema voltado para

elementos de natureza psico-social envolvidos na pobreza e estabelecer pontes e conexões

das famílias com as redes de serviços e a ampliação das relações sociais, formais e

informais.

• Um bônus de proteção, um valor monetário repassado mensalmente de forma

decrescente durante o tempo de 24 meses de permanência das famílias no Programa,

começando com um valor três vezes maior nos primeiros seis meses em comparação aos

últimos seis meses de participação151. As famílias - que ao fim desse prazo tiverem

cumprido as metas estabelecidas no contrato familiar, superando a condição de extrema

pobreza - serão beneficiadas, de forma automática e por um período de três anos, por um

beneficio de proteção (asignación de protección) equivalente a um subsídio familiar152. As

famílias que chegam ao fim do período de um ano sem cumprir as metas estabelecidas no

acordo, deixam de receber o bônus de proteção e deixam de ser acompanhadas pelo

Puente, permanecendo, contudo, com um beneficio (asignación de protección) equivalente

a um subsídio único familiar (U$ 5,4).

• Todas as famílias do Sistema têm garantido o recebimento de benefícios

tradicionais aos quais têm direito em razão de suas condições familiares, que incluem

subsídios identificados por faixa etária (menor que 18 anos, mais de 65 anos), por

condições específicas (invalidez, deficiências) e por carências específicas (subsídio para

água potável, por exemplo).

• Também o acesso à rede de serviços e a programas existentes constitui um

componente do Sistema. Esses envolvem programas voltados para melhoria dos níveis

educacionais, serviços de prevenção e enfrentamento de situações de risco (violência

151 Começa com o beneficio mensal familiar equivalente a 15 dólares mensais (10.500 pesos) durante os seis primeiros meses, passa para 11 dólares mensais (8 mil pesos) entre o sétimo mês e um ano, depois para 7,8 dólares mensais (5.500 pesos) nos seis meses seguintes e para 5 dólares por mês (3.500 pesos) nos últimos seis meses (Fosis, 2002, p. 7) 152 O valor do subsídio único familiar (SUF) é de 3.930 pesos. Como valores de referência para comparação, o valor da pensão para idosos e inválidos (PASIS) é de 37.849 pesos, o valor da canastra familiar nas áreas urbanas é de 21.856 e na área rural de 16.842 pesos. A referência do salário mínimo (“para fins não remuneracionais”) é de 78.050 pesos (Site Mideplan www.mideplan.org.cl , acesso em novembro de 2005). No documento do Fosis (2002) tem-se uma referência em dólar para o valor do bônus de proteção à família repassado às famílias beneficiárias do Puente, como visto na nota acima, o que permite dimensionar o que esses benefícios representam em relação aos demais benefícios do Chile Solidário.

155

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familiar, crianças em situação de risco, drogas), programas de cotização para chefes de

família, dentre outros (Fosis, 2002, p. 8).

O Programa Puente promove e apóia a instalação, em cada comuna do país onde residem

as famílias alvo do programa, de uma unidade de intervenção familiar (UIF), que é

coordenada pela municipalidade (Winchester, 2005, p. 6) e que conta com um número de

profissionais e técnicos de apoio familiar condizente com a cobertura do programa na

região. A unidade de intervenção familiar é apoiada por uma rede local de intervenção, na

qual participam instituições e organizações públicas e privadas que oferecem serviços ou

bens para a população pobre e indigente. Nas palavras de Winchester, “la coordinación

del programa opera a nivel local y la articulación de servicios públicos a nivel provincial

y regional debe ser subsidiaria y estar a disposición de las redes locales” (Winchester,

2005, p. 6).

O Programa Puente tem como objetivo fornecer apoio psico-social às famílias e viabilizar

o acesso dessas famílias à rede de benefícios e serviços. O adjetivo “puente” é adequado

para expressar o objetivo básico do Programa: estabelecer a ponte entre as famílias e seus

direitos. A ponte é a passagem para uma condição de cidadania e fundamenta-se na

perspectiva do empoderamento e de uma visão da pobreza como fenômeno amplo e

complexo, reversível e que envolve aspectos objetivos e subjetivos. O programa busca a

participação ativa das famílias e pessoas para a identificação de potencialidades e de

formas de desenvolvê-las e viabiliza o acesso das famílias em situação de pobreza crônica

aos serviços e benefícios sociais. Explicitamente o Puente incorpora o marco conceitual do

manejo de risco, tal como formulado pelo Banco Mundial, buscando com esse enfoque

proteger a sobrevivência básica das pessoas e promover uma maior disposição para

assumir riscos.

O Programa depende fortemente da adesão das municipalidades, que podem ou não aceitar

o programa, se comprometer com sua gestão e aportar recursos humanos e físicos para sua

implementação. No nível municipal, o Programa encontra-se sob a responsabilidade da

Divisão de Desenvolvimento Comunitário, vinculado ao Departamento de

Desenvolvimento Social. Estudada e definida a cobertura prevista para o período e

examinada a disponibilidade existente nas redes locais para fornecer Apoios Familiares, é

estabelecido o aporte de financiamento do governo chileno naquele município, para

viabilizar os técnicos e profissionais para atuarem como apoio familiar. As unidades de

intervenção familiar (UIF) são criadas pelo FOSIS, que selecionam as famílias, formam os

156

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técnicos para atuarem como apoios familiares, geram sistemas de informações

(Winchester, 2005, p. 6). O Programa Puente estabelece convênios com os municípios para

o aporte de recursos para contratação de técnicos adicionais. Na metodologia do Programa,

cada técnico (apoio familiar) trabalha com 64 famílias (Fosis, 2002).

Os supostos da estratégia de intervenção integral a favor de famílias em extrema pobreza

do Puente salientam, dentre outros, a importância de um enfoque qualitativo; reconhecem a

dimensão material e subjetiva da pobreza; conferem atenção às causas econômicas e sócio-

culturais da pobreza; consideram que a pobreza crônica é um fenômeno reversível;

enfatizam o papel do capital social na geração e ampliação de redes sociais e na reversão

da pobreza; salientam o papel estratégico dos operadores que trabalham diretamente com

as famílias, em uma intervenção que requer um período extenso de tempo e de forma

constante e intensiva (Fosis, 2002, p. 17).

Em seus próprios termos, o objetivo geral da estratégia de intervenção integral

“es mejorar las condiciones de vida de familias en extrema pobreza, generando las oportunidades y proveyendo los recursos que permitan a estas familias recuperar o disponer de uma capacidad funcional y resolutiva eficaz en el entorno personal, familiar, comunitário e institucional” (Fosis, 2002, p. 15).

Para alcançar esses objetivos, são requeridos novos modelos de intervenção, que

consideren el trabajo com grupos antes que con sujetos particulares (Fosis, 2002, p. 14), o

que leva a identificar as famílias como unidade de intervenção.

De acordo com as diretrizes do Programa, a estratégia de intervenção integral enfatiza a

dimensão territorial. Os fundamentos são vários: por um lado, o sentido de pertencimento

a um lugar representa um recurso que pode contribuir com a intervenção; por outro, é no

território que se localizam as redes que podem ser mobilizadas. A partir de um operador e

de uma intervenção personalizada, busca se estabelecer a ponte entre as famílias e as redes

e oportunidades disponíveis em seus territórios.

O marco teórico da estratégia de intervenção integral é composto, segundo o documento do

FOSIS, por três enfoques (Fosis, 2002, p. 16): capital social, redes e intervenção em crise.

A perspectiva do capital social orienta a atuação do programa para o desenvolvimento de

ações que visam melhorar a capacidade das pessoas de se envolverem com o mapeamento

das potencialidades e com a busca de soluções de seus problemas. Além disso, salienta-se

o papel das redes e formas articuladas de provisão de bens e serviços e a importância da

expansão da quantidade e da qualidade das relações sociais das famílias. A perspectiva das

157

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redes sociais constitui outro elemento das diretrizes do Programa e refere-se à combinação

de ações que produzem efeitos sinérgicos no enfrentamento da pobreza, que articulam e

complementam recursos em uma atuação integrada (Fosis, 2002, p. 16). A intervenção em

crise, por sua vez, consiste em uma intervenção terapêutica, de curta duração e destinada a

intervir nas situações de crise que podem ter alto impacto em pessoas e famílias

vulneráveis, impedindo sua “capacidade de funcionamento”. Essas intervenções buscam o

empoderamento das pessoas, no sentido de propiciar a elas um maior controle sobre suas

vidas, inclusive sobre suas emoções, comportamentos, aumentando as capacidades de

respostas e fortalecendo a resiliência das famílias que vivem sob condições de pobreza

extrema (Fosis, 2002, p. 16).

O Programa Puente utiliza-se de um material pedagógico para o trabalho psico-social com

as famílias, desenvolvido sob uma forma lúdica e que funciona como uma caixa de

ferramentas metodológicas que pretende trabalhar a geração de confiança e de cooperação

entre o apoio familiar e a família participante. Esse material é repassado para cada família

logo após a assinatura do acordo e confere materialidade - através do uso de figuras,

tabuleiro de jogo etc. - à identificação do potencial da família, em termos do capital e

recursos que ela possui ou que possa utilizar, e os avanços de cada membro da família no

sentido de se cumprirem as metas estabelecidas. A intervenção reconhece algumas etapas

progressivas que consistem no acompanhamento, na qual se geram as condições mínimas

para que as famílias possam melhorar sua condição; na inserção social, orientada para o

fortalecimento da institucionalidade local e da rede institucional, criando e fortalecendo

vínculos sociais e no desenvolvimento, etapa de conclusão que busca gerar condições para

a auto gestão das famílias (Cohen e Gómez, 2005, p. 26).

De forma semelhante aos itinerários de inserção ou incorporação social da Europa, o

Programa baseia-se em um contrato153 entre as famílias e o programa, definidos os

compromissos mútuos entre as famílias e o programa, por um prazo de 24 meses, no

decorrer do qual as famílias são apoiadas para atender a 53 condições mínimas de

qualidade de vida, agrupadas em sete dimensões (identificação, saúde, educação, dinâmica

familiar, habitabilidade, trabalho e renda), denominadas de pilares do programa Puente.

Para cada dimensão, foram fixadas condições mínimas a serem atendidas pelas famílias ao

153 Não existe consenso sobre a utilização do termo contrato para designar a relação que se cria entre público e o programa de inclusão. Para alguns, o termo apropriado seria compromisso, convencimento, adesão. De toda forma, no Chile o termo contrato é utilizado para firmar o compromisso entre a família e o programa.

158

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longo do programa154. As famílias egressam do programa quando alcançam todas as

condições mínimas que correspondam a suas características próprias, em cada uma das sete

dimensões. A fase inicial de intervenção, com seis meses de duração (com

aproximadamente 14 encontros) é mais intensa; segue-se a fase de acompanhamento e

avaliação nos outros 18 meses seguintes, com sete sessões de acompanhamento (Fosis,

2002, pp. 22,23). Além do apoio psicosocial, o programa conta com um componente de

formação, capacitação e acompanhamento das unidades de intervenção familiar (UIF), com

o objetivo de formar e capacitar os técnicos que atuam como apoios familiares. Como

terceiro componente, tem-se um fundo regional de iniciativas em cada região do país, que

financia projetos ou serviços para atender as famílias do Programa e que não estão

previstos na oferta vigente na região. O monitoramento e avaliação de cada família é o

quarto componente do programa. As informações de cada família são fornecidas por meio

eletrônico e de forma confidencial por parte dos técnicos, de maneira a permitir o

acompanhamento do programa em cada região e localidade. Os desenhos de políticas

inspiradas pelas perspectiva dos itinerários de inserção apresentam variações quanto à

metodologia, número de encontros, componentes ou fases. Não parece existir um modelo

único, mas diversas adaptações de um mesmo conjunto de preocupações, centradas em

ações mais intensas e articuladas para um mesmo conjunto de famílias em situação de

pobreza crônica, que se baseiam em um pacto ou acordo entre famílias e governo, em

estratégias marcadas pela elevada interação e alta flexibilidade na oferta de serviços.

O Programa Puente foi aqui apresentado com o objetivo de explicitar, na empiria, alguns

pontos discutidos nesse capítulo, para identificar como se dá na prática o desenho de

estratégias de combate à pobreza que consideram as dimensões relacionais presentes no

processo de inclusão, e que buscam uma combinação entre as dimensões monetária,

154 Como exemplo dos tipos de condições mínimas de inclusão elencadas tem-se: no eixo da identificação: todos os membros das famílias com registro civil, carteira de identidade, situação militar regularizada; no eixo da saúde: família inscrita no serviço de atenção primária, com vacinação das crainças em dia, com acompanhamento pré-natal, com exames em dia; educação: inserção das crianças e jovens na escola, crianças e adultos alfabetizados, inserção de crianças com deficiência nas escolas; dinâmica familiar: existência de práticas de conversas na família, normas claras de convivência, mecanismos adequados para enfrentar conflitos, reconhecimento da rede comunitária e programas disponíveis, existência de distribuição mais eqüitativa das tarefas domésticas; habitabilidade: regularização da moradia, sistemas adequados de água e saneamento, condições adequadas de habitabilidade, com equipamentos básicos para alimentação; trabalho: trabalho regular com remuneração estável para pelo menos um adulto na família, inscrição dos desempregados nos serviços disponíveis, não abandono dos estudos dos jovens para inserção no trabalho; renda: acessos aos subsídios a que tenham direito,com renda acima da linha da indigência, com orçamento organizado em termos de recursos e necessidades. A lista é mais extensa e bem mais detalhada do que foi aqui apresentado, mas a idéia é oferecer alguns exemplos do que constitui a lista de 53 condições mínimas que devem ser cumpridas em cada um dos sete pilares do programa.

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material e subjetiva da pobreza e exclusão. O Puente supõe ainda uma articulação em rede

e a provisão coordenada de bens e serviços públicos, com ativa presença de organizações

não-governamentais e agentes da sociedade civil, além de enfatizar a dimensão da

heterogeneidade da oferta e o papel da confiança nesse processo de provisão de bens e

serviços e de conversão de intenções políticas em consequências práticas sobre a realidade

(Martinez Nogueira, 1998).

No entanto é importante ressaltar que, embora não se trate aqui de fazer avaliações quanto

aos resultados e impactos do Chile Solidário ou do Puente é importante pontuar algumas

questões de natureza avaliativa salientada na análise de Winchester (2005). De acordo

com a autora, avaliações preliminares indicam um certo descompasso entre o discurso e a

prática, na medida em que predomina uma atitude assistencialista mais centrada na

distribuição eficiente da oferta, do que na expansão das capacidades. Além disso,

predomina a visão centrada no âmbito da família, sem maiores consequências quanto ao

desenvolvimento de redes comunitárias ou para o desenvolvimento do associativismo ou,

em outros termos, de capital social (Winchester, 2005, p. 10). É apontado que o Programa

encontra dificuldades, em muitos casos, para sustentar uma oferta adequada para o

cumprimento das metas previstas quanto a certos mínimos, principalmente aqueles que se

referem à habitação, uma vez que as municipalidades não contam com recursos suficientes

para responder à demanda e nem apresentam as competências para o desenvolvimento

desse tipo de política (Winchester, 2005, p. 13). Os resultados do Programa Puente

parecem ainda fortemente dependentes de como as equipes, nos níveis locais, conseguem

traduzir as diretrizes em ações155.

Dentre os resultados positivos - que também como os negativos são diferenciados entre os

municípios (comunas) - pode-se verificar alterações significativas nas redes locais de

155 Em um das municipalidades pesquisadas no âmbito do Projeto Rede Urbal, El Bosque, o Programa tem sido bastante bem sucedido, inclusive para promover o desenvolvimento comunitário e ampliar a interlocução entre técnicos e a população. A população da Comuna de El Bosque era, em 2002, de aproximadamente 190 mil habitantes. Em El Bosque funcionam 53 “mesas barriales”, que se configuram como espaços nos quais pode-se efetivar a participação e a mobilização da população para o enfrentamento dos problemas identificados nas distintas regiões. As mesas de trabalho são espaços voltados para a concertação de atores locais para o planejamento localizadas nos bairros. As “mesas barriales” são compostas por representantes de cada departamento da municipalidade, além de outros atores relevantes nos territórios. O Modelo de Desenvolvimento Integral Sócio Comunitário constitui uma estratégia de envolvimento de diversos atores sociais e comunitários na melhoria da qualidade de vida, no desenvolvimento humano das pessoas e famílias e no fortalecimento dos vínculos sociais, comunitários, familiares, institucionais. Esse modelo tem como base o território, cada um dos bairros/localidades da Comuna. O sucesso do Programa em El Bosque foi inclusive reconhecido por Gonzalo Delamaza Escobar, Diretor da Fundacción para la Superación de la Pobreza, em debate da reunião do CLAD, em outubro de 2005.

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intervenção antes e depois da existência do Programa Puente, uma vez que, de acordo com

as avaliações realizadas, a partir do Programa tem-se maior rapidez e qualidade de

atendimento por parte das diversas instituições e maior atenção destas em relação às

famílias em situação de pobreza extrema, mudando a forma anterior de a rede existente

atuar com as famílias.

Outros estudos apontam também os resultados positivos do Programa:

“In summary, and on the basis of available information, the programme has made real progress in terms of reaching the families in extreme poverty throughout Chile, and achieved low levels of rejection and interruption. There has been much less progress, however, in terms of a successful exit rate from the programme. Compliance with the minimum conditions is generally high, with slight variations responding to the differing degrees of difficulty both for the families and the State” (Palma e Urzúa, 2005).

Entretanto, não se pode deixar de ressaltar que as redes locais de intervenção se apóiam

fundamentalmente no poder municipal, que coordena a oferta de serviços, vincula

beneficiários com projetos, programas, transferências e com demais ações sociais

existentes (Winchester, 2005, p. 11). A existência de Unidade de Intervenção Familiar

funciona com um importante elemento para impulsionar o poder municipal e a rede de

intervenção local, ao fornecer informações, identificar demandas (na forma de

requerimentos estáveis no tempo e sustentadas pelo traballho dos técnicos do apoio social)

(Winchester, 2005, p. 11). O êxito de Programa é dependente, sobremaneira, do

compromisso do executivo municipal e da priorização do mesmo na agenda municipal. O

Puente só funciona adequadamente se essa articulação setorial existe e ela depende da

capacidade de coordenação e da legitimidade e prioridade que são dadas a essa iniciativa

por parte dos dirigentes municipais. Esse é um ponto destacado por Winchester:

“parece ser que factores relacionados particularmente al liderazgo (tanto a nivel de Alcadía como de los professionales a cargo del Programa) inciden altamente en su implementación e incorporación a la lógica municipal, como también su efectividade como Programa” (Winchester, 2002, p. 13).

Algumas dificuldades para viabilizar a implementação da lógica e das diretrizes do

Programa foram explicitadas pela coordenadora do Programa Puente em uma

municipalidade no Chile156:

156 Trata-se da municipalidade de El Bosque, participante do Projeto Rede Urbal 10, junto à qua foi realizada uma pesquisa, no qual participei como consultora, sob a coordenação de Laura da Veiga. No âmbito desse projeto foram produzidas informações, através de questionários e roteiros preenchidos pelos responsáveis pelos programas. Essa resposta foi retirada de um questionário no qual se buscou, dentre outros pontos, verificar os conflitos e as dificuldades para a implementação das ações intersetoriais, tal como previsto nas

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“Para implementar el programa ha sido imprescindible trabajar en red, y esto provoca que algunos sectores se sientan obligados a incorporar bajo el concepto de prioridad esta nueva focalización ( familias indigentes adheridas a un sistema de protección social). No se produce un conflicto más bien se tensan las relaciones con los ministerios a nivel de gobierno y en lo local también, ya que se busca obtener una respuesta positiva en virtud de la atención preferencial de las familias adscritas al programa. Con el apoyo político y presidencial, de los alcaldes respectivos, se sensibiliza acerca de la importancia de este programa y el desafío que significa abordar la temática de la pobreza en estos términos metodológicos donde se abordan familias más que individuos solos”(Coordenação local do Programa Puente, em El Bosque, Chile)

Como fica evidente, a adoção de uma estratégia como a proposta pelo Puente provoca

resistências de alguns setores, que se vêem obrigados a incorporar a prioridade de

atendimento das famílias em situação de pobreza extrema. Aceitar essa prioridade de

focalização dada pelo Programa significa alterar rotinas e critérios próprios dos setores, o

que nem sempre é um processo que ocorre sem conflitos ou resistências. Entretanto, foi

apontada a importância do apoio político do prefeito e da adesão de parte da administração

local para sensibilizar os diversos setores quanto à necessidade de incorporar esse público

de forma prioritária157.

Além dessas dificuldades, os coordenadores do Programa Puente na comuna de El Bosque

destacaram outro problema: a existência de conflitos e tensões entre a equipe do governo

central e as equipes encarregadas da execução do programa no município. As últimas, por

estarem situadas na ponta, na interação constante com as famílias, têm o conhecimento

específico das demandas e das problemáticas do público atendido; já a equipe central, pela

distância que se encontra do processo de implementação, tem dificuldades de compreender

determinadas problemáticas ou encaminhamentos. Freqüentemente o conhecimento e o

saber das equipes locais não são reconhecidos ou legitimados, gerando situações que

diminuem o empenho da equipe, contribuem para o aumento dos conflitos e geram

diretrizes do Programa. A equipe do Programa em El Bosque é formada por: um profissional de serviço social, responsável pela coordenação e pela implementação do programa na Comuna; trinta e quatro técnicos que atuam como apoios familiares, sendo quatorze do FOSIS e vinte funcionários do município, encarregados do trabalho de intervenção familiar; uma secretária administrativa. No questionário aplicado aos coordenadores, foi destacada a necessidade de contratação de mais técnicos para apoio familiar, uma vez que, com o número atual, cada técnico tem que acompanhar, em média, 120 famílias. De outubro de 2002 a março de 2005, foram atendidas pelo Programa em El Bosque 1.200 famílias. 157 Avaliações realizadas sobre o Programa Puente apontam problemas no funcionamento das unidades de intervenção familiar, dentre os quais se destacam número reduzido de técnicos que atuam como apoio familiar, falta de equipamentos (computadores com acesso a internet, por exemplo), veículos (que possam facilitar o acesso a áreas isoladas onde moram as famílias) e espaços adequados para o trabalho dos técnicos de apoio familiar, inconsistência entre remuneração dos técnicos que atuam como apoio e o número de famílias que cada um atende, dentre outros pontos negativos levantados (Winchester, 2005, p. 12).

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intervenções menos efetivas. Trata-se de uma questão central para o desenvolvimento de

estratégias mais exitosas de superação da pobreza extrema.

O exemplo específico indica que a implementação envolve um conjunto de outras questões

que mostram que o estabelecimento de diretrizes ou a identificação de modelos de ação são

importantes, mas não necessariamente produzem os resultados esperados. A literatura

sobre implementação de políticas destaca que no nível da micro-implementação ocorrem

decisões que podem alterar substancialmente os objetivos traduzidos em ações concretas

(Costa, 2004). Mas este não é o tema dessa tese e a apresentação da experiência chilena

tem o objetivo de indicar, de forma exploratória, como a concepção de itinerários de

inserção encontra correspondência em intervenções em curso na América Latina, para

situar algumas das questões presentes na produção das políticas de proteção social com

esse recorte.

No Chile, a metodologia dos itinerários de inserção ganha materialidade a partir do

Programa Puente e, de forma mais geral, pelo Chile Solidário, que explicitamente orienta-

se para a incorporação social das famílias em extrema pobreza. O Programa é focalizado

a partir do recorte da renda, e tem definidas as metas de cobertura, as rotinas e

procedimentos mais formalizados, com cobertura ampla e alimentada pela visão de que a

pobreza é multidimensional e de que existem elementos psico-sociais em sua produção e

reprodução. A estratégia do Puente (e do Chile Solidário) combina enfoques distintos, ao

adotar ao mesmo tempo e explicitamente a perspectiva de manejo de riscos e a perspectiva

da incorporação, demonstrando que essas perspectivas podem se combinar em desenhos

concretos de políticas de enfrentamento da pobreza e exclusão social158.

O capítulo seguinte organiza os elementos e categorias que emergem da pesquisa realizada

na literatura de forma mais sistemática, para configurar o quadro analítico, que possa

funcionar para identificar o desenho de estratégias locais de inclusão social em metrópoles

brasileiras.

158 Apesar das críticas ao modelo chileno por adeptos de modelos mais compreensivos de proteção social, não se trata de analisar aqui se as políticas sociais no Chile, nas últimas duas décadas, se alinham com tendências e perspectivas liberais de proteção social, mas simplesmente de ressaltar que é clara e explícita a utilização do enfoque do manejo de riscos, apontado pela literatura, como visto nos capítulos anteriores, como apresentando uma forte orientação de caráter liberal e uma forma residual de enfrentamento da questão social. Embora interessante, a questão das diretrizes que inspiraram a reforma social no Chile seria um desvio do problema perseguido ao longo do trabalho, mais especificamente orientado para as políticas locais de proteção social.

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CAPÍTULO 5 - DAS CONCEPÇÕES À AÇÃO OU ELEMENTOS DE ESTRATÉGIAS DE

INTERVENÇÃO

O objetivo deste capítulo, central para a tese, é apresentar as categorias analíticas que

emergem das considerações feitas nos capítulos anteriores. É grande o desafio de buscar

articular concepções teóricas que partem de tradições intelectuais diferentes, não

compartilham a mesma definição de problemas e se situam em níveis distintos de

abstração. Mas o exercício de construir essas conexões é necessário para avançar na

compreensão dos desafios das políticas de inclusão. As diferenças nas concepções sobre

pobreza (capítulos um e dois) são importantes de serem destacadas não só sob o ponto de

vista analítico ou metodológico, mas também, e principalmente, pelas implicações para os

modelos de ação. Os capítulos três e quatro fornecem outro conjunto de elementos ligados

às políticas públicas e sociais e a combinação desses dois conjuntos de elementos conflui

para o quadro analítico, objeto desse capítulo. Esse arcabouço analítico será contrastado,

no último capítulo, com duas experiências locais de inclusão social recentes de dois

municípios brasileiros, Belo Horizonte e São Paulo.

Partindo do exame das diferentes concepções sobre pobreza, tem-se dois pontos de

chegada distintos. Um decorre da pobreza tratada enquanto problema do conhecimento,

que direcionou a discussão para o exame conceitual e para a operacionalização, dimensão

central para o desenho de políticas e programas sociais. O outro ponto decorre das visões

também distintas sobre as alternativas de intervenção possíveis, o que remete ao tema da

pobreza como problema da ação, situado no campo das políticas públicas.

Trata-se aqui de estruturar um arcabouço analítico que incorpore as principais

contribuições destacadas nos capítulos anteriores. Se a pobreza é entendida como

multidimensional e multideterminada, heterogênea e permeada por elementos psico-

sociais, a decorrência é priorizar estratégias integrais, baseadas em procedimentos flexíveis

e que incorporem dimensões tangíveis e não tangíveis. Busca-se, portanto, construir uma

moldura analítica (componentes conceituais e tradução em dimensões operacionais

consistentes) a partir dos elementos que são decorrentes dos enfoques das capacidades, da

exclusão e da vulnerabilidade. Esses enfoques foram priorizados, pois são eles que

permitem considerar a pertinência da renda para identificar a pobreza, mas ao mesmo

tempo expandir a compreensão da pobreza para além da sua dimensão econômica. As

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perguntas orientadoras do esforço de construção do modelo analítico são: que tipo de

limitações determinadas concepções sobre pobreza colocam para o desenho e gestão de

políticas? Que tipos de intervenções são necessárias, e ao mesmo tempo suficientes, para

fazer frente às problemáticas contemporâneas de destituição? Como foi argumentado

anteriormente, o objetivo maior de construção do modelo analítico é explorar as

decorrências para um modelo de ação. Trata-se assim de responder a pergunta: que

conseqüências e implicações para o desenho de programas e estruturação de sistemas

locais de proteção social advêm quando se parte da perspectiva da exclusão social e

da vulnerabilidade e não de uma visão da pobreza como ausência ou insuficiência de

renda?

Uma hipótese aqui considerada é que, do ponto de vista das políticas públicas, torna-

se necessário utilizar outros parâmetros para enfrentar a pobreza além da renda, pois

essa dimensão não retrata adequadamente a sobreposição de vetores de destituição

identificáveis nas situações de pobreza crônica ou de exclusão. Mesmo supondo que

seja suficiente considerar a pobreza sob a perspectiva monetária, para a renda converter-se

de fato em um elemento de incorporação ou inclusão social é necessário considerar, pelo

menos, a dimensão do tempo. O tempo é importante não apenas para mensurar a pobreza

crônica (e nesse sentido o tempo é considerado no passado), mas também como horizonte

de possibilidades (o tempo para o futuro): não só o volume da renda em um determinado

momento é importante, mas também sua continuidade, o que possibilita um horizonte para

que os indivíduos e famílias estabeleçam uma trajetória de inserção, façam planos,

escalonem prioridades e demandas. Se a renda não é suficiente como estratégia para o

enfrentamento da pobreza, que outros elementos são necessários?

5.1 – Pobreza crônica: a complexidade da intervenção

Uma primeira aproximação para a elaboração do arcabouço analítico retoma a

problemática específica da pobreza crônica, e afirma como suas especificidades limitam o

uso de um enfoque da vulnerabilidade e riscos em sua vertente de corte mais residual,

trabalhada no primeiro capítulo como assets based (e contraposta ao enfoque dos modos de

vida e do portfólio de ativos).

Essa concepção ganha evidência no campo da proteção a partir do enfoque do manejo de

risco, tal como formulada pelo Departamento de Protección Social, Red de Desarrollo

Humano, do Banco Mundial e operacionaliza a proteção a partir de três estratégias de

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políticas: prevenção, mitigação e superação. Na prevenção, tem-se a finalidade de reduzir

a probabilidade de produção de riscos adversos, e deveria ocorrer, portanto, antes que se

produzam os eventos ou choques. As estratégias de prevenção contemplam políticas

macroeconômicas, de regulação, meio ambiente, educação, de prevenção de epidemias,

dentre outras. Na perspectiva preventiva da proteção social, as medidas contemplam a

redução dos riscos de desemprego, subemprego e baixos salários, por exemplo. Na

mitigação, as intervenções voltam-se para a redução dos efeitos de riscos futuros e,

portanto, as estratégias situam-se antes da produção dos riscos, na medida em que buscam

reduzir a repercussão dos riscos, caso esses ocorram. São medidas ex-ante que buscam

reduzir o impacto do choque, e envolvem, entre outras ações, a diversificação da renda, o

que significa o acesso a uma gama mais ampla de ativos e mecanismos formais e informais

de seguros. Na superação, as iniciativas estão desenhadas para aliviar os efeitos dos riscos

já ocorridos, estando dirigidas para enfrentar os choques (Mideplan, 2002, p. 36; Sojo,

2003, p. 137; Holzman, Jorgesen, 2000, pp. 16, 17).

Um ponto importante para a discussão aqui consiste em afirmar que, para alguns autores

(Barrientos e Sheperd, 2003, por exemplo), o tipo de pobreza que parece nortear a

concepção de manejo de risco é a pobreza transitória, sendo a proteção estruturada para

populações que se situam nos limites das linhas de pobreza, sendo mais vulneráveis aos

riscos e às flutuações do mercado de trabalho e às variações bruscas em sua renda. De

acordo com esses autores, críticos do modelo de manejo de riscos, nesse enfoque a pobreza

crônica ficaria ainda fora do radar. O que se afirma é que as noções de vulnerabilidade e

riscos são úteis para entender como se chega a uma condição de pobreza crônica – e, nesse

sentido, vulnerabilidade e risco são os condutores (drivers) para a pobreza -, mas não é

muito claro como eles contribuem para manter as pessoas na pobreza e para transmitir a

pobreza de uma geração a outra (Barrientos e Sheperd, 2003, p. 7). Se focalizarmos os

pobres crônicos, isto é, aqueles que estão há muito tempo abaixo da linha de pobreza e

consumo, e que se encontram em situação de múltiplas privações, a perspectiva exclusiva

dos riscos e da vulnerabilidade não permitiria um entendimento amplo da questão, segundo

o argumento desenvolvido por Barrientos e Sheperd. O foco no risco, nas respostas

comportamentais dos pobres aos eventos de risco (como cálculos aos riscos), não

abarcaria as dimensões estruturais subjacentes à pobreza crônica e que confluem

para sua reprodução. Isso quer dizer que as estratégias de manejo de risco podem ser

úteis para impedir o crescimento da pobreza crônica, mas seriam insuficientes para

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interromper o processo para os que já estão nela mergulhados (Barrientos e Sheperd, 2003,

p. 2).

Uma perspectiva importante de ressaltar aqui é que se o enfoque de vulnerabilidade, nessa

vertente específica, não contempla adequadamente as dimensões estruturais de produção e

reprodução da pobreza crônica, por outro lado permite avançar no desenvolvimento de

tipologias de políticas consistentes com as possíveis posições dos indivíduos na cadeia de

riscos (os eventos de risco, as respostas a eles, os resultados em termos de bem estar), sob a

forma de políticas de prevenção, mitigação e superação, conforme a estruturação do

sistema de proteção sob a égide do manejo de riscos.

Outras tipologias são construídas para organizar a diversidade de tipos de intervenções,

segundo as concepções de base. Por exemplo, tendo como referência a noção de exclusão

(e não mais a de vulnerabilidade), John Hills (2000) fornece parâmetros úteis para

identificar alternativas distintas para o atendimento de pessoas, famílias e grupos,

formuladas a partir de dois momentos distintos: entrada ou saída de uma situação de

adversidade. Um conjunto de intervenções deve ter como foco a prevenção ou redução do

risco da entrada em uma situação de exclusão, por exemplo, através do apoio à educação

ou ao aperfeiçoamento profissional. Como estratégia de saída, a intervenção focaliza a

promoção da saída ou da transição da exclusão para uma situação mais inclusiva, como os

projetos de bolsa trabalho ou de trabalho protegido. Um terceiro conjunto de ações salienta

a proteção diante da ocorrência de determinados eventos, evitando que uma situação

transitória se deteriore em uma situação mais consolidada de exclusão, por exemplo,

através do pagamento de seguro-desemprego. Finalmente têm-se os programas de

propulsão no percurso de saída da exclusão, favorecendo que as trajetórias sejam em

direção a situações mais inclusivas e não de retorno à exclusão, como é o caso do

desenvolvimento de iniciativas de apoio ao desempenho escolar de crianças que tenham

deixado o trabalho infantil (Hills, 2000, pp. 232, 233; Carneiro e Costa, 2003).

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Quadro 9 - Tipologia de estratégias de enfrentamento, segundo John Hills

Situação de entrada em

situação de exclusão

Prevenção (do risco de

entrada)

Proteção (diante da ocorrência

de determinados eventos)

Situação de saída da

exclusão

Promoção da saída

(transição para uma situação

de não exclusão)

Propulsão (saída sustentável

da situação de exclusão)

Fonte: elaboração própria a partir de Hills, 2000, pp. 232, 233.

Algumas evidências são instigantes, como as que mostram que os indivíduos mais pobres,

que conseguem sair da pobreza, têm muito mais chance de voltar a cair nela do que os

indivíduos menos pobres, numa proporção de 25% para 7% (Hills, 2000). Tais

considerações podem condicionar o desenho de estratégias de bem estar social, ao decidir

pela priorização do público em situação de pobreza extrema, construindo alternativas e

“escoras” suficientemente fortes para dar conta do movimento de saída da pobreza e da

sustentabilidade dessa situação.

Do ponto de vista restrito do marco conceitual das políticas de proteção pode-se afirmar

que a pobreza crônica demanda estratégias de promoção, propulsão e proteção, em

intervenções articuladas, intensas e complexas. Para interromper a perpetuação da pobreza,

seria necessário um conjunto amplo de intervenções personalizadas para um público

focalizado. Isso requer desenvolver uma outra lógica de provisão de serviços públicos, que

combine várias políticas dirigidas para enfrentar as privações múltiplas experimentadas

pelos cronicamente pobres, em uma modelagem bastante diferente das intervenções

voltadas para o enfrentamento da pobreza transitória, que podem se concentrar em

expandir o acesso ao mercado e aos mecanismos de seguros, por exemplo.

A distinção entre pobreza crônica e transitória, com o conseqüente exame dos conteúdos e

metodologias de intervenção para uma e outra situação, expande a discussão sobre os

modelos de proteção social, e abre caminho para a análise dos elementos relevantes para o

desenho de estratégias de proteção social.

Vale destacar assim que as problemáticas trazidas pelas concepções de exclusão,

vulnerabilidade e pobreza crônica têm conseqüências para o desenho de políticas.

Para superar a pobreza crônica, tem-se – também do ponto de vista conceitual - que as

políticas de proteção desenvolvidas devem responder ao conjunto de fatores que estão na

sua base, atuando sobre os elementos estruturais que a perpetuam e a reproduzem. O

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principal argumento é que para os que se encontram em uma determinada situação de

destituição, os riscos aos quais estão submetidos e as capacidades de que dispõem para

enfrentá-los os levam a adotar estratégias que acabam por aprisioná-los em um círculo

perverso, ou “poverty trap” (Barrientos e Sheperd, 2003, p. 15). E no que se refere aos

sistemas de proteção, trata-se de indagar, seguindo os autores,

“whether and to what extent or in what way a narrow approach to social protection developed in the 1990s and designed predominantly to prevent the poor from becoming destitute can also play a role in creating conditions for persistently poor people to emerge from poverty, and can even interrupt some of the structural patterns which maintain people in poverty” (Barrientos and Shepherd, 2003, p.3).

Intervenções para redução da pobreza crônica são mais dispendiosas e demoradas do que

as intervenções voltadas para redução da vulnerabilidade (Barrientos e Sheperd, 2003, p.

12). O tempo de maturação exigido das intervenções para produzir mudanças nos padrões

de pobreza crônica é muito amplo. Em regimes políticos democráticos, com processos

eleitorais regulares, o tempo é uma variável política importante. Além dos custos e do

tempo, o suporte político necessário para legitimar políticas de combate à pobreza crônica

é mais difícil de se alcançar, dada a complexidade e os resultados mais incertos das

políticas.

O enfrentamento da pobreza crônica exige políticas intensas e prolongadas no tempo,

envolvendo um conjunto mais amplo de ações e setores. O desafio é encontrar

resposta para a seguinte indagação: que políticas (conteúdos e abrangência) são mais

promissoras para interromper e reverter processos de pobreza crônica? A superação

da pobreza crônica requer a combinação de elementos que considerem a

multidimensionalidade das privações, a presença de dimensões menos tangíveis e a

heterogeneidade que advém das interações e das combinações específicas entre os

diversos vetores de destituição.

Esses são os temas tratados nos itens abaixos. Desses temas decorrem as questões da

intersetorialidade e da integração no território, da flexibilização na oferta de serviços

e o foco na autonomia e empoderamento de pessoas, famílias e regiões, que são os

ingredientes de uma agenda renovada para a proteção social e combate à pobreza no

âmbito local.

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5.2 Multidimensionalidade e intersetorialidade

Quando se adota uma concepção ampliada de pobreza, expandida pela perspectiva da

exclusão e da vulnerabilidade, tem-se uma realidade multifacetada de carências e privações

em interação, sustentando-se reciprocamente, gerando círculos perversos de exclusão.

Como discutido no primeiro capítulo, a pobreza é multifacetada, o que significa que para

sua produção e reprodução convergem fatores de natureza diversa, o que remete,

invariavelmente, a diferentes setores das políticas públicas. O enfoque da exclusão, o dos

modos de vida e as análises sobre pobreza crônica, principalmente, salientam o mesmo

ponto: pobreza envolve uma multiplicidade de dimensões, fatores ou vetores de

destituição. Nas situações de pobreza convergem fatores de natureza socioeconômica,

culturais, familiares, individuais e institucionais, conformando trajetórias distintas e

demandando ações públicas de conteúdos, abrangência e objetivos diversos.

Para os que se encontram muito abaixo da linha da pobreza por um tempo longo são

necessários “interruptores” (na terminologia de Alwang, Siegel e Jorgesen, 2001) variados

para possibilitar uma saída da condição de pobreza. A severidade não se expressa apenas a

partir do hiato de renda, mas sim pelas várias dimensões nas quais as privações são

experimentadas. A multiplicidade das privações teria relação direta com a cronicidade da

pobreza e sua transmissão intergeracional.

A multidimensionalidade da pobreza e a interação complexa entre os diversos vetores de

destituição exigem políticas diversificadas, combinadas para propiciar prevenção,

mitigação e superação da pobreza, que possam funcionar como redes de barreira e de

impulso com as quais as famílias, nas diversidades de situações, possam contar.

Concretamente podem-se identificar algumas dimensões relevantes para analisar os

processos de exclusão social. Antes de tudo, a dimensão econômica, a ausência de renda.

Não tem como negar esse ponto básico e irrefutável, principalmente em se tratando de

sociedades monetarizadas. Além da renda, tem-se a dimensão dos bens e serviços aos

quais as pessoas e famílias têm acesso e que marcam situações de inserção ou de não

inserção no conjunto das políticas de proteção. A terceira seria a inserção no mundo do

trabalho, o que envolve não apenas acesso à renda, mas também a uma identidade e

dignidade social. A dimensão dos laços sociais e a vigência de mecanismos de

solidariedade e reciprocidade corresponde ao quarto grande conjunto relacionado aos

processos de exclusão. Além disso, tem-se o âmbito dos aspectos subjetivos, relativos a

valores e atitudes e, finalmente, a dimensão da territorialidade, pois os territórios, através

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do estigma e da segregação, podem agregar outro componente aos processos de exclusão

(Corera, 2002, p. 335).

Para contemplar todas as dimensões, a conseqüência é desenhar estratégias de

intervenção capazes de abranger distintos setores das políticas públicas, remetendo à

atuação conjunta e necessária de vários programas e iniciativas sociais. Esta exigência

se traduz, no plano do desenho de políticas, em intervenções intersetoriais. A

intersetorialidade na gestão é a contraface da multidimensionalidade da pobreza.

Essa perspectiva é especialmente necessária no caso da pobreza crônica, extensa no tempo

e intensa nas várias dimensões da privação. Seja na prevenção, mitigação ou nas

estratégias de superação, são numerosos os condutores para a pobreza crônica

(desigualdade, dinâmicas mercado de trabalho, choques econômicos e políticos, áreas

remotas e estigmatizadas, vulnerabilidades múltiplas, baixo status de ativos), sendo

cronicamente pobres os que apresentam combinações de vetores diversos de

vulnerabilidades: dados pela faixa etária, pelos problemas relativos aos territórios e áreas,

condições de saúde, status social (grupos étnicos, religiosos, migrantes, refugiados etc.),

incorporação adversa no mercado de trabalho, características diversas (raça, gênero

deficiência etc), dentre outros.

“These drivers, maintainers and interrupters may be single, sequential and/or combinations. The more chronic and intractable the poverty, the more likely it is that we should be looking for sequences and combinations of factors to enable escape from, or even further slide into poverty” (Hulme, Moore e Sheperd, 2001).

A operação de múltiplos condutores, mantenedores e interruptores (drivers, maintainers e

interrupters, nos termos de Hulme, Moore e Sheperd, 2001) da pobreza crônica impõe a

abordagem intersetorial, uma vez que requer a convergência, para um mesmo público, de

um conjunto de ações orientadas a reverter, prevenir ou mitigar os seus efeitos, dando

forma a um sistema de proteção que funcione como rede e também como mola de

propulsão para que indivíduos, domicílios, grupos e regiões consigam a saída sustentável

dessa condição.

Como viabilizar ações e políticas integradas, focadas no desenvolvimento integral das

pessoas em diversos âmbitos: educacionais, de saúde e bem-estar, trabalho e renda,

habitação, acesso à cultura, ao lazer, ao universo da cidadania? Para superar de forma

sustentável as situações de exclusão é necessário desenvolver um conjunto de ações

diferenciadas, intersetorialmente articuladas, o que exige mais do que uma simples

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conexão ou agregação de setores. A demanda é por uma estratégia mais coletiva de

enfrentamento da pobreza. A intersetorialidade é uma decorrência lógica da concepção da

pobreza como fenômeno multidimensional. Esse é o primeiro registro sob o qual examinar

o tema da intersetorialidade.

O segundo ponto diz respeito a intersetorialidade como estratégia de gestão, de natureza

mais institucional e organizacional. A gestão segmentada e setorializada e a definição

setorial das políticas já não respondem de forma adequada aos desafios atuais. Nessa

perspectiva, os modelos de bem estar social emergentes valorizam a perspectiva da

integralidade da gestão. A intersetorialidade responderia assim não somente a um

requisito de natureza substantiva, relativo à natureza da pobreza mas estaria também

articulada a uma exigência no âmbito técnico e institucional, como estratégia

adequada para aumentar a eficácia das políticas e como resposta aos desafios

colocados para as políticas de proteção social, em especial as de combate à pobreza.

5.2.1 Transversalidade, intersetorialidade ou articulação: aspecto central da ação contra

a pobreza

Formular e implementar estratégias de intervenção que partam de uma visão

multidimensional da pobreza e do reconhecimento de sua heterogeneidade demandam

ações articuladas, coordenadas ou ainda desenvolvidas de forma intersetorial ou

transversal. A intersetorialidade como diretriz exige mais do que uma articulação ou uma

comunicação entre os diversos setores sociais. Ela pode apontar para uma visão integrada

do problema da exclusão, uma perspectiva que situa a pobreza como um problema

coletivo, que diz respeito ao conjunto da sociedade e que deve ser coletivamente

enfrentado159. Além dessa perspectiva, tem-se um uso mais comum e menos abstrato do

termo intersetorialidade, que remete à intersetorialidade como ferramenta de gestão, na

visão da questão do ponto de vista organizacional.

Transversalidade é um instrumento de gestão de uma “visão poliédrica da sociedade”, uma

adaptação necessária por parte das organizações públicas para enfrentar a multiplicidade

de dimensões presentes situações de pobreza. Nas palavras de Serra, a abordagem

159 A relação entre esses pontos não é óbvia, mas pode-se sugerir que a perspectiva da intersetorialidade, no caso das políticas de enfrentamento da pobreza, ao espelhar uma visão multifacetada do problema, encontra correspondência, em outro nível de análise, com uma visão da pobreza como problema coletivo, que não se refere a um único ator (governo) e nem a apenas determinados setores do governo. Aponta, portanto, para uma visão mais compreensiva e coletiva do problema da pobreza, o que remete a uma tendência para o desenvolvimento de políticas de caráter mais universal.

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transversal “es una alternativa limitada de la que dispone la organización para hacer

frente a la multiplicidad de caras que tiene la realidad” (Serra, 2004, p 7). Programas e

ações centradas nas necessidades das famílias, indivíduos e grupos, aderentes às demandas,

supõem e requerem, para sua operacionalização, uma gestão que supere a fragmentação.

Para a operação dos serviços locais de proteção social existem especificidades não apenas

quanto ao conteúdo, mas também quanto às estruturas de organização e gestão. Um dos

pontos salientados na vasta literatura que trata do tema das mudanças nos modelos e

práticas de gestão pública e social é a tensão entre a necessidade de especialização (para

atender a demandas diferenciadas) e a integração (para possibilitar uma visão global sobre

as pessoas atendidas e seus problemas).

As mudanças no campo da gestão pública, conforme apontado no capítulo anterior em

relação aos serviços pessoais, manifestam-se a partir de uma nova cultura de gestão que se

contrapõe às

“tendências jeraquizantes, compartimentalizadoras, procedimentales y endogámicas de la ortodoxia burocrática para acercarse a un modelo que pretende introducir dinámicas participativas, integradoras, dirigidas a los resultados y en contacto directo con el entorno” (UAB, 1998, pp. 40,41).

A organização pública tradicional, ou o modelo estável de gestão, como designado por

Brugué (ano, p.93) é o campo das especializações funcionais, do profissionalismo, com

estratégias de implementação centralizadoras e com ênfase na provisão e monopolização

da prestação dos serviços. Contrapõe-se a um modelo dinâmico, baseado na proximidade,

na participação, com ênfase na descentralização e na habilitação no campo da oferta de

serviços, o que remete ao papel estratégico e relacional dos agentes (Brugué, ano, p. 96).

Para uma gestão afinada com a perspectiva da integralidade tem-se, segundo Brugué, duas

vias. Uma, no âmbito da concepção dos problemas e da atuação dos gestores, como uma

forma de pensar integralmente a realidade, o que envolve mudanças no âmbito cultural e a

aceitação de outros princípios e estratégias de ação; e outra no âmbito das estruturas

organizativas, inovando em relação às segmentações existentes. Brugué identifica assim

gestão e organização como duas vias nas quais a intersetorialidade se situa. Em um caso,

como afirma Brugué, tem-se que a integralidade das políticas decorre de uma visão e uma

cultura de gestão “que incorpore la comprensión compleja de los problemas y que, de esse

modo, acepte la integralidad y la transversalidad como uma premisa de trabajo”. Em

outro, no nível da organização, o ponto refere-se à integralidade na provisão dos serviços,

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bens e políticas e que “crucen las clásicas segmentaciones profesionales y que permitam

ubicar em los circuitos de trabajo problemas complejos y multidimensionales” (Brugué,

ano, p. 94)160.

Esse ponto remete ao tema da intersetorialidade ou da articulação mais ou menos intensa

entre os diversos setores governamentais na formulação e gestão de políticas públicas e

sociais. A intersetorialidade se diferencia, ainda que de maneira sutil, da articulação ou

coordenação das ações, uma vez que, em uma versão “forte”, envolveria alterações nas

dinâmicas e nos processos institucionais e no desenho e conteúdos das políticas setoriais.

Coordenação é um termo que sinaliza um processo de articulação institucional que não

pressupõe, necessariamente, alterações nas estruturas ou dinâmicas existentes nos diversos

setores. A questão, contudo, é controversa. Para alguns autores, como Fabian Repetto

(2004), a articulação intersetorial pode ser entendida como uma manifestação de

coordenação. Para Serra (2004) e Cunnil Grau (2005), vale a pena ressaltar as

especificidades da intersetorialidade em relação aos elementos da coordenação.

A emergência do tema da intersetorialidade na agenda pública vem mesclada com outros

termos – transversalidade, cross cutting, matricialidade - sendo difícil estabelecer, sem

ambigüidades, os limites e as distinções entre eles. Contudo, tais concepções acenam para

um conjunto de inovações no âmbito da gestão pública, em um contexto no qual os

sistemas técnicos especializados e as estruturas fortemente hierarquizadas e verticais são

confrontados com novos objetivos e demandas políticas e sociais, novas temáticas e novos

segmentos da população, que demandam uma remodelagem das velhas estruturas

organizacionais, exigindo novas respostas organizativas das quais a intersetorialidade é

apenas uma das alternativas possíveis.

A abertura para uma visão de trabalho horizontal é o ponto chave e que caracteriza, de

forma geral, tais formulações. De forma explícita, Serra distingue transversalidade da

cooperação inter-administrativa, da parceria público - privada, da participação cidadã, do

estabelecimento de alianças estratégicas, da estruturação e gestão de redes (Serra, 2004, p.

160 A estruturação da perspectiva da integralidade pode ser visualizada, no plano organizacional, nas mudanças de organograma. Um organograma mais integrado compõe-se não de inúmeros “caixotinhos” diversos e desconectados, como acontece nos modelos com excesso de especialização, mas de formação de áreas de ação, que buscam reduzir a sobreposição e duplicidade de ações. Mas, de acordo com Brugué, as experiências com estruturas integradas não resolveram os problemas, gerando outros, criando estruturas intermediárias sem poder suficiente de direção, complicando e alargando ainda mais os organogramas municipais. A matricialidade é uma outra inovação organizativa e que permite uma coordenação constante e em todos os níveis, como afirma Brugué (ano, p. 97).

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8). Todos esses seriam instrumentos de gestão organizativa, da mesma forma que a

transversalidade, que pode ser definida como “instrumento organizativo adecuado para

incorporar, en el trabajo del conjunto, o de una parte significativa de la organización, el

tratamiento de políticas, problemas, puntos de vista, segmentos de población, etc. que

reflejan la multidimensional de la realidad, sin eliminar ninguna de las dimensiones ya

incorporadas en su trabajo a través de la estructura orgánica básica“ (Serra, 2004, p. 8).

Questões relativas à dimensão não-material da pobreza, igualdade de gênero161,

sustentabilidade, por exemplo, não são enquadradas em nenhum dos setores

tradicionalmente existentes nas administrações públicas e demandam estruturas

organizativas novas.

Transversalidade e intersetorialidade, tratadas aqui de forma intercambiável, são

entendidas como meios de gestão, que podem se constituir a partir de critérios territoriais, a

partir de eixos temáticos (exclusão, imigração), de faixas de idade ou de determinados

coletivos (famílias monoparentais, deficientes, grupos étnicos etc.), sinalizando uma visão

mais global pautando

“estratégias que dan lugar a procesos de actuación multidimensionales, pero enhebrados por um hilo conductor, por un eje que se proyecta sobre múltiples campos específicos de políticas pública local” (Blanco e Gomà, 2003, p.24).

Um ponto de partida importante para localizar o debate sobre intersetorialidade do ponto

de vista da gestão adota a perspectiva de que tais arranjos, intersetoriais ou transversais,

constituem uma parte soft da organização, enquanto dimensão complementar à estrutura

organizativa básica ou hard (Serra, 2004, pp. 2,3). Isso quer dizer que a perspectiva da

intersetorialidade ou da transversalidade não pretende substituir as estruturas setoriais

existentes, embora pressuponha a introdução de novos pontos de vista, novas linhas de

trabalho e de objetivos em relação aos já existentes nos diversos setores (Serra, 2004, p. 4).

