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Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Impérios Ibéricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011 1
Produção de carnes secas e couros no nordeste colonial: apontamentos
sobre as relações entre a elite do Siará Grande e as redes mercantis de
Pernambuco, 1767-1802
Leonardo Cândido ROLIM
Universidade Federal da Paraíba
Introdução
São notáveis os estudos acerca das relações mercantis entre as praças de comércio ou
vilas importantes no período colonial brasileiro. Desde o pioneiro trabalho de Amaral Lapa1
as redes comerciais que foram tecidas entre as possessões ultramarinas de Portugal tornaram-
se objeto de pesquisas recorrentes na historiografia colonial. Investigações diversas foram
empreendidas seja no âmbito do comércio ultramarino, isto é, entre as possessões portuguesas
nas diversas partes do Império, seja na formação de redes e conexões regionais que se
revelavam verdadeiros enraizamentos de interesses e circuitos mercantis importantes para o
funcionamento da dinâmica imperial.
O comércio colonial vem, a partir de uma renovação historiográfica iniciada, no
Brasil, nos anos 1980, sendo problematizado de forma não só quantitativa fortemente baseada
numa história seriada, mas também de uma análise qualitativa dos dados. Influenciados por
uma “nova história econômica e social” 2 autores como João Fragoso e Manolo Florentino
deram às fontes conhecidas uma nova metodologia e perscrutaram fontes ainda não
trabalhadas, dando, por sua fez, influência a novos trabalhos.
Nosso texto é escrito com a intenção de sistematizar certos apontamentos sobre o
comércio de carnes secas que constituem parte (nesse caso, do último capítulo) da nossa
dissertação de mestrado ainda em fase de escrita. Nesse sentido, ele será composto pela
problematização de fontes diversas. Na primeira parte do texto faremos uma contextualização
rápida e objetiva da conquista dos sertões das Capitanias do Norte do Estado do Brasil,
1 José Roberto do Amaral LAPA, A Bahia e a Carreira da Índia, São Paulo, Editora da Universidade de São
Paulo, 1968. 2 Sobre as escolas de História Econômica e Social ver Josep FONTANA, A História dos Homens, Bauru, SP,
EDUSC, 2004.
Leonardo Cândido Rolim
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principalmente a porção que compreende hoje os sertões dos estados da Paraíba, Rio Grande
do Norte e Ceará, pois julgamos fundamental para o entendimento geral do texto.
O trato direto com a documentação será feito na continuação do texto. Na segunda
parte será problematizada, a partir de documentação presente no Projeto Resgate dos
Documentos Manuscritos Avulsos da Capitania do Ceará e de Pernambuco, a criação da vila
de Santa Cruz do Aracati a partir de interesses econômicos dos donos de oficinas que
envolveram, inclusive, o governador da capitania de Pernambuco e o Ouvidor do Siará
Grande, além de evidenciarmos algumas disputas internas à Vila a partir de Atas de Correição
da Câmara e a importância do comércio das carnes secas na manutenção de circuitos
mercantis que envolviam homens de negócio da praça do Recife e mercadores da vila do
Aracati. Na terceira e última parte do texto, utilizando o Livro de Registro de Entrada dos
Barcos no Porto da Vila de Santa Cruz do Aracati (1767-1802) faremos sistematizações e
apontamentos acerca do comércio de carnes sob a óptica desse documento que por ser bem
específico traz riqueza para nossa pesquisa, apesar de termos iniciado sua problematização há
pouco tempo, por fazer referência apenas a última parte de nossa dissertação.
Conquista e colonização do sertão: homens, armas e gados
A restauração portuguesa e o fim do período holandês em Pernambuco por volta da
metade do século XVII coincidiram com o início do interesse da Coroa Portuguesa nos
sertões de sua colônia na América 3. Fosse na sua parte central, isto é, a região das capitanias
de São Paulo, Minas Gerais e Goiás, fosse na porção norte, região de sertão agreste e semi-
árida onde, nessa época, noticiou-se a existência de minas de prata, como certo pretexto para
instigar a conquista.
Sem dúvida, os agentes régios logo fixaram suas atenções e preocupações na região
onde fora encontrado ouro na última década do século XVII. Tornando, assim, a região mais
próxima à capitania de Pernambuco, além de desinteressante economicamente, uma válvula
de escape para as disputas internas no “caldeirão político” que se tornou Pernambuco entre a
definitiva expulsão dos batavos (1654) e a Guerra dos Mascates (1711), como nos mostra o
historiador Evaldo Cabral de Mello 4.
3 Para a concepção de sertão utilizada aqui ver: Jacqueline HERMANN, “Sertão (Verbete)” In: Ronaldo
VAINFAS, (org.), Dicionário do Brasil Colonial. (1500-1808), Rio de Janeiro, Objetiva, 2001, pp. 528-529. 4 Para maior entendimento sobre o período em questão ver Evaldo Cabral de MELLO, A Fronda dos Mazombos
– Nobres Contra Mascates: Pernambuco, 1666-1715, São Paulo, Companhia das Letras, 1995.
Produção de carnes secas e couros no nordeste colonial: apontamento sobre as relações entre a elite do Siará Grande e as
redes mercantis de Pernambuco, 1767-1802
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Na conjuntura que Mello denomina de post bellum, isto é, após a guerra para a
expulsão dos holandeses da capitania de Pernambuco, o pagamento das tropas, as disputas
pelas propriedades dos antigos engenhos e a cobrança de impostos elevados foram acirrando
os ânimos entre Senhores de Engenho e Mascates, e ainda entre os primeiros e a Coroa
Portuguesa. Uma saída encontrada foi a dissipação desta tensão em direção as guerras contra
os “bárbaros dos sertões”, ou seja, o índio chamado tapuia habitante do interior do continente.
O deslocamento das tropas não foi total, pois o porto do Recife não poderia mais ficar
vulnerável, mas as tropas chamadas irregulares foram deslocadas para o sertão e ainda
algumas regulares como famoso terço paulista de Domingos Jorge Velho e também o de
Manuel Álvares de Morais Navarro, que após alguns anos de luta contra o tapuia foi
institucionalizado.
