profissionais_medicinanuclear

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  “A atividade dos profissionais de Medicina Nuclear com o Iodo-131: um estudo em Psicodinâmica do T rabalho”  por  Leila Cunha da Silveira  Dissertação apresentada co m vistas à obtenção do título de Mestre em C iências na área de Saúde Pública. Orientadora principal: Prof.ª Dr.ª Maria Cristina Rodrigues Guilam Segundo orientador: Prof. Dr. Sergio Ricardo de Oliv eira  Rio de Janeiro, mar ço de 2012

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Tese sobre IOE´s em medicina nuclear trabalhando com radioiodoterapia.

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  • A atividade dos profissionais de Medicina Nuclear com o Iodo-131: um estudo em Psicodinmica do Trabalho

    por

    Leila Cunha da Silveira

    Dissertao apresentada com vistas obteno do ttulo de Mestre em Cincias na rea de Sade Pblica.

    Orientadora principal: Prof. Dr. Maria Cristina Rodrigues Guilam Segundo orientador: Prof. Dr. Sergio Ricardo de Oliveira

    Rio de Janeiro, maro de 2012

  • Esta dissertao, intitulada

    A atividade dos profissionais de Medicina Nuclear com o Iodo-131: um estudo em Psicodinmica do Trabalho

    apresentada por

    Leila Cunha da Silveira

    foi avaliada pela Banca Examinadora composta pelos seguintes membros:

    Prof. Dr. Milton Raimundo Cidreira de Athayde Prof. Dr. Marcelo Firpo de Souza Porto

    Prof. Dr. Sergio Ricardo de Oliveira Segundo orientador

    Dissertao defendida e aprovada em 21 de maro de 2012.

  • Catalogao na fonte Instituto de Comunicao e Informao Cientfica e Tecnolgica Biblioteca de Sade Pblica

    S587 Silveira, Leila Cunha da A atividade dos profissionais de Medicina Nuclear com o Iodo-

    131: um estudo em Psicodinmica do Trabalho. / Leila Cunha da Silveira. -- 2012.

    88 f.

    Orientador: Guilam, Maria Cristina Rodrigues Oliveira, Sergio Ricardo de

    Dissertao (Mestrado) Escola Nacional de Sade Pblica Sergio Arouca, Rio de Janeiro, 2012

    1. Radioistopos do Iodo. 2. Riscos Ocupacionais. 3. Aspectos Psicossociais. 4. Sade do Trabalhador. 5. Gerenciamento de Segurana. I. Ttulo.

    CDD - 22.ed. 363.11

  • A U T O R I Z A O

    Autorizo, exclusivamente para fins acadmicos e cientficos, a reproduo total ou parcial desta dissertao, por processos fotocopiadores.

    Rio de Janeiro, 21 de maro de 2012.

    ________________________________

    Leila Cunha da Silveira

    CG/Fa

    Servio de Gesto Acadmica - Rua Leopoldo Bulhes, 1.480, Trreo Manguinhos-RJ 21041-210 Tel.: (0-XX-21) 2598-2730 ou 08000-230085

    E-mail: [email protected] Homepage: http://www.ensp.fiocruz.br

  • LEILA CUNHA DA SILVEIRA

    A ATIVIDADE DOS PROFISSIONAIS DE MEDICINA NUCLEAR COM O IODO-131:

    um estudo em Psicodinmica do Trabalho

    Dissertao de mestrado apresentada Escola Nacional de Sade Pblica Srgio Arouca como requisito parcial para a obteno do grau de Mestre em Cincias na rea de Sade Pblica

    Orientadores: Prof. Dr. Maria Cristina Rodrigues Guilam Prof. Dr. Sergio Ricardo de Oliveira

    Aprovada em / /

    BANCA EXAMINADORA

    ___________________________________________________________________________

    Prof. Dr. Sergio Ricardo de Oliveira Doutor em Cincias- IOC

    Escola Politcnica de Sade Joaquim Venncio/FIOCRUZ

    ___________________________________________________________________________

    Prof. Dr. Marcelo Firpo de Souza Porto Doutor em Engenharia de Produo- COPPE/UFRJ

    CESTEH/FIOCRUZ

    ___________________________________________________________________________

    Prof. Dr. Milton Raimundo Cidreira de Athayde Doutor em Engenharia de Produo- COPPE/UFRJ

    UERJ

  • Dedico este trabalho a todos os trabalhadores.

  • AGRADECIMENTOS

    minha orientadora Maria Cristina Rodrigues Guilam e ao meu co-orientador Sergio Ricardo de Oliveira, pela forma com que me acolheram como orientanda: Maria Cristina, pela ateno, disponibilidade, apoio incondicional e valiosas sugestes. Ao Sergio, pela disponibilidade, pacincia, competncia e dedicao. Patrcia Lavatori Correa, cuja colaborao foi indispensvel em todos os sentidos, inclusive por permitir o acesso ao Servio de Medicina Nuclear. Aos gestores da instituio, por me darem permisso para a realizao da pesquisa no local. A Paulo Cesar Baptista Travassos, pela colaborao e disponibilidade de material. Aos trabalhadores que aceitaram ser entrevistados, colaborando com a sua experincia,

    dedicando parte do seu tempo de trabalho pesquisa, cuja convivncia me fez aprender bastante sobre a sua funo.

    A Marcelo Firpo de Souza Porto, pelo apoio e por aceitar participar tanto da banca de qualificao, quanto da apresentao final da dissertao, mestre que me serviu como exemplo de luta em prol dos trabalhadores e populaes vulnerveis. Elida Azevedo Hennington, pela leitura atenta e sugestes sobre o projeto. Simone Santos Oliveira, coordenadora da sub-rea, pela confiana depositada, me proporcionando todo o suporte durante o curso.

    A Milton Raimundo Cidreira de Athayde, pelo incentivo, e por aceitar participar da banca. s bibliotecrias Gizele Rocha e Vnia Guerra, pela ajuda nas buscas bibliogrficas. A Eduardo Navarro Stotz, pelas conversas profcuas sobre o projeto nos corredores da Ensp. A Daniel Kupermann, ex-mestre e amigo, que ao me transmitir a Psicanlise, fez com que me

    interessasse por temas relacionados criao. Aos meus filhos, pais e demais familiares, pela compreenso quando me ausentava para fazer

    a dissertao e, ao mesmo tempo, peo desculpas por no ter podido dar toda a ateno que eu sei que merecem.

    Aos professores do curso pelas informaes interessantes e fundamentais para construir a dissertao. Aos colegas pelo convvio e momentos alegres em que estivemos juntos. A todos aqueles que direta ou indiretamente contriburam para a realizao deste trabalho.

  • Trabalho a atividade manifestada por homens e mulheres para realizar o que ainda no est prescrito pela organizao do trabalho. (Christophe Dejours)

  • Silveira LC. A atividade dos profissionais de Medicina Nuclear com o Iodo-131: um estudo em Psicodinmica do Trabalho. Rio de Janeiro; 2012. Dissertao [Mestrado em Sade Pblica] Escola Nacional de Sade Pblica Srgio Arouca.

    RESUMO

    As muitas incertezas presentes no trabalho dos profissionais de Medicina Nuclear que lidam com o 131I podem gerar riscos de exposio s radiaes ionizantes. imprescindvel aproximar as normas e regulamentos da realidade complexa das atividades, na medida em que as normas, embora importantes, no as recobrem totalmente. A proposta deste estudo buscar formas alternativas nos processos de trabalho na prtica com o 131I que auxiliem na reduo de riscos de exposio s radiaes ionizantes para os trabalhadores. Baseando-se no referencial terico da Psicodinmica do Trabalho, estabeleceu-se os pressupostos de que os profissionais percebem os perigos da sua funo e que eles no s se defendem contra o medo referente aos riscos, por mecanismos defensivos individuais e estratgias defensivas coletivas, mas tambm contra os prprios riscos, de forma concreta, recorrendo a procedimentos especficos eficazes para minimizar a exposio ocupacional radiao. Um estudo de caso foi conduzido com 15 profissionais que lidam com o 131I para diagnsticos ou tratamento, numa instituio pblica de sade. As tcnicas empregadas consistiram numa entrevista individual semi-estruturada e a observao direta assistemtica. Analisou-se o discurso destes trabalhadores pelas tcnicas de anlise de contedo, segundo Bardin e pela anlise da enunciao, segundo DUnrug. Com a finalidade de verificar as diferenas entre a organizao do trabalho real e a organizao do trabalho prescrito, realizou-se uma pesquisa documental em relao s normas e regulamentos, nacionais e internacionais, sobre esta fonte radioativa, para comparar os dados da pesquisa documental com os dados provenientes das entrevistas. Os resultados identificaram contradies entre os modelos prescritivos das normas e o que vivenciado pelos trabalhadores na atividade. O medo em relao aos riscos fez com que se defendessem, modificando os modos operatrios prescritos, em virtude de mecanismos de defesa individuais, como a racionalizao e a negao do risco, e de estratgias defensivas coletivas, levando-os a um maior enfrentamento do risco como defesa. Observou-se tambm o papel defensivo das ideologias da profisso. Algumas categorias profissionais recorreram a procedimentos especficos a partir de conhecimentos tcitos aprendidos no ofcio, contra os prprios riscos, denominados de saberes-fazer de prudncia, capazes de minimizar a exposio radiao. Em contrapartida aos discursos tradicionais sobre a preveno, os trabalhadores percebem os perigos do seu trabalho, e os saberes-fazer de prudncia, ao invs de serem abolidos pelos especialistas, devem ser reconhecidos e incorporados ao gerenciamento de riscos para que este possa ser realmente eficaz.

    Palavras-chave: 1. Radioistopos do Iodo. 2. Riscos Ocupacionais. 3. Aspectos Psicossociais 4. Sade do Trabalhador. 5. Gerenciamento de Riscos.

  • Silveira LC. The activity of Nuclear Medicine professionals with Iodine-131: a study in Psychodynamics of Work. Rio de Janeiro, 2012. Thesis [Master of Public Health] Sergio Arouca Public Health National School.

    ABSTRACT

    The many uncertainties present in the work of Nuclear Medicine professionals who deal with 131I may create risks of exposure to ionizing radiation. It is essential to harmonize the rules and regulations of the complex reality of the activities to the extent that the standards, while important, do not recover completely. The purpose of this study is to seek alternative work processes in practices with 131I, which help in reducing the risk of exposure to ionizing radiation for workers. Based on the theoretical framework of the Psychodynamics of Work, set up the assumptions that professionals realize the dangers of their role and that they not only defend against the fear related to risks for individual defensive mechanisms and collective defensive strategies, but also against their own risk, in concrete terms, effective using specific procedures to minimize occupational exposure to radiation. A case study was conducted with 15 professionals dealing with 131I for diagnosis or treatment, in a public health institution. The techniques employed consisted of a semi-structured individual interviews and non-systematic direct observation. We analyzed the speech of these workers by the techniques of content analysis, such as Bardin and analysis of the speech, such as DUnrug. In order to investigate the differences between the real work organization and the prescribed work organization, there was a desk research in relation to standards and regulations, national and international, about this radioactive source, was to compare the documentary research data with the interviews data. The results highlighted contradictions between the prescriptible models in the standards and what is experienced by workers in the activity. The fear of the risks caused to be defended by modifying the prescribed operating methods by virtue of the individual defensive mechanisms, such as rationalization and denial of risk, and collective defensive strategies, leading them to increase the risk by confrontation as a defense. There was also the defensive role of professions ideologies. Some professionals groups have resorted to specific procedures from tacit knowledge learned in the office, against their own risks, referred to as practical knowledge of prudence, so as to minimize radiation exposure. In contrast to the traditional discourse on the prevention, workers realized the dangers of their work, and practical knowledge of prudence, rather than being abolished by the experts, should be recognized and incorporated into the risk adjustment so that it can be really effective.