Albert Serra aponta como uma especificidade das estruturas transversais em relação às

verticais, é que as primeiras“no incluyen la gestión operativa ni la producción y si

incluyen el análisis y la relaciona con el entorno, de diseño de los objetivos y la

planificación estratégica y operativa, el seguimiento y la evaluación del resultado

operativo y social, y la evaluación estratégica” (Serra, 2004, p.9). A capacidade de gestão

e de produção pertence às estruturas verticais e setoriais. Isso quer dizer que os órgãos 161 De acordo com Albert Serra, o uso pioneiro do termo transversalidade ocorreu nos anos 90, por ocasião da Quarta Conferência da Mulher da ONU, em Beijing, atrelada ao tema da igualdade de gênero, entendida como instrumento de implementação de políticas públicas de promoção dessa igualdade (Serra, 2004, p. 5).

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transversais são, nos termos de Serra, sistemas de relacionamento e de conhecimento

e que alimentam as organizações de visões específicas e objetivos estratégicos de

mudança social (Serra, 2004, p.9). Embora não participem da gestão operativa do dia a

dia, os órgãos transversais acompanham e monitoram o impacto da gestão transversal, o

que os mantém ligados ao processo operativo, ainda que não diretamente.

A transversalidade confere um foco à organização, dirigindo a atenção para aspectos e

temas considerados centrais e permitem intensificar a atuação sobre eles. O gestor da

transversalidade necessita operar com instrumentos de gestão estratégicos, com domínio

dos instrumentos de análise e desenho, de gestão relacional, gestão política e avaliação. As

atividades principais para o trabalho transversal, segundo Serra residem a) na produção,

análise e difusão de informação e conhecimento, com a criação, gestão e suporte de

expertise, experiências, técnicas e boas práticas para subsidiar a direção política e os

órgãos verticais; b) no desenho e formulação de objetivos estratégicos, concepção e

desenvolvimento de políticas e metodologias de trabalho e c) estruturação e gestão de

redes relacionais internas e externas de tipo multilateral (Serra, 2004, pp.12-13). O trabalho

transversal exige, sobretudo, recursos estruturados em torno de dois eixos: conhecimento

(capacidade de análise, de formulação de estratégias) e capacidade relacional, o que

limitaria, para esse tipo de gestão, o papel de recursos econômicos convencionais

(orçamento, pessoal ou infra-estrutura), que são centrais nas estruturas verticais de gestão.

A dimensão da capacidade relacional associa-se diretamente ao conceito de governança,

como visto aqui. A gestão transversal permite conferir uma visibilidade horizontal à

organização sem que se perca a qualidade técnica e a especialização, dimensões

importantes e que dão forma à estrutura organizativa mais “dura” da organização.

Pode-se pensar, como uma hipótese de trabalho, que a noção de intersetorialidade

situa-se em um contínuo que abrangeria desde a articulação e coordenação de

estruturas setoriais já existentes até uma gestão transversal, configurando formas

intermediárias e arranjos organizativos que expressam a intersetorialidade de baixa

ou de alta densidade. O posicionamento das iniciativas e arranjos nesse contínuo vai

depender do grau de legitimidade e da centralidade do tema na agenda pública e no

plano decisório; da magnitude dos arranjos e alterações institucionais necessárias

para viabilizar a gestão horizontal das políticas; das alterações nas rotinas, práticas

de trabalho e metodologias de entrega dos bens e serviços.

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Não existem formatos pré-definidos de programas ou estratégias intersetoriais no campo

das políticas sociais162 ou de políticas mais específicas para o enfrentamento da pobreza;

mas pode-se dizer que na origem de estratégias com esse formato existe sempre um

diagnóstico sobre o caráter multideterminado e multifacetado do fenômeno da pobreza ou

dos problemas sociais em geral.

A estratégia da intersetorialidade pode permitir maior eficiência e resultados mais

significativos quanto ao impacto e sustentabilidade das políticas, evitando sobreposições

de ações e garantindo maior organicidade às mesmas. Permite, sobretudo, uma resposta

integral e dessa forma mais adequada e pertinente aos problemas identificados. Para

viabilizar a horizontalidade, contudo, muitos são os limites. A lógica da setorialidade se

expressa não só na cultura organizacional, estruturada em secretarias e programas

especializados, como também nos mecanismos de destinação dos recursos e nos sistemas

de informação. A inexistência de sistemas de informação compartilhados constitui um

outro importante obstáculo para o desenvolvimento da gestão intersetorial. A maioria dos

repasses, principalmente nas áreas de saúde, educação e assistência social, é destinada para

fortalecer ações setorializadas. Conseguir esta articulação, inclusive do ponto de vista

financeiro, não é algo simples e demanda um longo prazo para sua efetivação, além de

forte adesão política e esforço de construção de estruturas e práticas institucionais

adequadas para a gestão coordenada e intersetorial de políticas. O orçamento por rubricas

constitui um nó central para o desenvolvimento da intersetorialidade. Como aponta Grau

(2005, p. 7), o orçamento pode atuar como um importante mecanismo produtor de

intersetorialidade, se e na medida em que as diretrizes conjuntas sejam materializadas em

planos e orçamentos. Não são triviais os desafios que se enfrentam na prática para a

implementação da intersetorialidade, ainda que essa seja uma diretriz e objeto de consenso

e conte com a adesão retórica de um conjunto expressivo de atores. Uma citação permite

elucidar o ponto:

“Muitas vezes, quando a intenção é otimizar os recursos públicos, as instituições resistem, disputando as populações, e nessa atividade promovem uma espécie de fragmentação da pobreza e, ainda, introduzem desigualdades entre os públicos das políticas e dos programas. Essas disputas, entretanto, aparecem camufladas pelos

162 Alguns exemplos de programas intersetoriais são fornecidos por Fernandez e Castiella (1998), que elencam algumas iniciativas que são desenvolvidas a partir dos anos 80 na Espanha, tais como o Projeto Jovem, de Barcelona, que funcionou para dar consistência ao princípio de políticas integrais, ao articular as diversas políticas setoriais em torno desse subconjunto da população. Posteriormente outras estratégias de políticas são desenvolvidas, nesse mesmo formato (Plan para Gente Mayor, Plan Municipal de la Mujeres, Plan de Infância, Plan de la Interculturalidad, voltado para integração de imigrantes e minorias étnicas, dentre outros).

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argumentos da focalização, da seletividade e por outros meios menos engenhosos” (Ana Fonseca, apud Campos, 2004, p. 165 ).

Para que a incorporação da gestão transversal possa se efetivar, é necessário que existam

estruturas organizadas com legitimidade política e gerencial e capacidade e

reconhecimento técnico. Além de contar com tais atributos, os instrumentos de gestão

transversal podem ser diversos, como comissões interdepartamentais, unidade de

integração (que se referem às formas de contato com os usuários), mesas intersetoriais,

estruturas de processos intersetoriais, grupos de trabalho, atividades relacionais como

seminários, sessões de trabalho, dentre outros (Serra, 2004, pp.17-18). Esses se configuram

como instrumentos intraorganizacionais, aos quais devem-se somar os

interorganizacionais, aqueles que vinculam a organização com seu entorno e que se

expressam em institucionalidades como órgãos de articulação social ou órgãos de

participação cidadã.

Além de estratégias de gestão integradas e de processos de reorganização

administrativa, que constituem as duas vias para desenvolver um enfoque intersetorial,

segundo Cunill Grau (2005), tem-se o desafio de criar viabilidade política ou uma

ambiência necessária para a emergência e o exercício da intersetorialidade. Não é razoável

supor que um processo que envolva partilha de recursos e poder não leve a conflitos e

disputas, mas o ponto é que estes podem ser neutralizados ou minimizados pela criação de

“comunidades de sentido”, nas palavras de Grau, que se refere a visões e objetivos

compartilhados (2005, p. 9). Criação de fóruns e espaços para deliberação e direções

colegiadas e a elaboração de planos elaborados de forma conjunta e participativa são

dispositivos que contribuem para a legitimação da perspectiva da intersetorialidade. Um

ponto importante, sustentado empiricamente e salientado por Grau, é que a

institucionalidade política dominante atua como condicionante da intersetorialidade. Em

alguns contextos políticos simplesmente a intersetorialidade não pode emergir e mesmo a

coordenação é difícil, o que indica o fundamento político da intersetorialidade e o papel do

agente catalisador da autoridade política, nas palavras de Grau, para viabilizar a

participação e o envolvimento efetivo (e não apenas retórico) dos diversos setores.

O desafio da intersetorialidade consiste, portanto, em como unir, em uma ação conjunta,

instituições com objetivos, dinâmicas e culturas organizacionais distintas. A resposta, mais

ou menos óbvia, está nos objetivos comuns que possam ser identificados, nos resultados

que se queira produzir conjuntamente. A elaboração de diagnósticos comuns ou pactuados

dos problemas pode ser um meio que possibilite a intersetorialidade. A perspectiva da co-

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responsabilização ganha relevância, uma vez que as diversas instituições passam a ser

responsáveis pelo alcance dos resultados ou objetivos comuns acordados. O argumento

principal é que a intersetorialidade é um atributo necessário (embora necessário em graus

variados a depender das distintas situações) da gestão de políticas sociais adequadas para

fazer frente aos desafios da pobreza e da exclusão e de situações específicas de

vulnerabilidade. Esse ponto liga a questão da intersetorialidade de forma mais direta à

heterogeneidade da pobreza, que será visto na próxima seção.

5.3 Heterogeneidade da pobreza, flexibilidade na oferta dos serviços e território

Além da multidimensionalidade da pobreza e a conseqüente adoção da perspectiva

intersetorial na produção de políticas sociais, outro aspecto é a relação entre a focalização

no território e a possibilidade de uma visão mais global e integrada da realidade e das

políticas a serem desenvolvidas. A dimensão da territorialização surge a partir do

reconhecimento da heterogeneidade da pobreza e interdependência entre os diversos

vetores da exclusão, e também da combinação múltipla de vetores de inclusão ou inserção

social. Reconhecer a heterogeneidade da pobreza e a diversidade de formas de

manifestação demanda estratégias de ação moldadas a partir das necessidades das

pessoas e famílias, mais flexíveis e sensíveis para captar especificidades. Em

decorrência desse reconhecimento, três questões emergem como centrais para o

desenho de políticas de inclusão social: a) a centralidade do território para as

políticas sociais, seja como elemento para o diagnóstico e focalização como objeto da

intervenção; b) a noção de infra-estrutura social, que combina a noção de território

com a de comunidade e c) a atenção necessária à formas flexíveis de provisão dos

serviços.

5.3.1 Território: políticas territoriais e políticas territorializadas

A temática do território ganha relevância como um elemento que contribui para explicar a

permanência e a reprodução das condições de pobreza crônica. Se o território é parte do

problema, pode também ser parte da solução e nesse sentido a categoria de território

emerge como parâmetro para focalização da ação governamental nas políticas contra a

pobreza e como unidade de intervenção. Quando se diz que o território é uma unidade de

intervenção, afirma-se que é algo a ser gerido e transformado por meio da ação

governamental.

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Uma distinção relativa à categoria de território, conforme salientada por Brasil (2004), é

importante de ser resgastada aqui. Trata-se da distinção entre políticas territoriais e

políticas territorializadas, o que permite entender as formas diferenciadas pelas quais a

categoria do território pode ser considerada nas estratégias de inclusão social. Na distinção

que Brasil recupera, nas políticas territoriais o território emerge como “espaço privilegiado

de formulação e gestão territorializada, implicando a mobilização dos recursos locais

para tratar os problemas sociais”. As políticas territorializadas, por sua vez,

“correspondem à aplicação local de uma política a um território, o que, em certa medida, ocorre em face dos processos de descentralização. Constituem-se como alternativa aos modelos tradicionais das políticas sociais, implicando a incorporação da intersetorialidade nas lógicas de intervenção. Essas políticas remetem, portanto, à redefinição do mecanismo de focalização a partir da dimensão do território” (Brasil, 2004, p. 56).

Considerar a dimensão do território e a comunidade contribui para uma melhor

compreensão do problema, ou funciona como uma outra lente sob a qual ver os processos

de pobreza e exclusão, que acontecem em territórios, permeados por relações sociais e

laços de respeito, cooperação e conflito, reciprocidade, atuação de redes institucionais e

comunitárias. O foco na dimensão do território e das áreas contribui para compor o

arcabouço de análise dos processos de exclusão nos espaços urbanos modernos.

Richardson e Mumford (2002), Lupton e Power (2002) e Kleinman (1998) incorporam a

dimensão espacial, do território, da comunidade e da vizinhança como dimensões

estruturantes da própria concepção de pobreza. As comunidades e territórios constituem,

nesse sentido, as unidades privilegiadas de análise.

Os campos da economia, da sociologia urbana e da política social diferem quanto à

percepção do lugar e do papel do território na explicação da pobreza e quanto às estratégias

para enfrentá-la. Um debate intenso permanece, indagando sobre a pertinência, e mesmo a

legitimidade, do enfoque do território como estratégia de redução da pobreza, uma vez que

o foco nessa dimensão obscureceria as causas da desigualdade163. Embora existam críticas

e ceticismo quanto à pertinência do enfoque do território para o entendimento e o

enfrentamento da pobreza e da exclusão, o fato é que, apesar de que tais processos tenham

causas macro, nacionais e internacionais, a pobreza e a exclusão são geograficamente 163 No entanto, esse enfoque não é novo. Os pioneiros no estudo da pobreza, Rowntree e Booth, no final do século XIX, realizaram o primeiro estudo focado em áreas sobre o tema da pobreza, considerando os diferentes matizes da vida local, antecedendo os sociólogos posteriores da Escola de Chicago, no século seguinte. Entretanto, embora os dois autores reconhecessem a dimensão central do território na compreensão do fenômeno, não o consideravam como estratégia para ações anti-pobreza (Glennerster, Lupton, Noden, Power, 1999).

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concentradas e o crescimento e a prosperidade para a sociedade como um todo não

necessariamente contribuem para reverter processos nas áreas mais pobres164.

Mesmo que haja expansão, existe uma importante parcela que fica de fora: “growth and

prosperity for the whole society does not necessarily aid the poorest areas” (Glennerster,

Lupton, Noden, Power, 1999, p. 5). A maré cheia não levanta todos os barcos, para usar

uma expressão corrente no debate sobre o tema da pobreza.

A partir da categoria de espaço articulam-se os determinantes macro e micro de análise,

sendo que território e comunidade, termos distintos mas aqui interrelacionados, são

elementos para possíveis conexões entre o campo estrutural e o individual. Os chamados

“efeitos de vizinhança” exemplificam esse tipo de relação macro-micro e explicam porque

nem todas as áreas respondem da mesma forma às grandes mudanças que acontecem na

sociedade como um todo. Não se sabe ao certo quais seriam as relações de causalidade,

mas tem-se evidências empíricas de que nas áreas de extrema pobreza existem dificuldades

muito maiores para transpor as privações, uma provável decorrência da operação de

múltiplos vetores de destituição que se somam, interagem e se reforçam mutuamente.

Estudos estatísticos têm permitido evidências importantes acerca dos impactos da

concentração e da persistência da pobreza nas condições de vida e no bem estar de famílias

e crianças pobres (Glennerster, Lupton, Noden, Power, 1999, p. 7). A conclusão é que

incorporar a dimensão territorial importa, e muito, para explicar e combater a pobreza,

sendo necessário desenvolver estudos que busquem explicar como tais fatores interagem,

em determinados locais, para o recrudescimento e a permanência da pobreza165.

O ponto central de grande parte da produção sobre o tema da pobreza e território é que

existem áreas que, por conta também dos efeitos de estigmatização, podem exacerbar e

recriar a pobreza (Torres e Marques, 2004). Pessoas que moram em determinadas áreas

segregadas têm mais dificuldades de conseguir emprego, crédito, contam com serviços 164 Alguns dados podem permitir exemplificar tais questões: a pobreza em algumas áreas com grande concentração de negros em Chicago cresceu de 30% para 50% entre os anos 70 e 90, enquanto que para a cidade como um todo o crescimento da pobreza foi apenas de 7%. A tese defendida por alguns autores é de que as mudanças no padrão de emprego urbano provocam efeitos de polarização que, uma vez postos em movimento, se tornam auto motivados, ou “self reinforcing” (Wilson, 1997 in Glennerster, Lupton, Noden, Power, 1999, p. 5). 165 Como interagem a política habitacional e a de educação? E as políticas de transporte e qualidade da alimentação? Como educação e saúde se conectam, quais as relações entre a escolaridade da mãe e mortalidade ou escolaridade futura dos filhos? Como se explicam as relações e interações entre processo de estigma de áreas, declínio de serviços locais e perda de indústrias e pontos de comércio? Sob denominação de efeitos de vizinhança, trata-se da necessidade de estudar como fatores diversos interagem para permanência e recrudescimento da pobreza. Com perguntas como essas, Glennerster, Lupton, Noden, Power (1999) apontam para a existência de um importante campo de estudos aberto e ainda relativamente pouco explorado.

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piores, os seguros são mais caros, o que faz com que as condições dos pobres em áreas

segregadas sejam piores do que se eles morassem em outras áreas. Quer dizer, mantendo-

se sob controle as demais variáveis, dentre as pessoas que apresentam a mesma renda, as

que moram em áreas segregadas apresentam uma condição pior de vida e menos chances

de superação da condição de pobreza.

Uma abordagem interessante por sua clareza e pelo caráter de síntese que apresenta em

relação ao tema do território, comunidade e políticas públicas é a de Richardson e Munford

(2002), que a desenvolvem sob a concepção de infra-estrutura social. Esse é o tema da

próxima seção.

5.3.2 Infra-estrutura social: um enfoque pertinente sobre território e comunidade

As concepções de comunidade166 e vizinhança remetem à dimensão do espaço. Uma

perspectiva sustentada por essas categorias e alinhada a uma visão sociológica considera a

dimensão da infra-estrutura social e focaliza os aspectos da organização social,

compreendidos como elementos centrais para a viabilidade de uma área ou vizinhança

(neighbourhood). Richardson e Mumford analisam as áreas e os processos de degradação e

regeneração que aí têm lugar tendo como base os conceitos de comunidade, vizinhança e

infra-estrutura social. As autoras utilizam o termo infra-estrutura social para definição de

comunidade, e nesse termo incorporam: a) os serviços e facilidades existentes, tais como

habitação, acesso a crédito, educação, saúde, assistência à infância, meio ambiente bem

cuidado e transporte, dentre outros; b) a organização social, identificada a partir da

existência e da qualidade das redes de amizade, da existência de pequenos grupos

informais e do desempenho dos mecanismos de controle social, como regras e normas

coletivamente partilhadas. Infra-estrutura social comportaria ambos aspectos presentes na

concepção de vizinhança: pessoas e lugares. Nesse sentido, a noção pressupõe tanto as

redes de serviços e bens existentes na comunidade quanto os aspectos da organização

social (Richardson e Mumford, 2002, p. 203). As autoras, sobretudo, estão interessadas

166 Território refere-se a espaços geograficamente limitados enquanto comunidade é um termo que pode se distanciar da dimensão física e remeter a comunidades fundadas sobre outros princípios além da dimensão do espaço. Comunidade pode se sustentar em idéias, valores, identidade, tradição; e território, em um nível mais geral, está mais colado ao plano físico. Estaremos aqui nos referindo mais a território como categoria de base, sendo que comunidade refere-se a processos de natureza social que podem ou não aí ter lugar. No caso de Richardson e Mumford (2002), esses termos são sobrepostos.

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em examinar o papel de grupos de residentes e da organização social, de forma mais geral,

na recuperação de áreas degradadas.167

A importância da infra-estrutura social torna-se perceptível quando se analisam exemplos

de onde ela foi quebrada, como é o caso em áreas em declínio, em processo de

degeneração168. As autoras sustentam que a diferença entre tais comunidades degradadas e

as que têm uma infra-estrutura social saudável está na qualidade da organização social, na

capacidade da maioria fazer cumprir as regras169. Quando essa capacidade diminui,

aumentam atos de vandalismo, crimes e comportamentos anti-sociais, combinados com a

crescente perda de autoridade dos representantes do poder público, que se sentem

incapazes de fazer frente às novas demandas, contribuindo para o enfraquecimento do

controle social e para a má imagem da região, condenando seus moradores a uma espiral

negativa e comprometendo todos os aspectos da infra-estrutura social: instalações, serviços

e organização social. Nas palavras das autoras,

“as the impact of the minority became stronger, an alternative set of accepted behaviors arose. A kind of negative social infrastructure made car-smashing by children, openly injecting drugs in stairwells, disposing of dirty nappies by chucking them out of the window, hostility toward your neighbors, seem like the norm, even when many people in the neighborhood were still quietly rejecting those ways of behaving. Negative social networks arose for the distribution for drugs and stolen goods, again even when the majority took no part in them” (Richardson e Mumford, 2002, p. 208).

O processo de declínio das áreas ocorre a partir de uma série de acontecimentos

interligados e não é esse o ponto que interessa diretamente aqui. O fato é que se trata de

167 Grande parte do texto é dedicada ao exame da atuação de pequenos grupos de moradores na regeneração das quatro áreas estudadas, examinando as famílias que ficaram nas regiões em processo de degeneração, se comprometeram com ela e contribuíram, de forma crucial, para a mudança na condição de decadência na qual tais áreas estavam inseridas, revertendo a espiral negativa e colocando em marcha processos de regeneração. Seja a partir de ações diretas de atendimento a grupos vulnerabilizados ou a partir de ações de advocacy e voice, tais grupos cumprem um papel central na recuperação de áreas degradadas (Richardson e Mumford, 2002, pp. 208, 209), sendo tais ações identificadas sob a denominação da auto-ajuda (“self help”) da comunidade. 168 As autoras basearam suas considerações em duas pesquisas realizadas pela London School of Economics/LSE, entre os anos de 1996 e 1999. A primeira teve como foco quatro regiões do Reino Unido que passavam por processos de declínio e a segunda pesquisa teve como foco processos de regeneração e revitalização de áreas, a partir de um projeto desenvolvido pela LSE, denominado Projeto Gatsby. Esse projeto envolve avaliação, pesquisa e intervenção, e tem como objetivo estimular os residentes de comunidades a promover a “auto-ajuda” (self-help), como forma de enfrentamento de processos de exclusão social (Richardson e Mumford, 2002, p. 202). 169 Na medida em que essa capacidade diminui, seja por conta da saída de grupos e famílias da comunidade ou pelo crescimento do estigma da área, tem-se uma infra-estrutura social negativa, que se expressa pelo comportamento agressivo das crianças e jovens, no uso abusivo e público de drogas, na hostilidade entre os moradores e na emergência de todo tipo de comportamento disruptivo: “at the most extreme end of social breakdown, people live in fear of leaving their homes. Nuisance and harassment, even by very young children, is rife. People who can leave, do so, leaving behind increasingly deprived populations. Local services find themselves trying to respond to one crisis after another” (Richardson e Mumford, 2002, p. 206).

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processos encadeados que, por um lado, levam à deterioração das relações e dos padrões

de interação social170 e, por outro, a uma crescente demanda para a rede de serviços

existente, sendo os serviços públicos pressionados para atenderem a um público cada vez

mais carente, provocando déficits na capacidade de planejamento, frente à urgência de

atender demandas de curto prazo. A saída nesses casos, segundo as autoras, vem de uma

combinação sui generis (diria Durkheim) entre aspectos informais da esfera dos controles e

das normas comunitárias e a ação dos serviços públicos.

A infra-estrutura formal (serviços e instalações) poderia atuar como suporte para a

reconstrução de redes sociais informais de controle e normas, ingrediente vital para uma

organização social “saudável”. Esse é um ponto central do argumento das autoras, que

sustentam, ao mesmo tempo, o papel estratégico do suporte e envolvimento dos moradores

para a melhoria das condições sociais das áreas.

Críticas à abordagem revelam ceticismo quanto à capacidade da auto-ajuda da comunidade

para promover a inclusão social em áreas com altos índices de privação social. Qual pode

ser o impacto de ações muito pequenas e limitadas para o alcance de resultados

sustentáveis no que se refere à inclusão social ou para a mudança de índices de

criminalidade ou desempenho educacional171? Ao considerarem a importância estratégica

da infra-estrutura social e, principalmente, da organização social, para a viabilidade de uma

área, não se pode desconsiderar a relevância de ações pontuais, pequenas e específicas e os

efeitos que podem provocar nas dinâmicas locais. Um papel fundamental cabe, nesse

modelo, aos grupos comunitários, às associações e grupos de voluntários, que atuam como

articuladores da organização social, como elementos da malha social, importantes para

preservar os laços de cooperação e de controle social. Embora não se possa exagerar a

importância dessa dimensão de auto-ajuda (“self help”) ou ajuda recíproca, não é

pertinente desconsiderá-la, principalmente se se considera com prioridade a dimensão das

relações sociais na produção de situações de exclusão e também de inclusão social.

170 A saídas das famílias com condições de viver em um lugar melhor contribui ainda para o desmonte das redes sociais, uma vez que as pessoas que ficam não mais conhecem seus vizinhos e experimentam poucas interações sociais, com poucos parentes e amigos nas redondezas. Com isso, crescem a desconfiança, o medo e a insegurança, e diminuem as possibilidades de ajuda mútua e de formação de redes de amizade locais. 171 O debate sobre o valor da ação comunitária para reverter processos de denegeração e privações de uma área é extenso e foi exemplificado pelo problema do “fishing trips”, que refere-se a um dos primeiros projetos estudados pelas autoras sobre a ação de uma dupla de pais que levaram um grupo de 10 crianças para pescarem na Baía de Colwyn (Richardson e Mumford, 2002, p. 209). Certamente, tal ação tem muito pouca incidência na alteração das condições de vida da região. Como dizem as autoras, “a fishing trip is just a fishing trip”, mas ao reconhecer a centralidade da organização social para a viabilidade de uma área torna-se central entender o valor de tal ação comunitária.

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Grupos comunitários voluntários constituem um importante elemento para os processos de

regeneração das áreas degradadas. Mesmo desenvolvendo ações pequenas e pontuais, os

grupos atuariam no fortalecimento dos controles informais, das normas e padrões sociais,

no estreitamento dos laços e das interações entre os moradores, contribuindo para uma

organização social mais desejável (Richardson e Mumford, 2002, p. 221).

Mas para além do fortalecimento dessa dimensão específica da organização social, os

grupos comunitários podem fortalecer a infra-estrutura social formal, pressionando o

setor público e servindo de ponte ou conexão entre estes e os moradores, e para ampliar a

infra-estrutura a partir da oferta direta de serviços172.

Os pontos colocados aqui embasam a discussão dos programas locais de combate à

exclusão, fornecendo referências empíricas das variáveis e das interrelações entre as

diversas dimensões envolvidas na pobreza e degradação de áreas urbanas em grandes

metrópoles.

Se as situações de pobreza são diversas, específicas e heterogêneas, tem-se como

implicação a necessidade de se partir do exame de situações concretas, específicas e

particulares de pobreza, para a partir daí se desenhar alternativas de intervenção. O

reconhecimento da heterogeneidade das situações de pobreza não permite o desenho de

estratégias desvinculadas das realidades e demandas específicas locais. Disso decorre que o

território emerge como dimensão necessária para focalização das políticas e da ação

governamental, e para estruturar um conjunto de ações integrais pautadas pela perspectiva

de melhoria das condições de vida, de combate à pobreza ou de inclusão social e, portanto,

como elemento central tanto para um conhecimento mais adequado do problema da

pobreza quanto para as estratégias de ação. As tendências emergentes nas políticas sociais,

quando apoiadas nas diretrizes da descentralização, participação, flexibilidade na oferta,

172 De acordo com as autoras, o envolvimento dos moradores pode contribuir para definir agenda, desenhar o plano de intervenção, alinhar os projetos e ações de agências diversas que atuam em uma mesma região, tornando a oferta mais adequada às demandas, às necessidades e às características dos grupos e regiões. Além disso, os grupos podem atuar na implementação das ações, viabilizando maior eficácia e eficiência na entrega dos serviços sociais. Em regiões com grandes níveis de privação, a existência de uma multiplicidade de pequenos projetos e grupos na área pode suprir, ainda que parcialmente, algumas dessas necessidades. Embora seja difícil mensurar de forma precisa o impacto da participação da comunidade nos resultados alcançados em um processo de regeneração de uma área, o fato é que, segundo as autoras, tal envolvimento potencializa a satisfação dos moradores diante de tais processos.

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aderência173 às necessidades e demandas locais, sinalizam a relevância de tomar o

território como unidade de intervenção, uma vez que

“el lugar donde uno vive o trabaja determina la propia historia de pobreza y las oportunidades; que una mayoria de los pobres viven en comunidades que concentran a gente pobre y que para combatir la pobreza es importante abordar las características de los lugares donde viven o trabajan los pobres, incluída la posición y las relaciones de estos lugares con el contexto social más amplio.” (Raczynski, 1999, p. 197).

A diretriz da territorialidade sugere uma estratégia de intervenção sobre territórios e

manchas urbanas e sociais específicas, que possuam grau de homogeneidade suficiente

para permitir ações focalizadas nas problemáticas do público alvo. Essa perspectiva

articula-se diretamente com a centralidade do nível local para a elaboração e execução de

estratégias de inclusão social: ao reconhecer o território como unidade de intervenção, tem-

se uma tendência a valorizar o âmbito local no processo de formulação e implementação de

políticas de inclusão.

5.3.3 “Personalização” do atendimento e oferta flexível de serviços

Outra implicação de se considerar a heterogeneidade da pobreza remete à noção de oferta

flexível e ajustada às necessidades, demandas e problemas identificados. As necessidades e

demandas das famílias, indivíduos ou grupos em situação de pobreza são várias e não é

possível antecipar ou criar estruturas muito rígidas ou metodologias de atendimento muito

padronizadas. Para que seja possível executar programas que sejam flexíveis e adaptados

às condições, capacidades e limitações locais, a existência de redes de serviços é

fundamental. A noção de rede pressupõe uma retaguarda de serviços e apoio, capaz de ser

mobilizada pelos agentes públicos e combinados diante de cada situação específica. Dar

respostas adequadas, oportunas e eficazes a essas demandas depende da disponibilidade de

serviços, programas e ações governamentais e não governamentais, que possam funcionar

como elementos de um “cardápio” a ser montado sob medida para atender às necessidades

das famílias, indivíduos e grupos, conforme afirma Corera (2002).

Essa mesma questão - implicações da heterogeneidade da pobreza para o desenho de

programas e serviços sociais, relacionadas com a oferta mais flexível e “personalizada” -

é considerada sob um outro aspecto a partir da análise de Martinez Nogueira (1998), que

constrói uma tipologia para mapear as características de políticas sociais tendo como

parâmetros o grau de padronização das tarefas e o grau de interação entre técnicos e 173 Esse termo será aqui utilizado para se referir a uma qualidade da provisão de serviços, capaz de se ajustar e de ser moldável pelas demandas e, mais que isso, pelas necessidades e problemas identificados.

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usuários dos programas. Essa questão articula-se ainda com a natureza da relação com o

público beneficiário das políticas e do tipo de mudança pretendido. O grau de

programabilidade diz respeito às possibilidades de rotinização e padronização de

procedimentos; e o nível de interação refere-se à intensidade das relações estabelecidas

entre o operador e os usuários da política e ao papel do operador e do programa na

modificação de atributos pessoais, comportamentos e atitudes dos grupos beneficiários.

Os programas sociais, e principalmente os voltados para grupos e condições de extrema

vulnerabilidade e destituição, pressupõem ações quase que individualizadas, aderentes às

demandas e especificidades dadas pela heterogeneidade das situações de pobreza. Em

intervenções nas quais se pretende produzir mudanças nas condições, capacidades, atitudes

e comportamentos do público-alvo - como é o caso de políticas voltadas para grupos

extremamente vulneráveis e dentro de uma concepção que reconhece dimensões materiais

e subjetivas no fenômeno da pobreza -, o nível de interação necessário com o usuário será

maior e o grau de padronização das tarefas será menor.

Quando o resultado pressupõe mudanças e alterações substanciais no público alvo, a

interação estratégica entre técnicos e gerentes “de linha” e os beneficiários dos projetos é

fundamental. Mudanças no plano das subjetividades, de forma geral, requerem

intervenções intensas, complexas e duradouras, para gerar a confiança e as condições

necessárias para se processarem as mudanças. A programabilidade das tarefas é decorrente

do grau de certeza da tecnologia e da complexidade do ambiente de implementação. Daí a

exigência de flexibilidade dos processos e atividades dos programas sociais para se

ajustarem às demandas da população e pode sinalizar, em uma visão mais abrangente, a

necessidade de se ter produtos, ações ou serviços não padronizados para lidar com a

heterogeneidade das situações de pobreza; para se adaptar às mudanças e alterações do

ciclo de vida e à diversidade de situações e condições de pobreza e múltiplas exclusões.

A afirmativa de Martinez Nogueira é que o tipo de projeto mais adequado para

processar mudanças da natureza e magnitude requerida para enfrentar a pobreza

crônica combina alta interação com o usuário com baixa programabilidade das

tarefas174, o que exige ou coloca constrangimentos no âmbito da organização e gestão.

174 Outras combinações: a) elevada programabilidade e baixa interação com os beneficiários, como os programas de transferência de alimentos, ou de urbanização e saneamanto, por exemplo, que não demandam uma alteração nos atributos pessoais dos indivíduos; b) elevada programabilidade e interação média ou extensa com os beneficiários, como é o caso dos programas assistenciais de saúde; c) baixa programabilidade e reduzida interação com os destinatários, como é o caso dos programas de entrega de transferências de

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Nesse tipo de intervenção pretende-se introduzir alterações profundas nas condições

de vida da população, com alteração de comportamentos e atitudes, que se sustentam,

no final das contas, também em valores. O foco nas alterações de “atributos pessoais

dos beneficiários” impõe a necessidade de um tipo de ação específica ou um conjunto

de ações nas quais busca-se desenvolver novas capacidades e alterar situações e

crenças que funcionam como um obstáculo para a superação da condição negativa de

pobreza. Nesse tipo de projeto, segundo Nogueira, as ações

“están disenãdas en función de las necesidades o situaciones particulares del receptor, sea una persona o grupo social. Se incluyen los llamados servicios sociales personales, asi como las acciones de promoción social, de desarrollo de la organización comunitaria, de ayuda mutua o de apoyo a microempreendimientos associativos. Por su carácter particular de baja formalización se los denomina programas blandos. Corresponden al plano de la racionalidade discursiva , con contextos técnicos escasamente cristalizados y alta dependencia de las actividades de la legitimidade acordada por sus destinatarios o por la sociedade” (Martinez Nogueira, 1998, pp. 18, 19).

Dentre as características desse tipo de projeto, tem-se a individualização ou personalização

do atendimento; a diversificação na entrega dos serviços, aderente às necessidades dos

beneficiários; com beneficios e serviços focalizados, com relativamente alta participação

dos operadores dos programas na seleção do público e nas ações dos projetos, com um alto

grau de discricionaridade (Martinez Nogueira, 1998, p. 19). Esse tipo de projeto exige um

modelo de gestão descentralizado, que considere como estratégica a participação dos

beneficiários em todas as etapas do projeto, com importância central para a construção e

manutenção da legitimidade da iniciativa, principalmente diante dos beneficiários e das

unidades operativas do programa.

Essas questões têm implicações sobre o desenho das estratégias de intervenção (processos

de gestão flexíveis, centralidade do pessoal de ponta, metodologias de intervenção

individualizadas e ao mesmo tempo de ampla cobertura, dentre outros).

5.4 Autonomia, capacidades e oportunidades

Como visto na seção anterior, o reconhecimento da heterogeneidade da pobreza implica,

por um lado, uma tendência a focalizar o território como locus no qual a heterogeneidade

se manifesta e se cristaliza e, por outro, a atenção a uma rede de serviços capaz de ser

acionada para atender às demandas e que seja adequada para responder às necessidades e

problemas identificados. Mas além dessas duas implicações, pode-se aproximar da questão

renda, que não exigem uma alta interação com os destinatários e também não são precisos quanto a quem são os beneficiários e permeáveis a interesses clientelistas e arbitrários (Martinez Nogueira, 1998, pp. 17-20).

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da heterogeneidade sob uma outra perspectiva, focalizando os distintos tipos de pobres. Na

tentativa de capturar essa heterogeneidade, Raczynski (1999), por exemplo, estabelece uma

distinção entre pobres “ativos”, pobres “passivos” e pobres “refratários”. Os primeiros têm

uma alta capacidade para resolver os problemas e são capazes de aproveitar as

oportunidades que aparecem, enquanto os “passivos” apresentam capacidades apenas

latentes, que devem ser desenvolvidas de forma articulada com a abertura de

oportunidades. Os pobres “refratários”, por sua vez, representam aqueles que não

desenvolveram suas capacidades ou perderam as habilidades. Programas de combate à

pobreza devem ter em mente esses três conjuntos de pessoas e situações, uma vez que essa

diferenciação implica conteúdos e metodologias de intervenção distintas (Raczynski, 1999,

p. 197). A pobreza crônica associa-se, como parece óbvio, com as categorias de pobres

passivos e refratários. A implicação para as políticas é que grupos refratários e de pobres

passivos não chegam aos serviços, o que demanda programas específicos para atrair esses

segmentos e mantê-los inseridos no sistema.

Ao considerar os distintos tipos de pobres, tem-se uma ampliação da perspectiva

dominante no campo da ação contra a pobreza. Considerar essa tipologia obriga a prestar

atenção nas necessidades diferenciadas que os pobres apresentam e concentrar os esforços

para fornecer respostas moldáveis a essas necessidades e às capacidades também

diferenciadas.

Uma perspectiva crítica e promissora nas análises sobre a pobreza consiste, de acordo com

Raczynski (1999), em considerar as oportunidades e capacidades, dimensões não

capturadas pelos enfoques da renda ou das necessidades básicas insatisfeitas. As diferenças

entre pobres e não pobres se explicam não apenas pelo nível de renda ou quantidade e

intensidade das necessidades básicas insatisfeitas, mas também em função das capacidades

dos indivíduos, domicílios e comunidades para aproveitar as oportunidades e as “marés

cheias” (Raczynski, 1999, p. 196). Uma conseqüência é que o combate da pobreza exige

soluções diferenciadas, que se concentrem na oferta de ferramentas e oportunidades

para o desenvolvimento de capacidade e habilidades dos pobres, para que esses

possam, também por seu esforço, comprometer-se com seu processo de

desenvolvimento e ter acesso aos sistemas e circuitos sociais e econômicos formais

(Raczynski, 1999, p. 200). As estratégias enfatizariam o uso das capacidades de

indivíduos, domicílios e comunidades, tendo como eixo a autonomia e a dignidade, a

recusa da dependência e do estigma.

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Uma possibilidade nesse sentido seria desenvolver programas que atuem sobre o contexto

em que vivem os pobres, que sejam dirigidos para aumentar as oportunidades locais

(recursos produtivos, transporte, oferta de serviços, relações sociais) e as capacidades dos

indivíduos e domicílios (Raczynski, 1999, p. 195). O foco nas capacidades, agregado à

perspectiva dos ativos, permite ultrapassar concepções restritas à métrica da renda ou das

necessidades básicas insatisfeitas e amplia as possibilidades para capturar as

especificidades e heterogeneidade das situações de pobreza ou entre os diversos tipos de

pobres, segundo a tipologia de Raczynski.

Adotar a perspectiva das capacidades significa, por um outro registro, entender a pobreza

como fenômeno que envolve aspectos mais e menos tangíveis, dimensões objetivas de falta

de recursos e também dimensões subjetivas relativas a valores, comportamento,

autonomia. Tem-se como implicação dessa abordagem que qualquer estratégia que busque

a superação da pobreza passa necessariamente pelas pessoas, e que para desenvolver

estratégias sustentáveis e efetivas é necessário alterar tais condições limitadoras, investir

no empoderamento das pessoas, no desenvolvimento de sua autonomia, competências e

capacidade de auto-desenvolvimento, visando a ampliação de sua capacidade de ação.

Sem que se altere essa dimensão, não é suficiente alterar condições objetivas, prover bens

e serviços, investir em infra-estrutura ou alterar condições macroeconômicas, uma vez que

os resultados não serão efetivos ou sustentáveis no longo prazo (Raczynski, 2002, pp. 6-7).

É essa dupla condição da pobreza, entendida como um fenômeno que agrega dimensões

materiais e não materiais, que permite inferir que a sua superação exige algo como duas

rodas interdependentes uma da outra, com possibilidade de girar juntas para frente e para

trás (Raczynski, 2002, p.6; Mideplan, 2002, p.9). É necessário que haja sinergia entre os

dois movimentos, entre fatores exógenos e endógenos às pessoas.

Alterar o cenário de pobreza requer atenção à qualidade dos laços sociais, às condutas e

ações que grupos, indivíduos, famílias e comunidades realizam para lidar com sua situação

de pobreza e vulnerabilidade. Dois elementos são centrais aqui e estão interligados: a) as

relações que se estabelecem entre os pobres e os setores não pobres da sociedade (técnicos

e profissionais do setor público, representantes de organizações não-governamentais,

agentes do mercado e da sociedade civil etc.), pois são nessas relações que frequentemente

se reforçam atitudes psicossociais negativas; b) a ênfase nos processos de empoderamento,

que permitam fortalecimento da autonomia, expansão das capacidades, protagonismo.

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a) O primeiro ponto para considerar na expansão das capacidades dos pobres refere-se às

relações que se criam entre estes e os não-pobres, como sendo constitutivas e

determinantes da autonomia ou da dependência que se estabelece entre os agentes públicos

e os destinatários das políticas de inclusão. Frequentemente as relações que se estabelecem

entre os setores pobres e os agentes governamentais e não-governamentais são relações

assimétricas, que favorecem a dependência e/ou a estigmatização, onde se reforçam as

atitudes de passividade e resignação. Freqüentemente, os pobres são vistos pelos setores

não pobres (e principalmente pelos agentes públicos encarregados da execução de

programas sociais) como aqueles “que não sabem”, “que não têm”, o que acaba por

fortalecer atitudes de passividade, baixa auto-estima, resignação, dependência. Quando o

resultado pretendido com a intervenção pressupõe mudanças e alterações substanciais no

público alvo, a interação estratégica entre técnicos e usuários das políticas torna-se mais

relevante.

A confiança mútua é um ingrediente fundamental, que pode ser ampliado ou minado a

partir da capacidade de resposta e da atuação do poder público junto às comunidades e

famílias. Estabilidade, consistência, adequação e transparência nas ações desenvolvidas

estão entre os elementos vitais para possibilitar processos de empoderamento, de

fortalecimento das capacidades individuais, familiares e comunitárias.

b) A segunda dimensão destacada para a expansão das capacidades de indivíduos diz

respeito ao tema do empoderamento, que se produz a partir também da participação e do

envolvimento das pessoas nos processos de intervenção. A ênfase em programas

participativos e nas capacidades latentes e ativas dos pobres constitui um eixo emergente

nas políticas sociais, instituindo novos padrões de relação entre Estado, mercado e

sociedade civil, novas dinâmicas do poder local e mecanismos diferenciados de

participação e controle público. Não se trata de participação residual, formal ou pontual,

mas de participação efetiva, que privilegie relações horizontais e que considere os

beneficiários como parceiros reais dos programas, que assumem compromissos,

responsabilidades, tarefas compartilhadas. Somente o genuíno envolvimento das pessoas

via processos participativos consistentes e continuados favorece esse ganho de autonomia e

capacidades. Fortalecer capacidades, mobilizar e potencializar ativos, desenvolver

iniciativas que favoreçam o incremento do capital social são estratégias importantes que

devem ser levadas em conta para a superação de situações de pobreza.

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A questão do capital social emerge acoplada ao debate da superação da pobreza sob a lente

macro das capacidades. É cada vez mais enfatizada a necessidade de se partir das pessoas e

de suas relações para se buscar estratégias efetivas de superação da pobreza. Isso significa

fortalecer os ativos existentes nas comunidades e nas famílias a partir do mapeamento dos

recursos existentes, que podem ser recursos materiais (recursos físicos e ambientais,

construções, equipamentos etc.), humanos (grupos, associações, pessoas etc.) ou recursos

imateriais (idéias, habilidades, saberes etc.). Essa perspectiva articula-se com a noção de

capital social, entendido, em um certo sentido, como o conteúdo de relações sociais que

combinam atitudes de confiança com condutas de reciprocidade e cooperação. A literatura

sobre capital social é extensa, e já foram produzidas inúmeras pesquisas internacionais que

focalizam a relação entre capital social e políticas de combate à pobreza175. Entretanto, se

existe um razoável consenso sobre sua pertinência como elemento central para compor o

desenho e as estratégias do programa, uma definição mais precisa sobre o que contém a

noção de capital social e o estabelecimento mais claro de parâmetros e formas de

mensuração ainda está por se fazer176. Não é o objetivo desse trabalho fazer o balanço da

literatura sobre capital social e pobreza, mas apenas ressaltar suas conexões com a questão

da expansão das capacidades e do fortalecimento da autonomia individual, familiar e

comunitária. Uma categoria síntese, que permite agregar os distintos elementos aqui

considerados e principalmente focalizar a expansão da autonomia e das capacidades de

forma mais evidente é a noção de empoderamento (empowerment).

A noção de empoderamento é geralmente empregada na literatura de forma pouco

parcimoniosa e sem que se tenha um conhecimento mais consensualmente compartilhado

sobre o seu significado. Novamente nos encontramos em terrenos movediços. Pode-se

partir, contudo, da própria palavra para captar seu sentido básico: empowerment envolve

175 Ver a esse respeito, dentre outros: CEPAL. Agenda social: capital social: sus potencialidades y limitaciones para la puesta en marcha de políticas e programas sociales. In: Panorama social de América Latina 2001-2002, Santiago de Chile, 2003; COLLIER, Paul. Social capital and poverty. 1998. Social Capital Initiative Working Paper Series, n.4; STEIN, Rosa Helena. Capital social, desenvolvimento e políticas públicas. Serviço Social e Sociedade, Brasil, ano 24, n. 73, 2003; YAMADA, Gustavo. Reducción de la pobreza y fortalecimiento del capital social y la participación: la acción reciente del Banco Interamericano de Desarrollo. In: CONFERENCIA REGIONAL CAPITAL SOCIAL Y POBREZA, 2001, Santiago de Chile. Santiago de Chile: CEPAL, 2001. 176 A exemplo do conceito de exclusão, o de capital social emerge sob os mais variados matizes. Trata-se de um conceito por demais abrangente, muito pouco preciso, amplo a ponto de abarcar tudo e por isso mesmo perder especificidade analítica. Entretanto, embora padecendo desses males, grande parte da literatura atual, notadamente a produzida pelos organismos internacionais, enfatiza a centralidade do capital social como insumo, meio e resultado de políticas bem sucedidas de combate à exclusão social (Raczynski, 2000; Mideplan, 2002). Não se trata de afirmar a concordância ou não com essas afirmações, mesmo porque não se tem aqui o embasamento teórico e empírico necessário para tanto.

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poder, implica alteração das relações de poder em favor daqueles que contavam com

pouco poder para manejar suas vidas, no sentido de ter maior controle sobre elas177 (G.

Sen, 1997, p. 2). Na tentativa de esclarecer o sentido do termo, Gita Sen afirma que esse

termo relaciona-se, por um lado, com maior controle externo sobre recursos, entendidos de

forma ampla como recursos materiais, físicos, intelectuais, financeiros; e, por outro, como

controle no âmbito das crenças, valores e atitudes, de forma relacionada com a capacidade

de auto-expressão e auto-afirmação, processos sustentados pela autoconfiança e por

mudanças no âmbito da subjetividade, que ocorrem no interior, digamos assim, de cada

um. Os agentes externos, nesse processo de conversão, seriam os catalizadores essenciais,

nos termos de Gita Sen. Uma combinação de acesso a recursos externos e de mudanças no

âmbito da subjetividade é necessária para provocar alterações nas condições de pobreza,

afirma Gita Sen (1997, p. 3), de forma similar a Raczynski.

Esse é o ponto que deve ser enfatizado aqui. Ao se partir de um enfoque da pobreza sob o

prisma da vulnerabilidade, exclusão ou capacidades, decorre daí a necessidade “lógica” de

considerar a questão do empoderamento como fundamento de um modelo de ação ou como

conteúdo central das políticas de proteção. Qualquer estratégia efetiva de inclusão, para

ser coerente com as implicações de se partir de enfoques amplos sobre a pobreza,

deve combinar – sob formas e com intensidade variadas – ações voltadas para um e

outro campo de ações, ao mesmo tempo fortemente ancoradas nas necessidades

materiais e demandas básicas e também voltadas para alterações nas dinâmicas

psico-sociais, que se processam via interações e relações sociais, cujo peso significativo

cabe às relações institucionais, estabelecidas com os agentes públicos e de proteção

social.

Existem vários exemplos na literatura sobre experiências de criação e fortalecimento de

processos de empoderamento, principalmente relacionados com a temática do

desenvolvimento (G. Sen, 1997). São iniciativas implementadas seja por organizações não

governamentais, movimentos sociais, ou por uma ação combinada de associações da

sociedade civil e governo178. Os resultados, embora sejam localizados e específicos,

177 A crítica feminista questiona o enfoque do poder pela sua ênfase na dimensão de exercício de poder sobre os outros e sustenta a necessidade de se pensar no poder como capacidade de ser e de se expressar, o que remete à noção de capacidades. 178 Um dos exemplos de experiências pautadas pela perspectiva de empowerment é o de um grupo de mulheres (SEWA, Self Employed Women´s Organization) na India, que conta com mais de 100 mil membros. Os objetivos desse trabalho, iniciado ainda na década de 70, seriam o de fortalecer as mulheres, econômica e socialmente, e também de forma subjetiva (self-reliant). O trabalho envolve um conjunto distinto de ações de cooperativas, produção caseira e artesanal, produção de leite, agricultura, micro-crédito

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permitem evidenciar a repercussão possível de pequenas ações que se encadeiam e

produzem mudanças significativas na vida das pessoas179. Os exemplos fornecidos pela

autora (G.Sen, 1997) a partir da perspectiva de empoderamento são genéricos e vagos

demais e não permitem encontrar evidências de como, por quais mecanismos e processos,

o empoderamento ocorre, o que permite identificá-lo, sob que formas este se apresenta.

Além disso, trata-se de exemplos de programas da África e Índia, em contextos nos quais a

pobreza crônica é mais generalizada e onde o nível de satisfação de necessidades básicas é

extremamente baixo em relação a outros países também em desenvolvimento. Guardadas

as devidas proporções, o centro da perspectiva de empoderamento permanece em ambos

contextos, sendo que a medida do empoderamento é dada a partir de cada contexto

histórico, cultural, social, político, econômico, institucional.

O empoderamento dos indivíduos e grupos permite alcançar resultados importantes na

quebra de barreiras sociais, tabus e na redução das desigualdades sociais. Os projetos

focados na dimensão do empoderamento seguem formatos distintos e não existem regras

ou esquemas sistematizados de ação. Podem ser programas e ações massivas, de larga

escala e limitados no tempo, como podem ser ações de pequena escala, mais lentas e mais

intensas (Sen, 1997, p. 16). Nesses casos, a metodologia de ação envolve a formação de

pequenos grupos, catalisados por agentes de mudanças, que viabilizam o acesso a serviços

e recursos e contribuem para a organização e gestão de serviços autônomos, cooperativos, (banking), dentre outros (G. Sen, 1997, p. 10). Os contextos nos quais vivem essas mulheres são comunidades pobres, em diversos lugares do país, no qual vivem populações com acesso precário a serviços básicos e de infra-estrutura, com altas taxas de mortalidade infantil, analfabetismo e privações de todo tipo. Trabalhos precários e pesados são os únicos disponíveis para essa população, e acresce-se a isso problemas de alcoolismo e abuso de tabaco entre a população masculina, com evidentes prejuízos para a família (violência doméstica e redução dos recursos para alimentos e cuidados com saúde). Preconceitos e discriminação contra as mulheres refletem-se em atendimentos precários nas áreas de saúde e educação, sendo que para essas mulheres “the problems of asset and income poverty are compounded by gender oppression” (G. Sen, 1997, p. 11). Mulheres que antes estavam sujeitas a situações de intensa exploração, preconceito e limitação, vivenciam processos de empowerment que se expressam no aumento da auto estima, auto confiança, maior controle sobre recursos, ampliação da visão de mundo. Na África, outras experiências do mesmo tipo são analisadas e todas ressaltam o ganho significativo de poder (entendido na dupla perspectiva de maior controle sobre recursos e poder intrínseco, calcado no aumento das capacidades e auto-estima). Nesse caso, trata-se da experiência de uma organização não governamental YUVA (Youth for Unity and Voluntary Action) que atua no campo do direito à moradia, trabalho e educação junto aos pobres urbanos em Bombai. A experiência, segundo avaliações, expressa a magnitude das mudanças que ocorrem no ambito dos indivíduos, do reconhecimento que passam a ter de seus direitos e da motivação para lutar por eles e resistir às injustiças e arbitrariedades (G. Sen, 1997, p. 13) 179 Por exemplo, como fruto das ações de uma campanha pela alfabetização total em Kerala, na Índia, aprender a andar de bicicleta fez com que centenas de mulheres, jovens e velhas, pudessem ter, nesse deslocamento físico, um deslocamento também de outra natureza. As falas dos diretamente afetados expressam o ponto: “By learning to cycle, I have broken many barriers: the gender barriers, the age barrier, the caste barrier and the class barrier. It was unheard for a woman from a poor schedules caste labourer´s family like mine to even touch a cycle, let alone ride one through the streets of our village. Now I can talk on equal terms with contractors and even past them on my bicycle” (G. Sen, 1997, p. 15).

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para o aumento da escolarização e do nível de informação das populações pobres. São

processos de difícil mensuração, dada a complexidade da interação entre fatores

individuais e coletivos, da combinação sui generis das disposições internas de cada um e

dos níveis e tipos de ação dos agentes externos, dos fatores micro e macro que intervêm

com intensidades e configurações particulares para produzir resultados de mudanças nos

âmbitos materiais e nos não-materiais.

Os resultados das ações de empoderamento podem ser de diferentes tipos e magnitude, mas

todos espelham uma mesma ordem de questões, relativas ao aumento do protagonismo, da

autonomia, do senso de dignidade, do acréscimo de capacidades.

