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PROCESSOS DE MODALIZAÇÃO NA COMPOSIÇÃO “PALHAÇO”, D E EGBERTO GISMONTI
DALLASTRA, Luciano1
SELLA, Aparecida Feola2 RESUMO: Este trabalho justifica-se, em primeiro lugar, pela contribuição ao ensino da língua portuguesa, uma vez que propicia a análise do formato de um texto em estado de composição híbrida: pauta-se na análise de alguns elementos que constituem uma canção, a saber: música e letra (com enfoque nos elementos modalizadores). Em segundo lugar, retrata um desafio, pois há poucos trabalhos que conjugam a análise do lingüístico e da música. Deste modo, considerando-se a riqueza da música brasileira, tanto quando se fala em melodia, harmonia ou ritmo e também quando se refere ao texto, o corpus de análise para este trabalho é formado por uma canção do compositor brasileiro, radicado na Europa, Egberto Gismonti, considerado um gênio, tanto no papel de músico quanto no de compositor. Em princípio, selecionou-se a música “Palhaço” do álbum “Circense”, do referido artista. A proposta paira na análise dos elementos lingüísticos modalizadores que reforçam a temática proposta para a letra e, em forma de cotejo, projeta-se análise dos efeitos de sentido que o arranjo musical e o improviso gravado pelo saxofonista Mauro Senise acarretam. Assim, embasando-se nas teorias acerca de modalizadores do discurso e também na teoria musical, pretende-se, com este trabalho, apontar indícios de como a melodia, a harmonia e ritmo podem direcionar a interpretação de uma letra, por meio da análise, primeiramente do texto e posteriormente dos elementos musicais sobrepostos. Para tanto, será analisada a junção letra e música de tal forma que se possam evidenciar os efeitos de sentido provocados pela melodia. Parte-se da hipótese de que o arranjo retrata modos de concepção da letra, como se, em decorrência, ficasse estabelecida uma nova sintaxe. Sendo assim, o enfoque reside justamente nos fatores que modalizam a letra (tessitura lingüística). Esses fatores serão analisados de acordo com a temática e carga intencional. Após, será analisada a composição feita pelo artista. Entende-se que a música oferece recursos modalizadores ao discurso, modificando e/ou influenciando na identificação dos sentidos pertinentes ao texto selecionado. PALAVRAS-CHAVE: Modalização. Análise Lingüística. Música
1 Acadêmico do quarto ano do curso de Letras Português Italiano da UNIOESTE, Cascavel, PR. E-mail: [email protected]. 2 Professora Doutora da UNIOESTE, Cascavel, PR. E-mail: [email protected].
A proposta principal deste trabalho paira na hipótese de que os movimentos de
modalização estão presentes na letra e na melodia da música que será avaliada, a saber,
“Palhaço (Mais Clara, Mais Crua) e, desta forma, tanto os elementos lingüísticos como
o arranjo musical desenvolvido para a canção contribuem para o despertar dos sentidos
que serão absorvidos pelos ouvintes ou construídos pelos produtores da letra e arranjo.
Entretanto, trata-se de uma tarefa de difícil resolução tentar avaliar a composição
letra e música, pois acarretam duas formas de modalização que, num processo de
sobreposição, tecem um estrato textual de terceiro nível, no qual são acionados
elementos de ordem variada e complexa, mas que exprimem a magia do aspecto da
modalização como característica de uma cultura.
Considerando-se essa base teórica rapidamente aludida, pretende-se avaliar,
portanto, como a modalização é processada na relação letra/arranjo musical. Quanto a
este último aspecto, consideraremos a melodia, a harmonia e o ritmo empregados na
composição. Quanto ao aspecto da modalização, vamos verificar a forma como os
elementos lingüísticos presentes no texto imprimem modalização.
Assim, passemos às reflexões propriamente ditas: A modalização, em um texto,
é expressa por elementos lingüísticos. Estes podem ser de dois tipos: epistêmicos, que
revelam o grau de conhecimento do sujeito produtor do enunciado (indicam certeza ou
probabilidade, e, desta forma, correspondem aos eixos do crer e do saber); deônticos,
que se referem ao eixo da conduta, expressando obrigatoriedade ou permissibilidade.
Castilho & Castilho (1992) explicam a modalização como uma forma de
revelação dos objetivos do produtor do texto. A epistêmica expressa “uma avaliação
sobre o valor de verdade e as condições de verdade da proposição”. Nesse sentido, o
movimento epistêmico acena para um lugar de argumentação pautado no espaço que o
produtor do texto admite dominar para lidar com determinada temática. Sendo assim,
traçar uma modalização epistêmica requer uma espécie de “franquia” (SELLA, 2008, no
prelo) a ser tomada como respaldo para as afirmações. A modalização deôntica paira no
domínio do dever e da conduta, isto é, o produtor do texto estabelece com o leitor uma
espécie de contrato de tal forma que passe a ser encarado como um acionista maior,
cujas falas devem ser acatadas por força de suas crenças ou por força do arcabouço
informacional (que pode estar pautado, inclusive, em vozes autorizadas, fatos
confirmados, e mesmo no senso comum).