Uma por uma as ribeiras do Rio Grande e do Siará Grande foram conquistadas.
Batalhas sangrentas estão registradas como a “Guerra do Açu” e o chamado “Massacre no
Jaguaribe”. Não se pode fixar data exata para o início e nem tampouco para o fim dos
conflitos, mas Pedro Puntoni, ao tratar da retomada dos conflitos naquela região após
tentativas de acordos, afirma que “(...) a maior parte da documentação insiste em notar que a
partir dos primeiros meses de 1687 assistia-se à retomada dessas revoltas e levantes que
conduziriam, em movimento ascensional, a um estado de conflagração generalizada” 5. Nesse
sentido constatamos a ligação desses conflitos com a tentativa de posse efetiva das terras
utilizadas na atividade pastoril, predominante na colonização sertaneja.
A pecuária na historiografia clássica – Capistrano de Abreu e Caio Prado Júnior,
principalmente – aparece como motor da conquista do sertão das Capitanias do Norte. De
fato, a chamada “expulsão do gado” da região produtora da cana-de-açúcar foi um processo
encabeçado por setores comerciais envolvidos com o abastecimento de carnes, além de ter
influência direta da Coroa. O decreto de 1701 que proibia a criação de gado, ampliando o de
1688, criava a chamada “barreira” à criação de gado de 10 léguas marinhas por todo o litoral
leste da América Portuguesa. De acordo com Maria Yedda Leite Linhares,
[...] o decreto deixa transparecer uma política definida: a de delimitar em
áreas próprias e resguardar as três paisagens que passarão a configurar a economia
rural da Colônia, isto é, a grande lavoura com seus campos definidos, incluía a área
industrial; a lavoura de abastecimento, que atendia aos interesses de consumidores
urbanos e comerciantes de Salvador [e do Recife], devendo incluir a criação
controlada de animais de tiro necessários ao transporte das mercadorias ao porto e,
por fim, a pecuária extensiva na fronteira móvel, a cargo de sesmeiros e
5 Pedro PUNTONI, A Guerra dos Bárbaros – Povos Indígenas e Colonização do Sertão Nordeste do Brasil,
1650-1720, São Paulo, HUCITEC, Editora da Universidade de São Paulo, FAPESP, 2002, pp. 124.
Leonardo Cândido Rolim
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arrendatários, último elo fundamental de um macromodelo agrário.6 (Grifo da
autora).
Ou seja, as batalhas de conquista do sertão basearam-se também numa prerrogativa
econômica: a criação de gado. A necessidade de fixação da população nos sertões fez com
que os capitães-mores passassem a empreender uma política de doação de sesmarias ao longo
das ribeiras dos principais rios e seus afluentes. Não cabe aqui uma discussão profunda da
instituição das sesmarias desde sua política adotada no reino, mas é fundamental pontuar que
o tamanho médio das sesmarias no sertão era em média de 1x2 a 1x3 léguas, dimensão
impensada em terras portuguesas.
Outra questão que nos parece fulcral é que, nos baseando em levantamento das
sesmarias do Ceará feito por Francisco José Pinheiro 7, podemos afirmar que até o fim da
primeira década do século XVIII a maior parte dos donos das sesmarias não vivia na capitania
do Siará Grande. O sistema chamado de absenteísmo predominava na relação com a
propriedade, ou seja, o dono morava em outras capitanias e contratava administradores para
seus currais no sertão. Essa situação ocorreu principalmente na época das constantes batalhas
contra os índios tapuias e durante os últimos ataques empreendidos pelos indígenas aos gados
dos colonizadores. O curral se caracterizava como unidade produtora da pecuária, abrigando
o vaqueiro, geralmente o “gerente” e administrador, e seus “cabras” (os funcionários) e ainda
o gado, quando preso à noite.
Para fixarmo-nos na capitania do Siará Grande podemos apontar que “num período de
mais de um século e meio, 91% [das sesmarias] tinham como justificativa a necessidade de
terra para ocupá-la com a pecuária” 8. Observamos isto com grande facilidade nas datas de
sesmarias concedidas na ribeira do Jaguaribe, a mais importante do Siará Grande e a que
iremos nos concentrar neste texto, tomando, por exemplo, uma sesmaria doada a Lourenço
Alves Feitoza – o maior sesmeiro do Siará Grande – em 1720, ou seja, no final do período de
guerras contra os índios: “emsua petição diz ocomisario Lourenço Alves Feitoza cujo (sic)
theor he oSeguinte (...) morador da ribeira do Jagoaribe que elle tem seus gados vacuns
ecavalares enão tem terras bastantes para os poder criar (...)”9.
6 Maria Yedda Leite LINHARES, “A pecuária e a produção de alimentos na colônia”. IN: Tamás
SZMRECSÀNYI (Org.), História Econômica do Período Colonial, 2ª Ed. Revista, São Paulo, Editora da
Universidade de São Paulo / Imprensa Oficial, 2002, pp. 113-114. 7 Francisco José PINHEIRO, Notas sobre a formação social do Ceará (1680-1820), Fortaleza, Fundação Ana
Lima, 2008. (Principalmente o capítulo 1: Um perfil da formação social cearense). 8 F. J. PINHEIRO, Formação... cit., pp. 24.
9 REGISTRO da data de sesmaria de Lourenço Alves Feitoza, de duas légoas nos Inhamús, concedidas pelo
Capitão-mor Salvador Alves da Silva, em 7 de julho de 1720. In: Datas de Sesmarias do Ceará (CD-ROOM),
vol. 6, n. 476, pp. 181-182.
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redes mercantis de Pernambuco, 1767-1802
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A criação de gado, juntamente com a “guerra ao bárbaro”, era justificativa recorrente
nos pedidos de terras naquela ribeira, incluindo seus principais afluentes – Banabuiú, Salgado,
Riacho do Sangue, Quixelô, entre outros – que durante todo o século XVIII se transformaram
nos “caminhos do gado”, isto é, ligados à “estrada do Jaguaribe” ou à “estrada nova das
boiadas”, entre outras, que configuravam os passos onde homens e rezes atravessavam,
sofrendo os efeitos climáticos (secas e enchentes) e assaltos às rezes.