Embora as pessoas empoderem a si mesmas, governos e outros atores desempenham um

papel vital nesse processo, seja estabelecendo leis e regulamentos favoráveis ao

empoderamento das pessoas (leis anti-discriminação, mudanças legais, facilitando acesso

ao crédito etc.) ou alterando formas de provisão dos serviços públicos para torná-los mais

flexíveis e porosos às demandas e necessidades dos indivíduos e grupos, atuando sobre a

infra-estrutura social. O que está na base da noção de empoderamento é o reconhecimento

da multidimensionalidade das necessidades dos pobres e de seu protagonismo para auto-

ajuda, uma vez dada a eles essa chance (G. Sen, 1997, p. 17).

A noção de empoderamento relaciona-se com a noção de agência180, por um lado, e por

outro com a dimensão da estrutura (Alsop, 2005), sendo algo contingente das relações

entre essas duas dimensões: a capacidade dos indivíduos fazerem escolhas depende das

estruturas de oportunidades existentes, que podem possibilitar ou não a efetivação dessas

escolhas181. O empoderamento é algo que se processa no meio dessa relação, como

produto emergente das relações entre os níveis micro e macro, no âmbito dos indivíduos e

domicílios e no plano das regras e instituições, que definem os aspectos do contexto que

interferem na capacidade de efetivar escolhas. Empoderamento, como processo e

resultado das políticas de proteção social, pode ser uma categoria síntese para se referir à

ampliação da capacidade de escolhas dos indivíduos, que ocorre quando se tem acesso a 180 A noção de agência parece conter duas ênfases: uma salienta a capacidade de ação dos pobres, da capacidade deles de fazerem escolhas, de agir e influir em alguns aspectos que afetam sua vida. Outra concepção de agência aponta para a centralidade dos atos e decisões de agentes para a produção da pobreza, incluindo aí os agentes públicos e agentes do mercado. Os dois sentidos são recuperados aqui: a responsabilidade dos indivíduos de buscarem saídas da condição de pobreza, em uma perspectiva mais afinada com a dimensão dos ativos e outra que aponta para a dimensão da responsabilidade coletiva pelo ato da exclusão, que é a via pela qual a noção de exclusão se articula com a noção de empoderamento. 181 A escolha de inserir as crianças nas escolas não se efetiva de fato se não existem escolas que sejam acessíveis. Da mesma forma, a escolha ou a decisão dos agentes pela inserção no mercado de trabalho não se concretiza se não existem as condições objetivas para efetivá-la.

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ativos que, em interação sinérgica entre si, permitem a incorporação de indivíduos e grupos

no universo da cidadania, com a garantia efetiva do exercício de direitos civis, políticos e

sociais.

Buscando conectar tradições e abordagens distintas, importa salientar os processos que

ocorrem entre o nível micro e macro, que fornecem o nexo entre a dimensão da agência, do

que ocorre no âmbito micro dos indivíduos, de suas motivações, comportamentos e

atitudes e o nível macro, das leis, normas, instituições, regras formais e informais que

atuam como estruturas de oportunidades abertas pelo Estado, mercado e sociedade que

constrangem, impulsionam ou impõem limites para o efetivo exercício da agência, do

protagonismo individual e em certa medida também coletivo.

Novamente aqui nos deparamos com a interação entre o plano individual e o coletivo, o

que remete à necessária articulação entre os aspectos que estão no âmbito de ação dos

indivíduos e no âmbito das estruturas (políticas e instituições, inclusive as do sistema de

proteção social).

Na perspectiva do empoderamento, a pobreza é entendida como privação no exercício da

escolha, sendo que “it moved anlysis from the technical, involving the measurement of

income, consumption or expenditure, to the relational, involving the measurement of the

relative capability of people” (Alsop, 2005, p. 27). Nesse sentido, o exame da produção de

políticas de proteção social ganha relevância, por se encontrar nessa passagem, como o

instrumento que traduz intenções políticas e programáticas em ações concretas sobre a

realidade, viabilizando, ou não, direitos, no caso, sociais.

5.5 Articulando as categorias em um quadro analítico

As diferentes abordagens salientam, como visto, dimensões e categorias distintas. O

enfoque monetário focaliza basicamente as dimensões materiais da privação, que são

consideradas a partir da métrica da renda. A mensuração se faz tendo como base essa

variável, pelo estabelecimento de uma linha de corte definida a partir de uma noção de

mínimos necessários para sobrevivência. O enfoque das necessidades básicas concentra-se,

em versões mais canônicas, também no plano das privações materiais, sendo orientadas,

contudo, para considerar o acesso das pessoas aos bens e serviços sociais, com prioridade

para mensuração da pobreza a partir de distintos indicadores sociais. O enfoque das

capacidades sinaliza uma efetiva abertura de fronteiras, considerando dimensões menos

tangíveis da pobreza, levando em conta aspectos até então negligenciados na abordagem

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do tema, como dignidade, auto-estima e auto-respeito. Esse enfoque liga-se, de certa

forma, com o enfoque da exclusão, ainda que a literatura não estabeleça essa ponte de

forma explícita ou direta. Amartya Sen reivindica a inclusão do conceito de exclusão no

âmbito do enfoque das capacidades e reconhece o foco nas relações sociais como uma

dimensão importante a ser considerada na avaliação das condições de bem-estar. Sen

reconhece a privação material e a ausência de renda como elementos que privam os

indivíduos de suas capacidades e sinalizam a ausência de oportunidades para o

desenvolvimento de uma vida digna. Da mesma forma que o conceito de exclusão, a

concepção de capacidades expande a perspectiva, ultrapassando a visão unidimensional da

pobreza como ausência de renda. Exclusão remete, em sua concepção original, ao

reconhecimento das diversas faces ou dimensões da pobreza, à afirmação da

heterogeneidade de suas manifestações e à consideração de dimensões menos tangíveis

presentes nessas condições. Rompe com uma visão estática da pobreza e incorpora a idéia

de processo e trajetória e situa-se claramente em uma dimensão coletiva da abordagem da

pobreza, entendida sob as lentes da questão social. A mudança de foco operada pela

concepção de exclusão implicaria alterações profundas na maneira de conceber a atuação

do Estado e no desenho de estratégias que possam ser mais adequadas para fazer frente

aos desafios específicos apontados pelo termo.

A concepção de pobreza crônica, como visto no primeiro capítulo, apresenta um caráter

sintético e pode estabelecer uma conexão bastante direta com o enfoque de vulnerabilidade

e riscos. Isso porque um elemento importante no debate sobre pobreza crônica refere-se às

concepções de condutores (“drivers”), mantenedores (“maintainers”) e interruptores

“interrupters”, tal como formulado por Hulme, Moore e Stepherd (2001), usados para

identificar fatores condutores de natureza individual, familiar e territorial que conduzem a

uma entrada nas situações de pobreza, os fatores de manutenção dessa condição que fazem

com que as pessoas continuem pobres e os elementos chave que funcionam como

interruptores e que possibilitam saídas sustentáveis da pobreza crônica e também da

transitória. De forma semelhante às categorizações anteriores do manejo de risco ou da

análise de modos de vida, as categorias utilizadas no âmbito de uma literatura sobre

pobreza crônica apontam para estratégias diferenciadas de políticas, que devem incidir

diferentemente na diversidade de situações e momentos nos quais a pobreza se instala, se

mantém ou é enfrentada no plano individual, familiar e comunitário.

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O enfoque da vulnerabilidade e risco tem a vantagem de incorporar elementos das

abordagens anteriores, sob a categoria de ativos, que podem ser vistos de uma forma

restrita ou mais ampliada, como a que considera as relações sociais em sua composição.

Ao identificar mais diretamente as estratégias distintas (ex-ante e ex-post) de prevenção,

mitigação ou enfrentamento da pobreza, essa abordagem salienta os distintos níveis de

ação e também distintos níveis de análise, considerando tanto os aspectos micro quanto os

aspectos macro envolvidos na produção e na superação dessa condição. Essa abordagem

complementa e em certa medida incorpora as anteriores. As ênfases ou os aspectos mais

iluminados em cada abordagem não são excludentes e podem, em certa medida, ser

complementares, uma vez que implicam elementos comuns das estratégias de ação, ainda

que cada enfoque saliente mais um ou outro aspecto.

Reconhecer a pobreza como privação de renda orienta o olhar para estratégias de

intervenção centradas no aporte monetário, enquanto o foco nas capacidades considera

estratégias centradas nas pessoas, levando em conta a dimensão da agência como eixo de

ação. A concepção de exclusão marca uma visão coletiva do problema da pobreza e remete

à noção de direitos de cidadania; ao remeter ao conjunto da sociedade, a pobreza deixa de

ser vista unicamente como uma questão individual. O enfoque da vulnerabilidade e dos

ativos, principalmente na abordagem dos modos de vida e na concepção de portfólio de

ativos, acrescenta o elemento dos ativos e as categorias de sensitividade e resiliência, como

indicadores da condição das pessoas e famílias quanto às dimensões do risco e da

vulnerabilidade. Esse enfoque ainda incorpora de forma mais sistemática os distintos níveis

de análise (individual, familiar e comunitário) como sendo dimensões nas quais os ativos

se situam e essa distinção contribui para formular estratégias de intervenção também

diferenciadas quanto ao nível (prevenção, mitigação, superação) e foco da ação (individual,

familiar, comunitário). Do ponto de vista das políticas públicas, a abordagem da

vulnerabilidade dos ativos, principalmente a perspectiva mais sociológica dessa

abordagem, e o conseqüente foco nas estratégias de manejo dos ativos, podem contribuir

para identificar o que pode ser feito, de forma flexível e diversificada, a partir da percepção

dos pobres e dos ativos que estes possuem e podem mobilizar.

O papel do Estado, das instituições e das leis também é enfatizado na abordagem dos

modos de vida de forma central, ao contrário da abordagem da vulnerabilidade via manejo

de riscos, que diluiria esse papel ao considerar a multiplicidade de agentes envolvidos,

minimizando o papel protagonista do Estado nesse processo, como afirmam os críticos

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dessa abordagem (Sojo, 2003; Lavinas, 2003). Entretanto, a possibilidade de construção de

matrizes de riscos adequadas a cada contexto, contribuição principal do enfoque do manejo

de riscos, levando em conta essas dimensões de análise e os diferentes níveis de ação, pode

contribuir para o desenho de estratégias mais consistentes e possivelmente mais

articuladas, desde que garantida a não diluição da atuação e responsabilidade do Estado.

A perspectiva dos enfoques do modo de vida articula-se ainda de forma bastante direta à

concepção de infra-estrutura social. Embora usando termos distintos e partindo de campos

programáticos e conceituais diversos, eles remetem a um mesmo conjunto de questões: o

papel de elementos de natureza mais propriamente sociológica e também de natureza

psico-social - relacionados com as relações sociais, redes de sociabilidade, normas, valores

e comportamentos, dimensões menos tangíveis das condições de pobreza – na identificação

de instrumentos e mecanismos de inclusão e integração social.

A pobreza crônica é mais claramente identificada com condições psico-sociais negativas,

por privação intensa de ativos, por um complexo ou uma síndrome de carências e

necessidades de vários tipos. Para lidar com essas situações, as estratégias devem

contemplar a integralidade nas ações, ou pelo menos buscar estabelecer uma articulação

maior entre elas, o que remete ao tema da intersetorialidade. Além disso, tem-se a

necessidade de uma ação intensa e sistemática sobre elementos menos tangíveis da vida

das pessoas e de suas relações, o que remete ao conteúdo das políticas e ao tema do

empoderamento.

O conjunto de ativos considerados varia de acordo com a concepção ou enfoque adotado,

sendo mais ou menos amplo para abarcar, além dos ativos “tradicionais”. Como visto no

primeiro capítulo, no modelo da posse de ativos, estes se dividem em ativos humanos,

fisicos, financeiros e sociais; no enfoque dos modos de vida, são ativos humanos, físicos,

financeiros, sociais e naturais e no enfoque do portfólio de ativos, os ativos se dividem por

sua atuação nos planos do indivíduo (trabalho e capital humano), da família (ativos

produtivos principais, tais como moradia, terra e relações familiares) e no plano

comunitário (capital social). De toda forma, independente da amplitude dos ativos

considerados em cada modelo teórico, a perspectiva dos ativos articula-se com o enfoque

da vulnerabilidade e dos riscos e favorece o desenho de estratégias de intervenção mais

objetivas, pautadas pela identificação e uso de matrizes de riscos e de uma visão

estratégica para seu enfrentamento. A perspectiva dos ativos é consistente com a dimensão

da intersetorialidade, em outro nível de análise, o que confere a esse enfoque sua utilidade

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como ponto de partida para organizar a produção de políticas de proteção social, de forma

estratégica. A perspectiva dos ativos permite ainda incorporar a questão do

empoderamento e da autonomia, ao incluir elementos de natureza material e não material e

fornecer parâmetros para atuar sobre eles.

O reconhecimento da diversidade das situações de pobreza demanda a flexibilização do

atendimento como diretriz da produção dos serviços e programas sociais e o uso do

território como marco de ação. Embora essa ligação não tenha sido explorada de forma

direta na literatura examinada, pode-se sugerir uma aproximação entre a noção de pobreza

crônica e território, entendendo território como categoria importante para capturar

processos de degradação e espirais de declínio de condições de vida de pessoas, famílias e

áreas. A noção de território é pertinente para entender processos e dinâmicas que

contribuem para a cronificação da pobreza: espaços urbanos degradados, com uma infra-

estrutura social negativa, estigmatizados e com carências variadas não constituem um

ambiente minimamente favorável para a expansão de capacidades, fortalecimento de

autonomia pessoal, familiar e comunitária, fatores cruciais para a superação da pobreza

crônica.

A noção de território articula-se ainda com a noção de redes – governamentais, locais, de

serviços – que também integram, embora não sob essa designação, a abordagem de infra-

estrutura social. Infra-estrutura social, entendida ao mesmo tempo como rede de serviços e

como organização social, pode ser útil para analisar estratégias de inclusão desenvolvidas

em contextos urbanos, nos quais a degradação de áreas ou a localização de populações nas

periferias urbanas manifesta a distribuição espacial da pobreza e da exclusão. A infra-

estrutura formal (serviços e instalações), combina-se com a organização social (valores,

normas, controle social, densidade associativa) para a produção de uma infra-estrutura

social que pode ser potencializadora ou atuar como barreira para os processos de superação

da pobreza. A eficácia das políticas de combate à pobreza está, em parte, condicionada à

consideração do território como categoria de intervenção. Ao afirmar a faceta territorial da

pobreza, o que se quer enfatizar é que parte da pobreza não é explicada por nenhuma outra

variável senão a partir da questão do espaço ou do território. A vulnerabilidade é

cumulativa territorialmente. Isso significa que grupos pobres localizados em áreas

segregadas têm condições piores do que outros grupos localizados em áreas não

segregadas. Os pobres que residem em áreas segregadas são mais pobres e apresentam

piores condições de vida e chances de superação da vulnerabilidade do que os pobres que

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vivem em áreas não segregadas. A constatação desse ponto seria suficiente, por si só, para

pautar estratégias mais fortemente orientadas para o tema da coesão urbana e social.Se o

espaço é parte do problema, também pode ser parte da solução. A gestão ativa do território

significa que áreas segregadas precisam ser claramente identificadas e ser objeto de

políticas específicas. O ”planejamento integral” do território (UAB, 1998, p. 25), envolve,

por um lado, aspectos relativos ao desenvolvimento e crescimento urbano e, por outro,

aspectos relativos ao tema da adesão comunitária e da cidadania e é nesse sentido que essa

expressão encontra correspondência com a concepção de infra-estrutura social.

O poder público, via rede de programas, serviços e instalações, pode atuar como suporte

para a reconstrução de redes sociais informais de controle e normas, ingrediente vital para

uma organização social “saudável”. A existência de redes sociais informais e as alterações

na infra-estrutura formal são condições necessárias para se processar tais mudanças. Essa

perspectiva pode ser mais útil para focalizar processos e dinâmicas que ocorrem no nível

local e que sofrem o impacto, inclusive e de forma prioritária, da atuação do poder público

como catalisador de processos de regeneração urbana. Interessa explorar como as políticas

desenvolvidas, a partir do desenho das intervenções e da estrutura de gestão, podem

potencializar ou não dinâmicas virtuosas centradas na mobilização dos ativos, no

desenvolvimento da autonomia dos indivíduos, grupos ou famílias.

A partir do mapeamento dos ativos e do foco na infra-estrutura social e tendo como

substância a concepção de capacidades e de exclusão, têm-se os elementos necessários

para identificar grupos e situações de risco e assim atuar sobre elas. A intervenção pública,

recuperando a discussão mais especificamente orientada para as dimensões políticas e

institucionais da gestão pública, para ser consistente com os elementos identificados acima

(integralidade e flexibilidade das ações para fornecer respostas efetivas aos problemas,

sensibilidade aos elementos da autonomia e capacidades individuais e coletivas), demanda

uma gestão de proximidade, afinada com a perspectiva da governança e inspirada pela

conformação básica dos modelos locais de proteção, centrados no desenvolvimento de

políticas intersetoriais e no desenvolvimento de ações estratégicas, participativas e

comunitárias.

O esforço feito nesse capítulo, de natureza sintética, foi o de mapear um conjunto de

elementos e categorias analíticas, na perspectiva de articular, apontar as congruências

possíveis entre os enfoques, colocá-los em perspectiva, identificando algumas noções

básicas para orientar a estruturação de um quadro analítico que aproxime as duas partes do

201

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trabalho: a pobreza como problema para o conhecimento e como problema para a ação,

para as políticas de proteção social.

As figuras 4,5 e 6 abaixo ilustram a tradução do conjunto de relações identificadas.

202

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Monetário

Necessidades Básicas Insatisfeitas

Capacidades

Exclusão social

Vulnerabilidade e riscos

Renda e consumo Acesso à renda

Empoderamento, aumento das capacidades

Foco no território e infra-estrutura social

Criação e fortalecimento de ativos materiais e não materiais. Acesso a bens e serviços sociais

ELEMENTOS DAS ESTRATÉGIAS DE INTERVENÇÃO

Figura 4 - Relações entre enfoques, categorias e elementos das estratégias de intervenção

Ativos, cadeia de riscos, sensitividade e resiliência, estrutura e processos

Relações sociais, multidimensionalidade, heterogeneidade, trajetória

Autonomia, capacidades

Privações múltiplas

CATEGORIAS ENFOQUES

203

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204

Transferências de renda, beneficios não contributivos

Acesso a ativos: trabalho, capital humano, moradia, relações familiares, capital social.

Ausência ou precariedade da inserção no mercado de trabalho

Fragilidade dos laços familiares, comunitários e precária proteção social

Acesso precário a bens e serviços públicos

Ausência ou precariedade de ativos.

Territórios estigmatizados, espaços urbanos segregados

Itinerários de inserção/estratégias de incorporação social

Pobreza crônica: severidade, multidimensionalidade das privações, longa permanência na pobreza, transmissão intergeracional

Ações de fortalecimento da infra-estrutura social (estrutura formal e organização social)

Figura 5 - Relações entre elementos condutores e interruptores da pobreza crônica

INTERRUPTORES DA POBREZA CRÔNICA (PROPULSORES DA SAÍDA)

CONDUTORES PARA POBREZA CRÔNICA

Fatores indissioncráticos

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Flexibilidade na oferta e adequação à heterogeneidade da demanda (menor padronização)

DIMENSÕES DA GESTÃO PÚBLICA – ELEMENTOS TÉCNICOS, POLÍTICOS E

INSTITUCIONAIS

Intersetorialidade/ transversalidade

Gestão em redes (redes multiníveis e horizontais) Participação

Acesso a ativos: trabalho, capital humano, moradia, relações familiares, capital social.

Transferências de renda, beneficios não contributivos

Ações de fortalecimento da infra-estrutura social (estrutura formal e organização social)

Itinerários de inserção/estratégias de incorporação social

INTERRUPTORES DA POBREZA CRÔNICA (PROPULSORES DA

SAÍDA)

Maior interação com usuários (alteração atributos pessoais, dimensão psico-social)

Figura 6 - Relações entre mecanismos de superação da pobreza crônica e elementos de gestão

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CAPÍTULO 6 – AS EXPERIÊNCIAS DE BELO HORIZONTE E SÃO PAULO: DAS IDÉIAS ÀS AÇÕES Como visto nos capítulos anteriores, a pobreza assume novas formas e as molduras

teóricas para analisá-la se ampliam, incorporando outras dimensões além da

econômica, com implicações para a produção de políticas de inclusão social no âmbito

local. Buscar-se-á, nesse capítulo, identificar como as questões trabalhadas nos

capítulos anteriores encontram ressonância em estratégias efetivamente existentes;

como as categorias analíticas sintetizadas no capítulo anterior são abordadas em duas

iniciativas desenvolvidas em metrópoles brasileiras. A análise centra-se na concepção e

no conteúdo das políticas de inclusão social. A estratégia considerada em Belo

Horizonte é o BH Cidadania, implantado pelo governo municipal em 2002 e que tem

como público alvo na fase piloto cerca de 23 mil pessoas (aproximadamente seis mil

famílias) residentes em nove áreas especialmente vulneráveis da cidade. Em São Paulo,

tem-se o conjunto dos programas criados e implementados pela Secretaria do

Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade (SDTS) na gestão municipal de 2001 a

2004, a política de inclusão social do governo de Marta Suplicy, que atendeu a cerca de

500 mil pessoas, sem dupla contagem, alterada radicalmente na gestão municipal que se

inicia em 2005, sob a direção de outra aliança partidária.

Como foi argumentado, ao se considerar pobreza crônica como um fenômeno

multideterminado e multidimensional, heterogêneo, espacialmente diferenciado,

marcado pela atuação de fatores estruturais e conjunturais; e se as dimensões

relacionais e relativas a valores, crenças e comportamentos são reconhecidas como

centrais para prevenção, mitigação e superação da pobreza, existem conseqüências

sobre o desenho das políticas. A decorrência é que as políticas concebidas para o

enfrentamento da pobreza crônica deveriam contemplar a multiplicidade de dimensões e

processos em seu desenho e nos conteúdos das intervenções, como primeira condição

para, por um lado, serem consistentes com o diagnóstico e, por um outro, aumentarem

as possibilidades de serem efetivas, isto é, alcançar os objetivos pretendidos. A

perspectiva da intersetorialidade, do território e da autonomia são as categorias-

síntese que traduzem as implicações de se considerar a pobreza a partir de

enfoques mais ampliados e serão os eixos em torno dos quais a análise será

desenvolvida.

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Esses elementos compõem o quadro conceitual proposto que salienta determinadas

categorias e diretrizes como centrais para nortear os desenhos das políticas de proteção

social. Por um lado, esse quadro fornece os principais componentes (categorias e

processos) para contrastar as experiências/iniciativas selecionadas. Já a análise da

viabilidade e sustentabilidade política exige o exame dos constrangimentos políticos,

financeiros e institucionais que condicionam a implementação de qualquer política182,

questão que não será tratada aqui.

Novamente vale ressaltar que a análise procura responder questões colocadas para o

desenho e conteúdo das políticas, para colocar sob uma perspectiva empírica os

elementos analíticos depurados das discussões elaboradas anteriormente, nas duas partes

do trabalho. Buscar-se-á identificar, no desenho das experiências, qual a concepção de

pobreza e o marco conceitual que guia a intervenção; as estratégias de focalização e os

critérios de elegibilidade adotados; os componentes desenvolvidos ou conjunto de meios

mobilizados para o alcance dos objetivos pretendidos. Três temas orientam o exame das

experiências: a) a dimensão de natureza mais substantiva, voltada para as questões da

autonomia e do empoderamento; b) a intersetorialidade para situar novas formas de

gestão; c) a dimensão do território e da infra-estrutura social para apreender como esses

elementos são considerados em cada estratégia.

O quadro abaixo sintetiza o que será objeto de análise nesse capítulo.

Quadro 10 – Dimensões, conteúdo da análise e referenciais empíricos para a

consideração sobre as iniciativas de Belo Horizonte e São Paulo

Dimensões de análise

O que contém cada dimensão O que será observado nas iniciativas em foco

Dimensão conceitual

Concepção de pobreza e identificação do problema

Diagnóstico da pobreza e formas de mensuração. Definição do público alvo. Focalização

Dimensão substantiva

Conteúdo da estratégia. Componentes da política. A lógica da intervenção.

Presença ou ausência da dimensão da autonomia, empoderamento na concepção do programa e seus componentes Atuação estratégica sobre o território

Dimensão institucional

Implicações no plano institucional e operativo

Intersetorialidade

Fonte: elaboração própria

No exame dos casos, buscar-se-á identificar o marco conceitual que guia as

intervenções, ou seja, as concepções de pobreza que lhes servem de base, que se 182 Para um aprofundamento dessa questão, ver Costa, 2004.

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combinam a ou implicam o uso de determinados indicadores e parâmetros de

mensuração. Esse ponto é fundamental, como visto no terceiro capítulo, não apenas para

mensurar a pobreza, mas também e principalmente na medida em que se articula com o

tema da focalização, da identificação da população ou regiões prioritárias para ação

governamental.

Em outro nível, importa analisar as estratégias desenvolvidas em BH e SP sob uma

dimensão substantiva, mapeando a presença ou não das categorias e dos elementos

levantandos na literatura, analisando não os resultados da implementação de uma

política, mas como o quadro conceitual dos programas incorpora e operacionaliza

determinadas diretrizes e categorias identificadas na análise como fundamentais para

compreender e atuar sobre as condições de pobreza, principalmente a pobreza crônica.

Ambas iniciativas se desenvolvem em contextos metropolitanos, onde a pobreza se

apresenta com mais intensidade, e configuram estratégias locais que partem de

visões abrangentes sobre pobreza, consideram o território como parâmetro para

focalização e as famílias como unidades de intervenção, elencando a

intersetorialidade e a participação como elementos centrais de uma estratégia de

inclusão social. Sendo assim, procura-se identificar como tais dimensões são traduzidas

na prática, situando as dificuldades para a efetivação de alternativas inovadoras em

situações concretas. Elementos de natureza econômica, política e institucional atuam

como constrangimentos que limitam ou conformam as estratégias efetivamente

implantadas em cada contexto e a análise específica dessas questões demandaria o

exame mais rigoroso dos processos de implementação. Esse ponto, embora central no

campo das políticas públicas, ocupa aqui um lugar secundário, e as razões para isso

residem nas limitações reais para incorporar mais questões e dimensões na análise no

presente trabalho.

As principais questões que orientam a análise das iniciativas são: Quais as concepções

que orientam os diagnósticos ou situação problema? Os desenhos das estratégias

contemplam metodologias de intervenção que favoreçam o fortalecimento da

autonomia, da confiança, da responsabilidade dos atores envolvidos? Como essa

perspectiva é operacionalizada em ações concretas? È possível identificar alguns limites

para sua efetivação? Como as estratégias de ação dos dois programas pretendem atuar

para interromper e superar a pobreza, principalmente crônica? As estratégias de gestão

adotadas encontram ressonância nas perspectivas de governança, governo de

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proximidade ou relacional? As diretrizes da intersetorialidade estão presentes de que

forma, sob quais mecanismos se expressam, como esta se materializa nas formas de

gestão? Que tipos de problemas podem ser encontrados na busca por uma gestão

intersetorial? Em que medida as políticas e estratégias em uso priorizam ações voltadas

para o fortalecimento da infra-estrutura social, entendida em seu duplo aspecto de infra-

estrutura formal e organização social?

Ao considerar iniciativas desenvolvidas por niveis locais de gestão busca-se verificar

como esses elementos e categorias analíticas, decantadas pela análise dos diferentes

enfoques sobre pobreza, se apresentam nas experiências em curso. Não se trata de

simplesmente ver na prática o que foi visto teoricamente, o que possivelmente seria em

si mesmo algo relevante. Mas de, além disso, explicitar algumas das dificuldades

concretas que experiências locais enfrentam para dar materialidade às diretrizes da

intersetorialidade e um enfoque estratégico de superação da pobreza, que considere o

território como unidade de análise importante para identificar a pobreza e também como

unidade de intervenção para seu efetivo enfrentamento e superação. Ambas cidades

apresentam um histórico de pobreza e desigualdade, alta incidência de pobreza crônica e

de situações de crescente vulnerabilidade. Alterações radicais nos padrões de emprego e

do mercado de trabalho provocaram, com maior nitidez em São Paulo, a emergência dos

novos pobres. A tabela abaixo permite identificar a magnitude do problema.

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Tabela 3 - Pobreza, indigência e vulnerabilidade em Belo Horizonte, São Paulo, Minas Gerais, São Paulo e Brasil – 1991 e 2000

% pobreza

% indigência

Intensidade da pobreza*

Intensidade da indigência**

% renda apropriada pelos 10% mais ricos

% renda apropriada pelos 40% mais pobres

% mulheres chefes famílias sem cônjuge e com filhos menores 15 anos

% mulheres de 15 a 17 anos com filhos

% crianças de 5 e 6 anos fora escola

% adolescentes de 15 a 17 anos fora escola

Belo Horizonte

1991 18,89 6,05 37,97 33,84 47,40 7,64 9,15 3,09 51,17 67,96

2000 14,17 4,92 40,64 55,92 48,58 7,14 6,14 5,61 19,67 13,22

São Paulo

1991 8,00 2,98 46,18 71,77 44,48 9,63 6,90 3,80 58,79 31,43

2000 12,06 5,60 51,19 74,59 49,21 7,38 5,14 5,94 24,8 15,73

Minas Gerais

1991 43,27 19,72 45,83 37,50 50,38 8,01 7,89 4,07 62,94 51,99

2000 29,77 12,57 43,78 48,54 50,56 7,96 5,86 6,12 28,10 23,96

São Paulo (Estado)

1991 12,86 3,9 39,29 51,13 44,38 10,18 6,32 5,14 62,24 37,99

2000 14,37 5,94 46,18 67,00 47,61 8,67 4,92 6,87 26,06 17,54

Brasil

1991 40,08 20,24 49,18 42,04 50,00 6,70 8,01 5,82 62,83 44,89

2000 32,75 16,32 49,68 53,87 52,36 6,36 5,83 8,45 28,55 22,29

Fonte: elaborado pela autora a partir dados PNUD (Atlas Desenvolvimento Humano, 2004)

* Intensidade da pobreza: “distância que separa a renda domiciliar per capita média dos indivíduos pobres (definidos como indivíduos com renda domicilar per capita inferior a R$ 75,50) do valor da linha de pobreza, medida em termos de percentual do valor dessa linha de pobreza” ** Intensidade da indigência: “distância que separa a renda domiciliar per capita média dos indivíduos indigentes (definidos como indivíduos com renda domicilar per capita inferior a R$ 37,75) do valor da linha de pobreza, medida em termos de percentual do valor dessa linha de pobreza”

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Os indicadores selecionados permitem uma visão das condições de pobreza, indigência,

desigualdade e vulnerabilidade das duas cidades. A incidência da pobreza e da

indigência diminuiu entre 1991 e 2000 em Belo Horizonte (de 18,89% para 14,17% no

caso da pobreza e de 6,05% para 4,92% no caso da indigência), Minas Gerais (de

43,27% para 29,77% e 19,72% para 12,57%, respectivamente no caso da pobreza e da

indigência) e Brasil (cuja pobreza passou de 40,08% para 32,75% e, no caso da

indigência, de 20,24% para 16,32%), mas aumentou tanto na cidade de São Paulo (de

8,00% para 12% e de 2,98% para 5,60% no caso da pobreza e da indigência,

respectivamente) quanto no Estado de São Paulo (de 12,86% para 14,37% para a

pobreza e 3,9% para 5,94% no caso da indigência).

Considerando apenas a indigência, ou a pobreza mais severa e crônica (com renda

abaixo de R$37,75 nos valores de 2000), os números são os seguintes: em Belo

Horizonte, 110 mil indivíduos; em São Paulo, cerca de 584 mil; 1,8 milhões em Minas e

de mais de 2 milhões no Estado de São Paulo e quase 28 milhões no Brasil183.

Mas se houve uma redução na incidência, a intensidade tanto da pobreza quanto da

indigência aumentou no período para todas as unidades, com exceção do Estado de MG,

no qual houve uma redução de menos de dois pontos percentuais. Isso quer dizer que a

pobreza pode ter diminuído em sua extensão, mas tornou-se mais aguda em sua

profundidade: alguns pobres ficaram mais pobres, aumentando a brecha da renda, ou a

distância entre a renda média dos pobres e as linhas de pobreza e indigência. Nas

cidades, nos Estados e no Brasil, tem-se um aprofundamento da pobreza e,

principalmente, da indigência. Os valores são os seguintes: em Belo Horizonte, a

distância que separa a renda dos pobres e indigentes em relação às linhas de pobreza e

indigência aumentou de 37,97 para 40,64, no caso da pobreza; e de 33,84 para 55,92, no

caso da indigência. Em São Paulo, a intensidade da pobreza passou de 46,18 para 51,19

e de 71,77 para 74,59, no caso da indigência. Para Minas Gerais tem-se uma pequena

redução na intensidade da pobreza (que passa de 45,83 para 43,78), mas uma ampliação

da intensidade da indigência, que passa de 37,50 para 48,54. No Estado de São Paulo, a

intensidade passou de 39,29 para 46,18, no caso da pobreza e de 51,13 para 67,00, no

caso da indigência. Para o Brasil, a trajetória é a mesma: a pobreza se aprofunda (o

valor passa de 49,18 para 49,68) e a indigência também (de 42,04 para 53,87). 183 O cálculo foi feito a partir dos dados do Atlas de Desenvolvimento Humano (PNUD, 2004), que fornece a porcentagem, conforme tabela acima.

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Outros indicadores selecionados (mulheres chefes de familia sem cônjuge e com filhos

menores de 15 anos, mulheres de 15 a 17 anos com filhos, crianças e jovens fora da

escola) dentre a variedade de indicadores disponíveis no Atlas de Desenvolvimento

Humano (IPEA/FJP, 2002), buscam capturar alguns aspectos das condições de

vulnerabilidade e apontam para uma condição relativamente melhor nas cidades do que

nos Estados e no conjunto do país. A partir deles, percebe-se que houve uma redução

significativa das crianças e adolescentes fora da escola e também uma redução, ao longo

da década de 90, do percentual de mulheres chefes de família sem cônjuge e com filhos

menores de 15 anos, para todas as regiões selecionadas. Esses elementos apontam para

uma situação de menor vulnerabilidade, seja em função do capital humano que pode ser

fortalecido pelo aumento da escolaridade ou em função dos ativos financeiros e

familiares que ficam, em tese, mais protegidos quando não é apenas a mulher a

provedora do domicílio, principalmente no caso da presença de crianças na família.

Entretanto, e curiosamente de forma inversa, houve um aumento em todas as regiões, do

percentual de adolescentes (mulheres de 15 a 17 anos) com filhos, o que constitui uma

forte condição de vulnerabilidade e elemento condutor para situações de perpetuação da

pobreza, no caso de mães adolescentes pobres ou indigentes.

Os indicadores de desigualdade são expressivos da magnitude da apropriação desigual

de renda no país, nos Estados e nas cidades consideradas. A desigualdade aumentou ao

longo da década, com o incremento da renda apropriada pelos mais ricos e o decréscimo

da renda apropriada pelos mais pobres: em Belo Horizonte, o aumento da renda

apropriada pelos 10% mais ricos ao longo da década foi de 1,18%. Em São Paulo, foi de

4,73%; de 0,18% para Minas Gerais e de 3,23% para o Estado de São Paulo. Para o

Brasil, houve um aumento de 2,36 pontos percentuais no montante de renda apropriada

pelos 10% mais ricos. Em compensação, percebe-se o decréscimo do percentual de

renda apropriada pelos 40% mais pobres: para Belo Horizonte, o decréscimo foi de 0,5

ponto percentual; em São Paulo, foi de 2,25 pontos percentuais; para Minas Gerais

também houve uma redução, embora em menores proporções (de 8,01% para 7,96%);

para o Estado de São Paulo, a redução foi de 1,51 pontos percentuais e para o Brasil o

percentual de renda apropriada pelos 40% mais pobres passou de 6,70% para 6,36%.

Com esses dados têm-se as evidências para afirmar que a pobreza, a indigência e a

desigualdade ainda persistem como problemas que demandam ações consistentes e mais

efetivas em termos de políticas públicas.

212

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6.1 Belo Horizonte: o BH Cidadania como estratégia de enfrentamento da exclusão

social184FPT

Vários indicadores poderiam ser elencados para dimensionar os tipos e a magnitude das

privações, mas não se trata de fazer um inventário detalhado das condições de vida da

população, mas de fornecer um quadro sintético de algumas dimensões que traduzem

aspectos da vulnerabilidade e exclusão. Em 2000, a população de Belo Horizonte era de

cerca de 2,2 milhões de habitantes, e contava como uma taxa de desemprego crescente,

passando de 11,7% da PEA em 1996 para 16,2% em 2001. O desemprego cresceu,

sobretudo, na faixa etária de jovens adultos (18 a 24 anos), subindo de 18,7% para

26,5% nesse período (PBH/Urbal, 2004). A década de 90 trouxe grandes mudanças na

estrutura econômica do município, com a queda na produção e na absorção de mão de

obra pela indústria e pelo setor de construção civil. A expansão dos empregos se deu,

praticamente, no setor de serviços, que abriu no período (1996-2001) mais de 43 mil

postos de trabalho, mas que constituem, em sua ampla maioria, trabalhos com baixa

remuneração (PBH/Urbal, 2004).

A cidade apresenta uma alta desigualdade em relação à renda média do chefe do

domicílio, com algumas regiões apresentando renda três vezes superior à média do

município e seis vezes superior à renda média de outras regiões (PBH/Urbal, 2004)185.

A população estimada de vilas, favelas e conjuntos habitacionais totalizava, em 2000,

483.075 habitantes, cerca de 22% da população urbana de Belo Horizonte, distribuída

em 175 vilas e favelas (sendo que algumas são aglomerados) e em 21 conjuntos

habitacionais precários (PBH/Urbal, 2004). Nessas regiões se tem um acesso restrito aos

184 Os dados apresentados nessa seção foram retirados de documentos fornecidos pelas equipes dos Programas BH Cidadania e Bolsa Família, coordenados pela Secretaria Municipal de Políticas Sociais da Prefeitura de Belo Horizonte, como resposta aos roteiros elaborados pela consultoria do Projeto Urbal – Rede 10 de Luta contra a pobreza urbana. As informações de Belo Horizonte foram coletadas a partir da minha participação nesse projeto, no qual atuei como consultora juntamente e sob a coordenação de Laura da Veiga. Trata-se de um projeto, finalizado em outubro de 2005, coordenado pela Prefeitura de Belo Horizonte com o suporte financeiro da União Européia, que consistiu na análise de programas de inclusão social por meio de políticas intersetoriais, desenvolvidos em cidades européias (Aviles e Málaga, na Espanha; Vila Real de Santo Antonio, em Portugal) e latinoamericanas (El Bosque, Chile; Azul, Argentina; Belo Horizonte e São Paulo, Brasil). Os casos de Belo Horizonte e São Paulo, bem como o caso de El Bosque, foram elaborados por mim. A experiência de São Paulo analisada no âmbito do projeto Urbal não se refere, contudo, ao programa analisado na tese, .uma vez que os programas considerados eram relativos à população de rua e o Programa de Renda Mínima, somente. 185 Por exemplo, a regional Centro Sul apresenta, de acordo com os dados do Censo de 2000, uma renda média do chefe de R$3.150,00, enquanto que a regional Barreiro apresenta uma renda média do chefe de R$ 550,00. Outras cinco regionais apresentam uma renda média do chefe inferior a hum mil reais, sendo que, além da Centro Sul, apenas a regional Oeste e a Pampulha apresentam renda acima de hum mil reais (R$1.413,00 e R$ 1.389,00, respectivamente) (PBH/Urbal, 2004).

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serviços de infra-estrutura urbana (serviços sanitários) e a presença de riscos geológicos

graves. De acordo com os documentos consultados, registram-se ainda outros problemas

em várias regiões de vilas e favelas da cidade, com cerca de 20% dos domicílios sem

coleta de lixo; 10% das famílias sem acesso à água tratada; 30% sem acesso à rede de

coleta de esgoto; condições insalubres de existência; ausência de pavimentação das

ruas; baixa presença de equipamentos comunitários, sendo que o equipamento mais

comum é o telefone público (PBH/Urbal, 2004). De acordo com o diagnóstico de

situação de risco geológico, realizado em 2004, 10.153 moradias encontravam-se em

áreas de risco alto e muito alto, localizadas nas periferias, em áreas insalubres, morros e

vales sujeitos a deslizamentos, desmoronamentos e alagamentos (PBH/Urbal, 2004).

Embora tenha havido uma redução da incidência da pobreza e da indigência ao longo

dos anos noventa, a intensidade da pobreza e da pobreza extrema aumentou, como visto

a partir dos dados da tabela 3. Quer dizer, a pobreza se tornou mais profunda e a

desigualdade se ampliou. Nesse contexto de privações, a estratégia do BH Cidadania se

coloca como uma estratégia central para o enfrentamento da pobreza e da exclusão.

A seção seguinte centra-se na apresentação e análise da estratégia de intervenção

adotada pelo BH Cidadania, que configura-se como uma das principais estratégias de

inclusão social no município.

6.1.1 - A estratégia do BH Cidadania186

Para uma análise do programa BH Cidadania187 é necessário, antes de tudo, recuperar o

contexto no qual o Programa se desenvolve. Duas questões são centrais nesse sentido: a

reforma administrativa da Prefeitura de Belo Horizonte em 2000 - 2001188 e a

reorganização dos serviços e programas da política de assistência social, que são

processos relativamente independentes, mas que têm implicações na formulação e

gestão do BH Cidadania. A reforma administrativa instituída pela PBH em dezembro de

2000 alterou a estrutura político-administrativa existente e as relações entre as

186 Os dados aqui apresentados foram coletados a partir de fontes diversas, acessadas principalmente a partir do trabalho do qual participei no âmbito do Projeto Urbal. São basicamente fontes primárias - documentos do programa (PBH/Urbal, 2004) – e alguns trabalhos de avaliação produzidos por consultores (PBH,2004) por exigência do BIRD para a concessão do empréstimo para a expansão do Programa a partir de 2005. Outros são artigos produzidos externamente ao Programa e à PBH (Filgueiras, 2005; Rocha, 2005). 187 O nome completo do Programa BH Cidadania é Programa de Desenvolvimento Integrado dos Assentamenteos Subnormais do município de Belo Horizonte. 188 A reforma administrativa foi embasada pela Lei Municipal nº 8146, de 29/12/2000.

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secretarias temáticas e as secretarias regionais, modificando atribuições e competências,

redefinindo papéis, fluxos, procedimentos e recursos. As secretarias temáticas referem-

se às secretariais setoriais, como educação, saúde, assistência social.

No primeiro momento do programa BH Cidadania, a responsabilidade pela formulação

e coordenação das ações cabia a SCOMPS (Secretaria de Coordenação Municipal das

Políticas Sociais), uma instância recém criada na estrutura da PBH, que ficara com a

incumbência de articular as ações da saúde, educação e assistência social. Tratava-se de

uma grande responsabilidade, mas sem contar com a legitimidade e os meios para

efetivar a tarefa árdua de colocar para operar juntos setores consolidados (educação e

saúde) com outros menos consolidados (assistência), pressupondo uma alteração nas

rotinas, prioridades e formas de organizações anteriores à reforma. Na nova reforma

administrativa, realizada em 2004, a SCOMPS muda de nome e de posição no

organograma da PBH. Ela passa a ser denominada Secretaria Municipal de Políticas

Sociais (SMPS) e coordena apenas a área de assistência social (secretaria adjunta), e as

áreas de cultura, esporte, lazer e abastecimento, estando no mesmo nível hierárquico das

secretarias de educação e saúde e não mais acima delas, como no desenho anterior.

O impacto dessas reformas foi diferente para cada secretaria e, no âmbito da assistência,

os efeitos foram profundos. Destaca-se aqui o campo da assistência por ser esse o setor

das políticas públicas mais orientado para o enfrentamento da pobreza e da exclusão e

também pelo fato de as interfaces desse setor com o BH Cidadania serem mais claras e

diretas, conforme será visto adiante especificamente a partir da atuação do Núcleo de

Apoio à Família, um equipamento da assistência e uma porta de entrada para o BH

Cidadania.

No campo específico das políticas de assistência social, o modelo de gestão e de política

que estava sendo delineado, também em 2000, era congruente com os princípios básicos

da reforma, embora não fosse decorrente diretamente dela, emergindo antes de um

esforço feito pela assistência de se organizar, como política pública, de forma similar ao

modelo adotado na área de saúde. Um elemento estruturante na organização dos

serviços de saúde e que encontra correspondência nas mudanças processadas na

assistência refere-se à concepção de sistema de atendimento. A noção de sistema

espelha, pelo menos idealmente, uma visão menos setorializada de cada serviço ou

programa e incorpora a concepção de redes, de ações desenvolvidas de forma integrada,

operadas convergente ou conjuntamente.

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Os princípios que orientaram as mudanças no campo da assistência189 (PBH/Urbal,

2004) foram: a) a descentralização dos serviços de assistência já era uma exigência

anterior à reforma demandando uma reorganização dos serviços que fosse

descentralizada, mais próxima das demandas e do público alvo, e para responder de

forma adequada às necessidades e características locais; b) a unidade de intervenção

básica é a família, foco de atenção, destinatária prioritária das ações; c) o novo modelo

da assistência operando segundo a lógica territorial, tendo o território como base de

organização das ações, serviços, programas, projetos e benefícios, agrupados segundo as

funções - prevenção, promoção, proteção e inserção - e segundo a quantidade de

pessoas que deles necessitam. De acordo com a complexidade e o volume do

atendimento, são estabelecidos três níveis de gestão: local, regional e central190,

conforme pode ser visto no quadro abaixo. A Política Municipal de Assistência Social

é, então, definida de acordo com as funções que desempenha e com a base territorial de

atuação. A tipologia das funções identifica ações de promoção, prevenção, proteção e

inserção, que se combinam com o eixo do território para estabelecer os níveis locais,

regionais e central como as instâncias de gestão e de atendimento.

Quadro 11 - Organização dos serviços de assistência social segundo volume e

complexidade do atendimento

Volume atendimento alto

Volume atendimento médio

Volume atendimento

baixo Complexidade alta serviços de base

central Complexidade média serviços de base

regional

Complexidade baixa serviços de base local Funções prevenção/promoção proteção inserção Fonte: elaborado pela autora

189 As informações sobre o processo de reorganização da assistência foram retiradas, basicamente, dos documentos fornecidos pelo projeto Urbal, conforme descrito em nota anterior. 190 Para os serviços de base local, tem-se um volume maior de pessoas atendidas e um nível de complexidade baixo. A perspectiva que orienta esse nível é a da prevenção de riscos e de promoção da autonomia das famílias. Nesse nível estão localizadas as ações no âmbito da socialidade, da convivência e fortalecimento dos vínculos familiares, sociais e comunitários. Os serviços de base regional e de base municipal, por sua vez, apresentam um nível maior de complexidade e são desenvolvidos junto a clientelas menores. Trata-se de serviços de volume de atendimento e complexidade médios e a perspectiva que orienta a atuação nesse nível é a de proteção suplementar, que constitui a proteção frente a situações de vulnerabilidade. Nesse nível estão programas e serviços como o Serviço de Orientação Sócio Familiar (SOSF) e o Plantão Social. No nível central, estão as iniciativas que combinam alta complexidade com volume baixo de atendimento, para públicos que exigem proteção integral, seja em termos de moradia ou trabalho protegido. Nesse nível estão os programas para meninos de rua e população de rua, para adolescentes autores de ato infracional .

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Esse processo de reorganização da assistência social foi acompanhado, no âmbito

operativo, por alterações substanciais no papel e nas atribuições das esferas regionais.

Essas passaram a desempenhar um papel mais potente no território, ampliando sua

atuação e capacidade de intervenção; enquanto que o nível central ou secretaria

temática, por sua vez, livre da execução direta, passaria a responder pela formulação das

diretrizes gerais de atendimento ou do marco conceitual da intervenção, bem como pela

supervisão dos serviços para viabilizar maior homogeneidade da rede e padrões

mínimos quanto a qualidade do atendimento nas diferentes regiões e equipamentos

existentes. Nesse contexto, as funções de monitoramento e avaliação das ações tornam-

se estratégicas e absolutamente centrais para dar suporte ao processo de planejamento e

de gestão da política de assistência. Entretanto, se por um lado, a SCOMPS não

conseguia, em um primeiro momento da reforma, exercer de fato a coordenação das

ações setorializadas, por outro as SCOMGERs (Secretaria Municipal da Coordenação

de Gestão Regional)191, na ponta, seguiam o fluxo setorial anterior à reforma,

executando ações planejadas pelas temáticas192. Em outros casos, as temáticas

continuavam a executar diretamente as ações, uma vez que tinham a estrutura, pessoal e

know how para isso, em comparação às SCOMGERs, pouco preparadas para receber o

aumento das atribuições e ampliação do escopo de atuação dado pela reforma

(Magalhães e Correa, 2004).

Paralelamente a essa reorganização dos serviços de assistência e logo após a primeira

reforma, a Prefeitura inicia a implantação de um novo modelo de reorganização da

política social, baseado nas diretrizes que inspiraram a alteração da estrutura

administrativa do executivo municipal: intersetorialidade, descentralização,

territorialidade e participação comunitária, tendo como foco a inclusão social

(Documento do Programa BH Cidadania, 2004). Em agosto de 2002 iniciou-se a

implantação do Programa nas áreas selecionadas, momento marcado pela inauguração

de um Núcleo de Apoio à Família/NAF em cada uma das nove áreas piloto.

As diretrizes da intersetorialidade, descentralização, territorialidade e participação

estão presentes tanto no desenho do programa BH Cidadania quanto no desenho da

reforma, sendo essa convergência potencialmente positiva, tanto para o avanço da

implementação da reforma quanto para a efetivação dos objetivos do BH Cidadania. 191 São secretarias regionais responsáveis pela coordenação dos serviços urbanos e sociais no nível das nove regiões administrativas. 192 Em Belo Horizonte, denominam-se “temáticas” as secretarias setoriais.

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O Programa é especialmente interessante aqui por quê à perspectiva da inclusão e

redução de vulnerabilidades, de natureza substantiva, soma-se a dimensão relacionada

ao modelo de gestão. Explicitamente, o Programa busca “implementar um modelo de

gestão baseado na descentralização, articulação e integração intersetorial, e inverter a

lógica setorial fragmentada de operação dos diversos programas da área social da

Prefeitura de Belo Horizonte” (PBH/Urbal, 2004). Em termos conceituais, o BH

Cidadania adota explicitamente as seguintes diretrizes que pautaram a formulação do

programa: o planejamento e a intervenção a partir do território, a participação da

comunidade em toda etapa de desenho e gestão do programa, o foco na unidade

familiar, a lógica da integração dos recursos governamentais e não-

governamentais, a perspectiva da autonomia das famílias (Documento do Programa

v. 3/3, 2003, p. 6).

O BH Cidadania adota uma visão abrangente da pobreza. De forma explícita, o conceito

de base é o de exclusão social. Exclusão social é entendida como “o processo que

impossibilita parte da população, de partilhar dos bens e recursos oferecidos pela

sociedade, conduzindo à privação, ao abandono e à expulsão desta população dos

espaços sociais”(PBH/Urbal, 2004). O Programa parte de uma definição de inclusão

social entendida como “processo que possibilita à população vulnerabilizada

socialmente partilhar dos bens e serviços sociais conquistados pela sociedade”

(Documento do Programa, 3/3, 2003, p. 6).

Para implantar o projeto piloto do BH Cidadania, foram identificadas nove áreas piloto

que apresentavam os piores indicadores segundo um índice final que foi construído a

partir do Índice de Vulnerabilidade Social (IVS) e do Mapa de Exclusão Social e

também segundo o Indice de Qualidade de Vida Urbana (IQVU) e o Índice de Risco à

Saúde (IRS)193, abrangendo um conjunto de 23.114 pessoas, ou 5.942 famílias. A

vulnerabilidade é abordada pelo vetor espacial, entendendo-se que certas áreas urbanas

193 O IVS foi construído a partir das “dimensões de cidadania” - ambiental, cultural, econômica, jurídica e de sobrevivência – e busca, a partir de indicadores populacionais ou domiciliares, dimensionar a qualidade de vida nas diversas regiões da cidade (ver anexo I). Como se trata de um atributo negativo – vulnerabilidade - quanto maior o valor do índice, maior a condição de exclusão e vulnerabilidade. A partir do IVS, tem-se o elemento central para a construção do Mapa da Exclusão Social de Belo Horizonte. Associando-se o índice de vulnerabilidade social com algumas informações demográficas tais como faixa etária, cor e sexo, e com situações claras de exclusão social, tais como analfabetismo e trabalho infantil, tem-se o Mapa da Exclusão Social (PBH/Urbal, 2004). Além do IVS, tem-se também o Índice de Qualidade de Vida Urbana (IQVU) e o Índice de Risco à Saúde (IRS). A partir desses índices, foi elaborado um índice final (não disponível) que norteou a escolha das áreas piloto do BH Cidadania (PBH/Urbal, 2004).

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concentram dinâmicas e condições próprias que produzem e reproduzem a pobreza. Daí

adotar-se o território como eixo de atuação. Entretanto, esse tipo de focalização

apresenta limites e impõe desafios para a provisão de bens e serviços. Estudos

localizados indicam que os territórios do BH Cidadania, apesar de homogêneos quanto a

vários dos indicadores utilizados, apresentam heterogeneidade entre as famílias dentro

de cada área (Magalhães e Correa, 2004). Muitas famílias circunscritas ao território

podem não apresentar as mais intensas situações de privação, enquanto que outras que

se situam fora dos limites territoriais do BH Cidadania podem estar em piores condições

de vulnerabilidade e exclusão social. Mesmo com esse limite, a estratégia primeira de

focalização adotada é o território. Embora esse processo não seja explícito nos

documentos examinados, pode-se sugerir que existe no Programa uma espécie de

segunda focalização, com o atendimento de famílias, no território, que apresentam

maior vulnerabilidade. A pista para essa afirmação está na afirmação, essa sim explícita

nos documentos, de que o BH Cidadania tem como foco de intervenção a família. Nesse

sentido é definido o perfil das famílias-alvo do programa: estas devem residir em área

de elevado risco social, pertencerem ao grupo de pobreza 1 (o grupo mais pobre),

apresentarem casos de violação de direitos e violência doméstica, uso de drogas e

álcool, não acesso ao mercado formal de trabalho, “elevado grau de desagregação

social” (Documento do Programa, v. 3/3, 2003, p. 8). Tem como objetivo “promover a

inclusão social das famílias residentes em áreas socialmente críticas consolidando

modelos integrados de atuação na área social”.