    Keywords: 1. Iodine Radioisotopes. 2. Occupational Risks. 3. Psychosocial Aspects. 4. Workers Health. 5. Risk Adjustment.

  • SUMRIO

    1 INTRODUO .......................................................................................................... 11

    2 OBJETIVOS ............................................................................................................... 16 2.1 OBJETIVO GERAL ..................................................................................................... 16 2.2 OBJETIVOS ESPECFICOS........................................................................................ 16

    3 JUSTIFICATIVA ....................................................................................................... 17

    4 REVISO DE LITERATURA................................................................................... 20 4.1 REVISO EM PERIDICOS ...................................................................................... 20 4.2 REFERENCIAIS TERICOS ...................................................................................... 28 4.2.1 PSICODINMICA DO TRABALHO............................................................................ 28 4.2.2 SADE DO TRABALHADOR ..................................................................................... 36 4.3 PESQUISA DOCUMENTAL....................................................................................... 43 4.3.1 REGULAMENTAO NACIONAL ............................................................................. 43 4.3.2 ORIENTAO INTERNACIONAL .............................................................................. 48

    5 METODOLOGIA ....................................................................................................... 54

    6 RESULTADOS E DISCUSSO................................................................................. 58

    7 CONCLUSO............................................................................................................. 79

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .............................................................................. 82

    APNDICE A - Formulrio de entrevista ........................................................................ 87

  • 11

    1 INTRODUO

    A descoberta da radioatividade1 (originada do latim radius, significa atividade de emitir raios) por Antoine Henri Becquerel, propriedade denominada pelo casal Marie e Pierre Curie, revolucionou inmeras reas do conhecimento cientfico e promoveu

    posteriormente a implantao de novas tecnologias, que inauguraram uma nova era para a civilizao humana: a Era Atmica.2

    Logo aps o reconhecimento da radioatividade pelo meio cientfico, Ernest Rutherford demonstrou que os elementos radioativos emitiam partculas alfa (massa e carga positiva), partculas beta (massa e carga positiva ou negativa) e radiaes eletromagnticas (sem massa e carga), como os raios gama. Mais tarde, Frederick Soddy verificou ser a radioatividade conseqncia de uma instabilidade de elementos qumicos, cujas emisses dos tomos tinham a propriedade de transform-los em outros elementos (transmutao), que Rutherford considerou serem originadas dos ncleos dos tomos. Corroborando a teoria de Rutherford, Bohr interpretou ainda que devido s emisses ocorre uma reao de perda, de desintegrao da matria, com liberao de energia nuclear. A transmutao pode ser natural, por emisso espontnea dos elementos ou transmutao artificial, provocada artificialmente pelo bombardeamento nos ncleos.1

    A princpio, o desenvolvimento cientfico relacionado ao tema da radioatividade foi

    impulsionado por motivaes blicas, econmicas e polticas. Em 1939, incio da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), Otto Hahn e Fritz Strassmann observaram a fisso do Urnio, aps bombardeamento artificial no ncleo, que foi explicada pela fsica austraca Lise Meitner.1,2 Niels Bohr foi um dos primeiros cientistas, da fora aliada, a saber que os alemes conseguiram fissionar o Urnio e temia que esse processo fosse utilizado para fins blicos, porque confirmou que durante o processo era liberada uma espantosa quantidade de energia.2

    Werner Heisenberg, colega de Bohr, entregou-lhe um diagrama com dados sobre o programa atmico alemo. Por causa da perseguio nazista, Bohr fugiu para os Estados Unidos,

    encontrando-se com Albert Einstein e o alertou de que os pases do lado nazista (Alemanha, Itlia e Japo) possuam conhecimento terico para a fabricao da bomba.2 Imediatamente, Einstein advertiu o presidente Franklin Roosevelt, que tomou as devidas providncias.1,2

    Assim, em 1941, os Estados Unidos iniciaram uma guerra industrial, direcionando a economia para produtos blicos. Diante da ameaa dos oponentes, desenvolveram a bomba atmica. Foi criado o Projeto Manhattan, com a maior concentrao de cientistas jamais

  • 12

    reunida, cuja finalidade era fabricar a bomba norte-americana. Em 1942 teve incio a Era Atmica, com a operacionalizao do primeiro reator nuclear, sob a responsabilidade do fsico italiano Enrico Fermi. Aps a converso, da reao controlada dentro do reator, em armamento, em 1945, duas bombas atmicas renderam o Japo, fazendo milhares de vtimas fatais: a de Urnio em Hiroshima e a de Plutnio em Nagasaki.2

    Entretanto, s depois da rendio da Alemanha, os pases aliados (Estados Unidos, Frana e Inglaterra) concluram que no era um objetivo para os nazistas viabilizar a criao de reatores nucleares e da bomba atmica. A guerra j havia terminado antes do uso da bomba, que mais representou uma demonstrao de poder dos Estados Unidos.2

    Como consequncia do ps-guerra, iniciou-se a Guerra Fria. Estados Unidos e Rssia

    disputavam o poder, usando o desenvolvimento tecnolgico para demonstrar sua supremacia, dando incio a duas corridas: armamentista e espacial.2

    Nos anos de 1950, as usinas nucleares surgiram para atender demanda de produo de eletricidade, como fonte alternativa. No necessitavam de caractersticas geogrficas especficas, como as hidreltricas, e no utilizavam combustveis fsseis, como as termeltricas, que poluam a atmosfera. Porm, os altos financiamentos de construo e manuteno, os riscos de acidentes e os rejeitos radioativos eram percebidos e vrios movimentos populares se posicionavam contra o estabelecimento das usinas no mundo inteiro, substituindo o medo das bombas pelo medo de acidentes nas usinas.2

    Os acidentes de Three Mile Island (EUA) e de Chernobyl, em 1986, na Ucrnia (pertencente ao antigo bloco da Unio SoviticaURSS) foram importantes para o questionamento da segurana das usinas. Em Chernobyl, em virtude do lanamento de radioistopos do Iodo na atmosfera, houve um aumento na incidncia de cncer de tireide

    em crianas, principalmente, da regio da Ucrnia e Bielorrssia, onde ocorreu o acidente. 2 O Brasil tambm realizou investimentos em energia nuclear, como a implantao de

    um complexo de trs usinas nucleares em Angra dos Reis (RJ) para a gerao de energia eltrica. Da mesma forma que em outros pases, o Brasil apresentou um acidente radioativo de

    grande proporo.2

    Em 1987, em Goinia, dois catadores de lixo encontraram uma cpsula contendo Csio-137 abandonada em um hospital desativado e venderam-na para um ferro-velho (p.29)2. A blindagem protetora da cpsula se rompeu, liberando material radioativo para a vizinhana. Em virtude da manipulao, uma parte da populao no esclarecida foi contaminada, algumas falecendo nos dias subseqentes e outras, nos anos seguintes, como

    resultado da exposio radiao do Csio.2

  • 13

    Recentemente, em 11 de maro de 2011, houve um grave acidente nas usinas de Fukushima (Japo), em virtude de terremoto e tsunami, contaminando uma extensa rea ao redor pela liberao de uma enorme quantidade de material radioativo.

    Atualmente, no sculo XXI, as usinas nucleares fornecem 16% da energia eltrica mundial e as bombas nucleares ainda constituem concepo de alguns pases, agora integrando suas armas de destruio em massa.2

    Em contrapartida, a partir da segunda metade do sculo XX, vrias aplicaes pacficas da radioatividade foram tambm desenvolvidas: diagnstico de doenas; esterilizao de equipamentos; preservao de alimentos; datao de fsseis e artefatos histricos; e uso de traadores radioativos.2

    A utilizao de reatores nucleares para produo em larga escala de radioistopos artificiais pelas indstrias permitiu o desenvolvimento da Medicina, atravs do emprego em

    diagnsticos e tratamentos, especialmente na rea da Medicina Nuclear.2

    Apesar dos benefcios do uso de radioistopos, o relatrio de 2008 do Comit Cientfico das Naes Unidas para os Efeitos da Radiao Atmica (United Nations Scientific Committee on the Effects of Atomic Radiation UNSCEAR)3 aponta que o uso de materiais radioativos na Medicina a maior fonte de exposio do ser humano radiao ionizante, em comparao com fontes de radiao de outra natureza. Um sumrio do relatrio da Assemblia Geral das Naes Unidas, contido neste mesmo relatrio, enunciou que a exposio mdica est estimada em 98 por cento da contribuio de todas as fontes artificiais e so agora o segundo maior contribuinte de dose populacional no mundo inteiro,

    representando aproximadamente 20 por cento do total.3

    Este relatrio esperado tanto pela Organizao Mundial de Sade (OMS), quanto pela Agncia Internacional de Energia Atmica (Internacional Atomic Energy Agency IAEA) para definir novos procedimentos e parmetros de controle para uso de radionucldeos na rea da sade. De acordo com os dados publicados neste mesmo relatrio, os radionucldeos mais usados em exames e tratamento em Medicina Nuclear so o Iodo-131

    (131I) e o Tecncio-99 meta-estvel (99mTc).3

    O 131I um radioistopo artificial, produzido por meio industrial com a utilizao de

    reatores nucleares, sendo um emissor de raios gama e beta. Por ter uma energia mais alta que os demais radioistopos do Iodo (123I e 125I) e possuir emisses gama, a radiao produzida no 131I mais eficiente na eliminao de clulas tumorais.

    O 131I havia sido empregado pela primeira vez em 1934 para diagnstico, enquanto a sua aplicao para tratamento s aconteceu a partir de 1939, inaugurando a rea da Medicina

  • 14

    Nuclear, considerado como uma tecnologia apropriada para a realizao de exames e terapia de hipertireoidismo e de cncer de tireide, e sendo usada amplamente at hoje. O Iodo radioativo rapidamente absorvido e incorporado pela tireide nos folculos de armazenamento, cumprindo sua funo.4

    De acordo com Araujo et al.5, o 131I tem a vantagem de ser facilmente administrvel, pois pode ser produzido na forma lquida, em soluo de iodeto de sdio, ou na forma slida,

    embora encapsulada, ambos administrveis por via oral, alm de ser um produto de baixo custo e eficaz no tratamento da tireide. Porm, os mesmos autores revelam ainda que existem poucas informaes conclusivas na literatura a respeito da dose absorvida por pacientes, podendo envolver riscos para os mesmos:

    Em funo da magnitude da atividade administrada para o tratamento com radioiodo, os principais riscos aos quais os pacientes esto expostos so o aumento da probabilidade de desenvolvimento de cncer em diferentes rgos ou tecidos e, para as mulheres em idade frtil, os efeitos para seus descendentes.5

    Alm disso, o fato do 131I ser incolor e voltil dificulta o controle da proteo radiolgica para os trabalhadores.