Na obra Gramática do Português Falado (2002), tendo Koch como
organizadora, Neves cita Quirk (1985) e afirma que:
De maneira genérica (...) a modalidade pode ser definida como o modo pelo qual o significado de uma frase é qualificado de forma a refletir o julgamento do falante sobre a probabilidade de ser verdadeira a proposição por ela expressa. (p. 172).
Neves (1996) explica que a avaliação epistêmica se situa entre o absolutamente
certo, ou preciso, até o patamar do possível. Neste caso, entendemos que o fator certeza
ou precisão reforça movimentos argumentativos. No eixo da conduta, Neves (1996)
explica que a obrigação envolve expectativa de uma reação do interlocutor.
Vejamos a seguir, alguns exemplos e suas respectivas análises.
(a) Acho que vai chover hoje.
(b) É preciso dirigir com cuidado sob neblina.
Em (a), o termo em destaque indica certo grau de conhecimento do produtor do
enunciado sobre um estado de coisas, neste caso, sobre as condições climáticas. O verbo
Acho repassa uma quase certeza, o que revela um grau mínimo de comprometimento
com o que está sendo dito. Desta forma, a modalização é epistêmica, pois está no eixo
da crença e do saber.
Em (b), temos uma imposição do locutor para uma postura que deve ser
assumida pelo seu interlocutor diante de determinada situação. Portanto podemos
entender este exemplo como situado no eixo da obrigação, ou seja, temos, aqui, uma
modalização do tipo deôntica.
Assim, estes exemplos representam algumas possibilidades de modalização
lingüística do ponto de vista escrito, porém podemos ter modalização também na
oralidade e, talvez, nesta perspectiva tenhamos exemplos muito mais evidentes dos
posicionamentos assumidos pelo interlocutor.
Tomemos como exemplo um enunciado bastante simples e usual: Bom dia. Essa
expressão assume valores diversos na oralidade. Por exemplo: uma situação rotineira de
um encontro entre duas pessoas que se vêem todos os dias e que não possuem muita
intimidade. A forma da produção do enunciado será diferente, por exemplo, em uma
situação em que duas pessoas, com um grau de amizade maior, há tempos não se viam.
As diferenças que estes dois enunciados assumem são perceptíveis somente na
oralidade, pois, na escrita, são representados da mesma forma, a não ser que exista um
texto que contextualize a situação da produção. Nestas situações, aproximamo-nos da
música, considerando esta como a arte dos sons, ou a arte de combinar os sons. O
arranjo musical permite, portanto, que haja um dado contexto de realização da letra, o
que imprime movimentos de modalização que asseguram efeitos de sentido.
Esse contexto não se distancia da linguagem oral, por exemplo, haja vista que a
própria entonação imprime efeitos de sentidos ou mesmo orienta de que modo o falante
repassa o conteúdo proposicional. Vejamos um exemplo de como a simples mudança de
tipo de frase revela graus de modalização:
→ Valeu a pena?
Neste caso, a marca da interrogação se dá por meio da elevação gradativa da
entonação melódica no final da frase3.
Já diante de uma afirmação como
→ Valeu a pena.
o interloculor tende a iniciar a entonação da fala em uma nota mais aguda e
direciona a melodia da frase para notas mais graves.
Assim, encerra-se esta primeira etapa para que, desta forma, possamos proceder
com assuntos relativos aos conceitos musicais relevantes para a compreensão deste
trabalho.
Primeiramente, destacam-se as notas naturais (consideradas no Ocidente) e as
respectivas distâncias entre cada uma delas:
Dó Ré Mi Fá Sol Lá Si Dó
Cada espaço representa a distância de meio tom, assim, a distância entre o Dó e
o Ré, por exemplo, é de um tom. A distância entre a nota Mi e a nota Fá, é de meio tom,
assim como entre Si e Dó.
Existem dois tipos de alterações possíveis para as notas naturais: o sustenido
(representado por #) e o bemol (representado por b). O sustenido altera qualquer nota
meio tom acima e o bemol altera qualquer nota meio tom abaixo. Assim teremos:
Dó#Dó
RébRé
#RéMib
Mi Fá#FáSolb
Sol#Sol
LábLá
#LáSib
Si Dó 4
Assim é correto dizer que #Dó e bRé representam a mesma sonoridade (a mesma
nota). Essa igualdade é chamada de enarmonia, ou seja, notas de mesmo som, porém
nomes diferentes.
