processo verbal. pode ser expressa por meio de diversos...

11
PROCESSOS DE INTENSIFICAÇÃO EXPRESSIVA EM MACHADO DE ASSIS Castelar de Carvalho Liceu Literário Português RESUMO: Descrição e análise dos processos de intensificação morfossintática empre- gados por Machado de Assis em seus romances e contos. A intensificação como traço estilístico da língua literária do autor. PALAVRAS-CHAVE: Machado de Assis; intensificação; estilística; língua literária. ABSTRACT: Description and analysis of the morphological and syntactic processes of intensification used by Machado de Assis in his novels and short stories. The author’s literary language and the intensification processes as a characteristic of his style. KEY WORDS: Machado de Assis; intensification; stylistics; literary language. Introdução A caracterização intensiva, não raro com valor superlativo, exerce a função de realçar estilisticamente uma condição, qualidade ou ação própria do ser ou do processo verbal. Pode ser expressa por meio de diversos recursos mórficos e/ou sintáticos, alguns dos quais descrevemos abaixo. A maior parte dos exemplos (destacados em itálico) foi extraída do livro de contos Várias histórias (VH). Alguns contos de Papéis avulsos (PA) e Páginas recolhidas (PR) também foram utilizados. Os demais exemplos foram extraídos dos seguintes romances: Dom Casmurro (DC), Memórias póstumas de Brás Cubas (BC) e Esaú e Jacó (EJ). Intensificação (processos) 1) Adjetivos Bela mulher! grande mulher! belos e grandes amores! (“Mariana”, VH. A entonação exclamativa amplifica o valor intensivo dos adjetivos em-

Upload: vudang

Post on 08-Nov-2018

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: processo verbal. Pode ser expressa por meio de diversos ...llp.bibliopolis.info/confluencia/pdf/158.pdf · Pode ser expressa por meio de diversos recursos mórficos e/ou ... Toda

proCessos de intensiFiCação expressiva eM MaCHado de assis

Castelar de CarvalhoLiceu Literário Português

RESUMO: Descrição e análise dos processos de intensificação morfossintática empre-gados por Machado de Assis em seus romances e contos. A intensificação como traço estilístico da língua literária do autor.PALAVRAS-CHAVE: Machado de Assis; intensificação; estilística; língua literária.

ABSTRACT: Description and analysis of the morphological and syntactic processes of intensification used by Machado de Assis in his novels and short stories. The author’s literary language and the intensification processes as a characteristic of his style.KEY WORDS: Machado de Assis; intensification; stylistics; literary language.

Introdução

A caracterização intensiva, não raro com valor superlativo, exerce a função de realçar estilisticamente uma condição, qualidade ou ação própria do ser ou do processo verbal. Pode ser expressa por meio de diversos recursos mórficos e/ou sintáticos, alguns dos quais descrevemos abaixo. A maior parte dos exemplos (destacados em itálico) foi extraída do livro de contos Várias histórias (VH). Alguns contos de Papéis avulsos (PA) e Páginas recolhidas (PR) também foram utilizados. Os demais exemplos foram extraídos dos seguintes romances: Dom Casmurro (DC), Memórias póstumas de Brás Cubas (BC) e Esaú e Jacó (EJ).

Intensificação (processos)

1) Adjetivos

– Bela mulher! grande mulher! belos e grandes amores! (“Mariana”, VH. A entonação exclamativa amplifica o valor intensivo dos adjetivos em-

Page 2: processo verbal. Pode ser expressa por meio de diversos ...llp.bibliopolis.info/confluencia/pdf/158.pdf · Pode ser expressa por meio de diversos recursos mórficos e/ou ... Toda

112 Castelar de Carvalho

pregados. Repare-se que os adjetivos estão colocados antes dos substantivos, o que lhes realça a conotação afetiva).

