primeiro capítulo do livro "guia politicamente incorreto do futebol"

12

Upload: leya-brasil

Post on 14-Mar-2016

223 views

Category:

Documents


6 download

DESCRIPTION

 

TRANSCRIPT

Page 1: Primeiro capítulo do livro "Guia Politicamente Incorreto do Futebol"
Page 2: Primeiro capítulo do livro "Guia Politicamente Incorreto do Futebol"

gastei muito dinheiro em bebida, mulheres e carros velozes. o resto desperdicei.

george best

Miolo - Guia do futebol EMENDADO.indd 11 14/03/14 15:09

Page 3: Primeiro capítulo do livro "Guia Politicamente Incorreto do Futebol"

Miolo - Guia do futebol EMENDADO.indd 14 14/03/14 15:09

Page 4: Primeiro capítulo do livro "Guia Politicamente Incorreto do Futebol"

guia politicamente incorreto do futebol16

char mil

ler

les

Miolo - Guia do futebol EMENDADO.indd 16 14/03/14 15:09

Page 5: Primeiro capítulo do livro "Guia Politicamente Incorreto do Futebol"

ele não é o pai do futebol brasileiro

uma enorme cabeça de girafa, produzida para

um outdoor em três dimensões, e uma igualmente vistosa

bandeira do Bangu Atlético Clube fazem o ateliê de Clé-

cio Régis se destacar entre as casas de uma das muitas e

idênticas ruas de Bangu, subúrbio do Rio de Janeiro. Do

lado de dentro do galpão funciona uma fábrica de sonhos.

Cenários de novela, painéis para divulgação de lançamen-

tos do cinema, alegorias e adereços de escolas de samba,

mascotes oficiais dos Jogos Olímpicos de 2016, decorações

para comerciais de TV… Tudo é construído com cuidado

artesanal e em ritmo industrial, sob supervisão do mais

conceituado cenógrafo do Rio.

Nenhum outro sonho, porém, recebe atenção tão

especial quanto a estátua de 4 metros de altura, encosta-

da em uma parede logo na entrada do ateliê. Um gigante

de resina pintado de bronze, esculpido como se estivesse

Miolo - Guia do futebol EMENDADO.indd 17 14/03/14 15:09

Page 6: Primeiro capítulo do livro "Guia Politicamente Incorreto do Futebol"

guia politicamente incorreto do futebol18

vestindo um uniforme de jogador de futebol. Por se tratar

de um boleiro do fim do século 19, o calção preso por um

cinto desce até a altura dos joelhos e a camisa, comprida,

é percorrida do colarinho até a barra por cordas e botões.

O bigode farto marca o rosto-padrão de um homem da-

quela época.

Sempre que se aproxima da estátua, Clécio Régis a

observa e faz algum retoque. Busca reproduzir com per-

feição a imagem inspirada nas poucas fotos que conseguiu

do personagem, quase todas enviadas digitalmente do ou-

tro lado do Atlântico. O objetivo é fincar o gigante no

marco zero do futebol brasileiro. O herói que trouxe da

Europa a maior paixão nacional homenageado no pedaço

de terra onde tudo começou.

charles miller é o pai da cartolagem

no futebol brasileiro

O número 24 da rua Monsenhor Andrade, no bairro

do Brás, era um pedaço do Império Britânico na São Paulo

de meados do século 19. A chácara da família Miller man-

tinha, nos pequenos detalhes, os hábitos dos súditos da

rainha Vitória na época em que o sol nunca se punha no

Império, dada a extensão de seu território – da costa oeste

da América do Norte às ilhas polinésias, passando por co-

lônias na África e na Ásia.

Nas fotos de família podia-se ver o símbolo da São

Paulo Railway no ombro do patriarca John Miller. Como

mandava a tradição britânica, era de bom tom ostentar o

emblema da empresa em que era empregado no momento

Miolo - Guia do futebol EMENDADO.indd 18 14/03/14 15:09

Page 7: Primeiro capítulo do livro "Guia Politicamente Incorreto do Futebol"