3 Entendemos que existem outras formas distintas de marcar a interrogação nos diversos tipos de frases, entretanto é comum a elevação gradativa na entonação em um número considerável de exemplos. 4 Esta seqüência de notas representa a Escala Cromática, ou seja, todas as 12 notas que são consideradas no Ocidente.
Outro elemento que precisa ser esclarecido é a relação intervalar entre as notas.
Tomemos como exemplo a escala de Dó Maior (descrita acima). Nesta escala, a nota Dó
representa o primeiro grau da escala, também chamada de Tônica. Como segundo grau
da escala, teremos a nota Ré. O terceiro grau é a nota Mi. O quarto grau é a nota Fá. A
nota Sol representa o quinto grau. Lá é o sexto grau. A nota Si é a sétima maior e,
finalmente, a nota Dó representa o oitavo grau. Vejamos na tabela a seguir:
DóT
Ré2
Mi3
Fá4
Sol5
Lá6
Si7M
Dó8
Com estas informações é possível descrever os intervalos cromáticos, assim
como foi feito com as notas:
Dó#DóRéb Ré
#RéMib Mi Fá
#FáSolb Sol
#SolLáb Lá
#LáSib Si Dó
T 2b 2 #23b 3 4 #4
5b 5 #56b 6 7 7M 8
5
Estes intervalos são utilizados para a construção dos acordes, assim, é possível
verificar os tipos de acordes que poderão serem montados utilizando os intervalos.
Dando continuidade ao que foi aludido acima, de acordo com Almir Chediak,
em seu livro “Harmonia e Improvisação”,
o acorde pode ser formado por três, quatro ou mais sons. Quando formado por três sons é chamado de tríade, por quatro sons de tétrade e por mais de quatro sons, de tétrade com nota acrescentada. (1986, p. 79).
Trabalharemos aqui somente com a tríade do acorde e com algumas notas que
serão acrescentadas, seja na harmonia ou na melodia.
Assim, após a breve explicação destes termos, pode-se continuar com as análises
pertinentes à influência da música na interpretação de qualquer tipo de texto.
Observemos os sentidos despertados pela relação entre as notas, ou seja, a relação
intervalar: levemos em consideração o intervalo de terça maior, tomando como o
exemplo a tônica referencial sendo a nota Dó, teremos a terça maior sendo a nota Mi.
Este intervalo oferece a sensação de estabilidade.
Se alterarmos a nota Mi meio tom abaixo do original, teremos a nota bMi (Mi
bemol), que representa a terça menor em relação a Dó. Este intervalo, ao contrário do
5 A correta nomenclatura de cada um dos intervalos está descrita ao final deste trabalho em forma de anexo.
intervalo de terça maior, oferece um potencial direcionado à tensão e, em alguns casos,
pode ser considerado como um intervalo que desperta o sentimento de melancolia.
Estas análises podem ser feitas com todos os intervalos, inclusive produzindo-se
mais de duas notas ao mesmo tempo e, cada uma destas combinações, pode produzir
diversos sentidos e, estes, podem influenciar as impressões causadas por determinado
texto.
Assim, posteriormente às análises estabelecidas, podemos passar à reflexão dos
elementos lingüísticos que modalizam a letra da canção que serve de corpus neste
trabalho e verificarmos as possibilidades da música atuar também como modalizadora.
Quando se confronta o título com a letra, percebe-se que o palhaço é o artista e precisa
esquecer-se de suas “dores”, pois ele trabalha com a alegria e o entretenimento; desta forma,
deve recorrer a máscaras para desempenhar com êxito seu papel social e (visualizando o outro
pólo desta interação) que o seu público é indiferente às suas cicatrizes.
Essas sensações são compartilhadas pelo eu-lírico com uma personagem feminina e
ambos despem-se de suas máscaras comuns para efetuarem suas funções e se cobrem com
máscaras adequadas a cada situação.
Assim, fica a idéia de que as máscaras sociais servem para compor a ilusão, mas
também imprime tal distanciamento que despir-se da máscara rende dissabores, rende outra
relação com o plano do real. Assim, a idéia de circularidade passada pela letra e pela melodia
pode reiterar o fato de que o momento de encenação e o momento de lucidez imprimem um
paradoxo.
Esta circularidade proposta no parágrafo anterior é reforçada pelo encadeamento
harmônico utilizado na composição, já que a mesma seqüência de acordes é repetida várias
vezes, enfatizando a melodia, que, por sua vez também é repetida várias vezes e, apesar do
encadeamento trilhar “caminhos” (ou seja, trata-se de uma progressão de acordes) o acorde final
de cada trecho sempre retorna à tonalidade da música, no caso da gravação de Olívia Byington,
Mi Maior e no caso da gravação de Egberto Gismonti, Lá Bemol Maior.
