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Universidade Federal de Campina Grande Programa de Pós-Graduação em Linguagem e Ensino 1 ANAIS ELETRÔNICOS ISSN 235709765 PROEZAS E RESISTÊNCIA NA POESIA DE CORDEL Thaísa Rochelle Pereira MARTINS (UFCG) Naelza de Araújo Wanderley (UFCG) 1 RESUMO Uma das formas de resistência na poesia se dá na medida em que ela, por meio da criação de imagens e formas peculiares, sobrevive a um meio hostil e marcado por mecanismos que visam o lucro e a produtividade. De acordo com Bosi (2000), essa poesia possui um discurso poético que não pode ser manipulado pela indústria do consumo, ao contrário, muitas vezes, esse discurso apresenta um forte sentido contra- ideológico e propõe a recuperação de ideias, concepções e sentimentos que acabam sufocados pelo sistema de mundo com o qual convivemos. Assim, partindo da discussão de Bosi (2000), o presente trabalho tem por objetivo principal observar de que forma a resistência se apresenta na poesia de cordel, para tanto,enfatizaremos algumas das passagens do folheto Proezas de João Grilo, de João Ferreira de Lima e João Martins de Athayde, através de uma leitura da constituição da imagem do personagem João Grilo, nesse sentido, tomaremos como ponto de partida as discussões de González (1994) e Bakhtin (1999). Além dos comentários que teceremos acerca de algumas passagens do folheto, também abordaremos o recorte de uma experiência de leitura que apresenta a recepção dos alunos em relação a essas passagens e à imagem do personagem do cordel. Dessa forma, para discorrer sobre a literatura de cordel, de maneira geral, nos fundamentaremos nas discussões de Abreu (1999) e Ayala (1997). Para comentar sobre a relação entre a literatura de folhetos e o ensino, nos remeteremos a Pinheiro (2013) e Marinho e Pinheiro (2012). Palavras chave: Poesia. Cordel. Resistência. Ensino INTRODUÇÃO 1 A professora Dra. Naelza de Araújo Wanderley é professora do programa de pós-graduação em Linguagem e Ensino, na linha de Literatura e ensino, da Universidade Federal de Campina Grande.

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ANAIS ELETRÔNICOS ISSN 235709765

PROEZAS E RESISTÊNCIA NA POESIA DE CORDEL

Thaísa Rochelle Pereira MARTINS (UFCG) Naelza de Araújo Wanderley (UFCG)1

RESUMO

Uma das formas de resistência na poesia se dá na medida em que ela, por meio da criação de imagens e formas peculiares, sobrevive a um meio hostil e marcado por mecanismos que visam o lucro e a produtividade. De acordo com Bosi (2000), essa poesia possui um discurso poético que não pode ser manipulado pela indústria do consumo, ao contrário, muitas vezes, esse discurso apresenta um forte sentido contra-ideológico e propõe a recuperação de ideias, concepções e sentimentos que acabam sufocados pelo sistema de mundo com o qual convivemos. Assim, partindo da discussão de Bosi (2000), o presente trabalho tem por objetivo principal observar de que forma a resistência se apresenta na poesia de cordel, para tanto,enfatizaremos algumas das passagens do folheto Proezas de João Grilo, de João Ferreira de Lima e João Martins de Athayde, através de uma leitura da constituição da imagem do personagem João Grilo, nesse sentido, tomaremos como ponto de partida as discussões de González (1994) e Bakhtin (1999). Além dos comentários que teceremos acerca de algumas passagens do folheto, também abordaremos o recorte de uma experiência de leitura que apresenta a recepção dos alunos em relação a essas passagens e à imagem do personagem do cordel. Dessa forma, para discorrer sobre a literatura de cordel, de maneira geral, nos fundamentaremos nas discussões de Abreu (1999) e Ayala (1997). Para comentar sobre a relação entre a literatura de folhetos e o ensino, nos remeteremos a Pinheiro (2013) e Marinho e Pinheiro (2012).

Palavras chave: Poesia. Cordel. Resistência. Ensino

INTRODUÇÃO

1 A professora Dra. Naelza de Araújo Wanderley é professora do programa de pós-graduação em

Linguagem e Ensino, na linha de Literatura e ensino, da Universidade Federal de Campina Grande.

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A Literatura de cordel é uma forma específica de manifestação popular e por

muito tempo foi colocada à margem das produções literárias consideradas eruditas,

isso por motivações mais políticas que propriamente estéticas. Como bem nos lembra

Abreu (2006), existe uma gama de textos que são apreciados de maneiras distintas

conforme a época e a formação cultural de cada indivíduo, entretanto, existem grupos

sociais que tomam como válidas apenas um campo específico de produções e de

apreciação estética. Assim, como salienta a autora, apenas determinadas obras, de

determinadas culturas elitistas ou de prestígio social, acabam tendo o seu sentido e

valor estético reconhecido como único ou “correto” no cerne da Literatura, deixando

de lado outras formas de construção artística.

