procura-te inácio: cartografias do encontro na cidade
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O ensaio monográfico "Procura-te Inácio: cartografias do encontro na cidade" consiste em uma pesquisa teórica e experimental acerca dos encontros na cidade. Fios, grafias e papéis foram utilizados em sua feitura, conferindo ao pensamento uma dimensão plástica (na tentativa de dar conta de apresentar virtualmente as texturas do "objeto", segue registro fotográfico do processo de impressão e costura). O trabalho se utiliza de conceitos, autores e obras, em sua maioria, do século XX para refletir sobre experiências errantes na urbe. Parte de uma investigação da relação do sujeito com o espaço urbano sob a ótica de quem vive e participa do cotidiano desta, incorporando dimensões pessoais na reflexão crítica.TRANSCRIPT
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS GRADUAÇÃO EM PRODUÇÃO CULTURAL
LUISA VASCONCELOS HARDMAN
PROCURA-TE INÁCIOCartografias do encontro na cidade
NITERÓI
2014
“Estamos perdendo uma capacidade humana fundamental: a ca-
pacidade de pôr em foco visões de olhos fechados, de fazer brotar
cores e formas de um alinhamento de caracteres alfabéticos negros
sobre uma página branca, de pensar por imagens. Penso numa
possível pedagogia da imaginação que nos habitue a controlar a
própria visão interior sem sufocá-la e sem, por outro lado, deixá-
-la cair num confuso e passageiro fantasiar, mas permitido que
as imagens se cristalizem numa forma bem definida, memorável,
auto-suficiente, icástica”
Italo Calvino, Seis propostas para o próximo milênio.
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agradecimentos
Se não há inicio e só há caminho, por onde começar?
Nunca achei que fosse ser tão difícil escrever os agradecimentos
– não que faltem sentimentos profundos de gratidão, mas ao
contrário - o desejo era agradecer todos aqueles que de alguma
maneira cruzaram comigo nessa caminhada. Sem encontros, não
haveria nada disso.
Agradeço aos que me ensinaram a importância da terra para quem
quer voar: Pai e Mãe!
À minha irmã Lara Hardman – que não precisa estar, para estar
perto – agradeço por resignificar a distância e se fazer presente
nas dimensões do afeto - afeto, esta terra a que fomos levadas
desde o começinho.
No começinho, estava uma “moça” de cabelos brancos e cheiro
de primavera, agradeço a ela por deixar o mundo mais aquarela:
minha avó, Line.
A Elas, agradeço pela irmandade que pintamos e bordamos: Liz
Tibau, Esther Martins e Clarissa Palma, que continuemos a tecer
esse mundo juntas!
À Karin Adams, pois juntas começamos, juntas terminamos e juntas
começaremos outra vez.
À “outra”, mesmo nome e signo, Luiza Chataignier, agradeço por
deixar o quarto ao lado ainda mais próximo e por estar sempre a
postos para dividir as dores e as delícias dessa travessia.
Pelos estímulos diários, agradeço à Laura Mello, que pacientemente
escutou todos os casos e acasos dessa vida.
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À Marisa Mello, chefe, amiga e companheira de luta, agradeço pelos
ensinamentos, na jornada da vida você é um dos nortes que hei de
seguir; à Luiza Mello e Mariana Mello, que me mostraram que dois
é bom mas três é melhor ainda! Se o meu percurso profissional só
está começando, fico imensamente feliz que ele tenha principiado
assim, nessa “família” Automatica.
Ao Alex de Souza, querido designer, fundamental na feitura deste
trabalho, serei sempre grata pelo carinho que uma fonte bonita
pode revelar.
À Marina Vianna, pelo incentivo para ir além - seja lá onde isso for.
À Tania Rivera, agradeço imensamente pela condução sensível
deste processo, pela escuta profunda, pela liberdade que habita a
confiança, por abrir os caminhos: minha admiração e carinho só
fizeram aumentar.
À Bahia de todos os Santos, agradeço às raízes e as asas que me
deu – e que entre nós, nunca faltem encontros.
A Inácio, onde você estiver.
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sumário15 introdução21 prólogo
25 primeira parte capítulo 1: “Os jogos dos passos
moldam espaços, tecem os lugares:
a prática do caminhar”
53 segunda partecapítulo 2: “Na cidade, eu
procuro a ficção”
87 epílogo93 referências bibliográficas99 ilustrações
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O livro Avenida Niévski
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introdução
Primeiramente, faço um convite: fechar os olhos e abrir o livro,
fazer desta leitura uma viagem, que vai, mas volta – assim como a
dialética da vida. Sugiro que sejam feitas duas leituras: alcançar o
fim para retornar ao início. A rua não é de mão única para aquele
que caminha, sempre existe a opção de atravessá-la e seguir pela
calçada oposta, ver a mesma cidade, só que do outro lado do
espelho, do lado do outro. No final das contas, chegamos ao ponto
de que partimos: nós mesmos.
A ida será permeada por referências teóricas – sempre à direita em
relação aos olhos de quem vê – apresentadas em terreno funda-
mentalmente híbrido: diferentes campos do saber serão acessados,
assim como autores e obras. Podemos dividir esse percurso em duas
partes, o que não significa que uma venha necessariamente antes
da outra ou que estas não conversem entre si. Em viagens longas,
se faz necessário pausas para olhar para trás e retomar o fôlego.
O posicionamento do olhar é o pressuposto fundamental neste
ensaio, pois toda e qualquer análise se dará a partir da perspectiva
daquele que formula ao mesmo tempo em que participa. Reforçar a
localização da fala se dá no intuito de estabelecer um contraponto
à visão-panorama do arquiteto, que se retira da cena urbana, sobe
no alto de um arranha-céu – que ele mesmo construiu – e apreende
a cidade, produzindo discursos e representações cartesianas que
irão reger o planejamento das cidades; estes dizem muito pouco
sobre a vida que acontece ao nível do solo.
Desse modo, ampliaremos o campo da percepção a partir das con-
siderações de Merleau-Ponty e sob a ótica das Cidades Invisíveis de
Ítalo Calvino, a fim de ver, mas não só com os olhos, possibilitando
que as multidimensões da experiência urbana sejam evocadas no
decorrer deste ensaio. A imbricação entre o corpo da cidade e o
corpo que ali habita será apresentada a partir do autor Julien Cracq,
Trata-se do último encontro, pois não há mais tempo.
Nas vésperas de imprimir este ensaio, recebi um e-mail de uma querida amiga
que revisou cuidadosamente revisou o que eu havia escrito. Neste e-mail, ela
falava sobre um livro que lembrou assim que se deparou com a proposta do
meu trabalho: Avenida Niévski, de Nikolai Gógol. Um livro que, assim como este
ensaio, poderia ser lido em duas viagens – primeiro direita depois esquerda ou
vice-versa –, a de ida e a de volta. Nesse mesmo dia, à noite, deparei-me com
as portas fechadas de uma aula de dança que faço sempre no primeiro sábado
do mês, mas que neste, não havia ninguém, sabe-se lá o porquê. Resolvi voltar
caminhando para casa e ao passar por uma livraria, lembrei-me do livro do
Gogól. Entrei, comprei o livro e encontrei um antigo caso de amor. Conversamos
sobre a vida, sobre finais de ciclo, sobre monografia, sobre encontros em
livrarias, e me despedi com aquela desculpa de que ainda tinha o que escrever.
Dez passos depois, na esquina da Voluntários da Pátria com a Muniz Barreto,
ouvi alguém me chamar: era ela – aquela que havia enfaticamente falado
sobre o livro no email – naquele mesmo dia, no entre de dois encontros. Assim,
encerro as andanças com esta imagem: eu, ela e o livro, nas esquinas que fazem
da cidade um lugar para se encontrar; encerro apenas por questões de ordem
prática, pois neste sentido, parafraseando Vinicius, a vida toda é mesmo a arte
do encontro – mesmo que haja tanto desencontro nessa vida.
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que entende que a cidade é formada pelos percursos que nela se
realizam. Essa ideia anuncia o que em seguida aprofundaremos: o
pensamento em torno do “lugar praticado” de Michel de Certeau,
pelo qual define o ato de caminhar como a prática que efetiva,
atualiza e subverte o sistema urbano. Essa operação, segundo o
autor, é análoga à relação existente entre fala e língua. Assim, ele
atribui ao caminhar uma função enunciativa, no qual manipular
os códigos de um sistema ordenador e artificial confere invenção
ao cotidiano.
Nessa direção, iremos fazer referência às narrativas produzidas pela
flânerie, no final do séc. XIX, a partir da crítica de Walter Benjamin
ao poeta Charles Baudelaire, um marco fundamental para o nosso
pensamento errante. As condições que a modernidade inaugura
reverberam profundamente na relação do sujeito com a cidade,
sintetizadas na experiência do flâneur com a multidão.
Se, ao lermos a poesia de Baudelaire, temos a sensação de que ele
está a um passo do abismo, podemos afirmar que André Breton salta
sem medo. Assim, pulamos para a segunda parte deste ensaio, na
qual se fundem relato e caminhada, a partir de um habitar poético,
no qual o encontro com Nadja – nome atribuído tanto à obra como
à personagem do surrealista – será central para o sentido que a
reflexão assume. O encontro passa a ser o gancho comum entre as
leituras de três distintos movimentos do séc. XX e suas experiências
na cidade: surrealistas; modernistas e situacionistas.
O retorno, por sua vez, reúne os vestígios referentes à dimensão
mais pessoal da caminhada – sempre à esquerda –, partindo do
epílogo para compreender o prólogo. Navegar sob os relatos, fios,
grafias, amarrações, fotografias, materializa uma camada de poesia
na formulação crítica, evidenciando que o pensamento também é
plástico. Na tentativa de desmontar a reflexão, as transparências
no trajeto revelam ainda mais os dispositivos que direcionaram esta
viagem, configuram-se como um recurso estético-metodológico de
recorrer a sucessivas sobreposições para apresentar os percursos
narrativos. Estes irão atravessar portas para encontrar janelas, e
dentro delas, encontrar gavetas, e assim por diante – assim como a
dinâmica do rizoma na botânica, assim como as veredas da cidade.
Os encontros foram muitos nesta caminhada, encontros com
autores, significados, trajetórias, trabalhos de artistas, os encontros
desencontrados, os encontros contados por aqueles que encontrei;
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o encontro, nessa abordagem, é a força vital e primordial na relação
com a cidade.
Portanto, assumimos o olho que vê de forma radical. Não só os
conceitos serão apresentados, como a forma pela qual os encontrei
farão parte da própria reflexão. Como se, para falar de caminho,
nesta abordagem, fosse necessário o caminhar, explicitar o processo
como parte constitutiva da discussão, enquanto ressonância do
conteúdo apresentado.
Antes de partir, peço que atentem ao conselho dado por Nadja
a Breton, que será de grande valia para essa andança – e tantas
outras: “Não sobrecarregar o pensamento com o peso dos sapatos”
(BRETON, 2007, p. 108).
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prólogo
> Falar sobre como nos conhecemos
eu e Inácio, argentino que passou pelo Brasil em abril de 2013, morador da
cidade de Córdoba, “coração de seu país”, como disse sobre seu lugar – falar
onde nos conhecemos/falar sobre a Pedra do Sal: domingo, Bailijesá, afoxé
pelo dia de Tiradentes
> Falar sobre a dificuldade de falar
tentativa de trocar contatos: na hora de partir, o céu já anunciava chuva, o
centro se esvaziava, o táxi que nos levaria embora, já com todas as meninas
dentro, buzinava, buzinava chamando por mim, enquanto eu e Inácio tivemos
a certeza que não dominávamos a mesma língua, ele não entendia meu
sobrenome e não tinha telefone
> Falar sobre a solução encontrada
encontrá-lo, no mesmo dia, no mesmo lugar – e Inácio gesticulou, usou o
corpo, disse “aqui” com as mãos – Pedra do Sal na segunda já era sabiamente
conhecida, inclusive por ele
> Falar sobre segunda
ou como a véspera de feriado de São Jorge havia levado todos para a rua,
para o centro, reformado, ocupado, a cidade, mais uma vez, me engolindo
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Ele me falava sobre o Rio e seus afluentes
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> Nada de Inácio
Inácio procuro-te
> A multidão – agulha no palheiro – algo como a metáfora do desencontro
> O plano
desafiar o anonimato – a possibilidade da inexistência – grifar caminhos, fazer
escolhas, esquerda, direita, mais esquerda sempre, até chegar a Córdoba. Seguir
as veias para chegar no coração, apostar na capilaridade, na observação e
reflexão dos caminhos cidades, visíveis e in-visíveis
> Lembrar
da volta pra casa naquele dia atravessando as ruelas do morro da Conceição
– do desejo da casa, das ruas pequenas, do paralelepípedo, do Santo Antônio
além do Carmo, da rua que se comove, que se organiza, que se reconhece – e
que isso permeie os lugares pelos quais eu passar
Além mar
Além Inácio
[22 de Abril de 2013 – roteiro da experiência]
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I. capítulo 1: “Os jogos dos passos moldam espaços, tecem os lugares: a prática do caminhar”1
A perspectiva do urbanismo tradicional parte de um olhar externo
sobre a cidade, um olho que tudo vê, de fora, à parte – ênfase na
locução enquanto negação de uma, qualquer que seja, existência
compartilhada que está implicada quando se faz parte. Os planos
diretores, as políticas urbanas, as diretrizes que regem a dinâmica
da cidade se desenvolvem apoiadas, no geral, por esse referencial
externo que assume uma percepção cartográfica na tentativa de
se obter uma dimensão integral e macroscópica da urbe.