Passados os primeiros anos da conquista e aldeados boa parte dos índios do sertão do
Siará Grande a economia pastoril deixou de ter um viés de subsistência e passou a dar
excedentes de produção. Firmava-se a “civilização do couro” a que fez referência Capistrano
de Abreu, isto é, uma sociedade sertaneja baseada na criação de gado numa convivência diária
com o animal vivo e também seus produtos. Ocorreu a consolidação da pecuária como
atividade predominante em um território seco e com chuvas bastante irregulares, acarretando
o comércio de rezes com outras partes da América Portuguesa. A respeito disso escreveu o
jesuíta André João Antonil:
Constam às boiadas que ordinariamente vêm para a Bahia, de cem, cento e
cinqüenta, duzentos e trezentas cabeças de gados (...). As jornadas são de quatro,
cinco e seis léguas, conforme a comodidade dos pastos aonde hão de parar. Porém,
aonde há falta de água, seguem o caminho de quinze e vinte léguas, marchando de
dia e de noite, com pouco descanso, até que achem aonde possam parar.10
As chamadas “longas marchas” pelo sertão desfavoreciam os criadores do interior do
Piauí e do Siará Grande, principalmente. O gado, sempre elogiado pela sua qualidade de
transportar a si mesmo, chegava às feiras de Pernambuco e da Bahia com valor baixo. As
várias léguas que as rezes percorriam criavam bastante músculo nas carnes, além do
emagrecimento causado pela precariedade dos pastos existentes pelo caminho, mais evidente
nos períodos de estiagem. Isso prejudicava o preço do gado nas feiras do Recife e de
Salvador, puxando-o para baixo, apesar de nesse momento surgirem pequenas povoações
“especializadas” na engorda de bois enfraquecidos pelas longas jornadas pelo sertão.
Referindo-se aos sertões da capitania de Pernambuco, Antonil noticiava que “(...) os currais
desta parte hão de passar de oitocentos, e de todos estes vão boiadas para o Recife e Olinda e
suas vilas para o fornecimento das fábricas dos engenhos (...)” 11
.
Dessa maneira, já a partir do segundo quartel do século XVIII os fazendeiros das áreas
mais próximas do litoral passaram a comercializar o gado já abatido e transformado em carne
10
André João ANTONIL, Cultura e Opulência do Brasil em suas Drogas e Minas, Belo Horizonte, Itatiaia,
1997, pp. 202. 11
A. J. ANTONIL, Cultura... cit., pp. 200.
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seca e salgada. Sobre este período temos apenas fragmentos de fontes que fazem referência à
carne seca e salgada vinda do sertão. Há também referência sobre a existência de oficinas de
salga nas ribeiras do rio Assu e Mossoró, mas que foram logo fechadas pelo prejuízo no
abastecimento de sal, que era monopólio régio, no Recife e de gados para mover engenho e
prover de carnes verdes as “vilas do açúcar”.
Não há como precisar em que vila ou ainda qual o criador iniciou o processo de
fabricação das carnes secas em larga escala. Na historiografia sobre o assunto, principalmente
em Nobre12
e Girão13
, são apontadas possibilidades que chegam a remontar ao final do
período holandês, mas que não passam de especulações sobre o primeiro dono de sesmaria
(Teodósio Gracisman) na região do rio Jaguaribe que teria aperfeiçoado uma técnica de salga
e secagem de peixes aprendida nas ilhas do Caribe e aplicou em seus poucos gados no Siará
Grande, iniciando assim uma prática que teria sido aperfeiçoada no início do século XVIII.
Em resumo, a conquista e a colonização dos sertões das Capitanias do Norte do
Estado do Brasil se fez tendo a atividade pastoril como vetor econômico. A partir da
reprodução das boiadas e a redução de índios em aldeias o excedente do criatório passou a ser
comercializado vivo por trabalhadores dos currais nas feiras do litoral leste. Porém, a partir do
segundo quartel do século XVIII alguns criadores, sentindo a desvalorização do preço em
conseqüência das más condições das estradas e paragens para engorda, começaram a utilizar
uma técnica de salga de carnes. A venda de carnes em manta passou a ser a atividade
econômica mais importante da região periférica localizada no interior do continente e que até
então era tida como fronteira do Estado do Brasil com o Estado do Grão-Pará e Maranhão.
Matar, salgar e navegar: a produção e o comércio das carnes secas
A produção das carnes secas é tema de debate controverso na historiografia.
Principalmente ao se fazer confusão com as “charqueadas” no Rio Grande de São Pedro (atual
Rio Grande do Sul) no final do século XVIII e no século XIX. A técnica da salga das carnes
utilizada no Siará Grande não é ponto comum entre os historiadores. O que sabemos da
estrutura física oficinas ou fábricas de carnes da vila de Santa Cruz do Aracati é que seu
tamanho era em média maior do que 40 braças em quadra, isto é, uma área superior a 190m².
Este espaço era, geralmente, dividido em três partes: o curral, que era utilizado para a
12
Geraldo da Silva NOBRE, As oficinas de carnes do Ceará: solução local para uma pecuária em crise.
Fortaleza, Gráfica Editorial Cearense, 1979. 13
Valdelice Carneiro GIRÃO, As oficinas ou charqueadas no Ceará. Fortaleza, Secretaria de Cultura e
Desporto, 1984.
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matança dos bois e a retirada do couro, isto é, era a “frente” da oficina; o estaleiro, que se
localizava voltado para o rio Jaguaribe, onde ancoravam as embarcações e se descarregava o
sal e, ao final do processo, se carregava os barcos com as carnes, sendo os “fundos” da
estrutura; e a oficina ou fábrica propriamente dita, onde se pode inferir uma divisão e
especialização do trabalho dada a complexidade do processo. 14
Desde a retirada do couro que também era beneficiado e usado, entre outras coisas,
para amarrar as mantas até o carregamento das carnes nas embarcações, podemos deduzir que
vários processos aconteciam. Os cortes das mantas (que eram em posta ou tassalho), a salga
das carnes e o ponto de secagem eram, em nossa concepção, operações específicas que
exigiam um cuidado técnico que influía na qualidade do produto. Além de operações como a
matança do gado, secagem e o momento de espichar o couro, o corte de lenha nos mangues, a
limpeza da oficina, a vigilância no período noturno, entre outras atividades secundárias.