Atualmente, várias pesquisas vêm demonstrando o valor estético das

produções populares, como é o caso dos folhetos de cordéis nordestinos, os quais

possuem em seus versos a forte presença da voz, ideologia e imaginário de um povo.

Uma das principais características que pode ser observada nessa poesia é a resistência.

Em primeiro lugar, de modo geral, a literatura popular e sua sobrevivência por si só já

representa certa resistência, uma vez que essa literatura “para existir contemporânea

e simultaneamente a outras formas de cultura (que conta com meios poderosos de

produção, divulgação e veiculação), não pode abrir mão do seu tempo comunitário”

(AYALA, 1997, p. 160), e em um mundo controlado pelo lucro e pelo relógio, as trocas

de experiências, uma das responsáveis pela manutenção e atualização da cultura

popular, são cada vez mais dificultadas.

No que diz respeito à relação da literatura de cordel com o ambiente escolar,

Marinho e Pinheiro (2012) enfatizam que as experiências culturais fortes, como a do

cordel, estão praticamente esquecidas e, nesse sentido, a escola pode se converter em

um espaço de divulgação dessas experiências. Principalmente demonstrando de que

forma ela vem sobrevivendo em meio à cultura de massa. Além disso, em um mundo

cada vez mais marcado pela individualismo e pela manipulação dos gostos, as

experiências de base comunitária podem ser de grande valia para a formação do

sujeito.

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Além de sobreviver através das experiências comunitárias, o cordel apresenta a

própria resistência de um povo que enxergou na literatura de folhetos uma maneira de

se fazer visível e de exprimir sua voz. Ainda de acordo com Abreu (1999), o tom de

indignação, de protesto e os assuntos sobre as diferenças econômicas e sociais são

constantes na produção nordestina, sendo assim, essa poesia pode ser encarada como

resistência simbólica ao sistema dominante, às ideologias opressoras e às relações

sociais de um mundo marcado pela desigualdade.

São inúmeros os folhetos que abordam uma poesia que vai de encontro às

ideias e preceitos dominantes, dentre esses se destaca Proezas de João Grilo, de João

Ferreira de Lima e João Martins de Athayde. Dessa forma, tomando como ponto de

partida os aspectos peculiares da literatura de cordel, analisaremos no presente

trabalho de que forma a construção da imagem do personagem João Grilo contribui

para que esse folheto, assim como tantos outros, represente uma poesia de

resistência, partindo das discussões de Bosi (2000). Sabemos que ao abordar os

aspectos que levam a poesia a se constituir como resistência, o autor não faz menção à

literatura de cordel, no entanto, é possível observar em vários cordéis os elementos

elencados por Bosi (2000) para se referir à natureza resistente da poesia.

A configuração da resistência na poesia de cordel e as imagens poéticas

construídas por essa literatura podem contribuir de maneira significativa para o

trabalho de leitura literária na escola e para que o aluno-leitor, através de uma

experiência peculiar com o texto de cordel, construa conhecimentos. Sendo assim,

também discutiremos como os aspectos principais do cordel Proezas de João Grilo,

aqueles que serão privilegiados em nossa leitura foram recepcionados em sala de aula,

por uma turma do 1° ano do Ensino Médio No tópico seguinte, adentraremos de

maneira mais detalhada sobre a configuração da resistência na poesia de cordel e,

posteriormente, comentaremos algumas passagens do cordel e de que forma essas

passagens foram compreendidas em sala de aula.

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A RESISTÊNCIA NA POESIA DE CORDEL

De acordo com Bosi (2000), a poesia é símbolo de resistência na medida em

que ela veicula assuntos, pensamentos, temas que se contradizem à lógica de um

sistema capitalista e burguês. A dominação desse sistema implica uma propagação de

informações e ideologias que estão subordinadas ao esquema do mercado, ou seja,

“as almas e os objetos foram assumidos e guiados, no agir cotidiano, pelos

mecanismos do interesse, da produtividade.” (BOSI, 2000, p.164). A poesia, através de

suas variadas formas de expressão, se utiliza da linguagem para construir imagens que

vão de encontro aos ideais capitalistas; em um mundo marcado pelo individualismo e

pela desigualdade, o discurso poético, muitas vezes, prega o retorno da comunhão dos

seres, o resgate de sentimentos, afetos e ideias que foram sendo esquecidas conforme

as relações de poder foram sendo construídas e solidificando-se no sistema vigente.