As práticas desta disciplina e sua forma de organização não serão
o objeto desta monografia, no entanto, devo mencioná-las com o
intuito de evidenciar a diferença fundamental quanto à localização
do discurso. Assim, este ensaio pretende partir de uma visão de
dentro, no avesso da representação cartográfica cartesiana, com
a perspectiva de quem tece as palavras aqui, assim como de quem
tece os caminhos na cidade. Em detrimento da visão panóptica
1 CERTEAU, 2014, p.163
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O segundo encontro, foi com Nena, a artesã que era cidade, mulher, arquiteta e mãe.
Postal encontrado dentro do l ivro As Cidades Invis íveis
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dos urbanistas, opta-se pela cegueira dos praticantes ordinários
de Michael de Certeau, assumindo os diferentes tipos de registro
e níveis de sentido que compõem a experiência urbana, como
disparadores da formulação crítica.
Em Cidades Invisíveis (1972), o autor italiano Ítalo Calvino (1923-1985)
reúne os relatos das viagens de Marco Polo que foram narrados
ao imperador Kublai Khan. No decorrer deste ensaio, volta e meia
retornaremos a esses relatos, seguindo juntos através das ficções
que habitam a percepção desse viajante. Cada cidade, apresentada
e descrita a partir de metáforas, sintetiza poeticamente a perspectiva
diante da infinitude dos caminhos do império.
Dessa narrativa cartográfica, primeiramente, apresentamos Irene2,
uma das mulheres-cidade que Marco Polo conheceu. Nesta pas-
sagem, vemos como a distância ou aproximação que se mantém
dela, ou seja, sua localização óptica, transforma aquilo que vê:
“Irene é uma cidade distante que muda à medida que se aproxima
dela” (CALVINO, 1990, p. 118). Assim, esse trecho propõe o
entendimento que “a cidade de quem passa sem entrar é uma,
é outra para quem é aprisionado e não sai mais dali (...)” (Ibid.).
Assim, vista de dentro, Irene torna-se “outra cidade”, pela legítima
coexistência dos diferentes planos, camadas da experiência na urbe,
que atravessam o tempo e se organizam de maneira singular. Nos
termos do autor:
A esta altura, Kublai Khan espera que Marco diga como é Irene vista de dentro. E Marco não pode fazê-lo: não conseguiu saber qual é a cidade que os moradores do planalto chamam de Irene; por outro lado, não importa: vista de dentro, seria outra cidade (CALVINO, 1990, p. 118)
Ao apresentar a possibilidade de leitura que supera a visibilidade,
supomos uma relação do ver a cidade a partir da impossibilidade
de vê-la, desse lugar que ambos, – Calvino e Certeau – exploram,
onde quem ver de dentro renuncia à dimensão do todo, mas detém
a potência de outras apreensões diversas.
2 Na obra em questão, todas as cidades são chamadas por nomes de mulheres.
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São pedestres, cujo corpo obedece aos cheios e vazios de um texto urbano que escrevem, sem poder lê-lo. Esses praticantes jogam com espaços que não se veem; têm dele um conhecimento tão cego como no corpo a corpo amoroso. Tudo se passa como se uma espécie de cegueira caracterizasse as práticas organizadoras da cidade habitada (CEARTEAU, 2014, p. 159).
No intuito de evocar um campo da percepção ampliada, que não
se reduz à visualidade, a contribuição de Merleau-Ponty para este
assunto é compatível com a proposta de fechar os olhos e ver o
visível e o invisível do mundo, do outro e de si próprio, conforme
suscitado anteriormente.
Deste autor, primeiramente, apresentamos a sua aposta numa
compreensão do mundo a partir da combinação entre os fatores
que o formam, daquilo que está entre, pensando assim a pers-
pectiva como um resultado, o olhar como a primeira parada que
nos guia no espaço.
Deve-se compreender a história a partir da ideologia, ou a partir da política, ou a partir da religião, ou então da economia? Deve-se compreender uma doutrina por seu conteúdo manifesto ou pela psicologia do autor e pelos acontecimentos de sua vida? Deve-se compreender de todas as maneiras ao mesmo tempo, tudo tem um sentido, nós reencontramos sob todos os aspectos a mesma estrutura de ser. Todas as visões são verdadeiras, sob a condição de que não a isole-mos, de que caminhemos até o fundo da história e encontremos o núcleo único de significação existencial que se explicita em cada perspectiva (MERLEAU-PONTY,1996, p.17).
Ao apontar para esse espaço entre, podemos afirmar que a inter-
-relação entre o eu, o outro e o mundo é da ordem do fenômeno
e assim fazer referência a obra Fenomelogia da Percepção, escrita
por ele em 1945. Vale reforçar a ideia que o caráter fenomeno-
lógico na compreensão do mundo nega sua preexistência, como
se percebê-lo amplamente, na busca pela sua intenção total, nos
fizesse convergir em um ponto para alcançar a gênese do sentido.
Nesse processo, o campo perceptivo é resultado da existência que
se corporifica, do entrelaçamento dos sentidos junto ao corpo no
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Uma vista da minha cidade [ Início do séc. XX]
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qual se manifesta, suscitando a subjetividade da percepção que
pressupõe o sujeito que olha, o corpo como ponto de vista, através
das diferentes camadas da apreensão na prática da vida. O olhar,
para Merleau Ponty, é o guia do corpo no espaço, que promove
a captura do mundo. Comenta o autor: “Eu não o vejo segundo
o seu invólucro exterior, vivo-o por dentro, estou englobado nele.
Afinal de contas, o mundo está em torno de mim, e não diante de
mim” (MERLEAU-PONTY, 1984, 100).
O autor atribui ao corpo não só a capacidade de apreender o
visível, mas também, como elabora em O Olho e o Espiríto, a
qualidade de “vidente” que olha para si e assim, ao olhar o
mundo, conhece e se re-conhece nele, numa espécie de sentir
e sentir-se parte daquilo, numa relação de afetar e se deixar ser
afetado por ele (MERLEAU PONTY, 1984).
Meu corpo é ao mesmo tempo vidente e visível. Ele, que olha todas as coisas, também pode olhar a si e reconhecer no que está vendo então o ‘outro lado’ do seu poder vidente. Ele se vê vidente, toca-se tateante, é visível e sensível por si mesmo. É um si, não por transparência, como o pensamento, que só pensa o que quer que seja assimilando-o, constituindo-o, transformando-o em pensamento - mas um si por confusão, por narcisismo, por inerência daquele que vê naquilo que ele vê, daquele que toca naquilo que ele toca, do senciente no sentido -, um si, portanto que é tomado entre coisas, que tem uma face e um dorso, um passado e um futuro... (MERLEAU-PONTY, 1984, pp. 88-89).
A partir da fenomenologia do olhar de Merleau-Ponty podemos
fazer uma crítica à separação moderna que determina homem
enquanto sujeito e o mundo enquanto objeto, entes já prontos em
si mesmos, e posteriormente, postos em relação, conceito essencial
para arquitetura e o urbanismo modernos. O urbanismo adota
uma perspectiva planar da cidade, evocando um olho universal
que desconhece as práticas, sob as convenções da geometria e da
matemática. Seguimos na direção oposta da arquitetura moderna,
que organiza o espaço a partir de sua função, dos modelos artificiais
que interferem na organicidade das relações na urbe.
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Ao atravessar as cidades de Calvino, encontramos Zoé, elevando
radicalmente a relação entre a forma e o uso do espaço. A cidade
funde a função e a estrutura como se não houvesse distinção entre
as partes – em direção oposta ao determinismo funcional, os lugares
são passíveis de habitações diversas, existência compartilhada e
indivisível, portanto. Trata-se de uma inversão: se, normalmente,
o viajante organiza a percepção da cidade por símbolos, antes
mesmo de chegar, não foi o que Marco Polo encontrou em Zoé.
Para questionar e desorganizar o olhar moderno condicionado a
separar, reduzir, limitar, especificar, demarcar tudo o que apreende
no seu entorno, se diluem fronteiras entre o fora e dentro, consti-
tuindo um espaço de arranjos e contratos provisórios, cambiáveis,
da multiplicidade, a partir da mobilidade semântica, dos lugares
que não aprisionam funções nem significados.
Em todos os pontos da cidade, alternadamente, pode--se dormir, fabricar ferramentas, cozinhar, acumular moedas de ouro, despir-se, reinar, vender, consultar oráculos. Qualquer teto em forma de pirâmide pode abrigar tanto o lazareto dos leprosos quanto as termas das odaliscas. O viajante anda de um lado para o outro e enche-se de dúvidas: incapaz de distinguir os pontos da cidade, os pontos que ele conserva distintos na mente se confundem. Chega-se à seguinte conclusão: se a existência em todos os momentos é uma única, a cidade de Zoé é o lugar da existência indivisível. Mas então qual é o motivo da cidade? Qual é a linha que separa a parte de dentro da de fora, o estampido das rodas do uivo dos lobos? (Calvino, 1990, p.34-35)
***
Passamos a pensar a forma da cidade a partir dos usos e da vida
ativa, sustentado pela noção de espaço enquanto lugar praticado,
que Michael de Certeau apresenta no livro A Invenção do Cotidiano,
relacionando e distinguindo a noção de lugar, conforme trecho
reproduzido abaixo:
Um lugar é a ordem (seja qual for) segundo a qual se distribuem elementos nas relações de coexistência. Aí se acha, portanto, excluída a possibilidade, para duas coisas, de ocuparem o mesmo lugar. [...] O espaço é um cruzamento de móveis. É de certo modo animado
32
Anotações sob café [Abri l de 2014]
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pelo conjunto de movimentos que aí se desdobram. Espaço é o efeito produzido pelas operações que o orientam, o circunstanciam, o temporalizam e o levam a funcionar em unidade polivalente de programas conflituais ou de proximidades contratuais (CERTEAU, 2014, p.184).
Dessa maneira, passamos a entender o espaço como um resultado
de combinações e arranjos dos elementos que o compõem, da
interseção entre estes, entendendo o espaço de fora não mais
como aquele que é oposto ao espaço de dentro, não mais a cidade
apenas como cenário da vida humana, apostando na dialética da
convivência e contaminação entre o que antes era dicotômico.
Pela ênfase no espaço da cidade, recorro ao pensador francês
Oliver Mogin e sua reflexão crítica e contemporânea, presente no
livro A condição urbana: a cidade na era da globalização (2005),
para através dela, incorporar conceitos e referências importantes
para essa abordagem. Segundo o autor, “a cidade existe quando
indivíduos conseguem criar vínculos provisórios em um espaço
singular e se consideram como citadinos” (MOGIN, 2009, p. 56) .
Nesse livro, Oliver Mogin apresenta o autor Julien Cracq (1910-2007),
escritor francês de trajetória discreta que parte do entrelaçamento
entre a sua vida e sua obra, em narrativas que o enlaçam com sua
cidade natal, Nantes. Ele relaciona a sua formação com a maneira
como percorre a cidade, como se a forma da cidade estivesse
imbricada na sua trajetória singular, por assim dizer, relacionando
então o corpo do espaço e o corpo do homem urbano. Para
Mogin, o escritor “configura um percurso urbano, relatando assim
a maneira pela qual uma cidade se forma em função de percursos
corporais” (MOGIN, 2009, p. 54). Por que não pensar na forma
enquanto formadora e concomitantemente formada, e o sujeito
como ativador dos sinais vitais da vida urbana, em constante troca
a partir da porosa membrana que separa o eu, o outro e os lugares?