Era uma mulher de quarenta anos, italiana, morena e magra, com grandes olhos sonsos e agudos. (“A cartomante”, VH. Caracterização descritiva iniciada pela preposição com. O adjetivo grandes, anteposto ao substantivo, realça o tipo de olhos da personagem. Em olhos sonsos, Machado criou uma hipálage a partir de uma metonímia (olhos, a parte pelo todo; sonsa, na verdade, é a cartomante), cujo objetivo é enfatizar o lado moral da personagem, melhor dizendo, sua charlatanice. O adjetivo agudos, colocado depois do substantivo olhos, destaca a capacidade de penetração psicológica da esperta cartomante).

Que lhe salvasse a mulher, e prometia-me trezentos, – não menos, – trezentos padre-nossos e trezentas ave-marias. E repetia enfático: tre-zentos, trezentas, trezentos... (“Entre santos”, VH. O papel de intensificador é desempenhado pelo numeral adjetivo trezentos e sua reiteração. Note-se que o próprio narrador chama a atenção para esse valor do numeral, ao fazer o se-guinte comentário metalinguístico: “E repetia enfático”. As reticências depois do numeral sugerem que a ladainha do avarento Sales era interminável, na sua ânsia de conquistar a benevolência do santo protetor para a sua súplica. O per-sonagem prometia rezar até mil orações, promessa fácil de fazer e de cumprir, porque não custa nada. O que o apavorava, na verdade, era ter de gastar um centavo que fosse comprando velas ou fazendo doações à igreja).

O dia estava lindíssimo. Não era só um domingo cristão; era um imenso domingo universal. (“Uns braços”, VH. O emprego do superlativo lindíssimo, do artigo indefinido um, com valor intensivo, a escolha e colocação dos inusi-tados adjetivos imenso e universal, tudo isso contribui para intensificar, para realçar a beleza do dia contemplado pelo adolescente Inácio. A propósito, no próprio título do conto, já se percebe o valor intensivo do artigo indefinido: “Uns braços” = Que braços!, Que belo par de braços!).

– Não é muito, dez libras só; é o que a avarenta de sua mulher pôde arranjar, em alguns meses. (DC, CVI. Capitu conseguiu economizar uma parte do dinheiro que Bentinho lhe dava para as despesas. O adjetivo avarenta, substantivado e seguido da preposição de, realça a iniciativa da personagem. Na verdade, trata-se de uma antífrase, pois o que Capitu quis enfatizar é que ela foi econômica, e não propriamente avarenta. Naturalmente, esse adjetivo substantivado, no contexto do diálogo, apresenta certo humor irônico e uma dose de autoelogio de Capitu).

Page 3: processo verbal. Pode ser expressa por meio de diversos ...llp.bibliopolis.info/confluencia/pdf/158.pdf · Pode ser expressa por meio de diversos recursos mórficos e/ou ... Toda

113Processos de Intensificação Expressiva em Machado de Assis

2) Advérbios

Quintília conversava comigo mais largamente e mais intimamente, a tal ponto que chegou a correr que nos casávamos. (“A desejada das gentes”, VH. O advérbio pode servir de intensificador do próprio advérbio, como se vê nos sintagmas destacados em itálico, em que mais tem valor intensivo. A repetição dos advérbios terminados em -mente, ligados pela conjunção e, en-fatiza a informação de que a esquiva personagem Quintília dava uma atenção especial ao narrador).

Toda a gente emigrou [saiu da sala], e andando é que se podia ver bem como era graciosa a filha do escrivão. (“O diplomático”, VH. Os advérbios bem e como são determinantes, respectivamente, de um verbo (ver) e de um adjetivo: graciosa. O primeiro tem valor modal; o segundo, intensivo).

“– Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada...?”. (“Um apólogo”, VH. Neste caso, o pronome indefinido toda, convertido em advérbio, tem o sentido de “completamente” e intensifica dois adjetivos: cheia e enrolada. O advérbio, em princípio, é uma palavra invariável, mas, em casos como este, costuma ocorrer a concordância atrativa do advérbio com o adjetivo, por isso toda está no feminino singular).