Para Bosi (2000), portanto, as formas peculiares pelas quais a poesia constrói

seu sentido contra-ideológico é condição para que ela exista e sobreviva em um

mundo hostil. Ainda segundo esse mesmo autor, a poesia possui um caráter coletivo

uma vez que seu conteúdo contra-ideológico representa a voz de muitos. No que diz

respeito à poesia popular, a coletividade é uma de suas importantes marcas. Ribeiro

(1987) aborda a poesia popular como produto coletivo, não em relação a sua

composição material, já que isso é praticamente impossível, mas no que se refere a

sua condição como patrimônio e como meio de expressão comunitária. Assim, ao

próprio poeta popular é conferido certo papel social, ele passa a ser visto como “guia e

representante das aspirações do povo.” (RIBEIRO, 1987, p. 67).

Existem várias formas de construção poética, por isso, a resistência na poesia

pode assumir várias faces. É o que afirma Bosi (2000) ao destacar que a resistência

pode se apresentar através da recuperação do sentido comunitário, na poesia mítica,

por exemplo; através da confissão dos afetos, no lírico; ou por meio da crítica aos

padrões vigentes, como geralmente acontece na sátira, na paródia. Pensando nos

folhetos nordestinos, é possível confirmar que a resistência é construída de diferentes

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maneiras. Os poetas populares, desde tempos atrás, vêm criando em seus versos,

refúgios para os oprimidos, lugares ideais, novas ordens sociais, heróis, justiceiros do

povo. Um exemplo marcante de um lugar utópico na poesia de cordel é o país de São

Saruê, do clássico folheto Viagem ao país São Saruê, de Manoel Camilo dos Santos.

Neste folheto, o poeta utiliza o fantástico, o mito e o imaginário para descrever a

viagem a um lugar onde reina a fartura e a felicidade, distribuídas por igual; lá existem

“barreiras de carne assada/ lagoas de mel de abelha/ atoleiros de coalhada [...]” (p.2),

e ainda “As pedras em São Saruê/ são de queijo e rapadura/ as cacimbas são café/ já

coado e com quentura [...] (p. 3).

O lugar ideal no cordel de Manoel Camilo estabelece forte contraste com a

realidade, esta marcada pela escassez e desigual distribuição de alimentos; assim o

exagero é construído através das imagens poéticas de paisagens feitas de alimentos,

crianças que já nascem lendo (em oposição ao contexto nordestino da época, uma vez

que era grande o número de analfabetos nessa região), rios que devolvem a mocidade

aos velhos. A recuperação do sentido comunitário se faz a partir da presença de um

mito coletivo. Segundo Tavares (2005), Manoel Camilo uniu nesse cordel o mito

coletivo a uma história individual, já que traz para o seu poema lendas européias

antigas, como a do “país da Cocanha”, onde a terra é ouro em pó. É possível, pois,

delinear uma mitopoética como forma de resistência nesse folheto de Camilo e, assim,

destacar uma poesia que “recompõe cada vez mais arduamente o universo mágico que

os novos tempos renegam” (BOSI, 2000, p.174) ou que “resiste imaginando uma nova

ordem que se recorta no horizonte da utopia”. (BOSI, 2000, p.169).

Outra poesia que utiliza a fantasia, o contexto mitopoético e o regresso aos

tempos originários é a do cordelista contemporâneo Antônio Francisco. No cordel

Aquela dose de amor, por exemplo, o poeta resignifica um acontecimento bíblico, o

surgimento do pecado no mundo, para explicar a frieza e crueldade do

comportamento humano. O homem é retratado no poema como alguém que “na

cabeça tem juízo/ mas no peito pouco amor”, e isso acontece por um infeliz erro de

uma criança, provavelmente o filho de Deus, que ao ser ordenado por seu pai a ir

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buscar a dose de amor que iria ser colocada no peito do ser humano, acaba

confundindo-se e pegando o pote que contém o ódio. Assim, ao mesmo tempo em que

o homem avança em seus conhecimentos e progride em suas invenções, ele também

destrói o mundo, mata por prazer e é pobre em compaixão, pois, falta-lhe no peito a

dose de amor que foi perdida há muito tempo atrás. Esse é o tom de denuncia do

mundo, evidenciado através das construções poéticas da fantasia e do imaginário.

A crítica como forma de resistência nos folhetos nordestinos também é feita

através do riso, da criação de situações e personagens cômicos que deixam

transparecer a insatisfação e a inquietude diante do mundo e de suas engrenagens.

Bakhtin (1999) compreende o riso por meio do processo de carnavalização, esse termo

é utilizado como referência às festividades da cultura popular que aconteciam na Idade

Média. Durante essas festas, não existiam divisões de classes, era o momento em que

diferentes camadas da sociedade se misturavam para desfrutar dos espetáculos, festas

e ritos, além disso, nessas ocasiões, as entidades e autoridades sagradas eram

parodiadas e, com isso, se aboliam hierarquias. O riso, quando substância da crítica,

possui um caráter subversivo, carnavalesco, que derruba os andares da divisão social.