A escolha tonal poderia ser encarada como mera adaptação ao registro vocal da cantora,
entretanto verifica-se que este fator também tem importância nesta análise, pois Olívia executa
esta canção utilizando o violão e sabe-se que a afinação padrão deste instrumento é (da corda
grave à corda aguda) 6ª corda é a nota Mi; 5ª corda, Lá; 4ª corda Ré; 3ª corda, Sol; 2ª corda, Si;
e 1ª corda Mi e esta afinação favorece a aplicação de algumas tonalidades distintas, sendo que
uma destas tonalidades é justamente a tonalidade de Mi Maior.
Este tom possibilita a execução de acordes que utilizem cordas soltas e estas, por sua
vez, proporcionam uma grande riqueza de harmônicos à sonoridade, além de permitirem o uso
de intervalos do tipo 9 (nona), 7M (sétima maior) e 11 (décima primeira), entre outros e que
seriam difíceis de serem executados na tonalidade de Lá bemol, por exemplo.
Quando se trata da gravação de Egberto Gismonti, em Lá bemol, a canção foi executada
ao piano e esse instrumento, por possuir a distribuição das teclas de forma horizontal, não
compartilha com o violão das mesmas possibilidades de que algumas tonalidades proporcionem
os mesmos aspectos discutidos anteriormente para o outro instrumento.
Assim, pode-se concluir que a escolha tonal deve-se não somente à adaptação ao
registro da cantora, mas também a adequação para cada instrumento, para que os músicos
possam desfrutar das melhores características da cada um em prol da música.
Vejamos agora a letra da canção denominada “Palhaço (Mais Clara, Mais Crua)”:
Palhaço (Mais Clara, Mais Crua) Egberto Gismonti/Geraldo Carneiro Gravações Olívia Byington - Anjo Vadio (1980) Olívia Byington - Gozos da Alma (2006) de noite na rua em frente ao parque a minha solidão é sua decerto sei que você vaga em qualquer parte sob essa vaga lua de noite alguém decerto te ampara por onde hoje você anda mas sem olhar sua ciranda louca daquele jeito que te desmascara a noite esconde as cicatrizes esconde as carícias e os maus tratos agora bêbada você estremece como se ainda não soubesse em frente à porta desse bar em que embarca sob essa vaga lua e a luz da lua, pura nitidez da marca mais nua, mais clara, mais crua
O próximo elemento que podemos discutir é o próprio título da canção. O fato
de os vocábulos pertencerem a campos semânticos diferentes e (talvez) distantes revela
a oposição presente no título e, de certa forma, pode denunciar aspectos pertinentes à
obra.
Posteriormente, trazemos à tona a utilização do vocábulo “decerto”. Esta palavra
revela um grau de imprecisão na afirmação do eu-lírico, no poema: “decerto sei que
você vaga”, ou seja, existe aqui uma modalização lingüística do tipo epistêmica, pois
esta se encontra no eixo do saber. Contudo, há que se verificar que, neste exemplo, o
vocábulo aparece ao lado de outra expressão: “sei que”, desta forma, o grau de
imprecisão despertado por ele é atenuado pela utilização desta expressão, causando
novamente certa oposição entre os termos.
No início da segunda estrofe, “de noite alguém decerto te ampara”, apresenta-se
o mesmo vocábulo antes analisado; entretanto, o grau de imprecisão, aqui, não é
alterado por outros elementos lingüísticos, reforçando a idéia aludida e que foi discutida
anteriormente demonstrando, assim, novamente a modalização epistêmica utilizada na
construção poética.
Outros elementos lingüísticos que também podem revelar o grau de
conhecimento do eu-lírico podem ser “em qualquer parte” e “sob essa vaga lua”,
caracterizando-se novamente como modalização epistêmica. Percebemos que a
utilização destes termos localiza o grau de certeza da avaliação do conteúdo
proposicional em uma escala argumentativa que tem em uma ponta o grau máximo de
certeza e em outra a dúvida absoluta em relação ao que é dito.
Um aspecto importante é que se percebe que o poeta inicia a construção da letra
com elementos que remetem ao noturno: “noite”, “solidão”, “lua” e finaliza-a utilizando
elementos que remetem á luz: o próprio vocábulo “luz”, “nitidez” e “clara”. Esse
movimento pode ser entendido como metáforas para consciência e alienação. A noite,
de certa forma, esconde a verdade que a luz põe às claras.
Assim, após a verificação destes elementos, pode-se passar à análise da melodia
confrontando-a com o texto.