    O processo de trabalho com o 131I na Medicina Nuclear necessita de uma espessura de blindagem adequada para proteo dos trabalhadores, que calculada de acordo com a taxa de

    dose e a atividade do radioistopo. No caso dos reatores nucleares necessrio o uso de concreto, alm do chumbo, para blindagem, empregando-se ainda mtodos para minimizarem

    os efeitos da radiao para os trabalhadores, como a reduo do tempo de exposio e o aumento da distncia em relao fonte de radiao.4,5

    No Brasil, a Comisso Nacional de Energia Nuclear (CNEN)6 estabelece os sistemas de radioproteo e regulamentos, no permitindo que as pessoas ultrapassem os limites de dose.

    No entanto, ao contrrio da radiologia diagnstica e da radioterapia, cujas fontes de radiao so seladas (radioistopos contidos no aparelho ou utilizao da energia eltrica) e nas quais o trabalhador no tem contato com a fonte radioativa, na rea de Medicina Nuclear trabalha-se com fontes naturais (de exposio constante) e no seladas, com utilizao exclusiva de radioistopos. Por isso, a prtica na rea de Medicina Nuclear requer uma habilidade e ateno redobrada do trabalhador, que o profissional da rea da sade com

    maior risco de exposio radiao ionizante.7

  • 15

    Pelo exposto e, especialmente, devido complexidade da atividade com o 131I, necessrio um conhecimento mais aprofundado do processo de trabalho, para minimizar os riscos e as incertezas no que se referem aos trabalhadores.

  • 16

    2 OBJETIVOS

    2.1 OBJETIVO GERAL

    Propor formas alternativas nos processos de trabalho dos profissionais que lidam direta ou indiretamente com o 131I em Medicina Nuclear, que auxiliem em melhor gerenciamento dos riscos de exposio s radiaes ionizantes, dando voz aos atores envolvidos.

    2.2 OBJETIVOS ESPECFICOS

    Analisar o discurso dos profissionais de Medicina Nuclear sobre as prticas adotadas desde o preparo do material at a realizao de exames e tratamento dos pacientes que

    fazem uso do 131I, em relao com a sade.

    Comparar as atividades dos profissionais de Medicina Nuclear realizadas com o 131I com as normas, regulamentos e recomendaes de segurana, nacionais e

    internacionais, investigando as diferenas entre o trabalho real e o prescrito.

  • 17

    3 JUSTIFICATIVA

    A importncia da realizao de uma pesquisa que envolva a aplicao do 131I na Medicina Nuclear decorre do fato de ser uma tecnologia utilizada em larga escala para diagnstico e tratamento durante muitos anos e, atualmente, uma grande parte da populao

    submetida a este tipo de interveno em sade, conforme os dados apresentados pela UNSCEAR.3

    A maioria dos estudos concentra-se nos aspectos relacionados ao paciente. Ainda so pouco exploradas as pesquisas que focalizem os trabalhadores que lidam com o 131I. Numa consulta prvia aos principais portais e bases de dados de pesquisa, nacionais e internacionais, observou-se, alm disso, uma escassez de pesquisas de natureza qualitativa relacionadas a este

    assunto.

    A escolha de realizar uma investigao no mbito dos profissionais que lidam, direta

    ou indiretamente, com o 131I na Medicina Nuclear advm do fato de que os trabalhadores apresentam alto risco potencial de obteno de altos nveis de exposio e/ou contaminao por este radioistopo e, em consequncia disso, apresentam maior probabilidade de sofrerem algum tipo de dano estocstico ou mesmo determinstico.

    Os efeitos sade 4,6,8, produzidos pela exposio radiao, podem ser:

    Estocsticos: so os que se manifestam aps meses ou anos de exposio radiao, que esto relacionados exposio a baixas doses de radiao, porm decorrentes de exposies freqentes, s quais os profissionais que trabalham com

    radiao esto sujeitos. A probabilidade de ocorrncia do efeito estocstico proporcional dose, mas a severidade do efeito independente da magnitude da

    dose, como os danos genticos (mutao) e a incidncia de cncer (carcinognese). Determinsticos: so resultantes da exposio a doses altas de radiao, para as

    quais se estabelece um limiar de dose absorvida para sua ocorrncia e cuja gravidade proporcional dose. O efeito mais importante a incidncia de

    catarata, mas tambm podem ocorrer a esterilidade e as queimaduras de pele. No obstante, este tema especfico possui interfaces com outras disciplinas que

    perpassam a abordagem nica dos riscos fsicos. Visando abordar o assunto de forma mais ampla, a Sade do Trabalhador se constituir como um dos fundamentos para este estudo.

    A Sade do Trabalhador, que se desenvolveu dentro da Sade Coletiva, situa o trabalho como ponto central na vida humana. A questo dos riscos tecnolgicos (como os

  • 18

    riscos e efeitos do 131I sobre o ser humano e os outros seres vivos) no se limita apenas aos fatores de risco fsicos, qumicos e biolgicos, mas envolve a compreenso de sua dinmica e complexidade, por serem constitudos eminentemente por aspectos humanos e sociais.9,10

    Porto afirma que a criao de novas tecnologias impulsionada por ciclos de

    desenvolvimento de setores econmicos, acompanhados, simultaneamente, pela emergncia dos seus riscos e acidentes, que afetam a sade das populaes e ecossistemas.11

    Uma das disciplinas que contriburam para essa mudana de concepo, subvertendo os termos do taylorismo, o qual procurava adaptar o homem ao trabalho, foi a ergonomia. De acordo com Lacomblez & Teiger: O projeto da ergonomia orienta-se, desde a sua origem, para a adaptao do trabalho ao Homem, pretendendo associar, de forma estreita, a sade dos

    trabalhadores (no sentido recentemente ampliado sade cognitiva e sade mental) e a eficcia no trabalho.(p.587) 12

    A ergonomia busca no apenas compreender o trabalho, mas tambm transform-lo. Entretanto o que diferencia a ergonomia tradicional, da ergonomia da atividade, como esclarece Daniellou & Bguin (p.283)13, o fato de que a ergonomia de lngua francesa colocou no centro de seus modelos a referncia atividade de trabalho.

    Segundo Falzon (p.9)14, a ergonomia enfatiza que o trabalho prescrito no coincide com o trabalho real. O trabalho prescrito ou tarefa o que se deve fazer, o que prescrito pela organizao. Por sua vez, o autor define atividade ou trabalho real como: o que feito, o que o sujeito mobiliza para efetuar a tarefa [...] A atividade no se reduz ao comportamento [...] A atividade inclui o observvel e o inobservvel: a atividade intelectual ou mental. (p.9)14

    A participao do trabalhador na pesquisa de campo fundamental, uma vez que,

    segundo a ergonomia, o escopo das prescries nunca coincide com o trabalho efetivamente realizado, o qual interfere com o que esperado pelo trabalho prescrito.

    A Psicodinmica do Trabalho, do autor Christophe Dejours, serviu como importante fundamento para analisar de forma mais profunda as relaes entre a sade do trabalhador e o

    trabalho real com o 131I, e as influncias da organizao do trabalho prescrito15. Parte inicial do trabalho foi observar o comportamento, as dificuldades e solicitaes dos trabalhadores na

    instituio estudada. As descobertas de Dejours16, baseadas nas suas pesquisas, inspiraram a elaborao dos

    pressupostos de que os profissionais de Medicina Nuclear que lidam com o 131I so capazes de perceber os perigos da sua funo, e que eles se defendem no somente contra o medo, por

    meio dos mecanismos de defesa individuais e estratgias defensivas coletivas, mas tambm

  • 19

    contra os prprios riscos, de uma forma concreta, recorrendo a procedimentos especficos eficazes para minimizar a exposio ocupacional radiao, no decorrer do prprio trabalho.

    Pela sua originalidade, o trabalho poder vir a esclarecer questes sobre os riscos potenciais para os trabalhadores, associados atividade com o 131I e, em decorrncia disso,

    contribuir para um melhor gerenciamento dos riscos.1

    1 O Instituto Nacional de Pesquisa e Segurana (Institut National de Recherche et de ScuritINRS) enfatiza

    que a preveno dos riscos profissionais um conjunto de dispositivos para preservar a sade e segurana, melhorar as condies de trabalho e de bem-estar. Visa antecipar e limitar as conseqncias humanas, sociais e econmicas dos acidentes de trabalho e doenas profissionais. A avaliao, a priori, dos riscos profissionais identifica a classe dos riscos a que se submetem os trabalhadores e constitui uma etapa inicial da preveno, porm, o sistema de gerenciamento da sade e segurana no trabalho um dispositivo de gesto contnuo e integrado combinando pessoas, polticas e meios, antecipando os riscos e limitando os disfuncionamentos na preveno em sade e segurana.17

  • 20

    4 REVISO DE LITERATURA

    4.1 REVISO EM PERIDICOS

    O trabalho de reviso bibliogrfica dos artigos foi realizado considerando o perodo de

    1990 at os dias atuais, nas principais bases de dados, portais e interfaces de pesquisa, nacionais e internacionais. Os estudos foram empreendidos na maior parte em pases desenvolvidos, encontrados apenas nos meios de divulgao de pesquisa internacionais e todos de natureza quantitativa.

    Desta forma, investigaram os diversos aspectos ligados ao uso do 131I na Medicina Nuclear, por meio da mensurao dos nveis de exposio, em comparao com os limiares

    permitidos pelas agncias reguladoras dos prprios pases ou pelas agncias internacionais. Nesta busca, abordou-se alguns dos principais temas discutidos e os artigos a eles

    relacionados. Um dos temas relevantes foi o tratamento da glndula tireoidiana com o radionucldeo,

    pois havia uma discrepncia em relao ao procedimento de permanncia ou no do paciente no quarto teraputico, aps a administrao da dose para tratamento do cncer. Alguns autores descrevem que, independentemente da dose administrada, a melhor alternativa seria a liberao do paciente para a residncia. Segundo a legislao nacional (Norma Regulamentadora da CNENNN3.05)6 pacientes cuja dose ultrapassa 30 mCi devem ser internados.

    Se a internao e o isolamento podem levar alguns pacientes a manifestaes psquicas

    e orgnicas ligadas ao confinamento, alm da possibilidade do risco de exposio para os trabalhadores que necessitem entrar em contato com o paciente, por outro lado a permanncia do paciente no quarto teraputico minimiza a exposio radiao para os familiares e para os membros do pblico.