charles miller 19

de posar. Em um retrato solitário, o caçula Charles apa-

recia vestido com um típico kilt escocês. As tardes eram

marcadas pelo pontual chá das cinco, acompanhado de pies

e puddings. Aos domingos, os Miller atravessavam a rua

para rezar com a crescente colônia britânica na St. Paul’s

Church, a primeira igreja anglicana do Brasil. Faltava ape-

nas uma escola em que a nova geração da família pudesse

não só aprender o inglês ancestral, mas também ser educa-

da no mesmo modelo dos pais.1

Justamente por causa dessa carência, John Miller

decidiu mandar os dois filhos homens, John Henry e Char-

les William, estudarem na Inglaterra. Os garotos de 11 e 9

anos, respectivamente, embarcaram com o primo William

Fox Rule no navio Elbe, da Royal Mail Steam Packet Com-

pany Limited, no outono de 1884. Chegaram dois meses

depois a Southampton, sul da Inglaterra, para estudar na

Banister Court School.

As escolas funcionavam não apenas como centros de

ensino, mas também de prática esportiva. As horas livres

eram passadas nos pátios com a prática de diferentes mo-

dalidades. O tradicional críquete ainda arrebatava muitos

adeptos, mas era crescente o interesse pelos recém-criados

rugby football e football association.

As duas modalidades tinham origem semelhante nas

escolas inglesas. Como não havia unificação de regras, em

alguns pátios era permitido o uso das mãos para conduzir

a bola e em outros apenas chutes e cabeceios; em alguns o

ponto era concedido ao chutar a bola entre traves, em ou-

tros, simplesmente ao ultrapassar a linha de fundo com ela

dominada. O número de jogadores também variava: 6, 11,

15, 20… Diferenças que se tornavam um estorvo quando

as tradições britânicas

foram um atraso

para o futebol

inglês. Por décadas

os jogos ficaram

confinados ao

início da tarde

de sábado, para

guardar o domingo

e preservar o chá

das cinco. Nos anos

70, a lei que proibia

eventos dominicais

foi relaxada. A partir

dos anos 90, os

jogos atropelaram o

horário do chá. Hoje,

o futebol inglês é o

mais rico do mundo.

Miolo - Guia do futebol EMENDADO.indd 19 14/03/14 15:09

Page 8: Primeiro capítulo do livro "Guia Politicamente Incorreto do Futebol"

guia politicamente incorreto do futebol20

os alunos de diferentes colégios se encontravam nas uni-

versidades e não conseguiam chegar a um acordo sobre as

normas do jogo.

Em 1863, a Universidade de Cambridge publicou

suas próprias regras, determinando o nascimento formal do

futebol. Advogado e fã de esportes, Ebenezer Cobb Morley

reuniu clubes onde a modalidade era praticada e criou a

Associação Inglesa, amealhando aqueles que se propunham

a jogar segundo os preceitos estipulados em Cambridge. Um

dos clubes, o Blackheath, discordou das regras e preferiu

juntar-se à corrente que consolidaria o rúgbi.

A escola de Banister aderiu ao jogo normatizado por

Cambridge e popularizado no sul da Inglaterra pelo St.

Mary’s. O clube criado nos corredores da associação cristã

de moços da cidade foi um dos mais populares do início do

futebol. No fim do século 19, venceu seis de sete edições da

Southern League, a liga do sul da Inglaterra.

O ambiente futebolístico conquistou rapidamente

Charles Miller. A habilidade com a bola no pé fez um dos

professores da Banister Court School recomendar ao trei-

nador do St. Mary’s, entre os vários garotos bons de bola

da escola, “um chamado Charles Miller, que veio do Brasil

e parece ter nascido para esse jogo. Um raro talento, ouro

puro. É um artilheiro nato e recomendo sua escalação. Não

vai se arrepender”.2

O treinador de St. Mary’s escalou Charles Miller e

não se arrependeu. Logo na estreia, o brasileiro marcou um

gol na vitória por 3 a 1 sobre a equipe do Quartel de Alder-

shot, em abril de 1892. Miller voltaria a campo dois dias de-

pois, contra o Corinthian inglês. E seria presença assídua no

time até decidir voltar para o Brasil, depois de dez anos de

conhecida

mundialmente

pela indefectível

sigla YMCA (Young

Men’s Christian

Association), a

Associação Cristã

de Moços, além de

ajudar a difundir o

futebol, teve papel

preponderante no

surgimento de três

outras modalidades:

o basquete, nos

Estados Unidos, em

1891; o vôlei, em

1895, também nos

Estados Unidos;

e o futsal, no

Uruguai, em 1930.

