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PRIMEIRA PARTE Psicologia, Educação e Psicologia da Educação

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PRIMEIRA PARTEPsicologia, Educação

e Psicologia da Educação

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Concepções e tendênciasatuais em psicologia da educaçãoCÉSAR COLL

mento, da aprendizagem e das diferenças in-dividuais, da área da incipiente psicologia cien-tífica; e o reformismo social e a preocupaçãopelo bem-estar humano, do âmbito da políti-ca, da economia, da religião e da filosofia.Como destaca Grinder (1989), as formulaçõesiniciais, em boa medida, são abandonadas nosanos seguintes, nos quais se vai afirmando, soba liderança indiscutível de Edward L. Thorndike,uma fé inquebrantável na ciência psicológicae na potencialidade das pesquisas de laborató-rio para estabelecer as leis gerais da aprendi-zagem. Desse modo, muito rapidamente, des-de as primeiras décadas do século XX, o dis-curso do reformismo social perde relevância,e a psicologia da educação adota uma orien-tação fundamentalmente acadêmica, dirigin-do seus esforços ao estabelecimento dos “parâ-metros fundamentais da aprendizagem”, ao“refinamento de suas elaborações teóricas” eà sua promoção como “disciplina de engenha-ria aplicada” (applied engineering discipline)(Grinder, 1989, p. 13).

Essa visão da psicologia da educaçãocomo engenharia psicológica aplicada à edu-cação é preponderante durante a primeirametade do século XX. Pelo menos até finais dosanos de 1950, e com base em uma fé inque-brantável na nova psicologia científica, a psi-cologia da educação aparece como a discipli-na com maior peso na pesquisa educacional,como a disciplina “mestra” (Grinder, 1989),como a “rainha das ciências da educação”(Wall, 1979). Tal protagonismo, porém, come-ça a atenuar-se a partir dos anos de 1960.Múltiplas razões explicam o fato: a perda deunidade e coerência interna como conseqüên-

INTRODUÇÃO

A existência da psicologia da educaçãocomo uma área de conhecimento e de saberesteóricos e práticos claramente identificável, re-lacionado com outros ramos e outras especia-lidades da psicologia e das ciências da educa-ção, mas ao mesmo tempo distintos delas, temsua origem na crença racional e na convicçãoprofunda de que a educação e o ensino podemmelhorar sensivelmente com a utilização ade-quada dos conhecimentos psicológicos. Tal con-vicção, que tem suas raízes nos grandes siste-mas de pensamento e nas teorias filosóficas an-teriores ao surgimento da psicologia científi-ca, foi objeto de múltiplas interpretações. Defato, por trás do acordo generalizado de que oensino pode melhorar sensivelmente, se foremaplicados corretamente os princípios da psico-logia, existem profundas discrepâncias quantoaos princípios que devem ser aplicados, em queaspecto ou aspectos da educação devem serusados e, de maneira muito particular, o quesignifica exatamente aplicar de maneira corre-ta à educação os princípios da psicologia.

Um olhar histórico à psicologia da edu-cação mostra com clareza que essas diferentesinterpretações balizaram sua evolução ao lon-go do século XX, contribuindo de forma deci-siva para sua configuração atual. Nas formula-ções de muitos de seus precursores e primei-ros impulsores (William James, G. Stanley Hall,J. McKeen Cattel, John Dewey, Charles H.Hudd, Eduard Claparède, Alfred Binet, etc.), apsicologia da educação era o resultado da con-vergência de dois âmbitos de discurso e doistipos de problemáticas: o estudo do desenvolvi-

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cia de seu próprio êxito e de sua expansãoincontrolada, que a leva a ocupar-se de prati-camente qualquer tema ou aspecto relaciona-do com a educação e a procurar resolver qual-quer problema educacional; a coexistência dediversas escolas de pensamento e de teoriasexplicativas da aprendizagem, do desenvolvi-mento e do psiquismo humano em geral, quepõem em questão a capacidade da psicologiacientífica para chegar a um conhecimento ob-jetivo, unificado, empiricamente contrastadoe amplamente aceito; a tomada de consciên-cia da complexidade da educação como áreade aplicação do conhecimento psicológico e dainfinidade de fatores e processos heterogêne-os presentes em qualquer atividade educacio-nal; o surgimento e o desenvolvimento de ou-tras ciências sociais e a evidência do interessee da relevância de suas contribuições para aeducação e o ensino; etc. O que começa a semanifestar nos anos de 1960 é uma “rachadu-ra” da fé na capacidade da psicologia para fun-damentar cientificamente a educação e o ensi-no, o que leva, por sua vez, a questionar a visãoda psicologia da educação como engenharia psi-cológica aplicada vigente desde os tempos deThorndike, isto é, como disciplina encarregadade transferir os conhecimentos psicológicos àeducação e ao ensino a fim de proporcionar-lhes fundamentação e caráter científicos.

Essa mudança terá enormes repercussõespara o desenvolvimento posterior da psicolo-gia da educação. Por um lado, significará, amédio prazo, a perda definitiva de um prota-gonismo absoluto no campo da educação.Como assinalam Casanova e Berliner (1997),a psicologia da educação, que entra no séculoXX ocupando uma posição predominante nopanorama da pesquisa educacional, chega aoseu final compartilhando esse espaço com ou-tras ciências sociais e da educação que, muitasvezes, são tanto ou mais valorizadas que elapara abordar os problemas educacionais emelhorar a educação. Por outro lado, obriga-aa questionar seus pressupostos básicos, seusprincípios fundamentais, sua maneira tradicio-nal de abordar as questões e os problemas edu-cacionais, seu alcance e sua limitação para pro-porcionar uma base científica à educação e aoensino, em suma, sua missão como área de co-nhecimento claramente identificável, ao mes-

mo tempo estreitamente relacionada com ou-tras, mas distinta delas.

Os olhares críticos e autocríticos se mul-tiplicam, assim como as propostas programá-ticas sobre como enfrentar uma crise de iden-tidade, latente desde seu início, que já não épossível continuar ignorando. Desse modo, portrás da unidade de propósitos de contribuirpara uma melhor compreensão da educação edo ensino e para uma melhoria das práticaseducacionais com a ajuda da psicologia, o queaparece na realidade é uma diversidade de for-mulações, de propostas e, inclusive, de manei-ras de conceber a natureza, os objetivos e asprioridades da psicologia da educação comoárea de conhecimento. Todos os autores quetrataram da história e da epistemologia da psi-cologia da educação ao longo das últimas dé-cadas (ver, por exemplo, Glover e Ronning,1987; Grinder, 1989; Sheurman e outros,1993; Salomon, 1995; Calfee e Berliner, 1996;Hilgard, 1996) coincidem em um mesmo pon-to: a diversidade de formulações e critérios, enão a unidade, é uma de suas característicasmais evidentes. A título de ilustração, podemser úteis as impressões formuladas há poucoapenas pelos editores de um livro dedicado arevisar sua história e a traçar suas perspecti-vas de futuro de forma monográfica:

Retrospectivamente, parece que tínhamos

feito uma leitura incorreta do campo [da

psicologia da educação] quando começa-

mos a trabalhar neste volume. Isto é, pre-

sumíamos que a psicologia da educação

era um campo muito mais coerente e que

estava definido com muito maior preci-

são do que realmente é. Na realidade, é

escasso o acordo sobre o que é a psicolo-

gia da educação e quem ou o que são os

psicólogos da educação (Glover e Ronning,

1987, p. vii).

Nesse contexto geral de diversidade deformulações e critérios, o estado atual da psi-cologia da educação está fortemente marca-do, a meu ver, por três fatores. Em primeirolugar, a reconsideração em profundidade, a queestamos assistindo há alguns anos, das funçõese das finalidades da educação em geral, e daeducação escolar em particular, assim como a

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revisão crítica da velha aspiração de construiruma teoria e uma prática educacionais sobrebases científicas. Em segundo lugar, a emer-gência e a aceitação crescente de novos con-ceitos e enfoques teóricos em psicologia do de-senvolvimento, em psicologia da aprendizageme, muito particularmente, em psicologia da edu-cação e do ensino. E, em terceiro lugar, a mu-dança de perspectiva adotada progressivamen-te no transcurso das últimas décadas, a partirdo final dos anos de 1960 aproximadamente,com relação à própria natureza das relaçõesentre psicologia e educação e ao tipo de con-tribuições ou de aportes que a primeira podefazer legitimamente à segunda.

Neste capítulo, passarei em revista as con-cepções e as tendências atuais da psicologiada educação, dando atenção fundamentalmen-te aos dois últimos fatores, e só se fará mençãoao primeiro, de forma colateral, quando pare-cer adequado para facilitar e reforçar a com-preensão dos argumentos apresentados. No se-guinte, começo destacando algumas tensõessubjacentes à configuração da psicologia daeducação e se verá como se concretizam, emboa medida, em pontos de vista distintos so-bre as relações entre o conhecimento psicoló-gico e a teoria e a prática educacionais. To-mando como base dois pontos de vista contrá-rios sobre tais relações, dedicarei o restante dosegundo item a apresentar, com algum deta-lhe, as duas grandes concepções atuais da psi-cologia da educação: a que a concebe comoum mero campo de aplicação da psicologia; ea que a vê como uma disciplina-ponte de natu-reza aplicada que se encontra no meio do ca-minho entre a psicologia e a educação. As duasconcepções coincidem em afirmar que a psico-logia da educação tem a ver com a utilização ea aplicação do conhecimento psicológico à edu-cação e ao ensino, mas diferem radicalmentena maneira de conceber e formular essa utili-zação e essa aplicação. Dedicarei o terceiro itema comentar tais diferenças. Já situados na al-ternativa da psicologia da educação como dis-ciplina-ponte de natureza aplicada, o quartoitem especifica seu objeto de estudo, seus con-teúdos e sua vinculação com algumas áreas deatividade científica e profissional. Por último,e a fim de completar a aproximação dos itensprecedentes, orientados sobretudo a especifi-

car suas coordenadas epistemológicas no con-texto mais amplo das disciplinas psicológicase educacionais, concluirei o capítulo com umbreve inventário de enfoques, de conceitos ede tendências que exercem, a meu ver, umainfluência destacada no panorama atual da psi-cologia da educação.

OPOSIÇÕES E ALTERNATIVASEM PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO: ASRELAÇÕES ENTRE O CONHECIMENTOPSICOLÓGICO E A TEORIA E APRÁTICA EDUCACIONAIS

Ao longo dos últimos anos produziu-se um

debate substancial entre a disciplina mais

ampla da psicologia e a disciplina da psi-

cologia da educação. Alguns autores ar-

gumentaram que a psicologia da educa-

ção representa uma especialização dentro

da psicologia, similar à que representa a

psicologia cognitiva ou a psicologia soci-

al. Outros argumentaram que a psicologia

da educação é uma disciplina encarrega-

da de aplicar a teoria e os princípios psi-

cológicos a uma classe particular de com-

portamento, principalmente aqueles rela-

cionados com o ensino e a aprendizagem,

geralmente em ambientes educacionais

formais. E outros, ainda, argumentaram

que a psicologia da educação é uma disci-

plina com suas próprias bases teóricas, re-

lacionada com a psicologia, mas indepen-

dente dela (Sheurman e outros, 1993, p.