    Barrington et al.18 afirmam que pacientes tratados com Iodo radioativo como pacientes externos apresentam perigo de radiao e que precaues so necessrias para limitar a dose

    de radiao para os membros da famlia, staff de enfermagem e membros do pblico. As precaues recomendadas so usualmente baseadas nos ndices de dose instantnea ou reteno do Iodo e no levam em conta o tempo gasto em proximidade fechada com um paciente. Os pesquisadores combinaram as medidas do ndice de dose de corpo inteiro de pacientes com cncer de tireide, depois da administrao do Iodo radioativo, com os dados

  • 21

    publicados do tempo de contato da enfermagem e contatos sociais do paciente, para calcular a dose cumulativa que pode ser recebida por um indivduo em contato com um paciente.

    Os autores apontam que recomendaes podem ser derivadas desse estudo para limitar a dose recebida pelos membros do pblico e staff de enfermagem, que possam estar em contacto com pacientes de cncer tratados com radioiodo, para menos do que 1 mSv (limite permitido). Sugerem que a rpida liberao do radioiodo em pacientes tratados em uma ou mais de uma ocasio significa que a terapia pode ser administrada em casa para pacientes selecionados, em circunstncias domsticas adequadas. Concluem, por meio de pesquisas, que a concentrao de radioiodo em sistemas de drenagem domstica no apresentam um risco significativo.

    J Vetter19 esclarece que, nos Estados Unidos, a US Nuclear Regulatory Commission (NRC) revisou a legislao em 1997 permitindo a liberao de pacientes imediatamente depois da terapia com 131I, desde que o total de dose equivalente de um paciente, para qualquer indivduo, no fosse superior a 5 mSv em um ano. Por muitos anos, se a atividade administrada ultrapassasse 30 mCi, o paciente seria hospitalizado. Assim, pela nova legislao, um paciente poderia ser tratado com uma quantidade mais alta de 131I como um paciente externo, desde que mantivesse a exposio radiao para outros indivduos to baixa quanto razoavelmente alcanvel (Princpio ALARA). Entretanto, se a dose excedesse 1 mSv, os licenciados (pessoas que recebem uma licena para trabalharem com a fonte radioativa) deveriam estimar a dose para estes membros do pblico, incluindo membros da famlia, e deveriam informar ao paciente as formas de evitar que a dose destas pessoas exceda

    1 mSv. Mas, logo em seguida, o National Council on Radiation Protection and Measurement (NCRP) publicou um comentrio na legislao propondo um limite de 5 mSv para membros da famlia do paciente, justificando o fato da famlia receber um benefcio direto do paciente.

    Da mesma forma, Beckers20 informou que a Unio Europia adotou recentemente as principais recomendaes em radioproteo da International Commission on Radiological Protection (ICRP). O limite anual para os membros do pblico em exposio contnua 1 mSv, com uma dose mnima de 0,3 mSv. A dose mnima a dose que se espera alcanar com o objetivo de controlar a exposio. Segundo o autor, tal regulamento pode levantar inmeros problemas prticos para pacientes tratados com o 131I, particularmente aqueles recebendo radioiodo como pacientes externos. A exposio radiao, avaliada por meio do ndice de dose absorvida e dose ocupacional, usualmente conduz a resultados significativamente mais altos do que aqueles obtidos por medidas diretas com dosmetros

    termoluminescentes (TLDs) realizados pelos membros da famlia do paciente. Afirma que

  • 22

    instrues razoveis dadas aos pacientes tratados com o 131I nos permitem responder positivamente s recomendaes do ICRP sem perturbar excessivamente a vida diria do paciente.

    Grigsby et al 21 tambm esclarecem que em 1997 a US Nuclear Regulatory Comission (NRC) revisou seus regulamentos de liberao do paciente, permitindo a administrao a pacientes externos de atividades do iodeto de sdio do 131I mais altas do que era permitido

    anteriormente. O artigo mensura a exposio radiao dos membros da famlia de pacientes com carcinoma de tireide, fazendo terapia com o 131I como pacientes externos, de acordo com os novos regulamentos. Esse estudo nico, porque os pacientes recebem as altas doses e so imediatamente liberados. As doses do 131I para os membros da famlia de pacientes

    recebendo terapia do 131I como pacientes externos esto bem abaixo do limite (5 mSv) recomendado pelos regulamentos atuais da NRC. Portanto, o estudo demonstra que se pode

    realizar a terapia para carcinoma de tireide como pacientes externos. Segundo os autores, as vantagens incluem a reduo das despesas de tratamento e menos tenso psicolgica para os pacientes e suas famlias. Entretanto, uma limitao desta pesquisa o fato de que a exposio cumulativa para os membros da famlia representa mais do que a dose estimada.

    Abu-Khaled et al 22 mediram a exposio radiao ambiental dentro e nos arredores do quarto dos pacientes tratados com o 131I, em regime de hospitalizao. O ndice de dose absorvida foi medido usando dosmetros, tipo TLD-200, num contnuo programa de monitoramento. Concluram que os ndices de dose na cama do paciente e no banheiro estavam acima do limite para os trabalhadores em radiao, enquanto o ndice de dose na

    cadeira do visitante estava abaixo do limite derivado para os trabalhadores, mas acima do limite para o pblico. No lado de fora da porta externa e corredor geral esto dentro do limite

    aceito para o pblico. A dose anual absorvida no corredor quase se manteve constante. Estes resultados revelam que a dose dentro do quarto de isolamento maior do que os

    limites de dose para exposio ocupacional. Em consequncia disso, o tempo de permanncia de trabalhadores no quarto no deve exceder de 30 min. na metade de um dia. Recomendam

    que a nenhum visitante deve ser permitido entrar no quarto, uma vez que a terapia tenha comeado. Se a visita for permitida, melhor que seja restrita a membros da famlia, acima de 18 anos, no gestantes e uma cadeira do visitante pode ser posicionada fora da porta do quarto de isolamento, com tempo de visita limite de 15 min. na metade de um dia e seguindo instrues de segurana. Os autores alertam que, no futuro, esperado que todos os resultados anteriores aumentem pelo aumento da carga de trabalho para os trabalhadores (efeito cumulativo).

  • 23

    De acordo com os resultados, recomendam que quando o paciente for liberado, toda a superfcie do banheiro deva ser limpa, a radiao revertida to baixa quanto possvel aos nveis anteriores, antes de ser usado.

    Segundo os autores, a NRC atualmente estabelece que uma licena possa autorizar a

    liberao de um paciente que tomou radiofrmacos, com ndice de dose mais altos que 30mCi, a uma distncia de 1 metro (aps 2-3 dias). Estudos anteriores encontraram que aps dois dias de administrao teraputica o ndice de dose para o trabalhador ainda era alto e a dose recebida para a filha da paciente era de 7,79 mSv durante o stimo dia aps a administrao. Esta dose era muito alm da dose limite de 1 mSv ano para o pblico, proposto pelo ICRP. Portanto os autores concluem que os impacientes devem ser isolados num

    quarto privativo por mais de trs dias e recomendam que:

    Departamento de Medicina Nuclear deve ter quarto de isolamento de pacientes e usar instrues de segurana em radiao no gerenciamento do quarto

    Devem ser isolados no quarto privativo por mais de trs dias

    Contaminao deve ser removida do quarto dos pacientes com o Iodo radioativo

    Havendo crianas na famlia, pode ser necessrio acomod-las em outra casa por no mnimo uma semana

    Pacientes devem ser instrudos para limitarem o tempo gasto em lugares pblicos nos primeiros dias

    Pacientes devem tentar minimizar o tempo em contato com mulheres grvidas e

    crianas pequenas por 2-5 dias depois do tratamento. Outro tema levantado pelos artigos foi a restrio que deveria ser aplicada a uma

    trabalhadora grvida de um departamento de Medicina Nuclear. Cruz Surez et al.23 afirmam que a ICRP e a IAEA recomendam que o embrio ou o

    feto tenham um nvel de proteo equivalente aos membros do pblico (1 mSv), no significando que uma mulher grvida deva evitar de trabalhar com radiao ou materiais radioativos completamente, ou que deva ser prevenida de trabalhar ou mesmo entrar em reas

    designadas de radiao. Segundo os mesmos, os empregadores devem rever as condies de exposio da mulher grvida, para que a probabilidade de doses acidentais e absoro de radionucldeos seja extremamente baixa, ponderando entre o direito da mulher ao emprego e a proteo da descendncia. Entretanto, em seus relatos, os autores afirmam que um

    levantamento de radioistopos do Iodo (incluindo 131I) da tireide do feto pode conduzir a doses maiores para o feto que para a me. A tireide do feto comea a acumular Iodo em

  • 24

    torno de 11 semanas depois da concepo. A IAEA est revendo suas recomendaes, para estender o tempo de proteo desde antes da declarao de gravidez, na concepo, at trs meses aps o nascimento, em virtude da amamentao.

    Mais do que isso, Barber et al.24 discutem que o trabalho com o 131I um problema

    particular, citando o artigo de Phipps, Smith & Harrison, no qual os coeficientes de dose fetal de absoro materna de 131I para todos os estgios da gravidez foram publicados. O artigo

    examina um aspecto do trabalho num departamento de Medicina Nuclear no qual a fonte de 131I incontrolvel, para determinar que restries se aplica a uma trabalhadora grvida da equipe de limpeza do quarto, que descontaminado e descontrolado, e o staff de limpeza monitorado imediatamente aps o processo de limpeza. Durante a monitorao das mos

    raramente foi detectada contaminao, mas a monitorao de corpo inteiro indicou que os nveis de contaminao excederam as doses limites para o feto. Portanto, afirmam os autores,

    a mulher grvida deve ser excluda das situaes onde acidentes podem ocorrer ou onde as fontes 131I so incontrolveis ou imprevisveis.

    Foram encontrados tambm alguns artigos que analisaram e discutiram a questo dos riscos de exposio dos trabalhadores pelo emprego do 131I na Medicina Nuclear.

    O estudo de Chruscielewski et al.25 enfatiza que, como resultado da radiao gama emitida pelo 99mTc e o 131I nos departamentos de Medicina Nuclear para diagnsticos e terapia, os trabalhadores ficam expostos a doses de corpo inteiro, que so medidos pelos dosmetros. A blindagem de chumbo ou a blindagem de vidro de chumbo durante a manipulao minimiza as doses de corpo inteiro. Contudo, uma parte do trabalho executado

    manualmente, por isso as mos so mais expostas radiao. O artigo apresenta os resultados das doses equivalentes das mos de 60 trabalhadores, incluindo mdicos, enfermeiros, radiofarmacuticos e tcnicos de 5 departamentos de Medicina Nuclear, onde o 99mTc e o 131I so usados. Concluram que, particularmente para os radiofarmacuticos, o perigo de dose nas mos pode ser significante, porque as doses na investigao mensal excederam 50 mSv, sugerindo uma dose anual que poderia ser mais alta que 500 mSv (limite anual permitido para as extremidades), por isso eles sugerem o uso de dosmetro de extremidade.