Dessa maneira, atribuímos as práticas do cotidiano à potência em
reorganizar o espaço urbano, práticas que escapam do controle e do
ordenamento que incide sobre a cidade, sendo vetores determinantes
na malha da vida social. Não podemos pensá-las desassociadas
dos imperativos provenientes de cima para baixo, uma vez que é
neste ajuste de forças que resistentes e hábeis procedimentos são
adotados no sentido inverso.
34
O Arte/Cidade interveio em mim a partir daquele momento,
gerou pesquisa. A publicação foi o pontapé para ir investigar
os seus desdobramentos - que eram muitos, inclusive. O Arte/
Cidade tornou-se resenha crítica para final de disciplina desta
graduação, gerou ideias, novas maneiras de ver a cidade, gerou
muitas conversas durante os períodos em São Paulo, e até um
encontro com o próprio Nelson, em sua participação em um
seminário que produzi no final do mesmo ano, na Caixa Cultural
aqui do Rio.
Porta encontrada no centro de São Paulo
35
É no ato de caminhar, para Certeau, que se coloca em prática o
conjunto de premissas que pautam o espaço da cidade, a partir do
“processo de apropriação topográfica pelo pedestre” (CERTEAU,
2014, p.164). O caminhar passa a ser entendido como “uma
realização espacial do lugar” (CERTEAU, 2014, p.164), como fluxo
que efetiva um ordenamento prévio, onde arrodear os buracos
para não tropeçar ou atravessar a rua para ir pela sombra fazem
os limites dos lugares, constroem margens e, portanto, os definem.
O sociólogo confere à relação entre o ato de caminhar e o sistema
urbano vigente a análoga relação entre a enunciação e a língua.
Em ambos os casos ocorre a efetivação do enunciado/sistema e sua
atualização, a partir da apropriação dos códigos e aplicação prática
deste. “O caminhante transforma em outra coisa cada significante
da cidade” (CERTEAU, 2014, p.165). Assim, atalhos e desvios seriam
equivalentes à manipulação que a fala faz diante da língua, como
as figuras de linguagem, por exemplo, operações que subvertem
uma lógica externa a sua prática, de acordo com o autor.
Para reforçar essa relação, Oliver Mogin também apresenta o
poeta e escritor Jean-Christophe Baily (1949) na passagem sobre a
“gramática gerativa das pernas”, afirmando que “a cidade é uma
língua, é um sotaque” enquanto modo, tem ritmos e nuances,
cidade-linguagem – na qual o gesto e a palavra caminham juntos
(BAILLY apud MOGIN, 2009, p. 62):
“Como se lançam palavras no ar com a voz, desdobram--se passos no espaço ao caminhar, e alguma coisa se define e se enuncia. As palavras tomam lugar no seio de uma frase ininterrupta que desaparece na distância ou regressa. Gramática gerativa das pernas.” (BAILLY apud MOGIN, 2009, p. 62)
***
Julien Cracq, em seu livro La Forme d’une Ville (1985), define a
cidade como um vade mecum, uma espécie de livro-guia, de uso
frequente, assim como descreve:
Foi organizando as doações de livros para a Biblioteca da Maré, implementada
pelo projeto Travessias1 , em abril de dois mil e treze, que se sucedeu mais
um importante encontro. Arrumando-os na prateleira, encontrei o livro ARTE/
CIDADE, publicação sobre um projeto de intervenção urbana, realizado em São
Paulo entre 1994 e 2002. Foram 4 edições que tiveram curadoria e coordenação
do filósofo Nelson Brissac Peixoto, também responsável pelo conteúdo da
publicação que eu naquele momento folheava. Sem dúvida, o contexto todo
fazia aquele encontro ainda mais potente, tudo parecia convergir para uma
discussão em torno da cidade. Na verdade, a cidade se fazia discutir, ali, na
prática articulada com a curadoria que folheava, entre imagens e palavras, que
faziam cada vez mais sentido. O fato de estar naquele espaço, mesmo que de
passagem, mesmo que imbuída de contradições, me fez olhar para o outro, o
outro lado da cidade, me fez atravessar a Avenida Brasil e ver um outro Rio -
que nada se parecia com o Rio da Rio Branco que desagua na Cinelândia. E ali
pensei que o entre, poderia ser a arte, o campo da arte, como um espaço de
deslocamento semântico, de quebra, de intervenção.
1 O Travessias é um projeto de arte contemporânea que promove o encontro de experiências estéticas como expressão da vida social que se faz presente em comunidades populares notoriamente estigmatizadas como territórios marcados pela violência e pela desigualdade social.
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que se folheia, que se rabisca e corrige sem maiores cuidados, repertório a cada instante, e sempre, familiar e inconscientemente consultado, trampolim inusável para a ficção e, ao mesmo tempo, rede de sulcos mentais cavados e endurecidos em mim pelos caminhos que ela me impunha (CRACQ, 1995, p. 774)
É atribuído ao espaço da cidade, na metáfora criada pelo autor, um
receptáculo físico que funciona como superfície onde se sobrepõem
textos urbanos, relatos que constroem os caminhos percorridos
e que se moldam também a partir dos caminhos que percorrem.
Essas inscrições na cidade formam uma espécie de caderninho vivo,
sem pauta, feito de ir e vir, lá e cá, no desenrolar da vida cotidiana,
incorporando percepções de sentidos diversos. Assim, predomina
o movimento, o fluxo, os encontros construindo esquinas, numa
espécie de costura entre as palavras que contam sobre a experiência
e são a própria experiência.
Nesse sentido, Michael de Certeau também evoca a íntima relação
entre as narrativas e as errâncias quando afirma que “todo relato
é um relato de viagem, uma prática do espaço”, ou quando nota
que “onde o mapa demarca, o relato faz uma travessia. O relato é
diegese, termo grego que designa narração: instaura uma caminhada
(guia) e passa através (transgride)” (CERTEAU, 2014, p. 183).
Atravessar – deslocar-se a partir de relatos, representação da
representação – produz arranjos de diferentes registros da cidade,
manifestada no cruzamento da linguagem com a experiência,
suscitando o que Certeau afirma sobre as retóricas ambulatórias
(CERTEAU, 2014, p. 166). Estas se fundam na equivalência entre a
arte de moldar frases e a arte de moldar percursos, no âmbito do
uso como “manipulação sobre os elementos de base de uma ordem
construída” (Ibid., p.167) e sua possível e potente possibilidade de
operar sobre as organizações espaciais, multiplicando os sentidos
a partir das multidimensões da experiência na urbe.
Enquanto os relatos dos percursos são “ações espacializantes”, o
mapa orienta o caminho a partir de um ordenamento dos lugares,
afastando-se das operações de que é efeito ou possibilidade, no
isolamento de um sistema de coordenadas estático. A compreensão
de que as narrativas não são apenas uma transposição do itinerário
para o campo da linguagem se faz fundamental para que sua
potência como prática organizadora do espaço não seja suprimida.
38
39
Essas aventuras narradas, que ao mesmo tempo pro-duzem geografias de ações e derivam para os lugares comuns de uma ordem, não constituem somente um
“suplemento” aos enunciados pedestres e às retóricas caminhatórias. De fato organizam as caminhadas. Fazem a viagem, antes ou enquanto os pés a executam (CERTEAU, 2014, p. 183)
A cidade gracquiana se assume enquanto “tecido elaborado pela
justaposição de inúmeras paisagens urbanas textuais lidas alhures,
todas elas assimiladas – direta ou indiretamente – a Nantes, todas
elas em coexistência, lado a lado, no imaginário pelo qual evolui o
eu do narrador” (NASCIMENTO, 2009, p. 130). Leituras da cidade
que fizeram parte de sua formação com-viveram com suas errâncias
num misto de ser fruto delas e de simultaneamente determiná-las.
Ao aproximar as formações linguísticas dos processos caminhatórios,
assumimos a importância das práticas do espaço como férteis e
potentes ferramentas para tratá-lo e alterá-lo, apostando em sua
dimensão figurada, em sua dimensão do sentido. A potência está
nessa capacidade humana de operar uma “errância do semântico,
produzida por massas que fazem desaparecer a cidade em certas
regiões, exageram-na em outras, distorcem-na, fragmentam e
alteram sua ordem enquanto imóvel” (CERTEAU, 2014, p. 168).
Assim, considerando os sujeitos enquanto escritores dos textos
urbanos, do viver e do contar – e inventar, na coexistência de ambos,
caminhada e relato –, se forma um novo plano: uma poética da
experiência, colocada em “estado de arte” na plástica da vida, que
atravessa o dentro e o fora e nos conecta com o espaço e com
nós mesmos. Conforme comenta a pesquisadora Silvana Garcia
ao se debruçar sobre as práticas surrealistas que serão abordadas
no segundo capítulo:
Para as vanguardas, e pelo exemplo delas, o homem precisa reaprender a viver em estado de arte e reen-contrar nessa experiência um sentido maior que se conecte consigo mesmo e com o que o cerca (GARCIA, 2000, p. 298)
***
40
Conheci o Carlos, em setembro de dois mil treze, ao organizar um
seminário na universidade, sobre o processo de organização e
movimentação política no campo da cultura – naquele ano que havia
sido o ano das manifestações que eclodiram nas ruas do país. Carlos
participou enquanto um dos idealizadores do coletivo Norte Comum
e tive a sensação de que já o conhecia de “outros carnavais” –
literalmente, pois Carlos habitava e habita os mesmos espaços da
cidade, estava sempre em todos os lugares, principalmente, estava
entre os lugares: na rua, na Lapa, deslocando-se, circulando entre os
grupos, falando dos assuntos mais variados. Observar o Carlos me
remetia a uma versão contemporânea do João do Rio, atualizado,
obviamente, “pós-moderno”, um flâneur do século XXI. Sim, o
flâneur do séc. XXI se organiza, pensa em coletivo, coletividade,
reflete vivendo e vive refletindo, sobre e sob o espaço da cidade.
A ambiguidade agora passa a ser entre o local e global, um
pensamento sem fronteiras e um sentimento profundo de ligação
com o seu bairro, com a região em que vive. De uns tempos para
cá, venho lendo os relatos que Carlos escreve e dispara nas redes
sociais. Ele fala sobre as rotas diárias entre a zona norte e a zona
sul, compartilha dos acontecimentos entre a casa e o trabalho, entre
o aqui e o ali, faz do cotidiano poesia, de forma sinestésica, assim
como Baudelaire. Fala sobre praias em dias nublados, os excessos e
maravilhas dos canais de comunicação; fala sobre amor, carnaval,
trânsito, saudade; fala sobre os fogos vermelhos no Morro do
Salgueiro ou sobre andar descalço em ruas que a gente conhece
bem, fundindo as memórias ao presente, entre o ver e o enxergar.
“Ontem eu dormi no ônibus, estava sonhando, e passei do meu ponto. Sonhava sonhos felizes, e não tive problema em pensar que teria que andar uma distância ainda maior. Aproveitei e fui por
uma das ruas da minha vida. A gente é feito de ruas. Como já era quase madrugada, pude andar
pelo meio dela. Tirei a sandália e fui pisando descalça naquele chão que eu conhecia tão bem.
Nesses lugares em que vivemos outras vidas dentro dessa, toda visão do real é acompanhada de
uma visão da memória.”1
Carlos Meijueiro
1 Ver em: <https: / /www.facebook.com/carlos.meijueiro?fref=ts> Acesso em: 20 nov. 2014
41
O marco referencial no âmbito das aventuras narrativas que cruzam
e constroem cidades provém do final do séc. XIX, em especial, a
partir da figura do flâneur, atribuída por Walter Benjamin (1892-
1940) à vida e à obra de Charles Baudelaire.
Diante da consolidação da burguesia como classe dominante, os
avanços tecnológicos pós-Revolução Industrial, a produção e o
consumo elevados ao expoente da massa, são as condições que
fazem com que a vida passe a girar definitivamente em torno das
cidades. Desse modo, é possível visualizar o quanto a organização
espacial gerada pelas forças de modernização que incidem sobre
as cidades europeias, nesse período, recriam a experiência: os
corpos que antes não se tocavam, frente ao aumento populacio-
nal e intenso reforço da vida pública, vivenciam a experiência da
multidão. Benjamim sintetiza na multidão uma série de processos
advindos da modernidade.