É importante salientar que antes da criação da vila de Santa Cruz do Aracati em 1748
já se produzia e se fazia comércio de carnes secas e salgadas naquele “porto do sertão”.
Segundo Almir Leal de Oliveira, “Juntamente com o couro salgado, a partir da década de
1710, foram sendo criadas as oficinas de preparo da carne salgada (...). Especializou-se o
Ceará nesta produção” 15
. Já na conjuntura post bellum tratada acima os comerciantes
recifenses tinham seus interesses em ampliar e diversificar seus negócios, aliando-se entre si e
fundando outras praças de comércio, inclusive em outras capitanias, que pudessem servir de
entrepostos na sua busca por um enraizamento em outros mercados. Geralmente, os homens
de negócio associavam seu grosso trato com a
(...) arrematação dos contratos de impostos; a propriedade de embarcações
de cabotagem ou destinados ao comércio com a costa da África; a exploração de
trapiches e armazéns; a operação de curtumes e de fábricas de atanados; a posse de
bens de raiz no Recife, aforados à Câmara de Olinda, ou de engenhos situados nos
seus arrabaldes, que muitas vezes lhes vieram às mãos por via de execução de
dívidas de senhores relapsas; e, desde o fim do século XVII, após a “guerra dos
bárbaros” a abertura da fronteira da pecuária no Rio Grande do Norte e no Ceará,
a obtenção de sesmarias e o estabelecimento de fazendas de gado. 16
14
Para o tamanho das oficinas e divisão interna consultamos o Livro de registro de escriptura de foros
pertencentes ao Senado [da vila do Aracati] do anno de 1756 a 1779 (disponível no Arquivo Público do Estado
do Ceará – APEC) nos foros que doavam terras para os donos erguerem suas oficinas. 15
OLIVEIRA, Almir Leal de, “A Dimensão Atlântica da Empresa Comercial do Charque: o Ceará e as
dinâmicas do mercado colonial (1767-1783)”. In: I Encontro Nordestino de História Colonial: Territorialidades,
Poder e Identidades na América Portuguesa – Séculos XVI a XVIII, 1., 2006, João Pessoa. Anais... João Pessoa:
Universidade Federal da Paraíba, 2006. p. 4. 16
MELLO, Evaldo Cabral de, A Fronda... cit., pp. 132. (Grifo nosso).
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A importância do comércio de carnes secas ganhou visibilidade aos olhos da Coroa
Portuguesa a partir de uma representação do Ouvidor Geral da capitania do Siará Grande,
Manoel José de Farias, no ano 1746 ao Conselho Ultramarino em que sugere a criação da vila
no “lugar do porto dos barcos do Aracati”, pois
é sem dúvida ser muito conveniente haver justiça naquele lugar porq alem
de haver nelle muitos moradores quando He no tempo das carnes oficinas se faz
muito populozo pela concurrencia de muitas somacas e gente q‟ dessem destes
serotens com inumeraveis gados a fazerem suas negociacoens donde naum haverem
muitas contentas muitas pendenciaz e algumas mortes” 17
.
A argumentação do ouvidor se repetia desde 1744, encontrando eco junto ao
governador da capitania de Pernambuco, deixando saltar aos olhos do pesquisador a inserção
daquele ainda “porto dos barcos” em um circuito mercantil que envolvia as principais praças
de comércio do Estado do Brasil. Nos anexos da “Consulta do Conselho Ultramarino (...)”
acima citada pode-se ler o então governador da capitania de Pernambuco – a qual a do Siará
Grande foi anexa até 1799 – Duarte Sodré Pereira argumentando pela
necessidade q‟há da dita ereção acho ser [uma palavra] percizo de fato
eregirçe porquanto vão aquelles mtos
barcos da Ba[Bahia] a‟ahi vão fazer carnes e
negócios e desta praça [Recife], donde correm todas as gentes daquelles sertoens a
venderem gado trocando por rendas e a dinheiro e nestas ocassioens se ajutam povo,
em q‟dizem há hun grande comercio e junto ser o melhor distrito q‟tem toda a
capitania do Siará. 18
A criação da vila deu-se após parecer favorável do Conselho Ultramarino no dia onze
de abril de 1747, constituindo assim um “Exemplo no Siará grande”, pois, segundo Gabriel
Nogueira, “a vila de Santa Cruz do Aracati, criada em 1748, foi o único caso de criação de
vila na capitania que teve como justificativa a busca do controle das atividades econômicas
desenvolvidas na localidade” 19
, ou seja, o comércio de carnes secas e couros no porto dos
barcos. Segundo o parecer do Conselho Ultramarino,
parece ao Concelho que V. Mag.e Se Sirva mandar fundar huma Villa em
este porto do Aracaty, e encarregar a creação della ao Ouvidor do siará Manoel Jozé
de Faria, ordenando-lhe, que passe logo ao do[dito]. porto, e escolha citio que sendo
17
AHU-CE: CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei [D. João V] sobre a necessidade de se criar uma nova
vila em Aracati de Jaguaribe, de 12 de dezembro de 1746. Anexo: cópia de cartas e provisão.
AHU_ACL_CU_017 Caixa: 05. Documento: 304. 18
Ibdem. 19
Gabriel Parente NOGUEIRA, Fazer-se nobre nas fímbrias do império [manuscrito]: práticas de nobilitação e
hierarquia social da elite camarária de Santa Cruz do Aracati (1748-1804), Dissertação defendida junto ao
Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Ceará, 2010, pp. 55.