111-112).

Nesse fragmento, que ilustra a diversi-dade de alternativas na maneira de entendera psicologia da educação, refletem-se tambémalgumas das oposições que subjazem a essaárea de conhecimento: a maior ou menor de-pendência ou independência da psicologia daeducação do âmbito mais amplo da psicolo-gia; a visão da educação como um mero cam-po de aplicação do conhecimento psicológicoou como uma área de estudo e de atividadecom características próprias e específicas, não-redutíveis à simples aplicação do conhecimen-to psicológico; o caráter mais ou menos teóri-co ou aplicado da psicologia da educação e

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maior ou menor ênfase nos componentes teó-ricos e de pesquisa ou nos componentes prá-ticos e profissionais. Essas oposições, ou me-lhor, as diferentes reações e posturas adotadasdiante delas, desembocaram em um amplo le-que de visões, às vezes claramente contrapos-tas, sobre o que é e do que trata, e especial-mente sobre o que deve ser e do que deve tra-tar, a psicologia da educação, como ilustra asérie de definições correspondentes a diferen-tes autores e momentos históricos reunidas noQuadro 1.1.

Embora cada uma dessas oposições tenhasua própria história e matizes singulares, to-das contribuem, em maior ou menor medida,conforme os casos, para perfilar as diferentesconcepções da psicologia da educação, de cer-to modo acabam confluindo no que constitui o

ponto crucial em torno do qual tal diferença seconcretiza e mostra seu verdadeiro alcance esua significação (Coll, 1988a; 1990a; 1998a;1998b): a importância relativa atribuída aoscomponentes psicológicos no esforço para ex-plicar e compreender os fenômenos educacio-nais. De fato, as concepções da psicologia daeducação oscilam desde formulações aberta-mente reducionistas, para as quais o estudo dasvariáveis e dos processos psicológicos é a úni-ca via adequada para proporcionar uma fun-damentação científica à teoria e à prática edu-cacionais, até formulações que questionam deforma mais ou menos radical o papel e a im-portância dos componentes psicológicos, pas-sando logicamente por toda uma gama de for-mulações intermediárias.

QUADRO 1.1 Algumas definições de psicologia da educação

• A eficiência de qualquer profissão depende amplamente do grau em que se torne em científica. A profissão doensino melhorará (1) à medida que o trabalho de seus membros seja presidido por espírito e métodos científicos, istoé, pela consideração honesta e aberta dos fatos, pelo abandono de superstições, suposições e conjeturas não-verificadas e (2) à medida que os responsáveis pela educação passem a escolher os métodos em função dos resul-tados da pesquisa científica, em vez de fazê-lo em função da opinião geral. (E. L. Thorndike [1906]. The principles ofteaching based on psychology. Nova York: Mason-Henry Press. Citado em Mayer, 1999, p. 10-11.)

• [...] O termo “Psicologia da Educação” será interpretado, para nossos propósitos, em um sentido amplo quecobre todas as fases do estudo da vida mental relacionadas com a educação. Desse modo, considerar-se-á que apsicologia da educação inclui não apenas o conhecido campo coberto pelo livro-texto habitual – a psicologia dasensação, do instinto, da atenção, do hábito, da memória, da técnica e da economia da aprendizagem, os processosconceituais, etc. –, mas também temas de desenvolvimento mental – herança, adolescência e o inesgotável campode estudo da criança –, o estudo das diferenças individuais, dos atrasos de desenvolvimento e de desenvolvimentoprecoce, a psicologia da “classe especial”, a natureza dos dotes mentais, a medida da capacidade mental, a psico-logia dos testes mentais, a correlação das habilidades mentais, a psicologia dos métodos especiais nas diversasmatérias escolares, os importantes problemas de higiene mental; todos eles, quer sejam tratados de um ponto devista experimental ou literário, são temas e problemas que nos parecem apropriados considerar em um Journal ofEducational Psychology. (W. C. Bagley, J. C. Bell. C. E. Seashore e G. M. Whipple [1910]. Editorial do primeiro númerodo Journal of Educational Psychology, Citado em Glover e Ronning, 1987, p.5.)

• A psicologia da educação é a aplicação dos métodos e dos fatos conhecidos pela psicologia às questões quesurgem na pedagogia. (K. Gordon, [1917]. Educational Psychology. Nova York: Holt. Citado em Glover e Ronning,1987, p.5.)

• Para concluir, portanto, a psicologia da educação é inequivocamente uma disciplina aplicada, mas não é umapsicologia geral aplicada a problemas de educação – do mesmo modo que a engenharia mecânica não é física geralaplicada a problemas de projeto de máquinas, ou a medicina não é biologia geral aplicada a problemas de diagnósti-co, de cura e de prevenção de doenças humanas. Nestas últimas disciplinas aplicadas, as leis gerais que têm suaorigem na disciplina-mãe não se aplicam ao âmbito dos problemas práticos; existem ramos separados com teoriasaplicadas que são tão básicas como as teorias existentes nas disciplinas de origem, mas que são formuladas em umnível inferior de generalidade e têm mais relevância direta e mais aplicabilidade aos problemas práticos em seusrespectivos campos. (D. P. Ausubel [1969]. “Is there a discipline of Educational Psychology?”. Psychology in theSchools, 6, 232-244. Extraído do original.)

(continua)

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DESENVOLVIMENTO PSICOLÓGICO E EDUCAÇÃO, V.2 23

QUADRO 1.1 (continuação)

• As relações entre a disciplina-mãe e a disciplina aplicada à educação podem apresentar-se sob duas formasdiferentes: ou o campo da educação é considerado apenas como um campo de aplicação dos métodos ou dastécnicas da disciplina-mãe (exemplo: psicologia aplicada à educação), ou ao campo da educação, analisado com osinstrumentos habituais da disciplina-mãe, revelará, em função de sua especificidade própria, problemas novos para oespecialista, problemas cuja solução constituirá uma contribuição original para o conjunto da disciplina. (G. Mialaret[1976]. Les Sciences de l’Éducation. Paris: Presses Universitaires de France, p. 78.)

• Ocorreu algo interessante com a psicologia do ensino. Ela chegou a fazer parte da principal corrente depesquisa sobre a cognição humana, a aprendizagem e o desenvolvimento. Durante cerca de 20 anos foi aumentan-do de forma gradual o número de psicólogos que dedicam sua atenção a questões relevantes para o ensino. Nosúltimos anos, esse aumento se acelerou, de forma que agora é difícil traçar uma linha clara de separação entre apsicologia do ensino e o corpo principal de pesquisa básica sobre processos cognitivos complexos. A psicologia doensino já não é psicologia básica aplicada à educação. É fundamentalmente pesquisa sobre os processos doensino e aprendizagem. (L. B. Resnick [1981]. Instructional Psychologie. Annual Review of Psychology, 32, 659-704. Extraído do original.)

• A psicologia da educação é o campo apropriado para unir a pesquisa e a teoria psicológica ao estudo científicoda educação. [...] A ciência e a profissão da psicologia da educação é o ramo da psicologia comprometido com odesenvolvimento, a avaliação e a aplicação de: (a) teorias e princípios da aprendizagem humana, do ensino e dainstrução; e (b) materiais, programas, estratégias e técnicas baseadas nessas teorias e nos princípios que podemcontribuir para melhorar as atividades e os processos educacionais ao longo da vida. [...] A psicologia da educaçãotem um papel recíproco em psicologia e em educação, visto que contribui para o desenvolvimento da teoria, dapesquisa e do conhecimento nos dois campos. (M. C. Wittrock e F. Farley [1989]. “Toward a blueprint for educationalpsychology”. Em M. C. Wittrock e F. Farley (Eds.), The future of educational psychology (p. 193-199). Hillsdale, N. J.:L. Erlbaum.)

• A psicologia da educação é algo mais que sua prudente definição convencional como “a aplicação de todos oscampos da psicologia à educação”. A psicologia da educação é “o estudo científico da psicologia na educação”. [...]A principal razão para conceber a psicologia da educação como “o estudo científico da psicologia na educação”reside nas acentuadas vantagens dessa concepção para concentrar a pesquisa nos problemas significativos daeducação. [...] A psicologia da educação distingue-se de outros campos da psicologia porque seu objetivo principalé a compreensão e a melhoria da educação. Mas a psicologia da educação também se distingue das outras áreasda pesquisa educacional por causa de sua fundamentação psicológica, de sua ênfase nos alunos e nos professo-res e de sua responsabilidade de contribuir para o desenvolvimento do conhecimento e da teoria em psicologia.(Wittrock, M. C. [1992]. “An empowering Conception of Educational Psychology”. Educational Psychologist, 27, 129-141.Extraído do original.)

• Parece que a meta da psicologia da educação para o seu segundo século é conhecer os educadores tal comosão, no contexto em que trabalham, mediante as múltiplas lentes proporcionadas até agora pela ciência psicológica.Se tem êxito, os psicólogos da educação aumentarão sua compreensão sobre os professores e os estudantes, oensino e a aprendizagem, o contexto social e o currículo nos ambientes escolares reais. Essa seria uma conquistapouco ambiciosa. (U. Casanova e D. Berliner (1997). “La investigación educativa en Estados Unidos: último cuarto desiglo”. Revista de Educación, 312, 43-80.)

Nessa mesma linha de argumentação,Mayer (1999a, p. 9-13) identifica em um tra-balho recente três formas diferentes de conce-ber as relações entre a psicologia – à qual atri-bui a responsabilidade de estudar como as pes-soas aprendem e se desenvolvem – e a educa-ção – cuja essência consistiria, segundo esseautor, em ajudar as pessoas a aprender e a de-senvolver-se. A primeira concebe tais relaçõesoperando em uma única direção – a one-way

street – que vai da psicologia à educação, de ma-neira que os psicólogos devem ocupar-se fun-damentalmente em pesquisar os processos dedesenvolvimento e de aprendizagem e de pôros resultado obtidos ao alcance dos educado-res, sendo estes os responsáveis por aplicá-los àsua atividade docente. A segunda equivale defato a uma ausência de relações – a dead-endstreet – entre os dois campos. Nesse caso, pen-sa-se que os psicólogos devem ocupar-se do

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Deixando de lado a segunda opção assi-nalada por Mayer – cuja consideração detalha-da nos obrigaria a entrar em uma problemáti-ca que ultrapassa os objetivos deste capítulo einclusive do volume do qual faz parte –, va-mos centrar-nos a seguir nas duas outras porserem as que correspondem a duas concepçõesextremas, mas ainda plenamente vigentes, dapsicologia da educação: a psicologia da educa-ção entendida como um campo de aplicaçãodo conhecimento psicológico e a psicologia daeducação entendida como uma disciplina-pon-te de natureza aplicada. No Quadro 1.2. reú-nem-se, de forma contrastante, os traços ca-racterísticos das duas concepções.

estudo dos processos de desenvolvimento e deaprendizagem à margem das preocupações doseducadores e dos problemas da educação, en-quanto os educadores têm a responsabilidadede desenvolver um ensino capaz de responderàs necessidades de seus alunos à margem dascontribuições da psicologia. A terceira, por úl-timo, postula uma relação bidirecional – a two-way street – entre a psicologia e a educação, demaneira que os psicólogos devem estudar comoas pessoas aprendem e se desenvolvem em am-bientes educacionais, definindo os temas desuas pesquisas a partir das preocupações e dosdesafios dos educadores, enquanto os segun-dos devem fundamentar suas decisões de en-sino nas contribuições da psicologia sobre comoos alunos aprendem e se desenvolvem nessesambientes.