A experiência do flâneur difere-se essencialmente do morador
comum, pelo modo que caminha sem rumo, sem propósitos pré-
-definidos, pelo modo como se atém às nuances que escapam
aos olhos dos outros passantes, inaugurando uma nova postura
perante à cidade. Na mesma proporção que é fruto da moderni-
zação, torna-se resistente a ela, num misto de fascinação e crítica
diante das transformações que presencia. Na verdade, o flâneur pressupõe ambiguidades diversas: vive a passagem da cidade antiga
para a metrópole moderna, entre a casa e a rua, o entusiasmo e
a melancolia, a consciência e a embriaguez, em busca da solidão
– dimensão individual, na multidão – dimensão coletiva.
Assim, o flâneur experimenta a saída de si, a saída de casa, a
possibilidade do anonimato ao adentrar a dimensão pública nos
princípios da modernidade. É importante, no âmbito desse estudo,
pensar o quanto a experiência da multidão, inaugurada pelo flâneur, contribuiu e possibilitou o choque, o encontro, na construção do
espaço público. Mesmo que a alteridade ainda não fosse vivida de
forma radical, o flâneur em Baudelaire, diferentemente do homem
das multidões de Edgar Allan Poe, narra a multidão a partir da
perspectiva vivida que passa a incluir os esbarrões dos encontros
e desencontros, onde flanar perpassa a capacidade (e prazer!) de
viver o lugar do outro – conforme o poeta Baudelaire confere a
este ofício:
42
Estudos para multidão [Janeiro de 2014]
43
O poeta goza do inigualável privilégio de poder ser, conforme queira, ele mesmo ou qualquer outro. Como almas errantes que buscam um corpo, penetra quando lhe apraz, a personagem de qualquer um. Para o poeta, tudo está aberto e disponível; se alguns espaços lhe parecem fechados, é porque aos seus olhos não valem a pena serem inspecionados (BAUDELAIRE,1985, p. 459).
No poema “A uma passante” de Baudelaire, Benjamin se refere à
paixão despertada e em seguida arruinada, em meio e pela cidade,
que traz e leva embora a personagem, apontando para a multidão
como o “refúgio do amor que foge ao poeta” (BENJAMIN, 1989,
p. 42). Em seguida, complementa com: “a multidão não é apenas
mais o mais novo refúgio do proscrito; é o mais novo entorpecente
do abandonado” (Ibid., p. 44).
A rua em torno era um frenético alarido. Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa, Uma mulher passou, com sua mão suntuosa. [...] No olhar, céu lívido onde aflora a ventania, A doçura que envolve e o prazer que assassina. Que luz... E a noite após? — Efêmera beldade Cujos olhos me fazem nascer outra vez, Não mais hei de te ver senão na eternidade? Longe daqui! Tarde demais! Nunca talvez! Pois de ti já me fui, de mim tu já fugiste, Tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste! (BAUDALAIRE apud BENJAMIN, 1989, p. 44)
Benjamin faz a leitura da cidade de Paris através de Baudelaire,
como se recorresse aos olhos daquele que olha de dentro para
revelar sua perspectiva crítica a modernidade. O pensamento
do autor atravessa as ruas da cidade, se perde, se acha, se deixa
engolir pela multidão, através das máscaras do poeta. A crítica à
obra de Baudelaire torna-se ainda mais significativa do que sua
própria obra – no âmbito da nossa abordagem, uma vez que nos
interessa ainda mais o percurso crítico feito por Benjamin.
Em Rua de mão única (1928), obra redigida por ele em 1928, o crítico
reúne um conjunto de aforismos. O livro nos remete à percepção
do mundo através de um caleidoscópio “benjaminiano”, no qual
o autor desdobra os fragmentos que organizam o mosaico da vida,
a partir da coletânea dos vestígios do cotidiano. A literatura, nessa
44
45
obra, parece adquirir a natureza do espaço, relacionada à ação,
produzindo uma escritura da cidade, guiado por títulos recolhidos
dela, dos letreiros, das chamadas, dos trejeitos urbanos. Ao afirmar
que a “verdadeira atividade literária não pode ter a pretensão de
desenrolar-se dentro das molduras literárias” (BENJAMIN, 1987,
p.11), no trecho intitulado “Posto de Gasolina” (para ilustrar a
diversidade da procedência que nomeia os segmentos da obra), o
crítico lança mão do lócus da escrita e faz dela caminhada.
Benjamin reúne uma miscelânea de conteúdos que atravessam
dimensões políticas, estéticas, filosóficas, econômicas, na costura
de notas sobre os mais variados tipos de assunto. O autor produz
uma montagem não arbitrária, mas imediata, optando por uma
“linguagem de prontidão” (Ibid.), literal à experiência que a metrópole
engendra ao sujeito que a habita. “O escrito é uma cidade para
a qual as palavras representam milhares de portões” (BENJAMIN
apud SELIGMANN, 1987, p. 219), comenta o autor.
Eu ia de manhã cedo, de automóvel, através de Marselha em direção à estação e, assim que no caminho me deparavam lugares conhecidos, depois novos, desconhecidos, ou outros de que eu só conseguia lembrar-me inexatamente, a cidade tornou-se em minhas mãos um livro, no qual eu lançava ainda rapidamente alguns olhares, antes que ele me desa-parecesse dos olhos no baú do depósito por quem sabe quanto tempo (BENJAMIN, 2010, p.52).
Ao lermos o trecho citado acima, é possível observar o quanto
o ritmo dado às palavras nos remete ao tempo da percepção de
quem vê de dentro do automóvel em que Benjamin se encontra,
a construção narrativa é imbuída do ritmo efêmero da metrópole
moderna, da experiência vivida. Dessa maneira, ele percorre os
caminhos da cidade e da reflexão, cruzando o pensamento e a ação,
em um livro que requer pausa para respirar, diante das surpresas
do virar a página – assim como o inesperado do virar a esquina.
Vale ressaltar que a forma proposta rompe com as convenções
literárias, abre mão da ilusão da narrativa contínua para se aproximar
da vida multifacetada. O professor Willie Bolle, um dos principais
tradutores de Benjamin no Brasil, comenta sobre Rua de Mão Única:
46
47
trata-se de uma representação da metrópole moderna, assim como ela se ergue diariamente diante de seus habitantes: uma imensa aglomeração de textos: pla-cas de trânsito, outdoors, sinais, letreiros, tabuletas, informações, anúncios, cartazes, folhetos, manchetes, luminosos – uma gigantesca constelação de escrita. (BOLLE, 1994, p. 274)
A partir das partículas banais do cotidiano, Benjamin tece comentários
críticos da modernidade estando no interior dela, utilizando-se
dos princípios perceptivos modernos. Benjamin nos aponta as
mudanças vividas no decorrer do começo do século, diante uma
nova compreensão do espaço da cidade em uma velocidade antes
nunca experimentada:
O mercado cotidiano, a cidade comprimida de tendas baixas de
madeira, estende-se sobre o molhe, um largo [...] O conjunto é
como a fachada do bordel de fantasia. Uma outra casa, igualmente
não longe do porto, tem sacos de açúcar e carvão cinza e negro
plasticamente sobre a parede cinza. Sapatos em outro lugar qual-
quer, chovem de cornucópias [...]. De tais imagens a cidade está
repleta: dispostas como se saíssem de gavetas. Entre elas, porém,
destacassem muitos edifícios altos, semelhantes a edificações,
mortalmente tristes, que despertam todos os terrores do czarismo.
(Ibid., p. 51-52)
Concluímos, portanto, diante da potente evocação da invenção do
cotidiano elaborada neste primeiro capítulo. Passamos a entender
o ato de caminhar como síntese da vivência da cidade, enquanto
prática do espaço que efetiva e, portanto, demarca significados,
alcançando a essência que beira sobre as margens, definindo os
lugares. Nesse sentido conclusivo, Certeau comenta:
A história das práticas cotidianas começa no nível do solo, com passos. Eles são numerosos, mas um número que não se constitui série. O burburinho é um enumerável de singularidades. Os jogos de passos são fabricações de espaços. Eles urdem os lugares (CERTEAU, 2014, 190)
Assim, apontamos que as errâncias, no sentindo deste lugar praticado,
ao organizarem o próprio espaço, escapam de um ordenamento
48
Anotações e amarrações [Abri l de 2014]
49
da gestão urbana que ali se incide. Nessa tessitura, desvios são
equivalentes às metáforas, como se as novas amarrações a partir
dos fios que compõem o tecido urbano configurassem equivalência
entre as operações que constituem o campo da linguagem.
Mais do que uma relação análoga, a narrativa das errâncias, por
sua vez, se apresenta como leitura de cidade que se sobrepõe
à experiência nela, relatos que organizam percursos no tecido
pelo qual o caminhar se inscreve – configurando a partir desse
cruzamento, o texto urbano.
Na tentativa de adentrar posicionamentos disparadores de in-
terferência – mesmo que sutis – diante dos fluxos que regem a
dinâmica da cidade e da vida, seguimos em frente, em direção à
segunda parte desta reflexão. Assim, em um próximo estágio da
modernidade, novos modos/novas linguagens, através de Nadja e das
deambulações dos surrealistas, serão trazidos à tona para alcançar
a beirada da intencionalidade, na iminente queda nas “narrativas
de abismo”, um cruzamento da arte e da vida surrealista. O vagar é
substituído por um fluxo mais propositivo, como as ideias em torno
do “acaso objetivo”, no enovelado de ficções tecidas no cotidiano.
50
51
II. capítulo 2: “Na cidade, eu procuro a ficção”1
O cartaz apresenta uma montagem de fotografias com o rosto dos
integrantes do grupo surrealista, em torno da pintura de Magritte,
todos de olhos fechados. A frase-enigma “Je ne vois pas la [femme] cachée dans la forêt” (1929), ou “eu não vejo a [mulher] escondida
na floresta”, presente na obra, fala do que não vê a fim de incorporar
a visão do oculto na compreensão do mundo.
O surrealismo teoriza a ideia da fusão entre o real e o imaginário,
ideia que configura a espinha dorsal das práticas do movimento. Irei
investigar a poética surrealista, na medida em que esta estabelece
“um elo secreto entre lugares e palavras” (MORAES, 2007, p.8) e
inventa a partir da matéria vida. Podemos utilizar o termo “poética
surrealista” para designar seus recursos expressivos: poética, neste
caso, enquanto ato da poesia, relacionada à regência plástica do
imaginário, aos “modos de fazer”. Na busca pela poetização do
1 Faustini (FAUSTINI, 2009, p.55 )
52
Postal encontrado dentro da publicação O MAR A PELE
Dentro da publicação O MAR A PELE, encontrei esse postal – que eu só descobri no
ano seguinte, ao folheá-lo para uma segunda leitura, no processo da pesquisa deste
ensaio. O artista Rubens Ianelli convida o galerista Thomas Cohn, “Se tiver interesse
em conhecer obras da série Cidades Perdidas”, para sua exposição. A aquarela que
ilustra o postal se chama “Inscrição” (2003) e foi apresentada na mostra em questão.
53
cotidiano, convergindo com os objetivos deste ensaio, o primeiro
Manifesto Surrealista, escrito por André Breton em 1924, elucida:
O homem põe e dispõe. Depende dele só pertencer--se por inteiro, isto é, manter em estado anárquico o bando cada vez mais medonho de seus desejos. A poesia ensina-lhe isso. Traz nela a perfeita compensação das misérias que padecemos. Venha o tempo quando ela decrete o fim do dinheiro e parta, única, o pão do céu para a terra! [...] Adeus seleções absurdas, sonhos de abismo, rivalidades, longas paciências, a evasão das estações, a ordem artificial das ideias, a rampa do perigo, tempo para tudo! Basta se Ter o trabalho de praticar a poesia. Não é a nós que compete, que já vivemos dela, o esforço de fazer prevalecer o que guardamos para nossa mais ampla inquietação? (BRETON, 1924)
As deambulações faziam parte da práxis surrealista que, diante
da radicalidade de seu lugar de vanguarda, trazia para o próprio
corpo o que seus manifestos apresentavam. Podemos diferenciá-la
da flânerie do final do séc. XIX pela intimidade que o movimento
em questão mantém com as teorias psicanalíticas. Percebemos
que o imaginário não se restringe a organizar a cidade apenas
na produção literária que a rege, assim como em Baudelaire, mas
passa a habitar o próprio cotidiano. Os signos urbanos vão sendo
desvendados como revelações do eu, numa espécie de projeção do
inconsciente na própria cidade e na maneira pela qual a apreende.