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maes livre das inundações do Ryo, fique igualmente commodo, aSsim as
embarcaçoes e forasteiros, que vão nellas comerciar como aos moradores da
d.a[dita] Villa. 20
A partir da criação da Vila e a conseqüente cobrança de impostos sobre a entrada e
saída de cargas no porto dos barcos o preço das carnes sofreram aumento o que acarretou na
queda de vendas do produto num primeiro momento, levando os donos dos barcos a
comprarem carnes secas no porto de Camossim na ribeira do Acaraú. A recuperação da
atividade se deu em menos de dez anos. Já em maio de 1757 o governador da capitania de
Pernambuco, Luís Diogo Lobo da Silva, enviou um ofício ao então secretário do Estado do
Reino e Mercês, Sebastião José de Carvalho e Melo, sobre o requerimento dos homens de
negócio daquela praça – no caso, o Recife – em que pedem a criação de uma Companhia de
resgate de carnes secas e couros do sertão. Isto é, na trilha de fundação de Companhias de
Comércio – Pernambuco e Paraíba e Grão-Pará e Maranhão – no “período pombalino” os
comerciantes da maior praça de comércio das Capitanias do Norte buscam mais uma tentativa
de regulamentar o trato dos produtos que compunham a dinâmica ultramarina do Império,
quer no abastecimento interno ou no escambo por escravos em África.
Nesse documento, podemos observar o interesse pela produção de carnes secas e
couros no sertão, o que incluía a vila de Santa Cruz do Aracati. Pelos planos dos homens de
negócio da praça do Recife “será esta Compa
estabellecida com vinte e quatro sumacas da
proporção nessecariaz pa
aquelles porttos com que possão transportar a carne e couros e sebo
de vinte e outo athé trinta mil cabas
[cabeças] de gado e este se comprara no sertão”
21. Sem
dúvida era o comércio das carnes que interessava os negociantes, pela sua conservação e por
se tratar de objeto de consumo intermitente entre todas as camadas da sociedade, claro que
uns mais e outros menos, de acordo com possibilidades financeiras diversas. Enfim era um
produto de venda rentável. Por isso,
(...) as carnes secas que esta Compa[Companhia]
transportar daquelles
portos do sertão se vendera na Praça deste Re
[Recife] e todos os seus contornos a
setecentos e vinte a aroba, e as que se mandarem vender acede
(ilegível) na Bahia a
outocentos a Roba e as que se forem vender ao Ro
[Rio] de Jan
RO [Janeiro]
a dez
20
AHU-CE: CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei [D. João V] sobre a necessidade de se criar uma nova
vila em Aracati de Jaguaribe, de 12 de dezembro de 1746. Anexo: cópia de cartas e provisão.
AHU_ACL_CU_017 Caixa: 05. Documento: 304. 21
AHU-PE: OFÍCIO do [governador da capitania de Pernambuco], Luis Diogo Lobo da Silva, ao [secretário d
Estado do Reino e Mercês], Sebastião José de Carvalho e Melo, sobre o requerimento dos homes de negócios
daquela praça, em que pedem a criação de uma Companhia para resgatar as carnes secas e couros do sertão.
AHU_ACL_CU_015, Caixa: 84. Documento: 6965.
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tostoiz a Roba todoz os preços como dos que mtas
vezes em todos estez porttos se
vendem por maiz. (...) 22
O abastecimento de carnes verdes estava prejudicado desde o início do século XVIII e,
sendo a capitania do Siará Grande parte do Estado do Brasil – e, portanto, sob influência
direta da capitania de Pernambuco – as oficinas de salga iriam então suprir a falta de carne
para consumo interno e para o escambo de escravos em África. De acordo com José Alípio
Goulart,
o consumo de carne seca, no Brasil colonial, era grande e dilatado, visto
consumirem-na não só os menos favorecidos como por igual os mais abastados. (...)
Basta dizer que só Recife, em 1788, consumiu o carregamento de carne seca de
quatorze barcos, (...). Em média, cada sumaca transportava a produção de cerca de
2.000 bois, ao redor de 72.000 quilos de carne seca.23
Ou seja, tínhamos a larga utilização de carne seca na alimentação de boa parte da
população da porção norte do Estado do Brasil, principalmente no litoral leste correspondente
à capitania de Pernambuco, isto é, as chamadas “vilas do açúcar”. Além do consumo interno,
segundo Almir Leal de Oliveira:
a partir de 1757 encontramos dados referentes à inserção do charque como
produto estratégico para a manutenção do tráfico atlântico de escravos, para a
manutenção de tropas, para o abastecimento das minas e das cidades do Recife,
Bahia e Rio de Janeiro. 24
Na costa africana, onde eram comercializados escravos a fim de suprir a demanda da
América Portuguesa, Luis Antônio de Oliveira Mendes observou o momento em que se deu a
inserção das carnes secas do Siará Grande na ração dos escravos. De acordo com seu relato,
foi o comerciante pernambucano Raimundo Jamalá, à época administrador da Companhia de
Comércio de Pernambuco e Paraíba, entre 1759 e 1763, que, presenciando as péssimas
condições físicas dos negros embarcados, acarretando assim em mortes e prejuízos para a
Companhia, substituiu a savelha (peixe salgado conservado no azeite) pela carne seca na
alimentação. O comerciante então teria mandado as escravas temperar rações servidas com
carne seca e
quando pela primeira vez a escravatura provou deste gênero de comida
assim temperada, e moldada ao seu paladar, confessa fidedignamente, que lhe
22
Ibdem. 23
GOULART, José Alípio, Brasil do Boi e do Couro – 1º Volume – O Boi, Edições GRD, Rio de Janeiro – GB,
1965, pp. 94. 24
A. L. De OLIVEIRA, “A Dimensão...” cit., pp. 4.
Produção de carnes secas e couros no nordeste colonial: apontamento sobre as relações entre a elite do Siará Grande e as
redes mercantis de Pernambuco, 1767-1802
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bateram palmas. (...) Na prevenção da economia mandou vir por conta da mesma
Companhia de Pernambuco a carne salgada, e seca, a que lhe chamaram do sertão,
que é escaldada, e sem ossos, que ali custa de 6 a oitocentos réis a arroba.25
Isto é, a busca era por um produto de boa rentabilidade e que, a partir da criação da
Companhia de Comércio, seria um monopólio – pelo menos no papel. Isso por que o
comércio com o Recife era feito por embarcações ora fretadas e, em alguns casos, nos barcos
dos mais ricos donos de oficinas, como no caso de Pedro José da Costa Barros, um dos
maiores comerciantes da vila do Aracati.