Esse mesmo riso, se abordado de maneira significativa na sala de aula, pode fornecer

aos alunos novas visões de mundo e levá-los a questionar a realidade na qual estão

inseridos.

No folheto Proezas de João Grilo, de João Ferreira de Lima e João Martins de

Athayde, o personagem João Grilo, ou o amarelinho, como muitos o chamam, é

construído por meio do signo do riso. Sua atitude diante do mundo e suas habilidades

para resolver problemas o colocam com ser especial, alguém que consegue ultrapassar

os limites impostos pelas divisões de classe. O sentido contra-ideológico desse folheto

é acolhido por muitos, não é à toa que o personagem permeou por vários espaços, que

não só o nordestino. No seguinte tópico, delinearemos a presença da resistência

ideológica no folheto a partir da imagem de Grilo.

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JOÃO GRILO: RISO, CRÍTICA E RESISTÊNCIA

O cordel Proezas de João Grilo é constituído até a oitava página por sextilhas,

depois da oitava página as estrofes passam a possuir sete versos. Isso acontece porque

a primeira parte do folheto foi escrita por João Ferreira de Lima e publicada na década

de 1930, anos mais tarde, o poeta João Martins de Athayde ampliou o cordel,

deixando-o com trinta e duas páginas. O esquema rímico obedece à estrutura

estabelecida para as apresentações orais, as sextilhas possuem rima em ABCBDB e as

setilhas em ABCBDDB.

Na primeira página do cordel percebemos a figura de João Grilo como um ser

predestinado a realizar proezas, já que as primeiras estrofes narram sua habilidade de

adivinhar coisas, mesmo ainda estando no ventre da mãe. Além disso, seu nascimento

é permeado por eventos incomuns como um eclipse na lua e a detonação de um

vulcão que “até hoje continua”, anunciando, assim, que Grilo, por sua natureza

diferenciada das demais, deixaria marcas no mundo. Nesse caminhar, o humor,

decorrente dos exageros, contribui para a construção do personagem como sujeito

excepcional. Em relação às proezas, na primeira parte, elas parecem ser realizadas por

puro divertimento ou por vingança, e atingem o padre, o vaqueiro e o português.

Refletindo sobre os alvos das ações de Grilo, na primeira parte do folheto,

podemos perceber que figuras como o padre e o português representam algum tipo de

poder ou superioridade, a qual declina a partir do momento que as duas figuras são

ridicularizadas por Grilo. Ao colocar uma lagartixa na batina do padre ou ao oferecer

água com um rato podre para o religioso, o amarelinho provoca o riso e, assim, há uma

dessacralização e derrocada de autoridade, o que, segundo Bakhtin (1999), suscita

uma igualdade entre os homens, e isso através do mecanismo do humor.

É interessante notar também que logo na quarta estrofe, antes do início das

travessuras do personagem, aparecem os primeiros indícios das “contradições” que

simultaneamente permeiam a figura de João Grilo e que contribuem para sua

constituição como anti-herói.

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Assim mesmo ele criou-se

Pequeno, magro e sambudo

As pernas tortas e finas

A boca grande e beiçudo

No sítio aonde morava

Dava notícia de tudo (p.1)

As rimas sambudo/beiçudo acentuam o cômico das características do

personagem que, como é enunciado logo na primeira estrofe, “criou-se sem

formosura”. Em contrapartida, os versos finais indicam a sabedoria de Grilo, que

apesar de ser desengonçado e franzino (ao contrário dos clássicos heróis), possui uma

inteligência e esperteza superior. Em outro momento do cordel, o próprio narrador

traz novamente à tona as características físicas do amarelinho, e chega a referir-se a

este como “Grilo franzino e forte.” (p.23). Essa é uma das primeiras pistas da

construção antagônica do personagem. Ao longo do folheto, como discutiremos

posteriormente, é possível observar comportamentos e características consideradas

contraditórias, mas que convergem para a constituição da imagem de João Grilo.

Na segunda parte do folheto, depois da oitava página, Grilo demonstra sua

esperteza e coragem em diferentes situações e a crítica começa a se delinear mais

nitidamente. Em determinado episódio, o personagem esquematiza um plano e

consegue roubar alguns ladrões, esse ato é “justificado” mais adiante, quando ele, ao

chegar em casa, dirige-se a sua mãe:

Chegou e disse: mamãe

Morreu nossa precisão

Ladrão que rouba ladrão

Tem cem anos de perdão

Contou o que tinha feio

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Disse a velha: está direito!

Vamos fazer a refeição.