    Por sua vez, Liang et al 26 informam que desde os anos 70 os fabricantes na rea de

    Medicina Nuclear tem reformulado a soluo do 131I para reduzir a volatilidade do material, havendo um aumento no uso do iodeto na forma encapsulada. Pelas exigncias do atual regulamento da NRC e com os resultados disponveis da volatilidade do radioiodo reformulado, tanto na forma lquida quanto encapsulada, os autores revisaram o programa de

    bioensaio do 131I para os trabalhadores da Medicina Nuclear. A anlise dos pesquisadores

  • 25

    mostra que a quantidade limiar para o monitoramento de bioensaio para o uso rotineiro do 131I na Medicina Nuclear muito mais alta do que o critrio estabelecido no Regulatory Guide 8.20 (NRC, 1979).

    Para o tratamento normal de cncer da tireide e hipertireoidismo, eles apontam que

    uma nica dose teraputica, que seja grande o bastante para produzir uma carga detectada (por aparelhos) na tireide, muito improvvel de ocorrer numa clnica de Medicina Nuclear, segundo os resultados. Ingesto ou inalao acidental seria uma exceo, mas poderia exigir bioensaio. Baseado em suas anlises, os autores estabelecem limiares e propem uma nova poltica de bioensaio para o uso rotineiro do 131I na clnica da Medicina Nuclear, sugerindo que se estabelea um limiar muito mais alto do que o critrio estipulado pelo NRC Regulatory

    Guide 8.20, uma vez que os limiares manipulados na prtica das trs clnicas em estudo excedem longe os valores estabelecidos pelo guia.

    Alm disso, de acordo com um decreto do Ministro da Sade da Hungria, que enfatiza a regulao de monitoramento de exposio interna de trabalhadores, Kerekes et al.27 preparam um guia para rotina de monitoramento de radionucldeos, incluindo a utilizao na Medicina Nuclear. O guia foi preparado baseado na IAEA e no ICRP e envolve cerca de 50 radionucldeos, entre eles o 131I. A pesquisa realizada para o preparo do guia revelou discrepncias em relao aos regulamentos atuais, especialmente com o 131I, porque o nvel de dose para deciso de monitoramento individual de exposio interna mais alto, portanto os novos regulamentos so mais restritivos. Os autores afirmam que necessitaria uma drstica reviso das estratgias de monitoramento atuais.

    Gilbert et al. 28 discutem os efeitos de sade que resultam da exposio recebida como resultado de testes nucleares, com nfase em cncer da tireide da exposio ao 131I, leucemia

    e outros cnceres de exposio interna e externa a baixas doses. Estudos de pessoas com exposies similares tambm so revistos (incluindo pacientes expostos por razes mdicas e trabalhadores expostos externamente a baixas doses e ndices de dose baixos).

    Os ndices de incerteza em estimar riscos de exposio ao 131I so especialmente

    importantes, porque a principal fonte de radiao para a tireide nas exposies aos incidentes, como nos testes nucleares. As incertezas se devem aos modelos de risco utilizados,

    baseados em doses altas de exposio, enquanto as exposies aos incidentes so de longo prazo e incluem exposio tanto interna quanto externa.

    Os estudos de incidentes na antiga Unio Sovitica incluem pessoas expostas ao 131I e a ndices de exposio externa a baixas doses de efeito prolongado de outras fontes tambm,

    mas que so altas o bastante para prover preciso estatstica e ajudar a reduzir as incertezas.

  • 26

    Depois do acidente de Chernobyl (1986), um grande aumento na incidncia de cncer de tireide ocorreu em Belarus, na Ucrnia e na Rssia, entre pessoas abaixo de 20 anos que foram expostas ao 131I. Primeiramente se pensava que bastava fazer uma triagem da tireide nas reas afetadas, mas mais tarde se determinou que muitos dos cnceres que eram

    suficientemente agressivos no haviam sido detectados antes, provavelmente porque houve falha na identificao pelos mtodos usuais. Estas diferenas podem ser devido ao fato de que

    os sujeitos em Chernobyl desenvolveram cncer de tireide quando ainda eram jovens, quando as avaliaes de risco ainda eram baixas, enquanto muitos deles que foram observados por um longo tempo desenvolveram o cncer na idade adulta.

    Os estudos de Chernobyl contriburam fortemente para estabelecer que a exposio ao 131I em crianas pode aumentar o risco de cncer de tireide. Em virtude do nmero de pessoas expostas neste acidente exceder muito o nmero de pessoas expostas externamente

    em outros estudos sobre cncer de tireide, de enorme a importncia como potencial de nova informao para pesquisas de avaliao de risco de longo prazo.

    Ainda na Rssia, embora no seja por testes nucleares, a fbrica nuclear de Mayak exps trabalhadores e populao vizinha radiao, incluindo grande liberao de 131I, apresentando altos ndices de cncer de tireide. Alm disso, a radiao externa desses trabalhadores foi muito mais alta que os trabalhadores de outros pases, apresentando relao com leucemia e outros cnceres. Segundo os autores, estes estudos podem prover estimativas de doses externas prolongadas e suplementarem os estudos sobre os sobreviventes da bomba atmica.

    O artigo de Fritsch29 reanalisa as incertezas das doses equivalentes depositadas na tireide aps ingesto do 125I, 129I e o 131I, usando a variabilidade final relatada por parmetros

    anatmicos e fisiolgicos dos diferentes grupos de idade referenciados pelo ICRP e estima as incertezas depois da exposio de inalao s diferentes formas qumicas do Iodo em atividades padro de trabalhadores.

    As incertezas maiores so observadas para o 129I, devido sua longa meia-vida. No

    caso do 125I, significante aumento das incertezas de dose quando comparados com o 131I s so encontradas em idades abaixo de 15 anos. Os mesmos resultados podem ser aplicados tambm inalao de vapores.

    As doses calculadas com suas incertezas podem no refletir o risco da induo de tumores na tireide. A contaminao com o 125I e o 129I envolve na maioria raios beta, que tem pequena extenso. Porque o Iodo est principalmente localizado em estruturas acelulares, o

    colide dos folculos da tireide, o risco de induo de tumores pode ser superestimado

  • 27

    quando comparados com o 131I, que possui raios gama em maior extenso. O artigo sugere que pode haver uma substituio do 131I pelo 125I, em pessoas maiores de 15 anos, entretanto observa-se que financeiramente o 131I mais vivel.

    J Wakeford30 faz uma reviso sobre as investigaes epidemiolgicas sobre radiao

    ionizante. O autor afirma que os estudos tm demonstrado que nveis de exposio de moderados a altos podem causar muitas formas de cnceres, como leucemia e cnceres do

    seio, pulmo e tireide, sendo particularmente sensveis induo pela radiao em idades mais jovens. O grau de carcinognese em relao a baixos nveis de exposio mais discutvel, mas as evidncias apontam que um risco aumentado aproximadamente proporcional dose recebida.

    Os estudos de Challeton de Vathaire et al.31 relatam os resultados do monitoramento de trabalhadores ocupacionalmente expostos aos radionucldeos na Frana. Um dos campos

    analisados foi a Medicina Nuclear e entre todos os radioistopos avaliados e usados com mais freqncia estava o 131I. Dos trabalhadores que manipulam o 131I, 11% apresentaram no mnimo um resultado acima do limite de deteco durante o perodo estudado, portanto 11% dos trabalhadores tm algum tipo de contaminao interna com 131I. Os estudos tm o objetivo de melhorar o programa de monitoramento de contaminao interna.

    Enquanto isso, Covens et al.32 analisa a exposio ocupacional de trabalhadores como fsicos, tcnicos, enfermeiros e outros, num hospital universitrio de Bruxelas (Blgica), a partir do monitoramento de exposio externa radiao. Entre os procedimentos investigados encontra-se o uso diagnstico e teraputico de radionucldeos na Medicina

    Nuclear, entre eles o 131I. O monitoramento de dose encontra dificuldades, porque alguns indivduos no so mensuravelmente expostos, e tambm onde relativamente altas exposies

    so encontradas, incluindo no estudo as avaliaes de dose efetiva e de diferentes partes do corpo.

    Durante o monitoramento nos hospitais alguns problemas puderam ser encontrados, como as diferenas de metodologia e a falta de consenso na interpretao, tornando a

    dosimetria complicada. Durante as aplicaes crticas, como na Medicina Nuclear, relativamente altas

    exposies puderam ser encontradas. Os autores afirmam que a origem da alta exposio, na maioria das vezes, a carga de trabalho e, alm disso, a educao dos trabalhadores, o treinamento e novo esquema de proteo radiao so geralmente falhos, a despeito de serem facilmente disponveis. Concluem que a caracterizao detalhada do local de trabalho

  • 28

    deve ser conduzida na rotina e ajudar na otimizao do processo, uma vez que o aumento na diversidade de tcnicas e procedimentos pode mudar a exposio.

    No mesmo sentido, um estudo de coorte retrospectivo foi conduzido por Sont et al.33 no Canad, a partir de registros de dose extrados do Registro Nacional de Dose do Canad,

    de 1951 a 1988, e de dados de incidncia de cncer da Base de Dados de Cncer Canadense, de 1969 a 1988, para investigar a relao entre incidncia de cncer e exposio ocupacional radiao ionizante. Encontraram elevados ndices de cncer de tireide e melanoma, alm de cncer do reto, no pulmo, leucemia e outros. A incidncia de cncer na tireide neste estudo altamente significante, porm mais investigaes so necessrias para avaliar a

    possibilidade de associao deste tipo de cncer com a exposio ocupacional radiao.

    4.2 REFERENCIAIS TERICOS

    4.2.1 PSICODINMICA DO TRABALHO

    Christophe Dejours, doutor em Medicina, especialista em Medicina do Trabalho e Psiquiatria, psicanalista e diretor do Laboratrio de Psicologia do Trabalho e da Ao34, no Conservatrio Nacional de Artes e Ofcios (Conservatoire National des Arts et Mtiers CNAM)2, em Paris, iniciou seu percurso terico dentro de uma disciplina francesa denominada de Psicopatologia do Trabalho, instituda por um grupo de psiquiatras sociais,

    tendo frente Louis Le Guillant e Paul Sivadon. Suas pesquisas tinham como hiptese que as vicissitudes do trabalho poderiam provocar distrbios psicopatolgicos, ou seja, havia a preocupao em identificar sndromes e doenas mentais caractersticas das situaes de trabalho. O trabalho, especialmente o trabalho industrial, era considerado nocivo sade mental dos trabalhadores, portanto era preciso identificar as causas e os mecanismos que levariam os trabalhadores a uma descompensao mental.15

    Apesar das crticas a esse modelo reducionista de causa-efeito pelo prprio Dejours nos anos de 1980, a Psicopatologia do Trabalho, influenciada pela Medicina do Trabalho, no conseguiu super-lo, pois as pesquisas de Dejours na dcada de 1970 eram inicialmente

    2 O Conservatrio Nacional de Artes e Ofcios (CNAM) uma grande instituio de educao superior em nvel

    de doutorado, operado pelo governo francs (supervisionado pelo Ministro da Educao Superior, da Frana). Foi fundada em 1794, durante o perodo da Revoluo Francesa (1789-1799). No incio, criado para mostrar as mquinas e ferramentas usadas nas artes e ofcios, depois passou a ser um centro educacional em artes e ofcios. Atualmente um estabelecimento de educao continuada, profissional, superior; de pesquisa e inovao tecnolgica e de difuso da cultura cientfica e tcnica. Possui centros regionais na Frana e convnios com diversos pases, como o Brasil. 35, 36

  • 29

    inspiradas nesse modelo. A organizao do trabalho, conceito chave, era visto como um dado pr-existente ao encontro do ser humano com o seu trabalho.15

    Por organizao do trabalho entendia-se no s a diviso do trabalho, das tarefas, como os ritmos impostos, os modos operatrios prescritos e sobretudo a diviso dos homens

    pelas hierarquias e os sistemas de controle. Quando esto bloqueadas todas as possibilidades de adaptao entre a organizao do trabalho e o desejo dos sujeitos (p.10)37, surge um sofrimento patognico.