Nesse sentido queremos chamar a atenção para as estratégias de nobilitação
arquitetadas por essas elites presentes na vila de Santa Cruz do Aracati. Segundo Gabriel
Nogueira, para a elite do Aracati “o poder e o prestígio não estão ligados apenas à esfera do
institucional. Como forma de arregimentação de maior prestígio as alianças estabelecidas
através de laços matrimoniais e de compadrio constituíam-se como traço marcante nas
estratégias de poder dessas elites” 26
. O citado Pedro José da Costa Barros chegara de Portugal
e, após enriquecer em Pernambuco atuando como negociante de grosso trato, se casou com a
filha de um importante dono de oficinas de salga na vila do Aracati, Salvador de Souza Braga,
constituindo assim uma destacada rede familiar associativa de comércio 27
.
Ao contrário do que se possa pensar, os homens bons que atuavam na instituição
camarária da vila de Santa Cruz do Aracati não eram apenas ligados à produção ou ao
comércio das carnes secas e couros. Assim como chegavam barcos carregados de sal para
prover as oficinas de um produto básico para a feitura de carnes salgadas e couros, outros
vinham carregados de mercadorias, fazendas, secos e molhados, farinha, mel, aguardente,
entre outros produtos que eram comercializados pelas “lojas de mercadores” da vila.
Ou seja, as elites eram compostas, principalmente, por comerciantes que tinham trato
de produtos diversificados. Podemos inferir inclusive o trato com vilas importantes do interior
da capitania como a vila de Nossa Senhora da Expectação do Icó, na mesma ribeira do
Jaguaribe, que possuía características de liderança e ajuntamento de criadores de gado da
região central do Siará Grande. O comércio interno da capitania do Siará Grande ainda está
25
Luis Antônio de Oliveira MENDES, “Discurso Acadêmico – Memórias econômicas da Academia Real das
Sciências de Lisboa (1793)”. In: CARREIRA, Antônio, As Companhias Pombalinas de Grão-Pará e Maranhão
e de Pernambuco e Paraíba, 2ª Ed. Lisboa, Editorial Presença, 1983, pp. 401. 26
Gabriel Parente NOGUEIRA. “Viver “à lei da nobreza”: práticas e ideais de nobilitação das elites na periferia
da América Portuguesa – Os camaristas de Santa Cruz do Aracati (1748-1824)”. In: II Encontro Internacional de
História Colonial. Mneme – Revista de Humanidades, UFRN. Caicó (RN), V. 9, N. 24, set/out 2008, pp. 6. 27
G. P. NOGUEIRA, Fazer-se... cit., pp. 226-228.
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para ser estudado, mas podemos encontrar na documentação certas referências ao trânsito de
mercadorias que chegavam aos portos mais importantes.
Alguns deles podiam ser considerados de grosso trato e a partir da segunda metade do
século XVIII se tornaram fortes candidatos ao “enobrecimento”. Isso vai se caracterizar “a
distinção entre os homens de negócio e os demais mercadores”, pois se tornará “importante na
estratégia de „enobrecimento‟ dos primeiros. Ser um homem de negócio significa, cada vez
mais, estar ligado à „arte mercantil‟. Logo, separado do exercício mecânico e vil do comércio
diário” 28
.
Na vila de Santa Cruz do Aracati, como na maioria das vilas coloniais brasileiras,
ocorriam disputas dentro das próprias elites. Os interesses de alguns dos membros da Câmara
Municipal iam de encontro com os dos donos de salgadeiras. Em alguns casos as disputas
eram travadas em torno de assuntos não tão comuns para o século XVIII, principalmente
numa periferia do Império Português, como a saúde pública. Podemos citar, para este caso, o
Auto da Audiência Geral de 12 de fevereiro de 1781, no qual os camarários reclamam do
lugar onde se situam
[as] Officinas por serem os ditos chãos logradouros das mesmas ao mesmo tempo
que as ditas Officinas estão tambem per si fazendo outro gravíssimo prejuizo ao Povopellas
muitas immundicies que gerao e fetidos de cauzão de que resultão muitas doensas que
todos os annos faz pereser muitos individuos; e porque este mal pestilento se deve evitar
sem demora por ter por objecto a Saude publica. 29
Nessa mesma audiência se resolve pela retirada das oficinas de dentro da vila, mesmo
contra a vontade dos donos, sendo ultimada a demolição em caso de desobediência.
Inferimos, a partir disto, o convívio imediato e diário que a população do Aracati – sendo
alguns indivíduos mais relacionados outros menos – tinha com o processo de feitura e
comércio das carnes secas.
Desse modo, percebemos que durante boa parte do ano a dinâmica interna da Vila
girava em torno da produção das carnes secas, tendo a presença de gado vivo nas ruas da Vila,
além dos restos dos já abatidos, causando assim confrontos entre a população, os donos de
oficinas e os próprios representantes religiosos, principalmente no período de abstinência de
carnes. O comércio também agitava a vila durante alguns meses do ano, gerando não só a
28
Antônio Caros Jucá de SAMPAIO, “Comércio, riqueza e nobreza: elites mercantis e hierarquização social no
Antigo Regime Português” In: João FRAGOSO; Manolo FLORENTINO; Antônio C. J. De SAMPAIO; Adriana
P. CAMPOS. (Orgs.) Nas rotas do Império: eixos mercantis, tráfico e relações sociais no mundo português,
Vitória, Edufes, Lisboa, IICT, 2006, pp. 90. 29
Auto da Audiência Geral de 12 de fevereiro de 1781 apud G. Da S. NOBRE, As oficinas... cit., pp. 80.
Produção de carnes secas e couros no nordeste colonial: apontamento sobre as relações entre a elite do Siará Grande e as
redes mercantis de Pernambuco, 1767-1802
Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Impérios Ibéricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011 13
saída dos produtos da pecuária, como a chegada de mercadorias dos principais portos da
América Portuguesa e até mesmo do reino. Isto é, o “matar, salgar e navegar” fazia a
dinâmica da vila de Santa Cruz do Aracati, que se localizava numa periferia do império, mas
que estava inserida em dinâmicas econômicas e sociais através de sua produção de carnes
secas e salgadas.