No que eles estavam todos de acordo é que ela era extraordinariamente bela. (“A desejada das gentes”, VH. O advérbio em itálico, de base adjetiva, foi empregado em sua função básica: a de intensificador do adjetivo, atribuindo-lhe grau superlativo: “ela era belíssima”. O fato de a beleza da personagem ser excepcional fica bastante realçado pelo tipo de advérbio escolhido por Machado de Assis. Sua estrutura mórfica encorpada também contribui para enfatizar o processo de intensificação superlativa).

Aqui o demônio da avareza sugeria-lhe uma transação nova, uma troca de espécie, dizendo-lhe que o valor da oração era superfino e muito mais excelso que o das obras terrenas. (“Entre santos”, VH. Neste exemplo, o advérbio mais intensifica o adjetivo excelso; muito, por sua vez, intensifica o advérbio mais. Dupla intensificação, de primeiro e segundo graus).

Cogitou (...) se a crise política e pessoal, tão dura de roer agora, não teria algum dia tanto valor como os velhos diários. (“Papéis velhos”, PR. Na expressão tão dura de roer, o advérbio de intensidade tão e o infinitivo passivo roer [de ser roída] enfatizam o valor superlativo do adjetivo dura: “a crise era duríssima”).

Page 4: processo verbal. Pode ser expressa por meio de diversos ...llp.bibliopolis.info/confluencia/pdf/158.pdf · Pode ser expressa por meio de diversos recursos mórficos e/ou ... Toda

114 Castelar de Carvalho

3) Pronomes

Que de lágrimas verteu por ele! Que de maldições lhe saíram do co-ração contra os pais. (“Mariana”, VH. Machado gostava de usar, em frases exclamativas, esse pronome indefinido intensificador que de (= quantos, quan-tas), de sabor clássico, mas já em desuso em sua época).

Estava tão bem! falava-lhe com tanta amizade! (“Uns braços”, VH. O papel intensificador do pronome indefinido tanta é realçado pela entonação exclamativa da frase).

Boa e patusca viúva! Com que alma e diligência arranjou ali umas danças, logo depois do jantar, pedindo ao Pestana que tocasse uma quadri-lha! (“Um homem célebre”, VH. Aqui também o valor intensivo do pronome indefinido que (quanta) é enfatizado pelo tom exclamativo da frase. Note-se que os adjetivos boa e patusca também exercem papel intensificador, no caso, enfatizando o temperamento alegre e descontraído da referida viúva).

As sovas de meu pai doíam por muito tempo. (“Conto de escola”, VH. O pronome indefinido muito é um intensificador do substantivo tempo. Nesse sintagma, Machado nos transmite uma informação importante a respeito dos métodos brutais então empregados na educação das crianças).

4) Prefixos (atualmente, há uma tendência para o emprego do superlativo prefixal: supersensível, ultrafácil; nos textos machadianos pesquisados, os exemplos são raros)

Aqui o demônio da avareza sugeria-lhe uma transação nova, uma troca de espécie, dizendo-lhe que o valor da oração era superfino. (“Entre santos”, VH. Um dos poucos exemplos de intensificação prefixal em Machado de Assis. O prefixo super- impregna o adjetivo de valor superlativo: superfino = finíssimo).

O credor era arquimilionário, não dependia daquela quantia. (DC, LXXX. Outro caso de superlativação por meio de prefixo: arquimilionário = riquíssimo, ou melhor, milionaríssimo).