QUADRO 1.2 Duas visões nitidamente contrastantes da psicologia da educação

A psicologia da educação entendida como um âmbito de aplicação da psicologia

• O conhecimento psicológico é o único que permite abordar e resolver de maneira científica as questões e osproblemas educacionais.

• O comportamento humano responde a leis universais que, uma vez estabelecidas pela pesquisa psicológica, po-dem ser utilizadas para compreender e explicar o comportamento humano em qualquer ambiente, incluídos osambientes educacionais.

• A psicologia da educação não se distingue das outras especialidades da psicologia pela natureza dos conhecimen-tos que proporciona – que são conhecimentos psicológicos e, portanto, próprios da psicologia científica –, mas pelaárea ao qual se aplicam tais conhecimentos: a educação.

• A principal tarefa da psicologia da educação consiste em selecionar, entre os conhecimentos proporcionados pelapsicologia científica, aqueles que em princípio podem ser mais úteis e relevantes para explicar e compreender ocomportamento humano nos ambientes educacionais e poder intervir neles.

• A psicologia da educação não é uma disciplina ou subdisciplina em sentido estrito – visto que não tem um objeto deestudo próprio e nem pretende gerar conhecimentos novos –, mas simplesmente um campo de aplicação da psico-logia.

A psicologia da educação entendida como uma disciplina-ponte entre a psicologia e a educação

• A abordagem e o tratamento das questões e dos problemas educacionais exige uma aproximação multidisciplinar.• O estudo e a explicação do comportamento humano nos ambientes educacionais deve ser feito nesses ambientes

e devem levar em conta suas características próprias e específicas.• A psicologia da educação distingue-se das outras especialidades da psicologia, porque proporciona conhecimen-

tos específicos sobre o comportamento humano em situações educacionais.• A principal tarefa da psicologia da educação consiste em elaborar, tomando como ponto de partida as contribuições

da psicologia científica, instrumentos teóricos, conceituais e metodológicos úteis e relevantes, para explicar e com-preender o comportamento humano nos ambientes educacionais e poder intervir neles.

• A psicologia da educação é uma disciplina ou subdisciplina em sentido estrito – visto que tem um objeto de estudopróprio e aspira à geração de conhecimentos novos sobre ele – que se encontra no meio do caminho entre osâmbitos disciplinares da psicologia e das ciências da educação.

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A psicologia aplicada à educação

Incluem-se sob tal denominação um con-junto de formulações – predominantes até fi-nais da década de 1950, mas que continuamgozando de uma certa aceitação atualmente,sobretudo em suas versões menos radicais –que concebem a psicologia da educação comoum mero campo de aplicação do conhecimen-to psicológico, isto é, como psicologia aplicadaà educação. Para além dos matizes diferenciais,alguns deles de indubitáveis alcance e signifi-cação, essas formulações compartilham os mes-mos princípios e iguais pressupostos básicosquanto à forma de abordar as relações entre oconhecimento psicológico e a teoria e a práti-ca educacionais. Em primeiro lugar, a crençade que o conhecimento psicológico é o únicoque permite abordar de uma maneira científi-ca e racional as questões educacionais. Em se-gundo lugar, o postulado de que o comporta-mento humano responde a uma série de leisgerais que, uma vez estabelecidas pela pesqui-sa psicológica, podem ser utilizadas para com-preender e explicar qualquer âmbito da ativi-dade das pessoas. Em terceiro lugar, e comoconseqüência do anterior, o que caracteriza apsicologia da educação não é o tipo ou a natu-reza do conhecimento que maneja – um conhe-cimento relativo às leis gerais que regem o com-portamento humano e, portanto, compartilha-do com as demais áreas ou parcelas da psico-logia –, mas o campo ou a área de aplicação noqual se pretende utilizar tal conhecimento, istoé, a educação. Em quarto lugar, a tarefa da psi-cologia da educação, assim entendida, não éoutra senão a de selecionar, entre os conheci-mentos proporcionados pela psicologia cientí-fica em um momento histórico determinado,aqueles que podem ter mais utilidade paracompreender e explicar o comportamento daspessoas em situações educacionais.

Vale advertir, no entanto, que essas for-mulações, em que pese compartilharem os prin-cípios e pressupostos mencionados, estão lon-ge de constituir uma orientação homogênea ecompacta no panorama atual da psicologia daeducação. Por um lado, existem diferenças sig-nificativas quanto às dimensões ou aos aspec-

tos do comportamento humano consideradospotencialmente úteis e relevantes para a edu-cação; assim, conforme a dimensão escolhida,pode-se encontrar, por exemplo, uma psicolo-gia evolutiva ou do desenvolvimento aplicadaà educação, uma psicologia da aprendizagemaplicada à educação, uma psicologia socialaplicada à educação, uma psicologia das dife-renças individuais aplicada à educação, ou ain-da, uma psicologia geral aplicada à educação.Por outro lado, e como reflexo da persistênciadas escolas de psicologia que oferecem expli-cações globais e distintas, e geralmente opos-tas, do comportamento humano, pode-se en-contrar, para citar de novo apenas alguns exem-plos, uma psicologia genética aplicada à edu-cação, uma psicanálise aplicada à educação,uma psicologia behaviorista aplicada à educa-ção, uma psicologia humanista aplicada à edu-cação ou uma psicologia cognitiva aplicada àeducação.

Considerando essas diferenças, do pontode vista da epistemologia interna em que mesituo neste item – isto é, do ponto de vista danatureza do conhecimento psicoeducacional ede suas vias de construção –, é evidente quetodas as formulações mencionadas têm um tra-ço comum: não cabe, a partir delas, conside-rar a psicologia da educação como uma disci-plina ou subdisciplina científica em sentidoestrito, já que não existe um objeto de estudopróprio e, sobretudo, não existe o propósitode produzir conhecimentos novos, mas apenasaplicar conhecimentos já existentes ou produ-zidos em outras áreas ou parcelas da pesquisapsicológica, em suma, o único tipo de conheci-mento novo que a psicologia aplicada à educa-ção pode legitimamente aspirar produzir é oque se refere às estratégias ou aos procedimen-tos de aplicação.

A relação unidirecional entre o conheci-mento psicológico e a teoria e a prática educa-cionais que caracteriza a psicologia aplicada àeducação apresenta alguns problemas eviden-tes. Como assinalou Wittrock (1992), essa re-lação unidirecional freqüentemente leva a se-lecionar como objeto de estudo e de aplicaçãoproblemas e questões já pesquisados, ou eminício de uma pesquisa, muitas vezes deixan-

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do de lado os problemas e as questões relevan-tes do ponto de vista educacional que aindanão foram objeto de atenção na pesquisa e nateoria psicológica. Essa concepção, na realida-de, limita a missão e o alcance da psicologiada educação à tarefa de reunir aplicações edu-cacionais que têm sua origem em um amploleque de pesquisas psicológicas sobre um es-pectro não menos amplo de problemáticas equestões geralmente estudadas em contextosdistintos dos educacionais.

Por outro lado, embora seja certo que aestratégia de aplicação direta e unilateral faci-lita a utilização potencial em educação dosavanços produzidos em todos os campos e es-pecialidades da pesquisa psicológica, de formacuriosa e paradoxal leva a ignorar, e inclusivea mascarar, as contribuições recíprocas que fi-zeram e continuam fazendo a partir da pró-pria psicologia da educação ao desenvolvimen-to de outros campos da psicologia. Os exem-plos nesse sentido são abundantes: os aportesde E. L. Torndike, considerado o pai da psico-logia da educação, à psicologia da aprendiza-gem; as contribuições de J. Dewey, realizadasem boa medida no contexto da incipiente psi-cologia da educação de princípios do século XX,ao estudo da aprendizagem e do pensamento,como também ao desenvolvimento do funcio-nalismo; as importantes contribuições de outrospsicólogos educacionais, como G. Stanley Hall,J. M. Cattell, Charles Judd, Alfred Binet, L.Cronbach e outros, à psicologia da criança, aomovimento dos testes, à psicologia diferenciale à psicologia da aprendizagem; os aportes deB. F. Skinner e R. Glaser à psicologia da apren-dizagem; as de D. P. Ausubel e J. S. Bruner aosmodelos cognitivos da aprendizagem e à psi-cologia do pensamento; as de B. Weiner à psi-cologia da motivação e da emoção, etc.

A psicologia da educaçãocomo disciplina-ponte

Como conseqüência dessas e de outras crí-ticas – em particular aquelas dirigidas a desta-car as limitações e os erros derivados do redu-cionismo psicológico próprio das relações uni-laterais entre conhecimento psicológico e teo-ria e prática educacionais –, a psicologia daeducação, no transcurso da segunda metade

do século XX, foi renunciando progressivamen-te boa parte dos postulados e dos princípiosque caracterizam as formulações da psicologiaaplicada à educação. Surgiu, assim, emborasem chegar a substituí-los plenamente, umasérie de formulações alternativas que se sub-metem a uma concepção distinta da psicolo-gia da educação: a que tende a considerá-lacomo disciplina-ponte entre a psicologia e a edu-cação, com um objeto de estudo próprio e, so-bretudo, com a finalidade de gerar um conhe-cimento novo acerca desse objeto de estudo.

Conceber a psicologia da educação comodisciplina-ponte implica mudanças profundas namaneira tradicional de entender as relaçõesentre o conhecimento psicológico e a teoria e aprática educacionais. Por um lado, tais relaçõesjá não podem ser consideradas em uma únicadireção; o conhecimento psicológico pode con-tribuir para melhorar a compreensão e a expli-cação dos fenômenos educacionais, mas o estu-do destes pode, por sua vez, contribuir tambémpara ampliar a aprofundar os conhecimentospsicológicos. Por outro lado, para que possahaver essa reciprocidade nas contribuições, seránecessário levar em conta as características pró-prias das situações educacionais muito mais doque se costumava fazer no passado. Os fenôme-nos educacionais deixam de ser unicamente umcampo de aplicação do conhecimento psicoló-gico para se tornar um âmbito da atividade hu-mana suscetível de ser estudado com os instru-mentos conceituais e metodológicos próprios dapsicologia. A psicologia da educação como dis-ciplina-ponte significa, em suma, uma renúnciaexpressa ao reducionismo psicológico que ca-racteriza as formulações de psicologia aplicadaà educação.