Miolo - Guia do futebol EMENDADO.indd 20 14/03/14 15:09

Page 9: Primeiro capítulo do livro "Guia Politicamente Incorreto do Futebol"

charles miller 21

Inglaterra – não sem receber uma homenagem da escola. O

anuário da Banister Court School, relativo a 1894, publicou:

Charles Miller não foi somente um esplêndido jogador, mas or-

ganizou todas as atividades esportivas da escola até o dia de em-

barcar. Também se interessou muito pela organização do futebol

do Condado de Hampshire. Essa eficiência, ou melhor, altruísmo

e perseverança, é o que leva um homem a ter sucesso na vida.3

O futebol havia conquistado Charles Miller. Quando

deixou Southampton em 24 de setembro de 1894, não es-

tava apenas formado academicamente como desejava uma

década antes seu pai, agora morto – estava formado como

jogador e dirigente de futebol. A Inglaterra nos devolveu

não só o primeiro jogador brasileiro, mas também o primei-

ro cartola. Na bagagem, seus diplomas: um livro de regras,

uma camisa da Banister Court School, outra do St. Mary’s,

duas bolas de capotão, um par de chuteiras e uma bomba de

ar para encher bolas. Na sua cabeça, seguiria a prática nor-

mal do futebol. Tinha certeza de que o esporte já havia che-

gado ao Brasil a bordo de algum navio da Mala Real Inglesa.

O cenário encontrado em São Paulo, porém, era bem

diferente. A comunidade britânica no Brasil conhecia o

futebol, mas ainda preferia o críquete como lazer. Miller

começou um processo de catequização. Aos sábados, reu-

nia amigos e colegas de trabalho para ensinar o beabá do

esporte: chutes, cobrança de lateral, passes, dribles, mar-

cação. Os melhores da peneira de Charles Miller eram cha-

mados para o time da São Paulo Railway – os pernas de pau

continuavam na escolinha, até aprender ou reconhecer sua

ruindade e desistir. O time da São Paulo Railway entrou em

fosse nos tempos

atuais, Charles Miller

seria recebido

no Brasil por

enlouquecidos

protetores dos

direitos dos animais.

O capotão era um

couro curtido de

vaca, que protegia

uma câmara de ar

feita com bexiga

de boi.

Miolo - Guia do futebol EMENDADO.indd 21 14/03/14 15:09

Page 10: Primeiro capítulo do livro "Guia Politicamente Incorreto do Futebol"

guia politicamente incorreto do futebol22

campo em 14 de abril de 1895, entre as ruas do Gasômetro e

Santa Rosa, para enfrentar o The Gas Works Team, da com-

panhia de gás, no primeiro jogo de futebol registrado no

Brasil. Havia 11 jogadores de cada lado, seguindo as regras

consolidadas pela Universidade de Cambridge, e uma espé-

cie de súmula, com o nome de todos os presentes em campo,

que foi arquivada por Miller, a essa altura uma mistura de

jogador e cartola britânico com um cartorário brasileiro. Foi

uma estreia formal, mas não exatamente a primeira partida

de futebol a ocorrer no Brasil.

Sem charles miller, também seríamos o país do futebol

Charles Miller registrou como seu um jogo que já

existia no Brasil. Algo de que ele mesmo desconfiava. A

Revolução Industrial tinha espalhado pelo mundo milha-

res de britânicos, praticantes do futebol, para trabalhar em

fábricas, ferrovias e no comércio.

Um deles, o professor escocês Alexander Watson

Hutton, desembarcou em Buenos Aires em 1882 com um

livro de regras, bolas, camisas e chuteiras. Como ninguém

por lá sabia o que era esse negócio de football, decidiu or-

ganizar as primeiras partidas por conta própria. Não com

os companheiros de fábrica, mas entre os muros de uma

escola. Em 1893, o lomas athletic club venceria o primeiro

torneio disputado no país.

O curioso é que Hutton viajou a Buenos Aires em

um dos navios do Correio britânico. Todas as embarca-

ções da companhia seguiam o mesmo roteiro a partir da

o primeiro campeão

argentino

estabeleceu um

vigoroso e breve

domínio no futebol.

Foram cinco títulos

até o fechamento

do departamento

de futebol, em 1909.

Hoje, o clube é forte

no críquete, no rúgbi

e no hóquei sobre

grama.