O objetivo do Programa é promover a inclusão do conjunto de famílias residentes nos

territórios, utilizando um modelo de gestão intersetorial. Como objetivos específicos,

tem-se a melhoria do acesso a bens e serviços sociais, a redução dos fatores de

vulnerabilidade e risco e a promoção de relações de solidariedade entre os membros das

comunidades atendidas (Documento do Programa, v. 3/3, 2003, p. 8).

Os componentes traduzem a perspectiva da intersetorialidade e da

multidimensionalidade da pobreza, ao se centrarem no direito à educação, direito à

saúde, inclusão produtiva e socialidade. De acordo com o documento de síntese do

Programa, elaborado um ano após sua implementação, os “componentes finalísticos”

envolvem provisão de equipamentos (NAF, Casa de Brincar, Centros de Formação para

Juventude), programas e serviços (Programa BH mais saudável, BH Vida, Programa

Recrear, intermediação de trabalhadores autônomos, formação profissional, oficinas de

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esportes, cultura, grupos de convivência e áreas de convivência) com participação de

várias secretarias, desenvolvimento de ações (organização de cooperativas, implantar

unidades de educação infantil). Além desses, o documento identifica componentes

complementares, relativos ao desenvolvimento institucional no campo da informação e

da gestão integrada das políticas sociais. Como se percebe, os elementos apontados são

de naturezas distintas e não parecem fazer parte de um mesmo conjunto, o que indicaria

já aí uma certa inconsistência entre o objetivo do Programa e as intervenções propostas.

Outro documento, mais recente (PBH/Urbal, 2004), afirma que dos quinze

componentes, apenas oito seriam exclusivos da área do BH Cidadania194 .

Um ponto a ser salientado refere-se precisamente à qualidade das informações

fornecidas, o que impede a certeza sobre quais são de fato os componentes do programa,

uma vez que nos documentos examinados eles não são os mesmos195. Optamos aqui

por utilizar as informações que constam no documento mais recente (PBH/Urbal, 2004).

De acordo com ele, tem-se um conjunto de 15 componentes196 e 33 programas, de oito

secretarias e subsecretarias, sendo que cinco desses programas são comuns para mais de

uma faixa etária, conforme se pode observar no quadro 12.

194 No caso da educação, um componente (educação de jovens e adultos) é considerado como serviço que, embora não seja específico ou exclusivo do Programa, apresenta uma atenção especial em relações às áreas do BH Cidadania. No caso da saúde, os dois componentes são elencados como sendo serviços universais, sem sequer apontar para uma atenção especial em relação às áreas de maior vulnerabilidade (PBH/Urbal, 2004). 195 As referências aqui são: o Documento do Programa, v.3/3, de novembro de 2003; o documento PBH/Urbal, 2004; e o relatório de atividades do Programa BH Cidadania, 2002, mimeo. 196 Em alguns momentos, são identificados como componentes o Direito à Educação, Direito à Saúde, Inclusão Produtiva, socialidade (Documento do Programa, v. 3/3, 2003). Em outro documento (PBH/Urbal, 2004) os componentes são: a) enfrentamento de situações de risco familiar e social; b) promoção de identidades pessoais e vínculos sociais; c) acesso a políticas sociais e urbanas do município; d) reforço de vínculos familiares para crianças pequenas; e) desenvolvimento comunitário; f) estímulo à leitura; g) socialização infanto-juvenil: 6 a 14 anos; h) socialização de jovens: 15 a 18 anos; i) educação fundamental; j) educação de jovens e adultos; k) qualificação profissional; l) incentivo à formação de cooperativas; m) atenção básica à saúde; n) programa de saúde da família; o) transferência de renda. Novamente aqui registra-se a ambigüidade em relação aos termos utilizados, o que contribui para dificultar a identificação do marco conceitual e da lógica da intervenção. Os programas marcados em negrito são exclusivamente ou prioritariamente orientados para as áreas do BH Cidadania.

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Quadro 12 – Programas desenvolvidos no BH Cidadania: secretarias envolvidas e atendimento por faixa etária

PROGRAMAS SECRETARIAS ENVOLVIDAS FAIXA ETÁRIA Educ. Saúde Assist. Abastec. Cultura Esporte Dir. de

Cidada GEDE 0 a 5

anos e 11 meses

6 a 14 anos

15 a 21 anos

adultos idosos todas faixas etárias

Formação de Profissionais Especializados em Educ. Infantil

x x

Ampliação de Vagas para Ensino Infantil - Construção de UMEI’s

x x

SAUDE INFANTIL Estímulo ao Desenvolvimento Infantil (Prevenção / Combate à

Desnutrição)

x x x x x x

Casa de Brincar Se essa praça fosse minha

x x

BH na Escola x x x x Alimentação Escolar x x x

Estímulo à Socialidade e benefícios físicos através do lazer

e esporte

x x

Socialização Infanto – Juvenil x x x x x x Educação de Jovens e Adultos –

EJA x x x

Estímulo à Melhoria e Qualidade de Vida (Saúde Adolescentes /

Jovens)

x x x x x x x

Socialização de Jovens (até 18 anos)

x x x x x x

Formação Profissional x x x Estímulo à Socialidade e

benefícios físicos através do lazer e esporte / 2do. Tempo

x x x

Alfabetização x x* x x Saúde do Adulto x x x x x Saúde da Mulher x x x x

Desenvolvimento Comunitário x x x* Somente no caso de idosos tem-se a participação da sub secretaria de Direitos de Cidadania nesse programa

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Quadro 12 – Programas desenvolvidos no BH Cidadania: secretarias envolvidas e atendimento por faixa etária (cont.)

SECRETARIAS ENVOLVIDAS FAIXA ETÁRIA Educ. Saúde Assist. Abastec. Cultura Esporte Dir. de

Cidadan GEDE 0 a 5

anos e 11 meses

6 a 14 anos

15 a 21 anos

adultos idosos todas faixas etárias

Educação para o Consumo Plantio Alternativo

x x x x x x*

Estímulo à Socialidade e benefícios físicos através do

lazer e esporte – Recrear

x x

Saúde do Idoso x x x x x x x Grupo de Convivência com o

Idoso x x x x

Assistência Alimentar x x x x Direito à Cidadania (Pensão /

Violência) x x

Estímulo à Socialidade e benefícios físicos através do lazer e esporte – Vida Ativa

x x x

Atenção Domiciliar x x x Defesa do Consumidor, Direitos da Mulher, Assuntos da Comunidade Negra, Direitos Humanos, Apoio à Pessoa Portadora de Deficiência

x x

Estímulo à leitura Formação e Capacitação de

Mediadores da Leitura

x x x x

Estímulo à Socialidade e benefícios físicos através do lazer e esporte – Caminhar

x x

Fonte: elaborado pela autora a partir dados fornecidos nos documentos PBH/Urbal, 2004 x* Quando se trata de todas as faixas etárias, a única subsecretaria que atua é a de Abastecimento. * A célula sombreada é para identificar a secretaria responsável pelo desenvolvimento das ações dos programas, ainda que seja uma ação que conte com a adesão ou o envolvimento de outras secretarias.

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A partir dos vários programas, o BH Cidadania busca reduzir vulnerabilidades, estimular a

convivência familiar e comunitária e favorecer a autonomia das famílias. Para as famílias que

fazem parte do recorte territorial priorizado pelo BH Cidadania (famílias que moram nas áreas

de abrangência do Programa, no máximo 700 famílias em cada uma das 09 áreas), tem-se um

conjunto específico de ações: transferência de renda (Bolsa Escola Municipal/BEM); oficinas

de esporte, arte e cultura para crianças, adolescentes; educação infantil em tempo integral;

ações preventivas e atenção básica em saúde; cursos de capacitação de chefes de família e

jovens para ampliar as possibilidades de inserção produtiva; fortalecimento dos vínculos

familiares e comunitários; fortalecimento da rede local.

As famílias são identificadas, cadastradas e acompanhadas pelos técnicos e estagiários dos

NAFs, principais responsáveis pela articulação da rede de serviços e pelo encaminhamento das

demandas da população. O Núcleo de Apoio Familiar (NAF), localizado em cada regional,

também executa diretamente ações para as famílias, de caráter sócio-comunitário. Ao

propiciar encontros, espaços de interlocução e de troca de informações, o NAF tem um

importante papel de fomentar relações, estreitar laços, contribuindo para estimular a

cooperação e confiança, atuando sobre o espaço das relações sociais e familiares. Esse

equipamento e os programas e ações que são desenvolvidos a partir dele podem funcionar

como instrumento de mobilização e formação de capital social (Somarriba, 2004), o que

poderia ampliar as bases da infra-estrutura social.

Um elemento importante do processo de empoderamento refere-se à participação. A partir da

participação, os indivíduos e famílias atendidas teriam mais chances de atuarem como sujeitos

e protagonistas do processo de incorporação ou inclusão social. A estratégia do Programa,

como definido em seu desenho, destaca os elementos da participação e da mobilização da

comunidade: “a participação popular no Programa BHCidadania tem como principal diretriz

o envolvimento da população na formulação, gestão e avaliação do Programa” (PBH/Urbal,

2004). Para contextualizar melhor o lugar da participação no programa é necessário situar a

estrutura decisória e de gestão.

O programa apresenta uma engenharia institucional complexa, ao pressupor o envolvimento

de distintos setores das políticas e diversas instâncias de ação e decisão. A responsabilidade

pelo programa é da Secretaria Municipal de Política Social (incluindo as Secretarias Adjuntas

de Assistência Social, Abastecimento, Esportes, Direitos de Cidadania e Fundação Municipal

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de Cultura), tendo como co-executoras as Secretarias Municipais de Educação e Saúde,

Secretaria Municipal de Política Urbana e Ambiental, Secretaria de Planejamento e as

Secretarias Municipais de Coordenação de Gestão Regional. No Nível Decisório tem-se a

Câmara Intersetorial de Políticas Sociais-CIPS coordenada pela Secretaria Municipal de

Políticas Sociais (SMPS) e com representantes de suas secretarias adjuntas, Secretaria

Municipal de Saúde (SMSA), Secretaria Municipal de Educação (SMED) e Gestão Regional

(SCOMGER). No Nível Gerencial tem-se o grupo de trabalho (GT) do BH Cidadania, com

coordenação da SMPS e representantes técnicos de todas as secretarias temáticas ligadas a ela;

SMSA e SMED e Gerentes de Políticas Sociais das nove regionais. No Nível Executivo tem-

se dois colegiados de coordenação, um regional e outro local197. Ambos são coordenados

diretamente pelo Secretário Municipal Regional de Serviços Sociais, embora mudanças

recentes apontem que o Colegiado local passe a ser coordenado pelo NAF, sendo essa a

instância responsável pelo planejamento, implantação, monitoramento e avaliação das

atividades do programa no âmbito local. A participação da comunidade está prevista no

Colegiado Local e no Grupo de Referência, constituído por representantes eleitos para

representar a comunidade na interlocução com o poder público.

Duas instâncias são fundamentais para viabilizar a participação no âmbito do Programa: o

Grupo de Referência e o Plano de Ação Local. Este último consiste na elaboração conjunta

(por técnicos do NAF e grupo de referência) do diagnóstico e de propostas de ação. Conforme

consta nos documentos, “o objetivo geral deste grupo é o de construir coletivamente um

diagnóstico da realidade local para, a partir dele, apontar as ações necessárias para

resolução dos problemas identificados” (PBH/Urbal, 2004).

O documento descreve a participação comunitária ao longo do processo de implementação do

programa na comunidade.Esse processo teria várias fases: na fase de implantação, tem-se a

“sensibilização e pactuação institucional”, realizada a partir de seminários regionais, reuniões

com lideranças e treinamento das equipes, com o objetivo de partilhar informações com outros

agentes (órgãos e equipamentos governamentais) que atuam no território. Trata-se de afinar as

perspectivas sobre o programa, sobre o diagnóstico da região, sobre a metodologia, fluxos,

estruturas operacionais e gerenciais. Essa fase é marcada por uma baixa participação da

comunidade. A segunda fase consiste na “sensibilização e pactuação com a comunidade” e 197 Regional refere-se a divisão das nove regiões administrativas de Belo Horizonte; local refere-se às áreas de implantação do BH Cidadania.

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inicia-se com o lançamento do Programa na região, e também a partir das reuniões ampliadas

nas regionais, para escolha dos representantes dos “Grupos de Referência”198. A terceira etapa

da entrada do Programa no âmbito local é marcada pela elaboração do diagnóstico e de

propostas de ação, que ficam explícitas no Plano de Ação Local. A construção do Plano é

coletiva, sendo o grupo de referência e o NAF responsáveis por sua produção. O Plano de

Ação Local é um poderoso instrumento, se bem utilizado, para guiar a ação governamental,

articular governo e comunidade através do estabelecimento das prioridades de intervenção em

cada um dos eixos estratégicos do Programa (educação, saúde, socialidade, inclusão

produtiva). Por fim tem-se, no âmbito de cada regional, reuniões para apresentação, discussão

e “pactuação” do Plano de Ação Local. O objetivo dessas reuniões ampliadas é conferir

legitimidade ao plano e à representação da comunidade no Colegiado de Coordenação Local

(PBH/Urbal, 2004). Contudo, avaliações preliminares199 sobre o BH Cidadania indicam que o

grupo de referência e o Plano de Ação Local ainda são bastante incipientes.

Para dimensionar a magnitude do programa, uma breve medida de seus resultados, ainda que

sejam apenas resultados de produtos e não se refiram ao alcance dos objetivos, pode ser

importante. Em 2004, 4.365 famílias foram atendidas no BH Cidadania; 580 pessoas atendidas

em ações de formação e qualificação profissional entre 2003 a meados de 2005; 20.224

crianças participaram de atividades no contra-turno da escola, ocupando o total das vagas

oferecidas de 2002 a 2005; 5.814 famílias atendidas na modalidade de atendimento básico em

saúde (crianças, mulheres grávidas, idosos, deficientes, doentes crônicos) e também na

modalidade de atendimento sócio-assistencial para famílias em situação de risco e violação de

direitos. Além dessas atividades, são também elencadas como ações ligadas ao BH Cidadania,

embora sejam executadas direta e independentemente por outros setores: transferência de

renda do Bolsa Família e do Bolsa Escola Municipal: 1.333 famílias das 5.942 famílias que

residem nas áreas piloto foram assistidas com o Bolsa Escola Municipal em 2004200. Além

disso, tem-se o repasse de cestas de alimentos da Secretaria de Assistência e ações de inserção

198 O grupo de referência local pode ter no máximo 50 representantes por área-piloto, sendo o número proporcional ao número de moradores dos territórios trabalhados. Os representantes e lideranças de cada área são indicados em reuniões locais, e dentre suas tarefas cabe mobilizar a comunidade, contribuir na identificação dos problemas e atuar como agentes de controle público da ação governamental, monitorando as ações desenvolvidas. 199 Trata-se aqui, sobretudo, de informações obtidas no documento preparado por consultores externos, como requisito para o financiamento do BID, que nas referências aparece como PBH, 2004. 200 É preciso lembrar, contudo, que o Bolsa Família atende a milhares de pessoas além do público do BH Cidadania. Em 2005 eram atendidas no Bolsa Família e no Bolsa Escola Municipal quase 78 mil famílias. O universo de beneficiários – que se enquadram nos critérios – é de 110 mil famílias.

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laboral, desenvolvidas pelo Sistema Nacional de Emprego (SINE) e Núcleo Integrado de

Apoio aos Trabalhadores (NIAT), embora não tenham sido fornecidos os números desse

atendimento (PBH/Urbal, 2004).

Na fase de expansão, a partir de 2005 com o empréstimo junto ao Banco Interamericano de

Desenvolvimento (BID), a intervenção incorpora a dimensão urbano-social através da

definição de áreas de maior exposição a riscos e alta concentração de pobreza. A proposta é

articular as dimensões econômica, social e urbana ambiental. Serão quinze novas áreas, 127

setores censitários com risco muito elevado e 198 de risco elevado, com a previsão de atender

a 36 mil famílias e um universo aproximado de 150 mil pessoas.

Na expansão do BH Cidadania está prevista a construção de quinze Centros do BH Cidadania.

Cada centro ficará administrativamente subordinado à Secretaria Municipal de Políticas

Sociais, mas a definição das atividades será feita pelas comissões locais. Os Centros BH

Cidadania serão os

“equipamentos próprios do programa, que irão abrigar os Núcleos de Apoio à Família (NAF), salas para atividades de cultura, reforço escolar e inclusão digital, além de espaços para reuniões e capacitações comunitárias e para atividades de planejamento dos técnicos do programa. Os Centros BH Cidadania também contarão com quadras poliesportivas e serão construídos nos territórios de atuação do Programa” (Rocha, 2005).

Dentre as mudanças a serem inseridas a partir da expansão do Programa tem-se uma forma

mais integrada de atuação setorial no território, com a organização das atividades por faixa

etária (6 a 14 anos e 15 a 21 anos) sob a forma de jornada complementar, com ações diárias de

quatro horas nas quais são desenvolvidas atividades culturais, esportivas e de reforço escolar

(para a faixa etária de 6 a 14 anos) e inclusão digital (para a faixa etária de 15 a 21 anos).

Outro eixo de ações foi introduzido com a expansão do Programa, relativo ao “Fortalecimento

Institucional”, que busca atuar na ampliação das capacidades de gestão e na provisão de

instrumentos e sistemas de monitoramento e avaliação. Além das ações hoje desenvolvidas

pelo Programa (ver quadro 13), serão agregadas as seguintes ações a serem financiadas a partir

do empréstimo do BID: na área de educação, implantação de 24 Unidades de Educação

Infantil; na saúde, implantação de 29 equipes de saúde bucal; no eixo da socialidade,

implantação de 14201 Centros BH Cidadania; no eixo de inclusão produtiva, previsão de

201 Nesse documento (Rocha, 2005) constam 14 Centros e nos demais documentos examinados são considerados 15 novos centros.

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recursos para cursos de qualificação profissional; no eixo do fortalecimento institucional, a

elaboração do Sistema Único de Informação, capacitação de gestores e implantação de

sistemas de monitoramento e avaliação (Rocha, 2005, p. 14).

Uma vez descrito, em linhas gerais, o Programa BH Cidadania, a próxima seção é destinada a

examinar alguns de seus aspectos com um pouco mais de profundidade.

6.1.2 - Considerações sobre a experiência

Serão considerados, sobre o BH Cidadania, três pontos202: o primeiro articulado ao tema do

empoderamento ou fortalecimento da capacidade de resposta dos indivíduos, grupos e famílias

e, conseqüentemente, à redução da vulnerabilidade social; o segundo relacionado ao tema da

intersetorialidade e o terceiro relativo à questão do território e infra-estrutura social.

a) Autonomia, capacidades, empoderamento

Como visto anteriormente, os processos de empoderamento, de fortalecimento da autonomia e

das capacidades é um dos antídotos da pobreza crônica e da vulnerabilidade e, remetendo

tanto ao plano dos indivíduos quanto ao plano da estrutura, constitui um elemento central nas

intervenções voltadas para a inclusão social. Um primeiro ponto a salientar aqui é a fragilidade

com que a questão do empoderamento ou da ampliação das capacidades é tratada no

Programa. Embora essa questão seja implícita – na medida em que o Programa estabelece

como objetivos específicos “reduzir fatores de risco e vulnerabilidade social das famílias e

promover relações de solidariedade entre os membros da comunidade” – não fica claro quais

seriam os componentes necessários para alcançar esses objetivos. O Programa não apresenta

de forma explícita o marco conceitual da intervenção, os supostos de inclusão que poderiam

pautar o desenho dos componentes e a definição mais precisa de metas de resultados.

O que é necessário fazer para reduzir vulnerabilidade das famílias e aumentar solidariedade

comunitária? Os componentes do BH Cidadania (produtos e serviços que o programa entrega)

não são construídos a partir de uma identificação explícita dos riscos, sendo os mesmos

programas para todas as áreas, o que limita o desenvolvimento de ações diferenciadas e mais

específicas para áreas específicas ou para grupos de uma mesma área que se encontram em 202 Evidentemente esses pontos não cobrem toda a gama de questões passíveis de serem analisadas. Sobretudo, todas aquelas relativas à avaliação de resultados e impactos não são aqui consideradas. Como afirmado desde o início, trata-se aqui de um estudo exploratório e concentrado no exame do marco conceitual e substantivo do Programa, visto como exemplo de iniciativas empíricas que colocam em movimento categorias e concepções de natureza teórica trabalhadas nos capítulos anteriores.

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situações distintas de vulnerabilidade. Por exemplo, uma área que apresente um problema

grave de violência e tráfico de drogas não encontra, nos componentes do Programa, uma ação

específica orientada para equacioná-lo. Questões que podem ser gerais para a população em

condição de pobreza crônica, mas que se apresentam de forma mais intensa em determinadas

regiões (gravidez na adolescência, uso de drogas, trabalho infantil, homicídio de jovens), não

encontram respostas diferenciadas quanto aos programas ou serviços disponíveis.

Os componentes do programa, com exceção dos que se referem à área de assistência social,

são iniciativas e programas que já existiam em sua maioria, condição que pode fragilizar a

construção de uma política consistente, capaz de guiar a intervenção e a definição mais precisa

de componentes e ações. Para viabilizar respostas adequadas, a perspectiva dos riscos e ativos

é central. Uma condição para viabilizar a construção de matrizes de riscos é a elaboração de

diagnósticos locais, qualitativos e participativos, de forma a capturar especificidades, seja das

vulnerabilidades ou das potencialidades locais. O desenvolvimento de instrumentos de gestão

mais adequados para captar problemas e embasar as intervenções é essencial. O uso de um

instrumental como o enfoque do marco lógico - com suas ferramentas de análise de cenários,

análise de interessados, de desenho de programas e projetos, dentre outras – pode ser uma

escolha adequada, ao permitir, sobretudo, a implementação de uma gestão afinada e conduzida

pelo compromisso com a efetiva mudança das condições de vida da população atendida pelos

programas, bens e serviços sociais203.

A ausência de identificação explícita dos tipos de riscos e dos ativos limita de partida o

desenvolvimento de estratégias mais efetivas de ampliação das capacidades e oportunidades,

enfraquecendo as possibilidades de empoderamento das pessoas e do fortalecimento da infra-

estrutura social.

Similarmente ao objetivo de redução da vulnerabilidade, que permanece vago ao não

incorporar uma definição mais clara dos riscos e dos elementos para enfrentá-los, o objetivo

de fortalecimento da solidariedade nas comunidades também é ambíguo, pois não há clareza

sobre quais seriam as respostas para indagações do tipo: como esse objetivo pode ser

alcançado? Que componentes do Programa são orientados para sua produção? A análise dos 203 O exemplo da matriz do manejo social de risco, utilizada inclusive para o Programa Puente e Sistema Chile Solidário, pode ser uma ferramenta, utilizada como uma bússola para orientar linhas de ação para objetivos e metas especificas, quantificáveis, mensuráveis, identificando grupos, fatores de risco e fatores protetores, programas, indicadores de resultados e instituindo processos mais sistemáticos de monitoramento e avaliação e foco efetivo nos resultados da intervenção.

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documentos não possibilita estabelecer o nível de consistência desejável entre os objetivos

pretendidos e o que o BH Cidadania entrega em termos de programas, serviços e bens. Esse

fato pode ser explicado ao se considerar que as ações do Programa não partiram dos

problemas identificados e sim da oferta disponível de bens e serviços das diversas secretarias.

Mas o BH Cidadania possui, pelo menos em seu desenho, de instrumentos que poderiam

reverter essa situação: o grupo de referência e do Plano de Ação Local. Tanto o grupo de

referência quanto o Plano seriam os mecanismos de incorporação da perspectiva das famílias e

das comunidades, o que possibilitaria, pelo menos em tese, que as ações tivessem maior

aderência às necessidades dos interessados, a partir da identificação de situações específicas e

do desenho de alternativas flexíveis de respostas.

Além dos grupos de referência e do Plano de Ação Local tem-se, no desenho do BH

Cidadania, os NAFs (Núcleos de Apoio à Família), que podem ser os elementos centrais em

uma estratégia voltada para o desenvolvimento da autonomia e para a expansão de

capacidades pessoais e comunitárias. Como equipamento de referência do Programa, o NAF

pretende atuar como agente catalisador da articulação da rede de serviços governamentais e

não governamentais, de forma a responder aos problemas identificados no território.

Entretanto, embora o NAF seja necessário como estratégia de inclusão, principalmente quanto

à dimensão da sociabilidade, sua atuação depende e demanda uma rede de serviço de

qualidade, adequada e efetivamente acessível, capaz de responder flexivelmente às demandas

dos grupos em situação de vulnerabilidade.

Se por um lado o NAF desempenha, no desenho da estratégia, um importante papel de

articulação e coordenação, este não é acompanhado, por outro lado, de capacidade de

enforcement, no sentido de que não é dado a ele poder ou condições para fazer a rede

funcionar ou para fazê-la funcionar priorizando o público atendido pelo NAF. Para que o NAF

consiga de fato apresentar resolutividade quanto às demandas específicas de vulnerabilidade

das famílias, ele necessita da adesão das diversas secretarias e órgãos governamentais e não

governamentais. Essa adesão não é automática, nem está de antemão garantida, demandando

uma negociação permanente e calcada, sobretudo, nas relações pessoais e, portanto, informais

(PBH, 2004). A ausência de uma rede de apoio ao trabalho dos NAFs constitui, segundo os

técnicos envolvidos, um importante elemento desestabilizador das ações desenvolvidas. Nas

palavras dos técnicos, “os NAFs não dispõem de boa retaguarda” (PBH, 2004, p. 38) e sem

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isso sua atuação permanece limitada e inadequada para responder às necessidades e problemas

identificados. Conforme um exemplo que consta no questionário204 respondido pela

coordenação do Programa, existem casos nos quais o NAF não consegue fazer com que os

encaminhamentos feitos à rede de serviços, mesmo se tratando da rede governamental, sejam

de fato acolhidos e processados205. A atuação da rede é contingente das características do

contexto, do entorno, limitada por variáveis políticas, partidárias, econômicas, sociais,

culturais. As regionais apresentam uma grande heterogeneidade quanto à capacidade técnica e

legitimidade política dos gerentes regionais e também quanto à extensão e qualidade da rede

de serviços disponível, o que limita o desempenho do Programa, que apresenta resultados

melhores ou piores, dependendo do envolvimento e estabilidade das equipes locais, da

capacidade denegociação, da adesão da comunidade local.

Os NAFs são equipamentos da Assistência Social, implementados a partir da re-organização

dos serviços de assistência. O NAF representa a dimensão da socialidade, sendo o locus da

assistência no BH Cidadania. Eles foram implantados simultaneamente ao BH Cidadania e,

por isso, ficaram com ele identificados.

O NAF é central na estratégia do Programa, mas existe uma ambiguidade quanto ao seu papel

ou suas funções no âmbito do BH Cidadania. Como um equipamento no âmbito da assistência

e coordenado,em sua origem, pela então Secretaria Municipal de Assistência Social, sua

função principal é a de prevenção, mas sua atuação, na prática, extrapola essa dimensão. A

“multifuncionalidade” (PBH, 2004) do NAF o leva a desempenhar papéis de natureza distinta:

o NAF responde a demandas de caráter sócio-educativo e de atendimento e orientação familiar

(equipamento de ação na ponta), mas ao mesmo tempo pretende atuar como instrumento de

articulação da rede de serviços e da mobilização comunitária no território, sendo essa uma

possibilidade a ser ainda viabilizada de forma mais plena e que, de certa forma, é uma função

a ser desempenhada pela coordenação do BH Cidadania. Conforme explicitado pelo

coordenador do Programa, “há conflitos entre a temática (Secretaria Municipal Adjunta de

Assistência Social/SMAAS), o NAF e a Secretaria Municipal de Políticas Sociais (SMPS)

204 Trata-se de um questionário que foi aplicado para todas as cidades e programas participantes da Rede Urbal, no âmbito do projeto Urbal, conforme explicado em nota anterior. 205 Nesse exemplo apresentado, que não constitui de forma alguma um caso isolado, tem-se o encaminhamento de um jovem atendido pelo NAF para serviços de saúde mental, encaminhamento que não foi acolhdio pelo órgão responsável e que gerou a perda de contato com o usuário sem a finalização do atendimento. Esse é um exemplo dos tipos de questões que estão sendo aqui consideradas como limitações para a atuação efetiva dos NAFs.

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sobre a função do equipamento”206. A indefinição da natureza e, portanto, do papel,

atribuições e linhas de ação dos NAFs permanece ainda como um ponto de tensão entre as

secretarias responsáveis pela gestão dos NAFs (SMAAS e SMPS). Portanto, além de uma

indefinição quanto ao papel substantivo do NAF, tem-se uma certa indefinição de natureza

institucional. A criação dos Centros do BH Cidadania – o equipamento específico do

Programa a ser implantado a partir da expansão do Programa que se inicia em 2006 - vai

exigir uma readequação do papel dos NAFs no âmbito do Programa, uma vez que os centros

pretendem ser o equipamento de referência, papel hoje desempenhado pelos NAFs.

Os elementos que inspiram o NAF são consistentes com as categorias apontadas anteriormente

como centrais para uma compreensão mais clara da pobreza e das respostas em termos de

políticas públicas e de proteção social. O NAF é um equipamento de base local que, em tese,

atende demandas de baixa complexidade e grande cobertura. Mas suas ações extrapolam a

perspectiva preventiva. Dentre as ações desenvolvidas nesse equipamento tem-se: cadastro das

famílias da área de abrangência (que pode ser feito na sede do NAF ou a partir de visitas

domiciliares); visitas domiciliares e “busca ativa”, motivadas por indícios de violação de

direitos ou situação de especial vulnerabilidade; atendimento psico-social, marcado por escuta

personalizada na qual se identifica o histórico familiar, as situações de riscos e os

procedimentos a serem desenvolvidos junto às famílias, que podem se desdobrar em

orientação, encaminhamento para serviços sociais e oficinas inserção das famílias nas

atividades coletivas no eixo da socialidade (PBH,2004).

Uma análise feita por Sant´Ana (2004) permite identificar de forma mais concreta como se

processam as ações desenvolvidas pelos NAFs. Na avaliação de dois NAFS, Barreiro e Norte,

tem-se, segundo dados de 2003, que o primeiro atendia a 713 famílias e o segundo a 671

famílias (Sant´Ana, 2004, p. 44). Nas duas áreas onde se localizam os NAFs, não há espaços

de lazer, cultura, praças ou parques, o que revela uma grande precariedade em termos de infra-

estrutura social formal (Sant´Ana, 2004, p. 47). Enquanto que na área do NAF Norte existem

onze entidades não-governamentais que desenvolvem atividades diversas junto às famílias, no

Barreiro as atividades sócio-familiares só são desenvolvidas pelo NAF, tornando-o o único

equipamento voltado para esse atendimento.

206 Conforme consta no questionário respondido no âmbito do Projeto Urbal.

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As atividades coletivas desenvolvidas no NAF Norte mobilizaram cerca de 356 moradores do

território, em atividades voltadas para juventude, reuniões de articulação comunitária, oficinas

de bijuteria e fuxico, atividades culturais, encontros de confraternização, palestras, num total

de 124 atividades coletivas no ano de 2003. No Barreiro, foram 121 atividades coletivas, com

participação de cerca de 740 pessoas. É interessante notar que no Barreiro as reuniões

identificadas como de articulação com a comunidade e rede totalizaram 33, enquanto que

foram identificadas apenas quatro atividades sob essa denominação no NAF Norte, no mesmo

ano. No Barreiro, 56 atividades foram de socialização, enquanto que no NAF Norte não se tem

nenhum registro de atividade de socialização. Isso pode se dever a uma diferenciação na forma

de registro das atividades, o que em si já é um problema207; mas também pode espelhar uma

necessidade maior desse tipo de atividade no Barreiro, onde as entidades que desenvolvem

atividades de apoio sócio familiar são mais escassas. No Barreiro, o chá das mulheres iniciou-

se com a participação de 22 mulheres e chegou a ter mais de 60, instituindo um espaço para

conversas e discussão de temas relacionados ao cotidiano e a vida da casa, da comunidade

(Sant´ana, 2004, pp. 43-55). Espaços improvisados, inadequados para o atendimento e

recursos precários não impedem que as atividades aconteçam e que apresentem resultados, e

esses incluem mudanças de comportamento, fortalecimento dos laços de vizinhança,

estreitamento dos laços sociais, maior disposição e capacidade para ação, inclusive para

procurar pelos serviços e pelos direitos.

Esse ponto não é banal, pois o eixo de socialidade pode cumprir um papel central na inclusão

social de grupos vulneráveis. Considerando as categorias de infra-estrutura social e toda a

discussão sobre a dimensão psico-social e sobre o aspecto relacional da pobreza, fica evidente

a centralidade desse conjunto de estratégias desenvolvidas pelos NAFs para uma trajetória de

inserção social. Entretanto, o NAF, para atuar nessa ponta, no âmbito da interação e da

promoção de relações sociais mais “virtuosas” 208necessita de retaguarda na outra, no campo

dos bens e serviços produzidos pelo setor público. A imagem aqui é a das duas rodas

interdependentes, que agregam dimensões materiais e não materiais da pobreza, que sinalizam

a centralidade dos fatores endógenos e exógenos às pessoas como centrais em uma estratégia

207 Em uma análise a partir de um número maior de NAFs (PBH, 2004), tem-se a afirmação de que não existe uma compreensão que permita o preenchimento dos relatórios de atividades de forma padronizada.. 208 Com esse termo nos referimos a relações familiares e comunitárias mais positivas, centradas no respeito, tolerância, direitos, cooperação etc.

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de enfrentamento da pobreza, segundo Raczynski (2002), conforme apontado no capítulo

anterior.

A linha de ação dos NAFs junto às famílias é importante para “reforçar a dinâmica

intrafamiliar”. Como visto nos capítulos anteriores, as relações familiares constituem um

importante ativo que pode ser fortalecido e funcionar como um elemento atenuante ou inibidor

de situações de risco e vulnerabilidade. Entretanto, parece não existir ainda uma concepção

suficientemente clara do que consiste esse objetivo e de como ele pode ser operacionalizado

(PBH, 2004). A falta de uma metodologia consistente e compartilhada tem sido reconhecida

como uma fragilidade e as equipes estão procurando desenvolver uma metodologia de

atendimento de famílias209.

A escassez de recursos humanos é um elemento que limita a atuação dos NAFs. São nove

técnicos em cada NAF, sendo um coordenador, dois técnicos que fazem acompanhamento às

famílias, cinco técnicos que atuam no apoio logístico e um estagiário210. Os poucos técnicos

dos NAFs fazem visitas às famílias, promovem atividades coletivas, elaboram planos de

intervenção, acionam a rede de serviços. Frente ao acúmulo de tarefas, o acompanhamento

direto das famílias, centro de uma estratégia de empoderamento, pode ficar fragilizado. As

relações que os técnicos estabelecem com os usuários são marcadas por uma intensa interação,

sendo altamente personalizada. Com a expressão “acolhida”, usada para identificar o tipo de

atendimento que se estabele entre técnicos e usuários, tem-se a tradução do que seria uma alta

interação, nos termos de Martinez Nogueira. Trata-se de um atendimento extenso no tempo,

baseado na confiança, que pressupõe a capacidade de resposta dos técnicos às demandas

objetivas e subjetivas. Para que os técnicos sejam de fato capazes de exercer esse papel e

atuarem como catalisadores das mudanças no âmbito da família e de suas relações, é

necessário que contem com formação e qualificação adequada, com supervisão sistemática,

com legitimidade e com recursos que possam ser acionados, de forma mais garantida, para

auxiliar o processo de empoderamento e de expansão das capacidades das pessoas e famílias.

Fica difícil, entretanto, afirmar como as ações do NAF produzem efeitos quanto ao

empoderamento das pessoas, fortalecendo a capacidade dos pobres em interferir e influenciar

naquilo que lhes diz respeito (em uma visão matizada pela dimensão do empoderamento como 209 Esse trabalho tem sido realizado pelos técnicos da Secretaria de Assistência Social e conta com a consultoria de uma professora da área de psicologia social da UFMG. 210 Informação retirada do questionário desenvolvido no âmbito do projeto Urbal.

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possibilidade de ser e de fazer) ou em ampliar a sua capacidade de resposta frente aos eventos

de riscos (em uma visão do ponto de vista da abordagem da vulnerabilidade e dos ativos).

Quando essas ações de empoderamento não são acompanhadas por outras intervenções mais

diretamente vinculadas ao fortalecimento de ativos como trabalho e qualificação profissional,

as possibilidades de inclusão efetiva ficam comprometidas. No BH Cidadania, o componente

relacionado à inclusão produtiva é muito limitado. Entretanto, as ações de geração de trabalho

e renda estão entre as mais complexas dentre o conjunto das políticas públicas, uma vez que

essas ações estão imbricadas de forma muito mais densa com processos no âmbito do mercado

que, pautando-se sobretudo pelo lucro, não incorporam de forma central a perspectiva da

equidade, própria da ação do Estado. Entretanto, pode-se afirmar, com base em avaliações

realizadas (Somarriba, 2004), que bons resultados podem ser produzidos a partir de ações de

informação e sensibilização do empresariado local, visando uma participação desses no eixo

da inclusão produtiva, como foi o caso do NAF da regional Nordeste, por exemplo.

Entretanto, embora possam ser identificados alguns resultados da atuação dos NAFs, não há

registros sistemáticos e confiáveis dos avanços feitos. A falta de parâmetros de

acompanhamento e de metas de resultados mais objetivas e compartilhadas parece ser um

elemento que contribui para a fragilidade do trabalho desenvolvido pelos NAFs, como de resto

acontece em quase todas as ações de proteção social no município. Essa ausência impõe

limites para uma clareza suficiente quanto ao que se quer com a intervenção ou quanto aos

resultados esperados para cada componente. Essa ausência ou fragilidade dificulta aferir se a

metodologia de inclusão em BH é efetiva. Como contraponto tem-se a metodologia do

Programa Puente, por exemplo, que organiza a intervenção de forma coerente desde o início, a

partir de um compromisso entre as diversas instâncias do governo de atender ao conjunto dos

53 indicadores mínimos de inclusão definidos. Sem isso, os possíveis resultados das ações

desenvolvidas pelos NAFs permanecem pouco tangíveis, pouco mensuráveis, pouco

manejáveis. Antes de tudo, não fica claro como o trabalho dos NAFs pode contribuir para o

empoderamento e aumento da autonomia das famílias, uma vez que não há clareza sobre o

objetivo e de como ele pode ser operacionalizado. Percebe-se uma certa precariedade na

construção dos fundamentos conceituais do Programa, que constituem a base para o desenho

da intervenção.

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O segundo ponto que permite focalizar o BH Cidadania em relação à dimensão de

empoderamento refere-se ao tema da participação. Embora as diretrizes do programa

priorizem a participação, ela não tem sido efetivada da forma esperada. A evasão de grande

parte dos membros dos grupos de referência ao longo do processo de elaboração do Plano

(Somarriba, 2004) e a dificuldade de se estabelecerem as comissões ou colegiados locais que

atuem de fato como canais de conexão entre população e setor público são expressões dessas

dificuldades (PBH, 2004)211. A desinformação, a desconfiança, a falta de condições para

participar são elementos explicativos para as dificuldades de implementação da participação

(Somarriba, 2004). Entretanto, a participação é condição fundamental para o empoderamento,

na medida em que processos de participação mais autênticos (que não sejam apenas residuais

ou de fraca intensidade) ampliam as possibilidades para fortalecer o protagonismo das pessoas

e grupos e sua participação ativa nos processos e trajetórias de inclusão social.

Mas é importante salientar que não basta a existência, no papel, de espaços para participação,

materializados no caso do BH Cidadania pela Comissão Local e pelo Grupo de Referência. A

abertura de espaços, ainda que indispensável, não é condição suficiente para a efetivação da

participação de forma mais igualitária. Esta exige também a qualificação dos atores

envolvidos e a democratização das informações a respeito dos problemas, ações e

financiamento das políticas sociais. A questão dos recursos controlados pelos agentes - tempo,

informação, capacidade técnica - configura-se como elemento central nessa discussão.

Sem pretender esgotar o extenso debate sobre o tema da participação, importa recuperar aqui

uma abordagem (Verba et alli, 1995) que busca explicar porque as pessoas não participam e

identifica três ordens de motivos: ou elas não querem, não podem ou porque ninguém

perguntou se elas queriam ou não participar. A questão do “não posso” tem a ver com os

recursos – tempo, dinheiro, habilidades – e a do “não quero” é relativa ao engajamento

político, à motivação para participar. “Ninguém perguntou” relaciona-se com as redes de

recrutamento. Portanto, além das duas dimensões – engajamento político ligado à motivação

para tomar parte de forma ativa na vida política e capacidade para participar, o que tem a ver

diretamente com recursos e habilidades requeridas para a participação – os autores apontam

um terceiro fator, denominado “redes de recrutamento” (networks of recruitment), que consiste

211 Apenas duas regionais conseguiram finalizar o Plano de Ação Local e mesmo assim não se tem uma avaliação de como foi o processo, o nível de participação, envolvimento ou mobilização por parte da comunidade ou do grupo de referência (PBH,2004).

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nas instituições, formais e informais, que operam dando vida ao “voluntarismo cívico” (nos

termos do autores), fornecendo “capacidades cívicas” (civic skills) e habilidades

organizacionais e comunicativas necessárias à participação política.

Nesse sentido, o foco volta-se para o exame de instituições sociais que jogam um importante

papel para cultivar a motivação para o engajamento político. Ao contrário de separar de forma

rígida a vida política e social, a perspectiva do voluntarismo cívico sustenta que a atividade

política tem lugar em uma rede de interações pessoais complexas. Instituições, como família,

igreja, associações diversas, favorecem a participação não apenas pela exposição à política e

aos temas da agenda, mas porque desenvolvem habilidades relevantes para a atividade

participativa. Essa abordagem enfatiza a dimensão da motivação individual, dos recursos e das

estruturas de oportunidade que o contexto institucional favorece, e nesse sentido fornece

alguns elementos que podem contribuir para uma análise sobre a participação no BH

Cidadania, que viabiliza espaços (e funciona dessa forma como uma rede de recrutamento),

mas não fornece recursos e nem consegue, de forma plena, vencer a desmotivação e a

desconfiança da comunidade em relação ao Programa (Somarriba, 2004), ainda que essa

afirmação não possa ser generalizada para todas as regiões.

b) Aspectos organizacionais: governança, intersetorialidade

A experiência de Belo Horizonte permite visualizar as dificuldades de se operacionalizar

diretrizes, transformar idéias em ações e resultados efetivos. No BH Cidadania a

implementação de um novo modelo de ação no campo das políticas sociais, e principalmente

nas ações de inclusão social, veio acoplada a um processo de mudanças na estrutura

administrativa do executivo municipal, deslocando, e posteriormente reacomodando nos

antigos lugares, as distintas secretarias de políticas sociais - educação, saúde e assistência

social. Alterações na estrutura administrativa sinalizam mudanças na concepção e na produção

de políticas sociais, afirmando as diretrizes da intersetorialidade e da descentralização,

entendida também a partir do enfoque territorial como orientação para a atuação

governamental.

Um ponto central no arcabouço analítico, delineado no capítulo anterior e que pode ser

considerado empiricamente a partir da experiência de Belo Horizonte, diz respeito às redes

horizontais, ao governo relacional, que pressupõe abertura para processos de gestão mais

flexíveis, capazes de responder às exigências postas pela heterogeneidade das condições de

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pobreza. De acordo com o desenho do Programa, o BH Cidadania não tem “pernas próprias” e

funciona, de certa forma, a partir das “pernas” da saúde, educação, assistência social e das

demais secretarias e órgãos governamentais e não-governamentais. Isso quer dizer que, para

alcançar seus objetivos, depende da atuação e colaboração direta de outros setores da máquina

pública. Nas palavras da coordenação do BH Cidadania,“a atuação intersetorial no Programa

visa a potencialização das atividades desenvolvidas pelas temáticas (saúde, educação,

cultura, esporte, assistência social, direitos da cidadania e abastecimento )”212.

Esse modelo ou estratégia do desenho do Programa pressupõe a adesão dos diferentes setores

e grande capacidade de coordenação do nível central para articular redes horizontais (entre

setores) e multiníveis (municipal e local ou do nível central e regional). A interação necessária

entre o executivo municipal e outros níveis de governo no BH Cidadania é reduzida. Contudo,

a articulação entre as secretarias temáticas e regionais é fundamental213.

Por depender de outras secretarias para efetivar seus objetivos, o BH Cidadania demanda uma

coordenação mais forte para articular ações e orçamentos, diluir sobreposições, ajustar prazos,

metas e processos, estabelecer procedimentos mais homogêneos de cadastros, sistemas de

informação, processos de monitoramento e avaliação mais conjuntos ou minimamente

uniformes. O desempenho do programa exige alta capacidade de coordenação horizontal das

ações, e também capacidade de implementar as decisões tomadas nas instâncias superiores de

coordenação (Câmara e GT). Esforços têm sido feitos para efetivar essa perspectiva, embora

as dificuldades para operar mudanças dessa magnitude sejam evidentes. Alguns exemplos

permitem elucidar o ponto. Um refere-se ao papel da coordenação do programa e, mais

especificamente, ao papel do Grupo de Trabalho (GT).

O Programa funcionou, em seu início, somente sob a coordenação da SCOMPS, sendo que

apenas em meados de 2003 a estratégia de gestão do BH Cidadania é revista, com a criação do

grupo de trabalho, responsável pela definição e monitoramento das ações do programa,

viabilizando o planejamento coletivo das ações desenvolvidas por cada setor e o

acompanhamento conjunto da execução do programa. Entretanto, inicialmente, de acordo com 212 Conforme resposta ao questionário desenvolvido no âmbito do Projeto Urbal. 213 As Secretarias da Coordenação de Gestão Regional, principalmente no que se refere às intervenções urbanas e sociais, ampliaram, a partir da reforma, sua atuação e sua capacidade de intervenção em cada divisão regional do município. Contudo, as áreas do BH Cidadania são manchas dentro do território sob a jurisdição de cada regional. Daí decorrem as dificuldades para convencer as equipes das regionais a priorizar as famílias das áreas piloto, em detrimento de outras famílias, em igual situação, mas que residem em outras áreas.

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informações retiradas do questionário214, o GT funcionava segundo “diretrizes pré-

estabelecidas pela coordenação central gerando, na prática, um projeto operacional

setorializado”. O que era para ser um instrumento para a intersetorialidade reproduzia a

setorialidade em si mesmo. A partir da percepção dessa distorção, houve uma reorganização

da composição e funcionamento do GT, com a inclusão de representantes das secretarias

regionais e o uso de técnicas e metodologias mais participativas.

O caso de Belo Horizonte permite verificar as dificuldades de uma estratégia de focalização

territorial que tem a tarefa de “fazer caber” políticas que são universais (como educação e

saúde) em uma orientação focalizada. A atuação da saúde no município segue orientação

universal, orienta-se por seus próprios critérios de focalização territorial e trabalha com

estruturas de gestão e procedimentos definidos, e que não se alteram de forma tão maleável em

função das diretrizes do BH Cidadania, o mesmo ocorrendo com a educação. Não se pode

sensatamente esperar que, dada a forma como os setores da educação e da saúde estão

organizados, que estes venham a incorporar, sem resistências, a necessidade de atuar para

atender a um público específico e de forma diferenciada. De forma inversa, a área de

assistência social reconhece no NAF a base de um sistema único de assistência social e

organiza sua oferta e estrutura de serviços tendo por base os princípios tanto da reforma

quanto do BH Cidadania. Pode-se dizer que a educação e a saúde parecem encontrar menos

“vantagens” em perderem sua autonomia para uma atuação intersetorial215. Para essas áreas,

que apresentam equipamentos e áreas de abrangência e organização de serviços bem mais

amplos do que os demarcados pelo Programa, os territórios e critérios do BH Cidadania não

têm sido considerados na reorientação de suas ações.

Esse é um ponto a ser destacado no exame de estratégias locais de inclusão social, que

envolvem alterações substantivas nas estruturas e arranjos institucionais e nas práticas e

rotinas organizacionais. As resistências e dificuldades para implementar ações desenvolvidas

de forma intersetorial ganham aí toda a evidência, bem como ganham centralidade as

diferentes posições e interesses dos diversos atores envolvidos na política. Dificilmente os

interesses e as posições das diferentes secretarias convergem da mesma forma e com a mesma

214 Questionário respondido pela coordenação do Programa, no âmbito do Projeto Urbal. 215 Confome aponta Filgueiras, essas duas secretarias concentram dois terços dos funcionários municipais e metade do orçamento, o que revela o esforço que seria necessário para que a SCOMPS tivesse capacidade de coordenar estruturas como essas (Filgueiras, 2005, p. 7)

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intensidade para os mesmos objetivos. Mesmo que haja convergência em relação aos fins ou

objetivos buscados, pode-se supor que ocorram divergências quanto aos meios mais

adequados para realizá-los. O esforço para quebrar resistências de setores como educação e

saúde é muito grande (PBH,2004) e mesmo em outras áreas a perspectiva da intersetorialidade

é um desafio. De acordo com um outro exemplo fornecido pelo coordenador do Programa,

mesmo a área de cultura (supostamente mais aberta à perspectiva da intersetorialidade, por ser

um setor relativamente marginalizado na estrutura municipal, e que teria mais a ganhar

aliando-se a outras áreas) resistiu em incorporar a perspectiva da intersetorialidade: as

“oficinas de cultura eram planejadas setorialmente, sem contribuição de outras temáticas e,

principalmente, das regionais”.

O papel do GT, enquanto coordenação, foi importante para corrigir as distorções: após a

discussão no GT e reavaliação do conteúdo, as oficinas foram oferecidas de acordo com as

decisões do Grupo de Trabalho. A gestão da intersetorialidade tem exigido um esforço nada

desprezível de criação de consensos, instâncias de deliberação, coordenação e execução das

ações de forma compartilhada. A análise dos processos de implementação permite ver as

dificuldades para implementar na prática as mudanças necessárias (PBH,2004). A transição de

um modelo de gestão setorializado para um modelo que enfatiza a intersetorialidade não é algo

simples e envolve mudanças em vários níveis, nos âmbitos operacional, metodológico,

organizacional, institucional216. É grande o desafio para transformar idéias e diretrizes em

políticas, estruturas e processos que dêem a elas materialidade.

A intersetorialidade alcançada no caso do BH Cidadania corresponde, no momento, à

justaposição de programas, serviços e equipamentos de setores distintos das políticas sociais

em um mesmo território para atender as famílias aí residentes.

O BH Cidadania adota uma modelagem que encontra inspiração nos modelos emergentes de

gestão, conforme visto anteriormente. Articula-se, pelo menos normativamente, com a idéia de

modelos de gestão flexíveis, de politização da gestão e do papel dos governos locais, de

adoção de ferramentas de gestão da intersetorialidade e transversalidade. A perspectiva de

atuação integrada, conforme denominação do próprio programa, potencializa o foco nos

216 Por âmbito operacional, estamos nos referindo as rotinas de trabalho e atividades desenvolvidas; metodológico refere-se a um nível mais conceitual, que remete à concepção do trabalho e à formulação teórica que sustenta a intervenção; organizacional é relativo aos arranjos entre os diversos setores e aspectos da organização e institucional refere-se ao âmbito das relações entre instituições e níveis de governo.

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resultados pretendidos. Uma ação integrada envolve um conjunto mais amplo de atores, o que

exige capacidade de coordenação e autoridade institucional, para articular atores diversos e

alterar a maneira dos programas sociais atuarem. Essa é a aposta e o grande desafio do

Programa. Nos termos de uma hipótese de trabalho sugerida no capítulo anterior, o desenho do

BH Cidadania o coloca como uma iniciativa de alta densidade intersetorial, ao pressupor o

envolvimento de diversos setores desde a formulação até a execução das ações, e alterações

nos processos, estruturas e metodologias de ação.

No momento de sua expansão, o Programa conta com algumas das condições necessárias para

a implementação da gestão intersetorial, como as instâncias de coordenação e execução que

contam com a participação dos diversos setores e níveis de decisão. Além disso, existe um

processo de liderança e de construção de autoridade no campo social, a partir da atuação da

SMPS e também, e principalmente, do Grupo de Trabalho, que tem funcionado efetivamente

como um espaço de construção e condução coletiva do Programa BH Cidadania. Conforme

aponta Filgueiras, um esforço considerável tem sido feito pelo Programa para consolidar uma

“autoridade social municipal”, para viabilizar uma coordenação maior das ações no campo

social e urbano (Filgueiras, 2005, p. 6). Como visto no capítulo anterior, o agente catalisador

desempenha um papel central na promoção da intersetorialidade, e demanda autoridade e

legitimidade para exercê-lo, com capacidade para convocar e garantir a participação dos

diversos setores e atores pertinentes (Raczynski, 2005). O esforço de consolidação das

instâncias de decisão colegiadas sinaliza essa preocupação no âmbito do Programa.