    Entretanto as primeiras pesquisas de campo de Dejours em Psicopatologia do Trabalho, alm de revelar um conflito central entre a organizao do trabalho e o funcionamento psquico, evidenciavam que com muita freqncia doenas propriamente ditas

    no se configuravam rigorosamente e que os comportamentos, no momento das enquetes, mais se aproximavam da normalidade. Algo o afastava desse modelo causalista: os sujeitos no se mostravam passivos diante dos constrangimentos organizacionais. Sofriam, mas sua busca de sade podia ser exercida na construo de mecanismos de defesa individuais (como referenciou Freud) ou sistemas defensivos coletivos (como descobriu a Psicodinmica do Trabalho). Desde ento, Dejours preferiu no mais privilegiar a deteco de doenas mentais, voltando-se para o sofrimento e as defesas contra o sofrimento, portanto para aqum da doena mental descompensada (grifo do autor). (p.51)15

    Ainda sem ter conscincia da reviravolta terica empreendida nessa ocasio (como ele prprio vai definir), Dejours mudara de objeto para aqum da doena mental descompensada (grifo do autor) (p.51)15, para a normalidade, mesmo que fosse como equilbrio precrio entre o sofrimento e as defesas contra o sofrimento. Normalidade que seria resultante de estratgias complexas, no como conseqncia de um somatrio de aes e reaes, de

    estmulos e respostas (p.52)15, mas mediada pelo modelo psicanaltico do funcionamento psquico, que dependia da vontade consciente e inconsciente do prprio sujeito. Nesse sentido o novo foco estava em visualizar essa normalidade como enigma, pois frente a condies nocivas, no adoecer era enigmtico.

    Colocar a normalidade como um enigma que suportasse a vontade dos agentes era romper com o behaviorismo, com o pavlovismo, com todas as concepes objetivantes. Era conceber a normalidade como algo que envolvia uma dinmica humana e social, cujas relaes intersubjetivas, na construo de sistemas defensivos ou no, ocupassem um lugar central. Era tambm introduzir o princpio de uma racionalidade subjetiva das aes dos trabalhadores.15

  • 30

    Ao operar uma passagem de objeto, da patologia normalidade, mais tarde Dejours props uma nova nomenclatura para as suas pesquisas: Psicodinmica do Trabalho ou Anlise Psicodinmica das Situaes de Trabalho. As possveis ocorrncias psicopatolgicas seriam estudadas no interior da Psicodinmica do Trabalho.15

    A Psicodinmica do Trabalho apresenta como referenciais tericos a Psicanlise e alguns autores, como Jrgen Habermas, filsofo e socilogo alemo da Escola Crtica de

    Frankfurt. Apesar das diferenas de pensamento entre eles, especialmente quanto centralidade do trabalho que Dejours defende, um tema permanece comum: a crtica radical sociedade industrial moderna38. Assim foi instituda nas sociedades industriais modernas uma nova forma de racionalidade, a racionalidade instrumental. Essa racionalidade constitui-

    se pela relao entre os meios e os fins, orienta-se em direo aos objetivos visados, como por exemplo os objetivos de produo.39 Tentando superar o conceito de racionalidade instrumental, Habermas amplia o conceito de racionalidade para uma teoria da ao comunicacional.

    A teoria da ao comunicacional de Habermas, segundo Dejours, considera trs tipos de racionalidade: cognitivo-instrumental ou instrumental, orientada pelos critrios de finalidade e eficcia no mundo objetivo; axiolgica ou moral prtica, em relao a normas e valores no mundo social. O termo prtico refere-se ordem da prxis, resultante de uma escolha deliberada moralmente, diante de situaes que no podem ser dominadas pelas cincias experimentais; e racionalidade expressiva ou dramatrgica, ou da representao de si mesmo no mundo subjetivo (p.69)39.

    Apesar de defender uma perspectiva crtica em relao teoria da ao de Habermas, Dejours situa sua abordagem no mbito do agir comunicacional. Toda ao desenvolve-se nos trs tipos de racionalidade e o que se passa em uma delas reflete-se nas demais. o que ocorre com o trabalho, que possui um objetivo tcnico ou de produo, mas tambm se desenvolve no mundo social e tambm necessita de esforos pessoais, um engajamento subjetivo de cada trabalhador, de expectativas em relao auto-realizao e da construo de defesas contra o sofrimento. Assim, ao invs de racionalidade expressiva ou dramatrgica, Dejours denomina a terceira racionalidade de racionalidade subjetiva ou racionalidade ptica (do pathos), por envolver aspectos subjetivos no abordados por Habermas e referir-se experincia vivida. A clnica do trabalho de Dejours visa aumentar a racionalidade subjetiva na ao.15

    A Psicodinmica do Trabalho tanto uma prxis, uma modalidade de interveno no

    campo, como tambm uma disciplina produtora de conhecimentos. A Psicodinmica antes

  • 31

    de tudo uma clnica, porque a fonte de inspirao est neste campo, assim como sua teoria est alicerada na Psicanlise, mas atua em campo radicalmente diferente da cura. Desenvolve-se a partir de uma indagao direcionada ao mbito do trabalho, expressa dentro do conceito de ser humano formulado pela Psicanlise. No se trata, entretanto, de uma

    Psicanlise aplicada.15

    De acordo com a perspectiva psicanaltica, Dejours considera que o sujeito do inconsciente se constitui a partir do momento em que atravessado pela ordem da linguagem em suas origens, antes do encontro com a situao de trabalho. Confrontado posteriormente com a situao de trabalho, o sujeito pode se deparar com o que resiste realizao de si mesmo. Da oposio entre as expectativas que foram engendradas desde a infncia de um

    lado e a resistncia contrria imposta pelo atual cenrio do trabalho produz-se uma vivncia de sofrimento, que o sujeito tenta superar. No entanto, do ponto de vista da Psicanlise, o trabalho no s fonte de sofrimento, mas tambm fonte de prazer, de realizao pessoal, de reconhecimento.15

    A Ergonomia tambm contribuiu para a formao do campo conceitual da Psicodinmica do Trabalho atravs das noes de trabalho prescrito e trabalho real ou atividade. Mas, segundo Dejours, preciso diferenciar a noo de atividade, prpria da Ergonomia, da organizao do trabalho, prpria da Psicodinmica. 15

    A atividade proveniente da Ergonomia dos Fatores Humanos (Human Factors) orientada apenas por uma racionalidade instrumental ou cognitivo-instrumental, que leva em conta a eficcia na racionalizao das tarefas prescritas. J a noo de atividade da

    Ergonomia da Atividade, que teve seu surgimento no Conservatoire National des Arts et Mtiers (CNAM), quando Alain Wisner era diretor do Laboratrio de Ergonomia, tem um outro sentido.15

    A Ergonomia da Atividade emerge como crtica ao taylorismo, que concebia o operrio como destitudo de criatividade e subjetividade, a servio do capitalismo. Wisner, Daniellou, Teiger e Laville so alguns ergonomistas que representam essa corrente terica.

    Daniellou & Bguin (p.285)13 afirmam que: O trabalho efetivamente realizado no coincide com os procedimentos formais que o definem ou com as descries que dele d a hierarquia

    [...] nessa distncia que se baseia a distino entre trabalho prescrito e trabalho real, estabelecida h muito tempo em ergonomia.

    No entanto, o que diferencia a Ergonomia dos Fatores Humanos da Ergonomia da Atividade, como esclarece Daniellou & Bguin (p.283)13, o fato de que a ergonomia de

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    lngua francesa colocou no centro de seus modelos a referncia atividade de trabalho (incluindo a Frana e a Blgica).

    Duas dimenses so importantes para marcar essa diferenciao: a diversidade e a variabilidade. A diversidade dos produtos fabricados, das demandas feitas pelos clientes, da

    constituio fsica dos operadores, dos conhecimentos tcitos necessrios ao bom desempenho; e a variabilidade representada pelos incidentes de produo, variao de

    tolerncia das matrias-prima (e.g.). A diversidade e a variabilidade fazem com que se possa prever apenas em parte a execuo da tarefa. 13

    Segundo Daniellou & Bguin13, o objetivo da Ergonomia no consiste em reduzir a diversidade ou variabilidade, mas caracteriz-la e incorpor-la no plano dos sistemas tcnicos,

    da organizao e da formao. essencial que os operadores, individual e/ou coletivamente, possam gerir o conjunto de situaes em condies eficazes e compatveis com sua sade.

    Por sua vez a organizao do trabalho real (p.63)15 para a Psicodinmica envolve o afastamento das prescries para dar incio interpretao (id.) e, no mbito coletivo, a um produto das interpretaes possveis e s vezes discordantes dos agentes, das relaes sociais entre eles. A Psicodinmica enfatiza a racionalidade subjetiva e tem por objeto os processos intersubjetivos que tornam possvel a gesto social das interpretaes do trabalho pelos indivduos criadoras de atividades, de saber-fazer e modos operatrios novos (grifo do autor). (p.64)15

    Habermas procura construir uma filosofia da ao. A Psicodinmica do Trabalho esfora-se em pensar uma psicologia da ao. Dejours (p.204)15 afirma que o drama [vivncia] na racionalidade ptica [de pathos] remete essencialmente psicologia concreta, no sentido em que Politzer confere a esse termo. A racionalidade ptica o drama humano

    experienciado pelo prprio sujeito. Politzer criticava tanto os que se dedicavam a uma investigao conceitual, como os

    que procuravam no laboratrio fazer psicologia experimental. Politzer os chamava de abstratos, criticava-os por no apreenderem o verdadeiro objeto da psicologia: o indivduo concreto. Politzer apresenta as idias de eu (no sentido de primeira pessoa e no de ego) e de ato, como centrais para a formao de qualquer teoria psicolgica.40 isso que seria uma psicologia cientfica, a partir da configurao desses elementos numa totalidade que representa a vida humana, na qual encontramos o eu como centro dessa apreenso. Politzer considerava a psicanlise como o emergir dessa psicologia cientfica que ele denomina de psicologia concreta. Mas no uma psicanlise sujeita aos modelos das cincias naturais, fazendo crtica metapsicologia freudiana, nos seus aspectos tericos. Para Politzer a verdade

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    da psicanlise estaria com a clnica e o erro com a teoria. A primeira pessoa representa para Politzer no tratar o fato psicolgico como independente da pessoa que o vive, colocando o eu no centro dos fatos que se definem pelo sentido que tm para a prpria pessoa (uma idia que se aproximaria da idia freudiana de realidade psquica).40

    A Anlise Psicodinmica do Trabalho foi uma expresso criada por Dejours que: Designa o estudo dos movimentos psicoafetivos gerados pela evoluo dos conflitos inter e intra-subjetivos. A anlise psicodinmica estende-se at a esfera da concretude e aponta seletivamente o drama vivido, seu contedo e o sentido que reveste para aquele que o vivencia. (p.94)15

    Dejours aponta que a Psicodinmica se ope metapsicologia freudiana, na medida em que esta ltima estuda os processos, as estruturas e os equilbrios das foras na esfera abstrata dos mecanismos, das instncias ou tpicos do aparelho psquico e da economia das pulses (p.94)15.