5) Sufixos (o mais comum é -íssimo; -rimo, erudito, é mais raro; comparan-do-se com o superlativo analítico (muito rico), o sintético (riquíssimo) pare-ce ter mais força expressiva; o diminutivo -inho também pode apresentar valor intensivo, inclusive junto a advérbios: pertinho, juntinho)

Eram tantos os castelos que [meu pai] engenhara, tantos e tantíssimos os sonhos, que não podia vê-los assim esboroados, sem padecer um forte abalo no organismo. (BC, XLIV. O pai de Brás Cubas sonhava casá-lo com

Page 5: processo verbal. Pode ser expressa por meio de diversos ...llp.bibliopolis.info/confluencia/pdf/158.pdf · Pode ser expressa por meio de diversos recursos mórficos e/ou ... Toda

115Processos de Intensificação Expressiva em Machado de Assis

Virgília, por interesse. Para enfatizar o ardente desejo do pai, o narrador não vacilou em transgredir a norma gramatical, submetendo ao grau superlativo (tan-tíssimos) o pronome indefinido tanto, que, em princípio, não admite gradação).

Desfiz o embrulho, (...). Cinco contos em boas notas e moedas, tudo asseadinho e arranjadinho, um achado raro. (BC, LII. Do ponto de vista gramatical, os dois diminutivos têm valor intensivo: “tudo muito asseado, muito arranjado”. Do ponto de vista afetivo, enfatizam o contentamento de Brás Cubas com o seu achado: um pacote contendo cinco contos de réis).

José Dias desculpava-se: “Se soubesse, não teria falado, mas falei pela veneração, pela estima, pelo afeto, para cumprir um dever amargo, um dever amaríssimo...”. (DC, III. A forma erudita amaríssimo (amarissimus, a, um) é o superlativo absoluto sintético do adjetivo “amargo” (a forma corrente é amarguíssimo). A forma portuguesa amargo resulta da evolução do latim vulgar *amaricus (forma hipotética), uma vez que o adjetivo no latim clássico era amarus, a, um. Note-se que Machado contrapõe o vernáculo amargo, no grau positivo, ao seu superlativo erudito amaríssimo, estilizando a fala do personagem, como era do seu costume).

– Deixe a sua fisiologia usual; este caso é particularíssimo. (“A desejada das gentes”, VH. Com efeito, o caso justifica o uso do superlativo “particula-ríssimo”: a personagem Quintília tinha aversão ao sexo. Confira o leitor lendo o conto na íntegra).

Naquele muro aspérrimo brotou uma flor descorada e sem cheiro, mas flor. (“Entre santos”, VH. A forma aspérrimo é o superlativo erudito de áspero, do latim asper).

Sílvia caminhará agora ao pé de Sílvio, no sermão que o cônego vai pregar um dia destes, e irão juntinhos ao prelo. (“O cônego ou metafísica do estilo”, VH. Neste caso, o sufixo diminutivo -inho tem valor superlativo. O adjetivo juntinhos, predicativo do sujeito, apresenta afinidade semântico--sintática com o advérbio correspondente: juntíssmos).

– A última vez que a vi achei-a frescalhona. (“Mariana”, VH. O grau aumentativo também se presta a exprimir o grau superlativo, como se vê neste exemplo).

Podia ser algum negócio grave e gravíssimo. (“A cartomante”, VH. É um estilema machadiano usar um adjetivo e depois repeti-lo, enfaticamente, no grau superlativo, como fez o autor neste exemplo).

Já perto de casa viu vir dois homens; um deles, passando rentezinho com o Pestana. (“Um homem célebre”, VH. Outro exemplo de advérbio no grau superlativo, expresso pelo sufixo diminutivo -inho).

Page 6: processo verbal. Pode ser expressa por meio de diversos ...llp.bibliopolis.info/confluencia/pdf/158.pdf · Pode ser expressa por meio de diversos recursos mórficos e/ou ... Toda

116 Castelar de Carvalho

6) Repetição (reiteração do adjetivo, advérbio ou verbo)

Camilo (...) teve assim uma sensação do futuro, longo, longo, intermi-nável. (“A cartomante”, VH. A repetição intensiva do adjetivo longo é enfatizada por outro adjetivo do mesmo campo semântico: interminável. Quando chegamos ao desfecho trágico do conto, com o assassinato de Camilo e Rita, é que nos damos conta de que essa frase do narrador Machado de Assis está impregnada de amarga ironia. Com efeito, um futuro longo e interminável, representado pela morte, esperava o infeliz personagem).