João Grilo rouba com o principal objetivo de suprir as necessidades de sua mãe

e, através de um provérbio popular, o próprio personagem se absorve da culpa,

inclusive sua mãe também o livra da culpa através da expressão “está direito!”,

demonstrando aprovação quanto a ação do filho. Neste momento, podemos perceber

que o conceito de “certo” e “errado”, para Grilo, não possui fronteiras tão rígidas, suas

concepções são guiadas pelo contexto ou motivações de suas ações. González (1994),

ao tratar da constituição do anti-herói nos textos brasileiros, enfatiza a ausência do

maniqueísmo, de forma que, muitas vezes, o bem e o mal são rótulos trazidos de fora

para o universo dos personagens, mas não fazem parte da vida destes de maneira

delimitada, há, pois, segundo o autor, uma síntese dos contrários na personalidade e

nas atitudes do anti-herói.

João Grilo realiza diversas ações, principalmente na primeira parte do cordel,

que poderiam conferir-lhe um “caráter ruim”, o próprio padre, alvo das travessuras do

personagem, refere-se a Grilo como “natureza do cão” ou ainda como “diabo em

figura de cristão”. Porém, as ações que se seguem podem levar o leitor a configurar o

amarelinho como alguém justo e de nobres sentimentos; por exemplo, é possível

elucidar o senso de justiça do personagem no episódio em que este, depois de se

tornar uma espécie de conselheiro da corte, ajuda um mendigo que estava sendo

acusado de roubar o sabor da comida de um duque. O pobre homem deveria pagar

certa quantia em dinheiro ou iria para a chibata. Após colocar moedas na sacola do

mendigo, João Grilo dirige-se ao duque da seguinte maneira:

Você diz que mendigo

Por ter provado o vapor

Foi mesmo que ter comido

Seu manjar e seu sabor

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Pois também é verdadeiro

Que o tinir do dinheiro

Representa o seu valor! (p.27)

Neste momento, o amarelinho nordestino aparece como justiceiro e

representante dos oprimidos, utilizando sua sabedoria não só visando realizar

travessuras, como acontece nas primeiras folhas do cordel, mas com o objetivo de

praticar a justiça. A partir dessa atitude, pode-se dizer que João Grilo não age somente

em uma perspectiva individualista, suas proezas não são colocadas em prática

somente para a sua sobrevivência, mas também para realizar benefícios a terceiros.

O personagem percebe o mundo desigual que existe a sua volta e se posiciona

contra esse mundo sempre que pode; assim como acontece também no último

episódio, quando João Grilo dá uma lição em toda a corte e, dessa forma, coloca em

evidência uma importante crítica social. Ao se apresentar mal vestido na visita que faz

a um sultão, o personagem é bastante desprezado pela corte, porém, a realeza logo

muda completamente de atitude quando Grilo troca suas roupas por um traje

elegante. Ao sentar-se à mesa do jantar, o personagem derrama o vinho e a comida

em suas roupas e, diante da corte estarrecida, João justifica seu ato: “[...] Desde a

sobremesa à sopa/ Foram postas à minha roupa/ E não à minha pessoa!” (p.31). Dessa

forma, Grilo se coloca, novamente, contra certas normas e ideologias sociais, ele

contesta um mundo em que a aparência e a posição social definem o valor de uma

pessoa.

A partir dos episódios discutidos aqui, é possível compreender que a

constituição da imagem de João Grilo, do folheto de João Ferreira de Lima e João

Martins de Athayde, envolve uma predominância dos contrários, aproximando-se

assim do conceito de imagem poética como pluralidade de significados. As proezas do

amarelinho, ás vezes, são colocadas em prática por puro divertimento, o que pode

assinalar uma atitude maldosa, se formos atentar para o conceito bem definido de

certo e errado em nossa sociedade, conceitos ditados pela lei ou pela religião. Isso

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acontece, por exemplo, quando um vaqueiro, logo no começo do cordel, quase morre

afogado por culpa de Grilo. Em contrapartida, o personagem também ajuda outras

pessoas e age em prol da justiça e da igualdade. Com isso, podemos afirmar que o

comportamento do personagem não segue uma linearidade e suas atitudes, de

diversas maneiras, rompem com conceitos e limites definidos pelos padrões sociais.

Nesse sentido, diante do que fora exposto, a resistência no folheto é construída

a partir de uma crítica que evidencia a recusa aos valores dominantes, como ocorre no

episódio em que João Grilo dá uma “lição” em toda a corte. A própria configuração da

imagem de João Grilo que, como vimos anteriormente, se apresenta através de uma

síntese dos contrários, representa certa resistência, no sentido que subverte os

padrões de delimitação e definição de mal e bem. Também é possível perceber a

resistência, de maneira geral, no próprio fato do personagem conseguir se sobressair

diante de sujeitos que representam certo tipo de poder, assim, Grilo é tido como

alguém que se encontra à margem da sociedade, mas, mesmo assim consegue uma

vitória simbólica contra os seus opressores, desmontando as hierarquias e derrubando

falsos equilíbrios.