Um “porto do sertão” no Siará Grande: o comércio de carnes secas a partir do
Livro de Entrada dos Barcos no Porto da Vila de Santa Cruz do Aracati
Como já foi dito no início, faremos nesta terceira parte do texto a sistematização
documental referente ao Livro (Nº 23) de notas da Câmara da Vila de Santa Cruz do Aracati
de registro dos barcos que deram entrada no porto da vila entre 1767-1802. Serão aqui
utilizadas duas tabelas para melhor recorte e compreensão dos dados apresentados.
Lembramos que estas são impressões e apontamentos iniciais sobre o manuscrito que, por
conseqüência da sua riqueza de dados, se apresenta como de difícil sistematização. Porém,
antes cabe uma breve explicação metodológica: este manuscrito possui um intervalo “em
branco” de dez anos em seu registro, ou seja, suas páginas foram cortadas ou arrancadas.
Portanto, as tabelas também serão dividas em dois intervalos de acordo com os recortes do
próprio documento: o primeiro refere-se ao período de 1767-1776 e o segundo de 1787-1802.
Assim, no primeiro momento daremos informações mais gerais sobre os registros que
se tornaram freqüentes, como já foi dito, desde a criação da vila em 1748 por ocasião da
obrigatoriedade do pagamento de impostos à Câmara pelos donos ou fretadores de barcos que
fossem carregar carnes secas, que era, segundo Raimundo Girão, de “10$000 a benefício do
Concelho” 30
, isto é, a Câmara, e só tinham autorização do Juiz da Câmara para partir.
Inclusive as anotações eram feitas, em tese, na própria residência do Juiz e, quase sempre, na
presença de um escrivão. Nas tabelas abaixo serão apresentados os números referentes à
entrada/saída de barcos, ou seja, o registro único de cada embarcação.
30
Raimundo GIRÃO, História Econômica do Ceará, Fortaleza, Editora do Instituto do Ceará, 1947, pp. 101.
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14 Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Impérios Ibéricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011
TABELA 1:
Barcos com entrada registrada no porto da vila de Santa Cruz do Aracati
Intervalo 1: 1767-1776
ANO JAN FEV MAR ABR MAI JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ
1767 2 3 2 3
1768 1 2 8 3 1 1 1
1769 1 1 1 2 2 1
1770 1 4 2 1
1771 1
1772
1773 2 9 4 1 1 1
1774 1
1775 1 7 2 1 1 2
1776 1
Total/
mês
5 0 1 1 16 23 10 7 3 2 3 7
Fonte: Livro Nº 23 de Registro de embarcações que deram entrada no porto de Aracati (1767- 1802)
TABELA 2
Barcos com entrada registrada no porto da vila de Santa Cruz do Aracati
Intervalo 2: 1787-1802
ANO JAN FEV MAR ABR MAI JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ
1787 1 2
1788 2 3 2 1 1
1789 1 3 4 2 5 2 1 2 3
1790 1 1 1 1 3 3 3 3 4
1791 5 4 2 6 4 2 3 2 1
1792 1 3 3 3 1 1 3 1 3
1793 1 1 1 1 4 2 4 1 2 3 3
1794 5 1 2 3 1 1 1 1
Produção de carnes secas e couros no nordeste colonial: apontamento sobre as relações entre a elite do Siará Grande e as
redes mercantis de Pernambuco, 1767-1802
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1795 2 2 1 1 3 1 1 3
1796 1 3 1 1 1 1 1
1797 1 2 3 1 4
1798 4 1 3 1 1 1 1
1799 2 2 2 2 2 3 2
1800 2 1 2 3 1 1 2
1801 2 2 2 2 3 2
1802 2 2 1 2
Total/
mês
21 24 15 8 13 27 25 27 11 22 18 29
Fonte: Livro Nº 23 de Registro de embarcações que deram entrada no porto de Aracati (1767- 1802)
Podemos observar a partir das tabelas acima um total de 318 barcos registrados. Nem
todos os quesitos do registro são sempre preenchidos. Por exemplo, 58,2% do total de barcos
mencionam a origem, ou seja, 185 embarcações. Destas, 163 informaram vir de Pernambuco
o que dá quase 90% dos barcos. Isto nos dá dimensão da estreita relação dos comerciantes do
porto do Aracati com os homens de negócio da praça do Recife que, de acordo com Nogueira,
“interpunha a vila entre os sertões do Jaguaribe e a praça pernambucana” tornando o Aracati
“um espaço privilegiado na região, pelo papel de destaque econômico e pela autonomia
gozada por seus agentes mercantis, que dominavam: além das relações de comercialização do
gado e do algodão produzidos na região, a produção de carnes secas e couros (...)” 31
. Isto é,
os fretadores e donos de barcos que ali aportavam trazendo produtos que já haviam chegado
de outras partes da América Lusa, ou até mesmo do outro lado do atlântico, inseriam a vila de
Santa Cruz do Aracati numa dinâmica do império Português, representando assim o
enraizamento de interesses dos agentes mercantis de Pernambuco naqueles sertões.
Ao analisarmos os destinos mencionados temos um número baixo de informações.
Apenas 100 barcos indicam o porto seguinte, mas, se continuarmos com a análise,
constataremos que 88 barcos mencionam o porto do Recife como destino, o que, logicamente,
representa 88% do total. Há também outros destinos mencionados como São Luiz, Alagoas,
Acaracu, Camossim, Assu; além de outras origens como Rio de Janeiro, Bahia, Belém do
Pará, São Luiz, Assu, etc. Chamamos atenção aqui para a importância do porto da vila de
Santa Cruz do Aracati, pois, se tomarmos como referência o litoral norte da capitania geral de
31
G. P. NOGUEIRA. Fazer-se... cit., pp. 221.
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Pernambuco podemos considerá-lo o mais importante economicamente. Observamos também
nesses registros do porto do Aracati que, entre a “as cargas”, temos passageiros, ou seja, o
trânsito de pessoas era também uma constante nas embarcações.
Outra questão que merece destaque é o comércio de sal. Este produto era fulcral para a
feitura de carnes secas, que também eram chamadas de salgadas, e, embora as salinas do Siará
Grande não fossem pequenas e tivessem produção regular, as grandes quantidades utilizadas
para salga de carnes e secagem do couro eram trazidas das salinas dos rios Assu e Mossoró.