Segundo Mayer, as diferentes maneirasde conceber as relações entre a psicologia e aeducação correspondem, em linhas gerais, aoutras tantas fases no desenvolvimento da psi-cologia da educação. Durante a primeira fase,que iria aproximadamente até meados do sé-culo XX, predomina a visão de uma relaçãounidirecional como conseqüência do otimis-mo depositado no valor dos aportes da psico-logia científica para orientar, guiar e melho-rar a educação. É a fase em que domina a con-cepção de psicologia aplicada à educação (veras definições de Thorndike, Bagley e outros,e Gordon mostradas no Quadro 1.1). A partir

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DESENVOLVIMENTO PSICOLÓGICO E EDUCAÇÃO, V.2 27

de meados do século XX torna-se cada vezmais evidente que o otimismo da fase ante-rior era excessivo. Os educadores e os psicó-logos começam a subordinar-se a um certopessimismo quanto à capacidade da psicolo-gia de guiar, de orientar e de melhorar a edu-cação, de modo que os segundos tendem arefugiar-se nos laboratórios, concentrando-seem comparar os resultados de suas pesquisase em refinar suas teorias à margem das preo-cupações dos educadores, enquanto que osprimeiros se centram nos problemas práticosde sua profissão buscando soluções à margemdas teorias psicológicas sobre a aprendizageme o desenvolvimento. A psicologia e a educa-ção entram em uma fase de desconexão. Fi-nalmente, por volta da década de 1960, ini-cia-se uma terceira fase, na qual ainda esta-ríamos instalados nos dias atuais, em que asrelações entre a psicologia e a educação co-meçam a ser formuladas em uma dupla dire-ção: os desafios e os problemas educacionaisestabelecem a agenda de pesquisa da psicolo-gia impulsionando-a a elaborar teorias e ex-plicações do comportamento de pessoas reaisem ambientes reais; e, reciprocamente, me-diante o desenvolvimento de teorias úteis erelevantes do ponto de vista educacional, apsicologia proporciona à educação as basesnecessárias para adotar decisões fundamen-tais no campo da prática. É a fase que corres-ponde à concepção da psicologia da educa-ção como disciplina-ponte (ver as definiçõesde Ausubel, Mialaret, Resnick, Farley e Wittrock,Wittrock e Casanova e Berliner mostradas noQuadro 1.1.).

Seria um erro, porém, interpretar a linhahistórica proposta por Mayer como a simplessubstituição de uma concepção por outra. Écerto que a primeira maneira de entender asrelações entre a psicologia e a educação é pre-dominante até a década de 1950, que a segun-da se manifesta sobretudo nas décadas de 1940e 1950 e que a terceira começa a ganhar terre-no progressivamente a partir da década de1960. Mas existem ainda hoje numerosos edu-cadores, planejadores da educação, responsá-veis por políticas educacionais, pedagogos e psi-cólogos instalados na segunda e, sobretudo, naprimeira (De Corte, 2000).

Como destacam Fenstermacher e Richar-son (1994), a psicologia da educação atual

continua sendo marcada pela coexistência daduas visões claramente opostas da disciplina:a primeira – semelhante à psicologia aplicadaà educação – responde a uma orientação psi-cológica decididamente disciplinar e entendeque sua primeira e mais importante missão écontribuir para o desenvolvimento do conhe-cimento psicológico por meio do estudo daeducação; a segunda – semelhante à psicolo-gia da educação como disciplina-ponte – res-ponde a uma orientação psicológica decidi-damente educacional e propõe como missãoprimeira e mais importante contribuir parauma melhor compreensão da educação e parasua melhoria. Olhando para o futuro, a alter-nativa, segundo Fenstermacher Richarson(1994, p.53), consiste em saber

[...] se a psicologia da educação desdo-

brará seus instrumentos e técnicas disci-

plinares na perspectiva de uma busca mo-

ralmente fundamentada de melhores ma-

neiras de educar, ou se, ao contrário, con-

tinuará se esforçando para aperfeiçoar

seus instrumentos e técnicas dentro de

seus próprios contextos disciplinares [psi-

cológicos] com o objetivo de propor re-

solutamente, a seguir, como a educação

deve conformar-se aos conceitos, às teo-

rias e aos resultados empíricos assim ge-

rados. Estas duas opções não [...] podem

acomodar-se facilmente tomando de for-

ma seletiva o melhor de cada uma delas;

ao contrário, trata-se de duas aproxima-

ções radicalmente distintas de um cam-

po de conhecimento no interior de uma

comunidade profissional.

O deslocamento de uma psicologia da edu-cação orientada fundamentalmente ao discur-so e às exigências internas da comunidade cien-tífica da psicologia para uma psicologia da edu-cação orientada essencialmente para o discur-so e as preocupações da comunidade dos pro-fissionais da educação requer, na opinião deFenstermacher e Richarson, algumas mudançasprofundas nas formulações tradicionais que ain-da estão longe de terem sido assumidas em ca-ráter geral pelos psicólogos da educação. Entreessas mudanças, vale destacar as seguintes:

– Os temas e as questões que são objetode atenção e de estudo devem ser es-

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colhidos a partir dos problemas quesurgem na prática e das preocupaçõesdos profissionais da educação, em vezde fazê-lo principalmente, como ain-da é costume, em função de seu inte-resse e sua relevância psicológica ouda disponibilidade de métodos de pes-quisa canônicos e aceitos pela psico-logia científica.

– A proposição e a formulação dos te-mas estudados deveria adotar umaforma de discurso próxima à práticaeducacional e às preocupações dosprofissionais da educação, evitando,na medida do possível, o discurso dis-ciplinar e especializado da psicologia,muitas vezes pouco apropriado paradescrever com precisão e fidelidade osaspectos mais relevantes das situaçõese das práticas educacionais.

– As elaborações e os aportes da psico-logia da educação deveriam ser valo-rizados como um meio para obter umfim, isto é, em função de sua capaci-dade para contribuir para uma melhorcompreensão e a melhoria da práticaem contextos educativos concretos,em vez de serem julgados e valoriza-dos como um fim em si mesmos, istoé, em função de sua maior ou menoradequação aos cânones do conheci-mento científico em psicologia.

– A psicologia da educação deveria acei-tar, com todas as suas conseqüências,que seus aportes, sem dúvida nenhu-ma de enorme interesse e relevânciapara a educação, só podem dar contade alguns aspectos e dimensões desta,e que é quase certo que sempre seráassim, o que exige uma enorme pru-dência no momento de formular reco-mendações e propostas concretas paraa prática baseadas única e exclusiva-mente em sua visão; em outras pala-vras, a psicologia da educação deveriaaceitar, de uma vez por todas, a neces-sidade de inserir sua aproximação dosfenômenos e dos processos educacio-nais em uma aproximação multidisci-plinar, em vez de continuar atuando deforma mais ou menos explícita como

se fosse a única visão disciplinar capazde orientar e guiar a educação e me-lhorar as práticas educacionais.

– Os psicólogos da educação deveriamtomar consciência de que o conheci-mento dos profissionais da educaçãoé um conhecimento situado, contex-tualizado e muitas vezes fragmenta-do e tácito, mas que este é precisamen-te o conhecimento que funciona naprática; os psicólogos da educaçãodeveriam tender a utilizar seu conhe-cimento disciplinar para enriquecer oconhecimento prático dos profissio-nais da educação, em vez de preten-der substituí-lo.

– Por último, e talvez o mais importante,os psicólogos da educação deveriamassumir que a educação é uma práti-ca social e que envolver-se em umaprática social significa necessariamen-te adotar determinadas opções ideo-lógicas e morais, em vez de refugiar-se em uma suposta e enganosa neu-tralidade de um enfoque científico edisciplinar. Recuperando e assumindo,com todas as suas conseqüências, odiscurso e as preocupações do refor-mismo social dos pioneiros e primei-ros impulsionadores da disciplina, ospsicólogos da educação devem acei-tar que não podem orientar seu tra-balho para a compreensão e a melho-ria das práticas educacionais sem for-mular-se e responder a algumas per-guntas fundamentais sobre a educa-ção que não são de natureza psicoló-gica em sentido estrito: quais devemser as finalidades da educação?; quetipo de pessoa se pretende contribuirpara formar com as práticas educacio-nais?; que tipo de sociedade se pre-tende contribuir para engendrar coma educação das novas gerações?; comoa educação deve atender à diversidadedas necessidades educacionais daspessoas?; que papel a educação devedesempenhar na compensação das de-sigualdades econômicas, sociais e cul-turais da pessoas?; o que é uma edu-cação de qualidade?, etc.

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DESENVOLVIMENTO PSICOLÓGICO E EDUCAÇÃO, V.2 29

A NATUREZA APLICADA DAPSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO

A passagem de uma concepção de psico-logia aplicada à educação para uma concepçãoda psicologia da educação como disciplina-ponteobriga a rever o próprio conceito de aplicaçãodo conhecimento psicológico. As duas concep-ções compartilham a idéia de que a psicologiada educação tem a ver fundamentalmente coma utilização ou a aplicação do conhecimentopsicológico para enriquecer e melhorar a teoriae a prática educacionais, mas partem de esque-mas epistemológicos que respondem a duas ló-gicas de aplicação radicalmente distintas. Vistoque esse ponto costuma estar na base de nãopoucas confusões sobre o alcance e as limita-ções da psicologia da educação como disciplinade natureza aplicada, convém deter-se breve-mente nessas duas lógicas.

A lógica do esquema A (ver Figura 1.1) étributária de três princípios que já foram iden-tificados e comentados nas páginas preceden-tes como característicos da psicologia aplicadaà educação: a unidirecionalidade dos esforçose das operações de aplicação, que vão sempredo conhecimento psicológico à teoria e à pra-tica educacionais; a hierarquia epistemológicaentre o conhecimento psicológico, considera-do como verdadeiro e autêntico conhecimen-to científico básico de referência, e a teoria e aprática educacionais, que seriam compostasantes por um conjunto de saberes práticos eprofissionais; e o reducionismo psicológico quesupõe a pretensão de explicar e melhorar a edu-cação e o ensino unicamente a partir dosaportes da psicologia.

Nenhum desses princípios está presenteno esquema B (ver Figura 1.1), que representaa lógica da aplicação no caso da psicologia da

FIGURA 1.1 Duas lógicas distintas de aplicação do conhecimento psicológico à teoria e à prática educacionais.

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educação como disciplina-ponte. A flechaunidirecional do esquema A foi substituída noesquema B por flechas bidirecionais que têmsua origem e seu destino em um novo elemen-to relativo à natureza e às funções da educa-ção escolar e às características das situaçõesescolares de ensino e aprendizagem. No esque-ma B, o ponto de partida da aplicação não seencontra na psicologia – ao contrário do queocorre no esquema A –, mas nas questões epreocupações que ocorrem na educação esco-lar, a partir da qual se interpela a psicologia –do mesmo modo que se interpelam outras dis-ciplinas educacionais e a própria prática – demodo a chegar a compreendê-las melhor e po-der atuar. Conseqüentemente, essa interpela-ção tem efeitos positivos tanto sobre a teoria ea prática educacionais, visto que permite com-preender melhor os fenômenos estudados,como também, e reciprocamente, sobre a pró-pria psicologia, à medida que obriga a abordarquestões novas e induz a elaborar novos co-nhecimentos. No esquema B, não é, portanto,ou não é apenas, a utilização de um conheci-mento já elaborado; é sobretudo, e em primei-ro lugar, um procedimento mediante o qual seconstrói e se enriquece esse conhecimento. Éjustamente nesse ponto, no caráter constitutivoe gerador de novo conhecimento que tem aaplicação, que se deve situar, a meu ver, o ver-dadeiro alcance da caracterização da psicolo-gia da educação como uma disciplina de natu-reza aplicada.