O mais simples ato surrealista consiste em ir para a rua, empunhando revolveres, e atirar ao acaso, até não poder mais, na multidão. Quem não teve, ao menos uma vez, vontade de assim acabar com o sisteminha de aviltamento e cretinização em vigor, tem seu lugar marcado nessa multidão, barriga à altura do cano da arma. A legitimação de um tal ato, a meu ver, não é de modo nenhum incompatível com a crença nesse clarão que o surrealismo busca revelar no fundo de nós. Quis somente incluir aqui o desespero humano, aquém do qual nada poderia justificar essa crença. (BRETON, 1924)
54
“O trabalho é o esforço de descobrir
reentrâncias, espaços secretos, instantes de
morte, dentro desses limites. Um modo sereno
e histérico de ativar o mar da pele e depois ficar
olhando, olhando, olhando. O mar, a presença
plena, e seus movimentos de ausência”.
Nesta publicação O MAR A PELE (1977) organizada pelo Tunga, encontrei o texto de
Ronaldo Brito que se intercalava com as fotografias feitas pelo Artur Omar dos trabalho
do artista.
Publicação O MAR A PELE [1977]
55
Enquanto a flânerie do final do séc. XIX é munida da consciência
na prática da observação crítica, onde a tomada do espaço ainda
tem como referência certa noção de realidade, os surrealistas
buscam e adentram as fissuras da cidade, rasgos que permitem
acessar facetas ocultas da capital francesa, tida como catalisadora
dos desejos do inconsciente. Podemos afirmar que existe uma
influência esotérica na deambulação surrealista ao desvendar a si
próprio nos percursos pela emblemática Paris.
Ainda vivemos sob o império da lógica, eis aí, bem entendido, onde eu queria chegar. [...] à própria experiência foram impostos limites. Ela circula num gradeado de onde é cada vez mais difícil fazê-la sair. Ela se apoia, também ela, na utilidade imediata, e é guardada pelo bom senso. A pretexto de civilização e de progresso conseguiu se banir do espírito tudo que se pode tachar, com ou sem razão, de superstição, de quimera; a proscrever todo modo de busca da verdade, não conforme ao uso comum. (BRETON, 1924 )
No intuito de reforçar a ideia de que autor e obra se constituem
em unidade, André Breton, sobre Baudelaire, comenta: “Com ele,
a coisa exprimida ainda não se distingue, quase nada, daquele
que a exprime: ela preexiste, isto é o que importa observar, ao
modo de sua expressão.” (BRETON, 1979, p. 10). Os surrealistas,
influenciados pela poesia baudelairiana– esta enquanto personagem
de si mesma –, irão diluir a arte na vida e a vida na arte. Segundo
Claúdio Willer (1940), poeta e ensaísta, em seu texto “Poética
surrealista: a arte e/ou vida?”:
A criação é, então, algo pertencente à ordem ou à dimensão do sujeito, ainda antes de constituir-se em obra, exterioridade autônoma. Por isso, Breton não separa um texto de quem o escreveu, uma obra de seu criador. Vê em Baudelaire algo fundamental para a compreensão do Surrealismo: a busca da unidade entre vida e arte, autor e obra; a fusão entre sujeito e objeto. (WILLER, 2001)
A ausência de fronteiras entre a arte e vida se revela no curioso
evento intitulado La nuit du tournesol. Breton afirma que o poema
56
57
“Tournesol”, escrito por ele em 1923, antecipa de forma profética o
encontro que ocorreu em 1934, onze anos depois portanto, entre
ele e Jacqueline Lamba (mulher com quem viria a se casar alguns
meses depois). No relato de tal acontecimento, publicado no livro
Amor Louco (1937), ele demonstra o tom premonitório da poesia,
identificando que tanto os lugares da cidade como situações e
sentimentos mencionados nesta são vividos no encontro. Inclusive,
afirma que “o poema, tido por mim durante muito tempo como
muito insatisfatório, deixou de ser, como outros tantos, imediata-
mente destruído” (BRETON, 1971, p. 72), reforçando a ideia de
presságio atribuída ao mesmo. Nos termos do autor:
(...) parece-me viável estabelecer um confronto entre a aventura puramente imaginária que tem por quadro o supracitado poema e a tardia, ainda que, pelo seu rigor, impressionante consecução dessa aventura ao nível do quotidiano. Escusado, de fato, será dizer que eu, ao escrever o poema “Girassol”, não me socorria de nenhuma anterior representação que pudesse explicar esse caminho tão especial por mim seguido (BRETON, 1971, p. 77).
O poema e a perambulação têm o mesmo ponto de partida, “a
viajante que atravessou os Halles ao cair do Verão” (BRETON,
1971, p. 77, grifo meu), e durante o relato feito por Breton, não
só indica os cruzamentos precisos e concretos como interpreta
simbolicamente o que há nas linhas e entrelinhas em comum entre
a poesia e o encontro. No livro, ele injeta fotografias na costura
dos significados e localização de sensações, como se percorresse
novamente de Monmartre ao Quartier Latin.
Assim, Breton cruzou a cidade e a literatura e nos apontou para o
espaço que também contém tempo2. O que nos interessa observar
desse episódio diz respeito à cidade, como um campo da regência
fenomenológica que assume o onírico como umas das forças
agenciadoras da vida e do encontro. O espaço da cidade passa a
ser produzido também pela própria apreensão do autor, onde as
2 Essa ideia está contida no l ivro de Oliver Mogin A condição urbana - a cidade na era da globalização, ao pensar o espaço da cidade como um tecido narrativo costurado por “tempos e espaços acumulados, ordens feitas e desfeitas” (MOGIN, 2014, p. 57). Para o autor, “A cidade, dado que ela contém tempo, al imenta-se tanto da continuidade quanto da descontinuidade. Precisamente como a narrativa” (MOGIN, 2014, p. 58).
58
Depois que o semáforo abriu, resolvi segui-la mais um
quarteirão até que ela entrou em um prédio residencial.
Independentemente do desfecho, sem grandes
revelações, o sentimento era de que poderia segui-la
por muito mais tempo, que me deixaria levar pelos seus
caminhos em uma holística experiência na cidade.
Cruzamento
59
várias camadas da experiência se justapõem: do percurso feito em
poema, do percurso feito pela caminhada e do percurso feito pelo
relato, passamos a pensar a realidade não só pelo que é dado, mas
também por aquilo que está oculto.
***
As ideias em torno do estado do “acaso objetivo” consistem em
uma postura disponível na cidade, apta a ser captada por um fluxo
da vida que propicia a concordância dos fenômenos, diante da
sincronicidade daquilo que não se espera nem se controla.
É importante observar o quanto a razão, tida como exclusiva força
ordenadora da vida, é ofuscada pela regência misteriosa que dá
conta do inusitado e inesperado para os surrealistas. Estimular
esse estado de permissão, que prevê deixar-se levar por forças
ocultas, não remete a uma atitude passiva; ao contrário, implica um
posicionamento ativo do sujeito, e, portanto, atribui objetividade
ao acaso, paradoxalmente.
“A rua é o lugar por excelência para manifestação desse acaso e
a espera é condição fertilizadora do encontro” (GARCIA, 2000,
p.299). Nesse sentido, a prática de deambular atribui ao espaço
compartilhado da cidade a potência no agenciamento dos fenô-
menos, na regência dos fluxos, na coordenação dos encontros e
dos segundos provocadores dos desencontros.
A rua, que eu acreditava capaz de entregar a minha vida seus surpreendentes desvios, a rua, com suas inquietações e seus olhares, era meu verdadeiro ele-mento: lá eu recebia, como em nenhum outro lugar, o vento do eventual. (BRETON, 1924)
A ideia do enigma gira em torno da experiência de deambulação
na cidade labirinto, característica da importante obra literária Nadja,
escrita por Breton em 1928. Em primeiro pessoa, a narrativa se
constrói em torno da perseguição de uma mulher, Nadja, que o
autor conheceu nas ruas de Paris e que torna-se a força que orienta
suas caminhadas na cidade no desenrolar da obra.
60
A TATUAGEM É O OLHO DE HÓRUS, TAMBÉM CONHECIDO COMO UDYAT, É UM SÍMBOLO
QUE SIGNIFICA PODER E PROTEÇÃO. O OLHO DE HÓRUS ERA UM DOS AMULETOS MAIS
IMPORTANTES NO EGITO ANTIGO, E ERAM USADOS COMO REPRESENTAÇÃO DE FORÇA,
VIGOR, SEGURANÇA E SAÚDE. ATUALMENTE, O OLHO DE HÓRUS TAMBÉM É UTILIZADO COMO
SÍMBOLO CONTRA A INVEJA E O MAU-OLHADO, ALÉM DE PROTEÇÃO, E POR ISSO SUA IMAGEM
É BASTANTE USADA PARA SE FAZER TATUAGENS, EM DIVERSAS PARTES DO CORPO. É TAMBÉM
BASTANTE COMUM VER O OLHO DE HÓRUS NA FORMA DE PINGENTES PARA COLARES1.
1 Ver em: < http:/ /pt.wikipedia.org/wiki/Olho_de_H%C3%B3rus> Acesso em: 2 mai. 2014
61
Para além da mulher em si, trata-se da cidade que transborda
o imaginário do autor, fazendo da busca pelo outro sua forma
de perceber o mundo, como se na procura por Nadja, ele en-
contrasse a cidade, mesmo que se desencontrasse com ela.
Na tensão que habita entre o narrador (aquele que procura) e
a mulher (aquela que é procurada) se desdobra a poética de
Breton, desvendando a sua Paris, sob a força do encontro que
incide sobre suas andanças na urbe.
O autor anuncia, nas primeiras páginas, que pretende relatar
episódios da sua vida marcados pela curiosa regência dos acasos,
disparados desordenadamente, fatos que carregam consigo algo
de indecifrável, “com valor intrínseco pouco verificável” (BRETON,
2007, p.27), mas que o introduz “num mundo como que proi-
bido, aquele das aproximações repentinas, das petrificantes
coincidências” (Ibid.).
O livro, assim como sua relação com a cidade, se dá através da
cadência dos encontros, tanto pelos encontros marcados ou for-
tuitos com Nadja – centrais nesta narrativa –, como também em
suas lembranças de encontros tidos outrora, como aquele entre
ele, Aragon e Derain (Ibid., p. 75), por exemplo, ou até mesmo
quando revela os desejos de encontrar “à noite, num bosque, uma
mulher bela e nua” (Ibid., p. 44). Ele se diz “encontrável” nas ruas
de Paris, por onde está sempre no “indo e vindo, lá pelo fim da
tarde” (Ibid., p. 40) em seus sucessivos encontros com a própria a
cidade. Essa cadeia de encontros geram imagens que apresentam
os vestígios de uma realidade imediata, conectando os objetos
cotidianos com o mundo interior.
De tantos encontros que Desnos, de olhos fechados, me marcou para mais tarde, com ele ou com outra pessoa, não há nenhum ao qual eu tivesse coragem de faltar, nem um só, nos lugares e horas mais inverossímeis, e em que eu não estivesse certo de encontrar quem ele me disse.( Ibid., p. 39)
No “Antes de tudo” – prefácio escrito pelo autor – ele indica que o
tom adotado para a narrativa é calcado na observação (Ibid., p. 20)
onde a “tendência é registrar tudo o que o exame e o interrogatório
podem fornecer, sem a mínima preocupação com o estilo” (Ibid.).
62
No dia vinte de março de dois mil e quatorze, esperando para atravessar
a Rua Dona Mariana, no cruzamento entre a Voluntários da Pátria
e a São Clemente, ao esperar para atravessá-la, encontrei a mesma
astróloga que no dia anterior, na sala de espera da acupuntura, falava
sobre o ano novo astrológico que estava para começar. Não havia visto
seu rosto, mas a reconheci pelas tatuagens em ambos os cotovelos,
que estavam na altura dos meus olhos quando profetizava sobre o que
estava por vir, de frente para recepção e de costas para mim.