De acordo com Luiz Tatit (1987):
As cordas vocais têm a função precípua de oferecer a matéria sonora para a fala do dia-a-dia. Se esta matéria surge em forma de canto não deixa, por isso, de transparecer a cumplicidade do cantor com seu texto, do mesmo modo que qualquer falante com suas frases. E quem estabelece este elo cúmplice é a melodia no canto e a entoação na fala. (p. 06).
Entendendo que a canção visa a uma espécie de persuasão, na qual o autor (ou o
intérprete) procura convidar seus ouvintes a compartilharem as emoções discutidas e/ou
verificadas na obra. É preciso que exista uma conexão entre o conteúdo lingüístico e o
conteúdo musical. Tatit (1987) analisa muito bem essa conexão em sua obra “A Canção:
Eficácia e Encanto”, na qual elabora reflexões pertinentes entre estes dois elementos.
Ainda embasado nesta obra, Tatit (1987) afirma que, por meio do texto, o
intérprete (ou o compositor) “Transmite sua posição no quadro narrativo e, pela
melodia, sua emoção por ocupar esta determinada posição” (p. 26). Por fim, se a
compatibilidade entre a melodia e o texto da canção for suficientemente persuasiva é
possível que o ouvinte aceite o “convite” a compartilhar das sensações da canção que
“redundará numa cumplicidade emocional consigo próprio” (p. 26).
E ainda:
A melodia, por sua vez, também expressa modalidades. Aquilo que o texto descreve, com relativa precisão, através de seus recursos específicos, a melodia reforça traçando um contorno que pode ser lido (ou ouvido) na mesma orientação do texto. (TATIT, 1987, p. 33)
Essa característica pode ser percebida na primeira frase da canção, na qual o
texto principia marcando o local e o momento do desenrolar dos fatos, proporcionando
ao ouvinte a presentificação da cena, ou seja, ele localiza o desenrolar das ações no
tempo e no espaço, contribuindo, desta forma, com a devida persuasão. Neste momento
verifica-se uma afirmação do eu-lírico e que é garantido pela condução melódica.
Neste sentido, a linha melódica que forma essa frase reforça o sentido de
asseveração proporcionado pelo conteúdo lingüístico.
De acordo com as análises de Luiz Tatit (1987):
Os sintomas de tensão que aparecem, no texto, ligados ao movimento de disjunção e conjunção entre actantes, na melodia, assume a forma de ascendência ou permanência no mesmo tom nos finais de frase melódica (nos chamados “tonemas”). Isto em oposição à descendência que, nos estudos entoativos, é considerada distensão melódica: anatomicamente, as cordas vocais se distendem quando nos encaminhamos para o grave. Daí a impressão de repouso e, conseqüentemente, de finalização. Este traço favorece uma certa universalidade de interpretação cultural da descendência melódico-entoativa. Segundo diversos autores, entre eles, Tomás Buyssens, Rossi e Leon, todas as culturas, cujas entoações já foram estudadas, utilizam o tonema descendente para asseverar ou concluir uma idéia. (p. 33).
A linha melódica da segunda frase, por sua vez, proporciona uma tensão maior.
Se, na letra temos o início da discussão que norteará o poema, ou seja, o início do
embate entre os sentimentos do eu-lírico, a linha melódica reforça esta tensão através de
um salto de cinco tons e meio, finalizando com uma frase descendente até o final do
trecho. Contudo, apesar de termos uma frase descendente que, segundo Tatit, assevera e
tende a finalizar a frase, o trecho seguinte é executado após um curtíssimo intervalo de
tempo, enfatizando a idéia de ligação semântica entre estas frases.
Percebe-se que isso ocorre também nas frases seguintes. Há uma conexão entre
elas e que é reforçado pela execução melódica sem grandes pausas entre cada trecho, até
o final, no qual a descendência melódica contribui para reforçar a idéia de finalização,
como pode ser percebido pela transcrição da canção, que consta nos anexos deste
trabalho.
No clímax de tensão que a letra proporciona, percebemos uma elevação
acentuada da construção melódica, o que enfatiza essa condição de tensão que o poema
passa e a música reitera.
A primeira frase inicia-se em uma nota aguda em relação às demais notas e a
seqüência melódica desce até finalizar a frase. No segundo trecho, a nota escolhida
localiza-se um tom abaixo da nota da primeira frase (ou seja, também se localiza em
uma região aguda) e também ocorre a queda consecutiva culminando com o final do
trecho na nota de tônica em relação à tonalidade. Neste caso pode se observar
novamente a asseveração que a construção melódica proporciona.
Falando agora um pouco sobre outro tipo de conexão, a saber, o ritmo da canção,
pode-se citar José Miguel Wisnik (2004) e sua obra “Sem Receita”, na qual o autor
afirma que o ritmo também pode orientar os sentidos que uma determinada canção pode
assumir. Usando exemplos de Wisnik, ele sugere que se observe a melodia de duas
músicas distintas e distantes semanticamente: “Com que roupa?”, de Noel Rosa e o
“Hino Nacional”. A melodia do primeiro verso de cada uma delas é igual ao outro:
“Agora vou mudar minha conduta” e “Ouviram do Ipiranga às margens plácidas”.