A lógica da aplicação a que responde oesquema B também pode ajudar a entender me-lhor por que à sua caracterização como disci-plina de natureza aplicada se acrescenta a deser uma disciplina-ponte entre a psicologia e aeducação, isto é, uma disciplina que mantémestreitas relações com o conjunto de áreas eespecializações da psicologia e com o conjun-to das disciplinas educacionais, mas sem che-gar a identificar-se ou confundir-se plenamen-te com umas, nem com outras. De fato, a psi-cologia da educação é de pleno direito, nessaperspectiva, uma disciplina psicológica, já quese nutre de aportes de outras áreas e especiali-zação da pesquisa psicológica e utiliza muitasvezes os mesmos métodos e procedimentos deanálise que estas. Não é possível, porém, redu-zi-la a uma seleção de seus aportes, nementendê-la como uma área de conhecimento

subordinado a elas. Como assinala Ausubel (verQuadro 1.1), “as leis gerais que têm sua origemnas disciplinas básicas não se aplicam ao domí-nio dos problemas práticos”. Essa impossibili-dade de aplicar – mecanicamente, acrescenta-ríamos nós – as leis gerais do comportamentohumano ao domínio da educação obriga a em-preender um tipo de pesquisa aplicada na qualos problemas, as variáveis e as característicasdas situações educacionais devem ser particu-larmente levados em conta.

A pesquisa psicopedagógica é uma pes-quisa aplicada no sentido de que a pertinênciados problemas estudados tem sua origem,como assinala o esquema B, no campo educa-cional, e seu objetivo é proporcionar conheci-mento útil para melhorar a educação. Tambémseus resultados, assim como as explicações eas teorias elaboradas a partir deles, são de ca-ráter aplicado, pois se referem ao campo daeducação, e têm, por isso, um alcance e umageneralidade menor do que aqueles proporcio-nados pela pesquisa básica. No entanto, comoassinala também Ausubel, não se deve enten-der a diferença e as relações entre pesquisabásica e pesquisa aplicada, e portanto a dife-rença e as relações entre conhecimento psico-lógico e conhecimento psicopedagógico, emtermos de uma hierarquia entre os dois tiposde conhecimento, mas sim em termos de al-cance e nível de generalidade dos resultados edas explicações que proporcionam. Feita essaressalva, as teorias aplicadas da psicologia daeducação podem ser consideradas tão funda-mentais do ponto de vista de seu interesse ede suas repercussões para os progressos cien-tíficos quanto as teorias básicas de outras áre-as ou campos da psicologia.

Resumindo, a psicologia da educação seenriquece com as leis, os princípios, as expli-cações, os métodos, os conceitos e os resulta-dos empíricos que têm sua origem na pesqui-sa psicológica básica, mas, por sua vez, con-tribui para enriquecer esta última com seusaportes sobre os fenômenos educacionais e,mais especificamente, com suas explicaçõessobre o comportamento humano em situaçõeseducacionais. As relações entre a psicologia ea psicologia da educação não são, portanto,de dependência nem unilaterais, mas de in-terdependência e bidirecionais. Algo similarocorre com suas relações com as demais dis-

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DESENVOLVIMENTO PSICOLÓGICO E EDUCAÇÃO, V.2 31

ciplinas educacionais. Como mostra o esque-ma B, a psicologia da educação contribui parao enriquecimento da teoria e a melhoria daprática educacional à medida que ajuda a de-finir e compreender melhor problemas e ques-tões educativas, mas é enriquecida ao mesmotempo pelos aportes da teoria e da práticaeducacional à medida que estas contribuempara uma melhor definição e para a compreen-são dos problemas e das questões estudadaspela psicologia da educação.

As dimensões da psicologia da educação

A psicologia da educação, como discipli-na educacional de natureza aplicada, trata doestudo dos fenômenos e dos processos edu-cacionais com uma tripla finalidade: contri-buir para a elaboração de uma teoria que per-mita compreender e explicar melhor tais pro-cessos; ajudar na elaboração de procedimen-tos, estratégias e modelos de planejamento eintervenção que ajudem a orientá-los em umadireção determinada e ajudar na instauraçãode práticas educacionais mais eficazes, maissatisfatórias e mais enriquecedoras para aspessoas que participam delas. Essas três fina-lidades originam outras tantas dimensões ouvertentes – teórica ou explicativa, projetivaou tecnológica e prática – em torno das quaisse articulam os conteúdos da psicologia daeducação como disciplina-ponte de naturezaaplicada (Coll, 1983; 1988b).

A psicologia da educação é também fun-damentalmente uma disciplina psicológica, oque significa que sua aproximação do estudodos fenômenos educacionais se orienta parao estudo dos componentes psicológicos de taisfenômenos – isto é, da análise da atividade edos comportamentos dos participantes, dasmudanças que se produzem neles, dos fato-res responsáveis por essas mudanças e dosprocessos envolvidos – e utiliza instrumentosconceituais, teóricos, metodológicos e técni-cos igualmente psicológicos. Isso confere àstrês dimensões mencionadas – dimensõescompartilhadas por todas as disciplinas queconformam o núcleo específico das ciênciasda educação –1 um caráter próprio. Assim, adimensão teórica ou explicativa da psicologiada educação inclui uma série de conhecimen-

tos conceitualmente organizados – generali-zações empíricas, leis, princípios, modelos,teorias, etc. – sobre os componentes psicoló-gicos dos fenômenos educacionais. A dimen-são projetiva ou tecnológica, por sua vez, in-clui um conjunto de conhecimentos de natu-reza essencialmente procedimental sobre oplanejamento e o desenho dos processos edu-cacionais ou de alguns aspectos deles – porexemplo, atividades de ensino e aprendiza-gem, procedimentos de avaliação das apren-dizagens, escolha de materiais didáticos oucurriculares, estratégias de atenção à diversi-dade, etc. –, que têm sua origem ou, pelomenos, são fortemente inspirados na análisedos componentes psicológicos presentes ne-les. Por último, a dimensão prática inclui umasérie de conhecimentos, nesse caso de natu-reza essencialmente técnica e instrumental,orientados à intervenção direta no desenvol-vimento dos processos educacionais, seja daperspectiva do desempenho da função docen-te, seja da perspectiva da intervenção psico-pedagógica.

A PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO COMODISCIPLINA-PONTE DE NATUREZAAPLICADA: OBJETO DE ESTUDO,CONTEÚDOS E ESPAÇOS PROFISSIONAIS

As considerações e os argumentos prece-dentes oferecem uma base adequada para ten-tar definir, com maior precisão do que foi feitoaté agora, em que consiste esse olhar específi-co da psicologia da educação sobre os fenôme-nos educacionais, o que significa exatamente,utilizando as palavras de Wittrock (ver Qua-dro 1.1), “o estudo científico da psicologia naeducação”, em suma, o que é e do que trata apsicologia da educação entendida como disci-plina-ponte de natureza aplicada.

O objeto de estudo dapsicologia da educação

De acordo com os argumentos expostosaté aqui, pode-se dizer que a finalidade da psi-cologia da educação é estudar os processos demudança que se produzem nas pessoas como

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32 COLL, MARCHESI, PALACIOS & COLS.

conseqüência de sua participação em ativida-des educacionais. Essa afirmação sucinta re-quer, no entanto, alguns comentários adicio-nais que ajudam a compreender e a valorizarmelhor seu alcance e suas implicações.

Em primeiro lugar, a definição se ajustaàs exigências formuladas por uma concepçãoda psicologia da educação como disciplina-pon-te. Por um lado, seu interesse está voltado aoestudo dos processos de mudança que ocor-rem nas pessoas, isto é, ao estudo de proces-sos psicológicos. Não obstante, e diferentemen-te de outras áreas ou domínios da psicologia,interessa-se por um tipo muito especial de mu-danças: aquelas que têm sua origem na, ou quepossam relacionar-se com a participação daspessoas em atividades ou situações educacio-nais. Assim, a psicologia da educação é, de ple-no direito, uma disciplina psicológica, já queseu foco é o estudo de processos psicológicos;mas é também, e ao mesmo tempo, uma disci-plina educacional, pois os processos psicológi-cos aos quais volta sua atenção são inseparáveisdas situações educacionais que estão em suaorigem, o que significa que é imprescindívellevar em conta as características destas últimaspara poder estudar cabalmente aqueles.

Em segundo lugar, a definição propostanão deixa margem para dúvidas sobre a ne-cessidade de uma aproximação multidisciplinardo estudo dos fenômenos educativos. A com-plexidade intrínseca desses fenômenos, a mul-tiplicidade de dimensões e aspectos presentesneles faz com que seu estudo exija o concursode diferentes perspectivas disciplinares. Não setrata, naturalmente, de decompor os fenôme-nos educacionais em suas partes constitutivascom a finalidade de atribuir a análise de cadauma delas a uma disciplina distinta. Adotaruma aproximação multidisciplinar do estudodos fenômenos educacionais significa abordá-los como um todo, sem que percam sua identi-dade como fenômenos desse tipo, explorando-os sucessiva ou simultaneamente com a ajudados instrumentos metodológicos e conceituaisque as diferentes disciplinas educacionais pro-porcionam, procurando articular e integrar osresultados dessas indagações em explicaçõesde conjunto. No contexto dessa tarefa global,a psicologia da educação tem como responsa-bilidade específica o estudo das mudanças –

incluindo os processos psicológicos subjacen-tes – que se produzem nas pessoas como con-seqüência de sua participação em atividadeseducacionais, de sua natureza e de suas carac-terísticas, dos fatores que os facilitam, dificul-tam e obstaculizam, e das conseqüências quetêm para elas.

Em terceiro lugar, a psicologia da educa-ção está comprometida, junto com outras dis-ciplinas educacionais e em estreita coordena-ção com elas, na elaboração de uma teoria edu-cacional de base científica e na configuraçãode uma prática de acordo com ela. Esse com-promisso lhe confere o caráter de disciplinaaplicada e a induz a abordar seu objeto de es-tudo com uma tripla finalidade, ou uma tripladimensão, como se assinalou no item anterior:uma dimensão teórica ou explicativa, que per-segue a elaboração de modelos interpretativosdos processos de mudança estudados; uma di-mensão tecnológica ou projetiva, cuja meta écontribuir para a descrição de situações ou ati-vidades educacionais capazes de induzir ouprovocar determinados tipos de mudança nosque participem delas e uma dimensão técnicaou prática, orientada à intervenção e à resolu-ção de problemas concretos surgidos na pre-paração ou no desenvolvimento de atividadeseducacionais.

Em quarto e último lugar, essa caracteri-zação do objeto de estudo permite situar a psi-cologia da educação escolar, também chamadaàs vezes de psicologia do ensino, no contextomais amplo da psicologia da educação.2 Vistoque esta última trata do estudo dos processosde mudança que se produzem nas pessoascomo conseqüência de sua participação em di-ferentes tipos de situações ou atividades educa-cionais, seu campo de trabalho e de atuação émais vasto que o da psicologia da educaçãoescolar, que se centra nas mudanças relacio-nadas com situações ou atividades escolares deensino e aprendizagem. A psicologia da educa-ção historicamente orientou seus esforço so-bretudo ao estudo dos processos de mudançarelacionados com os processos escolares deensino e aprendizagem e, conseqüentemente,a maioria de seus aportes situa-se nesse cam-po. Essa tendência, porém, foi corrigida notranscurso das últimas décadas, e a psicologiada educação abriu-se progressivamente para o

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DESENVOLVIMENTO PSICOLÓGICO E EDUCAÇÃO, V.2 33

estudo de outros tipos de práticas educacio-nais não-escolares, como, por exemplo, as queocorrem em ambientes familiares, de trabalho,de lazer, ou ainda que utilizam os meios decomunicação de massas (rádio, televisão) ouas tecnologias da informação e da comunica-ção como canal e como apoio.