Mas embora necessária, essa condição pode não ser suficiente. Além de legitimidade e

pactuação no nível das diretrizes e princípios, a efetivação da intersetorialidade pressupõe, em

algum nível, uma mudança nos processos e nos instrumentos de gestão que permitam a ação

transversal do BH Cidadania. Uma condição para que tais alterações se processem consiste em

criar os pontos concretos de conexão entre as áreas, estabelecer, de fato na prática, os fluxos e

rotinas, desenhar e implementar instrumentos e ferramentas de gestão compartilhada. A

reestruturação administrativa, legal ou formal, não foi suficiente para alterar padrões, fluxos e

conteúdos das ações desenvolvidas. Além da via da reorganização administrativa, levada a

cabo em Belo Horizonte em dois momentos, tem-se ainda o uso de algumas estratégias e

mecanismos integradores, dentre os quais se situam a gestão em rede, o foco no território e na

família ou ainda nos problemas, canalizadores de uma abordagem intersetorial da ação

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pública. O orçamento pode ser também um poderoso instrumento e atuar como mecanismo

integrador ou produtor de intersetorialidade, ou como um verdadeiro empecilho para a gestão

integrada das políticas, caso permaneça setorializado (Raczynski, 2005). Também a utilização

de estratégias de planejamento coletivo e de forma participativa, buscando o estabelecimento

de visões compartilhadas; bem como as direções colegiadas (como é o caso do GT) são

formas de se criar a viabilidade política e técnica da intersetorialidade (Raczynski, 2005). Esse

parece ser um elemento enfatizado na concepção do Programa que, segundo informações da

coordenação217, caracterizaria a dimensão intersetorial do Programa: “o modelo de gestão e os

fóruns de discussão instituídos”.

Os sistemas de informação, tal como o orçamento, podem atuar ou como potencializadores ou

como inibidores da intersetorialidade. Um ponto central ao se falar de gestão e,

principalmente, de gestão compartilhada, refere-se, portanto, ao tema da informação. Sem

sistemas e procedimentos de coleta, sistematização e uso das informações, não é possível

efetivar uma gestão por resultados. A definição conjunta de objetivos e metas de resultados e

sua materialização em ferramentas de planejamento como o marco lógico, por exemplo,

poderia contribuir para uma gestão mais integrada das políticas. E, de forma inversa, sistemas

de informação setorializados que não interagem entre si podem atuar como um mecanismo

inibidor da intersetorialidade218.

Embora a temática específica dos sistemas de informação e do planejamento orientado para

objetivos não seja o foco aqui, é importante apenas ressaltar sua pertinência e utilidade para a

construção do marco conceitual do Programa. No caso do BH Cidadania, essa questão

encontra-se ainda muito pouco desenvolvida, sendo mesmo quase inexistente o uso de

217 Retiradas do questionário elaborado para o Projeto Urbal. 218 São frágeis os mecanismos de monitoramento e avaliação do Programa. Informações retiradas do questionário apontam que os dados são coletados a partir de fichas setoriais, definidas de acordo com a oferta de cada serviço, e que são utilizadas de forma pontual e assistemática pela coordenação do Programa. Não existem, no âmbito do Programa, indicadores de efeitos e impactos que sejam conhecidos e utilizados como guias para a ação, estando a ênfase na quantificação de produtos (número de oficinas realizadas, famílias atendidas, crianças atendidas, pessoas encaminhadas etc.) sem ter definido de forma clara as metas de resultados. No BH Cidadania existe um monitoramento e acompanhamento das ações através das reuniões periódicas do GT, reuniões da comissão local e encontros com as regionais, mas sem a existência de um plano formal de monitoramento e avaliação, sem metas de produtos e resultados, prazos e atividades especificados, sem indicadores e fontes de verificação definidas. Houve uma inicativa, realizada no âmbito da cooperação PBH/FJP/BNDES, sob a coordenação da então Secretaria Municipal de Assistência Social (SMAS) , em 2003 e 2004, de construção do marco lógico e de um Plano de Monitoramento e Avaliação dos programas descentralizados da SMAS: Serviço de Orientação Sócio Familiar (SOSF), Plantão e NAF.

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ferramentas mais orientadas para resultados e a efetiva incorporação do enfoque avaliativo no

âmbito do Programa. Os sistemas de informação cumprem um papel central, como destacado

na literatura (Raczynski, 2005; Filgueiras, 2005), como instrumentos fundamentais para

agregar, de forma mais consistente, as ações dos diversos setores. Uma das formas pelas quais

setores diversos podem convergir ou atuar de forma mais integrada é a partir de objetivos

compartilhados, que podem ser conseguidos ao se manter o foco no problema (e não no setor

em si mesmo), algo que se viabiliza a partir do planejamento e do estabelecimento da

hierarquia de objetivos ou do marco conceitual da intervenção. Sem atenção a essa questão

faltam parâmetros claros para nortear a ação. Que efeitos concretos são buscados junto às

famílias? Que modificações são necessárias em cada uma para configurar uma condição de

inclusão? Para que o NAF possa atuar como um agente empoderador, é preciso contar com

uma rede para receber e encaminhar demandas, e uma metodologia mais diretiva para

trabalhar com as famílias, que seja sistematizada, acompanhada, avaliada, que busque

resultados mensuráveis (o que não quer dizer necessariamente “quantificáveis”) sobre o que se

quer alcançar com o programa em cada uma de suas dimensões. Não se tem clareza das metas

de cobertura do programa e nem dos resultados que se pretende alcançar; sabe-se que algum

impacto as ações terão na vida das pessoas e famílias do lugar, mas pode ser pouco saber

apenas isso. Não estabelecer essas metas de resultados, que possam inclusive ser

compartilhadas entre os setores, dificulta a coordenação das ações e sua execução conjunta.

A perspectiva de monitorar e avaliar ultrapassa a necessidade, também legítima e necessária,

de prestar contas sobre a ação pública realizada, mas é um imperativo de uma ação mais

efetiva e eficiente no campo da gestão social. Embora esteja sendo feito um esforço no

Programa, com a formulação de uma matriz de indicadores de produtos e resultados, essa não

se incorporou como guia para a ação ou para a construção de instrumentos articulados de

monitoramento, não tendo sido superada a sistematização setorial das informações. Permanece

ainda a ausência de um sistema que permita ter a visão do Programa em seu conjunto,

conforme informações coletadas junto à coordenação do BH Cidadania. A institucionalização

de processos coletivos de monitoramento contribui para ajustar os programas às necessidades

da população-alvo, permitindo que o foco se mantenha no problema e nos resultados a serem

obtidos com a intervenção.

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Um outro ponto a ser salientado refere-se à ausência de um marco legal que busque aumentar

as chances para a continuidade do Programa para além de ciclos de governo ou das alterações

periódicas no executivo municipal. Embora não garanta, a existência de uma legislação sobre

o BH Cidadania poderia indicar uma preocupação mais central com a sustentabilidade das

ações219 e um compromisso mais estruturado segundo a concepção de direitos sociais.

c) Território: unidade de focalização ou de intervenção?

O reconhecimento da heterogeneidade da pobreza, da diversidade de causas, fatores de

manutenção e formas de superação dessa condição apontam para uma maior centralidade do

tema do território, reconhecido como elemento central para a compreensão mais adequada da

produção e reprodução da pobreza. Trata-se do território como perspectiva que dirige o olhar

para as condições da infra-estrutura urbana e de bens e serviços em diversos “pedaços” da

cidade e também considera a dimensão das relações sociais que configuram o tipo de

organização social existente. A concepção que permite agregar essas duas dimensões é a da

infra-estrutura social, como visto no capítulo anterior. Uma atuação orientada para o

território passa a ser, ao se considerar a pertinência dessa noção, uma estratégia necessária

para a promoção da inclusão social. A gestão ativa dos territórios nas políticas emerge, a partir

da análise da literatura, como condição necessária em uma estratégia efetiva de enfrentamento

e superação da pobreza. Essa gestão ativa do território relaciona-se, entre outras coisas, com

maior adequação entre a oferta de serviços e as demandas e necessidades existentes, na

perspectiva de fortalecimento da infra-estrutura social. O problema se coloca aqui, portanto,

no âmbito da gestão, no qual a dimensão do território ganha centralidade como critério de

focalização e/ou como unidade de intervenção.

O território, segundo a literatura examinada, passa a ser um elemento central tanto para

explicar tanto a pobreza (o componente espacial da pobreza) quanto a sua reprodução. As

condições de habitação, saneamento, provisão de bens e serviços públicos são importantes

para estabelecer os patamares de inclusão social. Embora necessárias, não são, contudo,

suficientes. A eficácia da ação dos serviços públicos nestes territórios – reduzir

vulnerabilidades de famílias e pessoas – dependerá não só de disponibilizar serviços, mas

também da capacidade de uma atuação conjunta do setor público, ONGs e comunidade, para 219 Esse elemento contrasta fortemente com a iniciativa de São Paulo, que priorizou, de forma clara, a estratégia de formalização legal dos programas desenvolvidos, o que, contudo, não os protegeu das mudanças realizadas na transição para outra gestão municipal.

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resolver os problemas enfrentados pelas famílias e pessoas que vivem nos territórios, o que

remete, novamente, ao tema da governança e da capacidade de criação e fortalecimento de

redes em múltiplos níveis.

A experiência do BH Cidadania aponta para um esforço de construção de redes de serviços e

para uma estrutura intersetorial no planejamento e gestão das ações, tendo como base os

territórios de alta vulnerabilidade e exclusão. Ao considerar a natureza multidimensional da

pobreza e adotar o foco da territorialidade, o BH Cidadania identifica áreas do município nas

quais se concentrariam famílias e pessoas com maior nível de exposição a riscos e com menos

capacidades para fazer frente a eles.

No programa BH Cidadania a dimensão do território é estruturante. A perspectiva da

construção e fortalecimento das redes locais, através da articulação de equipamentos,

programas e serviços constitui nesse programa o centro da estratégia, conforme sugere o

documento do Programa: “pode-se dizer que a inclusão social se desenha espacialmente,

sendo necessário localizar a vulnerabilidade no município e organizar a atuação a partir do

território, promovendo o acesso à oferta local e não-local de serviços, de modo a maximizar a

eficácia das ações” (Documento do Programa, 2003, p. 6). Existe ainda o reconhecimento de

que o princípio da territorialidade está relacionado diretamente à questão da diversidade, o que

implica que “a forma de intervenção em uma região pode ser bastante diferente da

intervenção em outra região, dependendo das necessidades de cada uma delas” (Documento

do Programa, 2003, p. 7).

Entretanto, embora seja afirmada a diversidade das formas de atuação a partir da

heterogeneidade dos territórios, não fica evidente como o território se constitui, de fato, como

unidade de intervenção. O território no BH Cidadania é um critério de focalização, sendo que

o Programa tem dois recortes básicos que orientam a identificação do público alvo da ação

governamental: os territórios e as famílias que neles habitam. De forma semelhante ao que

ocorre no campo da metodologia de trabalho do NAF - que carece de uma teoria em uso (ou

de um marco conceitual) mais consistente para orientar de forma mais precisa componentes e

resultados -, parece não haver, no caso do território, objetivos traduzidos em formas de

atuação que permitam transformar o território. Que tipo de mudança é esperado e por que

meios ela irá se processar? Como definir o que se espera e como avaliar se o projetado foi

alcançado? Sem definições básicas sobre esses pontos, a intervenção fica fraca, com menos

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possibilidades para surtir efeitos, uma vez que não se tem um modelo mais claro do que deve

ser feito220. Existe uma preocupação de disponibilizar serviços e equipamentos para melhorar

os padrões de convivência comunitária e como suporte para as famílias, como demonstram as

ações voltadas para a criação de áreas de recreação e lazer e para a constituição dos NAFs, no

eixo socialidade, mas não existe no Programa um conjunto de ações explícitas e

consistentemente articuladas voltadas para a melhoria das condições dos territórios, nem metas

que levem em conta a melhoria da infra-estrutura social, em sua concepção mais ampla,

entendida como infra-estrutura material e organização social.

Um dos objetivos específicos do Programa refere-se à ampliação da oferta e acesso aos

serviços e instalações mantidos ou gerenciados pela administração pública e também ao

fortalecimento das dinâmicas comunitárias que demandam espaços de convivência

comunitária e criação de uma rede de serviços. Entretanto, os esforços ainda parecem ser

insuficientes para atender a demanda e, antes de mais nada, não se tem, de forma clara, o que

precisa ser implantado ou viabilizado em cada uma das áreas do BH Cidadania para responder

aos problemas existentes. Certamente a expansão do Programa, com a incorporação do eixo

urbano no conjunto das ações do BH Cidadania, tem a possibilidade de permitir uma atuação

mais consistente no âmbito da melhoria urbana e territorial.

A perspectiva de infra-estrutura social supõe, como visto anteriormente, o plano da infra-

estrutura material - entendida em um aspecto ampliado, envolvendo não apenas os aspectos

físicos do território, mas também a rede de serviços e programas existentes – e também os

aspectos menos tangíveis da organização social, que se refere, sobretudo, às redes sociais

informais de controle e normas, ingrediente necessário para uma infra-estrutura social

potencializadora dos processos de inclusão social. O BH Cidadania, caso reconheça o

220 O tema mais geral no qual essa discussão se situa refere-se à complexidade dos problemas sociais, dada a multiplicidade de causas que interagem para a produção dos fenômenos e as dificuldades maiores para isolar causas ou estabelecer relações de causalidade. Se por um lado tem-se uma complexidade inerente ao próprio objeto da intervenção, por outro tem-se bases teóricas frágeis para sustentar as estratégias de ação. Isso quer dizer que, geralmente nos programas sociais, não se tem um conhecimento adequado do problema, o que impossibilita a formulação segura de alternativas para seu enfrentamento. Programas sociais utilizam tecnologias com alto grau de incerteza, ou “tecnologias brandas”, tal como sugere Sulbrandt (1994, pp. 382 e 383). Não se tem, além dessa precariedade teórica ou por isso mesmo, um conjunto de estudos sobre programas e experiências no campo social, de forma a gerar um conhecimento maior dos processos e mecanismos que interferem para produzir alterações nos públicos-alvo e alcançar os objetivos pretendidos das intervenções. Saber o que funciona e como, por quais mecanismos, constitui uma necessidade urgente para se criar tecnologias mais duras e institucionalidades adequadas para enfrentar os desafios da pobreza e exclusão.

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território como unidade de intervenção, necessariamente terá que enfrentar a superação da

pobreza a partir dessas categorias e dimensões, simultaneamente material e não material,

urbano e social, de empoderamento individual, familiar e comunitário.

A atenção ao território como unidade de intervenção (e não apenas como estratégia de

focalização) implica ações em rede, estratégias de participação e de atuação simultânea no

plano da infra-estrutura formal (bens, equipamentos, serviços) e no plano da organização

social. Uma visão mais estratégica de enfrentamento da pobreza articula-se, como se buscou

deixar claro nos capítulos anteriores, a uma ação de redes multiníveis, com o envolvimento de

diversos níveis de governo em estratégias diferenciadas de enfrentamento e prevenção, e

também de redes horizontais fortes, que articulem setores governamentais, entidades da

sociedade civil e do mercado de forma mais ativa, em intervenções politizadas, estratégicas e

participativas. Esse constitui, segundo discussões anteriores, um modelo de ação típico ideal,

construído a partir da depuração dos elementos conceituais e analíticos presentes no debate

sobre políticas e gestão pública e modelos locais de bem estar social. A perspectiva da

construção e fortalecimento das redes locais, através da articulação de equipamentos,

programas e serviços é um elemento presente na estratégia do BH Cidadania, ainda que de

forma não totalmente explícita. Tampouco são estabelecidas ou operacionalizadas as

mudanças pretendidas no âmbito dos territórios. Entretanto, documentos de análise do

Programa mostram as dificuldades de articular essa rede de forma efetiva, de garantir os

fluxos e a capacidade de resposta da rede de serviços efetivamente existente nas regionais

(PBH, 2004). Novamente aqui cabe recuperar um ponto que foi anteriormente ressaltado

quanto aos NAFs. O fato de estes não disporem de “boa retaguarda”, conforme afirmado

reiteradamente pelos técnicos envolvidos com a gestão do Programa, constitui uma expressão

do tipo de questões que estão sendo aqui identificadas no que diz respeito à infra-estrutura

social.

Como na maioria dos centros urbanos no Brasil, as entidades não-governamentais que atuam

na prestação de serviços de assistência são muito heterogêneas, de caráter filantrópico,

religioso e assistencialista, caracterizam-se por níveis gerenciais e por capacidade técnica

reduzida, sustentadas por princípios, valores e diretrizes variados, o que conforma um quadro

desafiador para o estabelecimento de políticas em parceria, para estratégias de governo em

rede. Evidências da precariedade e da fragilidade da rede de serviços sociais no município

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ficam mais claras em alguns casos, como o das crianças em situação de risco e que demandam

a assistência em abrigos (FJP, 2000), por exemplo, ou ainda quanto ao atendimento de

crianças pequenas em creches. Ainda que a cobertura desse tipo de serviço seja significativa –

são 748 estabelecimentos que atendem a 18.689 crianças – existe uma demanda não atendida

de mais de 12 mil crianças (PBH/Urbal, 2004). No caso da rede de atendimento a idosos

(instituições de longa permanência), tem-se também expressa essa precariedade, seja em

termos quantitativos ou quanto à qualidade do atendimento (Paula, 2004). A precariedade da

rede de serviços é salientada de forma unânime em todas as regiões, e aparece sob as mais

diversas interpretações: em alguns casos é ressaltada a ausência de espaços para atividades de

socialização, cultura e lazer (Norte, Barreiro), em outras se ressalta o baixo número de

entidades (Pampulha), enquanto que em outras áreas a questão aparece como infra-estrutura

precária e oferta inferior à demanda (Oeste, Nordeste, Leste, Venda Nova)221. A questão da

rede de serviços, tanto governamental quanto não governamental, se constitui, dessa forma,

como o calcanhar de Aquiles do Programa. Existe ainda, por parte do governo municipal, um

“controle precário sobre a oferta de vagas nos serviços executados por ONGs”, sem controle

“da porta de entrada para as vagas existentes”, o que limita a capacidade de o executivo local

atuar de forma mais efetiva na construção de uma boa retaguarda para as famílias atendidas

pelo Programa, conforme apontado por Pinheiro e Rocha (2004, p. 110). Adiciona-se a esse

controle precário a forma como atualmente essa rede está organizada no território e tem-se a

magnitude do problema a ser ainda equacionado. A rede existente e com a qual o executivo

tem que contar para atender às necessidades da população atendida não está sempre localizada

nos territórios de maior vulnerabilidade social e onde existe a prioridade do atendimento, o

que marca a existência de uma “territorialização da demanda e não da oferta”, o que implica

que o executivo fique “refém de uma rede instalada de maneira voluntária e sem

planejamento” (Pinheiro e Rocha, 2004, p. 110).

O desafio do programa parece ser o de estruturar uma rede de serviços, potencializando a que

existe, mas ampliando e reorientando a prestação de serviços para adequá-la às necessidades

do público alvo. A construção dos centros BH Cidadania pode contribuir para o fortalecimento

da infra-estrutura formal, mas pode ser ainda insuficiente diante da demanda. Uma vez que 221 Essas informações foram coletadas a partir de um encontro de capacitação (outubro de 2005), no âmbito do Projeto Urbal, que contou com a presença de técnicos e gestores que atuam no BH Cidadania e Bolsa Família, a partir do desenvolvimento de atividades em grupos voltada para o mapeamento dos problemas principais nas regionais e a identificação da rede disponível em cada território.

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não há clareza para identificar a magnitude da demanda ou o conhecimento sistemático e

compartilhado dos elementos capazes de qualificá-la, não é possível uma ação mais

consistente que esteja voltada para o fortalecimento da infra-estrutura social. Um plano

efetivamente consistente de enfrentamento da pobreza articula o urbano e o social,

compreendendo o território, e tudo que a ele se refere, como um importante conjunto de

ativos, condições favoráveis ou fatores protetores contra pobreza crônica e altos graus de

vulnerabilidade. Boas condições de infra-estrutura, moradias adequadas, acesso a bens e

serviços públicos de qualidade constituem pisos de cidadania, níveis básicos de proteção

social que devem ser garantidos a todo custo para todos. A ausência do setor urbano e das

políticas de habitação nas estratégias do Programa compromete um esforço efetivo de inclusão

social das famílias que moram nessas áreas degradadas, segregadas e com grande

superposição de vulnerabilidades de diversos tipos. Essa dimensão não parece ganhar a

evidência necessária no desenho do BH Cidadania até o momento. Para lidar adequadamente

com essa questão, são necessários níveis mais altos de investimentos no campo das políticas

sociais e urbanas como um todo.

A expansão do Programa constitui, nesse sentido, uma aposta e uma promessa. Não basta que

o território seja considerado como critério de focalização, usado para identificar áreas de

maior exclusão social de forma a priorizar a intervenção. A gestão ativa do território, como

estratégia de inclusão, demanda a construção de planos estratégicos e integrados; e na

consecução dos objetivos de melhoria das condições de vida das populações que vivem em

territórios degradados, um papel central cabe ao Estado, como agente catalisador para

promover a participação dos diversos atores atuantes no território e viabilizar uma adequada

estrutura da rede de serviços. Essa rede de serviços, por sua vez, pode atuar como elemento

que potencializa uma organização social mais virtuosa, como identificado na literatura sobre

infra-estrutura social.

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6.2 São Paulo: os programas sociais prioritários para inclusão social222

A experiência de São Paulo é significativamente mais complexa do que a de Belo Horizonte,

seja pelo tamanho da população atendida ou pelo escopo da intervenção. Em 2000, a cidade de

São Paulo tinha uma população de mais de 10,4 milhões de pessoas. Com um total de 96

distritos, a população da cidade encontra-se concentrada em algumas áreas (mais da metade da

população em pouco mais de um quarto dos distritos), sendo que existe uma clara

concentração de famílias mais jovens na periferia da cidade, onde a oferta de equipamentos

públicos é mais precária.

Os temas do desemprego e das alterações na estrutura do trabalho foram centrais no

diagnóstico e na estratégia de intervenção utilizada. Entre 1991 a 2000, na cidade de São

Paulo, houve uma redução de 11% do total de postos de trabalho223 e elevação da taxa de

desemprego (10,8% para 16,1%), acompanhada pelo aumento do tempo de desemprego (que

passa de 13 semanas em 1989 para 48 semanas, ou um ano, em 2001). Especialistas afirmam o

surgimento de uma “nova pobreza” (composta por segmentos com maior escolaridade, menor

faixa etária, nascidos no município e brancos), que se soma à “velha pobreza” (migrantes,

negros, trabalhadores do setor informal, com baixa escolaridade)224.

222 A base de informações para a reconstituição da intervenção é constituída pelas três publicações sobre a estratégia desenvolvida em São Paulo, todas organizadas por Márcio Pochman (2002, 2003, 2004), Secretário Municipal da Secretaria de Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade, responsável tanto pela formulação quanto pela implementação do programa de inclusão que teve início no ano de 2001. O primeiro livro (2002) traz um diagnóstico da pobreza e do desemprego e apresenta o desenho da estratégia de inclusão social. O segundo livro (2003) detalha cada um dos nove programas e apresenta considerações sobre o processo de implementação. E o de 2004 apresenta alguns resultados e elementos de avaliação da experiência. O estudo conduzido por Oliveira (2004) também permite identificar alguns pontos para avaliação da estratégia. Buscamos com esse último documento checar dados e perceber um olhar externo sobre o desempenho dos programas. Entretanto, o documento é uma versão publicada da avaliação e talvez por isso, em muitos momentos, a análise fique bastante superficial, o que não permite estabelecer considerações mais robustas sobre os resultados alcançados pela estratégia de inclusão. Além dessas fontes, tem-se a tese de André Campos (2004), sobre a atuação da SDTS. 223 Esse percentual significa que se passou de 3,55 milhões para 3,16 milhões de vagas e a redução de quase 390 mil postos de trabalho na indústria, sendo que o total de emprego nesse setor passou de 29,4% para 20,8% do total de emprego formal do município, enquanto houve um crescimento no setor de serviços (de 29,7% para 38%) e comércio (de 11,3% para 15,2%) (Pochmann, 2002, p.37). 224 Para os trabalhadores com menores níveis de escolaridade (entre o fundamental completo e superior incompleto), o crescimento do desemprego foi de 58,4%, enquanto que para os trabalhadores com maior escolaridade (com ensino médio completo e superior incompleto) a elevação foi de 122,4% entre 1990 e 2000. Para os trabalhadores com escolaridade alta (ensino superior completo) o desemprego aumentou quase 80%. De acordo com a afirmação dos autores, a mudança na composição do desemprego na última década faz com que atualmente existam mais desempregados com curso superior completo do que desempregados analfabetos (Pochmann, 2002, p. 160). Isso permite aos autores afirmarem que “para cada 10 pobres no município paulistano, seis originam-se das velhas condições de reprodução da pobreza enquanto quatro já podem ser associados às novas formas de reprodução da pobreza” (Pochmann, 2002, p. 159).

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Do total de mais de 800 mil desempregados na cidade de SP em 2000, quase um terço (cerca

de 237 mil) eram jovens de 16 a 20 anos, sendo que 70% pertenciam a famílias de baixa

renda. Desses jovens desempregados, quase 50% não tinham o ensino fundamental concluído

e 41% não freqüentavam a escola (Pochmann, 2002, p. 101). O desemprego tem um impacto

profundo nas condições de vida presente e futura dos jovens, pois para muitos a possibilidade

de continuidade dos estudos está condicionada à existência de um trabalho. Sem trabalho, são

reduzidas as chances de permanência na escola, o que compromete as chances para uma

inserção mais qualificada no futuro: “para o jovem oriundo das famílias pobres o acesso à

renda por meio do trabalho é condição para manutenção de vínculos com a rede escolar”

(Pochmann, 2002, p. 105).

Se o desemprego é alto para os jovens, para os que passaram dos 40 anos também a situação é

dramática. De acordo com os dados da Pesquisa de Emprego e Desemprego da Fundação

SEADE e do DIEESE, mais de 22% dos desempregados possuem 40 anos ou mais de idade.

Mais de 60% desse universo é formado por chefes de família e 56% do total de

desempregados nessa faixa de idade não exercem qualquer outra atividade, mesmo que

eventual, de geração de renda, estando na condição de desemprego aberto. Desses

desempregados, 60% não possuem o ensino fundamental completo, sendo que 10% não

tinham passado pela escola e não sabiam ler ou escrever.

Entre 1991 e 2000 a pobreza cresceu em São Paulo, aumentou o número de chefes de família

com renda abaixo da linha de pobreza e observou-se um crescimento populacional de 22% nas

regiões mais pobres, em comparação com o decréscimo populacional nas regiões de maior

desenvolvimento, o que indica que ocorreu uma piora na qualidade de vida de um conjunto

expressivo de famílias que passaram a morar nas regiões mais carentes da cidade (Pochmann,

2003, p. 28).

Em 2002, quase 41 mil domicílios não tinham cobertura de abastecimento de água. Sendo

essas áreas principalmente áreas de ocupação recente, os sistemas de abastecimento não

conseguiram expandir a cobertura. Quase 309 mil domicílios não tinham rede geral de esgoto

em São Paulo, e quase 24 mil domicílios não eram atendidos pelo serviço de coleta de lixo,

seja feito por empresa pública ou privada (PMSP, 2004, pp. 54,55).

Esse quadro levou à constatação óbvia de que a solução da pobreza e da exclusão em um

município como São Paulo depende, fundamentalmente, de um conjunto mais amplo de ações

250

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que envolvem, necessariamente, ações de outros níveis de governo e alterações mais

profundas na dinâmica do mercado de trabalho. Observando-se as transformações no âmbito

produtivo ao longo da década de 90, a cidade de São Paulo pode ser tomada como espelho do

que acontece no nível nacional225. Para enfrentar a exclusão, não seria suficiente uma ação

isolada, focalizada ou relativa ao âmbito de uma secretaria apenas. Essa era a aposta que

motivou o desenho e a implementação da proposta.

6.2.1 – Pressupostos e diretrizes da estratégia de inclusão em São Paulo

Segundo informações de Pochmann (2002), até dezembro de 2000 não existia no executivo

municipal uma política ou um conjunto de ações articuladas e voltadas para o combate à

pobreza, à desigualdade e ao desemprego. A partir de 2001, tem início uma ampla estratégia

de inclusão, que parte de uma compreensão abrangente dos problemas da cidade e da escolha

de um eixo aglutinador das ações, centrado no desenvolvimento das capacidades e no

empoderamento, com forte ênfase nas ações voltadas para o mundo do trabalho. Para fazer

frente ao desemprego, à pobreza e às diversas formas de vulnerabilidade, foi formulada uma

estratégia abrangente, sustentada em uma “concepção articulada e integrada de emancipação

dos segmentos sociais excluídos no município de São Paulo” (Pochman, 2002, p. 159). A

concepção que orienta a intervenção parte de um enfoque multidimensional da pobreza e a

concebe como heterogênea e multidimensional e que deve ser vista sob a perspectiva dos

espaços urbanos e territórios. Dessa forma, existe um reconhecimento de que novas formas de

pobreza urbana envolvem segregação espacial. A perspectiva do território é central na

estratégia de São Paulo.

A estratégia de São Paulo introduz componentes do denominado paradigma emergente de

gestão pública, enfatizando uma estrutura de gestão descentralizada, territorializada e

intersetorial. A opção organizacional para viabilizar uma estratégia de políticas públicas ampla

o suficiente para abarcar problemas de grande magnitude (pobreza, desigualdade, desemprego)

foi a criação de uma nova secretaria – Secretaria de Desenvolvimento, Trabalho e

225 Durante a década de 90, no Brasil, ocorreu a destruição de algo em torno de 3,2 milhões de empregos com carteira assinada. Cerca de 1,5 milhão de brasileiros ingressam no mercado de trabalho anualmente e para absorver esse contingente seria necessário um crescimento da economia da ordem de mais de 5,5% ao ano, sendo que o que se verifica na última década é um crescimento inferior a 2,9 em média, por ano (Pochmann, 2002, p. 158).

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Solidariedade (SDTS)226 - com a missão de articular o conjunto do governo municipal e

organizações não governamentais em torno desse objetivo. A estratégia de inclusão foi

estruturada, inicialmente, no âmbito da Coordenação dos Programas Sociais Prioritários na

Secretaria de Finanças e Desenvolvimento Econômico, que tinha a responsabilidade de

viabilizar a infra-estrutura e os recursos para dar início à implementação dos programas,

enquanto se criava a nova secretaria. Uma justificativa para deixar esses programas a cargo de

uma secretaria meio foi a intenção de “proteger” suas características inovadoras, mantendo-os

fora das secretarias tradicionalmente encarregadas das políticas sociais, tais como educação e

assistência social, que poderiam ser consideradas locus “naturais” desse tipo de política227

(Pochmann, 2002, p. 77).

A perspectiva orientadora consistiu na construção de uma estrutura administrativa de gestão

horizontalizada, com ênfase em ações matriciais e em projetos bem delimitados, em uma

estratégia de gestão orientada por objetivos e que buscasse a articulação das ações da recém

criada Secretaria do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade (SDTS) com outras

secretarias e instâncias de governo (administrações regionais), de forma descentralizada e

participativa (Pochmann, 2002, p.57). Tratava-se, segundo Pochmann, de “integrar o conjunto

de políticas que, de forma matricial, busca quebrar paradigmas que predominam na

condução das políticas governamentais” (Pochman, 2002, p. 123).

A articulação institucional e a integração territorial são os dois elementos fundamentais da

estratégia e pode-se dizer que surgem a partir da identificação dos problemas de gestão das

políticas públicas: estruturas burocráticas tradicionais, com normas rígidas, estruturas

ineficientes, ineficazes, com superposição das ações, ausência de flexibilização, de

coordenação, distante dos interesses do público, com recursos pulverizados, conforme

afirmação dos autores (Pochmann, 2002, p. 79). A estratégia utilizada pautou-se pela

226 A estrutura de gestão da SDTS era de “uma teia de poder não verticalizada”, sustentada pela permanente avaliação de ações e resultados (Campos, 2004, p. 153). As equipes da SDTS, responsáveis pelos nove programas, eram enxutas: em dezembro de 2002 eram 69 funcionários na SDTS, sendo apenas 10 de carreira, estando na segunda posição de secretarias com menor número de pessoal, dentre as 20 existentes na Prefeitura. Mas em contrapartida, os salários eram 71,2% superiores aos salários médios da Prefeitura, sendo a quinta secretaria com melhor remuneração (Campos, 2004, pp. 151,152). 227 Além dessa escolha de localização institucional dos programas, outra decisão consistiu em entregar a coordenação dos mesmos para pesquisadores da Universidade de Campinas, sinalizando com isso a busca pela implantação de uma nova cultura institucional (Pochmann, 2002, p. 77).

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necessidade de “superar as formas de organização verticalmente integradas, realizando uma

implementação descentralizada, territorializada e intersetorial” (Pochmann, 2002, p. 79) 228.

Na definição da estratégia, o governo introduziu duas inovações no campo das ações

governamentais. Constituiu três blocos de políticas (redistributivas, emancipatórias e de

desenvolvimento local) que fundamentam a estratégia de inclusão social. As ações são

pautadas pela perspectiva da integração e articulação e pela adoção do universalismo no

atendimento aos excluídos.

“Os programas distributivos no plano horizontal de ação do governo municipal paulistano não se mostrariam suficientemente inovadores se não estivessem integrados e vinculados verticalmente aos programas emancipatórios e de apoio ao desenvolvimento local” (Pochmann, 2002, pp. 68,69).

Foram desenhados nove programas sociais, concebidos de forma integrada e articulados entre

si, que operam, de acordo com seus formuladores, sob o princípio da universalidade, sendo

esse termo utilizado para dizer da cobertura total da população identificada como legítima

demandatária das ações dos programas, uma vez enquadrada nos critérios de elegibilidade.

A diretriz da universalidade na provisão dos serviços é constantemente ressaltada nos

documentos dos programas, para marcar um distanciamento das políticas focalizadas, que

operam a partir de “cotas de atendimento da população alvo”. A estratégia utilizada

estabeleceu uma hierarquia na priorização dos distritos a serem atendidos a cada ano, com a

perspectiva de atender a toda a população pobre do município. Parece contraditório que se

sustente ao mesmo tempo a universalidade e a priorização de áreas de intervenção, mas a

perspectiva que consta nos documentos é demarcar uma diferença em relação a estratégias de

cunho compensatório, residual ou focalizadas. A idéia básica da concepção de universalismo é

evitar discricionaridade na definição do público beneficiado; todos os que se enquadrassem

nos critérios, estabelecidos em lei, seriam atendidos. Universalizar, para os proponentes, é

atender a toda a população pobre, mas iniciando a intervenção por determinados distritos de

maior vulnerabilidade.

228 De acordo com documentos examinados, a busca de horizontalidade ocorreu em quatro movimentos: entre as secretarias e empresas municipais; em relação ao legislativo municipal; em relação aos conselhos municipais de assistência e criança e adolescente e junto aos órgãos governamentais no plano local (supervisores de assistência social, núcleos de ação educativa, administrações regionais). A estratégia para viabilizar a articulação consistiu em apresentar os programas para as secretarias, enfatizando pontos de contato e potencialidades das sinergias, fornecer elementos para contornar possíveis resistências (em função das rotinas e tradições burocráticas) e buscar parceiros (Pochmann, 2002, pp. 79, 80).

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A seguir tem-se uma breve apresentação dos programas que compõem a estratégia de inclusão,

sendo que os elementos principais de cada um são apresentados nos quadros a seguir.

Os programas redistributivos, organizados basicamente por faixa etária e tendo o trabalho

como eixo - Programa de Garantia de Renda Mínima, Programa Bolsa Trabalho (com 4

subprojetos), Programa Começar de Novo e Programa Ação Coletiva de Trabalho/Operação

Trabalho - envolvem o repasse mensal de benefícios para famílias e indivíduos de

determinadas faixas etárias, por um tempo determinado, de forma vinculada ao cumprimento

de certas condicionalidades229.

Os programas emancipatórios230 - Programa Oportunidade Solidária, Capacitação

Ocupacional e de Aprendizagem em Atividades de Utilidade Coletiva, Programa Central de

Crédito Popular (São Paulo Confia) são voltados para o repasse de ativos, sob a forma de

conhecimentos, crédito, experiências tuteladas de trabalho e de ação cooperativa. O público

desses programas foi prioritariamente, embora não de forma exclusiva, o mesmo dos

programas redistributivos231.

Os programas de desenvolvimento local - Programa de reestruturação produtiva e relações

do trabalho e Programa Sistema de Alocação Pública do Trabalho - voltaram-se para o

âmbito da geração de oportunidades de trabalho e renda e para a dinamização dos espaços e 229 Programas redistributivos: A) Programa de Garantia de Renda Familiar Mínima: tem como público alvo famílias com crianças e adolescentes (de 0 a 16 anos incompletos) e oferece uma complementação monetária em troca da obrigatoriedade da freqüência escolar. B) Programa Bolsa Trabalho: tem como objetivo atender jovens desempregados de 16 a 20 anos de idade, fornecendo uma renda vinculada à inserção e freqüência escolar, capacitando-os ainda para o desenvolvimento de iniciativas comunitárias. Tem quatro subprojetos: bolsa trabalho renda, para aqueles envolvidos em atividades comunitárias e educacionais; bolsa trabalho cursinho, para acesso a cursos pré-vestibulares e bolsas em universidades privadas; bolsa trabalho estágio, para estágios no setor público e privado e bolsa trabalho emprego, para experiência de formação com contrato formal de trabalho. C) Programa Ação Coletiva de Trabalho (Operação Trabalho): trata-se de um programa voltado para desempregados de longa duração, com faixa etária entre 21 e 39 anos (preferencialmente) que fornece renda, capacitação e experiência de trabalho. D) Programa Começar de Novo: voltados para os desempregados com 40 anos ou mais, o programa garante renda vinculada à formação para atividades produtivas e comunitárias. 230 Esses programas, principalmente o Oportunidade Solidária e o Capacitação Ocupacional, contaram com o apoio da FAO e da Unesco, respectivamente. O programa Oportunidade Solidária apresenta uma importante interface com o projeto “Desenvolvimento solidário: geração de renda e ocupação no município de SP”, apresentado pela SDTS à FAO/ONU. A parceria com a UNESCO nas ações voltadas para a juventude significou também um aporte substancial às ações do Programa de Capacitação Ocupacional. 231 Programas emancipatórios: esses programas pautam-se pela busca de autonomização dos pobres e desempregados. A) Programa Oportunidade Solidária: aprendizagem em empreendimentos coletivos (associativos, cooperativas e comunitários) e individuais, com o objetivo de criar condições para a geração de ocupação e renda para os mais pobres. B) Capacitação Ocupacional e de Aprendizagem em Atividades de Utilidade Coletiva: Três tipos básicos de capacitação: ocupação formal, ocupação informal e ocupação em atividades de utilidade coletiva e comunitária. C) Programa Central de Crédito Popular (São Paulo Confia): voltado para a difusão do microcrédito, sobretudo para o público beneficiado pelos programas redistributivos e pelo Programa Oportunidade Solidária.

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territórios, a partir do fortalecimento das cadeias produtivas e intermediação de negócios e de

alocação de trabalhadores autônomos. Os dois programas que compunham esse bloco estavam

centrados no desenvolvimento das localidades, na perspectiva do desenvolvimento econômico

sustentável (ver quadro abaixo para maiores detalhes sobre cada programa)232.

232 Programas de Apoio ao Desenvolvimento Local. A) Programa de reestruturação produtiva e relações do trabalho: esse programa é voltado para reconstituição de cadeias produtivas, recuperação de empresas falidas e “investimentos em condomínios de cooperativas”. B) Programa Sistema de Alocação Pública do Trabalho: trata-se de uma busca de reorganização do mercado de trabalho, através da criação de um serviço amplo de intermediação de trabalhadores por meio da busca ativa de vagas em diferentes regiões da cidade, e da constituição de um banco de dados que articula demanda e oferta de vagas.

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Figura 7 - Programas Sociais Prioritários: um esquema para identificação dos componentes e suas articulaçõe possíveis

(Foco: indivíduo/família)

(Foco: indivíduo)

(Foco: território)

Programa de Garantia de Renda Mínima

Programas de Apoio ao Desenvolvimento Local

Programa Bolsa Trabalho (com 4 subprojetos)

Programa Oportunidade Solidária

Programas Emancipatórios

Programa Central de Crédito Popular (São Paulo Confia)

Programa Começar de novo Programas

Redistributivos

Capacitação Ocupacional e de Aprendizagem em Atividades de Utilidade Coletiva

Programa Ação Coletiva de Trabalho (ou Operação Trabalho)

Programa Sistema de Alocação Pública do Trabalho

Programa de reestruturação produtiva e relações de trabalho

Fonte: Elaboração própria, a partir das informações de Pochmann, (2002); Campos, 2004

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Quadro 13: Síntese dos Programas da estratégia de inclusão de São Paulo PROGRAMAS REDISTRIBUTIVOS

Programa Critérios de elegibilidade, permanência e valor do benefício Objetivos Renda Mínima tem como público alvo famílias com crianças e adolescentes (de 0 a 16 anos incompletos) e oferece uma complementação monetária em troca da obrigatoriedade da freqüência escolar.

renda familiar per capita inferior a meio salário mínimo; famílias com crianças de 0 a 15 anos; residentes em SP há no mínimo 2 anos e que atendam às obrigações estabelecidas no termo de responsabilidade e compromisso: assiduidade à escola e a retirada das crianças e adolescentes das situações de risco (trabalho infantil, por exemplo). Valor do benefício: “multiplica-se o valor de meio salário mínimo pelo número de membros da família e do resultado diminui-se o valor da renda familiar. O valor do beneficio corresponderá a dois terços da diferença entre a renda familiar e o valor obtido como resultados da multiplicação de meio salário mínimo pelo numero de membros da família” (Pochmann, 2002, p. 100). Durante 2002, o valor desse benefício era de R$ 105,72 em média.

“garantir formação intelectual das crianças e dos adolescentes das famílias de forma a assegurar-lhes alguns instrumentos que ajudem a romper com o circulo da reprodução da pobreza, complementar a renda das famílias de modo que estas possam atender às necessidades básicas de seus membros, garantir a permanência e um bom desempenho das crianças e adolescentes na rede escolar, reduzir o número de crianças em situação de rua e/ou daquelas que participam de atividades remuneradas e melhorar a qualidade de vida das famílias”

Bolsa Trabalho tem como objetivo atender jovens desempregados de 16 a 20 anos de idade, fornecendo uma renda vinculada à inserção e freqüência escolar, capacitando-os ainda para o desenvolvimento de iniciativas comunitárias.

jovens com idade entre 16 e 20 anos, que estejam estudando ou que tenham concluído o ensino médio, estejam desempregados ou sem rendimentos próprios, pertençam a famílias com renda bruta familiar per capita igual ou inferior a meio salário mínimo, residentes em SP há no mínimo 2 anos e que atendam às obrigações estabelecidas no termo de responsabilidade e compromisso. Para serem incluídos e permanecerem no programa, os jovens devem ter uma freqüência escolar superior a 85% e cumprir a carga horária das atividades de formação. Tais atividades tem uma carga horária semanal de 20 horas.O prazo de permanência no programa é de 6 meses, podendo ser renovado por até 2 anos, dependendo de avaliação e da disponibilidade de recursos do programa; sendo possível o desligamento caso não haja o cumprimento das exigências do programa. Valor do benefício: O valor do beneficio corresponde a 45% do salário mínimo vigente, acrescido do valor correspondente a dois vales-transporte por dia, além de um seguro de vida coletivo. Em 2001, esse valor era de R$ 137,00. Nas modalidades bolsa cursinho, estágio e emprego, houve uma ampliação da faixa de renda do público a ser atendido, considerando renda familiar total de até 4,2 salários mínimos.

“oferecer meios para que os jovens possam continuar vinculados à rede escolar; propiciar-lhes uma capacitação adicional - não necessariamente dirigida ao mercado de trabalho, embora os cursos possam criar condições mais favoráveis -; potencializar a integração dos jovens aos seus bairros, por meio seja do desenvolvimento de atividades comunitárias, seja do (re) conhecimento dos distritos onde residem; melhorar as condições de vida dos jovens e de seu grupo familiar”. O Programa se desdobrou em quatro subprogramas: Modalidade Renda (igual aos termos anteriores) Modalidade cursinho (jovens com idade entre 16 e 29 anos que concluíram o ensino médio e não iniciaram o superior) Modalidade Estágio (jovens entre 16 e 29 anos que cursavam o ensino médio profissionalizante ou o superior) Modalidade Emprego (jovens entre 16 e 24 anos que concluíram o ensino médio ou o superior)

Fonte: Elaboração própria a partir das informações de Pochmann, 2002

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Quadro 13: Síntese dos Programas da estratégia de inclusão de São Paulo (cont.) PROGRAMAS REDISTRIBUTIVOS

Programa Critérios de elegibilidade, permanência e valor do benefício Objetivos Começar de Novo voltado para os desempregados com 40 anos ou mais, o programa garante renda vinculada à formação para atividades produtivas e comunitárias.

indivíduos com 40 anos ou mais de idade, que estejam desempregados há 6 meses ou mais e que não estejam recebendo seguro desemprego, residam na cidade de SP há mais de 2 anos e pertençam a famílias com renda mensal per capita inferior ou igual a meio salário mínimo e que atendam as exigências do termo de compromisso. É necessário que participem das atividades de capacitação e aprendizagem para que tenham direito ao beneficio. O prazo de permanência é de 6 meses, que pode ser prorrogado pó um período máximo de dois anos e, nesse caso, o valor do beneficio é reduzido para 50% do salário mínimo. O desligamento pode ocorrer caso o beneficiário deixe de cumprir as exigências, critérios ou requisitos do programa (termo de compromisso). O benefício monetário era fixo, correspondendo a 66,0% do salário mínimo, além de duas passagens de ônibus por dia e um seguro de vida coletivo.. Em 2001, o seu valor foi de R$ 176,00 e, em 2002, de R$ 189,33

“oferecer uma capacitação nova ou adicional; atuar sobre as formas tradicionais de pobreza e exclusão (analfabetismo, por exemplo); estimular o espírito empreendedor, oferecendo formação e habilitação para a montagem de pequenos negócios; assegurar o acesso a atividades de capacitação ocupacional ou comunitária de qualidade”

Operação Trabalho voltado para desempregados de longa duração, com faixa etária entre 21 e 39 anos (preferencialmente) e fornece renda, capacitação e experiência de trabalho.

Desempregados de longa duração - há mais de 8 meses - na faixa de 21 a 39 anos (podendo ser inseridos pessoas que estivessem fora da faixa, desde que não participassem nem do Bolsa Trabalho nem do Começar de Novo), que residam há mais de um ano no município de SP e cuja renda familiar per capita seja igual ou menor a meio salário mínimo. Inclusão no Operação Trabalho leva em conta critérios como maior tempo de desemprego, condição de morador de rua, egressos do sistema penitenciário, famílias com filhos desnutridos, deficientes, entre outras condições de especial vulnerabilidade. A permanência no programa depende do cumprimento do termo de compromisso e responsabilidade. O pagamento do benefício é por um período máximo de nove meses. Valor do benefício: O benefício tem um valor variável, que pode chegar a 150% do salário mínimo, além de duas passagens ônibus/dia, além de seguro de vida e por vezes refeição. O valor do beneficio mensal, incluindo deslocamento e alimentação, atingiu o valor máximo de R$ 295,00 em 2001. Em 2002, foi de R$ 315,00.

combater a pobreza gerada pelo desemprego de longa duração (principalmente aquele com tempo superior a 8 meses) a partir da transferência de renda associada à capacitação ocupacional e capacitação cidadã, a partir da disponibilização de cursos, seminários e oficinas de capacitação ocupacional e de aprendizagem em atividades de utilidade coletiva.

Fonte: Elaboração própria a partir das informações de Pochmann, 2002

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Quadro 13: Síntese dos Programas da estratégia de inclusão de São Paulo (cont.) PROGRAMAS EMANCIPATÓRIOS

Programa Critérios de elegibilidade, permanência e valor do benefício Objetivos Programa Oportunidade Solidária (Apoio ONU/FAO)

Beneficiários dos programas redistributivos, de forma a complementar resultados da estratégia de inclusão social.

Aprendizagem em empreendimentos coletivos (associativos, cooperativas e comunitários) e individuais, com o objetivo de criar condições para a geração de ocupação e renda para os mais pobres. Tem como objetivos oferecer instrumentos e ferramentas que possam melhorar as condições de formação e atuação desses empreendimentos, via capacitação e assessoria para gestão, estímulo à constituição de redes, fóruns e outros tipos de representação coletiva de empreendedores populares. Acesso a cultura do empreendedorismo.

Programa Capacitação Ocupacional e Aprendizagem em Atividades de Utilidade Coletiva (Apoio Unesco)

beneficiários dos programas redistributivos, que parece constituir o público preferencial (Bolsa Trabalho, Começar de Novo e Operação Trabalho), população excluída ou em risco de exclusão dos 96 distritos, povos indígenas, população rural, desempregados e trabalhadores ocupados em situação precária e outros grupos de beneficiários.

Educação para o trabalho e “educação para a vida comunitária, envolvimento com o bem estar e a universalização da cidadania”. Desenvolvimento de atividades de capacitação que permitam aos beneficiários dos programas sociais a aquisição ou aperfeiçoamento de habilidades que possibilitem atividades de geração de renda, além de atividades comunitárias. Atividades de capacitação voltadas para o mercado, para as atividades comunitárias e cooperativas e terceiro setor.

Programa Central de Crédito Popular – São Paulo Confia

Empreendedor de baixo poder aquisitivo, mesmo que não seja beneficiários dos programas redistributivos. Cooperativas e micro e pequenos empreendimentos formais ou informais.

Programa voltado para a difusão do microcrédito, sobretudo para o público beneficiado pelos programas redistributivos e pelo Programa Oportunidade Solidária. Tem como objetivos viabilizar acesso ao crédito para populações que encontram dificuldades em ter acesso ao crédito por meio das instituições tradicionais.

Fonte: Elaboração própria a partir das informações de Pochmann, 2002

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Quadro 13: Síntese dos Programas da estratégia de inclusão de São Paulo (cont.) PROGRAMAS DE DESENVOLVIMENTO LOCAL

Programa Critérios de elegibilidade, permanência e valor do benefício Objetivos Programa de Reestruturação Produtiva e Relações de Trabalho

Perspectiva de planejamento regional, com foco no território. Identificação coletiva, negociação e decisão sobre que atividades econômicas deveriam receber atenção especial e identificação das 14 regiões que seriam inicialmente beneficiadas. Atuação e deliberação via fóruns setoriais e fóruns distritais. Assinatura de protocolos entre as instituições, fixando metas e formas de alcançá-las.

programa voltado para desenvolvimento econômico das regiões e para a identificação e reconstituição de cadeias produtivas, recuperação de empresas falidas e investimentos em condomínios de cooperativas. “estimular o surgimento de condições objetivas que favoreçam o desenvolvimento da capacidade econômica local, dinamizando o que já existe ou trazendo à tona potencialidades identificadas pelos próprios atores da região”

Programa Sistema de Alocação Pública do Trabalho (São Paulo Inclui)

Intermediação de mão-de-obra formal, de mão-de-obra informal (certificação e call center, que possibilita articular melhor a demanda e a oferta de serviços) e intermediação de negócios (certificação e sistema de informações sobre oferta e demanda de serviços e produtos). Beneficiários prioritários, mas não exclusivos, são os beneficiários dos programas Bolsa Trabalho, Operação Trabalho e Começar de Novo.

Trata-se de uma busca de reorganização do mercado de trabalho, através da criação de um serviço amplo de intermediação de trabalhadores por meio da busca ativa de vagas em diferentes regiões da cidade, e da constituição de um banco de dados que articula demanda e oferta de vagas. Atuação em três vertentes: mercado de trabalho assalariado, central de serviços autônomos e intermediação de negócios populares

Fonte: Elaboração própria a partir das informações de Pochmann, 2002

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Para implementação da estratégia, inicialmente procedeu-se à hierarquização dos 96 distritos,

para priorizar os 13 distritos233 de maior exclusão. A hierarquização das áreas para

implantação dos três primeiros programas (Renda Mínima, Bolsa Trabalho e Começar de

Novo) foi feita de forma coletiva, no Fórum de secretarias e órgãos públicos e coordenada pela

SDTS. De acordo com as decisões tomadas ali, “os programas deveriam ter início nos

distritos que apresentavam a combinação mais delicada de: menor acesso à escolarização, à

ocupação, à renda, e maior exposição de crianças e adolescentes a fenômenos relacionados à

violência urbana (homicídios, em especial)” (Campos, 2004, p. 135). De forma um pouco

diferente, os documentos apontam que a definição dos critérios para implantação gradativa dos

programas nas regionais orientou-se pelos indicadores de “maior taxa de desemprego, maior

índice de violência e menor renda familiar” (Pochmann, 2002, p. 81).

Esses primeiros 13 distritos correspondiam a pouco mais de 4% da população da cidade e a

cerca de 105 mil famílias atendidas. No segundo ano, em 2002, ampliou-se o atendimento para

mais 37 distritos, segundo a ordem previamente estabelecida, completando os 50 distritos para

a implantação prioritária dos programas em 2001 e 2002 (Pochmann, 2002, p.44), para um

atendimento de 280 mil famílias. Em 2004, quando o programa contempla todos os 96

distritos da cidade, são atendidas mais de 490 mil famílias (492.212), representando mais de 2

milhões de pessoas beneficiadas direta ou indiretamente pelos programas desenvolvidos

(Pochmann, 2004, p. 19). Dois programas - Operação Trabalho e São Paulo Confia - não

seguiram a lógica temporal e territorial dos demais programas, que previu a implantação das

ações em 13 distritos no primeiro ano e de 37 no segundo. Esses programas se destacam, nesse

sentido, em relação aos demais.

Os três primeiros programas implantados foram o Renda Mínima, Bolsa Trabalho e Começar

de Novo. As metas de atendimento foram estabelecidas: 60 mil famílias no Renda Mínima, 13

mil jovens no Bolsa Trabalho e 11 mil pessoas no Começar de Novo (Pochmann, 2002, p.77).