Vê-la novamente me fez ver como o ordenamento dos acasos era
semelhante a um jogo, como se aquela coincidência carregasse consigo
um mistério indecifrável, mesmo que um mistério banal, pequeno, sem
importância. Preencher de ficções, costurar os sinais, envolver com
possíveis sentidos. De costas, pude observar novamente as tatuagens, dois
olhos de hórus, um em cada cotovelo, os únicos olhos que pude olhar.
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A escrita acompanha o ritmo do olhar que apreende ao mesmo
tempo em que digere aquilo que está diante deles, atribuindo à
linguagem a mediação entre o interior e o exterior. Os surrealistas
denominaram esse método de “escrita automática”.
Durante alguns dias de outubro, a cidade que ele percorre em
palavras e imagens (o livro é recheado de fotografias, como veremos
adiante) é apresentada em estado errante, no prazer de perder-se
voluntariamente, sem rumo, em busca daquilo que está na iminência
de aparecer e desaparecer – assim como em Nadja. A descrição
não é a mesma da flânerie de Baudelaire; disseca o cotidiano, no
estranhamento daquilo que é banal, no estágio que sucede a saída
de si: o encontro com o outro.
O primeiro encontro com Nadja acontece após Breton atravessar
um cruzamento, e de repente, se deparar com os olhos de uma
moça – que também o olham, ainda distantes, caminhando em
sua direção, contra o fluxo da multidão. De maneira detalhada, o
autor descreve exatamente o que fazia e observava no momento
que precede o encontro, conforme trecho abaixo:
No dia 4 de outubro*, ao fim de uma dessas tardes inteiramente desocupadas e sombrias, das que conheço o segredo de como passar, estava eu na rua Lafayette (...) continuei meu caminho sem rumo certo em direção à Opéra. Observava, sem querer, as expressões, as roupas, a maneira de andar. Os escritórios, as lojas iam se esvaziando, as portas corrediças se fechavam, as pessoas na rua se despediam com apertos de mão, e ainda assim começava a ter mais gente ali. (Ibid., p. 63)
Os olhos de Nadja se aproximam frente à frente com os seus,
espelhos que seus olhos atravessam. “O que poderia haver de
tão extraordinário naqueles olhos? O que se reflete ali ao mesmo
tempo de obscuramente miserável e luminosamente ativo?” (Ibid.,
p. 65). Se, como dizem por aí, os olhos são a janela da alma, ou
seja, através deles conseguimos acessá-la, podemos supor que
Nadja direcionava o poeta para sua própria interioridade.
Podemos observar o quanto Nadja contribui para a investigação
tecida neste ensaio, ao imbricar o encontro e a cidade, sendo
o segundo condição para o primeiro (único espaço em comum
64
Olho de Hórus
65
entre narrador e personagem na obra em questão) e o primeiro,
por sua vez, configura-se como fenômeno que reorganiza a
relação para com o segundo. Assim, atravessar e caminhar pela
calçada que habitualmente não caminha, possibilita que eles se
cruzem no dia 6 de outubro, no terceiro encontro (Ibid., p. 73),
por exemplo. A rua, para Nadja, “é o único campo válido de
experiências” (Ibid., p. 105).
A objetividade e a subjetividade caminham juntas neste livro, e este
recorre a ambas para expressar seu campo perceptivo. Ele descreve
os lugares que passam e as direções que seguem, localizando os
nomes das ruas, das praças, dos monumentos em seus percursos,
sempre incorporando outras dimensões da experiência nesta carto-
grafia surrealista. Os seus olhos e os de Nadja mergulham no Sena
(Ibid., p. 82), os pensamentos são sinestesicamente relacionados
ao chafariz dos jardins das Tulheiras (Ibid.) e outros vários exemplos
ilustram essa fusão entre a linguagem e a experiência.
feche os olhos e diga uma coisa qualquer. Não importa, um numero, um nome. Assim (ela fecha os olhos): dois, duas, duas o quê? Duas mulheres. Como estão vestidas? De preto. Onde estão? Num parque... E depois, o que fazem? Vamos lá, é tão fácil, porque você não quer brincar? Pois bem, é assim que falo comigo mesmo quando estou sozinha, que conto para mim mesma
66
67
todo tipo de história. E não só histórias de mentira: é exatamente desse jeito que eu vivo. (Ibid., p. 97)
A proposta deste “jogo”, com olhos fechados, enunciada por Nadja
em um dos encontros com Breton, ilustra o quanto ela representa
a ficção que se enreda na cidade, questionando os parâmetros
que designam o real, ao negar que sejam mentiras as histórias que
inventa (Ibid., p. 102). Não se ater à necessidade de se designar
o que é ou não verdadeiro – assim como neste ensaio – faz desta
personagem um estímulo à aventura, “e se descermos em Vésinet?
Ela sugere um passeio na floresta. Porque não?” (Ibid., p. 99)
Quem éramos nós diante da realidade, esta realidade que agora vejo deitada aos pés de Nadja, como um cão vadio? Em que latitude nós poderíamos estar bem, assim entregues ao furor dos símbolos, presas do demônio da analogia, nós que nos víamos como objetos de instâncias últimas, de atenções singulares, especiais? Vem daí o fato de que, projetados juntos, de uma vez por todas, tão longe da terra, nos curtos intervalos que o nosso maravilhoso estupor permitia, termos podido trocar algumas impressões incrivelmente harmônicas por cima dos escombros fumegantes do velho pensamento e da vida sempiterna? Do primeiro ao último dia tomei Nadja por um gênio livre, algo como um desses espíritos do ar que certas práticas de magia permitem fixar momentaneamente, mas jamais submeter. (Ibid., p. 102)
A efemeridade, a impermanência e a liberdade conferidas à pas-
sagem dela pela vida e obra de Breton, identificada pela própria
personagem em determinado momento da narrativa, quando sugerir
ao autor: “André? André?... Você vai escrever um romance sobre
mim” (Ibid., p. 95), justificando que o relato era o único vestígio
que poderia haver da relação deles: “Veja só: tudo se esvai, tudo
desaparece. É preciso que reste algo de nós...” (Ibid.). Parece
inevitável e natural o seu desaparecimento, “tragada pelo turbilhão
da vida que prosseguia lá fora” (Ibid., p. 107).
para mudar de assunto, pergunto onde ela vai jantar. E de repente, aquela leveza que só vi nela, aquela liberdade, para ser mais preciso: “onde?” (apontando
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Encontrei com Ralph Gehre ao achar essa “colagem” em uma das idas
à feira da Praça XV, perdido entre receitas de bolo, documentos antigos,
folhas soltas de livros, negativos fotográficos. Ao abri-lo havia uma
reprodução de duas cartas de baralho, com a inscrição “Aqui” e “Antes”,
uma fotografia de um jovem caminhando e uma nota de um banco
polonês. No verso, o telefone e o endereço de Ralph - naquele momento, já
o chamava assim, “Ralph”, como se o conhecesse.
Não liguei para ele, mas fui em busca de saber quem ele era, o que havia
feito, o porque do dinheiro, do baralho, da imagem e me deparei com um
texto seu intitulado “Situações Poéticas”1, que diz que:
1 Ver em: < http://www.ralphgehre.com/2014/07/textos-do-artista--situacoes-poeticas.html> Acesso em: 15 nov. 2014
Encontrei com Ralph Gehre ao achar essa “colagem” em uma das idas à feira da Praça
XV, perdido entre receitas de bolo, documentos antigos, folhas soltas de livros, negativos
fotográficos. Ao abri-lo havia uma reprodução de duas cartas de baralho, com a inscrição “Aqui”
e “Antes”, uma fotografia de um jovem caminhando e uma nota de um banco polonês. No
verso, o telefone e o endereço de Ralph - naquele momento, já o chamava assim, “Ralph”, como
se o conhecesse.
Não liguei para ele, mas fui em busca de saber quem ele era, o que havia feito, o porque
do dinheiro, do baralho, da imagem e me deparei com um texto seu intitulado “Situações
Poéticas”1, que diz que:
1 Ver em: < http://www.ralphgehre.com/2014/07/textos-do-artista-situacoes-poeticas.html> Acesso em: 15 nov. 2014
“Poéticas como instrumentos de relato, de transmissão, de memória,
de construção de uma realidade e de adiamento dessa realidade.
Como possibilidade de transporte.”
Ralph Gehre
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o dedo:) ali, ou lá (os dois restaurantes mais próximos), onde eu estiver. É sempre assim”. (Ibid., p. 70)
A errância bretoniana acaba por captar e costurar os vestígios de
significâncias, objetos e fatos anônimos achados em seus percursos,
atravessando a cidade como bonecas russas, analogia que nos
remete, em ambas, à infinidade das sucessivas camadas reveladas:
[...] bem recentemente, indo num domingo, com um amigo, ao ‘mercado de pulgas’ de Saint-Ouen (sempre vou lá à procura desses objetos que não encontram em nenhuma outra parte, fora de moda, fragmentados, inúteis, quase incompreensíveis, perversos, enfim, no sentido que entendo e amo [...] (Ibid., p. 56)
Neste livro, fotografias de pessoas, lugares, objetos, se intercalam
na narrativa, assim como eses achados do mercado de pulgas
parisiense – que às vezes dizem algo, às vezes não dizem –, dão o
tempo necessário para as palavras “tomarem” fôlego e continua-
rem a atravessar. Em nenhum momento estas se reduzem a mera
ilustração do discurso, mas fazem contraponto, jogam entre si, são
como desdobramentos daquilo que é dito.
No sentindo dos caminhos trilhados nesta reflexão, a obra em
questão reforça o quanto os encontros e desencontros, em simbiose
com a capital francesa, permite que a experiência na cidade seja
desmantelada, desocultada. Atravessar este livro é perceber o
relato e vivência enredados a tal ponto que o leitor não distingue
o que vem antes, o que vem depois. A percepção da cidade é
apresentada assim, nas sobreposições perceptivas, sob poética do
procurar-se fora de si, em Nadja, no outro, no espaço da cidade.
“Quem vem lá? É você, Nadja? É verdade que o além, todo o além
esteja nesta vida? Nada escuto. Quem vem lá? Serei apenas eu?
Serei eu mesmo?” (Ibid., p. 134). Nadja conduz Breton a um lugar,
dentro dele mesmo, onde habita a liberdade e a paixão, ela se
faz caminho no encontro consigo, é a projeção na cidade da sua
“alma errante”.
O desejo, presente em Nadja, aparece na cidade e na memória de
Calvino, seu nome desta vez é Isidora, a “cidade de seus sonhos”
(CALVINO, 1990, p. 12). A distância entre a cidade sonhada e a
70
Colagem do artista Ralph Gehre
71
cidade vivida é o tempo que há entre estas, pois ambas coexistem
naquele que sonha, desde os longos “campos selváticos”. Nesse
relato, o desejo permanece entre ele e a cidade, mesmo que na
forma de recordações, “os velhos que veem passar a juventude”
continuam se alimentando dos sonhos para vivê-los no presente
desta cidade. Segundo o autor,
O homem que cavalga longamente por terrenos selváticos sente o desejo de uma cidade. Finalmente chega a Isidora, cidade onde os prédios tem escadas de caracol incrustadas de búzios marinhos, onde se fabricam artísticos óculos e violinos, onde quando o forasteiro está incerto entre duas mulheres encontra sempre uma terceira, onde as lutas de galo degeneram em brigas sangrentas entre os apostadores. Era em todas estas coisas que ele pensava quando desejava uma cidade. Assim Isidora é a cidade de seus sonhos: com uma diferença. A cidade sonhada continha-o jovem; a Isidora, chega em idade avançada. Na praça, há o paredão dos velhos que vêem passar a juventude; ele está sentado ao lado deles. Os desejos são já recordações. (Ibid., p. 12)
No intuito de atravessar o oceano e chegar em “Terras Brasilis”3,
não podemos deixar de fazer referência ao movimento moderno
no Brasil, se seguimos nesse sentido – do centro para periferia –
fluxo que os artistas modernistas também percorreram e assumem
enquanto fundamental no processo de contaminação com as
vanguardas europeias do começo do séc. XX.
Em 1924, durante a Semana Santa, formou-se uma caravana com
Mário de Andrade (1893-1945), Oswald de Andrade (1890-1954),
Tarsila do Amaral (1886-1973) e o poeta franco-suíço Blaise Cendrars
(1887-1961), entre outros, para uma excursão pelas cidades
históricas de Minas Gerais.