    Dejours (p.95)15 afirma que houve uma distoro no termo psicodinmica, pois Freud 41 faz referncia Dinmica da Transferncia e no ao termo psicodinmica, que foi forjado por Dejours. Conceitualmente Dejours (p.95)15 refere-se a uma extenso abusiva do termo para uma clnica demasiadamente envolvida com o real. Em que consiste esta distoro?

    Os conceitos de tarefa e atividade, provenientes da Ergonomia, remetem ao real para Dejours. diferena do trabalho real, o real do trabalho definido por ele como o que resiste ao domnio individual ou coletivo pela simples aplicao das recomendaes, tanto nos registros dos objetos materiais quanto do humano e do social. (p.136)15

    O conceito de real do trabalho tem ligao estreita com a nova definio de trabalho, proposta por Dejours (p.135)15: O trabalho a atividade coordenada de homens e mulheres para defrontar-se com o que no poderia ser realizado pela simples execuo prescrita de uma tarefa de carter utilitrio com as recomendaes estabelecidas pela organizao do trabalho.

    De outra forma essa definio enunciada pelo autor: Trabalho a atividade manifestada por homens e mulheres para realizar o que ainda no est prescrito pela

    organizao do trabalho. (p.65)15

    O real o que falta para que sujeitos, homens e mulheres, transformem a tarefa em atividade. Se para ajustar a organizao prescrita necessria a criao do novo, por sua vez a iniciativa e a criatividade exigem uma forma de inteligncia especfica prxima do que o senso comum chama de engenhosidade (grifo do autor) (p.66)15, uma inteligncia que se exerce no campo da prtica. Baseando-se no conceito de atividade subjetivante de Bhle e Mikau, Dejours prope a conceituao de inteligncia operria ou inteligncia da prtica

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    ou inteligncia astuciosa para esse tipo de inteligncia, pois no prpria apenas dos operrios, mas neles que se exerce sua forma mais tipificada.15

    A inteligncia da prtica uma atividade de concepo, no sentido da mtis (descrita por Dtienne e Vernant) (p.66)15, e no de execuo, a qual remete thmis, que so as atividades objetivantes (segundo Bhle e Mikau) (id.), considerando que um sujeito como um todo que a realiza e no simplesmente um fiel operador de tarefas prescritas. Segundo

    Dejours, as inovaes devido s interpretaes da organizao prescrita devem ser coordenadas e haver cooperao entre os agentes nos debates diante das contradies do trabalho real, para que no sejam destrudas as principais vantagens da inteligncia da prtica. Entretanto a cooperao s se efetiva se os trabalhadores manifestarem desejo de cooperar (orexis), que se expressa em mobilizao subjetiva, algo que jamais pode ser prescrito pela organizao. (p.69)15

    Desde seus estudos iniciais em Psicopatologia do Trabalho, Dejours j tinha se deparado com dois tipos principais de sofrimento dos trabalhadores: o medo e o tdio (p.144)15. Para enfrent-los, os trabalhadores elaboravam procedimentos defensivos. Uma vez que o sofrimento nesse caso s pode ser apreendido atravs das defesas, a Psicopatologia do Trabalho, para a corrente de Dejours, interessa-se inicialmente mais pelas defesas que pelo sofrimento em si.

    No que se refere ao medo, a engenhosidade no trabalho envolve transgresses s prescries, aos regulamentos e aos procedimentos prescritos. Nesse caso no h s um risco jurdico, h tambm um sofrimento pela ambivalncia afetiva gerada. Em face do sofrimento, o ego no fica passivo, desenvolve mecanismos de defesa. A Psicopatologia e a Psicodinmica do Trabalho mostram a existncia tanto de defesas individuais, quanto

    estratgias defensivas coletivas, que tm em comum atenuar a percepo e conscincia desse sofrimento. A percepo do risco se contrape tentativa de eufemizar, abrandar a conscincia do sofrimento, atravs da negao do risco.15, 39

    Como mecanismos de defesa individuais Dejours refere-se tambm auto-acelerao nas tarefas repetitivas que levam a uma paralisao psquica, evitando o tdio e o esgotamento mental (p.176)15. Outro mecanismo a que ele se refere hiperatividade dos executivos, que levam a uma represso do funcionamento psquico, da atividade mental de fantasia, para resistir aos constrangimentos da organizao do trabalho (p.179)15. O estado de paralisao psquica ou de represso pulsional construdo de forma defensiva leva ao estado do pensamento operatrio e da depresso, descritos em Psicossomtica (p.176)15, cujas

  • 35

    conseqncias so o aparecimento no de doenas mentais, mas de doenas somticas (grifo do autor).

    Para lutar contra o medo, os trabalhadores criam tambm estratgias defensivas coletivas. Dessors, corroborando Dejours, afirma que muitas vezes estas se manifestam por atitudes que:

    Invertem simbolicamente a posio subjetiva dos operadores em relao a esses riscos. De vtimas potenciais, passivamente expostas a um risco no controlado, eles tornam-se atores voluntrios de um filme do qual so eles que constroem o cenrio. (apud Vasconcellos e Lacomblez, p.166) 42

    As estratgias defensivas coletivas (p.182)15, que emergem como recusa de obedincia aos procedimentos de segurana, indisciplina manifesta em relao s recomendaes de preveno aos acidentes (e.g.) (p.182)15, cuja finalidade a negao do perigo assumida de forma coletiva, foram denominadas por Dejours de ideologias defensivas da profisso.15, 37

    As resistncias individuais ao sofrimento no trabalho acompanham as resistncias

    coletivas, no centro das quais se encontram as ideologias coletivas de profisso (p.139)37. Mais do que resistncias, as ideologias coletivas de profisso se valem ainda de outros meios para consolidar as defesas, mantendo-as sob controle. Por exemplo, a proibio de falar sobre o assunto medo, de falar em acidentes, em doena, em dor ou na morte, assumidas

    coletivamente. (p.183)15

    Desta forma, Cru & Dejours16 apresentam uma hiptese radicalmente oposta aos discursos tradicionais sobre a preveno:

    Os trabalhadores conhecem implicitamente, em profundidade, os perigos do seu trabalho e, provavelmente, defendem-se espontaneamente (isto , de uma forma no perceptvel pela organizao do trabalho), no somente contra o medo (papel das ideologias defensivas da profisso), mas tambm contra os prprios riscos, defendendo-se destes de uma forma concreta, recorrendo a procedimentos especficos eficazes, no decurso do prprio trabalho. (p.243)16

    No tocante defesa contra os riscos, Cru & Dejours16 fazem referncia a uma importante descoberta, denominada pelos mesmos de saberes-fazer de prudncia (savoir-faire de prudence), que so normas criadas na atividade, coletivamente, para combater os riscos, normas de segurana aprendidas com a arte do ofcio, indissociveis dos saberes-fazer

    da profisso. Os saberes-fazer de prudncia so invenes, normas de segurana construdas como regras de ofcio (p.133)43, expresso criada por Damien Cru, que no esto necessariamente de acordo com as prescries, geradas pela inteligncia da prtica para atender tambm aos objetivos de procedimentos de trabalho mais eficazes.

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    Segundo Cru & Dejours (p.239)16, no setor da construo civil na Frana, especialistas em preveno no trabalho procuraram introduzir procedimentos de segurana transmitidos aos operrios supostamente ignorantes ou inconscientes dos riscos, tentando controlar nos mnimos detalhes, os gestos e modos operatrios de cada operrio. O coletivo de

    trabalhadores preferiu renunciar preveno vinda do exterior e embasar-se na preveno espontnea nascida dos saberes das profisses e das tradies operrias do setor da

    construo.

    A imposio de normas estranhas ao patrimnio dos ofcios dos trabalhadores criam uma ruptura com seus saberes e, na tarefa modificada, as experincias anteriores no mais serviro de base para o desenvolvimento de novos saberes, ocasionando acidentes. Portanto,

    uma preveno que queira ser eficaz necessita da implicao do trabalhador no processo de gesto de riscos, pela incluso das suas estratgias de regulao de riscos.44

    Dejours enfatizou a centralidade do trabalho para a vida humana, que no s lugar de sofrimento patognico. Atravs do conceito freudiano de sublimao45, que se refere substituio de um alvo pulsional por outro de maior valor social, por ressonncia simblica, possvel vislumbrar no trabalho um mediador na construo da identidade, na transformao do sofrimento em prazer, na realizao subjetiva originada pela histria pessoal desde a infncia, no engajamento social pelo reconhecimento de seus pares e um operador de sade.15

    As pesquisas clnicas de Dejours foram realizadas, em parte, junto a operrios ou trabalhadores para os quais a sublimao, nesse sentido, era quase impossvel diante dos constrangimentos da organizao do trabalho. A Psicodinmica do Trabalho ampliou a forma

    de abordagem nas questes do trabalho, empreendendo crtica s concepes reducionistas, abordando de modo singular e inovador as relaes entre a sade mental e o trabalho.15

    4.2.2 SADE DO TRABALHADOR

    O trabalho, em sentido mais amplo, como um conjunto de atividades intelectuais e manuais, organizadas pela espcie humana e aplicadas sobre a natureza, visando assegurar sua subsistncia (p.17)46, sempre existiu. Para alm dessa concepo, Marx conceituou o trabalho como um processo entre o ser humano e a Natureza, no qual, ao modific-la, o ser humano modifica, ao mesmo tempo, a sua prpria natureza.47

    Entretanto, a relao entre o trabalho e a sade daqueles que trabalham nem sempre se configurou como um assunto de interesse ao longo da histria. No perodo greco-romano, a

    preocupao com a sade do escravo e do trabalhador manual livre era mnima ou inexistia. Na

  • 37

    antiguidade clssica, o tratado de Hipcrates (Ares, guas e lugares), que procurava informar ao mdico a relao entre o ambiente e a sade, omitiu um elemento significativo: a ocupao dos trabalhadores manuais.48

    O primeiro estudo completo sobre doena profissional foi publicado em 1700 por

    Bernardino Ramazzini (1633-1717) no livro As doenas dos trabalhadores (De morbis artificum diatriba). Descreveu 54 profisses artesanais em ofcios, corporaes e manufaturas. Ramazzini (p.31)48 instituiu as bases do conceito de medicina social, propondo a necessidade do estudo das relaes entre o estado de sade de uma populao e suas condies de vida, que so determinadas por sua posio social, expresso do regime poltico conhecido como mercantilismo.