Os conteúdos da psicologia da educação

Tomando como ponto de partida o obje-to de estudo proposto, pode-se identificar osdois grandes blocos de conteúdos dos quais apsicologia da educação trata: de um lado, aque-les relativos aos processos de mudança queocorrem nas pessoas como resultado de suaparticipação em situações e atividades educa-cionais; por outro, os fatores, as variáveis ouas dimensões das situações e atividades educa-tivas que se relacionam direta ou indiretamentecom esses processos de mudança e que contri-buem para explicar sua orientação, caracterís-ticas e resultados. Quanto aos primeiros, a psi-cologia da educação ocupa-se fundamental-mente de mudanças vinculadas aos processosde aprendizagem, de desenvolvimento e de soci-alização. A natureza desses processos de mu-dança, as teorias e os modelos que os expli-cam ou tentam explicá-los, e sobretudo as re-lações que mantêm entre si as diferentes di-mensões e os aspectos implicados – cultura,desenvolvimento, aprendizagem, educação, so-cialização, etc. –, configuram um dos núcleosmais importantes da psicologia da educação.No que diz respeito ao segundo bloco, o pano-rama é sensivelmente mais complexo, já queexistem diferenças importantes em função dotipo de situações ou atividades educacionaisque consideremos. Os fatores, as variáveis ouas dimensões, relacionados direta ou indireta-mente com os processos de mudança dos quaisse ocupa a psicologia da educação não são osmesmos, para mencionar apenas dois exem-plos óbvios, no caso das situações e das ativi-dades escolares de ensino e aprendizagem queno caso das situações e das atividades educa-tivas que ocorrem na família.

Mesmo limitando-se ao caso das situa-ções e das atividades educativas escolares, écomplexo estabelecer com precisão os gran-

des núcleos de conteúdos do segundo bloco àmargem das opções teóricas escolhidas paraidentificar, caracterizar e organizar os fato-res, as variáveis e as dimensões aos quais seatribui uma relevância especial na explicaçãodos processos de mudança. Assim, por exem-plo, a distinção clássica entre, por um lado,fatores interpessoais ou internos aos alunos –por exemplo, nível de desenvolvimento cogniti-vo, afetivo e social, maturidade emocional, ex-periências e conhecimentos prévios, capacida-des intelectuais, motivação, interesses, auto-conceito, etc. – e, por outro lado, fatores exter-nos que têm sua origem no contexto – porexemplo, características do professor, materiaisdidáticos e meios de ensinar em geral, metodo-logia de ensino, organização do trabalho nasala de aula, dinâmicas grupais e institucionais,etc. –, responde a uma orientação teórica empsicologia fortemente questionada hoje. Algosimilar deve ser dito da proposta que consisteem estabelecer duas grandes categorias relati-vas aos fatores cognoscitivos e afetivo-sociais,respectivamente, incluindo em cada uma de-las tanto os que têm sua origem nos alunosquanto os que correspondem às característi-cas do contexto escolar.

Talvez a melhor maneira de dar contada diversidade e da heterogeneidade dos con-teúdos que conformam esse segundo bloco semnecessidade de subordinação a um enfoqueteórico particular seja apresentá-los, na linhade Calfee e Berliner (1996, p. 2), como ou-tros tantos capítulos relacionados ao fato deque a educação comporta sempre e necessa-riamente que alguém (professores, pais, ins-trutores, monitores, meios de comunicação,etc.) ensina (atua com a intenção de influen-ciar) algo (as matérias do currículo, os hábi-tos, as habilidades, as normas de conduta, osvalores, etc.) a alguém (alunos, filhos, empre-gados, espectadores, visitantes em um museu,etc.), em um contexto institucional (escola, fa-mília, comunidade, museu, etc.) com um pro-pósito (desenvolver capacidades, adquirir co-nhecimentos, habilidades, hábitos, assimilarvalores, etc.) e esperando resultados (nos des-tinatários da situação educativa) que geral-mente são avaliados (a fim de verificar que sealcançaram os propósitos perseguidos e se ob-tiveram os resultados esperados).

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As atividades científicas eprofissionais relacionadascom a psicologia da educação

Até bem avançada a década de 1960, asatividades científicas e profissionais relaciona-das com a psicologia da educação aparecemcircunscritas fundamentalmente a três áreas detrabalho, que também são aquelas em tornodas quais se produz seu desenvolvimento e suaevolução; a formação dos professores, a pes-quisa psicológica aplicada à educação e a in-tervenção psicológica sobre problemas e difi-culdades do desenvolvimento, da aprendiza-gem e da conduta, fundamentalmente no casode crianças e adolescentes. Os dois primeirosse consolidaram e se ampliaram nas décadasseguintes, até configurar atualmente dois es-paços de trabalho usais dos psicólogos da edu-cação. Também o terceiro se ampliou e diver-sificou-se de forma considerável como conse-qüência do desenvolvimento tanto da vertenteprática da própria psicologia da educação quan-to de outras áreas e especialidades psicológi-cas orientadas à intervenção. Além disso, nosúltimos anos, apareceram novos espaços de ati-vidade profissional da educação. Embora o tra-tamento adequado da questão vá além das pre-tensões deste capítulo (ver, por exemplo, Maurie Solé, 1990; Martín e Solé, 1990; Monereo eSolé, 1996; Solé, 1998a), pode ser oportunoum breve comentário sobre os espaços profis-sionais mais diretamente vinculados a ativida-des de intervenção.

A intervenção direta a partir da psicolo-gia da educação na detecção e na resolução deproblemas concretos aparece estreitamente vin-culada em suas origens à educação especial e àpsicologia clínica infantil. A partir da primeiradécada do século XX, e paralelamente ao de-senvolvimento que vai se produzindo nas ou-tras duas áreas mencionadas de atividade cien-tífica e profissional, começam a ser criados ser-viços que, no geral, têm como objetivo priori-tário a atenção aos distúrbios evolutivos e com-portamentais das crianças escolarizadas. Namaioria das vezes, esses serviços fazem partede instituições de tipo clínico ou psiquiátrico –o exemplo mais representativo são as ChildGuidance Clinics que entram em funcionamen-to nos Estados Unidos e no Reino Unidos mais

ou menos nessa época – e realizam tarefas dediagnóstico e de tratamento.

Entretanto, apenas nos anos imediata-mente posteriores à Segunda Guerra Mundial,na segunda metade da década de 1950, é quecomeça a generalizar-se nos países ocidentaismais desenvolvidos a presença de psicólogosda educação nas escolas, trabalhando em con-tato direto com os professores. A mudança quese opera nestes anos não é apenas quantitati-va, mas afeta também o tipo de situação ou deintervenção que os psicólogos realizam e as fun-ções que são chamados a cumprir. Paralelamen-te ao deslocamento progressivo de uma con-cepção de psicologia aplicada à educação parauma concepção de psicologia da educaçãocomo disciplina-ponte, junto à intervenção detipo mais clínico, centrada sobretudo no diag-nóstico e no tratamento dos distúrbios de de-senvolvimento, de aprendizagem e de condu-ta, aparece uma intervenção de tipo educacio-nal, orientada a melhorar o ensino e a apren-dizagem no contexto escolar. Surge assim umnovo campo de atividade profissional da psi-cologia da educação que, com o nome de psi-cologia escolar, conhecerá um desenvolvimen-to considerável nas décadas seguintes. Com umou outro nome,3 entre o final dos anos 1950 eo princípio dos anos 1980 criam-se serviços depsicologia escolar em praticamente todos ospaíses com um certo nível de desenvolvimentoeconômico. O contato direto da psicologia daeducação com os problemas cotidianos da prá-tica educacional, assim como o fato de ser con-tinuamente chamada a contribuir para sua so-lução, constituem, sem sombra de dúvida, al-guns dos fatores que mais contribuíram nestasúltimas décadas para assegurar a concepçãoda psicologia da educação como disciplina-pon-te e a tomar consciência da importância dasdimensões tecnológica ou projetiva e técnicaou prática que comporta seu caráter de disci-plina aplicada.

As formulações clínicas que estão na ori-gem da intervenção psicoeducativa, porém, nãodesapareceram do horizonte da psicologia daeducação. Por um lado, em muitas ocasiões, aextensão da psicologia escolar como espaçoprofissional não supôs a substituição de umenfoque clínico por um enfoque educacional,mas sim que as funções e as tarefas clássicas

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de diagnóstico e tratamento de distúrbios dodesenvolvimento, da aprendizagem e da con-duta vieram somar-se às funções derivadas dosesforços para contribuir para a melhoria dosprocessos de ensino e aprendizagem da esco-la. Por outro lado, os serviços de psicologia clí-nica infantil e juvenil começaram a dar umaatenção crescente à dimensão educacional emsuas formulações de intervenção, o que levouos profissionais desse campo a dar maior aten-ção aos aportes da psicologia da educação e aestabelecer novas e frutíferas formas de cola-boração com os psicólogos da educação.

Em suma, a ampliação e a diversificaçãodos espaços de intervenção, juntamente com ajá mencionada abertura ao estudo de práticaseducativas não-escolares, produzida ao longodos últimos anos, contribuíram para conformaruma densa e complexa rede de relações da psi-cologia da educação com diversos espaços deatividade profissional, da qual se apresentauma amostra no Quadro 1.3.

ENFOQUES, CONCEITOS ETENDÊNCIAS EMERGENTESEM PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO

Chegou o momento de completar a apro-ximação realizada nos itens anteriores, orien-tada basicamente a analisar e a valorizar asalternativas sobre a natureza, os objetivos e osconteúdos da psicologia da educação, com aapresentação de alguns conceitos, enfoques etendências que, a meu ver, também têm umreflexo importante em suas formulações atuais.Algumas das idéias e das propostas a que mereferi estão diretamente relacionadas com amudança de orientação na maneira de enten-der as relações entre psicologia e educação ana-lisada nas páginas anteriores. Outras, em com-pensação, estão mais vinculadas a novosenfoques teóricos em psicologia do desenvol-vimento, em psicologia da aprendizagem e,muito particularmente, em psicologia da edu-

QUADRO 1.3 Espaços de atividade científica e profissional relacionados com a psicologia daeducação

A. Relacionados com as práticas educacionais escolares.

• Serviços especializados de orientação educacional e psicopedagógica.• Centros específicos e serviços de educação especial.• Elaboração de materiais didáticos e curriculares.• Formação dos professores.• Avaliação de programas, escolas e materiais educacionais.• Planejamento e gestão educacional.• Pesquisa educacional.

B. Relacionados com outros tipos de práticas educacionais

• Serviços e programas de atenção educacional à infância, à adolescência e à juventude, em contextos não-esco-lares (família, centros de acolhimento, centros de adoção, etc.).

• Educação de adultos.• Programas de formação profissional e trabalhista.• Programas educativos/recreativos.• Televisão educacional e programas educativos multimídia.• Campanhas e programas educativos em meios de comunicação.