Como resultado já apontado no primeiro ano de funcionamento dos programas, tem-se o total

de 110 mil famílias beneficiadas234, com investimentos de mais de 64 milhões alocados no

233 Inicialmente foram identificados 10 distritos prioritários, mas rapidamente se constatou que importantes bolsões de pobreza ficaram de fora, o que foi sanado com a inclusão de mais três distritos logo na primeira fase dos programas. 234 Na forma como aparece no texto, não fica claro a que programas se refere esse contingente de famílias atendidas. Optamos por manter essa informação, embora ela seja pouco precisa. Se contarmos o número de pessoas beneficiadas pelos três programas redistributivos em 2001, tem-se pouco mais de 95 mil.

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conjunto dos programas, com dinheiro exclusivamente municipal, de acordo com os autores

(Pochmann, 2002, p. 223). Campos afirma que, em julho de 2001, seis meses após o início do

governo, eram mais de 28 mil pessoas cadastradas para os três programas (Renda Mínima,

Bolsa Trabalho e Começar de Novo) e mais de 10 mil recebendo benefícios e participando das

ações de capacitação em dois distritos.

Não é banal esse resultado em tão pouco tempo. Levando em conta todas as operações

necessárias para se ter 10 mil famílias sendo atendidas em seis meses (para uma descrição

detalhada dos processos de cadastramento e seleção dos beneficiários ver Campos, 2004, pp.

137-140) tem-se a magnitude do esforço realizado em São Paulo para colocar de pé três

amplas ações de inclusão social sob a coordenação de uma secretaria recém criada e ainda sem

estrutura adequada de funcionamento.

No primeiro ano, em 2001, existia apenas a previsão de um milhão no orçamento para o

Programa Renda Mínima, sendo que a Prefeitura teve que remanejar quase 64 milhões, o que

ainda assim era menos do que 0,8% do orçamento da cidade. Em 2002, eram 237 milhões para

os programas, cerca de 2,3% das despesas municipais (Campos, 2004, p.149). Esse fato, em

um contexto de grande endividamento, com dívidas anteriores que consumiam 13% do

orçamento municipal, aponta para a centralidade da estratégia na agenda do executivo

municipal.

Na tentativa de empoderamento, as atividades envolvem, além da transferência de recursos,

formação e qualificação, expansão de capacidades. Essa constitui a perspectiva do Bolsa

Trabalho, Operação Trabalho, Começar de Novo, que agregam a transferência de recursos à

formação e qualificação também profissional, através dos programas de Capacitação

Ocupacional e Oportunidade Solidária 235. O Programa São Paulo Confia articula-se

235 No Começar de Novo, por exemplo, tem-se um módulo de formação cidadã, também denominado módulo básico, com duração de 160 horas, a se iniciar no momento da entrada no programa, voltado para a “construção de alternativas de superação da vulnerabilidade social em que se encontram, por meio de práticas cidadãs e solidárias, desenvolvendo junto aos beneficiários valores como a auto-estima, a valorização da identidade, a compreensão e o exercício de seus deveres e direitos como cidadão, bem como o estímulo à participação ativa na busca de alternativas para a inclusão social” (Pochmann, 2003, p. 107). O módulo específico, por sua vez, volta-se para a ampliação da escolaridade e para ampliação de oportunidades de geração de renda e ocupação, tanto as voltadas para o mercado quanto as orientadas para atividades comunitárias, ou de utilidade coletiva. O Programa Capacitação Ocupacional utiliza a mesma metodologia de módulo básico, sendo esse dividido em seis blocos temáticos articulados. Os blocos e a respectiva carga horária são os seguintes: bloco 1 (16 h), integração; bloco 2 (32 h), questão social, emprego e trabalho; bloco 3 (30 h), cidadania, direitos e deveres; bloco 4 (30 h), meio ambiente e qualidade de vida; bloco 5 (32h), novas formas de geração de ocupação e renda; bloco 6 (16 h), projeto comunitário; cerimônia de encerramento (4h) (Pochmann, 2003, p. 118). Posteriormente tem-se um

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diretamente com o Oportunidade Solidária e os programas do bloco do desenvolvimento

também se relacionam, no desenho, com os demais programas emancipatórios236.

De forma geral, quanto ao desenho da estratégia, tem-se uma política calcada na ótica dos

direitos, o que é revelado na concepção da intervenção e também presente na preocupação da

Prefeitura em transformar em lei os programas desenvolvidos. O centro da estratégia é que a

transferência de renda combina-se com a ampliação da autonomia e das capacidades, com foco

também no desenvolvimento local, com forte ênfase territorial. A complementaridade entre os

três blocos de programas foi a grande aposta da SDTS e o que constituiu sua dimensão mais

inovadora. Os programas emancipatórios priorizam o público dos programas redistributivos, e

também os programas de apoio ao desenvolvimento local priorizam as regiões com maior

concentração dos beneficiários dos programas redistributivos. Isso não quer dizer que sejam

as mesmas pessoas beneficiadas em todos os programas, mas que se prioriza, no caso dos

programas emancipatórios e de desenvolvimento, o público dos programas distributivos. A

lógica da complementaridade se expressa da seguinte forma:

“se por um lado se transfere renda às famílias/indivíduos pobres, por outro criam-se condições para que possam superar a condição de pobreza,restaria articular a esses dois eixos um terceiro que buscasse dinamizar a economia local e organizar o mercado de trabalho” (Oliveira, 2004, p. 96).

• Alguns resultados237

Um primeiro ponto a ressaltar sobre a experiência refere-se à agilidade conseguida para

implementar as ações238, e a magnitude dos resultados alcançados, em termos quantitativos.

encaminhamento para módulos específicos, voltado para aquisição de habilidades e formação específicas. A capacitação, nesses módulos, estaria voltada para atividades ligadas ao empreendedorismo individual e coletivo e para atividades de utilidade coletiva. Dentre as primeiras, as ações de formação podem ser agrupadas nas seguintes áreas: construção civil (8 cursos); alimentação (3 cursos); costura (4 cursos); estética (4 cursos); serviços (12 cursos); artesanato; informática (2 cursos) (Pochmann, 2003, p. 119). No campo das atividades comunitárias e de utilidade coletiva, as áreas são: agentes comunitários e multiplicadores em saúde (7 cursos); agentes comunitários e multiplicadores em esporte, lazer e recreação (5 cursos); agentes comunitários e multiplicadores em meio ambiente (4 cursos); agentes comunitários de trânsito (1 curso) (Pochmann, 2003, p. 120). 236 Os programas de desenvolvimento local, na medida em que buscam melhorar a oferta de trabalho nas regiões, podem favorecer a circulação de produtos e serviços elaborados pelos empreendimentos solidários, conforme aponta Campos (2004). Mas houve aí de fato um problema. 237 Essa seção terá como base o trabalho de Campos e as informações disponíveis em Pochmann (2002 2003,2004). O trabalho de Campos, embora rico, só contém dados do período 2001 e 2002. Embora essas últimas fontes não sejam independentes (e que isso, de certa forma, possa colocar sob suspeita alguns resultados), não foi possível contar com fontes externas que possibilitassem uma visão mais isenta ou descomprometida com a intervenção, o que seria obviamente mais desejável.

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No final do primeiro ano de governo, os três programas redistributivos (Renda Mínima, Bolsa

Trabalho e Começar de Novo) estavam implantados e outros três em processo de

implementação (Central de Crédito Produtivo-São Paulo Confia; Desenvolvimento Solidário;

Ação Coletiva de Trabalho/Operação Trabalho). Cabe ainda ressaltar a preocupação com a

regulamentação legal dos programas239, de forma a viabilizar maior estabilidade e

institucionalidade das políticas sociais. Esse ponto não é irrelevante, dadas as características

das políticas assistenciais no país, ainda presas de um ranço clientelista e de uma visão da

política como caridade e benesse e não sob o registro dos direitos e deveres de cidadania. A

procura por uma maior institucionalização dos programas é certamente condição necessária,

embora não seja suficiente, para viabilizar maior continuidade e sustentabilidade das ações do

Estado no campo das políticas e da gestão social.

O segundo ponto refere-se ao esforço quanto à geração, sistematização e uso das informações

como recurso gerencial. Um trabalho muito grande tem sido feito pela Prefeitura para

viabilizar sistemas de informação mais adequados para subsidiar processos de tomada de

decisão no campo das políticas e programas de proteção social. Em funcionamento a partir de

2002, o Banco de Dados do Cidadão permite a identificação individual de um conjunto de

dimensões da vida dos beneficiários dos programas sociais de SP. O Banco agregava, em

2003, 361 diferentes tipos de informação para cada um dos 287.482 mil cidadãos selecionados

para os programas redistributivos (Pochmann, 2003, p. 46). Engloba informações passadas e

presentes, informações sobre a trajetória, vida familiar, situação educacional, econômica,

profissional, condições de moradia, gastos e padrões de consumo. Em 2004 contava com

informações de cerca de 600 mil famílias e algo em torno de 1,5 milhão de indivíduos, além

de viabilizar a integração com o cadastro do programa Renda Cidadã do governo estadual

238 Em apenas três meses já haviam sido tomadas as providências necessárias para o início das ações: locais de implementação definidos, cartões magnéticos acertados, ficha de cadastro elaborada, banco de dados do cidadão pronto para operar (Pochmann, 2002, p. 81). No começo de abril de 2001, teve início o cadastramento dos três programas (Renda Mínima, Começar de Novo e Bolsa Trabalho) em dois distritos. No final do ano, os três programas estavam implementados e outros três em processo de implementação (Central de Crédito Produtivo/São Paulo Confia; Desenvolvimento Solidário; Ação Coletiva de Trabalho/Operação Trabalho). 239 Lei 13.163, de 2001, que institui o Bolsa Trabalho; Lei nº 13.164, de 2001, cria a SDTS; Lei 13.244, de 2001, firma termo de adesão ao Programa Bolsa Escola; Lei 13.265, de 2002, altera disposições da Lei do Renda Mínima (Lei 12.651 de 1998); Lei 13.788, de 2004, que altera dispositivos da Lei do Renda Mínima; Lei 13.841, de 2004, que dispõe sobre normas do Bolsa Trabalho; Lei 13.118, de 2001, que dispõe sobre a associação civil Crédito Popular Solidário; Lei 13.178, de 2001, que institui o programa Ação Coletiva de Trabalho; Lei 13.689, de 2003, que altera a lei anterior, dando nova redação aos dispositivos; Lei 13.799, de 2004, que cria o programa Começar de Novo; Lei 13.808, de 2004, que cria programa de Capacitação Ocupacional, dentre outros decretos e portarias (Pochmann, 2004, pp. 163-231).

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(12,9 mil famílias) e com o cadastro do Programa federal Bolsa Escola (79,5 mil famílias).

Esse esforço deve ser destacado, dadas as condições do aparato gerencial e das estruturas

administrativas de gestão pública, principalmente de gestão social no Brasil. Oferecer um

cadastro único do beneficiário e informatizar a gestão dos programas, viabiliza maior

comunicação entre os programas, uma gestão mais conjunta das ações e do público

beneficiário (Oliveira, 2004, p. 96)240.

Quanto a alguns resultados, é importante recuperar que, no momento de implantação da

estratégia de inclusão, a partir de 2001, o número de pobres (definidos como aqueles que

apresentam renda per capita abaixo de meio salário mínimo mensal) era de 973 mil indivíduos

(cerca de 10% da população da cidade), membros de aproximadamente 215 mil famílias (mais

de 7% de todas as famílias existentes na cidade) (Campos, 2004, p. 94). Os 50 distritos

selecionados concentravam cerca de 72% dos indivíduos e 66% das famílias pobres do

município (Campos, 2004, p. 96).

Quanto à cobertura, tem-se que de 2001 a 2004 foram atendidos mais de 323 mil beneficiários

apenas nos programas de transferência de renda para famílias pobres com crianças de 0 a 15

anos241. O Programa Bolsa Trabalho atendeu a 63.471 beneficiários e o Começar de Novo a

58.925. O Programa Operação Trabalho atendeu a 20.553 beneficiários. Apenas nos

programas redistributivos, foram atendidas no período 466.741 beneficiários, e no total dos

nove programas, a 490.401 beneficiários, sem dupla contagem. No Programa Oportunidade

Solidária foram atendidos 19,2 mil beneficiários (Pochmann, 2004, p. 141)242. O volume de

240 Para uma análise mais aprofundada sobre a iniciativa do Banco de Dados do Cidadão, ver Campos (2004, p. 333). 241 É importante ressaltar aqui que consta na tabela fornecida por Pochmann (2004, p. 141) que o total de beneficiários atendidos pelos Programas para famílias pobres com dependentes de 0 a 15 anos, no período de 2001 a 2004, foi de 323.792 pessoas, sem dupla contagem. O Programa Renda Mínima é um dos programas dirigidos para essa faixa etária. Outros programas, de outros níveis de governo, também são desenvolvidos em São Paulo: Programa Bolsa Família e Bolsa Escola (do governo federal) e o Programa Renda Cidadã (do Governo do Estado). Entretanto, ao discriminar o atendimento entre os programas tem-se que o O Renda Mínima atendeu no período de 2001 a 2004 a 270.591 beneficiários; os programas federais atenderam a 170.389 e o programa estadual a 16.128 pessoas (Pochmann, 2004, p. 141). Entretanto, somando esses três valores, o total ultrapassa a 457 mil, o que se deve, provavelmente, a alguma duplicidade no recebimento dos benefícios que foi corrigida para totalizar 323.792 indivíduos efetivamente atendidos pelos programas no período. 242 Deve-se ressaltar aqui uma ambigüidade: em alguns momentos no documento, aparece explicitamente o seguinte: “foram atendidas pela estratégia de inclusão social de São Paulo, entre 2001 e setembro de 2004, mais de 492 mil famílias e 1,1 milhões de ações de inclusão social, representando mais de 2 milhões de pessoas beneficiadas direta e indiretamente por estas ações” (Pochmann, 2004, p. 19). No anexo, nas tabelas que consolidam os números de atendimento, tem-se a afirmação de que “a SDTS atendeu a 490,4 mil beneficiários entre julho de 2001 e setembro de 2004” (Pochmann, 2004, p. 141), definindo como beneficiários cidadãos (e

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atendimento alcançado pelos nove programas é expressivo. São quase meio milhão de

famílias, mais de dois milhões de pessoas atingidas direta ou indiretamente, cerca de 20% da

população atual envolvendo repasse de recursos da ordem de 1 bilhão de reais (Pochmann,

2004, p. 106). Os desafios em termos financeiros, operacionais, políticos e metodológicos não

foram desprezíveis.

Outros resultados podem ser identificados a partir das avaliações realizadas tanto pela equipe

envolvida na coordenação e gestão dos nove programas quanto pelos parceiros atuantes no

desenvolvimento da estratégia (Pochmann, 2004)243. Simulações e estudos foram feitos para

tentar dimensionar os efeitos das ações nas condições de emprego, pobreza e desigualdade. As

evidências elencadas demonstram, entre outros, os seguintes resultados: os programas sociais

da SDTS geram efeitos na dinâmica do mercado de trabalho na cidade, e, se não fosse por

eles, o desemprego não seria de 17,8% (em dez. de 2003), mas de 19,4% (Pochmann, 2004, p.

51). Provocou-se, a partir da execução dos programas da SDTS, uma redefinição da geografia

econômica da cidade, com a vitalização dos 50 distritos mais pobres e com um aumento

expressivo no nível do emprego formal nessas regiões, comparativamente aos distritos

restantes244 e com o fortalecimento das economias locais245. Foi observada uma significativa

redução da desigualdade entre rendimentos auferidos por mulheres e negros em relação aos

homens e brancos, nos 50 distritos inicialmente priorizados246. Houve uma expressiva

diferença entre a queda de índices de homicídios nos primeiros distritos atendidos em relação

não famílias) que se cadastraram nos programas sociais da SDTS, que atenderam aos critérios e receberam benefício ou capacitação ocupacional e comunitária. 243 Dentre as avaliações realizadas, tem-se instituições como DIEESE (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos sócio-econômicos, o CESIT (Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho, UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas) e CEDEC (Centro de Estudos de Cultura Contemporânea) (Pochmann, 2004, p. 99). As avaliações focaram temas e dimensões diferentes de cada programa e de aspectos da estratégia de inclusão., agregando metodologias quantitativas e qualitativas, focadas nos processos e resultados das ações. Pesquisas de opinião também foram feitas com amostra da população, buscando evidenciar a visão que tinham da estratégia de inclusão em curso. 244 Nas palavras dos autores, “enquanto o nível de emprego formal cresceu 13,1% no acumulado de dezembro de 2001 a junho de 2004 nos 50 primeiros distritos, tal crescimento foi de apenas 4,7% para os 46 distritos restantes e de 7,8% para a média do município” (Pochmann, 2004, p. 54) 245 Não é desprezível o montante de recursos injetados na economia via transferência de renda. No período de julho de 2001 a setembro de 2004 foram transferidos quase 710 milhões de reais que foram, em sua quase totalidade, aplicados no consumo, sendo este, em grande parte, nos territórios de origem dos beneficiários, provocando um efeito sinérgico e uma confluência positiva com resultados significativos em termos econômicos (Pochmann, 2004, p. 54) 246 Entre 2001 e 2003, enquanto se observou uma redução de quase 8% na distância entre os rendimentos de negros e não negros nos 50 primeiros distritos, para os 46 distritos restantes essa distância aumentou em quase 10%, no mesmo período (Pochmann, 2004, p. 58).

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aos demais distritos247 e uma clara redução das taxas de evasão e repetência nos distritos onde

foram implantados os programas sociais248. Identifica-se uma redução da incidência da

pobreza e da desigualdade para toda a cidade e, de forma mais significativa, para os 50

distritos priorizados inicialmente249. A injeção de dezenas de milhões de reais todo mês nas

regiões de grande vulnerabilidade social atua, certamente, como catalisador do tecido

econômico e social (Campos, 2004, p. 252). Essa afirmação se sustenta pelo fato de que mais

de 83% dos beneficiários dos programas distributivos consumiam a bolsa no lugar de origem,

o que remete ao potencial de desenvolvimento econômico e social das periferias a partir das

ações de transferência de renda (Campos, 2004, p.254).

Mudanças nas dimensões da subjetividade também são evidenciadas pelas falas dos

beneficiários, que apontam ganhos de auto-estima, na sensação de segurança que adquirem a

partir da participação nos programas, na capacidade de tomar decisões, fazer e sustentar

escolhas e nas habilidades para se posicionar na vida em suas múltiplas dimensões

(Pochmann, 2004, pp. 78-87). Os depoimentos, embora possam dizer pouco sobre os

resultados mensuráveis quantitativamente, agregam percepções e avaliações a partir das

experiências individuais, do significado das experiências na vida e na trajetória de cada pessoa

ou família atendida. Nesse caso, alguns efeitos podem ser incomensuráveis250.

247 Os autores sustentam que a queda da violência é maior e mais rápida nos 13 distritos primeiramente atendidos (21,7%), enquanto que para os outros 37 e para os distritos restantes, a redução foi de 16,6% e 15,9%, respectivamente (Pochmann, 2004, p. 62). Da mesma forma, a queda na taxas de evasão escolar são bem mais expressivas para os distritos que contam com programas sociais (o que pode ser óbvio, em se tratando de programas que estão vinculados à presença das crianças nas escolas e que priorizam áreas onde as taxas de evasão são comparativamente maiores). 248 Da mesma forma, a queda na taxas de evasão escolar são bem mais expressivas para os distritos que contam com programas sociais (o que pode ser óbvio, em se tratando de programas que estão vinculados à presença das crianças nas escolas e que priorizam áreas onde as taxas de evasão são comparativamente maiores, mas que não deixam de evidenciar o êxito dessa estratégia que vincula transferência de renda à freqüência à escola). 249 Ocorre, entre o período de 2001 à 2004, uma queda de quase 10% no percentual de famílias pobres no município, o que significa que cerca de 188 mil pessoas ou de 45 mil famílias saíram da condição de pobreza como resultado dos efeitos dos programas sociais. De forma semelhante, tem-se uma redução da desigualdade de cerca de 10% entre a renda apropriada pelos 10% mais ricos e pelos 10% mais pobres, sendo que nos primeiros distritos atendidos essa redução chegou a 13% (Pochmann, 2004, p. 70). 250 Alguns fragmentos de falas dos beneficiários permitem ilustrar o ponto: “...e com o passar do tempo, a idéia de formar uma cooperativa foi tomando corpo e decidimos, assim, montarmos uma cooperativa de coffee break...estávamos, dessa forma, mais que buscando uma atividade econômica e, sim, reencontrando nossa dignidade, por meio da valorização e solidariedade com os outros e conosco mesmo”. “Antes de começar esse curso, nós éramos pessoas que estávamos excluídas, rejeitas, estávamos com a auto-estima muito pra baixo, e depois que começamos a participar desse programa, aí a gente levantou a auto-estima,..começamos a ir a luta para conseguir alguma coisa...o nosso cantinho para trabalhar” (Pochmann, 2004, pp. 79, 84). E ainda: “adquiri profissionalismo, postura profissional, participação comunicativa com as pessoas, aprimoramento na área do trabalho, perspectiva para o futuro...” (Pochmann, 2003, p. 81). Outra entrevistada fala de algo pessoal

267

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Entretanto, um ponto importante para que um efetivo processo de empoderamento tenha início

refere-se ao valor do benefício e a possibilidade de sua continuidade no tempo, por um período

que possibilite o processo de interrupção e saída sustentável da condição de pobreza.

Alguns elementos de inovação da estratégia de São Paulo são salientados por Campos (2004).

Foi apontado, por exemplo, que a estratégia de cadastramento e seleção do público dos

programas significou uma alteração significativa e que marca uma ruptura com a forma

tradicional, paternalista e clientelista de gestão de políticas e ações dirigidas aos pobres no

Brasil. Dentre outros elementos, destaca-se a dimensão universalista da abordagem e o

impacto positivo quanto ao enfrentamento estratégico da pobreza; a centralidade da questão

dos direitos; a perspectiva de articulação intersetorial das ações; a perspectiva orientadora de

forte cunho econômico; a preocupação com estratégias articuladas de redistribuição,

emancipação e desenvolvimento local; a ênfase na alteração na estrutura de desigualdade

econômica, de gênero e raça; a preocupação com o monitoramento e acompanhamento

seqüencial dos beneficiários ao longo dos programas; a centralidade da informação como

recurso gerencial.

Entretanto, falhas e ruídos na comunicação entre a prefeitura e o público beneficiário foi

apontado com um dos principais problemas a serem enfrentados (Pochmann, 2004, pp. 102,

105), bem como a dificuldade de se atender às necessidades específicas e individuais, dada a

dimensão massiva do programa (Pochmann, 2004, p. 112). A passagem do público dos

programas redistributivos para os programas emancipatórios também não se deu sem

dificuldades ou descontinuidades, dado o perfil do público que muitas vezes não se encontrava

ainda preparado para apreensão de conteúdos tais como os desenvolvidos pelos programas

emancipatórios, o que acabou por exigir uma readequação dos prazos e dos critérios de

inserção do público, como será visto adiante.

A “falha na comunicação” entre governo e sociedade vai além de problema técnico. Suas

implicações são profundas e altamente impactantes nas relações que são criadas entre os

técnicos e beneficiários dos programas. Nas palavras de Campos, “não há informações sobre mas que pode ser o espelho da vida de centenas de milhares de Marias: “Nossa, melhorou muito minha vida. Porque meu marido, ele trabalhava numa transportadora. Daí ele saiu e não recebeu um centavo. Aí foi na hora certa que essa renda veio pra me ajudar. Porque eu fiquei quase louca, nossa, com um monte de dívida e pagando aluguel e tudo. Eu trabalhava, era babá de uma menina, mas depois fui mandada embora também. De repente, meu salário diminuiu pela metade. Ah, eu passei uma dificuldade. Aí que veio a Renda Mínima e me ajudou, senão, eu nem sei o que seria de mim. Ajudou muito mesmo” (Campos, 2004, p. 355).

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as razões de alguns receberem X e outros Y, pois a prefeitura não as disponibiliza e, mais

ainda, nem se sabe se, como, onde e quando é possível acessá-las” (Campos, 2004, p. 357).

Ou nas palavras de uma liderança comunitária,

“...veio alguém da subprefeitura aqui, falaram uma coisa, quando chegou lá era outra [...] As que trabalham, que já tem renda, conseguiram, as que não têm renda, não conseguiram. E eles não alegaram nada, eles são do tipo assim: não alegam nada, fica por isso mesmo [...] Eles não explicam, não estão nem aí” (Campos, 2004, p. 315)251.

Outros depoimentos citados por Campos salientam os tipos de dúvidas, incertezas, medos e

distâncias (materiais e simbólicas) que marcam as relações do público com o governo. O

desconhecimento sobre os critérios adotados, sobre os motivos para os valores diferenciados

da bolsa ou dos processos pelos quais são selecionadas as famílias beneficiárias foram

retratadas de forma exaustiva por Campos (2004). Retiramos, desse trabalho, apenas algumas

falas, no sentido de conferir um pouco mais de densidade ao que está sendo aqui considerado.

Sobre o sentimento de injustiça quanto aos valores diferenciados tem-se: “Agora, ela tem uma

criança só e veio 500 reais, e nós temos um monte de crianças aqui, o maior sacrifício pra

cuidar, vem só 160” (Campos, 2004, p. 344). É evidente, com toda a clareza no conjunto de

entrevistas realizadas por Campos, o desconhecimento e a desinformação que marcam as

relações dos beneficiários com o governo municipal. Além desse conjunto de dúvidas,

desconhecimentos, incerteza, tem-se nas entrevistas realizadas por Campos algumas pistas

para se entender o tipo de relação que se cria entre o público potencialmente beneficiário e o

governo, questão que se expressa na tensão entre falar a verdade ou mentir para que alguém

possa ter direito de ser incluído no programa e receber determinado volume de recursos252.

251 Ao afirmar que não existia um conhecimento sobre os critérios e os motivos que faziam com que algumas famílias recebessem benefício e outras não, ou sobre os motivos para as diferenças de valor dos mesmos, uma beneficiária do Programa explicita: “A gente queria saber, né? Por que que cai o de uns e o de outros não. Por que todo mundo não tava recebendo direitinho? Agora recadastrou e ninguém ainda viu nada. Um recebe e outro não recebe. Porque podia explicar: não, você não vai ganhar mais porque só tem um filho; não, você não vai ganhar mais porque você tem um companheiro. Mas eles não dá explicação nenhuma. Eu até pensei: será que é porque eu arrumei um companheiro. Porque naqueles tempo que eu fui eu tava assim sozinha, com dois filhos, pagava luz, água, casa, tava desempregada. Aí eu fiz, porque precisava. E a gente ainda precisa, porque emprego ninguém quer dar, né?” (Campos, 2004, p. 362). 252 Uma entrevistada revela esse sentimento e demonstra o verdadeiro terror do “computador”, que saberia se as pessoas estariam ou não mentindo:“Se você chegar mentindo lá, o computador fala que você não vai ter Renda Mínima, porque se você não trabalha, como vai sustentar a família inteira, né? E pagar luz, água e aluguel? Como? Não tem como [...] Se você falar alguma mentira, o computador fala que tá mentindo. Porque, por exemplo, era duas salas. Eu fiquei numa e tava falando a verdade, né? Na outra tava o computador lá ligado. E me falaram: escuta, aqui você já terminou. O que era pra falar, já falou. O computador, já tá tudo lá. Você vai lá e recebe um papelzinho, pra 30 dias ou 60 dias, pra ver se tem dinheiro [...] Eles chama primeiro numa sala, aí o computador ele liga lá, não sei como é que é, já tá ligado, aí aquela sala é só pra falar a verdade, né? Se tá trabalhando, se não tá. Aí pronto, aí termina, aí já despacha a gente. Só que aí vai pra outra sala, onde o

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Também não fica claro, para os beneficiários entrevistados por Campos, porque às vezes

algumas famílias deixam de receber o recurso:

“Se eles deram uma ajuda, por quê é que eles estão cortando? Deveria deixar continuar a ajuda. Porque veja bem, a gente nunca teve essa ajuda, tava vivendo, não tamo? De repente vem esse benefício pra gente, essa ajuda. A gente fica todo feliz, fica todo grato, né? E de repente pára? Por quê?” (Campos, 2004, p. 365)

E ainda:

“Vamos orar a Deus e pedir a Deus pra continuar recebendo essa Renda Mínima, não é? É rezar, pra receber só coisa boa” (Campos, 2004, p. 377).

Os depoimentos acima podem ser a demonstração de que muito ainda há que ser feito, antes

de se alcançar o estado almejado de consciência cívica e afirmação de direitos. A estratégia de

inclusão, implantada em 2001, foi alterada em 2005, com a mudança no governo municipal,

com o fim da Secretaria do Trabalho, Desenvolvimento e Solidariedade (STDS), que havia

sido criada para implementar a ambiciosa estratégia de inclusão social.

Os quadros abaixo sintetizam alguns resultados dos programas e permitem fazer a passagem

para a seção seguinte, que focaliza a experiência de São Paulo tendo como base as concepções

de autonomia, da intersetorialidade e da territorialidade no âmbito da estratégia desenvolvida.

computador já é lá, e ele já apresenta tudo o que você falou na outra sala” (Campos, 2004, pp. 332,333). Prosseguindo nas suas suposições, a beneficiária acredita que a seleção e o valor do benefício estariam acoplados a uma questão moral: “então eles vão ver: quem tiver mentindo, a gente põe menos. Quem tiver falando a verdade a gente põe o tanto normal, que bem que merece. Porque tem muita gente que mentiu” (Campos, 2004, p. 344).

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Quadro 14: Programas da estratégia de inclusão social: alguns resultados253

PROGRAMAS REDISTRIBUTIVOS Famílias atendidas (e número

Beneficiários indiretos: familiares) Diagnóstico

2001 (13 distritos)

2002 (37 distritos)

Total 2001-2004 (beneficiários)

Alguns resultados

Renda Mínima Antecedentes: Bolsa escola. Necessidade de ampliar acesso e permanência das crianças na escola e redução de situações de risco. De acordo com dados Seade e Dieese, o universo é de 309 mil famílias, ou 10,1% do total de famílias do município

71.401 (299.884 indiretos)

115.366 (461.464 indiretos)

270.591*

Redução evasão e repetência.Benefícios transferidos em 2001 e 2002 correspondem a 18,4% da renda das famílias

Bolsa Trabalho

De acordo com PED 2000, havia nos 50 distritos a serem atendidos em 2001 e 2002, cerca de 44.321 jovens de 16 a 20 anos, em famílias pobres e que se enquadram nos critérios

9.393 (39.451 indiretos)

21.826 (87.304 indiretos)

63.471 (sendo 57.397 na modalidade Bolsa Trabalho Renda)

Incremento de 68,8% na renda das famílias nos 13 distritos iniciais; em 2002, esse incremento foi de 56,2% na renda das famílias dos 37 distritos seguintes.

Começar de novo

Existia, na cidade como um todo, um conjunto de 65.798 pessoas que se adequavam aos critérios. Nos 50 distritos atendidos em 2001 e 2002, esse número era de 41.783

12.390 (52.038 indiretos)

22.335 (89.340 indiretos)

58.925 Em 2001 o valor do benefício correspondia a mais de 88% da renda das famílias situadas nos 13 distritos e em 2002, correspondia a quase 73% da renda das famílias localizadas nos 37 distritos .

253 Os resultados em termos de número de atendimentos apontados entre as diversas fontes (Campos, 2004 e Pochmann, 2002,2003,2004) não são iguais. Optamos por reproduzir aqui, nessas tabelas, as informações que constam na tese de André Campos (2004), embora elas se refiram aos dois primeiros anos, 2002 e 2002. Apenas na coluna total (2001-2004) iremos utilizar os dados que constam em Pochmann (2004, p. 141). Alguns exemplos quanto ao tipo de desajuste identificado entre o número de beneficiários: No Programa Renda Mínima, para Pochmann, em 2001, foram atendidas 68.722 famílias (288.644 pessoas) e para Campos, foram atendidas nesse ano 71.401 famílias (299.884 pessoas). O Bolsa Trabalho em 2001, de acordo com Pochmann: 11.796 e para Campos, é 9.393. No Programa Começar de Novo, de acordo com Pochmann, em 2001 foram atendidos 14.844 bolsistas, e por Campos, 12.390. No Operação Trabalho, em 2002, para Pochmann, foram atendidos 13,5 mil pessoas e para Campos, esse número foi de 12.821. Entretanto, não tivemos tempo para depurar os dados, buscar explicar as incongruências encontradas, mas optamos por manter aqui as duas fontes, com as devidas ressalvas.

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Quadro 14: Programas da estratégia de inclusão social: alguns resultados (cont.) PROGRAMAS REDISTRIBUTIVOS

Diagnóstico Famílias atendidas (e número Beneficiários indiretos: familiares)

Alguns resultados

2001-2202 2001-2004 (beneficiários)

Operação Trabalho

Número de pessoas cadastrados foi de 156 mil (cadastramento foi feito de uma só vez, no final de 2001, para 52 regiões diferentes da cidade). Identificação de que havia, na época de implantação do programa, 57.598 pessoas que apresentavam as condições para inserção no Programa.

12.821 (65.837 indiretos) 20.553 Os benefícios significavam um incremento de cerca de 202,3% na renda das famílias atendidas (renda praticamente triplicava após a inserção no Programa)

* Agregando o total atendido pelo Bolsa Família e Bolsa Escola e Renda Cidadã/estadual, tem-se o total de 323.792 beneficiários dos programas para famílias com dependentes de 0 a 15 anos Fonte: elaborado pela autora a partir do material examinado

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Quadro 14: Programas da estratégia de inclusão social: alguns resultados (cont.) PROGRAMAS EMANCIPATÓRIOS

Número de Beneficiários Programa Diagnóstico 2001 2002 Total

2001-2004

Outros resultados

Capacitação Ocupacional e Aprendizagem em Atividades de Utilidade Coletiva

Necessidade de atuar sobre a formação e qualificação das pessoas, na perspectiva de formação cidadã e formação ocupacional

38.400* capacitações 796 turmas simultâneas

55.693*capacitações 2.586 turmas e, em 2 períodos, 1.293 turmas simultâneas

116.636 Em 2002 eram mais de 50 instituições, em diversas regiões da cidade, participando das atividades de capacitação

Oportunidade Solidária

Necessidade de ferramentas e condições que possibilitasse a geração de renda de forma autônoma, individual ou coletiva. Desenvolvimento do empreendedorismo, protagonismo, economia solidária

4.200***

10.779** 19.209 De 4.200 atendidos, 3.420 (81,4%) participaram até os primeiros 6 meses do projeto. Desses, 1.200 (28,6% do total original) continuaram após os 6 meses. Ao final da incubação, existiam 100 empreendimentos individuais e 70 coletivos, sendo que em 2002 estavam consolidados 50 e 34, respectivamente, gerando renda e ocupação para 478 pessoas, ou 11,4% do número original.

Central de Crédito Popular – São Paulo Confia

Necessidade de ferramentas e condições que possibilitasse a geração de renda de forma autônoma, individual ou coletiva

6.663 microcréditos financiados (até o início de 2003), com valor acumulado de R$ 5.171.890,00. Valor médio do financiamento: R$ 970,00

22.960 Central de disseminação de créditos para incentivo a formação de micro empreendimentos individuais ou coletivos. Em 2001, toma forma de Oscip, articulando diversas (12) e significativas instituições, sob a coordenação da SDTS. Mudanças na forma de funcionamento do Programa, com a implantação da metodologia de Unidades de Grupos Solidários e concentração em bolsões de pobreza. Aumento número de empréstimos e redução do valor. Aumento de 125% no número de créditos, entre 1º e 2º semestre de 2002 e mais de 42% entre 2º/2002 e 1º/2003.Mais de 126 agentes trabalhando na disseminação do micro crédito, em dezembro de 2001

* Numero de beneficiários Bolsa Trabalho, Começar de Novo e Operação Trabalho recepcionados pelo Capacitação Ocupacional em 2001 e 2002 **Beneficiários dos Programas Bolsa Trabalho e Começar de Novo recepcionados pelo Oportunidade Solidária nos distritos atendidos em 2001 e 2002

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Quadro 14: Programas da estratégia de inclusão social: alguns resultados (cont.) PROGRAMAS DE DESENVOLVIMENTO LOCAL

Programa Diagnóstico Número de Beneficiários (2001-2004)

Outros resultados

Programa de Desenvolvimento Local – Programa de Reestruturação Produtiva e Relações de Trabalho

Necessidade de recuperar noção de planejamento, sob duas dimensões: setorial e territorial

No final de 2002, havia 12 fóruns distritais em constituição e outros dois já em funcionamento. 48 parcerias firmadas, em nove fóruns setoriais, entre a SDTS e instituições diversas: empresariais, trabalhistas e universitárias

Programa Sistema de Alocação Pública do Trabalho - São Paulo Inclui

5.740

TOTAL 490.401 (sem dupla contagem )

Fonte: elaborado pela autora a partir do material examinado

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6.2.2 - Considerações sobre a estratégia

Seguindo o mesmo conjunto de pontos examinados quanto ao BH Cidadania, tem-se a leitura

do Programa de São Paulo a partir dos elementos de empoderamento e ampliação de

capacidades e autonomia, da gestão da intersetorialidade e o papel do território na estratégia

de intervenção. Trata-se, sem dúvida, de uma estratégia ambiciosa, e que certamente merece

avaliações sobre seus resultados de forma bem mais aprofundada do que será feito aqui.

Importa salientar que a concepção da estratégia de São Paulo permite perceber de forma clara

elementos mobilizados nos capítulos anteriores, na percepção da pobreza como fenômeno

multidimensional, cuja estratégia se apóia fortemente na transferência de renda mas não se

limita a ela, estando o repasse de recurso sempre condicionado à proteção e ao fortalecimento

de ativos, poderíamos dizer, recuperando termos identificados na literatura.

a) Autonomia, empoderamento, desenvolvimento de capacidades

O programa de inclusão de São Paulo adota uma perspectiva ampla da pobreza, entendida ao

mesmo tempo como ausência e precariedade de renda, altos níveis de múltiplas privações e

atenção aos aspectos menos tangíveis presentes em sua produção e reprodução. Não só nos

seus fins, mas também nos processos, pode-se evidenciar a preocupação com a diretriz dos

direitos, autonomia e empoderamento dos grupos atendidos, conforme salientado por Campos

(2004). O tratamento utilizado nas correspondências dos programas com o público beneficiado

evidenciam o ponto, ao expressar um horizonte de direitos e respeito aos cidadãos254. Um

elemento é paradoxal na estratégia. Embora parta de uma concepção abrangente da pobreza, o

254 “Outro aspecto importante aí foi o envio de correspondências, por meio das quais a SDTS comunicava às pessoas que, verificada a adequação entre as suas características declaradas e aquelas exigidas pela legislação dos programas sociais, elas deveriam comparecer em local, dia e hora meticulosamente definidos para a assinatura de um documento que formalizava a sua incorporação a esses programas, para a alocação em atividades de capacitação cidadã e ocupacional e, também, para a entrega do cartão magnético que viabilizaria o recebimento dos recursos monetários. O texto dessas correspondências deixava extremamente claro que os beneficiários eram, desde aquele momento, detentores de todos os direitos garantidos em lei aos participantes daqueles programas. Além disso, que o critério de escolha utilizado para a seleção era a perfeita identidade entre os seus atributos individuais e familiares declarados anteriormente no cadastramento, por um lado, e aqueles necessários segundo a legislação (residência há mais de dois anos na cidade, idade compatível com os programas, renda familiar per capita abaixo de 1/2 salário mínimo), por outro lado. E, por último, que todos os beneficiários seriam adequadamente atendidos no local, dia e hora mencionados na correspondência, de forma que ninguém deveria se preocupar além do necessário com a formalização de um direito que já estava garantido desde aquele momento. Nada menos que 95,4% deles acusaram o recebimento dessas correspondências, sendo que elas ainda informavam que uma central telefônica gratuita (o call center mencionado acima, com capacidade para 20.000 atendimentos diários) estava à disposição para o esclarecimento de quaisquer dúvidas. Os beneficiários que se utilizaram dessa central chegaram a 13,5%, sendo que 71,5% deles afirmaram ter assim resolvido todas as suas dúvidas a respeito dos programas” (Campos, 2004, pp. 258,259).

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público alvo da intervenção é identificado a partir do corte de renda, dado pela linha de

pobreza. Sobre esse ponto, pouco é dito nos documentos examinados, mas Campos (2004)

ressalta essa fragilidade, ao apontar que a definição do público a ser atendido pela estratégia

de inclusão segue um recorte de renda, dado a partir de um parâmetro de valor tão baixo255.

A estratégia de inclusão tem um elemento que se refere à preocupação central com a dimensão

dos ativos que os indivíduos possuem e que são necessários para a redução da condição de

vulnerabilidade. Todo o desenho da estratégia sustenta-se por essa perspectiva básica. Nas

palavras dos formuladores da política, a transferência de renda

“funciona como redução do custo de oportunidade – de manter as crianças na escola (Renda Mínima); de ampliação de conhecimento, aumento da escolaridade (Bolsa Trabalho); de valorização de habilidades básicas e aquisição de novas competências (Começar de Novo e Operação Trabalho)” (Pochmann, 2002, pp. 74,75).

Existe no desenho da intervenção uma preocupação central com a dimensão dos ativos e da

criação de capacidades e de fortalecimento de dimensões psico-sociais mais positivas para o

enfrentamento da exclusão. Os programas redistributivos concebem a transferência de renda

como criação de empoderamento, na medida em que buscam reter crianças e jovens na escola

ou propiciar formação profissional, por exemplo. São concebidos como necessários, mas

insuficientes como estratégia de saída da condição de pobreza. Por isso sua articulação com os

programas emancipatórios, orientados para fortalecimento da autonomia e das capacidades dos

indivíduos. O Programa de crédito popular é um exemplo de um tipo de ação voltada para a

criação de ativos. A renda para investimento e criação de novas oportunidades de trabalho é

fundamental como elemento de enfrentamento da pobreza; e ainda que o valor médio

concedido seja pequeno – em torno de 350 reais - o impacto pode ser significativo256.

Um Programa como Bolsa Trabalho, com transferência de renda vinculada à realização de

cursos e ações de fortalecimento das capacidades dos jovens, é uma estratégia promissora, de

acordo com o “modelo de ação” esboçado anteriormente. O foco nos ativos (capital financeiro,

255 Em algumas modalidades do Programa Bolsa Trabalho (Cursinho, Estágio e Emprego), contudo, os critérios permitiram a ampliação para atendimento de jovens com renda familiar total de até 4,2 SM, o que pode significar uma renda per capita de mais de um salário mínimo. Esse movimento de ampliação da linha de corte para identificação do público permite uma aproximação da linha de pobreza utilizada por outras instituições, como o Dieese, cuja estimativa do salário mínimo necessário (renda total de seis salários mínimos e uma renda per capita de 1 e meio salário mínimo oficial, Campos, 2004, p. 187). Também no Programa Começar de Novo, modalidade Emprego, amplia-se a faixa de renda para atender a um público com renda familiar total de até 4,2 SM. 256 De acordo com os resultados apontados, dois meses após a obtenção do crédito, verifica-se um aumento médio de 63% no faturamento dos negócios que foram fortalecidos via empréstimo (Oliveira, 2004, p. 67).

276

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humano, social) permite atuar de forma preventiva para alguns jovens, sendo que o programa

pode atuar como uma barreira para a queda na pobreza extrema e para enfrentar situações de

profunda vulnerabilidade.

Também é evidente a ênfase das ações nos componentes menos tangíveis envolvidos nas

situações de exclusão. No programa Operação Trabalho, por exemplo, o objetivo não era

necessariamente a ocupação. Buscou-se aliar capacitação para o trabalho e capacitação cidadã

ao exercício de atividades concretas de âmbito comunitário e de utilidade coletiva. Procurou-

se reforçar a auto-estima e a recuperação da cidadania. Para tanto, teria sido fornecida uma

atenção especial aos que se encontram na situação de desemprego, a partir da valorização das

habilidades básicas e da oferta de “estímulos sociais e psicológicos”, voltados para o

enfrentamento das condições depressivas que geralmente acompanham os que se encontram

envolvidos nessa condição de “quase exclusão do mercado de trabalho”. Uma especial atenção

é dada, portanto, aos aspectos psico-sociais decorrentes das situações de desemprego de longa

duração, e uma preocupação clara é com a não culpabilização do indivíduo por sua condição

de desempregado, o que é comum quando se focaliza exclusivamente a baixa escolaridade e a

ausência de capacitação profissional como responsáveis em última instância por essa condição

(Pochmann, 2002, p. 125).

De forma distinta, mas apontando para um mesmo conjunto de questões, as ações do

Oportunidade Solidária, por exemplo, buscavam o desenvolvimento de ações coletivas,

centradas no empoderamento e fortalecimento do capital social. No Programa São Paulo

Confia tem-se um outro exemplo da centralidade da dimensão coletiva da estratégia. Ao

enfatizar a metodologia dos grupos solidários tem-se o suposto da confiança, entendida como

um importante elemento de capital social257. Na avaliação de alguns resultados, ainda que

preliminares, aparece a convicção de que com as experiências desses programas, houve uma

“grande mobilização das forças positivas dos sujeitos cidadãos para o seu desenvolvimento estritamente humano e social; ao longo do processo, foram recobrando a auto-estima,

257 O programa de micro-créditos cumpre um papel central na expansão dos ativos, criação e fortalecimento de formas de cooperação e alternativas de geração de renda, no sentido e na diretriz de uma economia solidária. Esse é um ponto que expressa a convicção da gestão municipal com a dimensão coletiva e comunitária, uma vez que esse programa opera com base nas metodologias dos grupos solidários. Essa metodologia caracteriza-se pela atuação no interior das comunidades, com créditos em valores mais baixos e contando com a garantia de grupo solidário. Uma das maiores dificuldades dos pobres de terem acesso a crédito reside na ausência de bens e pessoas que possam atuar como avalistas. O grupo solidário é formado por quatro a sete pessoas que obtém um crédito em conjunto. O uso do recurso é individual, mas o pagamento das parcelas é conjunto. Essa metodologia baseia-se na confiança, entendida como um importante elemento de capital social.

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evidenciada não apenas no trato e na aparência pessoal, na diminuição do consumo de álcool e de dores variadas, mas na forma de se posicionar e se relacionar com colegas e monitores, na afirmação de habilidades profissionais e no desejo de voltar a produzir. Também houve um desenvolvimento da interação e da confiança mútua, que aos poucos foi se traduzindo em realizar tarefas coletivamente, organizar lanches e refeições coletivas, colocar à disposição saberes para o outro, compartilhar equipamentos, construir a idéia de um empreendimento coletivo, cuidar do espaço comum” (Pochmann, 2002, pp. 151,152).

Ainda que pareça idealizada, essa afirmação por parte dos agentes envolvidos no programa

espelha a possibilidade de se provocar senão grandes, pelo menos algumas alterações

significativas nas condições e nas habilidades das pessoas, ampliando seu potencial,

desenvolvendo suas capacidades.

Certamente o desenho da estratégia supõe um compromisso com o fortalecimento dos

ativos258, mas a implementação das ações permite levantar alguns pontos, relativos a essa

passagem de idéias às ações sobre a realidade. A partir de processos e descobertas que foram

feitos a partir do caso de São Paulo, pode-se identificar o conjunto de questões envolvidas e a

magnitude dos desafios a serem ainda superados quando se trata de desenvolver políticas para

enfrentamento da pobreza crônica. Os pontos seguintes partem desses exemplos e achados.

• Vulnerabilidade intensa e limites para o protagonismo e autonomia

Um primeiro ponto refere-se às características do público, que produziram impactos na

modelagem original dos programas emancipatórios. Os programas Oportunidade Solidária e

São Paulo Confia permitem discutir o ponto. O Programa Oportunidade Solidária sofreu

ajustes expressivos após seu primeiro ano de funcionamento. A frase seguinte permite

identificar o por quê.

“Uma das constatações é que o conhecimento sistematizado sobre como fazer a incubação de empreendimentos populares e solidários é insuficiente para responder às necessidades de uma população-alvo com tantas exclusões ou vulnerabilidades historicamente acumuladas (econômica, educacional, ocupacional, política-cidadã, interação comunitária, de saúde, entre outras)” (Pochmann, 2003, p. 156).

A partir da identificação das dificuldades advindas do perfil do público (baixo grau de

escolarização, baixa qualificação profissional, perfil pouco inclinado para ações 258 Principalmente com os ativos do trabalho, capital humano e capital social, conforme a tipologia de Moser, vista no capítulo anterior. Moradia e relações familiares seriam os outros dois ativos, que não são explícita ou diretamente considerados na estratégia de São Paulo. Outra tipologia de ativos (enfoque dos modos de vida) identificam ativos humanos, sociais, naturais, físicos e financeiros. Nessa perspectiva, a estratégia de São Paulo considera ativos humanos, sociais e financeiros como centrais em sua abordagem. No enfoque do manejo de riscos, por sua vez, os ativos considerados são humanos, físicos, financeiros e sociais, e nesse sentido a estratégia contempla ativos humanos, financeiros e sociais.

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empreendedoras, sentimento de incapacidade, impotência), optou-se por estabelecer outra

dinâmica nas atividades de formação do Programa Oportunidade Solidária para os vinculados

aos programas redistributivos: introduzir um módulo básico, que contemplasse questões de

cidadania, identidade, auto-estima, interação social para que no módulo posterior, os

indivíduos pudessem escolher “caminhos para a busca da inclusão social”. Além disso, houve

um redimensionamento do tempo previsto para as atividades no Programa Oportunidade

Solidária, que se ampliou de seis para dez meses para que o público beneficiário tivesse mais

tempo para formular uma demanda consciente pela formação de empreendimentos individuais

ou coletivos (Pochmann, 2002, p. 153; 2003, pp. 145, 146).

Dadas as características do programa e o perfil do público dos programas redistributivos, os

técnicos da SDTS envolvidos com o Programa Oportunidade Solidária passaram a considerar

a possibilidade de ampliar o público atendido, para incorporar pessoas que se encontravam em

vias de “cair na pobreza”, que se situavam na linha de risco da exclusão, grupos que não

estavam ainda na situação de pobreza extrema. Esse questionamento levou a que o Programa

desenvolvesse ações para grupos de pessoas que não se encontravam propriamente na situação

de exclusão (Pochmann, 2002, p. 153).

Esse ponto possibilita aqui algumas reflexões a serem exploradas. As ações de

empreendedorismo individual ou coletivo poderiam funcionar como ações preventivas e

mitigatórias ou de contenção dos processos de exclusão e queda na pobreza extrema. Os

resultados potencialmente poderiam ser mais efetivos do que os resultados alcançáveis junto

ao público em condição de pobreza extrema. Para os pobres crônicos, os que se encontram em

situação de pobreza mais extrema e envolvidos em processos de exclusão, essas ações podem

ser insuficientes e perdem a condição de barreira, e não seriam capazes de reverter processos

de exclusão e impulsionar uma inclusão sustentável para centenas de milhares de jovens com

baixíssimas chances no mercado de trabalho. Para que sejam efetivas, uma vez que são

necessárias para viabilizar a inclusão, as ações emancipatórias demandam ações prévias, de

natureza mais básica quanto à proteção. A permeabilidade do programa Oportunidade

Solidária para rever seu desenho original e ajustá-lo ao perfil do público merece destaque,

quando se consideram as análises sobre a flexibilidade necessária das intervenções sociais e a

sua capacidade de ser estratégica e responsiva às necessidades da população.

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Essa mesma questão – dos ajustes necessários para que as ações se adaptem aos problemas

identificados – se colocou para o Programa São Paulo Confia/Central de Crédito Popular. Um

primeiro resultado do Programa mostrou que apenas as linhas de crédito vinculadas ao fundo

próprio do programa conseguiram algum resultado no sentido de atingir os mais pobres dentre

os empreendedores, sendo que as linhas da Caixa Econômica e do Banco do Brasil não foram

capazes de atender a demanda, pelo fato dos requerentes não se incluírem nos critérios

(Pochmann, 2003, pp. 168, 169). Não apenas os agentes financeiros não foram capazes de se

adequar às exigências postas pelo perfil do público como também a metodologia precisou ser

revista e alterada profundamente. Também o programa de micro crédito precisou incorporar

mudanças nos valores de empréstimos e nos tipos de empreendimentos financiados, para ser

capaz de financiar empreendimentos criados no Programa Oportunidade Solidária.

Conforme afirma Campos (2004, pp. 209-213), inicialmente eram noventa agentes de crédito

em campo, localizados em dez unidades de atendimento e uma central 0800, para

agendamento de visitas dos agentes. Essa estratégia acabou gerando uma demanda dispersa na

cidade, com pouca produtividade dos agentes, que gastavam muito tempo e dinheiro com

deslocamento. A metodologia utilizada, além disso, era inadequada para atender a um público

extremamente vulnerável e sem condições de cumprir as garantias solicitadas. Houve um

esforço para alterar a estratégia de cobertura, com uma maior concentração de atendimento nas

regiões mais próximas das unidades operacionais. Do ponto de vista metodológico, alteraram-

se as exigências e as garantias, flexibilizando critérios ou estabelecendo outros (como o

passado positivo de crédito, por exemplo, para aqueles que apresentassem comprovantes de

pagamentos para compras a prazo), com resultados efetivos, além da introdução da

metodologia dos grupos solidários em dois bolsões de pobreza da cidade. As informações do

Programa permitem verificar que a introdução dos carnês (a utilização do passado de crédito)

como garantia de crédito provocou um aumento de mais de 3% no número de créditos

concedidos por agente no mês, enquanto que a metodologia dos grupos solidários fez subir a

média de créditos mensais por agentes de 9,5% no carnê para 20,38% com os grupos

solidários, em março de 2003. Percebe-se ainda que são créditos menores e em maior

quantidade, com prazo de empréstimo menor, em torno de oito semanas e com pagamento

semanal.