O que nos interessa observar é como se dava essa construção narrativa
sobre a identidade nacional, um discurso moderno tecido no estado
errante, numa espécie de apresentação de si. O olhar estrangeiro
sobre o Brasil exótico fez os modernos se voltarem ainda mais para
3 Apontar compatibil idade plena do que vimos acontecer entre o Brasi l e os países europeus passa a ser uma tarefa delicada, porém vale apresentar as ressonâncias geradas pelo o que insurgia no eixo enquanto norte para “acertar o relógio” brasi leiro.
72
Estudo para manchas [Dezembro de 2013]
73
o seu interior, em uma viagem que aproximou, inclusive, outros
artistas ao movimento. Compreende-se este como um marco da
nacionalização do modernismo, após a Semana de Arte de 1922.
O estranhamento do comum no processo de afirmação identificava
elementos e práticas que, uma vez assimiladas, passavam a fazer
parte de representação moderna de Brasil. Refazer os caminhos que
os bandeirantes haviam passado, atentos às feições de um espaço
até então desconhecido, ressonou nos viajantes e em sua produção
artística. O poeta europeu, entusiasmado com a experiência de
descolamento de tempo e espaço, escreveu:
pois viajar, mudar de país e de cidades, pegar a estrada de ferro, o navio e o avião, transpor as longitudes, saltar as latitudes, mudar de lugar é menos se deslocar no espaço que recuar no tempo e se lançar com gozo, como num banho vivificante, na vida de ontem...
(CENDRARS, 1952, p. 48).
O ato de desbravar novos territórios possibilitou a abertura de novas
rotas que se direcionavam para si, na dialética entre o interior e o
exterior, o que acumulou significamente para o que iam expressar
a partir dali.
Os poemas de Oswald, os desenhos de Tarsila e as crônicas de
Mário foram produzidos sobre e sob os caminhos que passaram,
caracterizam os vestígios dessas andanças, relatos de suas errâncias
que fundem na experiência o olhar moderno.
74
75
A imagem acima apresenta a Igreja de Nossa Senhora do Ó, em
Sabará, desenho feito por Tarsila do Amaral. A artista produziu
outros desenhos como este, optando por uma representação
sintética das paisagens que encontrava, apresentando apenas os
elementos marcantes, sem cores ou volumes e com o traço solto
de quem está de passagem.
Ué! Música na estação... Que será? Vai em-barcar. Embarcou. Estas maçãs serão daqui? O Godofredo, fazendeiríssimo, se irrita: “Isto não é de Juiz de Fora ou Belo Horizonte. Então a gente desse lado é capaz de plantar mais do que come?” Modorra. Pasmaceira. Que pobreza! O trem engas-ga. Dá um arranco todos sobem. Vai. Que negros mais diversos! Cabindas, monjolos, minas... Da Beleza à hediondez. Espero o “Quelle merveille.”
Onde estará Cendrars? (ANDRADE, p. 158, 1993)
A antropofagia, conceito-emblema do movimento modernista, nessas
expedições se manifestou na busca pela devoração do outro, dos
outros, dos vários brasis que cabiam em um único país. Mas, vale
ressaltar, que assim como acontece na Europa, a arte moderna no
Brasil também ocorre diante de desajustes e contradições inerentes
à modernização.
A Internacional Situacionista ¬– grupo de artistas, pensadores e
ativistas –, ao longo da sua produção, elaborou e se posicionou
criticamente sobre questões do cotidiano, das cidades, da política,
da economia, entendendo a arte a partir de uma perspectiva integral,
que não deveria se ater às questões do seu próprio sistema, como
fazia a arte moderna.
Através do livro Apologia da Deriva (2003), que reúne uma coletânea
dos escritos do grupo, apresentarei o pensamento situacionista e
sua ênfase no ambiente urbano, com destaque para propostas
de operações na cidade que revertem a alienação e apatia da
sociedade. “A arte integral, de que tanto se falou, só se pode
realizar no âmbito do urbanismo” (DEBORD, 2003, p.43). Através
da construção de situações, para o movimento em questão, poderia
se dar a transformação na vida das pessoas, revoluções diárias,
entendendo o meio urbano como terreno de ação, no sentido de
novas apreensões do espaço.
76
Cruzei com as Cidades Invisíveis, em dois momentos diferentes, ambos em Salvador,
minha cidade natal. Primeiramente, em novembro de dois mil e cinco, quando o
grupo italiano Potlach preencheu o campus de Belas Artes da Universidade Federal da
Bahia com cidades imaginárias, muitas, simultâneas, em coexistência, manifestadas
através de diferentes experiências artísticas autônomas. O espectador-caminhante
tecia as narrativas entre cada cidade, através dos percursos estabelecidos: diante às
infinitas possibilidades, os passos moldavam uma construção semântica. O grupo
itinerante atravessou Salvador e outras muitas cidades pelo mundo, recolhendo
intervenções cênicas, performances musicais, instalações, com intuito de evocar a
memória e a identidade do lugar por onde passavam, experiências que de alguma
maneira sintetizavam, metaforizavam, catalisavam alguma feição da face da cidade,
buscando provocar, naqueles que passavam, um sentimento de pertencimento. Irene,
Nadja, Nena, Silvya, Zoé e Isidora: neste projeto, eu fui uma das cidades e também
uma mulher, em performance criada a partir da imersão na obra Dorotéia (1949) de
Nelson Rodrigues.
Klagenfurt (Áustria), Malta, Rio de Janeiro (Brasil), Agropoli (Itália), Unterach (Áustria),
Maranola (Itália), Castellabate (Itália), Liverpool (Inglaterra), Stocolmo (Suécia), Roma
(Itália), Newark (USA), Cidade do México (México), Londrina (Brasil), Bolonha (Itália),
Farfa (RI- Itália), Holsterbro (Dinamarca), Casarano (Itália), Parco dello Stalvio (Trento-
Itália), Abbiategrasso (MI-Itália), Cosenza (Itália), Casarano (Itália), Fontenay- Sous-
Bois (França), Gallipoli (Itália), Salvador (Brasil) Cassinetta (Itália), Mantova (Itália),
Montalbano Elicona (SI– Itália), Otranto (LE– Itália), Cefalù (SI– Itália), Erice (SI– Itália),
Modica (SI– Itália), Grotte (SI–Itália), Tirana (Albânia), Noto (SI– Itália), Formia (Lt-
Itália), Mazatlan (México), Karlsrhue (Áustria), Palermo (Itália).
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A IS foi fundada por Guy-Ernest Debord (1931-1994) partindo
do seu envolvimento, desde o começo da década de 1950, com
a Internacional Letrista, sob influência, incialmente, do dadaísmo
e surrealismo. Nesse período, entre 1952 e 1957, que precede o
surgimento do grupo em questão, foram produzidas publicações de
suma importância para o desenvolvimento da corrente ideológica
que viria a reger os situacionistas. Na Potlach nº 15 (título do infor-
mativo da Internacional Letrista), Asger Jorn (1914-1973) escreveu:
Em função do que você procura, escolha uma região, uma cidade de razoável densidade demográfica, uma rua com certa animação. Construa uma casa. Arrume a mobília. Capriche na decoração e em tudo que a completa. Escolha a estação e a hora. Reúna as pessoas mais aptas, os discos e a bebida convenientes. A iluminação e a conversa devem ser apropriadas, assim como o que está em torno ou suas recordações. Se não houver falhas no que você preparou, o resultado será satisfatório (JORN, 2003, p. 16)
O urbanismo unitário consistia na crítica ao urbanismo tradicional,
com ênfase na superação do funcionalismo moderno que se en-
raizava na arquitetura da cidade. É interessante enfatizar que não
se propunha um “novo” urbanismo, mas uma crítica ao vigente,
pela qual se levaria a pensar em praticar novas territorialidades. “O
urbanismo unitário não está idealmente separado do atual terreno
das cidades. É formado a partir da experiência deste terreno e a
partir das construções existentes” (IS, 2003, p.100).
O primeiro documento produzido pelo grupo, intitulado Relatório sobre a construção de situações e sobre as condições de organização e de ação da tendência situacionista internacional (1958), parte
da ideia de que é necessário mudar o mundo. “Queremos a mais
libertadora mudança da sociedade e da vida que estamos aprisio-
nados. Sabemos que essa mudança é possível por meio de ações
adequadas” (Ibid., p.43). O conteúdo da publicação se estende em
uma crítica profunda e radical ao cenário mundial, em oposição
ao sistema capitalista e a dominação de classes, ressonando, para
eles, em uma ampla crise da cultura moderna. (Ibid., p. 49)
Não irei me aprofundar nas instâncias ideológicas, mas em suas
propostas e seus posicionamentos práticos. “Nossa ideia central
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79
é a construção de situações, isto é, a construção de ambiências
momentâneas da vida, e sua transformação em uma qualidade
passional superior” (Ibid., p.21). Para isso, seria preciso intervir
efetivamente na relação do homem com o espaço em que vive, a
cidade, através do urbanismo unitário que não instaura modelos,
mas procedimentos. “O desenvolvimento espacial deve levar em
conta as realidades afetivas” (Ibid., p. 55).
A metodologia e práticas criadas, psicogeografia e derivas, respec-
tivamente, são mediações com a cidade desenvolvidas a partir da
crítica feroz ao urbanismo tradicional. A definição de psicogeografia
consiste “no estudo dos efeitos exatos do meio geográfico, cons-
cientemente planejado ou não, que agem diretamente sobre o
comportamento afetivo dos indivíduos” (Ibid., p. 65). Desse modo,
o conceito se debruça sobre o território através da sua dimensão
subjetiva, atrelando as sensações detectadas às caminhadas sem
rumo pela cidade – as derivas urbanas. A participação popular é
condição para a efetividade das ideias cunhadas pelo grupo, avessos
à frieza moderna da arquitetura funcional, partindo da interação
lúdica com o espaço da cidade como posicionamento político.
Vale destacar o lugar do jogo não-competitivo na linguagem situ-
acionista que convoca o outro, encontra-se com ele e estabelece
dinâmicas, vínculos, acordos, para assim conviverem no ambiente
comum. Nesse sentido, o jogo é entendido pelo grupo como a
“criação comum das ambiências lúdicas escolhidas” (Ibid., p. 60) e
tem a importante função de articular o individual com o coletivo,
estimulando um posicionamento ativo, criativo e construtivo para
produção do espaço compartilhado.
80
“O cidadão e o artista são as mesmas pessoas
e as representações teatrais se transformam em
acontecimentos públicos.”1
Amir Haddad
1 Ver: http:/ /www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-31732001000100011&script=sci_arttext. Acesso em:9 de dezembro de 2014
“O cidadão e o artista são as mesmas pessoas e as representações teatrais se transformam em
acontecimentos públicos.”1
Amir Haddad
1 Ver: <http:/ /www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-31732001000100011&script=sci_arttext. Acesso em: 9 dez. 2014
O encontro com Amir Haddad aconteceu em dezembro de dois mil e doze, ao fazer parte das oficinas
ministradas por ele e pelo grupo, na sede da companhia, em frente aos arcos da Lapa, no centro
do Rio de Janeiro. A experiência de viver aquelas ruas, à luz do dia, da Joaquim Silva à Cinelândia,
em cortejo, me fez aproximar o corpo da cidade do meu próprio corpo. Como se o vestir-se se
equiparasse ao despir-se, acrescentar ornamentos e fantasias, ao invés de criar distâncias ou ilusões,
me faziam sentir a pele da cidade, me faziam perceber e ser percebida. Abrir-se para um contato
direto - e contágio - com aqueles que passavam para ir trabalhar, com os moradores de rua, com
os ambulantes, com os estrangeiros. O teatro que sempre se fez em palco italiano, se fazia ali, de
verdade - pois teatro jamais seria para Amir - e para mim - sinônimo de mentira. O teatro se fazia
através da relação entre o eu, o outro e o espaço - apenas pelo ato de se relacionar - em primeira
instância consigo e em seguida com o outro, no espaço que nos envolvia, onde se brotava histórias,
ficções, dramaticidade, ou seja, potência teatral. Ou pelo menos, foi isso o que eu entendi daquilo tudo.
81
Diante da plural abordagem situacionista, para convergir com a
reflexão cunhada neste ensaio, é preciso destacar a potencialização
do espaço público para o encontro com o outro. No texto “Outra
cidade para outra vida” (1958), a IS declara que o conceito de
urbanismo é, portanto, social, opondo-se ao isolamento dos arranha-
-céus que reduzem o relacionamento direto e a ação comum dos
habitantes (Ibid., p. 115). Conforme trecho reproduzido abaixo:
Para que exista uma relação estreita entre ambiente e comportamento, a aglomeração é indispensável. Quem pensa que a rapidez de nossos deslocamentos e as possibilidades de telecomunicação vão dissolver a vida em comum das aglomerações conhece mal as verdadeiras necessidades humanas (Ibid., p. 114).