Fortunato, à porta, onde ficara, saboreou tranquilo essa explosão de dor moral que foi longa, muito longa, deliciosamente longa. (“A causa secre-ta”, VH. Maria Luísa acabara de falecer. Fortunato, seu marido, surpreende o amigo Garcia, em prantos, beijando o cadáver da falecida. Naquele momento, teve a percepção de que o amigo amava sua esposa. Mas, em vez de se irritar, enciumado, sente um mórbido prazer em presenciar a dor de Garcia. A repetição do adjetivo longa, intensificado por dois advérbios, descreve minuciosamente a reação de Fortunato: um misto de sadismo e de vingança, um prazer íntimo imenso, requintado, com que o sádico personagem “saboreou” o sofrimento do amigo. Atente-se para o papel do advérbio deliciosamente: ele intensifica e, ao mesmo tempo, modaliza o adjetivo longa, ao descrever, do ponto de vista do personagem, a sensação de sádico prazer por ele experimentada. Note-se tam-bém que o sintagma nominal “deliciosamente longa” pode ser desdobrado em “deliciosa e longa”, em que o primeiro adjetivo apresenta afinidade semântica com o verbo empregado por Machado: “saboreou”).

No dia seguinte, estando na repartição, recebeu Camilo este bilhete de Vilela: “Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te”. (“A cartomante”, VH. A reiteração intensiva do advérbio já expressa a ansiedade de Vilela em acertar contas com seu rival. Como sabemos, Camilo não foi “já, já”, mas acabou indo. O que a charlatã da cartomante fez, com suas “predições”, foi empurrá-lo para a morte. No final, trágico, os dois amantes (Camilo e Rita) acabaram assassi-nados pelo marido traído).

Manso e manso, entrou-lhe o amor no coração. (“A causa secreta”, VH. Um primor de frase machadiana, concisa, elegante e altamente expressiva. Vá-rios de seus traços estilísticos estão aqui presentes. Comecemos pelo binarismo: a reiteração do adjetivo manso (tranquilo, sereno; sua escolha não foi casual), no papel de advérbio, descreve como o sentimento de amor por Maria Luísa foi sutilmente tomando conta do coração de Garcia. A conjunção e, ligando os dois advérbios, contribui para intensificar essa idéia de ação suave, lenta, pro-

Page 7: processo verbal. Pode ser expressa por meio de diversos ...llp.bibliopolis.info/confluencia/pdf/158.pdf · Pode ser expressa por meio de diversos recursos mórficos e/ou ... Toda

117Processos de Intensificação Expressiva em Machado de Assis

gressiva. Note-se a perícia estilística do mestre Machado de Assis: topicalizou o adjunto adverbial, deslocando-o para o início da frase, e colocou o sujeito depois do verbo, deixando nos extremos da frase o que ele queria realçar: o processo verbal progressivo e o importante substantivo coração. O animismo de que está impregnado o substantivo abstrato amor concretiza esse sentimento e realça sua condição de sujeito do verbo de movimento entrar. A par disso, criou um verso alexandrino perfeito: doze sílabas métricas, com hemistíquio na 6ª sílaba, como é de praxe nesse tipo de verso. O emprego do pronome lhe (= seu), com valor possessivo, também é um signo de concisão frasal. Com um mínimo de recursos linguísticos, Machado consegue produzir um máximo de expressividade e beleza. Não é por acaso que ele é o maior escritor da literatura brasileira. Não é por acaso que seus leitores o admiramos tanto).