Naquelas povoações chegaram a funcionar oficinas de salga que foram proibidas pelo
governo de Pernambuco tendo em vista o desabastecimento de gado vivo nas “vilas do
açúcar” 32
, estas ficavam relativamente próximas ao porto do Aracati numa zona de transição
e disputa de jurisdição entre Rio Grande e Siará Grande que só foi resolvida no avançar do
século XIX.
Nos registros temos anotados ao todo 46 barcos descarregando sal no porto da vila do
Aracati, sendo 10 barcos com origem do porto do Recife, embora alguns tenham feito escala
na Parahyba e no Assu. Podemos observar aí uma rede de comércio tecida pelos homens de
negócio da praça do Recife que, nessa situação, tinham o intuito de enraizar seus interesses
políticos e econômicos na ribeira do Jaguaribe: o barco saía do porto pernambucano, no
trajeto já era carregado de sal num porto próximo à vila do Aracati e lá já descarregava o sal,
tendo duas alternativas: carregava as carnes secas já prontas ou esperava a feitura delas
enquanto comerciava outros gênero com os negociantes locais freqüentes na documentação
como aguardente, farinha, azeite, fazendas, mel, entre outros.
Quanto ao comércio efetivo das carnes secas, há um problema documental a ser
resolvido. Do total dos barcos (318) só temos registros de saída anotados como de carnes
secas em 70 embarcações. Nossa questão é: em outros registros aparecem barcos (que já
haviam aportado para carregar carnes secas) com uma carga levada de “gêneros” ou “efeitos
da terra”. Para a ribeira do Jaguaribe, área de influência da vila de Santa Cruz do Aracati, só é
plausível outro comércio de relevância a que podemos atribuir essa nomenclatura, que seria o
algodão exportado para as potências industriais européias na conjuntura de escassez da
matéria-prima de tecidos.
Contudo, historiograficamente a região da capitania do Siará Grande que é mais
conhecida por suas plantações e pela exportação do algodão é a ribeira do rio Acaracu, na
32
AHU-PE: OFÍCIO (1ª via) do [governador da capitania de Pernambuco], D. Tomás José de Melo, ao
[secretário de estado da Marinha e Ultramar], Martinho de Melo e Castro, sobre a proibição da matança do gado
nos portos de Mossoró e Açu, deixando livre os da vila de Aracati, suficiente para o abastecimento da dita
capitania e da Bahia. 1789, maio, 11, Recife. AHU_ACL_CU_015, Cx. 169, D. 11956.
Produção de carnes secas e couros no nordeste colonial: apontamento sobre as relações entre a elite do Siará Grande e as
redes mercantis de Pernambuco, 1767-1802
Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Impérios Ibéricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011 17
fronteira com o Piauhí. Colocamos esta questão, pois no momento ainda fazemos o
cruzamento de fontes, principalmente das capitanias do Siará Grande e de Pernambuco, para
que nos períodos seguidos onde se apresentam as nomenclaturas de “gêneros” ou “efeitos da
terra”, principalmente antes da “seca grande” de 1793 que teria encerrado a produção nas
salgadeiras do Siará Grande, tenhamos os registros do porto do Recife ou indicações do
consumo de carnes secas vindas dos sertões.
Outros quesitos apresentados nos registros interessam para nossa pesquisa, mas ainda
se encontram num momento de cuidadoso trabalho de sistematização. Nosso interesse em
torno do comércio das carnes secas e a inserção deste produto em circuitos mercantis que
tinham como um dos portos centrais o Recife será evidenciado no último capítulo de nossa
dissertação. Enquanto isso nos limitamos a fazer com que pesquisadores interessados nas
redes comerciais formadas no Estado do Brasil, principalmente para seu abastecimento
interno, conheçam este manuscrito rico e importante.
Considerações finais
A dinâmica comercial ultramarina à qual a produção de carnes secas da vila de Santa
Cruz do Aracati estava inserida está ainda por ser perscrutada qualitativamente. Nossa
tentativa nesse texto foi de apontar caminhos que estão se abrindo a partir do nosso trato com
a documentação disponível nesse momento. A constatação da formação de circuitos mercantis
que envolviam as Capitanias do Norte do Estado do Brasil vem sendo apresentada na
historiografia há algum tempo a partir de conexões diretas com seu principal porto, ou seja, o
Recife ou entre si, independente de uma centralidade econômica em Pernambuco. Segundo
Mozart Menezes e Yamê Paiva, as estradas pelo interior do continente
Constituíam algumas vias pelas quais circulavam produtos idos e vindos
para a Paraíba. Os mapas de exportação e importação indicam os portos de origem e
destino dessas mercadorias. Aracati, Açú, Mossoró, Paraíba, Recife, Goiana,
Itamaracá, Olinda, Lisboa e Porto compunham os pontos de embarque das
produções da capitania e/ou de recebimento dos artigos enviados da metrópole. Esta
constatação rompe o monopólio exclusivo exercido pelo porto do Recife sobre as
produções da Paraíba. 33
33
Mozart Vergetti de MENEZES; Yamê Galdino de PAIVA. “Ilustração, população e circuitos mercantis”. In:
Carla Mary S. OLIVEIRA; Mozart Vergetti MENEZES; Regina Célia GONÇALVES. (Orgs.). Ensaios sobre a
América Portuguesa, João Pessoa, Editora Universitária/UFPB, 2009, pp. 78.
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Podemos constatar isso para o Siará Grande também, embora seja inegável o grande
volume do comércio com o porto do Recife e que dali as carnes secas entravam numa rede
maior de comércio atravessando o atlântico em direção aos mercados de venda de escravos
em África e ao velho continente, sendo utilizadas na manutenção de tropas lusas nas guerras
européias.
Esta pesquisa é desenvolvida junto ao Programa de Pós-graduação em História da
Universidade Federal da Paraíba (UFPB) desde 2010, sob orientação do Prof. Dr. Mozart
Vergetti de Menezes. Agradecemos a CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior) pela bolsa concedida, tornando possível esta pesquisa.