Em oposição à metrópole burguesa que gira em torno das relações
de produção e privilégios da classe dominante, onde o trânsito dos
carros e o conforto residencial são imperativos, os situacionistas
apresentam a “cidade coberta” (Ibid., p. 115). A construção espacial,
para essa proposta, se daria através da produção de níveis que
garantiriam que o solo fosse destinado ao uso coletivo, amplo e
vasto, para ser utilizado a partir das demandas comuns, livre para
o trânsito e encontro de pessoas (Ibid., p. 116). Dessa forma, as
habitações, as avenidas, os locais de consumo e de lazer seriam
suspensos ou subterrâneos, conectados entre si, possibilitando a
criação de ambiências diversas (Ibid., p. 117).
Independente da viabilidade deste projeto, o que fica evidente é
o quanto o situacionismo horizontaliza a relação com a cidade,
olha olho no olho – como os bons jogadores – e elenca demandas,
apontamentos, no sentido da subversão ao adotar posições avessas
à ordem. Não entende a cidade como algo estático, mas, ao con-
trário, prevê o movimento e as transformações diárias, junto com
as transformações daquele que habita. A produção teórica deste
grupo foi ampla e profunda, sendo recorrentemente evocada na
crítica às cidades contemporâneas.
***
82
O encontro
83
Neste capítulo foi possível observar que as três experiências abor-
dadas evidenciam o outro como o vértice que faltava no triangular
entendimento sobre a relação com o espaço, inicialmente abordado
neste ensaio. Atravessar os surrealistas, os modernistas e os situ-
acionistas nos faz perceber que separar o eu, o outro e a cidade,
de forma hermética e autônoma, não dá conta da potência que
existe quando há o encontro entre estes.
Nesse sentido, os encontros relatados desorganizaram o pensamento
cartesiano e racional, demonstrando que na vida podem habitar os
sonhos, como vimos nos surrealistas, que o eu é também formado
pelo outro, como vimos na construção do olhar modernista, e
que o espaço de troca e contato carrega consigo potência criativa,
como vimos no universo lúdico dos situacionistas. O encontro,
nesta abordagem, é o fenômeno que reúne o eu, o outro e a
cidade, pressupõe movimento e fluidez ao possibilitar múltiplas
configurações e posicionamentos, provoca contágio e contaminação
entre as partes – prevê, inclusive, o desencontro.
Seguimos em frente: a próxima parada é o encontro. Na verdade,
trata-se de um retorno, pois foi este o ponto que irradiou as
reflexões tecidas até aqui. As direções que iremos tomar reiteram
os elementos vistos nas experiências errantes apresentadas na
segunda parte deste ensaio: ficção, poesia, liberdade e paixão irão
permear os caminhos a serem percorridos. Portanto, para concluir,
saltamos no tempo e recorremos às palavras enfáticas e insurgentes
do poeta Waly Salomão (1943-2003): “chega desse papo furado
de que o sonho acabou! A vida é sonho”.
84
85
epílogo
Penso que a leitura deste ensaio pode ter gerado algumas perguntas:
para alguns, “quem é Inácio?”; para outros, “onde está Inácio?”.
Muitos devem ainda se perguntar: “porque Inácio?” Na tentativa de
atravessar esses questionamentos, sem necessariamente responder
a eles, irei apresentar os caminhos tecidos até aqui: o que esteve
entre Calvino e a Bahia, entre a vida e o sonho, entre os encontros
relatados nesta monografia.
Partimos de Inácio, pois foi ao perdê-lo na multidão do dia 22 de
abril de 2013, na ocasião que seria nosso segundo encontro, que
a proposição começou a ser desenvolvida.
Ao me deparar com a multidão, vista de cima da Pedra do Sal,
no centro da cidade do Rio de Janeiro, a condição de anonimato
incidiu sobre nós: entre eu e Inácio não havia qualquer fio que nos
conectasse, que permitisse que um ou outro se destacasse da massa
que nos envolvia. Assim como a passante de Baudelaire, Inácio se
diluiu no corpo da cidade, se fundiu a ela, disparando em mim um
estado poético que, ao longo de quase dois anos, vem regendo o
procurar-te n(a) cidade. Posso dizer que desencontrá-lo reforçou
ainda mais a potência dos encontros, como um nó na tessitura da
vida, evidenciando a enigmática e misteriosa coordenação dos fluxos
e esbarrões do espaço comum, remetendo assim às amarrações
que me fizeram estar ali.
Demarcar essa experiência e reproduzi-la em forma de narrativa fez
o relato operar sobre ele mesmo. Ao contar e recontar tal desencon-
tro, disparavam ideias sobre “como encontrá-lo” ou contavam-se
casos semelhantes, abrindo a possibilidade de outros desfechos.
Diante das reações mais diversas, Inácio passou a construir pontes,
adicionar afetos, passou a ser verbo, entre o aqui e ali, entre eu e
o outro, terreno comum na invenção do cotidiano.
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“INÁCIO” DA PALAVRA “IGNIS”, QUE SIGNIFICA “FOGO”. ESTE ERA
O NOME DE VÁRIOS SANTOS, INCLUINDO O TERCEIRO BISPO DE
ANTIOQUIA (QUE FOI JOGADO ÀS FERAS PELO IMPERADOR TRAJANO)
E SANTO INÁCIO DE LOYOLA. AS VARIAÇÕES INCLUEM O INÁCIO
ARCAICO, E O DIMINUTIVOS IGGY E IGGIE. 1
1 Ver em: < http:/ /pt.wikipedia.org/wiki/ In%C3%A1cio> Acesso em: 15 mar.2014
“INÁCIO” DA PALAVRA “IGNIS”, QUE SIGNIFICA “FOGO”. ESTE ERA
O NOME DE VÁRIOS SANTOS, INCLUINDO O TERCEIRO BISPO DE
ANTIOQUIA (QUE FOI JOGADO ÀS FERAS PELO IMPERADOR TRAJANO)
E SANTO INÁCIO DE LOYOLA. AS VARIAÇÕES INCLUEM O INÁCIO
ARCAICO, E O DIMINUTIVOS IGGY E IGGIE. 1
1 Ver em: < http:/ /pt.wikipedia.org/wiki/ In%C3%A1cio> Acesso em: 15 mar.2014
Cartaz do Bail i jesá [Abri l de 2013]
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A proposta de ir procurá-lo perpassava a ideia de desafiar a cidade,
incrustando na vida este enigma disparador de infinitas narrativas,
assim como de infinitos caminhos: chegar até Inácio era ir tecendo
fio por fio, encontrando, amarrando-se, até alcançá-lo.
Por um momento, ir a Córdoba parecia resolver o enunciado. Mas
não. Não seria, necessariamente, uma resolução para a busca
direcioná-la ao local que possivelmente poderia de fato encontrá-
-lo. Afinal de contas, procurar Inácio não deve se reduzir a uma
busca objetiva com começo, meio e fim, mas sim à atribuição de
um estado poético-estético para o ser-no-mundo.
Se a proposta fosse transformar esse dispositivo poético em uma
imagem, esta representaria as margens de um rio, na tentativa de
evocar sua gênese: a margem como limite das águas que habitam
entre suas beiras, que dão forma ao percurso, que é dentro e é
fora ao mesmo tempo, em uma poética que passou a reger o meu
pensamento, entre a linguagem e a experiência, o encontro da
forma com o sentido.
***
São pressupostos dessa busca os livros cultivados no roda-teto da
casa dos meus pais, as referências da urbanista praticante que é
minha mãe, pensadora daquela cidade, Salvador – tão nossa, tão
errante, nada havia de certo e planejado nela. Por isso, para mim, no
fundo, urbanismo nunca foi sinônimo de planejamento cartesiano
do espaço. Urbanismo era habitação, era aceitação, era diálogo
e era conflito – assim como nossa casa, nosso lugar no mundo.
Das prateleiras, veio Milton Santos, veio o gosto pela praça, pelo
aberto, arejado, algumas diferenças quanto à arquitetura moderna,
diante da barroca Salvador que nos envolvia. Os ares imperiais do
Rio de Janeiro se opunham a minha natureza colonial, percebi isso
desde o início.
É importante evidenciar o ponto em que houve um deslocamento:
se o corpo nesta pesquisa é valiosa ferramenta de experimenta-
ção, a minha caminhada, entre Bahia e Rio, possibilitou que este
remontasse a experiência cotidiana na cidade. As mudanças nas
referências do espaço instauraram um processo perceptivo de
retenção e ressignificação, atenta ao caminhar que ali inaugurava
sua linguagem diante de um novo sotaque.
88
Início
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Ainda elencando as paradas fundamentais dessa trajetória, é im-
portante dar destaque às condições que encontrei com a mudança
para o Rio: um “rebuliço” no ambiente urbano, grandes projetos,
inerentes contradições e uma reflexão profunda sobre para quem
estava sendo pensada a cidade.
Dessa fertilidade crítica, do ativismo e da arte contemporânea, me
deparei com processos que demonstraram recursos expressivos de
interferências efetivas na urbe, marcos cartográficos que selaram
posicionamentos no espaço em que passei a viver. Foram muitos os
encontros que formularam e enunciaram sob os percursos traçados,
principalmente ações de artistas e coletivos que de alguma maneira
me contaminaram. Posso notar certa proporcionalidade entre o
aumento do estreitamento dos imperativos políticos e econômicos
que incidem sobre a cidade e as táticas críticas que respondem a
eles, que resistem a eles.
***
Devo confessar que com o passar do tempo, Inácio vem se desfi-
gurando nas minhas lembranças, vão se esvaindo os traços do seu
rosto, o tom da sua voz e as poucas informações que trocamos
– mas a cada detalhe perdido, faço questão de inventar um novo.
E assim, passo a reconhecer Inácio em novas faces e posso jurar
que às vezes tenho mesmo a sensação de vê-lo passando, do
outro lado da calçada, pela janela do ônibus, peço para saltar no
próximo ponto, “depressa”, corro duas quadras, atravesso a rua
e volto caminhando para casa.
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p. 30: Uma vista da minha cidade [Início do séc. XX]. Fotografia
pertencente ao acervo do Museu Tempostal, Salvador - BA.
p. 34: Anotações sob café [Abril de 2014], Luisa Hardman.
p. 36: Porta encontrada no centro de São Paulo [Novembro de
2013], Luisa Hardman.
p. 44: Estudos para multidão [Janeiro de 2014], Luisa Hardman.
p. 50: Anotações e amarrações [Abril de 2014], Luisa Hardman.
p. 53: Fotomontagem para La Révolution Surréaliste, no. 12
[Dezembro de 1929]. Imagem disponível em: <http://socialistamorena.
cartacapital.com.br/tag/surrealismo/. Acesso em: 10 dez. de 2014.
p. 54: Fotografia do postal encontrado dentro da publicação O
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p. 56: Fotografia da publicação O MAR A PELE [1977].
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ficados.com.br/olho-de-horus/. Acesso em: 10 dez. 2014.
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p. 67: Fotografia de autoria de André Breton [s.d]. Disponível em:
http://www.studium.iar.unicamp.br/34/1/. Acesso em: 10 dez. 2014
p. 72: Fotografia da colagem do artista Ralph Lauren.
p. 74: Estudo para manchas [Dezembro de 2013], Luisa Hardman.
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feito na viagem a Minas [Abril de 1924]. Disponível em: <http://
www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.149/4540. Acesso
em: 10 dez. 2014
p. 80: Estudo para manchas [Dezembro de 2013], Luisa Hardman.
p. 81: “The Naked City, illustration de l’hypothèse des plaques
tournantes”, assinado por Guy Debord [1957]. Disponível em:
https://cidademcena.wordpress.com/2011/08/11/the-naked-city-
-illustration-de-l%E2%80%99hypothese-des-plaques-tournantes-2/.
Acesso em: 10 dez. 2014
p. 84: O encontro, fotografia retirada do albúm da família.
p. 102-103: Mise en abyme dans le quartier de la Chapelle (Paris),
Serge Bouvet. Disponível em: http://sergebouvet.com/2013/04/01/
mise-en-abyme/. Acesso em: 20 nov. 2014
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