No tópico seguinte, veremos como os elementos contemplados aqui se fizeram

presentes em sala de aula a partir de um trabalho de leitura que teve como objetivo

principal possibilitar aos alunos novas visões através do riso e da crítica.

AS PROEZAS DE GRILO NA SALA DE AULA

As principais características do folheto Proezas de João Grilo, analisadas

anteriormente, podem contribuir para um trabalho de leitura que estimule os alunos a

formularem um pensamento mais crítico e expandir seus pontos de vista. Na

experiência realizada com esse cordel, em uma escola pública do município de

Sertânia- PE, com uma turma de 1° ano, os estudantes puderam ir compreendendo os

aspectos desse folheto através de seus conhecimentos prévios e, dessa forma, ampliar

suas visões de mundo, já que procuramos nos fundamentar no método recepcional

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proposto por Aguiar e Bordini (1988), o qual, a partir das discussões da estética da

recepção, abordam a questão da mobilização, questionamento e ampliação dos

horizontes do leitor-aluno através de estratégias com a leitura literária.

Na atividade de mobilização de horizontes, foi proposta a turma o

levantamento de inferência sobre o texto a partir de estrofes2 de outros cordéis que

também abordavam João Grilo como personagem. Á medida que iam lendo essas

estrofes, os discentes formulavam hipóteses sobre a possível história e personagem do

folheto. Através da leitura dessas estrofes e das inferências produzidas, os alunos

puderam antecipar algumas das características de Grilo, tais como a esperteza e até a

dualidade que se coaduna na construção do personagem, e isso pôde ser perceptível

através das figuras inferidas pelos alunos, como O menino maluquinho e Lampião.

Esses dois personagens têm como característica principal a astúcia, além disso,

Lampião se aproxima de João Grilo no sentido do seu comportamento comumente

dividir opiniões, o cangaceiro é tomado ora como mocinho, ora como bandido.

Essas características formuladas pelos estudantes a partir do levantamento de

hipóteses puderam não apenas ser confirmadas, mas ampliadas e compreendidas de

maneiras específicas durante a leitura e no momento posterior a ela. Para Aguiar e

Bordini (1988) o processo de recepção se inicia antes mesmo do contato do leitor com

o texto, essa recepção se faz presente desde a mobilização do arsenal de

conhecimentos dos sujeitos, uma vez “o leitor possui um horizonte que o limita, mas

que pode transformar-se continuamente, abrindo-se.” (AGUIAR; BORDINI, 1988, p.87).

É a partir de suas vivências, frutos de seu contato com o mundo, que os sujeitos

buscam uma significação para o texto, pois são esses horizontes que, posteriormente,

serão confirmados ou perturbados pelo texto.

Vale salientar aqui, a importância da leitura em voz alta para a experiência com

a literatura de cordel em sala de aula, uma vez que, em consonância com Pinheiro

(2013, p.39) “restringir o folheto à leitura silenciosa- como se faz com a poesia em

2 Essas estrofes foram anotadas em papéis e colocadas dentro de uma caixa, assim, os alunos, divididos em grupos, retiravam determinado número de estrofes e lançavam inferências a partir delas.

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geral- é limitar seu poder de comunicação, e, portanto, enfraquecer sua recepção”,

levando em consideração que essa poesia popular possui uma produção fortemente

marcada pela oralidade.

Após a leitura do folheto Proezas de João Grilo, a atividade proposta aos alunos

pôde evidenciar as concepções destes sobre o universo do texto, bem como a relação

que esses mesmos discentes estabeleceram com o personagem. Foi solicitado aos

estudantes que esses elaborassem um quadro de organização das ações de João Grilo,

as colunas poderiam ser divididas em ações de cada episódio, vítimas,

circunstâncias/motivos, motivos esses que poderiam ser comprovados com algumas

transcrições de estrofes do cordel, e o julgamento de cada uma das ações, se

condenável ou não, boas ou ruins, segundo a concepção dos discentes. A elaboração

do quadro e sua posterior socialização e debate em sala, levou os alunos a exporem

seus pontos de vista e posicionamento em relação ao personagem e suas ações no

cordel. Os episódios mais debatidos pela classe foram aqueles que privilegiamos na

análise do folheto, realizada no tópico anterior.

Em suma, os estudantes construíram a figura de Grilo a partir das motivações

de suas ações e do seu contexto. De acordo com González (1994), os pícaros

geralmente agem conforme as circunstâncias do meio no qual estão inserido.