Um nevoeiro cobriu tudo, – menos o hipopótamo que ali me trouxera, e que aliás começou a diminuir, a diminuir, a diminuir, até ficar do tamanho de um gato. (BC, VII. Reiteração intensiva do verbo com noção de aspecto progressivo descendente. O aspecto é uma categoria gramatical que diz respeito à duração do processo verbal).

Ela tossia, tossia, e não se passou muito tempo que a moléstia não tirasse a máscara. (“A causa secreta”, VH. A reiteração intensiva da forma verbal tossia, com noção de continuidade, expressa o avanço inexorável da doença (a tísica, “velha dama insaciável”) que haveria de matar a trágica per-sonagem Maria Luísa).

7) Frases feitas (com valor superlativo; às vezes baseia-se na comparação)

A área que havia no centro da casa era cercada de gaiolas de canários, que faziam cantando um barulho de todos os diabos. (DC, XV. Note-se o emprego da preposição de com valor comparativo: “um barulho semelhante ao produzido por todos os diabos”, ou seja, “um barulho infernal”. A comparação intensiva tem conotação hiperbólica).

“O diabo não é tão feio como se pinta” (Título do capítulo XCII de Dom Casmurro. Sendo negativa, a frase feita funciona como uma espécie de intensificação atenuada).

Era uma pilhéria do Calisto, feio como o diabo [feiíssimo]. (“O diplo-mático”, VH).

No oitavo dia, entrei na vida dos meus predecessores, uma vida de cão. (“O enfermeiro”, VH. Note-se o valor comparativo da preposição de: “uma vida de cão” = semelhante à de cão).

Page 8: processo verbal. Pode ser expressa por meio de diversos ...llp.bibliopolis.info/confluencia/pdf/158.pdf · Pode ser expressa por meio de diversos recursos mórficos e/ou ... Toda

118 Castelar de Carvalho

Não tarda o sol do outro dia, um sol dos diabos, impenetrável como a vida. (“O enfermeiro”, VH).

– Qual austero! Já morreu [o coronel], acabou; mas era o diabo. (“O enfermeiro”, VH).

Esse Curvelo era um pouco levado do diabo. (“Conto de escola”, VH).

8) Comparações (geralmente com valor superlativo; processo muito explo-rado por Machado de Assis).

Uma e outra [a agulha e a linha] iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana [agilíssimos] – para dar a isto uma cor poética. (“Um apólogo”, VH. A comparação é perfeita. Os galgos são cães de caça, ágeis e velozes, e Diana é a deusa dos caçadores na mitologia grega. O comentário metalinguístico de Machado de Assis, no final da frase, realça ainda mais a comparação intensiva feita por ele).

Não tarda o sol do outro dia, um sol dos diabos, impenetrável como a vida. (“O enfermeiro”, VH, A comparação da vida com algo impenetrável deixa transparecer, por trás do discurso do personagem-narrador, o dedo filosófico de Machado de Assis).

– Achei-os, porém, tão unidos como se fossem noivos. (“Mariana”, VH. A locução como se torna a comparação hipotética, mas não lhe retira o valor superlativo: tão unidos como ... = unidíssimos).

Opinião pânica e falsa, falsa como Judas e outros diamantes. (“O cônego ou metafísica do estilo”, VH. Note-se a ironia machadiana: não satisfeito em res-saltar a falsidade de Judas, ainda sapeca-lhe uma metáfora mordaz: diamante).

– Que ele é usurário e avaro não o nego; usurário, como a vida, e ava-ro, como a morte. (“Entre santos”, VH. Comparações altamente expressivas. De fato, a vida, às vezes, nos cobra juros altíssimos, e a morte, depois que nos subtrai a existência, não a devolve mais. A antítese vida/morte contribui para realçar o processo intensificador expresso pela comparação).