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A matéria prima que alimenta a metodologia dos grupos solidários e a política de micro-

crédito utilizada enfatiza a dimensão do capital social, fomentando a confiança, reciprocidade

e a cooperação entre pessoas de uma mesma localidade que decidem tomar de forma conjunta

um empréstimo para atividades de geração de renda. Após seis meses com resultados positivos

nessas duas localidades, foram abertas mais três unidades que utilizam a metodologia dos

grupos solidários, alterando expectativas e resistências quanto à viabilidade de experiências

baseadas na cooperação, confiança e reciprocidade em contextos marcados pelo

individualismo e pela fragilização dos laços sociais (Pochmann, 2003, p. 175).

As diretrizes da metodologia compreendem a emancipação sócio-econômica como importante

elemento da geração de renda, na recusa de formas de políticas paternalistas ou

assistencialistas e pela adequação dos critérios de elegibilidade às possibilidades e condições

do público beneficiário (Pochmann, 2003, p. 181). A metodologia dos grupos solidários foi

uma exigência posta pelas características do público atendido pelos programas redistributivos.

Optou-se pela implantação das unidades de grupos solidários em bolsões de pobreza, onde

existiam tanto famílias de baixa renda quanto maior mobilização e organização do tecido

social. A inclusão dessa metodologia possibilitou maior proximidade simbólica e real, nas

palavras de Campos (2004, p. 211), entre a iniciativa proposta e a população, fomentando a

participação e a confiança do público quanto ao programa.

Desses dois exemplos de alterações que foram feitas nos programas (Oportunidade Solidária e

São Paulo Confia) para ajustá-los às características e especificidades do público em situação

de pobreza crônica, pode-se apontar o tipo de desafios com os quais se deparam as estratégias

voltadas para a ampliação da autonomia e das capacidades em um público com tantas e tão

profundas privações.

A partir das considerações feitas a respeito da experiência de São Paulo, tem-se como

aprendizado que ações voltadas para a formação de cooperativas e atividades produtivas,

quando focalizadas nos grupos em pobreza crônica, encontram mais dificuldades e demandam

um tempo maior de preparação. Dessa forma, talvez essa seja uma estratégia mais adequada

no campo da prevenção e da mitigação do que na superação da pobreza. Voltaremos a esse

ponto adiante, sem a pretensão, contudo, de afirmar de forma taxativa essa relação, o que

demandaria, sem dúvida, muito mais argumentos e evidências. O objetivo aqui é colocar em

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perspectiva os desafios para desenvolver ações de superação da pobreza que sejam adequadas

e ajustadas às características dos públicos.

• Sobre o papel da capacitação para o empoderamento

Um outro ponto a ser destacado, diretamente relacionado ao anterior, refere-se à efetividade

das ações de capacitação para viabilizar um efetivo empoderamento de uma população em

condição de pobreza crônica. Os programas emancipatórios, tendo como público prioritário os

beneficiários dos programas redistributivos, buscavam criar condições para a ampliação das

capacidades de resposta dos indivíduos, na perspectiva de empoderamento e de fortalecimento

da autonomia, visando a emancipação em relação aos benefícios recebidos.

As ações efetivamente desenvolvidas para o empoderamento das pessoas concentravam-se,

sobretudo, em ações de capacitação, ainda que essas ações estivessem marcadas por conteúdos

mais amplos, que extrapolavam conteúdos mais específicos de uma formação profissional. A

adoção de módulos que consideram questões tais como auto-estima, cidadania, higiene e

cuidados com o corpo e com a saúde são importantes e mesmo centrais para públicos em

precárias condições de vida, mas pode ser pouco. Dada a magnitude das carências e

privações, essas informações podem significar e implicar mudanças substantivas nas

formas de vida e nas percepções dos indivíduos, mas sem dúvida são insuficientes para

viabilizar um efetivo empoderamento, capaz de emancipar as pessoas, permitindo a elas

trilhar um caminho diferente ao da entrada e permanência nas condições de pobreza

crônica. As tecnologias ou metodologias de ação necessárias e suficientes para possibilitar

essa saída não estão claras no programa de São Paulo. Não se depreende, a partir do material

examinado, uma proposta consistente e direcionada para atuar sobre as dimensões menos

tangíveis da pobreza. Embora os cursos de formação incluam conteúdos ligados a aspectos

menos tangíveis (auto-estima, identidade, cidadania), isso não parece suficiente para inferir a

existência de uma metodologia consistente e explícita de intervenção nesse campo. Que

mudanças objetivas são buscadas? Como, por quais mecanismos, os cursos contribuem para

isso?

• Incorporação social sem trabalho

O terceiro ponto a ser considerado aqui problematiza os limites de uma estratégia centrada no

trabalho como eixo da incorporação social em uma sociedade sem empregos ou trabalho para

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todos. A estratégia de São Paulo busca dar uma resposta local a um problema criado por uma

conjuntura internacional e nacional e essa condição é estruturalmente determinante dos limites

dos seus efeitos na alteração de mais longo prazo nas condições de pobreza no município.

Sabemos que essa discussão é complicada e não pretendemos nos estender muito aqui, mas

apenas pontuar um limite muito claro de toda a estratégia pretendida, que demanda um

investimento intenso, bancado pelo poder público, para viabilizar oportunidades de trabalho

para um público que já não tem lugar no mercado. Mantendo-se o mercado como está, as

chances de incorporação dos pobres crônicos por essa via estão fortemente comprometidas.

O relato da implantação do Programa Operação Trabalho permite ilustrar o ponto259. No início

do programa, foram inscritos 156 mil desempregados com mais de oito meses na condição de

sem trabalho260. Em uma segunda fase, foram selecionados 15 mil beneficiários e destes 11,8

mil foram os primeiros a serem atendidos, segundo os seguintes critérios por ordem de

prioridade: maior tempo na condição de desemprego, ser morador de rua em processo de

reinserção, com famílias de menor renda, com menor escolaridade e famílias com filhos

pequenos em estado de desnutrição, famílias monoparentais, com maior número de

dependentes, famílias com idosos, com filhos com medidas sócio-educativas, com piores

condições de moradia, portadores de necessidades especiais e egressos do sistema

penitenciário (Pochmann, 2002, pp. 130,131). Fica evidente, com base nos critérios de

seleção, a prioridade que o Programa Operação Trabalho confere aos grupos sociais em

situação de maior vulnerabilidade social261.

Mas dada a magnitude do problema e a limitada capacidade de atendimento, mesmo em

programas massivos como esses, tem-se como conseqüência a necessidade de desenvolver

formas de inserção alternativas ao trabalho, formas de atividades produtivas, integradoras, que

259 A fase de cadastro durou 23 dias, realizada em um total de 52 postos distribuídos nas cinco zonas geográficas da cidade (em 31 postos da administração direta, organizados e cedidos pelas administrações regionais, 12 postos da CET e nove ONGs e albergues públicos. Essas últimas eram destinadas ao cadastramento dos moradores de rua). Os cadastradores eram das administrações regionais, Secretaria de Assistência Social, Secretaria da Educação e Secretaria de Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade, totalizando 650 pessoas envolvidas nessa fase do programa. Essas informações são suficientes para dar uma luz sobre a magnitude e a complexidade das tarefas envolvidas em uma seleção de público a ser atendido em programas sociais dessa magnitude. 260 De acordo com o perfil dos cadastrados, o tempo médio de desemprego é de 2 anos e 6 meses, idade média de 33 anos, 65% do sexo masculino, 3% egressos do sistema penitenciário, 1% analfabetos, 62% com ensino fundamental completo ou incompleto, 33,2% com ensino médio completo ou incompleto e 1,4% com ensino superior completo ou incompleto, renda média familiar per capita de R$ 63,81 (Pochmann, 2002, pp. 131,132). 261 Pesquisa realizada com os quase 12 mil beneficiários do Programa Operação Trabalho identificou que eles se encontravam em média, há vinte e seis meses desempregados, sendo que nos últimos dez anos da vida dessas pessoas, elas estiveram ocupadas apenas 2 anos e meio (Pochmann, 2003, p. 97).

283

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não se pautem pela lógica do mercado formal ou do emprego assalariado. Não existem

empregos para todos, sendo necessário criar formas de trabalho protegido. Trata-se, sobretudo,

de criar novas possibilidades de atividades, que sejam diversificadas e capazes de atuarem

como eixos de incorporação social.

• A complexidade do empoderamento

Como foi discutido nos capítulos anteriores, promover a autonomia requer duas condições:

primeiro, abertura de oportunidades e segundo mudanças de atitudes e comportamento dos

beneficiários. O empoderamento, como processo e como resultado contingente de relações

entre o plano da agência e o da estrutura de oportunidades, emerge como algo buscado pela

estratégia de São Paulo. Os resultados em termos de atendimento são expressivos, mas

parecem ser menos robustos se observados sob o prisma de expansão da autonomia ou das

capacidades. Para promover a autonomia efetiva, contudo, são requeridas intervenções

abrangentes e intensas, por longos períodos de tempo, para que essas sejam capazes de

produzir alterações duradouras, ainda que não seja simples definir que tempo seria adequado

para tanto. A experiência de São Paulo não contou com essa condição. O tempo de

intervenção não foi suficientemente longo nem para garantir a maturação e a consolidação da

estratégia e muito menos para provocar os resultados desejados. Entretanto, se considerarmos

as condições de partida, pode-se ter indícios do que significou a estratégia desenvolvida em

São Paulo.

“Uma fotografia, que congelasse o cenário onde vive a maioria dos participantes do programa, revelaria uma ausência quase que absoluta de recursos materiais e financeiros que possam ser dinamizados, mobilizados e potencializados pela comunidade local; pessoas com sua cidadania esmagada por décadas de assistencialismo e subordinação e uma comunidade excluída do acesso aos direitos sociais básicos e aos recursos cognitivos produzidos pela sociedade. Também revelaria a fragmentação da ação pública nestes locais e um processo de desintegração das relações sociais que poderíamos chamar de virtuosas” (Pochmann, 2003, p. 143).

E continuando:

“...Quando os programas sociais ... começaram a ser implementados, habitantes e recém chegados, desconfiados e atônitos, desencadearam um processo de estranhamento e reconhecimento, isolamento e interação, conflito e integração, retraimento e participação, anonimato e protagonismo. Aos poucos o cenário paralisado começou outra vez a movimentar-se e desencadeou-se a interação básica necessária para alavancar os objetivos destas ações” (Pochmann, 2003, p. 143).

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A afirmação acima aponta para processos complexos envolvidos na interação das políticas

com o público beneficiário, questão que se torna mais premente em contextos ainda

fortemente marcados por relações clientelistas, paternalistas e baseadas em visões restritas

sobre a pobreza262. Nesses contextos, a promoção da autonomia encontra-se de antemão

debilitada. E qualquer esforço que seja feito no sentido de romper com essa barreira (como foi

o caso da estratégia da SDTS) tem o mérito de buscar alterantivas ainda que não seja

totalmente bem sucedido quanto ao êxito dessa tarefa.

Cabe terminar essa seção com uma afirmação, selecionada do conjunto extenso e instigante

das entrevistas discutidas por Campos (2004):

“Quando chega a eleição, dá cesta básica aqui e ali. Por que é que não dá emprego? Porque todo mundo é capaz de trabalhar. Acostuma o ser humano até a ficar acomodado. Porque ganha uma coisa aqui, ganha uma coisa ali, se acomoda, não quer mais saber de trabalhar. Por que que não arruma então emprego pros desempregados ao invés de dar uma cesta básica?” (expressão aqui utilizada para dizer do Programa Renda Mínima).

Outra entrevistada afirma no mesmo sentido:

“Se o pai dessas crianças, que pega o dinheiro do Renda Mínima, tivesse um emprego também ou não faltasse comida dentro de casa, tivesse um salário digno, nem precisaria desse Renda Mínima, entendeu? Se tivesse emprego. Porque o que o pai de família precisa é de emprego pra trabalhar” (Campos, 2004, p. 373).

Ao buscar a inclusão de pessoas e grupos cronicamente pobres, por tratar-se de um público tão

privado de proteção básica, a dimensão da autonomia pode ser uma meta ainda mais distante

de ser alcançada, dado o esforço e a magnitude das ações e das transformações que devem ser

processadas para que se possa efetivamente, e de forma realista, ter a expectativa da inclusão

social. E essa inclusão, como mostram as entrevistas realizadas por Campos, está fortemente

ancorada, como representação social, na possibilidade de uma inserção no circuito da

produção e do consumo, a partir de relações de trabalho e emprego, e não de caridade ou

favor, ou de políticas assistenciais ou compensatórias.

262 Campos (2004) recupera as representações e visões do público beneficiário sobre o Programa e pelas entrevistas realizadas percebe-se como a perspectiva dos direitos encontra-se distante do horizonte da maioria da população atendida. O que se tem, a partir dos depoimentos, é uma persepctiva que associa os programas de inclusão à boa vontade da Prefeita em ajudar os pobres, ainda fortemente marcada pela ótica do favor, da caridade e da benesse. Ou, de forma alternativa, o programa é visto como tendo “fins eleitoreiros”, o que também o distancia de uma perspectiva centrada nos direitos. A confiança, atributo básico para o processo de conversão necessário produzido pelas políticas de proteção, fica fragilizada e não pode se constituir no terreno sólido sobre o qual as ações de empoderamento possam frutificar.

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Vale ressaltar, em relação ao tema do empoderamento e ampliação das capacidades, a

necessidade de se atuar em duas frentes, no âmbito dos fatores endógenos e exógenos aos

indivíduos. Por um lado tem-se que contextos de estagnação, de ausência de crescimento

econômico e redução de postos de trabalho tornam os programas de transferência de renda

compensatórios, sem condições de propiciarem de fato a autonomia ou a independência dos

indivíduos frente aos benefícios e transferências. Nesse sentido, sem mudanças estruturais no

mercado de trabalho (alterações na estrutura de oportunidades) que possibilitem a inserção de

milhares de jovens e adultos nesse universo, não é possível buscar, de forma consistente e

realista, emancipação ou autonomia. Por outro lado, sem a alteração das dimensões menos

tangíveis, as marés cheias, quando e se vierem, não serão capazes de tirar da pobreza um

contingente expressivo de pessoas, uma vez que a pobreza se caracteriza por privações de

ordem não apenas material, embora estejam ancoradas, fortemente, na privação material, de

renda e de ativos diversos. Novamente aqui nos deparamos com a necessidade de atuar em

duas frentes, na dimensão micro, dos indivíduos e famílias, com atenção às dimensões menos

tangíveis e também no nível macro, das estruturas e instituições, abrindo oportunidades para

que o empoderamento possa se efetivar como processo e como resultado.

b) Intersetorialidade e redes multiníveis: os desafios da integração

A estratégia de inclusão social de São Paulo é interessante de ser recuperada aqui não apenas

pelo conteúdo da estratégia, por sua dimensão substantiva que agrega benefícios monetários e

não-monetários, salientando a importância de fortalecimento das dimensões menos tangíveis

da pobreza, o nível individual (das identidades e capacidades) e o coletivo (potencialidades

comunitárias). Outro elemento central da estratégia é a articulação (entre os setores) e a

integração (no território), o que exige um esforço de coordenação nada desprezível.

Nas palavras de Campos, a perspectiva básica era que

“só reunindo os esforços de instituições situadas nos âmbitos das administrações municipal, estadual e federal, direta e indireta, e, principalmente, no âmbito da sociedade paulistana, é que a questão da pobreza poderia ser enfrentada em alguma medida por essa secretaria” (Campos, 2004, p. 131).

A quantidade de parceiros mobilizados para a gestão dos programas é significativa do esforço

realizado para expandir a ação pública no município de São Paulo e permite enxergar a

experiência de São Paulo sob as lentes da perspectiva do governo relacional e multinível,

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ancorado nos eixos da intersetorialidade, da descentralização intra-urbana e da participação. O

primeiro nível de articulação é relativo à integração entre os nove programas. O segundo nível

refere-se à articulação entre os diversos setores da política municipal e o terceiro refere-se ao

esforço de integração entre as diversas instâncias de governo, seja com o nível estadual e

federal ou com o nível local ou regional. Essas questões são importantes para identificar

alguns limites para a efetiva operacionalização de concepções como a intersetorialidade.

Várias iniciativas de constituição de espaços de articulação demonstram o alinhamento da

estratégia com a perspectiva da governança, com prioridade para constituição e fortalecimento

de redes horizontais e multiníveis e para processos de participação popular e de ampliação da

democracia. O Programa de São Paulo contou com uma complexa estrutura de gestão. Foi

montado, no plano central, um fórum intersecretarias e empresas municipais, para a

construção da gestão articulada dos programas da SDTS, que dependiam da participação das

demais secretarias para sua efetivação. Além da articulação no âmbito do governo e suas áreas

setoriais, os programas demandavam o envolvimento significativo dos serviços e técnicos na

ponta, que atuavam nas estruturas descentralizadas do poder público e da sociedade civil.

Desde o início da estratégia há evidências do esforço empreendido para envolver os diversos

setores e diversas instâncias governamentais para a produção dos programas (Pochmann,

2002, p. 79). Houve um esforço imediato e decidido, por parte do governo municipal, em

integrar as ações dos distintos níveis de governo (federal, estadual e municipal, por um lado e

municipal e local, por outro) e dos diversos setores da máquina pública, envolvendo ainda uma

ampla rede de instituições não governamentais, centros de pesquisa, organizações

internacionais, na execução dos programas da estratégia de inclusão social. Logo no primeiro

mês de governo, quando existiam apenas duas pessoas responsáveis pela implementação dos

Programas Sociais Prioritários, foram visitadas todas as secretarias e empresas municipais,

com os seguintes objetivos:

“enfatizar os pontos de contato com os programas e políticas desenvolvidas por elas – ênfase na idéia de somar e nos efeitos sinérgicos resultantes -, fornecer elementos que permitissem contornar eventuais resistências, fundadas nas rotinas ou na tradição das burocracias envolvidas, e buscar parceiros/aliados para a concepção das políticas públicas presente nos programas sociais prioritários” (Pochmann, 2002, p. 79).

Para dar materialidade à perspectiva relacional que sustenta o Programa, foram criadas

instâncias coletivas, orientadas para gestão compartilhada, conforme demonstrado por

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Pochmann (Pochmann, 2003, pp. 41-46): Comissão intersecretarial para implementação

programas redistributivos263; Comissão de Desenvolvimento Solidário264; Grupos de Trabalho

das instituições parceiras de incubadoras e apoiadoras dos empreendimentos populares e

solidários265; Grupo intersecretarial na área jurídica266; Comissão das políticas de

microcréditos267; Fóruns setoriais de desenvolvimento268; Fóruns distritais de

desenvolvimento269; Fórum metropolitano de desenvolvimento regional270; Grupo de trabalho

263 Essa Comissão envolve diversas secretarias (educação, saúde, habitação, assistência social, esporte, meio ambiente, cultura, e diversos órgãos do executivo municipal, como Companhia de Engenharia de Tráfego/CET, Companhia de Processamento de Dados do Município/PRODAM, Anhembi, SPTrans, subprefeituras, dentre outros). Essa comissão tem a função de planejar, junto com a SDTS, todas as etapas de atendimento dos beneficiários dos programas redistributivos. A descrição das etapas e processo de cadastramento das famílias permite entender o esforço realizado para conseguir, em poucos dias e sob um intenso trabalho de coordenação, cadastrar a população para expansão dos programas nos 37 distritos, no segundo ano de implementação da estratégia. 264 Essa comissão é composta por representantes trabalhadores (cinco entidades), representantes empresários (sete entidades), cooperativas e empresas auto-gestão (sete); universidades/instituições de pesquisa (cinco). Esse órgão, de caráter consultivo, busca discutir questões relativas à viabilidade e sustentabilidade de iniciativas ligadas ao empreendedorismo popular e economia solidária 265 Sob a coordenação da SDTS, os grupos buscam o estabelecimento de ações conjuntas de implementação, monitoramento, avaliação das ações realizadas, via constituição de comissões temáticas (relações humanas e saúde do trabalho; organização e gestão de empreendimentos populares e associativos; produto, mercado e comercialização); seminários; reuniões com instituições parceiras, coletivas e individuais. Esse tipo de trabalho envolve especificidades, requerendo uma metodologia de trabalho com grupos, no âmbito da educação popular, que são fundamentais para articular cooperativas e empreendimentos calcados na perspectiva da auto-gestão. Dentre os parceiros, tem-se a Ação da Cidadania; Incubadora Tecnológica de Cooperativas populares da USP; Associação Nacional de Trabalhadores em Empresas de autogestão e participação acionária (Anteag); União e Solidariedade das cooperativas do Estado de São Paulo (Unisol); Coletivo de Empresários e empreendedores afro-brasileiros do Estado de São Paulo (CEABRA); Centro de Estudos e Pesquisas (CEEP); Instituto Cooperando; Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da FGV; Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da PUC/SP; Instituto Lidas; Integra Cooperativa; Núcleo de Ação e Pesquisa em Economia Solidária (NAPES); Instituto de Tecnologia Social (ITS); Rede Unitrabalho, dentre outras instituições que contribuíram com o Programa, transmitindo know how e compartilhando as ações de formação e capacitação (Pochmann, 2002, p. 148; 2003, p. 144).266 Grupo formado por procuradores e assessores jurídicos de diversas secretarias para estudar formas de participação dos empreendimentos populares nos processos de compras públicas da Prefeitura. 267 Formada por representantes de diversas entidades, responsável pela definição de linhas de ação e pela implementação da política: Prefeitura Municipal, da Associação Brasileira de Empresários pela Cidadania (Cives), Banco do Estado de São Paulo (Banespa), Central Única dos Trabalhadores (CUT), Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT), Confederação geral dos Trabalhadores do Brasil (CGTB), Central de Apoio ao Trabalho (CAT), Secretaria de Políticas para o Desenvolvimento Sustentável (SDS), Secretaria do Emprego e Relações de Trabalho do Estado de São Paulo (SERT), Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, (CEF), DIEESE, Sindicado dos Bancários de São Paulo, Sebrae-SP, além de dois importantes intelectuais, Paul Singer e Luiz Gonzaga Belluzzo (Pochmann, 2002, p. 174). 268 No total estavam funcionando dez fóruns setoriais em 2004. 269 Com três fóruns em funcionamento em 2003, contando com a participação de ONGs, associações e entidades diversas; 270 Agregando representantes dos 39 municípios da região metropolitana de São Paulo.

288

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intersecretarial de desenvolvimento econômico do leste e sul da metrópole271; Grupo

intersecretarial de políticas sociais272.

Além dessas comissões e instâncias de consulta e deliberação, tem-se o volume expressivo de

parcerias estabelecidas: universidades e centros de pesquisa estiveram envolvidos e próximos

da gestão dos programas, tanto na formulação quanto no desenvolvimento, no monitoramento

e avaliação das ações273. No Programa Oportunidade Solidária são quinze entidades parceiras,

entre instituições públicas, ONGs, entidades de classe (Pochmann, 2004, pp. 41-45; Campos,

2004, p. 192).

Em outros programas, a magnitude da articulação pretendida fica evidente. As ações

complementares para os bolsistas, principalmente do Bolsa Trabalho e no Programa

Capacitação em atividades de utilidade coletiva, permitem verificar a necessária integração

dos setores e nesse sentido cabe mencionar apenas algumas: O Bolsa Trabalho vincula o

repasse de bolsas a ações de formação e à realização de atividades junto a diversas secretarias

e empresas municipais274, com ênfase no desenvolvimento de ações comunitárias e sociais. O

Programa Operação Trabalho estabeleceu parcerias com todos os órgãos da Prefeitura, que

271 Formado por representantes de Secretarias e empresas públicas, sob a coordenação da SDTS, para definir a estratégia de desenvolvimento econômicos das regiões leste e sul da cidade; 272 Formado pelas secretarias das áreas sociais, como saúde, educação, assistência, serviços urbanos, abastecimento, cultura, que, sob a coordenação da SDTS, tinha a tarefa de definir as ações de cada secretaria em torno de quatro grandes questões sociais (ações de acolhimento, de combate à fome e pobreza, educação e combate ao analfabetismo, segurança urbana). 273 Além dos estudos de avaliação e de construção de indicadores, têm-se outras iniciativas que espelham a busca da proximidade maior entre poder público e instituições de pesquisa e universidades. O projeto Bolsa Empreendedor, por exemplo, com financiamento de 200 bolsas por um período de seis meses para estudantes universitários desenvolverem pesquisas, instrumentos e produtos relacionados, sobretudo, com os empreendimentos populares, demonstra essa preocupação. Nas três edições das bolsas, distribuídas através de concursos públicos, estiveram envolvidos cerca de 580 estudantes universitários, com aprovação de 369 projetos, mobilizando alunos de 20 universidades da cidade de São Paulo. Os projetos aprovados, em sua maioria, eram das áreas de humanas e centravam-se na avaliação da implementação dos programas emancipatórios, embora muitas vezes tenha ficado evidente a utilização de abordagens e de problemas já superados pelas equipes da SDTS. Entretanto, foi afirmada a contribuição de muitos estudos para readequação de procedimentos e metas, apontando problemas e sugerindo soluções. Projetos no campo da psicologia também foram significativos no conjunto dos projetos aprovados, buscando verificar a visão dos beneficiários sobre os programas e as representações sobre os programas e as relações estabelecidas com o poder público. Estudos e projetos no campo da gestão da informação foram relevantes para os processos e tecnologias de monitoramento e avaliação (Pochmann, 2004, pp. 110-112). 274 Alguns exemplos: jovens qualificados para prevenção e tratamento de DST/AIDS atuando como multiplicadores junto a outros jovens da comunidade; jovens capacitados para desenvolver ações para idosos no campo do transporte urbano; jovens formados em fotografia que atuam como multiplicadores de uma técnica de fotografia junto a professores do ensino fundamental (Pochmann, 2004, pp. 82,83).

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identificaram a possibilidade de abertura de 13.750 vagas de trabalho275. As parcerias

envolviam a elaboração de um plano de capacitação teórica e prática, com cronograma de

execução e com termo de compromisso assinado entre os órgãos envolvidos.

No Programa Capacitação Ocupacional e Aprendizagem em Atividades de Utilidade Coletiva,

por exemplo, estiveram envolvidas onze secretarias municipais e cinco empresas públicas

municipais, além de um grande número de entidades não-governamentais, contando com mais

de 50 instituições parceiras276, configurando uma rede de abrangência nacional com ação no

plano municipal e local, voltada para o tema da capacitação e da formação (Campos, 2004, p.

192).

Embora se afirme a articulação entre os diversos setores e programas, não fica claro, contudo,

em que ela consiste, ou até que ponto pode-se dizer que o fato de as diversas secretarias

participarem, oferecendo cursos ou vagas, pode significar uma ação integrada e articulada.

Para isso seria necessário verificar se os custos são cobertos pelas secretarias parceiras, a

magnitude dessa participação (quantos cursos, quantos capacitados), se existe uma

mobilização distinta dos agentes para se adaptarem aos critérios do programa ou de que forma

as ações desenvolvidas significam alteração nas rotinas, procedimentos e metodologias prévias

de intervenção em cada setor ou mesmo a sustentabilidade da estratégia. Esse esforço, que

envolveria uma pesquisa de avaliação, não será feito aqui.

Entretanto, basta olhar para o volume e a complexidade envolvida em um processo de

cadastramento de 156 mil pessoas, como o Programa Operação Trabalho, para ter uma

dimensão do esforço de articulação necessário para desenvolver as ações dos programas277.

Também o Programa Começar de Novo conta com a participação direta dos órgãos da

administração municipal para a execução das atividades de formação. Vale ainda a pena

considerar o esforço de mobilização e articulação entre órgãos internos e externos à Prefeitura

275 Secretarias de Educação, Saúde, Esportes, Habitação, Verde e Meio Ambiente, Cultura, Finanças, Assistência social, Gestão Pública, 28 administrações regionais, Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), SPTrans, Companhia Habitação (COHAB), Anhembi Turismo, Instituto da Previdência Municipal (IPREM), PRODAM (Processamento de Dados do município) e serviços funerários (Pochmann, 2003, p. 95). 276 Para detalhamento das instituições parceiras, verificar Pochmann, (2003, pp. 126-135). Por ora vale ressaltar a grande heterogeneidade entre elas, configurando um conjunto que abrange associações comunitárias, centros de apoio, centros de educação e de defesa de direitos, instituições religiosas, organizações não governamentais, sociedades e grupos de ação, centros de estudos e pesquisas, união das escolas de samba, empresas privadas, dentre outros tipos de entidades. 277 Para se ter uma idéia, uma ação de cadastramento durou 22 dias, envolveu 650 cadastradores em 42 postos na cidade (Pochmann, 2003, p. 95)

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para operar mais de 1.200 turmas simultâneas no Programa de Capacitação Ocupacional,

levando em conta o que isso envolve para ser operacionalizado278.

Pode-se dizer, entretanto, que tais ações só podem de fato ser consideradas como exemplos de

uma intersetorialidade de alta densidade caso envolvam uma articulação mais intensa e

permanente entre os setores; caso contrário, podem sinalizar um esforço de cooperação

momentâneo, que embora possa ter seu mérito, não corresponde a práticas intersetoriais

consistentes e fortes. Em que medida a ligação desenvolvida entre as diversas secretarias

constitui uma integração e qual a distinção entre integração, articulação, intersetorialidade e

transversalidade são questões pertinentes aqui. É bastante difícil estabelecer critérios

incontroversos para definir o que caracteriza uma ação integrada, mas certamente integração é

algo distinto da existência de algum tipo de ligação, como é o caso que ocorre quando se

encaminham indivíduos e grupos para outros serviços ou quando se faz um mutirão para o

cadastramento ou ainda quando se utilizam os equipamentos públicos de outros setores para

isso, por exemplo.

Conforme apontado pelo coordenador dos Programas sociais prioritários, o aspecto

verdadeiramente inovador dos programas Renda Mínima, Bolsa Trabalho e Começar de Novo

é o fato de serem “programas intersecretarias”: “Têm, portanto, uma concepção

programática e gerencial articulada entre as diversas secretarias de governo e empresas

municipais” (Pochmann, 2002, p. 100).

De acordo com Campos, pode-se apontar para alguns resultados mais tangíveis quanto ao

exercício da intersetorialidade na estratégia de São Paulo:

“Essa forma compartilhada de execução revelou ser um grande salto para assegurar a qualidade e a eficiência dos cursos ministrados. Dessa forma, onde uma secretaria ou empresa municipal executora do programa realizava uma ação e um serviço à população paulistana, os bolsistas passaram a desempenhar ações complementares, proporcionando uma relação de confiança com o poder público, como também um melhor conhecimento por parte desse sobre seus munícipes”(Cazzuni, apud Campos, 2004, p.172).

Existe o reconhecimento de que o trabalho conjunto de diversas secretarias viabilizou a

otimização dos custos, garantindo ações sem a necessidade de novos recursos financeiros; a

perspectiva da descentralização favoreceu o fortalecimento das subprefeituras (chamadas na

278 Inclusive na busca por espaços públicos e privados para serem usados na capacitação, priorizando a proximidade com o público beneficiário, em lugares a um ônibus de distância, no máximo, do local de moradia.

291

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administração paulista de governos locais) na implementação dos programas e na busca das

parcerias locais.

Além da articulação entre os diversos setores governamentais, tem-se o esforço de articulação

com agentes da sociedade civil e mercado. Uma afirmação elucida o ponto:

“O Programa Bolsa Trabalho deixou de ser uma iniciativa tão-somente do setor público para integrar os vários agentes da sociedade civil. Não fosse assim – como inicialmente o programa dispunha apenas dos recursos necessários para o pagamento das bolsas, das despesas de deslocamento do beneficiário e do seguro de vida – não se conseguiria financiar a realização das atividades de formação” (Cazzuni, apud Campos, 2004, p.172).

Entretanto, sem desconsiderar o enorme esforço realizado para compatibilizar a atuação

conjunta de tantas e tão distintas instituições, questões não equacionadas de articulação são

evidenciadas no próprio material produzido pela SDTS (Pochmann, 2002, 2003, 2004),

embora não apareça a discussão mais aprofundada sobre as causas das dificuldades ou uma

análise de suas dimensões. Com relação à integração das ações, foi apontada a necessidade de

maior articulação e integração específica entre os programas desenvolvidos na SDTS e as

secretarias municipais de educação, saúde e assistência, para encaminhamentos referentes a

analfabetismo, doenças crônicas e benefícios da LOAS (Pochmann, 2002, p. 121). Foi

identificado, dentre os beneficiados do Programa Começar de Novo, um alto percentual de

casos de analfabetismo e analfabetismo funcional, alcoolismo, hipertensão e doenças crônicas,

sendo que o encaminhamento e o adequado atendimento dessas demandas para as secretarias

competentes (educação e saúde) ainda não havia sido equacionado.

• As redes multiníveis

Além do esforço de construção de redes horizontais, a perspectiva das redes multiníveis, nos

termos examinados na literatura, é parte central da estratégia desenvolvida. Se as dificuldades

aparecem no próprio âmbito municipal, as relações entre diversos níveis de governo agregam

outro tipo de dificuldades.

A iniciativa de São Paulo buscou articular e mais do que isso, unificar, os programas de

transferência de renda municipal, estadual e federal. O esforço feito na implementação da

estratégia, principalmente nos programas redistributivos, foi o de compatibilizar os diferentes

valores dos benefícios dos programas municipal, estadual e federal de transferência de renda e

evitar discriminações entre a população pobre em função da fonte dos benefícios recebidos

(Pochmann, 2002, pp. 77,78). Embora tenha havido uma ação imediata e decidida por parte da

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Prefeitura de São Paulo no estabelecimento de relações com o governo federal, principalmente

para a inclusão do município de SP no programa nacional de renda mínima vinculada à

educação (Bolsa Escola), esse processo ocorreu sob intenso desgaste279.

Não foi um esforço desprezível e envolveu muita negociação para que finalmente fosse

acordado um modus operandi, de forma a viabilizar a unificação dos benefícios, com o poder

municipal assumindo a diferença dos valores repassados pelos programas federal e estadual de

transferência de renda. Os problemas e gargalos de financiamento, das relações

intergovernamentais e do processo de descentralização ganham toda a evidência quando se

busca unificar benefícios, tendo como objetivo atender da melhor forma a clientela alvo dos

programas. Programas sobrepostos e com valores diferenciados para um mesmo público

geram disputas, duplicação de esforços e desperdício de recursos, irracionalidade na provisão

de serviços públicos280.

Outro exemplo das dificuldades dessa articulação multinível torna-se evidente no caso do

Programa Bolsa Trabalho em relação às escolas de ensino médio, sob a responsabilidade do

nível estadual de governo. As articulações entre o Programa Bolsa Trabalho e a Secretaria

Estadual de Educação foram nitidamente precárias, sobretudo em razão do não envolvimento

do órgão estadual, ainda que essa aproximação tenha sido buscada pela SDTS. Grande parte

279 No programa federal, as famílias, para serem incluídas, tinham que ter crianças na faixa etária de 6 a 15 anos e renda familiar per capita igual ou inferior a meio salário mínimo. O valor do beneficio é de R$15,00 por criança, não podendo ultrapassar o teto de R$ 45,00. Nas negociações entre o governo municipal e federal, a Prefeitura teria proposto um valor único para as famílias, de forma a não gerar competição entre os programas ou desigualdade entre os pobres, uma vez que o repasse médio de acordo com o programa federal seria em torno de R$27,00 e o repasse do programa municipal era em torno de R$117,00. E também teria proposto um cartão único, o que teria sido recusado pela equipe federal. Embora não tivesse sido aceita a proposta de unificação dos dois programas, a prefeitura de SP aderiu ao Programa Bolsa Escola, com evidente prejuízo para todos, uma vez que as famílias do renda mínima passaram a ter dois cartões. O programa federal teve início em janeiro de 2002 em SP. A prefeitura se negou, contudo, a favorecer a desigualdade entre os pobres, mantendo valores de repasse tão díspares. E estabeleceu um acordo com o MEC, sendo que para cada R$ 1,00 do programa federal a prefeitura coloca R$3,34, unificando o valor do repasse às famílias (Pochman, 2002, pp. 95-97). A posição da Prefeitura de SP permitiu de fato evitar a sobreposição das ações, fragmentação do público e desigualdade no repasse dos benefícios. Esse esforço ganha ainda maior destaque quando se trata, tanto no nível estadual quanto no federal, de governos de base partidária distinta da existente no município de São Paulo. 280 O esforço do executivo municipal para viabilizar o objetivo da unificação não é, contudo, pouco ou barato: o valor médio do beneficio do Bolsa Escola (ainda vigente em 2003, depois transformado no Bolsa Família a partir de 2004) no município de SP era de cerca de R$ 22,00 (mínimo de R$ 15,00 e máximo de R$ 45,00). O benefício do governo estadual era de R$ 60,00. No Renda Mínima, o valor era de R$ 116,00. Para unificar o benefício, para cada um real colocado pelo governo federal a prefeitura entra com quase cinco, o que é bastante desproporcional, principalmente ao se considerar que todo o processo de cadastramento e operação do programa fica a cargo do município, como aponta Pochmann (2003, p. 72). Segundo cálculos apresentados, o município assume mais de 80% dos recursos para pagamento dos benefícios de transferência de renda e ainda todo o custo operacional para cadastramento e gerenciamento do programa, no caso, Renda Mínima.

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do público atendido pelo Bolsa Trabalho eram jovens que estavam inseridos, em sua maioria,

no sistema estadual de ensino, o que demandaria, como parte importante do projeto, uma

atuação conjunta com a escola para potencializar ou mesmo viabilizar os resultados

pretendidos com a intervenção281.

A construção da gestão intersetorial e do governo multinível, em suas formulações mais

densas, exigem a alteração de estruturas institucionais e organizacionais ou a adoção de

estratégias de gestão integradas ou mecanismos integradores, nas palavras de Raczynski

(2005), tais como gestão em rede, foco no território e na família, estruturas matriciais de

gestão. De toda forma, os elementos geralmente presentes na definição da intersetorialidade

envolvem o compartilhamento de recursos, responsabilidades e ações e, de forma mais radical,

exigem que os objetivos, estratégias, atividades e recursos de um setor sejam considerados a

partir dos objetivos, estratégias e recursos de outros setores, como aponta Cunil Grau (2005).

Alterações desse tipo não se processam de uma hora para outra e nem são fáceis de serem

realizadas, dadas as resistências de se incorporar lógicas específicas às políticas existentes e a

heterogeneidade de interesses e visões que as sustentam. O desenvolvimento de ações sociais

depende de uma multiplicidade de atores (organizações governamentais, ONGs com perfis

diversos, conselhos, associações, entidades filantrópicas e religiosas etc.) que apresentam

visões diferentes sobre os problemas e sobre os meios para enfrentá-los. Isso requer processos

de negociação e de decisão mais custosos e demorados, o que torna mais complexa a

elaboração e implementação das ações. A fragmentação das burocracias públicas e as disputas

que alimentam suas engrenagens também são características ou condicionantes das políticas

sociais e inserem desafios importantes de serem superados, principalmente para efetivar a

diretriz da intersetorialidade.

A iniciativa de São Paulo buscava alterar as condições de vida do público beneficiado, mas

também pretendia alterar os arcabouços institucionais, viabilizando procedimentos articulados

de gestão. A aposta da SDTS foi a de articular e desenvolver ações de forma intersetorial,

281 O executivo municipal estabeleceu, logo no segundo mês de governo, proposta de união entre o renda mínima e o programa Complementando a Renda (atualmente Renda Cidadã), desenvolvido pelo governo estadual, através da Secretaria Estadual de Assistência e Desenvolvimento Social do Estado. O público alvo do programa estadual é o mesmo do programa municipal e também nesse caso, a prefeitura complementa a diferença, uma vez que o valor do repasse do programa estadual é de R$ 60,00. Em abril de 2002 é assinado o acordo com o governo estadual. As relações com a secretaria estadual de educação não fluíram de forma a viabilizar uma efetiva cooperação entre as duas instâncias, não conseguindo garantir a cessão de espaços das escolas estaduais para cadastramento ou o acompanhamento da freqüência das crianças e adolescentes matriculados na rede estadual.

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sendo que a mudança do comando do executivo municipal afetou fortemente a SDTS e a

estratégia de intervenção. A estratégia não encontrou respaldo político na nova administração,

algo infelizmente bastante comum nas políticas públicas no Brasil. Mudanças constantes,

rupturas, descontinuidades, são fatores que podem significar perdas significativas de recursos

(financeiros, tempo, motivação das pessoas) e, o que é mais importante, comprometer o

estabelecimento dos vínculos estáveis e pautados na confiança entre agentes públicos e

beneficiários, minando as condições necessárias para uma estratégia exitosa de enfrentamento

da pobreza.

A estratégia de São Paulo buscou, por meio da articulação e da integração, recolocar a pobreza

ao alcance do entendimento e da ação de diversas secretarias, empresas municipais,

organizações diversas, governamentais e não governamentais. Mas as condições para o

enraizamento dessa perspectiva não estiveram presentes na gestão atual, que não garantiu o

respaldo político para sua continuidade. Sem esse apoio decisivo no nível político, o desenho

da estratégia não pôde existir sob sua forma original.

c) Território e desenvolvimento local

Na estratégia de intervenção de São Paulo, um conjunto de programas está orientado,

principalmente, para a revitalização do tecido econômico e para o desenvolvimento de

determinadas áreas territoriais da cidade. O Programa de Reestruturação Produtiva e Relações

de Trabalho/São Paulo Inclui, componente do terceiro bloco de programas voltados para o

desenvolvimento local, foi implantado em “distritos populosos, localizados fora do centro

expandido e com forte potencial gerador de ocupação e renda” (Pochmann, 2002, p. 203) e

tem como objetivo dinamizar as economias e o desenvolvimento local. O centro da estratégia

consiste em identificar nas regiões cadeias produtivas com maior capacidade de gerar

empregos; com maior capacidade de inovação; atividades pouco desenvolvidas que requerem

apoio do poder público para se expandirem (reciclagem, saneamento, tratamento de resíduos,

biotecnologia, etc.); atividades de base tecnológicas e solidárias e atividades que apresentem

melhores condições para exportação (Pochmann, 2002, p. 200). Foram definidos alguns

complexos de atividades nos setores na indústria, comércio e serviços , que receberam atenção

para diagnóstico, acompanhamento e proposição de ações em termos de políticas públicas

(Pochmann, 2002, p. 201). O eixo da estratégia do Programa reside em ações diversas,

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voltadas para fomentar a dinâmica associativa e produtiva local, conforme pode ser visto na

citação abaixo:

“Trata-se de articular, com os atores sociais das comunidades, fóruns setoriais de desenvolvimento, organismos fundamentais de discussão, geração de idéias, eleição de prioridades e calibragem da parceria entre os empreendedores locais e/ou a Secretaria. Com isso torna-se possível criar várias formas de ação coletiva capazes de estimular a economia da região. Por exemplo: a) buscar sinergias entre as atividades locais; b) criar grupos de trabalho com objetivos definidos; c) viabilizar cooperativas de compra e venda para os bens produzidos na região; d) buscar acordos de cooperação comercial e até mesmo técnica; e) influenciar, de acordo com estudos e critérios de desenvolvimento e bem-estar coletivo, a direção dos investimentos e das opções econômicas adotadas pelos empreendedores locais. Em outras palavras, ajudar, por meio de planejamento, a sustentabilidade das atividades, das ocupações e da renda gerada na comunidade” (Pochmann, 2002, p. 201).

Como se pode perceber, a estratégia do Programa apresenta um claro recorte econômico,

tendo sido formulada com o objetivo de fomentar a economia regional e local, a partir do

fortalecimento das ações de planejamento e coordenação, envolvendo os atores sociais da

comunidade (“governo municipal e comunidade”) no desenvolvimento de ações para o

desenvolvimento local. A perspectiva de projetos tecnológicos e de inovação constitui uma

dimensão central na estratégia e foi formalizada a partir de uma linha de ação (Banco de

Projetos Tecnológicos e Inovação) para conceder premiação e aporte para o desenvolvimento

de projetos (formulados por instituições de ensino e centros de pesquisa) considerados

inovadores e adequados para responder aos problemas enfrentados especialmente nas “áreas

com forte exclusão social”. Esses projetos podem ser viabilizados com o apoio do Programa

Oportunidade Solidária e com o financiamento do São Paulo Confia, em uma linha especial de

financiamento (Pochmann, 2002, p. 204).

O outro programa no âmbito dos Programas de Desenvolvimento Local é o São Paulo Inclui.

O objetivo do Programa é fornecer uma intermediação para a ocupação de postos de trabalho,

a partir de uma busca ativa que busca equacionar oferta e demanda de trabalho, com

prioridade para articular o público dos programas emancipatórios e redistributivos ao mercado

de emprego e trabalho - seja mercado de trabalho assalariado, central de serviços autônomos

ou intermediação de negócios populares. O Programa Oportunidade Solidária e o Capacitação

Ocupacional forneciam o comprovante de habilidades e, para os que não passaram pelos

programas, estes deveriam comprovar suas habilidades acumuladas na trajetória ocupacional

ou poderiam contar com o treinamento e a qualificação adequadas ao mercado de trabalho na

região (Pochmann, 2002, p. 213). A prioridade do Programa é para os beneficiários dos

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programas sociais prioritários (redistributivos e emancipatórios), sendo que esses são incluídos

no São Paulo Inclui próximo de sua região de origem quando se aproxima o término do prazo

para o recebimento dos benefícios monetários. O Programa encontra-se espalhado

territorialmente em pontos estratégicos da cidade, nos “mesmos lugares identificados pelos

programas redistributivos, emancipatórios e de apoio ao desenvolvimento local” (Pochmann,

2002, p. 212).

Com esses dois programas, buscava-se dinamizar o tecido econômico e o mercado de trabalho

local, visando o fortalecimento dos territórios. Percebe-se, na estratégia de São Paulo, uma

preocupação com políticas territoriais e não apenas políticas territorializadas, recuperando

uma distinção feita no capitulo anterior. Quer dizer, o território é em si mesmo objeto de

intervenção, quando se busca, nos Programas de Desenvolvimento Local, a articulação dos

agentes locais para a produção de maior dinamismo na economia e no mercado de trabalho

locais. A implantação, em cada região, do Centro de Desenvolvimento Local e Solidário,

sinaliza a preocupação com a criação de espaços públicos que servissem como ponto de

articulação dos agentes econômicos locais para impulsionar os programas de

desenvolvimento, mas também espaços nos quais a população da cidade e, principalmente, o

público dos programas redistributivos, pudessem obter informações e soluções para problemas

específicos (como recebimento de cartão magnético, por exemplo).

Nas palavras de Campos,

“os Centros de Desenvolvimento Local e Solidário, situados nos distritos acima referidos, se constituiriam como espaços de maior enraizamento dos programas sociais, pois, dada a sua localização, a família ou a pessoa contaria aí com mais facilidades para conhecer, se inserir e transitar pelas distintas gerações de programas que pretenderiam afastá-la ou distanciá-la das experiências da pobreza. Espaços que também estimulariam uma transformação das condições do mercado de trabalho em cada um desses distritos caracterizados pela atividade econômica parca e insuficiente, dado que as empresas e as demais instituições que atuam nessas localidades teriam aí referências institucionais mais próximas para a discussão e a negociação de medidas de aprimoramento dessa mesma atividade” (Campos, 2004, p. 147).

Cabe assinalar quanto ao lugar da categoria do território na estratégia do Programa que a

perspectiva adotada apresenta um caráter nitidamente econômico, o que a distancia da

abordagem da infra-estrutura social, conforme apresentada no capítulo anterior. Pode-se

sugerir que a estratégia de São Paulo focaliza uma parte da infra-estrutura formal, mas não

compreende grande parte do que está contindo nessa concepção, principalmente em termos de

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equipamentos e espaços públicos, infra-estrutura urbana, bens e se serviços existentes no

território.

O que se tem é o esforço dos programas de desenvolvimento local para viabilizar a formação

de redes, capazes de alavancar processos de desenvolvimento econômico e de expansão das

potencialidades locais, e uma perspectiva de fortalecimento de práticas associativas e

deliberativas, a partir da estratégia de criação de fóruns setoriais, regionais, metropolitanos,

com a ampliação das conexões e dos contatos entre os diversos agentes sociais no território. O

desenho da estratégia prevê, em sua modelagem, uma gestão ativa dos territórios, buscando

alterar as condições (ainda que apenas econômicas) aí existentes. Quer dizer, busca-se alterar

as condições dos territórios e não apenas as condições das pessoas que moram ali.

6.3 Belo Horizonte e São Paulo em perspectiva

Nesse capítulo, buscou-se explorar duas estratégias de intervenção voltadas para a inclusão

social. Sem a pretensão de avaliar resultados ou processos de implementação, a perspectiva

orientadora foi examinar, na contra luz, como se materializam no mundo empírico algumas

categorias identificadas no quadro conceitual. A questão dos constrangimentos (financeiros,

institucionais, políticos, culturais, institucionais) que limitam ou condicionam a

implementação de políticas públicas ou que podem impedir a efetividade de estratégias

inspiradas pelas concepções de empoderamento, intersetorialidade ou territorialidade nas

políticas sociais foi abordada apenas de forma secundária. Alguns dos constrangimentos foram

identificados a partir da experiência, embora não tenham sido analisados em profundidade,

pois o foco da análise foi identificar o marco conceitual, o desenho das políticas ou estratégias

de intervenção.

As duas experiências examinadas consideram o território como elemento da estratégia,

perseguem a intersetorialidade na gestão e priorizam a participação como diretriz política, mas

também se diferem quanto às ênfases dadas a diferentes aspectos ou dimensões da pobreza.

Enquanto a experiência de São Paulo concentrou-se na questão do trabalho, esse tema

permanece invisível na estratégia de Belo Horizonte. Embora partam de uma concepção

ampliada da pobreza, entendida como fenômeno multidimensional, multifacetado e

multideterminado, a identificação dos públicos é feita de forma unidimensional: a partir do

recorte de renda, em São Paulo e a partir do recorte territorial, em Belo Horizonte.

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Tanto em São Paulo quanto em Belo Horizonte o território é considerado como elemento da

estratégia de intervenção. Em Belo Horizonte foram utilizados vários índices (IVS,IQVU,

IRS) combinados em um índice síntese, que identificou nove áreas com piores condições de

vida e maior vulnerabilidade para serem as áreas piloto do BH Cidadania. Na fase de

expansão, outras 15 áreas estão sendo incorporadas (PBH,2004). Portanto, no desenho da

estratégia do BH Cidadania, o critério de focalização permitiu mapear regiões (dentro das

divisões regionais) onde as condições de pobreza e vulnerabilidade eram piores. Em São Paulo

a opção foi atender a todos os distritos, começando, entretanto, pelos distritos com maior taxa

de desemprego, maior índice de violência e menor renda familiar (Campos, 2004, Pochmann,

2002). Em um caso, o território é claramente o critério básico para focalização das ações e, no

outro, surge como forma de hierarquizar a intervenção, que apresenta, contudo, um viés

universalista, ausente na estratégia do BH Cidadania.

Embora o território seja uma categoria presente nas duas estratégias, não se tem, de forma

evidente, propostas ou concepções que caminhem no sentido de fortalecimento da infra-

estrutura social. A dimensão das ações comunitárias é mais evidente no caso de Belo

Horizonte, mas não se percebe uma estratégia consistente e conseqüente de intervenção no

sentido desse fortalecimento, ou um marco conceitual consistente que possa guiar a

intervenção. Somente na segunda fase do programa de Belo Horizonte a dimensão urbana

entra como parte da estratégia de intervenção, o que deve fortalecer o foco no território como

unidade de intervenção, articulando ações urbanas e sociais. Na experiência de São Paulo, o

território aparece apenas como locus de articulação de cadeias produtivas, e da dinamização da

vida econômica, sob a égide do desenvolvimento econômico local.

O território, ao ser considerado sob a perspectiva da infra-estrutura social, demanda uma outra

ordem de prioridades, que não são evidentes nos casos considerados. Conforme apontado

pelos agentes envolvidos no Programa Oportunidade Solidária, ao afirmarem os limites das

ações produtivas para um público em situação de pobreza crônica, trata-se, sobretudo, de

viabilizar um investimento maior em ações mais básicas, de construção de condições

primárias de cidadania social. O ponto afirmado a partir da experiência do Oportunidade

Solidária é a necessária criação e manutenção de espaços de socialização criativos e de

ampliação da cidadania, independente da consecução de empreendimentos formalizados. Esse

é um ponto importante que pode passar despercebido, mas que é fundamental para se entender

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os limites das estratégias de inclusão. A ausência de equipamentos e espaços públicos dos

quais as pessoas e grupos das comunidades periféricas possam se apropriar foi salientada

pelos agentes, o que corrobora os argumentos de Richardson e Munford: a centralidade

da estrutura de bens e serviços na comunidade para se estabelecer uma adequada infra-

estrutura social. A criação de redes e malhas de solidariedade e de integração em

comunidades degradadas passa, necessariamente, por uma adequada provisão de bens e

serviços de bem-estar, o que inclui equipamentos e espaços de uso comunitário capazes

de possibilitar a socialização e a interação social. Esses elementos, por sua vez, são

fundamentais para o alcance de empreendimentos baseados na cooperação, no estabelecimento

de redes e na confiança e disposição para trabalhos conjuntos de longo prazo.