Entretanto, elas possuem sensações próprias a cada uma delas, devido à rítmica
empregada na execução.
Wisnik (2004) ainda sugere que se inverta a execução, ou seja, realizar a
experiência de executar o “Hino Nacional” com as mesmas pulsações de “Com que
roupa?” e vice-versa. Assim, o Hino perde a noção de marcha militar, de um padrão
impositivo, enquanto que a música de Noel perde a característica sincopada que
proporciona o gingado “malandro” natural do samba.
Cantada segundo a figura rítmica do Hino, a frase “Agora vou mudar minha conduta” ganha um acento marcial e corporativo. Não é mais a fala individual e irônica do “cidadão precário”, o sujeito do samba, que afirma entre negaceios sincopados a sua disposição irrisória de se afirmar na vida, mas uma espécie de voz coletiva que brada com acentos épicos uma vontade de autotransformação. (WISNIK, 2004, p. 202).
Deste modo, existe a comprovação de que a figura rítmica exerce influência
sobre o conteúdo lingüístico de uma canção.
Quando se verifica a pulsação e a rítmica de “Palhaço”, pode-se observar que a
construção escolhida pelo autor, baseia-se em padrões não sincopados, porém bastante
livres, ou seja, não há uma figura rítmica que se acentue ou se destaque na obra,
possibilitando maior liberdade de interpretação ao executante da canção.
Deste modo, observa-se que a rítmica não é regular, existindo momentos em que
o intérprete “arrasta-a”, atrasando a entrada de algumas notas em relação à pulsação e
outros em que há uma pequena aceleração na frase.
Como, nesta música, estamos tratando com um ritmo mais livre, não há uma
pulsação forte que possa demarcar com precisão as sensações atribuídas ao elemento
rítmico: contribui-se, assim, com a idéia de ambigüidade e de circularidade proposta
parágrafos acima.
O objeto para análise deste trabalho consiste na música “Palhaço”, de Egberto
Gismonti. Foram selecionadas duas gravações: uma feita por Olívia Byington, a qual é
cantora e, portanto, gravou a música com letra; e a outra executada pelo próprio autor
com a participação de Mauro Senise.
Pensando na gravação instrumental de “Palhaço”, verifica-se que existem várias
nuances de dinâmica6. Assim, refletindo sobre a obra “O Som e o Sentido”, também de
Wisnik (1989), o autor afirma que:
O som que decresce em intensidade pode remeter tanto à fraqueza e à debilitação, que teria o silêncio como morte, ou à extrema sutileza do extremamente vivo (podendo sugerir justamente o ponto de colamento e descolamento desses sentidos, o ponto diferencial entre a vida e a morte, aí potencializados). O crescendo e o fortíssimo podem evocar, por sua vez, um jorro de explosão proteínica e vital emanando da fonte, ou a explosão mortífera do ruído como destruição, como desmanche de informações vitais. (p. 25).
6 A dinâmica musical pode ser entendida como a intensidade (fortíssimo ou muito fraco e todas as possibilidades entre esses registros) com a qual uma nota ou trecho musical é produzido.
A dinâmica é um elemento muito bem explorado na versão instrumental
analisada para a música “Palhaço”. Nela, percebemos que o início da música começa de
forma bastante suave e calma, com os instrumentos executando o tema principal e uma
bateria produzindo notas acompanhando também a suavidade proposta inicialmente.
Quando o saxofonista Mauro Senise inicia a série de improvisos sobre a
harmonia, a bateria passa a fazer a marcação contínua do ritmo, o que confere um
acréscimo considerável na dinâmica. O improviso é iniciado de maneira suave, porém
vai crescendo em intensidade até atingir o ápice da interpretação para que se produza o
clímax da música.
Finalizado o improviso, a música volta para o tema principal e vai se atenuando
as dinâmicas até culminar com o final, na qual a música finaliza-se como havia
começado, ou seja, com muita suavidade.
É importante salientar que, no clímax do improviso, todos os músicos
“caminham” na mesma direção, ou seja, respeitam as dinâmicas que a música sugere.
Desta forma, a dinâmica é estabelecida por todos os executantes da canção.
Outro elemento importante é que na versão instrumental, ao fundo, existem
ruídos de crianças rindo e se divertindo. Provavelmente uma forma de aludir ao título da
obra. Contudo, os sorrisos se contrapõem aos sentidos despertados pela música e pelo
improviso de Mauro Senise. Desta forma a ambigüidade é garantida e a circularidade,
que foi proposta anteriormente, pode ser reiterada.