Miolo - Guia do futebol EMENDADO.indd 22 14/03/14 15:09

Page 11: Primeiro capítulo do livro "Guia Politicamente Incorreto do Futebol"

charles miller 23

Grã-Bretanha. Antes de parar na capital argentina, havia

escalas em Santos e no Rio de Janeiro. É difícil acreditar que

em nenhuma dessas paradas, antes da viagem de Hutton

ou desde sua chegada à América do Sul em 1882, nenhu-

ma bola de futebol tenha sido desembarcada em território

brasileiro. Difícil acreditar, não. Impossível. Foram várias

experiências extraoficiais com o futebol no país antes do

marco zero determinado por Charles Miller.

Desde meados do século 19 há registros da prática

do futebol por marinheiros no litoral brasileiro. Ingleses,

franceses e holandeses, a bordo de navios mercantes ou de

guerra, que aproveitavam uma escala ou a chegada ao des-

tino definitivo para bater uma bola. O futebol brasileiro

nasceu da sua mais legítima expressão: dois times improvi-

sados, na beira da praia, time com camisa de um lado, time

sem camisa do outro, linhas riscadas na areia, gols delimita-

dos por pedaços de qualquer coisa e alguns goles de cerveja

na cabeça. Uma pelada legítima, sem dono, sem juiz e sem

cartola. É o futebol de onde nasceriam Leônidas, Pelé, Gar-

rincha, Romário, Neymar e Nelson Rodrigues.

Isso aconteceu pela primeira vez em 1874, no pedaço

de areia em frente a onde hoje fica o Hotel Glória, no Rio de

Janeiro. Quatro anos mais tarde, a tripulação do navio britâ-

nico Crimeia organizou uma pelada em frente ao palácio da

princesa Isabel, em Laranjeiras, zona sul do Rio, com o con-

sentimento de sua alteza. Entre os dois jogos à beira-mar,

em 1875, empregados brasileiros e ingleses de empresas de

navegação, docas, cabos submarinos e bancos enfrentaram-

-se no campo do club brazileiro de cricket, também no Rio.

Em vez de filho de um zeloso pai tupiniquim que

aprendeu sua arte na Inglaterra, com os inventores do jogo,

o aristocrático

críquete nunca

pegou no Brasil,

mas sim uma versão

bem mais simples

e infantil: o bete

ombro ou jogo de

taco. Nos dois, o

objetivo é defender

a casinha da bola

lançada pelo

adversário.

Miolo - Guia do futebol EMENDADO.indd 23 14/03/14 15:09

Page 12: Primeiro capítulo do livro "Guia Politicamente Incorreto do Futebol"

guia politicamente incorreto do futebol24

o futebol brasileiro é filho bastardo de marinheiros euro-

peus que só queriam gastar energia e passar o tempo antes

de se divertir com as exóticas mulheres locais. Uma biogra-

fia surpreendentemente relacionada com a malandragem e

o improviso que, anos depois, virariam a marca do futebol

brasileiro, escondida em prol de outra mais condizente com

a elite brasileira da virada do século 19 para o 20.

Na apresentação do livro de José Moraes dos Santos

Neto, Visão de Jogo: Primórdios do Futebol no Brasil, José

Geraldo Couto escreveu:

Os primórdios do futebol no Brasil sempre estiveram envoltos

nas brumas do mito, de onde emergia a figura impávida e bi-

goduda de Charles Miller, herói meio inglês, meio brasileiro,

que teria trazido da Europa uma bola embaixo de cada braço e

ensinado sozinho o esporte bretão aos nossos compatriotas. Tal

gênese servia como uma luva a determinada visão das origens de

nosso futebol, como produto da ação voluntariosa de uma elite

em contato direto com as fontes britânicas do esporte.4

Calma, seu José, segure a sociologia: talvez o futebol

de Charles Miller tenha sido mais organizado e influente

para o Brasil. Levou as peladas que – Miller não sabia – já

corriam de forma improvisada nas praias para dentro dos

clubes. Conquistou a elite e ajudou a transformar o jogo em

algo incontrolavelmente grande, até formar o país do fute-

bol, que, de um jeito ou de outro, teria existido mesmo sem

ele. Fosse por obra de marinheiros beberrões, fosse por meio

de padres que admiravam o poder moralizante do jogo.

Miolo - Guia do futebol EMENDADO.indd 24 14/03/14 15:09