Nas duas experiências tem-se o esforço de criar espaços e mecanismos de uma gestão

intersetorial das políticas de inclusão. Nas duas cidades foi organizado, no nível central da

administração municipal, o fórum intersecretarias e empresas municipais (São Paulo) e o

Grupo de Trabalho e a Câmara Intersetorial (Belo Horizonte), para a construção da gestão

articulada dos programas, que contavam com a participação das demais secretarias para sua

efetivação282. Além da articulação no âmbito do governo e suas áreas setoriais, as

experiências, tanto de São Paulo quanto de Belo Horizonte, demandavam um envolvimento

significativo dos serviços e técnicos na ponta, que atuavam nas estruturas descentralizadas do

poder público e da sociedade civil. Tanto em Belo Horizonte quanto em São Paulo as

experiências de descentralização intramunicipal são recentes e não é irrisório o esforço que

ainda precisa ser feito para dotar os governos locais (em São Paulo) ou as regionais (em Belo

Horizonte) dos elementos necessários para efetivar uma gestão estratégica e com resultados

mais efetivos. Dentre esses elementos destacam-se os recursos financeiros, humanos, materiais

e técnicos necessários para identificar as necessidades e problemas e oferecer respostas

adequadas a elas, com ênfase na participação e na articulação horizontal e multinível, com

foco na produção da autonomia das pessoas e famílias atendidas, no sentido de ruptura com

práticas clientelistas e de cunho assistencialista que ainda pautam a atuação de diversos

282 A execução de grande parte dos programas nas duas cidades tinha, como visto, o pressuposto fundamental do envolvimento direto de diferentes secretarias, instâncias ou níveis de governo, organizações e atores diversos da sociedade civil para a execução das ações e a consecução dos objetivos das estratégias de intervenção. As duas secretarias responsáveis pelos programas (SMPS, em Belo Horizonte e SDTS em São Paulo) eram enxutas, contando com relativamente poucos técnicos, o que exige que a execução das ações seja feita pelas secretarias e demais organizações públicas, governamentais ou não-governamentais.

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agentes na ponta, na interação direta com o público atendido. Além disso, a perspectiva da

intersetorialidade aponta para a necessária articulação com níveis estaduais e federal de

governo. Embora tenha sido feito um esforço considerável no sentido de fortalecer a gestão

intersetorial, não se pode afirmar como essa estratégia foi de fato implementada e com que

resultados.

Um outro ponto salientado quanto às estratégias de intervenção examinadas refere-se não à

estrutura intersetorial de gestão, mas ao conteúdo da intervenção. Sem dúvida existe nos

desenhos da intervenção uma preocupação central com a dimensão dos ativos e da criação de

capacidades e de atenção aos aspectos menos tangíveis da pobreza. Esse ponto é mais evidente

no caso de São Paulo, com a estratégia mais centrada nas questões de trabalho, escolarização,

qualificação e formação profissional. Como foi dito, os programas redistributivos concebiam a

transferência de renda como criação de empoderamento, na medida em que buscavam reter

jovens na escola ou propiciar formação profissional, por exemplo. O acesso a ativos é um

elemento central em uma visão estratégica de enfrentamento da pobreza, e a experiência de

São Paulo claramente considera essa dimensão, ao priorizar ações pautadas pela perspectiva

da economia solidária, centrada nos empreendimentos coletivos e nas ações de micro-crédito

para famílias pobres e indigentes, além do esforço nas ações de capacitação e no

fortalecimento de condições psico-sociais mais positivas para o enfrentamento das condições

de pobreza, principalmente em se tratando de pobreza crônica. Entretanto, uma constatação

que merece destaque é que situações de altíssima privação e pobreza crônica não são

totalmente reversíveis com ações produtivas, embora essas sejam centrais.

No caso de Belo Horizonte, a atenção aos ativos produtivos, relacionados ao trabalho e renda,

ainda é uma promessa. Entretanto, tem-se uma ênfase nas relações familiares, com as ações do

NAF (e de outros equipamentos como a Casa de Brincar) orientadas para as dinâmicas

intrafamiliares e para o fortalecimento dos laços aí estabelecidos. Essa dimensão não encontra

espaço na estratégia de São Paulo. A atenção às relações comunitárias, relativas ao aspecto da

organização social, também é mais presente no desenho do BH Cidadania, embora esse

programa careça ainda de um consistente marco conceitual, operacionalizado em objetivos,

metas e indicadores, de forma a permitir uma compreensão mais clara das transformações

desejadas nesse âmbito.

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CAPÍTULO 7 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

“envelopada miséria que vem do fundo dos tempos...” (Pochmann, 2003, p. 142)

Desde a promulgação dos direitos humanos, há sessenta anos atrás, o direito a uma vida digna

constitui um direito central283. Entretanto, esse direito ainda encontra-se, para uma parcela

enorme da população, não efetivado. O tema da pobreza é um dos mais centrais no contexto da

globalização, no qual a riqueza, a tecnologia e o conhecimento chegam a campos e níveis

altíssimos de realizações e no qual uma parcela ampla da população mundial permanece sem

acesso aos direitos humanos básicos e ao piso mínimo para viver com dignidade, por mais

discutíveis e relativos que sejam tais padrões. Convivemos com a pobreza há séculos e apesar

de toda a riqueza gerada, pessoas em grande quantidade morrem de fome, não sabem ler, não

têm acesso à saúde, vivem sem liberdade e de forma indigna e sub humana. Tais constatações,

óbvias, não são, contudo, sem importância. Acostumamo-nos com a pobreza, vista e sentida,

de acordo com Vera Telles (1999), como paisagem, algo que não nos incomoda, quando muito

se torna problema quando ameaça a ordem e a segurança social.

A conexão entre pobreza e direitos não se dá apenas pelo fato de o direito a uma vida digna ser

um dos direitos humanos fundamentais, mas principalmente porque a construção do problema

da pobreza e a conseqüente categorização de um grupo como pobres ou excluídos demanda,

do ponto de vista moral e societário, uma tomada de posição e desenvolvimento de ações de

inclusão e integração social284. Como diz Campbell (2004, p. 122), “o mal não é tanto a

pobreza em si, mas o fato de ela resultar de instituições humanas e de escolhas coletivas”.

Nessa parte das considerações finais cabe ressaltar alguns pontos, sem pretender reconstituir

toda a trajetória desenvolvida no decorrer do trabalho, mas apenas enfatizar questões que

merecem destaque, a partir da análise da literatura e do estudo empírico realizado. 283 Artigo XXII - Toda pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segurança social e à realização, pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade. Artigo XXV - Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle. 284 A pobreza observada sob a perspectiva dos direitos humanos é uma abordagem que encontra respaldo entre diversos autores que não foram considerados aqui. Um balanço sobre a questão pode ser encontrado em um artigo publicado por Tom Campbell, denominado “A pobreza como violação dos direitos humanos: justiça global, direitos humanos e as empresas multinacionais”, In: WERTHEIN, Jorge e NOLETO, Marlova Jovchelovitch Pobreza e Desigualdade no Brasil. Traçando caminhos para a inclusão social. Unesco, 2004.

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Sintetizando e articulando o conjunto de categorias e concepções identificadas, buscou-se no

trabalho salientar distintos enfoques sobre o fenômeno da destituição, com o foco na pobreza

crônica, identificando categorias e elementos teóricos convergentes e divergentes na tentativa

de configurar um quadro de análise mais adequado para compreender a pobreza e atuar sobre

ela. Cada um dos enfoques examinados – monetário, necessidades básicas, capacidades,

exclusão, vulnerabilidade – aporta elementos específicos para a conformação do quadro

analítico, mas pode-se sintetizar que as concepções que enfatizam o caráter multidimensional

da pobreza crônica, sua heterogeneidade e o peso dos aspectos relacionais em sua produção

e manutenção exigem, ou apresentam quase que como um contraponto no campo da ação

pública, a necessidade de políticas intersetoriais e territoriais, com um modo de provisão

dos serviços flexível, sensível às necessidades heterogêneas das populações e territórios,

com redes de serviços adequadas de atendimento e, substantivamente, quanto ao conteúdo,

orientadas para autonomia e empoderamento do público atendido, para a expansão de sua

base de ativos e adoção de estratégias mais efetivas para o enfrentamento das condições de

pobreza, principalmente aquela que é extensa no tempo e intensa na profundidade das

privações e na interação perversa entre seus vetores.

As pessoas e famílias em condição de pobreza crônica padecem de uma síndrome de privações

e aspectos de carências, mas também apresentam potencialidades e ativos que podem ser

mobilizados, desde que exista um suporte efetivo e articulado por parte das estruturas e

processos, traduzidos por meio das políticas públicas. A adoção de formas mais flexíveis e

relacionais de gestão pública local, “aderentes” às necessidades das pessoas, famílias e

territórios e desenvolvidas pelos diversos setores das políticas e níveis de governo de forma

mais integrada constituem estratégias potencialmente mais exitosas, segundo as concepções

mais ampliadas sobre pobreza que foram discutidas aqui.

São essas as categorias em torno das quais a tese se estruturou e que forneceram a matéria

prima para a elaboração do quadro analítico contra o qual contrastou-se, no capítulo anterior, o

desenho das duas estratégias de inclusão que se pautam por visões abrangentes sobre o

fenômeno da pobreza e desenvolvem estratégias de políticas afinadas com as diretrizes da

intersetorialidade e da territorialidade. Para além do quadro analítico e do “modelo de ação”,

tem-se algumas questões que merecem destaque, dada a centralidade que tiveram no trabalho:

a visão coletiva e estratégica da pobreza como condição básica para seu enfrentamento; as

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condições políticas e institucionais para a superação da pobreza e da vulnerabilidade; o tema

do território e infra-estutura social; a gestão da intersetorialidade como contra-face de uma

visão abrangente sobre a pobreza; a centralidade do âmbito local na provisão de proteção

social.

a) O primeiro ponto aqui destacado é que reconhecer a pobreza como problema social e

identificar grupos que se encontram em situação de privação são questões que exigem

respostas por parte do conjunto da sociedade. A existência de direitos envolve

obrigações legitimamente reconhecidas, remontam a deveres e acordos sociais. Não

existe de antemão um conjunto inalienável de direitos, mas sim direitos acordados por

uma comunidade e que implicam, portanto, a existência de pessoas e instituições

capazes de cumpri-los. Dessa forma, os direitos passam a ser algo mais do que apenas

garantias individuais, podendo espelhar o desejo comum por sociedades menos

desiguais e efetivamente mais democráticas. Os direitos seriam meios para se alcançar

padrões de dignidade e afirmar o compromisso societário com a autonomia de seus

membros.

As palavras de Pooge são claras quanto ao aspecto moral envolvido na questão da pobreza:

“sem um sentido de responsabilidade moral pela ordem econômica global que estamos impondo, não haverá a vontade política de reformar essa ordem , nem disposição, da parte dos governos e dos indivíduos, para mitigar seus piores efeitos” (Pooge, 2004, pp. 253,254)

Uma proposta como a que sustenta a renda de cidadania parte de suposições que enfatizam a

responsabilização do conjunto da sociedade com a vida de seus membros, com a convicção de

que a pobreza ou a exclusão não é algo que pode ser compreendido sob a perspectiva

individual ou que deve estar a cargo de políticas focalizadas e setorializadas. A proposta da

renda de cidadania se baseia em uma perspectiva universalista do problema social e resgata a

dimensão de valores comuns que justificam falar de comunidade,

“valores que hacen que personas diferentes tengan interes en convivir en un mismo cuerpo social; la focalización, en cambio, se sustenta sobre valores que hacen diferente al grupo, crea sub-comunidades, normatiza lo diferente, genera una dependencia prácticamente plena entre beneficiário y política” (Lo Vuolo, 2004, p. 37,38).

A perspectiva universalista que está na base dessa concepção sustenta-se na dimensão dos

direitos e não no mérito da necessidade. Essa última noção remete à celebração pública da

condição inferior dos pobres, que remete a eles a responsabilidade por sua própria situação de

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miséria. Nessa visão residual de pobreza, dissolve-se a responsabilidade pública, o que faz

com que o tema da pobreza permaneça desvinculado de um debate público sobre igualdade e

justiça, tal como afirmado por Vera Telles (2001). Essa visão da pobreza evoca compaixão,

mas não indignação moral, pois essa última

“só pode existir se houver uma medida comum de equivalência, tendo na lei a referência simbólica a partir da qual os indivíduos, na irredutível singularidade de cada um, podem ser reconhecer como semelhantes” (Telles, 2001, p. 32).

Ao remeter a um problema coletivo, que diz respeito a toda a sociedade e, principalmente, à

forma como a sociedade está estruturada, uma visão estratégica de superação da pobreza não a

considera como paisagem, como algo externo a um mundo propriamente social, como afirma

Telles. Sobretudo a visãoda pobreza no âmbito da questão social ultrapassa a idéia de mínimos

de sobrevivência (que remete a um estado regido unicamente pelas leis da vida e da morte) e

insere a discussão sobre pobreza na dimensão dos direitos, que remete fundamentalmente aos

princípios de igualdade social, o que interpela para responsabilidades coletivas para sua

superação. E nesse âmbito de questões, a pobreza não é algo que diz respeito a setores

específicos das políticas sociais, especificamente ao campo da assistência social. A

assistência social não pode estar destinada aos não-cidadãos, orientada para “minorar as

desgraças” ou ajudar os pobres a “sobreviver na miséria”, como afirma Telles. Ao

operar segundo os critérios pautados pelo “mérito da necessidade”, o que se tem é uma

regulação estática da pobreza, uma intervenção que não altera a paisagem da pobreza,

que a consolida como um fenômeno inscrito na ordem naturalizada das coisas. A

perspectiva de Telles articula-se diretamente com a proposta de Lo Vuolo, o que liga a

dimensão dos direitos a um modelo não residual de proteção social.

As ações de transferência de renda, quando concebidas como um fim em si mesmas, não

geram autonomia nem empoderamento e podem ser a expressão de uma visão limitada e que

não contribui de forma efetiva para a superação da pobreza. A transferência de renda com

exigência de cumprimento de condicionalidades (garantir a presença das crianças e jovens na

escola ou dos adultos nos cursos de formação) pode, por um lado, estar orientada para

diminuir riscos e vulnerabilidades presentes e futuras dos indivíduos e famílias; mas também

pode, por outro, conforme apontado na literatura, resvalar para a adoção de práticas

autoritárias e de caráter punitivo. Segundo Cohn, “as condicionalidades, se trazem consigo a

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dimensão da co-responsabilização, também carregam consigo um lado sombrio, que pode

reforçar nossa cultura social autoritária e punitiva” (Cohn, 2004, p. 14)

A perspectiva dos Programas de São Paulo, ao agregar renda e capacitação, dá um passo no

sentido de ultrapassar a visão residual ou o caráter compensatório das políticas focalizadas de

transferência de renda com verificação de carência, mas pode ser pouco. O tempo para o

recebimento do benefício é pequeno e pode ser insuficiente para propiciar alterações

substanciais nas condições de vida de indivíduos e famílias extremamente pobres, se não for

acoplado a alternativas reais e sustentáveis de inserção produtiva e de geração de renda e a

outras medidas de caráter estrutural. Principalmente são insuficientes se não vierem

acompanhadas de um outro conjunto de políticas universais, que garantam efetivamente o

acesso a serviços públicos de qualidade. A estruturação de sistemas de proteção mais

abrangentes, com maior cobertura e intensidade protetora, parece ser uma condição básica

para uma atuação estratégica no enfrentamento da pobreza. Os modelos que têm sido

seguidos, contudo, apontam para a retração do gasto social e para o desenvolvimento de

estratégias de �aráter residual, focalizadas e com base na verificação de carências.

Compreender a pobreza do ponto de vista das abordagens das capacidades, exclusão e

vulnerabilidade, levando em conta as concepções de território, comunidade, capital social,

infra-estrutura social, aponta para a dimensão coletiva da pobreza, demandando um enfoque

de ação centrado nas relações sociais, nas interações que ocorrem entre indivíduos e

instituições, entre usuários e agentes das ações públicas e governamentais. Adotar uma visão e

uma atuação estratégica diante da pobreza, como visto anteriormente, implica colocar o

problema da pobreza como objetivo generalizável, comum ao conjunto da sociedade e objeto

de atuação de todos os setores das políticas públicas, demandando um envolvimento efetivo

desses com as diretrizes de inclusão. Essa perspectiva impõe elementos para a ação política

que não permitem uma abordagem individualizada e individualizante do problema da pobreza.

Esse é o primeiro ponto a ser destacado como conclusão da tese. A utilização de uma

concepção ampliada de pobreza relaciona-se com uma visão mais coletiva do problema e

com estratégias mais universais para seu enfrentamento.

b) O segundo ponto a destacar é que a transposição de idéias para ações ou conseqüências

sobre a realidade é permeada por elementos do contexto. Quer dizer, distintas abordagens

sobre a pobreza trazem implicações para o desenho das políticas de enfrentamento, mas essa

transposição não se faz sob o prisma da ética ou da lógica, sendo condicionada pelas

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características econômicas, institucionais, políticas e sociais do contexto, que estabelecem as

respostas possíveis em termos de políticas públicas. Do ponto de vista dos constrangimentos

institucionais, tem-se a dimensão dos recursos, inclusive financeiros, e dos arranjos políticos e

organizacionais que podem atuar como fatores impulsionadores ou limitantes para uma

estratégia com efeitos e impactos positivos no desenvolvimento social. Em situações de

pobreza crônica, o êxito dos processos de inclusão está condicionado pela existência e

aplicação de metodologias consistentes, com a definição mais precisa de metas de resultados,

de condições institucionais estáveis, de legitimidade política, de infra-estrutura social

adequada para responder às demandas por bens e serviços. Esses elementos determinam

fortemente a capacidade de uma intervenção para atuar efetivamente como rede de proteção,

por um lado, e trampolim, por outro, no sentido de viabilizar a saída das condições de pobreza,

principalmente da pobreza crônica.

As questões relativas aos constrangimentos de diversos tipos não foram abordadas direta ou

prioritariamente aqui, embora os elementos do contexto tenham estado presentes, ainda que de

forma implícita, na temática do empoderamento. Esse é o segundo ponto a destacar: a

centralidade da concepção de empoderamento no desenho de estratégias para o enfrentamento

da pobreza crônica e a centralidade das políticas e de seus agentes como agentes catalisadores

do processo.

Uma formulação, presente em um dos enfoques da vulnerabilidade e que confere

materialidade à noção de empoderamento, focaliza as estruturas de oportunidades, que

viabilizam ou impedem a efetividade dos processos de empoderamento. Recuperando a noção

de empoderamento como algo contingente das relações entre o plano micro e macro, tem-se a

centralidade das estruturas de oportunidades abertas pelos agentes públicos que tornam viável

ou não o fortalecimento da capacidade dos indivíduos de fazerem escolhas e de transformar

tais escolhas em atos e resultados. A dimensão da agência remete à capacidade de fazer

escolhas e as estruturas de oportunidades apontam para os aspectos do contexto que

possibilitam transformar agência em ação efetiva285.

A moldura teórica dada pelo enfoque da vulnerabilidade parece ser a mais adequada para

permitir operacionalizar a perspectiva do empoderamento, da autonomia, da ampliação e

285 Por exemplo, a capacidade de escolha de uma mãe ou pai de colocar ou não o filho na escola não existe ou não se realiza se não existem escolas cujo acesso seja viável, dadas as condições e os ativos das famílias.

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fortalecimento das capacidades. Esse enfoque permite, mais do que qualquer outro, articular

os níveis micro e macro, o plano dos agentes e o da estrutura. A concepção de vulnerabilidade,

principalmente na abordagem do portfolio de ativos e também na abordagem dos modos de

vida, ao focalizar a quantidade, qualidade e diversidade dos ativos que os pobres possuem e as

estratégias que eles utilizam para prevenir, mitigar ou enfrentar as condições de risco (nível

micro) e as oportunidades abertas pelo Estado, mercado e sociedade (nível macro), fornece

um arcabouço abrangente e complexo o suficiente para permitir o desenho de políticas

adequadas à heterogeneidade das condições de pobreza. A concepção de vulnerabilidade

permite identificar situações distintas de indivíduos, domicílios e comunidades quanto à

propriedade de ativos, e distintas capacidades de resposta, permitindo desenhar estratégias

mais aderentes às necessidades e potencialidades identificadas, possibilitando atuar a partir das

características heterogêneas existentes nas situações de pobreza. No caso da pobreza crônica, a

base de ativos encontra-se geralmente muito danificada, havendo uma sobreposição de

carências, privações e estratégias de ação que acabam por levar às armadilhas da pobreza,

tornando mais difícil a interrupção do processo e a saída sustentável dessa situação.

Além de intervenções abrangentes em seu escopo, as intervenções voltadas para pobreza

crônica demandam a proximidade entre técnicos e usuários das políticas, em relações pautadas

pela confiança, estáveis e duradouras, de forma que as intervenções sejam capazes de produzir

as mudanças esperadas. São requeridas intervenções abrangentes e intensas, por longos

períodos de tempo. Dados o padrão histórico de descontinuidade e rupturas programáticas e

administrativas no aparelho de Estado e o traço clientelista que ainda permanece na

formulação e gestão de políticas sociais no país, estratégias de superação da pobreza

dependem fortemente que se ultrapasse a visão negativa e a desconfiança da população sobre a

ação do Estado no campo social. Alguns exemplos retirados da tese de Campos (2004) e

apresentados na descrição do caso de São Paulo permitem identificar essa situação, que ainda

permanece como um forte traço que contribui para minar as chances de construção de políticas

mais claramente emancipatórias.

Se o enfoque da vulnerabilidade e a categoria de empoderamento emergem como centrais para

a compreensão da pobreza, a perspectiva dos itinerários de inserção ou de incorporação social

(exemplificados no trabalho a partir do Programa Puente) pode ser uma tradução operacional

dessa diretriz no campo da ação ou da política pública, entendida como uma “tecnologia

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social” que busca atuar sobre aspectos tangíveis e menos tangíveis dos fenômenos de pobreza,

possibilitando o acesso a ativos, a bens e serviços públicos e sociais, fortalecendo capacidades

e habilidades, a partir de uma ação que leva em conta o protagonismo da família (o plano

micro) e que se sustenta no compromisso dos diversos setores públicos (plano macro) com o

processo de inclusão social. A partir desse recorte, pode-se considerar a dimensão do contexto

pela via da estrutura de oportunidades, como presente no enfoque da vulnerabilidade e, dessa

forma, ter mais clareza das interações entre o plano micro e macro, que contribuem para a

permanência da pobreza crônica e podem atuar para sua superação.

b) O terceiro ponto a ser aqui salientado refere-se também, de certa forma, à

complexidade da interação entre os planos micro e macro, interações que se

materializam no âmbito do território. Como visto nos capítulos anteriores, os

fenômenos de área existem e condicionam os processos de degradação e de

regeneração de espaços e comunidades, o modo de vida local, a vida e o cotidiano das

pessoas que habitam determinadas áreas urbanas. Em alguns lugares a pobreza é mais

densa, mais permanente, atinge de forma mais severa um conjunto de famílias e é mais

difícil escapar das “armadilhas” da pobreza. Os processos e mecanismos que intervêm

para produzir essas realidades não são fáceis de serem reconhecidos de forma não

ambígua, mas a literatura sugere que as concepções de capital social, infra-estrutura

social, de estigma e identidade poderiam compor possíveis matrizes explicativas.

Uma das idéias centrais é que as estruturas de oportunidades (dadas pelo mercado, Estado e

sociedade) presentes em certas áreas são tão limitadas que funcionam como estímulos

negativos que reproduzem mecanismos de exclusão social. Isso remete à importância da

atuação do Estado na produção desse tipo de segregação espacial, gerando valorização e

desvalorização de determinadas áreas, facilitando ou dificultando o acesso a bens e serviços, à

infra-estrutura etc. O argumento sobre o papel da infra-estrutura formal para a existência de

um espaço urbano e uma infra-estrutura social saudável ganha novamente aqui todo o sentido.

A abordagem dos modos de vida, que também ressalta o papel das estruturas e processos na

manutenção ou alteração das condições de vulnerabilidade de indivíduos, grupos ou regiões,

também encontra aqui uma correspondência.

Exemplos e evidências são abundantes. Os achados a partir da mensuração pelo Mapa da

Vulnerabilidade Social de São Paulo permitem evidenciar o óbvio e que pode ser

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generalizável para outras áreas urbanas. Foi observada alta incidência de homicídios entre

jovens em áreas de alta vulnerabilidade, de maior precariedade de acesso a serviços e acúmulo

de indicadores de riscos sociais e ambientais, embora existam problemas específicos em zonas

de baixa ou média vulnerabilidade. Um ponto ressaltado pelos elaboradores do mapa da

vulnerabilidade social de São Paulo (PMSP, 2004) e que merece ser ressaltado aqui é a relação

entre a presença do Estado por meio de equipamentos e serviços para o público jovem e a

violência nessa faixa etária. A relação sustentada é entre o vazio institucional e o estímulo à

violência, o que nos remete, novamente, ao tema da infra-estrutura social. Novamente aqui a

noção de infra-estrutura social emerge como potencialidade para configurar um arcabouço

capaz de modelar as ações dos agentes públicos e sociedade civil na recuperação e prevenção

de áreas e espaços urbanos degradados via uma combinação sui generis de organização

material de bens e serviços e de organização social. Essa última dimensão deve ser entendida

como espaço de manifestação de “auto-ajuda” comunitária, de grupos de ação, de

organizações comunitárias e de normas e regras de conduta, informais e extremamente

poderosas como elementos de controle social.

d) O quarto ponto refere-se ao tema da intersetorialidade, cuja primeira aproximação pode se

dar pela via da articulação entre políticas, no nível macro de análise. Nesse sentido, uma

primeira conseqüência de se partir de uma perspectiva compreensiva consiste na necessidade

de se articular políticas compensatórias, com foco no curto prazo e mais imediatas, com

políticas mais estruturais, que interfiram de forma mais profunda no fenômeno de reprodução

da pobreza.

Uma convicção básica desse trabalho, evidenciada pela análise da literatura, é a de que a

superação da pobreza depende da estruturação de um sistema de proteção social que combine,

consistente e articuladamente, estratégias universais e focalizadas, e que estas sejam

estabelecidas de forma coerente e aderente às demandas e necessidades de proteção social dos

grupos, indivíduos e regiões. Além de serem moldadas a partir das demandas e necessidades,

a efetividade das políticas focalizadas depende, em grande parte, da existência prévia de

políticas universais. Ambas orientações são necessárias, pois são complementares e utilizadas

para situações diferentes (Raczynski, 1999, p. 192):

“Para elevar la equidade, sin embargo, los programas de cobertura universal deben ser complementados con programas específicos orientados hacia los grupos mas vulnerables o los servicios más descuidados. La focalización es indispensable en programas tendientes a

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generar oportunidades para que los sectores desposeídos superen las causas de la pobreza o la vulnerabilidad” (Raczynski, 1999, p. 194).

Outro ponto, relacionado ao anterior, diz respeito à articulação necessária entre os âmbitos de

decisão econômica e social. O crescimento econômico é necessário, embora não suficiente,

para a redução e superação da pobreza. Para que a população pobre tenha condições de

incrementar sua renda, é necessário um ambiente favorável à geração de emprego e renda, que

exista dinamismo econômico capaz de gerar impactos positivos sobre a população mais pobre.

Entretanto, dada a alta taxa de desigualdade, o crescimento da produção pode não levar

necessariamente à redução da pobreza a não ser que as políticas econômicas enfatizem a

geração de incentivos para criar empregos e incrementar a capacidade produtiva dos setores

mais pobres, fortalecendo de forma efetiva seus ativos. A combinação de ativos que atuem na

prevenção, mitigação e superação da pobreza e vulnerabilidade remete também ao tema da

intersetorialidade, ou de uma ação mais articulada no campo das políticas públicas,

econômicas, urbanas, sociais.

A prioridade de redução da exclusão e da desigualdade, em uma visão estratégica, teria de se

tornar uma preocupação constante das políticas econômicas, da mesma forma que a

estabilidade e o crescimento econômico. Dito de outra maneira, o ponto consiste em reforçar

os vínculos entre políticas econômicas e políticas sociais, de aproximar os objetivos sociais e

inseri-los no âmbito das estratégias de desenvolvimento econômico; de inverter a posição

subalterna das políticas sociais em relação às econômicas e inserir o desenvolvimento social

como objetivo máximo, ao qual o desenvolvimento econômico deve estar vinculado. Sem essa

articulação não é possível desenvolver ações com resultados efetivos e sustentáveis no

combate à exclusão social. A superação da pobreza e da exclusão social exigem a expansão

das capacidades individuais e coletivas, e essa expansão se realiza fundamentalmente a partir

de uma combinação virtuosa entre políticas universais e focalizadas, de caráter estratégico e

compensatório, com foco no longo e no curto prazo, atentas à multidimensionalidade da

pobreza e à dinâmica dos processos, ancoradas na perspectiva da autonomia, desenvolvimento

e dignidade humana.

No caso da pobreza crônica, na qual a multidimensionalidade se evidencia ainda mais, tem-se

a convicção de que “para romper esta rígida configuración que perpetúa la pobreza a través

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de su transmisión intergeneracional se requieren políticas públicas coordinadas que influyan

simultáneamente en todos los ámbitos analizados” (CEPAL, 2004, p. 15).

e) Além da intersetorialidade como diretriz estratégica das políticas de proteção social

voltadas para pobreza crônica, tem-se a centralidade do nível local para seu enfrentamento. A

gestão pública contemporânea é marcada pela flexibilidade na prestação de serviços, pela

ênfase em atendimentos mais personalizados, pelo reconhecimento da multiplicidade dos

atores e interesses. Essa diretriz encontra mais condições de ser efetivada em contextos de

proximidade, nos quais os níveis de gestão conseguem ser mais sensíveis para captar

demandas, necessidades e problemas identificados. Novos modelos de proteção social têm

sido delineados tendo o nível local como locus de inovação e com promessas de apresentarem

melhores condições para o enfrentamento da pobreza crônica e de novas formas de exclusão

social. Esse processo de fortalecimento do poder local é uma das grandes tendências de

inovação na gestão pública.

Entretanto, embora seja reconhecido o papel do âmbito local de gestão para a expansão e

ampliação da democracia e para maior efetividade da ação governamental, tem-se dúvidas

sobre as possíveis implicações negativas quanto ao ganho de autonomia do nível local. Sem

entrar nesse debate, certamente importante, parece suficiente sinalizar que a fragmentação e o

ganho em proximidade que advêm com a revalorização do nível local de gestão são

acompanhados, em outro nível, pela redução da perspectiva universalizante presente na

provisão central ou nacional de bens e serviços de proteção social. Quer dizer, embora o nível

local de gestão possa ser mais adequado para capturar demandas e responder a elas, a

perspectiva igualitária e universalizante da produção de políticas é um atributo das políticas

centrais, que devem garantir equidade e a efetivação de direitos, para além da autonomia do

âmbito local de gestão. Mais uma vez a solução pode estar no equilíbrio entre essas duas

dimensões: a combinação entre ações desenvolvidas tanto pelo nível local, atentas às

especificidades dos problemas e capazes de adotarem formas de provisão de serviços com

maior grau de interação, e ações do nível nacional, que viabilizem maior igualdade e a

garantia de direitos sociais básicos.

As experiências de São Paulo e Belo Horizonte, exemplos de iniciativas locais de inclusão

social, são fundamentais para viabilizar a proximidade com as demandas e problemas e para

aumentar as chances de respostas mais adequadas a elas. Entretanto, uma atuação estratégica

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para enfrentamento da pobreza exige políticas desenvolvidas por outros níveis de governo e

que se situam fora do âmbito específico das políticas sociais. Sem essa compreensão tem-se,

recuperando a metáfora, o trabalho infindável de Sísifo, de levar a pedra ao alto da montanha

para vê-la cair novamente. Somente inserindo a problemática da pobreza no centro da questão

social, como problema que diz respeito ao conjunto das políticas públicas e não apenas às

políticas sociais, como uma questão que deve ser equacionada pelos distintos níveis de

governo e setores da sociedade é que se pode perceber a conexão necessária entre

conhecimento e ação, no sentido de viabilizar a utopia de construir novas possibilidades

humanas.

O caminho para essa utopia é longo e talvez o destino final não seja alcançável. Mas construir

conhecimento e ações mais efetivas no campo da pobreza e das políticas públicas não é uma

escolha, mas uma imposição ética e instrumental. Como afirma Pooge, recuperando Kant,

“um projeto imposto por obrigação moral não pode ser abandonado apenas por supormos, com base em nosso conhecimento atual, que ele talvez seja impraticável, mas apenas se ele for demonstravelmente impossível. Quando os rendimentos dos seis por cento mais ricos da humanidade são 70 vezes maiores que a renda da metade mais pobre, quando um terço de todas as mortes humanas se deve a causas relacionadas à pobreza, e quando a renda agregada global mantém-se em crescimento contínuo, seria ridículo alegar que a redução da pobreza é demonstravelmente impossível...fica claro que o que nos falta aqui não são conhecimentos especializados, mas sim o senso de responsabilidade moral e, baseada nele, a vontade política de financiar o desenvolvimento e promover reformas em nossa ordem econômica global” (Pooge, 2004 , pp. 255,256).

Insisto que essa deve ser a moldura na qual o presente trabalho se situa, que confere a ele seu

sentido, sua razão de ser. Recuperar a utopia, colocá-la na perspectiva dos direitos de

cidadania, enfocar a pobreza como paisagem intolerável em sociedades de abundância. Esse é

o sentido desse esforço, algo que se situa fora, mas que confere uma inteligibilidade de outra

natureza ao que foi discutido nesse trabalho.

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ANEXOS I - Mensuração da pobreza e das condições de vida em Belo Horizonte

A) IQVU: componentes e indicadores

VARIÁVEIS COMPONENTES INDICADORES

Equipamentos de Abastecimento

- Área por habitante de hiper e supermercados, mercearias, restaurantes e similares.

1-ABASTECIMENTO

Cesta Básica - Economia de compra possível.

2- ASSISTÊNCIA SOCIAL Equipamentos - Número de entidades de Assistência Social

3- CULTURA Meios de Comunicação - Tiragem por habitante de jornais locais

Patrimônio Cultural - Número de bens tombados, de grupos culturais.

Equipamentos Culturais - Número de equipamentos e freqüência de público.

- Área por habitante de livrarias e papelarias.

Programações artístico-culturais

- Número e freqüência às atividades culturais oferecidas.

Pré-Escolar - Taxa de matrícula e número de alunos/turma. 4- EDUCAÇÃO

- Primeira a quarta séries.

- Quinta à oitava séries

- Segundo grau

- Taxa de matrícula, no. de alunos por turma e índice de aproveitamento (para os três componentes).

Equipamentos Esportivos - Área por habitante de: quadras, piscinas, campos, clubes e congêneres.

5- ESPORTES

Promoções Esportivas - Número de eventos esportivos e freqüência de público.

Disponibilidade de habitação

- Área construída por habitante, sujeita a IPTU.

- Padrão de acabamento das moradias.

6- HABITAÇÃO

Conforto habitacional - Número de pessoas por dormitório.

Limpeza Urbana - "Nota" para coleta de lixo, varrição e capina.

Saneamento - Taxa e freqüência de fornecimento de água tratada.

- Disponibilidade de rede de esgoto.

Energia Elétrica - Taxa de fornecimento domiciliar.

- Iluminação pública.

7- INFRAESTRUTURA

URBANA

Telefonia - Porcentagem de ruas com rede telefônica.

- Qualidade das ligações (descongestionamento).

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Transporte coletivo - Possibilidade de acesso de transporte (pavimentação).

- Número e conforto dos veículos (BHTRANS)

Conforto Acústico - Número de ocorrências de perturbações ruidosas

Qualidade do ar - Autuações de veículos de transporte coletivo

8- MEIO AMBIENTE

Área Verde - Área por habitante com cobertura vegetal

Atenção à Saúde -Número por habitante de : leitos hospitalares, postos de saúde, outros equipamentos de Assistência Médica e equipamentos odontológicos.

9- SAÚDE

Vigilância à Saúde - Taxa de sobrevivência até um ano

- Taxa de nascidos com peso normal

Serviços pessoais - Número de agências bancárias, pontos de táxi e postos de gasolina

10- SERVIÇOS URBANOS

Serviços de Comunicação - Número de agência de correio, bancas de revistas e telefones públicos.

- Funcionamento dos telefones públicos

Atendimento Policial - Número de equipamentos, efetivo policial e viaturas.

- Tempo de espera para atendimento policial.

Segurança Pessoal - Ausência de: homicídios, tentativas de homicídios, violações de domicílio, estupros, roubos, porte ilegal de armas, atentados ao pudor e lesões corporais.

Segurança Patrimonial - Ausência de roubo e furto de veículos e a moradias e estabelecimentos.

Segurança no Trânsito - Ausência de acidentes com ou sem vítimas, ocasionados por direção perigosa de veículos, abalroamentos, colisões, choques, atropelamentos e capotamentos.

11- SEGURANÇA URBANA

Segurança Habitacional - Grau de disposição ao risco geológico

Fonte: Documento SMPS/Urbal, 2004

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B) Estrutura do Mapa de Exclusão Social de BH

Elementos Temas

Índice de vulnerabilidade social Acesso à moradia Acesso à infra-estrutura Acesso à escolaridade Acesso ao trabalho Acesso à renda Acesso à assistência jurídica Acesso aos serviços de saúde Garantia de segurança alimentar Acesso à previdência social

Representações especiais População de rua População em domicílios improvisados População analfabeta População com pós-graduação Trabalho infantil

Características populacionais Taxa de população por faixa etária Taxa de população por cor da pele Taxa de população por sexo

Índice de assistência social1 Composto de 8 indicadores de atendimento por serviços destinados aos vários segmentos da população mais vulnerável

Fonte: PBH/PUC-MG, 2000. (Documentos PBH/Urbal, 2004)

1 - Com o Indice de Assistência Social (IAS), busca-se dimensionar as ações mitigadoras das

políticas públicas de Assistência Social no município.

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C) Vulnerabilidade Social: composição do índice e peso das dimensões, variáveis e

indicadores

Dimensões de Cidadania

VARIÁVEIS INDICADORES

Densidade domiciliar - 0,57 Acesso a Moradia - 0,60

Qualidade do domicílio - 0,43

Ambiental - 0,23

Acesso aos serviços de infra-estrutura urbana - 0,40

Infra-estrutura básica

Cultural - 0,18 Acesso à educação Índice de escolaridade relativa

Taxa de ocupação - 0,44 Acesso ao trabalho - 0,70

Taxa de ocupação formal/informal - 0,56

Econômica - 0, 27

Acesso à renda - 0,30 Renda familiar “per capita”

Jurídica - 0,08 Acesso à assistência jurídica Acesso à assistência jurídica privada

Acesso aos serviços de saúde - 0,44 Mortalidade neo e pós-neo natal

Garantia de segurança alimentar - 0,36 Atendimentos de crianças por desnutrição

Segurança

de

Sobrevivência-0, 24 Acesso à previdência social - 0,20 Benefícios da previdência pública

Fonte: Documentos PBH/Urbal, 2004

D) Indicadores e Pesos Utilizados na construção do Indicador Composto de Risco à

Saúde.

Indicadores Fonte de Informação Peso Descrição

0,57 Mortalidade neonatal, excluindo as mortes por doenças congênitas 1,23 Mortalidade pós neonatal 0,20 Mortalidade por desnutrição, doenças respiratórias e Infecciosas em menores

de 5 anos (Nº óbitos por 1.000 habitantes)

Mortalidade

Total=2,00 0,75 Proporção de crianças nascidas com baixo peso 0,50 Proporção de crianças nascidas filhas de mães não adolescentes baixa Instrução

(menos de 8 anos de estudo) 0,75 Proporção de crianças nascidas filhas de mães adolescentes (10 a 16 anos)

Nascidos Vivos

Total=2,00 Favela 1,50 Percentual da área do setor censitário que está dentro de favela Censo 91 2,00 Renda média dos chefes de família Censo 96 2,00 Escolaridade média dos chefes de família

Fonte: Documento PBHS/Urbal, 2004

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ANEXO II - Organização dos serviços de Assistência Social – SMAAS - PBH

Serviços de Base Local – Assistência Social

Programas, equipamentos ou serviços

Descrição objetivos e público Componentes e ações

Núcleo de Apoio à Família - NAF

“serviço de caráter preventivo que atua de forma sistemática e intersetorial com famílias moradoras de áreas mais vulneráveis da cidade.

Objetiva ampliar a inclusão social dos grupos familiares no contexto local e da cidade, através do fortalecimento dos vínculos intra-familiares e comunitários e do encaminhamento e acompanhamento a bens e serviços governamentais e não governamentais”.

atividades de grupos

atividades comunitárias (oficinas de socialidade, grupos de convivência e promoção de eventos).

Casa do Brincar

Um “ equipamento da Política de Assistência Social para o atendimento às crianças pequenas (0 a 6 anos) e suas famílias em situação de vulnerabilidade com o objetivo de contribuir para o fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários, através do resgate do brincar, da cultura local, da convivência e das relações intrafamiliares.

Atende a cada hora em média 12 crianças acompanhadas por um familiar

Serviço de Socialização Infanto-Juvenil

“equipamento para atividades de promoção, proteção, desenvolvimento e socialização de crianças e adolescente, na faixa de 6 a 14 anos, que, no horário alternado ao da escola, freqüentam os Centros Infanto-Juvenis”.

atividades de apoio pedagógico, esporte e lazer, arte e cultura, suplementação alimentar e saúde.

Núcleos de Jovens

“programa dirigido aos jovens entre 15 e 18 anos que estão fora da escola e egressos de programas sociais e inseridos em contextos de violência..para que eles atuem de forma cooperativa e contribuam para a melhoria de sua comunidade”.

capacitação aos jovens acompanhamento permanente de orientadores sociais com a família, escola e comunidade

contribuição financeira ao adolescente

Grupos e Centros de Convivência para a 3ª Idade

“ atendimento através de encontros periódicos em espaços específicos da comunidade voltados para pessoas acima de 60 anos, para desenvolvimento de atividades que fortaleçam sua autonomia, socialização, inserção social”

Fonte: elaboração própria a partir material fornecido pelo Projeto Urbal

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Serviços de Base Regional – Assistência Social

Programas, equipamentos ou serviços

Descrição objetivos e público Componentes e ações

Serviço de Orientação Sócio Familiar - SOSF

Atendimento sistemático e continuado a famílias de crianças e adolescente em situação de risco pessoal e/ou social. Fortalecer função protetiva do grupo familiar, minimização riscos.

Muriki - Inclusão da Criança e adolescente com deficiência na comunidade

programa para inclusão das crianças e adolescente, com deficiência e baixa renda

capacitação de profissionais, capacitação de lideranças (sensibilização para a questão do deficiente na comunidade)

Serviço de atendimento à crianças e adolescente com medida de proteção em abrigo

garantir a transitoriedade da medida de proteção em abrigo através de ações de inserção familiar melhoria do atendimento nos abrigos

Supervisão entidades? 23 unidades

Serviço de atendimento ao adolescente com medida Liberdade Assistida (L.A).

atende de forma sistemática os adolescentes encaminhados pelo Juizado da Infância e da Juventude e com medidas de liberdade assistida

Serviços de atendimento ao adolescente com medida de Prestação de Serviços à Comunidade. (PSC).

atende aos adolescentes encaminhados pelo Juizado da Infância e da Juventude e com medidas de prestação de serviços à comunidade.

Plantão Social (Serviço para famílias com problemas de subsistência)

atendimento social à população com problemas de subsistência, famílias e adultos vulnerabilizados em situação de risco pessoal e/ou social. Serviço de referência para as situações de urgência e emergência, caracterizado como uma das “portas de entrada” do usuário na Política de Assistência Social.

entrevista/ estudo sócio-econômico concessão de benefícios orientações encaminhamentos.

Serviço de abordagem de rua

Serviço destinado à população de rua, que tem como objetivo construir processo de saída definitiva das ruas, através da intervenção de equipe de educadores sociais.

Serviço de Habilitação e Reabilitação de pessoa com deficiência.

inclusão das pessoas adultas com deficiência na família e na comunidade

visitas domiciliares/apoio sócio familiar, orientações encaminhamentos

Fonte: elaboração própria a partir material fornecido pelo Projeto Urbal

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Serviços de Base Municipal – Assistência Social

Programas, equipamentos ou serviços

Descrição objetivos e público Componentes e ações

Serviços de Convivência para crianças, adolescentes , adultos e famílias.

a) Centro de Referência da população de rua b) Centro Cultural do Miguilim (crianças e adolescente com trajetória de rua)

a) serviços de higienização, guarda-volumes, espaço para lavagem de roupas, acompanhamento social oficinas sócio-educativas b) oficinas de artes, esporte, cultura e lazer.

Abrigamento Temporário

a) República Reviver (república de 40 homens solteiros com trajetória de rua) b) República Maria, Maria (república, de 50 mulheres, com trajetória de rua, sozinhas ou com filhos até 6 anos) c) Se Essa Casa Fosse Minha (acompanhamento social de famílias e pessoas sozinhas inseridas no Programa Bolsa – moradia da URBEL) d) Albergue Noturno Municipal (população masculina, adulta de rua) e) Abrigo São Paulo (conveniada. Acolhida de famílias e adultos sozinhos, em situação de risco e vulnerabilidade. Suporte na realização das Campanhas Emergenciais Agasalhe-BH (intervenção no período do inverno) e BH solidária (intervenção no período das chuvas)

a) Socialização inserção no mundo do trabalho construção de saída definitiva das ruas b) serviço de acompanhamento encaminhamento social, inserção ao mundo do trabalho construção de saída definitiva das ruas c) d) pernoite, café da manhã, higienização, acompanhamento e encaminhamento social e) abrigamento / atendimento com permanência diurna, acompanhamento social, jantar, café da manhã, almoço (diurno), higienização.

Abrigos para Famílias Removidas de Áreas de Risco

Equipamento para abrigar famílias vitimizadas pelas chuvas, moradoras de áreas de risco em vilas e favelas da cidade, cadastradas no Programa Estrutural para Áreas de Risco e que tiveram perda total ou parcial das casas, sem condições de retorno às mesmas. a) Abrigo Municipal Pompéia b) Abrigo Municipal Granja de Freitas

Serviço de Longa Permanência para o Idoso

24 casas asilares conveniadas com a PBH que oferecem atendimento integral (moradia, alimentação, cuidados básicos de saúde, higiene e lazer)

Supervisão entidades

Supervisão de Entidades conveniadas que executam serviços de habilitação e reabilitação

Gerência de Inclusão das Pessoas Portador de Deficiência

Repasse do Benefício de Prestação Continuada, que assegura 1 salário mínimo mensal a idosos acima de 65 anos de idade e a pessoas com deficiência.

Serviço de Preparação para Inclusão Produtiva

Prepara o usuário da assistência social para a sua inserção no mercado de trabalho - Equipamentos de Preparação para a Inclusão Produtiva: Qualificarte Gameleira, Qualificarte Mariano de Abreu, Qualificarte Oficina Pública Profissionalizante

Serviço de inserção protegida ao trabalho Intermediação do trabalho ao portador de deficiência. Serviços de inserção em atividades produtivas. Serviço de formação sócio-profissionalizante

Fonte: elaboração própria a partir material fornecido pelo Projeto Urbal

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Quadro síntese dos programas e serviços da assistência social em Belo Horizonte

Complexidade baixa e volume atendimento alto

Complexidade média e Volume atendimento médio

Complexidade alta e volume atendimento baixo

Serviços de base local. Prevenção de riscos e de promoção da autonomia das famílias. ações no âmbito da socialidade, da convivência e fortalecimento dos vínculos familiares, sociais e comunitários.

Núcleo de Apoio à Família – NAF (serviço de caráter preventivo que atua de forma sistemática e intersetorial com famílias moradoras de áreas mais vulneráveis da cidade); Casa do Brincar (equipamento para o atendimento às crianças pequenas (0 a 6 anos) e suas famílias); Socialização Infanto-Juvenil (equipamento para atividades de promoção, proteção, desenvolvimento e socialização de crianças e adolescente, na faixa de 6 a 14 anos); Núcleos de Jovens (programa dirigido aos jovens entre 15 e 18 anos que estão fora da escola e egressos de programas sociais e inseridos em contextos de violência); Grupos e Centros de Convivência para a 3ª Idade (atendimento através de encontros periódicos em espaços específicos da comunidade voltados para pessoas acima de 60 anos).

Serviços de base regional. Proteção suplementar, que constitui a proteção frente a situações de vulnerabilidade. Nesse nível estão programas e serviços como o Serviço de Orientação Sócio Familiar (SOSF) e o Plantão Social.

Serviço de Orientação Sócio Familiar – SOSF (Atendimento sistemático e continuado a famílias de crianças e adolescente em situação de risco pessoal e/ou social com medidas de proteção); Muriki (Inclusão da Criança e adolescente com deficiência na comunidade); Serviço de atendimento ao adolescente com medida Liberdade Assistida; Plantão Social (Serviço para famílias com problemas de subsistência); Serviço de abordagem de rua (Serviço destinado à população de rua, que tem como objetivo construir processo de saída definitiva das ruas, através da intervenção de equipe de educadores sociais); Serviço de Habilitação e Reabilitação de pessoa com deficiência; Serviço de atendimento à crianças e adolescente com medida de proteção em abrigo

Serviços de base central. Proteção integral, seja em termos de moradia ou trabalho protegido. Nesse nível estão os programas para meninos de rua e para adolescentes autores de ato infracional

Serviços de Convivência para crianças, adolescentes , adultos e famílias (equipamentos para população de rua);

Abrigamento Temporário para população de rua;

Abrigos para Famílias Removidas de Áreas de Risco;

Serviço de Longa Permanência para o Idoso;

Gerência de Inclusão das Pessoas Portador de Deficiência;

Serviço de Preparação para Inclusão Produtiva

Fonte: elaboração própria a partir material fornecido pelo Projeto Urbal

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ANEXO III - Mensuração da pobreza e das condições de vida em São Paulo

Mapa da Vulnerabilidade Social de São Paulo

Fator 1 Fator 2

Educação - porcentagem de responsáveis pelo domicilio com ensino fundamental completo no total de responsáveis

- anos médios de estudo do responsável pelo domicilio no total de responsáveis no setor censitário

- porcentagem de responsáveis pelo domicílio alfabetizados no total de responsáveis

Renda - rendimento nominal médio do responsável pelo domicílio

- porcentagem de responsáveis com rendimento de até 3 salários mínimos, inclusive renda zero, no total de responsáveis

Idade e estrutura familiar

- porcentagem de adolescentes de 1 a 19 anos no total de pessoas residentes no setor censitário.

- porcentagem de responsáveis por domicílio com idade entre 10 e 29 anos no total de responsáveis

- idade média do responsável pelos domicílios

- porcentagem de crianças de 0 a 4 anos no total de pessoas residentes no setor censitário

Condições de habitação

- tamanho médio do domicílio no setor censitário

Gênero - porcentagem de responsáveis do sexo feminino com no máximo ensino fundamental no total de responsáveis

Fonte: elaborado pela autora a partir do Mapa da Vulnerabilidade Social da população da cidade de São

Paulo, 2004.

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Grupos identificados a partir do Mapa da Vulnerabilidade Social em São Paulo

Grupos Condição de privação números % Porcentagem de responsáveis por domicilio com renda de até 3 SM

Porcentagem de responsáveis com ensino fundamental completo, no total de responsáveis do grupo

Chefes do sexo feminino com até 8 anos de escolaridade

Porcentagem de jovens de 15 a 19 anos

Porcentagem de crianças de 0 a 4 anos

Grupo 1

nenhuma privação

660.287 6,3 7,7 90,6 18,4 6,5 6,0

Grupo 2 Privação muito baixa

1.642.744 15,8 20,3 73,9 39,5 8,1 6,4

Grupo 3 Baixa privação e idosos

1.705.694 16,4 30,3 57,7 63,7 8,8 5,8

Grupo 6 Média baixa privação e idosos

1.183.717 11,4 42,5 45,2 75,9 10,2 6,7

Grupo 4 Média privação e adultos

2.162.920 20,8 46,2 42,7 75,7 9,9 9,3

Grupo 5 Alta privação e jovens

779.509 7,5 67,2 25,2 86,4 9,8 13,6

Grupo 7 Alta privação e adultos

1.867.466 18 60,4 31,5 84,6 11,2 10,3

Grupo 8 Altíssima privação e jovens

399.312 3,8 75,9 19,1 91,8 11,1 13,7

total 10.401.649 100 40,1 51,1 64,1 9,5 8,4 Fonte: elaborado pela autora a partir do Mapa

Indicadores de Alerta

risco à infância - Proporção de crianças de 5 a 9 anos não alfabetizadas (também capta informações sobre alfabetização precoce, entre crianças de 5 e 6 anos) - Taxa de internação por doenças infecciosas de veiculação hídrica em crianças de até 5 anos de idade (por 100 mil habitantes deste grupo etário) - Taxa de internação em decorrência de pneumonia em crianças de até 5 anos (por 100 mil habitantes deste grupo etário)

risco à juventude - Percentual de mães entre 10 e 19 anos de idade no total de mulheres nessa faixa etária - Percentual de mães entre 10 e 19 anos de idade com até 7 anos de escolaridade, no total de mães jovens - Percentual de filhos de mulheres entre 10 a 19 anos de idade com baixo peso ao nascer (menos de 2, kg), em relação ao total de filhos de mães jovens - Taxa de homicídios entre pessoas de 15 a 29 anos de idade (por 100 mil habitantes deste grupo etário)

Fonte: elaboração própria a partir Mapa da Vulnerabilidade Social da população da cidade de São Paulo, 2004

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Políticas públicas

a) Acesso a serviços e equipamentos públicos b) Qualidade dos serviços c) acesso a serviços básicos (infra estrutura)

a) - Distancia média do grid ao ambulatório de baixa complexidade mais próximo - Distancia média do grid ao ambulatório de média ou alta complexidade mais próximo - Distancia média do grid ao ambulatório que oferece atendimento odontológico mais próximo - Distancia média do grid ao ambulatório que oferece pequenas cirurgias mais próximo - Distancia média do grid à Unidade Básica de Saúde mais próxima - Indicador de prioridade para instalação de novas unidades básicas de saúde - Distancia média do grid ao Núcleo Sócio Educativo mais próximo - Indicador de prioridade para instalação de novos Núcleo Sócio Educativo b) - Percentual de professores de 1 a 4 series com licenciatura completa - Percentual de alunos de 5 a 8 séries que estudam em escolas sem bibliotecas c) - Percentual de domicílios sem rede geral de água - Percentual de domicílios sem rede geral de esgoto - Percentual de domicílios sem coleta de lixo

Fonte: elaboração própria a partir Mapa da Vulnerabilidade Social da população da cidade de São Paulo, 2004

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