– Ele pediu a sua mãe que o deixasse trazer consigo, e ela, que é boa como a mãe de Deus, consentiu. (DC, XXV. Frase de José Dias, o homem dos superlativos. Aqui, preferiu recorrer a uma comparação, mas geralmente ele usa a derivação sufixal. No caso, diria: “ela é boníssima”).

Capitu era tudo e mais que tudo. (DC, CXIII. Comparação intensificadora usada por Bentinho para realçar seu amor por Capitu. Depois, iria bani-la de sua vida, corroído pelo ciúme delirante).

Page 9: processo verbal. Pode ser expressa por meio de diversos ...llp.bibliopolis.info/confluencia/pdf/158.pdf · Pode ser expressa por meio de diversos recursos mórficos e/ou ... Toda

119Processos de Intensificação Expressiva em Machado de Assis

9) Correlação consecutiva (a oração subordinada consecutiva intensifica a qualidade ou a ação enunciada na oração principal; a estrutura correlati-va geralmente apresenta valor superlativo)

Fiquei tão alegre com esta ideia, que ainda agora me treme a pena na mão. (DC, II. Vale dizer: ”fiquei alegríssimo”).

Escrevo todas as noites que é um desespero. (DC, XIV. A correlação intensifica o processo verbal: “escrevo que é um desespero” = escrevo deses-peradamente).

Rangel ouviu isto com singular deleite; a voz era tão doce, a expressão tão amiga, que ele esqueceu tudo. (“O diplomático”, VH. Note-se o valor superlativo da correlação: “voz tão doce que...; expressão tão amiga que...” = voz dulcíssima; expressão amicíssima).

Quintília mostrou-se-lhe tão graciosa, que ele cuidou estar aceito. (“A desejada das gentes”, VH. Outro caso de correlação superlativa: “tão graciosa que...” = graciosíssima).

Era nada menos que uma briga com o marido, tão violenta, que chegaram a falar de separação. (“D. Paula”, VH. Entenda-se: “tão violenta que...” = violentíssima).

10) Superlativo relativo

A ilustre dama, no fim de dois meses, achou-se a mais desgraçada das mulheres. (“O Alienista”, III, PA).

– Estou risonha e alegre, tudo porque o melhor dos homens entrou nesta sala. (“Mariana”, VH).

– Chamava-se Quintília? Conheci de vista (...) uma linda moça com esse nome. Diziam que era a mais bela da cidade. (“A desejada das gentes”, VH).

Ele mesmo o declarou ao vigário, acrescentando que eu era o mais simpático dos enfermeiros que tivera. (“O enfermeiro”, VH).

Custa-me dizer que eu era dos mais adiantados da escola. (“Conto de escola”, VH).

11) Superlativo absoluto (v. “Sufixos”, item 5)

12) Superlativo hebraico (ou bíblico)

Trata-se de uma fórmula sintática de realce, usada na Bíblia, para indicar excelência em alto grau. Serve de exemplo o epíteto “o Mestre dos Mestres”,

Page 10: processo verbal. Pode ser expressa por meio de diversos ...llp.bibliopolis.info/confluencia/pdf/158.pdf · Pode ser expressa por meio de diversos recursos mórficos e/ou ... Toda

120 Castelar de Carvalho

usado após o nome de Jesus Cristo. Machado de Assis, autor cujo estilo é marcado pela sobriedade, usa com moderação esse tipo de superlativo. Nos exemplos abaixo, destacamos em itálico o superlativo hebraico.

Agora, a verdade última, a verdade das verdades, é que já me arre-pendia de haver falado a minha mãe antes de qualquer trabalho efetivo por parte de José Dias. (DC, XLII. Bentinho, ansioso para se livrar do semi-nário, foi falar com D. Glória antes da intervenção diplomática de José Dias, defensor de sua causa. Agora, usa um superlativo hebraico para enfatizar seu arrependimento).