Marginais à classe social em ascensão, o pícaro busca meios de sobreviver. João Grilo

se aproxima dessa definição quanto ao contexto como motivação de seus atos,

explicitamente na parte em que rouba para levar comida para casa. Essa passagem foi

bastante debatida no momento de discussão oral do quadro. Os próprios alunos

transformaram essa discussão em um em um júri para o julgamento de Grilo. A ideia

foi sugerida por uma aluna, que, ao argumentar que a ação de roubar era condenável

em qualquer circunstância, foi contrariada por outra aluna que opinou que a atitude

de João Grilo é aceitável, já que teve como objetivo o suprimento das necessidades de

sua mãe, nesse momento, a estudante que condenava a ação do personagem sugeriu

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para a colega: “Então você é a advogada de defesa e eu sou a de acusação3.” A partir

desse momento, houve grande agitação na sala.

A aluna que havia condenado o roubo de Grilo também argumentou que o

personagem deveria “ter ido procurar um emprego ao invés de roubar”, em seguida, a

discente A.M contestou esse ponto de vista, afirmando que “não é fácil conseguir um

emprego”. A partir dessa discussão, podemos perceber que a estudante A.M

compreende João Grilo como um sujeito que está inserido em uma estrutura social

marcada pela falta de oportunidades e que, muitas vezes, é condicionado a agir de

determinada forma em prol da sobrevivência. Assim, essa mesma aluna, como a

maioria dos alunos, se atentou ao possível contexto do personagem para entender

suas ações. Ainda em relação à discussão da passagem em que Grilo rouba alguns

ladrões, uma aluna comentou que João Grilo lhe parecia Robin Hood, famoso

personagem mítico inglês que é bastante conhecido por sua atitude de roubar dos

nobres para dar aos pobres. Nesse sentido, a aluna ativou seus conhecimentos

anteriores à leitura para construir a imagem de Grilo como uma figura que pratica

ações consideradas “ruins”, mas que possuem fins tidos como “bons”. Os alunos FC e

JP4, por exemplo, expressam sua aprovação no que diz respeito à atitude do

personagem do folheto ao tecer os seguintes comentários sobre a estrofe em que

Grilo conta a sua mãe sobre o roubo:

“Eu me impressionei com essa estrofe porque eles nunca tinham o que comer, daí, para

ele matar a fome da mãe dele, ele teve que roubar.” (F.C)

“Eu gostei dessa estrofe porque percebi que ele se preocupa com a mãe dele e rouba

outros ladrões para alimentá-la.” (J.P)

3 As falas que ou expressões dos alunos foram coletadas através de diários de leitura e das anotações no diário do pesquisador. 4 Os nomes dos alunos serão representados apenas por letras, em respeito à privacidade dos participantes, e em decorrência da ética que faz parte da nossa pesquisa.

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Além do episódio do roubo, outras ações do personagem também foram

trazidas à tona no momento de discussão do quadro, tais como os versos em que o

personagem demonstra para a corte que os valores daquela classe estão relacionados

superficialmente às aparências, por exemplo, a passagem “Eu estando esfarrapado/ ia

comer na cozinha/ mas como troquei de roupa/ como junto da rainha [...]” (p.32).

Esses versos foram abordados por alguns alunos, que justificaram o gosto por esse

episódio salientando que “a atitude de Grilo foi algo muito bonito” e que esse ato “nos

lembra que o que importa de verdade é o que a pessoa vale e não a roupa que veste”,

como comentou a aluna A.B. A atitude da corte, seu desprezo inicial por Grilo, foi

tomada pela classe como algo recorrente em nossa sociedade e a ação do personagem

como algo “admirável”, como uma nobre atitude.

Os primeiros episódios do folheto, nos quais João Grilo realiza suas artimanhas

com o padre, o português e o vaqueiro, foram tomados pelos alunos como atitudes

“condenáveis” durante a elaboração do quadro de ações, já nas passagens da segunda

parte de cordel, as atitudes do personagem foram elencadas como “boas” pelos

estudantes. Nesse sentido os próprios alunos construíram a imagem de Grilo sob uma

síntese dos contrários, assim como abordado por González (1994) ao discorrer sobre a

constituição do anti-herói, como vimos nas discussões anteriores. A imagem

construída pelos discentes pôde ficar mais evidente a partir dos comentários sobre o

personagem, escritos nos diários de leitura. Temos o exemplo da aluna A.M, que

escreveu: “Eu não sabia que apesar de traquino ele era a favor da justiça”, ou do aluno

C.S, o qual salientou: “Apesar de ser danado ele gostava de fazer justiça”. Ainda houve

vários comentários sobre o fato do personagem, apesar de realizar diversas

travessuras, possuir “um bom coração”, “um coração puro” ou “uma alma de criança”.