Como a harmonia e a melodia são as mesmas no tema principal (mudando-se
apenas a tonalidade, entretanto as seqüências e encadeamentos se mantêm) as reflexões
efetuadas para a versão cantada permanecem, com a ressalva de que os sentidos são
ampliados na versão instrumental, já que a letra reduz as possibilidades de interpretação,
pois direcionam os sentidos. Como a linguagem está em um plano de compreensão
muito maior, reduzem-se as variantes neste processo, enquanto que a música abre um
leque de opções muito maiores para análises. Segundo Wisnik (1989), “(...) a música
não refere nem nomeia coisas visíveis, como a linguagem verbal faz, mas aponta com
uma força toda sua para o não-verbalizável”. (p. 28).
É patente que, quando falamos de uma música instrumental, esta não atua sobre
o ouvinte da mesma maneira como acontece com uma música cantada. Contudo, neste
exemplo, o arranjo instrumental oferece alguns elementos que podem corroborar com as
reflexões aludidas anteriormente.
O primeiro elemento que se pode cogitar é que a harmonia executada para o
improviso do saxofonista é um encadeamento de acordes conhecido como ciclo das
quartas justas, ou exercício dos doze tons, porque ele passa por todas as tonalidades
possíveis consideradas no Ocidente.
Este exercício consiste em: iniciado em uma tonalidade qualquer, a próxima
tonalidade deverá ser aquela que representa o quarto grau da tonalidade anterior e assim
sucessivamente, até retornar à tonalidade inicial.
No caso de “Palhaço”, o improviso começa na tonalidade de Ré bemol maior,
com o acorde de primeiro grau neste tom, ou seja, o próprio Ré bemol maior, assim, o
próximo acorde deverá ser o acorde que se localiza exatamente a dois tons e meio à
frente de Ré bemol, ou seja, Fá sustenido, deste modo, o próximo acorde deverá ser
verificado também dois tons e meio à frente do acorde que foi tocado anteriormente e
assim sucessivamente até retornar a tonalidade de Ré bemol maior, fechando, desta
forma o ciclo das quartas justas. O nome quarta justa deve-se ao fato de cada acorde
seguinte representar o quarto grau do acorde anterior, como já foi mencionado acima.
Deste modo, a circularidade proposta anteriormente é novamente reiterada por
meio da utilização deste artifício e, inclusive, percebe-se o “caminho” trilhado pela
harmonia de forma que esta (a harmonia) se expanda, criando climas diferentes em cada
tonalidade pela qual passa e gerando também novas sensações a cada acorde produzido.
Percebemos que este fator pode relacionar-se com os aspectos de modalização
lingüística, pois estas também conferem sentidos diversos à produção de determinados
enunciados.
Essas sensações são salientadas também pela série de improvisos realizados pelo
saxofonista Mauro Senise e demarcam as impressões particulares que o próprio músico
teve. É importante lembrar que a improvisação pode ser considerada como a expressão
máxima do executante em relação a cada tema que é tocado, mostrando a forma que ele
“vê” determinada obra. Assim, pode-se ter uma seqüência de improvisos sobre a mesma
harmonia do tema principal. Com isso consegue-se garantir que algumas características
do tema sejam preservadas, já que o improviso é uma forma de rearranjar a canção
alterando a linha melódica. Entretanto, pode-se, também, modificar a harmonia
principal criando uma parte diferente na música que contribui para gerar novas
impressões sobre o que está sendo tocado.
Desta forma, Senise inicia sua série de improvisos, utilizando como primeira
nota que será enfatizada o intervalo de 9 (nona maior) em relação ao primeiro acorde da
progressão. Este intervalo pode produzir sensações diversas, mas principalmente de
suspensão, ou seja, apesar do acorde ser maior e, por isso, produzir sensação de
estabilidade, a nona interfere nesta sensação, causando tensão. Essa tensão produz um
choque quando tocada juntamente com a terça maior do acorde e “desafia” a
estabilidade proposta por esse.
No decorrer do improviso, Senise enfatiza outros intervalos como 13 (décima
terceira maior) e #4 (quarta aumentada). Estes intervalos também têm a característica de
“desafiar” a estabilidade proposta pelo acorde maior, gerando tensão, quando
confrontados com os intervalos pertencentes ao acorde maior.
Segundo Chediak (1986), “Cada um dos acordes correspondentes aos graus têm
a sua qualidade funcional, isto é, prepara e resolve com maior ou menor força. Podendo
ser qualificados de forte, meio-forte e fraco”. (p. 92).