C. Relacionados com a psicologia e a pedagogia clínica infantil.

• Centros de saúde mental, hospitais, serviços de atenção precoce, etc.• Centros de diagnóstico e tratamento de dificuldades de aprendizagem.

Fonte: Coll, 1996d.

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cação e do ensino, surgidos no transcurso dasúltimas décadas4. Todas elas, de resto, estãoem maior ou menor medida presentes em di-versos capítulos deste volume e, por isso, selimitará a apontá-las e a comentá-las breve-mente, em cada caso remetendo os leitores àsfontes correspondentes e aos capítulos nosquais são objeto de um maior desenvolvimento.

As relações entre desenvolvimento,aprendizagem, cultura e educação

A psicologia da educação esteve divididatradicionalmente em duas posturas irreconci-liáveis em torno dos conceitos de desenvolvi-mento e de aprendizagem. Simplificando aomáximo, uma postura sustenta que o cresci-mento pessoal deve ser entendido basicamen-te como o resultado de um processo de desen-volvimento em boa medida interno às pesso-as, de maneira que a principal meta da educa-ção deve ser acompanhar, promover, facilitare, em todo caso, acelerar os processos naturaisdo desenvolvimento, que são um patrimôniogenético da espécie humana. A outra postura,ao contrário, afirma que o crescimento pesso-al é antes o resultado de um processo de apren-dizagem em boa medida externo às pessoas,de maneira que a educação deve ser orientadaa promover e facilitar a realização de aprendi-zagens culturais específicas.

Ocorre, no entanto, que a separação en-tre os processos de desenvolvimento e os pro-cessos de aprendizagem não é absolutamentetão nítida como essas duas posturas dão a en-tender. Certamente, os processos de desenvol-vimento têm uma dinâmica interna e respon-dem a diretrizes até certo ponto universais,como destacaram os trabalhos de Piaget e daescola de Genebra (ver Capítulo 1 do Volume1 desta obra e o Capítulo 2 deste volume). En-tretanto, como também destacaram numero-sos trabalhos e pesquisas realizados no trans-curso das últimas décadas da perspectivasociocultural de orientação vygotskiana eneovygotskiana (ver Capítulo 1 do Volume 1desta obra e o Capítulo 5 deste volume), a for-ma e inclusive a orientação tomada por essadinâmica interna é inseparável do contexto cul-tural em que a pessoa em desenvolvimento está

inserida e da aquisição de saberes culturaisespecíficos.

Desse modo, organiza-se um esquema ex-plicativo de conjunto no qual os conceitos decultura, de desenvolvimento e de aprendiza-gem aparecem estreitamente relacionados, eem que a educação em geral e a educação es-colar em particular são as peças essenciais paracompreender a natureza de tais relações (ver,por exemplo, Coll, 1987; Miras e Onrubia,1998; Capítulo 6 deste volume). De acordocom esse esquema, os grupos humanos pro-movem o desenvolvimento pessoal de seusmembros, fazendo-os participar de diferentestipos de atividades educacionais e facilitan-do-lhes, mediante essa participação, o acessoa uma parte da experiência coletiva cultural-mente organizada, isto é, ao conhecimentocuja apropriação por parte das novas geraçõesera considerado relevante e necessário em ummodelo histórico determinado.

A natureza construtivado psiquismo humano

De maneira progressiva, mas sem inter-rupção desde finais da década de 1950, foi-seimpondo no campo da psicologia, e tambémnos da pedagogia e da didática, uma série deformulações e enfoques que, para além das di-ferenças que mantêm entre si, compartilhamuma visão do psiquismo humano conhecida ge-nericamente como “construtivismo”. O cons-trutivismo, como explicação psicológica, temsuas raízes na psicologia e na epistemologiagenética e nos trabalhos de Piaget e seus cola-boradores (Coll, 1996), e se expande de formaconsiderável como resultado, em boa medida,da aparição “da nova ciência da mente”(Gardner, 1983) e da adoção quase generali-zada dos enfoques cognitivos a partir de finaisda década de 1970. Do ponto de vista da psi-cologia da educação, a idéia principal talvezmais forte e também a mais amplamente com-partilhada é a que se refere à importância daatividade mental construtiva das pessoas nosprocessos de aquisição do conhecimento, o queleva a pôr a ênfase no aporte que sempre enecessariamente a pessoa que aprende propor-ciona ao próprio processo de aprendizagem.

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DESENVOLVIMENTO PSICOLÓGICO E EDUCAÇÃO, V.2 37

A visão construtivista do psiquismo hu-mano é compartilhada atualmente por nume-rosas teorias do desenvolvimento, da aprendi-zagem e de outros procedimentos psicológicosque estão dentro do foco de interesse da psico-logia da educação. Ao mesmo tempo, o recur-so aos princípios construtivistas com o objeti-vo de compreender e explicar melhor os pro-cessos educacionais, e sobretudo com a finali-dade de fundamentar e justificar propostas cur-riculares, pedagógicas e didáticas de carátergeral ou relativas a conteúdos escolares espe-cíficos – matemática, leitura, escrita, geogra-fia, história, etc. – transformou-se em um pro-cedimento habitual entre os profissionais daeducação. O construtivismo, em suas diferen-tes versões, impregna a psicologia da educa-ção nos dias de hoje e é uma das referênciasteóricas fundamentais de todos os capítulosdeste volume (ver, em particular, os Capítulos6, 14 e 17).

A natureza social e culturaldos processos de construçãodo conhecimento

A generalização dos enfoques construti-vistas em educação levou a uma visão da apren-dizagem escolar como um processo que, alémde ser ativo e construtivo, é de natureza essen-cialmente individual e interno. Individual por-que os alunos devem realizar seu próprio pro-cesso de construção de significados e de atri-buição de sentido sobre os conteúdos escola-res sem que ninguém possa substituí-los nessatarefa; e interno, porque a aprendizagem nãoé o resultado da leitura pura e simples da ex-periência, mas que é sim o fruto de um com-plexo e intrincado processo de construção, demodificação e de reorganização dos instrumen-tos cognitivos e dos esquemas de interpreta-ção da realidade.

O fato, porém, de considerar a aprendi-zagem como um processo de construção do co-nhecimento essencialmente individual e inter-no não implica necessariamente que deva serconsiderado também como um processo soli-tário. Nesse ponto, situa-se, a meu ver, a linhadivisória entre as diferentes versões do cons-trutivismo, com maior presença e influência

atualmente em psicologia da educação (ver, porexemplo, Shuell, 1996; Nuthall, 1997; Capí-tulos 6 e 14 deste volume): enquanto o cons-trutivismo cognitivo situa o processo de cons-trução no aluno e tende a ser considerado comoum processo individual, interno e basicamen-te solitário, o socioconstrutivismo vê antes o gru-po social, a comunidade de aprendizagem daqual o aluno faz parte – isto é, a sala de aulacom todos os seus membros –, como o verda-deiro sujeito do processo de construção. Nãofaltam tampouco os enfoques construtivistasque, embora aceitem o caráter individual e fun-damentalmente interno do processo de cons-trução, negam o caráter solitário e postulamque os alunos aprendem sempre de outros ecom outros, ao mesmo tempo que assinalamque a aprendizagem é fortemente mediada porinstrumentos culturais e se dirige basicamenteà assimilação de saberes que também têm umaorigem cultural. Sem querer entrar a fundo nodebate, o que interessa destacar aqui é a per-meabilidade crescente dos enfoques construti-vistas em educação às formulações e propos-tas socioconstrutivistas, seja em sua versãomais radical, que consiste em situar o proces-so de construção no grupo ou na comunidadede aprendizagem da qual o aluno faz parte –isto é, a aula – ou em sua versão mais matiza-da, que consiste em postular a complementari-dade do caráter individual e interno do proces-so de construção do conhecimento sobre os con-teúdos escolares que o aluno realiza com o fatode que esse processo é inseparável do contextosocial e cultural no qual ocorre (Goodenow,1992; Salomon e Perkins, 1998).

Os enfoques e os modelos contextuais eculturais dos processos psicológicos

Em parte como resultado da influênciacada vez maior das formulações e das propos-tas socioconstrutivistas, e em parte tambémcoincidindo com elas e reforçando-as, é preci-so destacar a aceitação crescente de enfoquese modelos contextuais na explicação dos pro-cessos psicológicos. Tais enfoques e modelostêm origens muito diversas (a ecologia do de-senvolvimento humano de Bronfenbrenner; ateoria sociocultural de orientação vygotskiana

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ou neovygotskiana; a teoria histórico-culturalda atividade inspirada nas formulações deLeontiev, de Vygotsky e de Luria; a psicologiacultural de influência antropológica; etc.) e di-ferem entre si em múltiplos e importantes as-pectos, mas coincidem em atribuir uma impor-tância decisiva, na compreensão e na explica-ção dos processos psicológicos, à interaçãoentre as pessoas e os ambientes em que vivem,incluindo nesses ambientes as práticas sociaise culturais. Os enfoques contextuais e cultu-rais deram lugar a uma série de conceitos emetáforas (Pintrich, 1994) sobre o ensino e aaprendizagem, entre os quais destacarei, porsua presença e seu impacto na psicologia daeducação atual, aqueles relacionados com o ca-ráter situado e distribuído dos processoscognitivos (ver Anderson, Reder e Simon,1996; Hedegaard, 198; Putnam e Borko, 2000;Capítulo 24 deste volume).

Contrariamente ao que ocorre nos enfo-ques computacionais e representacionais da psi-cologia cognitiva, que situam os processos cog-nitivos na mente, a cognição situada postulaque esses processos fazem parte das ativida-des que são realizadas pelas pessoas. Da pers-pectiva da cognição situada, a mente já não éalgo que esteja na cabeça das pessoas, mas éum aspecto da interação entre a pessoa e o am-biente, de tal maneira que, no ato de conheceralgo, nem o objeto conhecido e nem sua des-crição simbólica podem ser especificados à mar-gem do próprio processo de conhecer e das con-clusões que se tiram de tal processo (Bredo,1994). A diferenciação entre o interno e oexterno se enfraquece até chegar a desapare-cer quase por completo. Nas palavras de Lave(1991, p. 1), “A ‘cognição’ observada nas ativi-dades cotidianas distribui-se – desdobrando-se, não dividindo-se – entre a mente, o corpo,a atividade e os ambientes organizados cultu-ralmente (que incluem outros autores)”.

Essa citação, além do mais, destaca a pro-ximidade conceitual dos enfoques de cogniçãosituada e cognição distribuída. A idéia fundamen-tal nesse caso (Salomon, 1993) é que o conhe-cimento não é possuído simplesmente por umindivíduo, mas é distribuído entre os que se en-contram em um contexto determinado. A inte-ligência é distribuída “entre as mentes, as pes-soas e os ambientes físicos e simbólicos, natu-

rais e artificiais” (Pea, 1993, p. 47; ver tambémCoob, 1998; Coob e Bowers, 1999). Não ape-nas a cognição, ou a inteligência, encontra-sedistribuída entre os membros do grupo e osmateriais e os instrumentos presentes, mas to-dos e cada um dos membros, assim como osmateriais e os instrumentos, devem ser consi-derados para todos os efeitos como uma fontede recursos cognitivos para os demais.