O aluno W.C, por exemplo, destacou que achava que João Grilo “se vingava das

pessoas, mas tinha um coração puro e topava ajudar qualquer um.” Dessa forma, os

alunos captaram ideias consideradas opostas para apreenderem o personagem e o

universo do texto.

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Apesar de julgarem condenáveis as primeiras ações de Grilo, quando indagados

sobre qual seria o “veredicto final”, os discentes responderam em unanimidade que

consideravam o personagem “inocente”. Assim, pode-se dizer que a relação que os

alunos construíram com o cordel se baseou na prevalência da justiça e da bondade que

se aninham à personalidade de Grilo. Ainda vale salientar que uma aluna julgou o

personagem inocente em todas as suas ações, essa mesma discente, quando

questionada pelos seus colegas, respondeu que tinha gostado de todas as ações do

personagem, pois, dessa forma, “ele mostrava que o pobre não é tão coitado assim”.

Dessa forma, foi perceptível que os alunos estabeleceram um vínculo com a

figura do personagem do cordel e ainda se sentiram representados através de ações

de um sujeito que, apesar de se encontrar à margem da sociedade, procura meios de

se fazer superior em relação a seus opressores, de humilhar, através de riso, aqueles

que representam o poder, de se colocar contrário aos valores da classe dominante e

assim gerar uma vitória simbólica, satisfazendo o desejo de um público que anseia por

ver esse triunfo. Assim, de maneira geral, o personagem, como anti herói,

“humilhando, pelo riso, os seus algozes, realiza uma catarses, reveladora do caráter e

disposição de luta do povo de que é símbolo” (ARAÙJO, 1992, p. 3. Grifos do autor).

Podemos dizer ainda que a leitura do folheto com essa turma do Ensino Médio

foi encarada como uma experiência, na qual a imagem poética do personagem pôde

ser construída pelos alunos a partir da retomada constante dos versos que compunha

o cordel. Assim, a visão de mundo presente no folheto foi debatida em sala de aula,

demonstrando que, assim como destaca Pinheiro (2013), a literatura de cordel traz em

si experiências que, mesmo escritas por pessoas simples, não deixam de veicular

percepções agudas sobre a vida.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As proezas de João Grilo e as críticas realizadas a partir destas, representam,

como foi evidenciado, uma resistência ideológica. Primeiro porque Grilo se configura

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como um “espírito livre”, como alguém que comporta contradições e não pode ser

definido unicamente por um ponto de vista. O amarelinho nordestino possui apreço

pelo divino, como é demonstrado quando ele refere-se com devoção à virgem Maria e

a Deus, em algumas partes do folheto, mas não se submete aos preceitos da religião e,

muitas vezes, caminha pelo profano, como acontece quando realiza travessuras com o

padre ou quando engana outros e pratica roubo. Esse passear por “opostos” é uma

das características elucidadas por González (1994) ao ressaltar que os anti-heróis

“agem à procura de consagrar à própria dimensão libertária, exclusivamente para si

mesmos, ou em benefício de terceiros” (p.349).

Em segundo lugar, outra forma de resistência ideológica presente no folheto é

justamente o fato de João Grilo contestar abertamente preceitos fabricados pelo

sistema de divisão social, como acontece quando ele livra um mendigo de ser

condenado e quando derrama comida na própria roupa. Grilo carrega consigo uma

insatisfação no que diz respeito aos discursos opressores e, mesmo quando consegue

ganhar certa ascensão social, ao se tornar conselheiro real, não se integra e não

compartilha dos preceitos e comportamentos da classe dominante.

O folheto de João Ferreira de Lima e João Martins de Athayde foi escrito há

décadas, mas faz sentido até hoje, em uma sociedade marcada pela desigualdade e

controlada pelas ideologias dos grupos dominantes. João Grilo representa a luta pela

sobrevivência e o desejo de se livrar da opressão e das rédeas que o sistema tenta nos

colocar. E isso pôde ser demonstrado através da experiência de leitura na sala de aula,

relatada aqui. Como foi possível evidenciar, os alunos estabeleceram uma relação de

identificação com o personagem e, dessa forma, a resistência pôde estar presente na

sala de aula e atuante na construção de conhecimentos dos alunos através da imagem

de um personagem que por meio do riso apresenta seu sofrimento, bem como sua

insatisfação quanto aos mecanismos da engrenagem social

Vale salientar ainda que, na discussão deste trabalho, privilegiamos a imagem

de João Grilo para demonstrar a resistência presente na poesia de cordel, entretanto,

existem inúmeras imagens poéticas na literatura de folhetos que apresentam um

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discurso contra ideológico- e que podem também proporcionar um trabalho de leitura

significativo em sala- uma vez que essa literatura já nasceu sob o signo da resistência.

REFERÊNCIAS

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