Nunca dos nuncas poderás saber a energia e obstinação que empreguei em fechar os olhos, apertá-los bem, esquecer tudo para dormir, mas não dormia. (...). Sobre a madrugada, consegui conciliá-lo [o sono], mas então nem peraltas, nem bilhetes de loteria, nem sortes grandes ou pequenas, – nada dos nadas veio ter comigo. (DC, LXIII. Com a finalidade estilística de enfatizar o sonho angustiante que Bentinho tivera, Machado de Assis, o ghost writer por trás do narrador, não hesitou em cometer um desvio gramatical, sub-metendo ao grau superlativo o advérbio nunca e o pronome indefinido nada).

E bem, qualquer que seja a solução, uma coisa fica, e é a suma das sumas, ou o resto dos restos, a saber, que a minha primeira amiga e o meu maior amigo, tão extremosos ambos e tão queridos, quis o destino que acabassem juntando-se e enganando-me... A terra lhes seja leve! (DC, CXLVIII. Bentinho enfatiza a suposta traição de Capitu, usando a fórmula superlativa acima destacada. Em sua fantasia delirante, devia considerar-se um rei dos reis, vendo Capitu como uma espécie de Judas Iscariotes. Nos sintagmas “tão extremosos” e “tão queridos”, repare-se que o advérbio tão exerce papel intensivo, e os adjetivos apresentam-se carregados de ironia).

O sorriso parecia chover luz sobre a pessoa amada, abençoada e formosa entre as formosas. (EJ, VI. Era a maneira como Santos via a mulher, Natividade, finalmente grávida depois de dez anos à espera de um filho. Note-se que o verbo intransitivo chover foi usado transitivamente, o que lhe confere valor causativo: “chover luz” = fazer chover luz).

– Vem cá, serpe, fel rasteiro, peçonha das peçonhas, queres tu ser a embaixatriz de teu pai, para reaver as obras de teu pai? (“Adão e Eva”, VH. Frase do diabo dirigida à serpente. O capeta tenta convencer o réptil a penetrar no paraíso e tentar o casal Adão e Eva, fazendo-os comer do fruto proibido. Nessa espécie de contraparódia, Machado muda o final da história, apresentando o casal bíblico como virtuoso, imune às tentações do maligno, e livre, portanto, do famoso “pecado original”).

Page 11: processo verbal. Pode ser expressa por meio de diversos ...llp.bibliopolis.info/confluencia/pdf/158.pdf · Pode ser expressa por meio de diversos recursos mórficos e/ou ... Toda

121Processos de Intensificação Expressiva em Machado de Assis

Conclusão

Os processos de intensificação expressiva, descritos e analisados neste artigo, dão conta da apurada sensibilidade linguística de Machado de Assis. Nosso maior escritor soube explorar, com maestria e em benefício de seu texto narrativo, os recursos de estilística léxica e sintática postos à disposição do escritor pelo sistema linguístico do português. Desse modo, enriqueceu e valorizou a língua literária por ele empregada nas pequenas obras-primas que são os contos aqui citados, a par dos romances pesquisados.

Bibliografia

BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 37. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 1999.

CARVALHO, Castelar de. Dicionário de Machado de Assis: língua, estilo, temas. Rio de Janeiro: Lexikon, 2010.

CUNHA, Celso & CINTRA, Lindley. Nova gramática do português contem-porâneo. 5. ed. Rio de Janeiro: Lexikon, 2009.

LAPA, M. Rodrigues. Estilística da língua portuguesa. 7. ed. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1973.

MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Obra completa (org. Afrânio Couti-nho). 9. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. (3 vols.).

MARTINS, Nilce Sant’Anna. Introdução à estilística. 3. ed. São Paulo: T. A. Queiroz, 2000.

MONTEIRO, José Lemos. A estilística: manual de análise e criação do estilo literário. Petrópolis: Vozes, 2005.

OLIVEIRA, Maria Manuela Moreno de. Processos de intensificação no portu-guês contemporâneo. Lisboa: Centro de Estudos Filológicos, 1962.