Senise baseia seu improviso em momentos de tensão e resolução. Entendendo-se
resolução, aqui, como notas que são enfatizadas na melodia, pois, em alguns momentos,
ele destaca notas que representam os intervalos de 9, 13 e 7M, do acorde base, entre
outras, o que “desafia” a estabilidade proposta para a resolução, já que é sabido que as
notas que proporcionam estabilidade para resolução, são notas que pertençam à
formação do acorde.
Senise também se apoia na repetição de frases. Em vários momentos ele utiliza o
recurso de executar uma nota, tocar algumas outras, que funcionam como ornamentos e
retornar a nota inicial, procedendo com a repetição dessa seqüência melódica algumas
vezes.
Assim, após essas considerações, é possível verificar os encaminhamentos finais
que foram obtidos por meio das reflexões contidas neste trabalho.
Através deste trabalho, verificou-se como a música pode influenciar os sentidos
propostos por um poema, alterando, afirmando ou expandindo o que a letra “quer
dizer”, de modo que possa funcionar como modalizadora do discurso.
As seqüências melódicas, as figuras rítmicas, os encadeamentos de acordes e os
improvisos registrados, demonstraram que compactuam certas características de sentido
com a letra composta para a música.
Há que se registrar também, que a escolha da canção, não foi a esmo, pois se
trata da obra de um músico brasileiro considerado um gênio e reconhecido no mundo
todo, mas, infelizmente, ainda não muito conhecido no Brasil, país riquíssimo,
culturalmente falando, mas que ainda precisa aprender a valorizar artistas
comprometidos com a produção cultural que priorize o aspecto artístico e não
mercadológico.
O corpus deste trabalho demonstrou que abarca tais elementos. Pois estamos
lidando com um “time” de altíssimo nível, tanto quando falamos da composição
musical, de autoria de Egberto Gismonti, da letra, de Geraldo Carneiro, da interpretação
de Olívia Byington e também do improviso registrado por Mauro Senise. Artistas de
indiscutíveis qualidades e comprometidos com a produção cultural verdadeiramente
artística.
Deste modo, verifica-se que as reflexões aqui aludidas podem servir de
parâmetros para as possíveis interpretações desta obra, entretanto a música é universal e,
portanto, passível de muitas outras explicações.
Segundo Wisnik (1989),
Através das alturas e durações, timbres e intensidades, repetidos e/ou variados, o som se diferencia ilimitadamente. Essas diferenças se dão na conjugação dos parâmetros e no interior de cada um (as durações produzem as figuras rítmicas; as alturas, os movimentos melódico-harmônicos; os timbres, a multiplicação colorística das vozes; as intensidades, as quinas e curvas de força na sua emissão). (p. 26).
Este texto, de José Miguel Wisnik, nos possibilita algumas noções das variantes
que constituem a construção musical e verifica-se que este trabalho engloba apenas uma
parte das muitas análises que seriam cabíveis na música “Palhaço (Mais Clara, Mais
Crua)”.
REFERÊNCIAS CANDÉ, Roland de. História Universal da Música: volume 1. Tradução de Eduardo Brandão; revisão da tradução Marina Appenzeller. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
_______, Roland de. História Universal da Música: volume 2. Tradução de Eduardo Brandão; revisão da tradução Marina Appenzeller. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. CASTILHO, Ataliba T.; CASTILHO, C. M. M. Advérbios modalizadores. In: ILARI, Rodolfo (org.) Gramática do português falado Vol. II: Níveis de análise lingüística. Campinas: UNICAMP, 1992. CHEDIAK, Almir. Harmonia e Improvisação. 8 ed. Rio de Janeiro: Lumiar Editora, 1986. DUCROT, Oswald. Argumentação e “topoi” argumentativos. In: GUIMARÃES, E. (org.). História e sentido na linguagem. São Paulo: Pontes, 1989. FARIA, Nelson. Acordes, Arpejos e Escalas. Rio de Janeiro: Lumiar Editora, 1999. KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. Argumentação e Linguagem. São Paulo: Cortez Editora, 2002. _______ Aspectos da Argumentação em Língua Portuguesa. São Paulo, 1981. _______ (org.) Gramática do Português Falado. 2 ed. Ver. – Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2002. NEVES, Maria Helena de Moura. A modalidade: In: KOCH, Ingedore Villaça (org.) Gramática do português falado. São Paulo: Unicamp / FAPESP, 1996, v. 6. p 163-195. TATIT, Luiz. A canção: Eficácia e Encanto. 2 ed. São Paulo: Atual, 1987. WISNIK, José Miguel. Sem Receita: Ensaios e Canções. São Paulo: Publifolha, 2004. http://raquelestdisc.blogspot.com/2005/06/modalizao.html - acesso em 02/06/08 - 11h00. http://cifrantiga2.blogspot.com/2008/02/egberto-gismonti.html - acesso em 02/06/08 - 11h30.