    A Polcia Mdica sade da populao surgiu na Alemanha entre os sculos XVIII e XIX, reflexo de sua situao poltica e econmica, da necessidade de unificao e

    fortalecimento dos estados alemes.49 Na Frana, no sculo XVIII a medicina social j apontava, mas foi no sculo XIX, que

    a medicina social voltou-se para a sade urbana e apresentou alguns trabalhos sobre a sade dos trabalhadores nas fbricas. Alguns autores foram precursores da investigao social em sade na Frana, como Villerm, que enfatizou os fatores econmicos e sociais, quando demonstrou seu interesse em estudar os problemas de sade dos operrios txteis do norte e do leste da Frana em funo das condies de vida, na fbrica e fora dela (trabalho, vesturio, lazer e outros). Desplanques mostrou as desigualdades diante da morte prematura, segundo as categorias scio-profissionais na Frana.50

    Na Inglaterra, atravs de Chadwick, foi elaborado um plano administrativo de preveno das doenas, interferindo no ambiente fsico e social. Mas Rosen51 aponta que a

    Nova Lei dos Pobres criada por Chadwick tinha como objetivo maior criar um mercado livre de mo-de-obra. Segundo Rosen51 a histria da sade pblica reflete o desenvolvimento da cincia e da tecnologia mdicas, entretanto a aplicao desse conhecimento depende de fatores econmicos e sociais.

    A Revoluo Industrial iniciou-se na Inglaterra, no sculo XVIII. Caracterizou-se pela mecanizao dos meios de produo. A Inglaterra se industrializou cem anos antes das outras

    naes, dando um grande salto tecnolgico com as mquinas a vapor e a indstria txtil, devido grande quantidade de carvo mineral que servia de combustvel nas mquinas a vapor e minrio de ferro que servia de matria-prima para as mquinas.51

  • 38

    Se o interesse do capitalista era aumentar sua riqueza, no havia a princpio preocupao com a sade dos trabalhadores. As condies de sade dos trabalhadores nas fbricas eram precrias.51

    Foucault52 afirma que a medicina do sculo XVIII tanto uma medicina do indivduo

    quanto da populao. A diviso das duas, ou o surgimento de uma medicina individual, um fenmeno do sculo XIX.

    A Medicina do Trabalho, como especialidade mdica, surge na Inglaterra, na primeira metade do sculo XIX, com a Revoluo Industrial. O dono de uma fbrica txtil, percebendo que o processo de produo poderia entrar em colapso, por causa das condies desumanas e de falta de cuidados mdicos de seus operrios, solicitou ao seu mdico particular que lhe

    indicasse uma soluo. O Dr. Robert Baker sugeriu que o colocasse como intermedirio entre o dono da fbrica e os trabalhadores, com a finalidade de prevenir os danos sade. Assim o

    mdico seria o nico responsabilizado. 53

    A Medicina do Trabalho centrada na figura do mdico, que por sua vez de inteira confiana do empresrio, tendo por objetivos: a proteo dos trabalhadores de qualquer risco que resulte de seu trabalho ou das condies em que se efetue; contribuir adaptao fsica e mental, pela adequao do trabalho s aptides; estabelecimento do nvel mais elevado de bem-estar fsico e mental destes. 53

    A Medicina do Trabalho apresenta limites por ser uma atividade unicamente mdica; a adequao ao trabalho restringe-se seleo de candidatos a emprego e sua adaptao ao trabalho, atravs de atividades educativas; alm disso, a manuteno do nvel mais elevado

    possvel de bem estar fsico e mental uma concepo positivista, cujo objetivo a produtividade, estando o trabalhador na posio de objeto nas aes.53

    Aps a Segunda Guerra Mundial, a tecnologia industrial evoluiu de forma intensa, pelo desenvolvimento de novos equipamentos, novos processos e nova diviso do trabalho. A Medicina do Trabalho no era capaz de intervir sobre situaes inerentes aos processos de produo. Tanto os trabalhadores, que eram ainda considerados objetos nas aes, estavam insatisfeitos, quanto os empresrios, com os custos dos agravos sade dos empregados. Era preciso intervir sobre o ambiente, com a interveno de outras disciplinas.53

    A Sade Ocupacional surge com o apelo interdisciplinaridade e nfase ambiental, intervindo sobre os riscos nos locais de trabalho. No entanto a Sade Ocupacional no conseguiu atingir os objetivos, pelas seguintes razes: o modelo mantm o referencial da Medicina do Trabalho, calcado no mecanicismo; no concretiza o apelo

    interdisciplinaridade; a capacitao de recursos humanos no acompanha o ritmo da

  • 39

    transformao dos processos de trabalho; o modelo, embora enfoque o coletivo dos trabalhadores, continua considerando-os como objetos; a Sade Ocupacional foi mantida no setor trabalho, em detrimento do setor sade. 53

    A insuficincia do modelo da Sade Ocupacional teve sua origem em cenrios

    polticos e sociais especficos. Na segunda metade da dcada de 1960 surgiram nos pases industrializados um questionamento sobre o sentido da vida, o significado do trabalho e

    outros, enfim, uma mudana de valores. Diversos movimentos sociais emergiram, como o movimento dos trabalhadores na Itlia, pela conquista de direitos e maior segurana no trabalho, como o direito recusa ao trabalho em condies de risco grave sade e o estabelecimento de mecanismos de participao, desde a escolha de tecnologias at a escolha

    dos profissionais que iriam atuar nos servios de sade no trabalho.53

    A nvel micro, ocorreu implantao de novas tecnologias, entre as quais a

    automao (mquinas de controle numrico, robs) e a informatizao, que introduziram profundas modificaes na organizao do trabalho. Permitiram ao capital diminuir sua dependncia dos trabalhadores, ao mesmo tempo em que aumentaram a possibilidade de maior controle. Ressurgiu o taylorismo, com mais fora, atravs de dois princpios bsicos: primazia da gerncia (pela apropriao do conhecimento operrio e interferncia nos mtodos e processos) e importncia do planejamento e controle do trabalho. Se houve tentativa de reintroduzir o taylorismo, tambm abriu espao para a resistncia da parte dos trabalhadores e, em conseqncia disso, foram criados meios de ampliao da sua participao no trabalho, para diminuir os enfrentamentos.53

    A partir dos anos 60 surgiram crticas teoria da multicausalidade do processo sade-doena, onde os fatores de risco so considerados com o mesmo potencial de agresso ao

    homem, visto como hospedeiro das doenas, base da Sade Ocupacional que se contrapunha ao modelo mdico. Neste processo de discusses tericas, surge a teoria da Determinao Social do processo sade-doena, centralizada no trabalho como organizador da vida social, aumentando os questionamentos Medicina do Trabalho e Sade Ocupacional.53 Vale

    destacar as contribuies da Medicina Social latino-americana de Laurell e Noriega54, no Mxico e Tambellini 9, no Brasil.

    Na Itlia, Berlinguer55 teve efetiva participao na Reforma Sanitria Italiana e Ivar Oddone56, no Movimento Operrio Italiano, um movimento poltico, cultural, social e cientfico pela sade dos trabalhadores, reunindo profissionais de diversas reas, sindicato e os prprios trabalhadores, servindo de modelo e influenciando o campo da Sade do

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    Trabalhador. Iniciado no final dos anos 60, apresentou uma proposta inovadora de participao ativa dos principais interessados.

    No setor pblico do Brasil, como exigncia dos prprios trabalhadores, criado o Departamento Intersindical de Estudos e Pesquisas de Sade e dos Ambientes de Trabalho

    (DIESAT), que tenta superar o assistencialismo mdico. O DIESAT foi um precursor dos Programas de Sade do Trabalhador, com a participao dos prprios trabalhadores e de suas

    entidades de classe. Lacaz57 enfatiza que estes programas integraram a assistncia e a vigilncia, propondo a ateno sade da populao trabalhadora de forma programtica, atravs de uma rede de relaes que incorporam a gesto participativa.

    Por sua vez, Foucault58 alerta sobre o controle e o poder mdicos, que pode ser

    deflagrado na Medicina.

    Segundo Mendes & Dias53, as conseqncias desse processo social de mudanas

    foram:

    desconfiana dos trabalhadores nos procedimentos tcnicos e ticos dos

    profissionais da Sade Ocupacional

    questionamento dos exames mdicos discriminatrios

    incerteza quanto aos limites de tolerncia estabelecidos

    a organizao do trabalho na relao sade-trabalho requer novas estratgias para a modificao das condies de trabalho

    a utilizao de novas tecnologias- em especial a automao e a informatizao nos processos de trabalho, embora contribua para a melhoria das condies de

    trabalho, introduzem novos riscos sade, decorrentes da organizao do trabalho, difceis de medicalizar

    as modificaes a nvel macro (terciarizao e terceirizao) e micro (automao e informatizao) ocasionam um deslocamento do perfil de morbidade: as doenas profissionais clssicas so substitudas pelas doenas relacionadas ao trabalho. H um aumento de doenas cardiovasculares, distrbios mentais, cncer e estresse,

    entre outras. A Sade Ocupacional passa a se ocupar da promoo de sade, no sentido apenas de tentar mudar o estilo de vida e o comportamento das pessoas.

    A Sade do Trabalhador emerge nesse contexto, como um campo em construo na Sade Pblica, como uma sub-rea da Sade Coletiva.53

    Seu objeto o processo sade-doena dos grupos humanos, em sua relao com o trabalho. Procura compreender todo o processo e montar estratgias de interveno, que

  • 41

    levem transformao, atravs da apropriao pelos trabalhadores de uma posio ativa, enfatizando a dimenso humana.53

    A Sade do Trabalhador rompe com o vnculo causal entre a doena e um agente especfico ou um grupo de fatores de risco e tenta superar o enfoque da Determinao Social,

    reduzido ao processo produtivo da Sade Ocupacional, que desconsidera a subjetividade. Focaliza tambm os processos de trabalho articulados com as representaes sociais na

    civilizao industrial.53

    A Sade do Trabalhador considera o trabalho como organizador da vida social, de lutas sociais desiguais, pela submisso do trabalhador ao capital, mas tambm de resistncia, em que assumem a posio de sujeitos.53

    Num contexto scio-poltico, os trabalhadores buscam o controle dos ambientes de trabalho para torn-los mais saudveis. Os trabalhadores questionam as alteraes no processo

    de trabalho, como a adoo de novas tecnologias, exercitando o direito informao e recusa ao trabalho perigoso sade.53

    Na sua implementao contam com profissionais especializados e o suporte dos servios pblicos, sindicatos e outros. As universidades e Institutos de Pesquisa tambm do suporte efetuando pesquisas na rea.53

    A organizao do trabalho um fator importante na Sade do Trabalhador. O modo de produo capitalista adquiriu seus contornos aps as primeiras