A unidade do ensino e da aprendizagem

Tradicionalmente, a psicologia da educa-ção abordou o estudo do ensino e da aprendi-zagem como se fossem duas entidades separa-das, originando duas linhas de trabalho comescassas vinculações entre si (Shuell, 1993;Vermunt e Verloop, 1999; Capítulo 14 destevolume). Nos contextos educacionais, e muitoparticularmente nos escolares, entretanto, osprocessos de ensinar e aprender estão indisso-luvelmente relacionados, de tal maneira que“poucos negarão que a aprendizagem (ou al-gum conceito estreitamente relacionado comela) é o primeiro propósito da educação e queo ensino (sob uma ou outra forma) é o princi-pal meio pelo qual se alcança tal propósito”(Shuell, 1993, p. 291). É impossível chegar acompreender e a explicar como os alunosaprendem se não se leva em conta, ao mesmotempo, como os professores formulam e geramo ensino. E, inversamente, é impossível enten-der e valorizar o ensino e a atividade educa-cional e de ensino dos professores à margemde sua incidência sobre os processos de apren-dizagem dos alunos.

A tomada de consciência das limitaçõesderivadas da dissociação entre o ensino e aaprendizagem fez com que se corrigisse, pro-gressivamente, essa situação ao longo das últi-mas décadas, de maneira que os esforços poraproximar-se do estudo dos processos de ensi-no e aprendizagem em conjunto é outra dastendências emergentes que se manifestam commaior força e clareza no panorama atual dapsicologia da educação. Essa tendência, emgeral visível no conjunto da psicologia da edu-cação, torna-se ainda mais patente, se isso épossível, no caso dos enfoques construtivistasque concebem a aprendizagem como um pro-

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DESENVOLVIMENTO PSICOLÓGICO E EDUCAÇÃO, V.2 39

cesso essencialmente social, cultural e inter-pessoal. De fato, as informações sobre comoos alunos constroem significados e atribuemsentido aos conteúdos escolares precisam sercompletados, nessa perspectiva, com informa-ções precisas sobre como os professores con-seguem ajudar os alunos, mediante sua ativi-dade educacional e de ensino, no processo deconstrução que realizam.

A psicologia dos conteúdos escolares

O interesse pelo ensino e pela aprendiza-gem dos conteúdos escolares específicos – lei-tura, escrita, matemática, geografia, história,etc. – é, sem dúvida nenhuma, outra das ten-dências que marcam o desenvolvimento recen-te da psicologia da educação (Calfee, 1992;Pintrich, 1994). Abandonado, ou pelo menosfortemente questionado, o objetivo de estabe-lecer uma série de princípios gerais de apren-dizagem universalmente válidos, e paralela-mente à influência crescente dos enfoquescontextuais e culturais, os esforços para com-preender o ensino e a aprendizagem tendem areportar-se cada vez mais para âmbitos especí-ficos do conhecimento escolar. Se há apenasalgumas décadas a preocupação com os con-teúdos concretizava-se de forma majoritária naaplicação dos princípios gerais do desenvolvi-mento e da aprendizagem às áreas de conteú-do específicos, agora o objetivo é, antes, com-preender a inter-relação entre o pensamentodo aluno, a estrutura interna e outras caracte-rísticas desses conteúdos, e a maneira como seprocura promover sua aprendizagem median-te o ensino.

A relevância adquirida pelos conteúdosespecíficos levou alguns autores (Shulman eQuinlan, 1996; Mayer, 1999a) a identificaremas “psicologias dos conteúdos escolares” ou“psicologias das matérias escolares” como umaárea de trabalho emergente e em rápido de-senvolvimento dentro da psicologia da educa-ção atual. Assim, por exemplo, Mayer (1999a,p. 21) identifica as “psicologias dos conteúdosescolares” como uma das áreas de pesquisamais promissoras da psicologia da educação.Segundo o autor, essas “psicologias” teriamcomo foco o estudo dos processos cognitivos,

de desenvolvimento, de aprendizagem e deensino em áreas específicas de conteúdos (veros Capítulos 18, 19, 20 e 21 deste volume).

O interesse pelos problemasdo ensino e as práticaseducacionais no mundo real

O ressurgimento da pesquisa psicológicados conteúdos específicos é um expoente doenvolvimento crescente da psicologia da edu-cação atual nos problemas que surgem e se for-mulam na prática do ensino. Mediante o estu-do dos processos de aprendizagem no contex-to de tarefas e atividades acadêmicas na salade aula – em vez de fazê-lo no contexto dolaboratório –, é possível desenvolver teoriasmais realistas e relevantes para guiar e orien-tar o ensino (ver o Capítulo 14 deste volume).Atender aos problemas da prática, estudar oensino e a aprendizagem nos contextos reais econcretos nos quais ocorrem obriga, além dis-so, a adotar uma perspectiva multidisciplinarque atenda também aos aspectos sociais e ins-titucionais (Calfee, 1992).

Como já se comentou, a maioria dos pio-neiros da psicologia da educação (WilliamJames, John Dewey, G. Stanley Hall, CharlesH. Judd, Eduard Claparède, Alfred Binet, etc.)situou o foco da atenção no campo da prática.Essa formulação inicial, porém, foi abandona-da em boa medida nas primeiras décadas doséculo XX, quando a psicologia da educação seconfigura como uma disciplina com orienta-ção nitidamente acadêmica, preocupada sobre-tudo em estabelecer os princípios psicológicoscujo conhecimento e cuja utilização pelos pro-fessores levaria necessariamente à melhoria“científica” do ensino. Essa situação, contudo,começa a mudar paulatinamente a partir dadécada de 1950 como conseqüência de umasérie de fatores, entre os quais vale destacar oenvolvimento de numerosos psicólogos educa-cionais em programas de formação militar du-rante a Segunda Guerra Mundial, assim comonos programas educacionais e sociais realiza-dos nas décadas de 1960 e 1970, sob a égideda ideologia igualitarista da época, com o ob-jetivo de compensar as carências sociais, eco-nômicas e culturais de amplas camadas da po-

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pulação e melhorar sua qualidade de vida. Des-se modo, e sob a pressão de demandas sociaise políticas cada vez mais fortes, os psicólogosda educação deixam de se ver como cientistase acadêmicos comprometidos exclusivamentecom o desenvolvimento e sua disciplina e co-meçam a perceber-se também como cientistassociais com a responsabilidade de colaborar nabusca de soluções para os problemas educa-cionais que se formulam na prática. Essa ten-dência não faz senão incrementar-se nas últi-mas décadas do século XX, de tal maneira quea atenção crescente aos problemas da práticaé atualmente outro traço característico da psi-cologia da educação (ver, a esse respeito, asprevisões de futuro para a psicologia da edu-cação coletadas por Casanova e Berliner cole-tadas no Quadro 1.1).

Um vínculo maior entre a pesquisa e odesenvolvimento teórico e a melhoriadas práticas educacionais concretas

A dissociação – ou pelo menos a distân-cia excessiva – entre, por um lado, a pesqui-sa, as elaborações teóricas e as propostas demudança e inovação e, por outro, as práticaseducativas reais – escolares, familiares ou dequalquer tipo – foi uma das críticas que se fezcom mais insistência à psicologia da educaçãoao longo de sua história. Como assinala DeCorte (2000), as razões devem ser buscadas,pelo menos em parte, nas formulações domi-nantes da psicologia aplicada à educação aolongo do século XX e cuja vigência se man-tém ainda com força em alguns círculos, so-bretudo acadêmicos; da mesma maneira queos avanços obtidos na aproximação entre te-oria e prática ao longo das últimas décadasdo século XX também devem ser atribuídosem boa medida, e de forma correlata, à acei-tação crescente, que, no entanto, ainda estálonge de ser geral, da visão da psicologia daeducação como disciplina-ponte.

De qualquer forma, a distância ainda éexcessiva, como demonstra o fato de que mui-tos professores, e inclusive muitos psicólogosda educação que desempenham uma ativida-de profissional, pensem que a pesquisa e ateoria são de pouca utilidade para abordar eresolver os problemas que se encontram no

exercício da profissão. A realidade é que astentativas de inovação e de melhoria das práti-cas escolares nem sempre incorporam os avan-ços e os progressos da pesquisa e da teoria empsicologia da educação. Provavelmente, a mu-dança de orientação da psicologia aplicada àeducação para a psicologia da educação comodisciplina-ponte não seja suficiente para su-perar definitivamente o hiato. Não basta ge-rar princípios mais úteis e relevantes para aeducação e transpô-los para os profissionaisda educação. Numerosos estudos demonstram(ver, por exemplo, Kennedy, 1997) que areceptividade dos professores e de outros pro-fissionais da educação às idéias novas é forte-mente determinada por suas crenças préviase seu valores, e que geralmente se mostrammais inclinados a adaptar as primeiras às se-gundas que o contrário.

Por isso, e com o objetivo de avançar nasuperação do hiato entre os avanços da psico-logia da educação e os esforços de inovação emelhoria das práticas educacionais, alguns au-tores (ver, por exemplo, Weiner e De Corte,1996; Wagner, 1997) propõem acompanhar amudança de orientação disciplinar – da psico-logia aplicada à educação à disciplina-ponte –com o desenvolvimento de estratégias e demodelos que reforçam a relação entre os doisaspectos. Nesse contexto, de Corte (2000, p.255) enunciou três critérios básicos que, a seuver, deveriam ser levados em conta para supe-rar a distância entre os avanços teóricos e osesforços de inovação e melhoria das práticaseducativas: adotar um enfoque holístico do am-biente de aprendizagem que leve em conta tan-to as variáveis relativas ao aluno e ao profes-sor como ao próprio contexto; assegurar umaboa comunicação recíproca utilizando um for-mato acessível, aceitável e utilizável pelos pro-fessores para transmitir os objetivos, osenfoques e os resultados da pesquisa, além deinduzir uma mudança nos sistemas de valorese nas crenças dos professores com respeito àsfinalidades da educação escolar, do ensino efi-caz e da aprendizagem significativa. Uma es-tratégia para a utilização combinada desses trêscritérios poderia consistir, segundo De Corte,na inserção de atividades de pesquisa e de ela-boração teórica da psicologia da educação nosesforços de inovação e de melhoria das práti-cas educacionais concretas.

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DESENVOLVIMENTO PSICOLÓGICO E EDUCAÇÃO, V.2 41

O interesse por diferentes tipos depráticas educacionais formais e informaise por suas relações e interconexões

O protagonismo adquirido pela educaçãoescolar em face de outros tipos de práticas edu-cacionais ao longo do século XX – fruto semdúvida da generalização da educação básica eobrigatória para toda a população em idadeescolar e de sua ampliação progressiva até al-cançar 8, 9, 10 ou inclusive mais anos nos paí-ses desenvolvidos – levou a uma redução pro-gressiva do conceito de educação. A educaçãopassou a ser assimilada à educação escolar, eesta com o que fazem professores e alunos nasescolas e nas salas de aula. Independentemen-te das repercussões desse fato sobre a evolu-ção das práticas educacionais – algumas certa-mente positivas, outras bem mais preocupantes(Coll, 1999a) – do ponto de vista deste capítu-lo, o que interessa destacar é que o protago-nismo da educação escolar levou à identifica-ção da psicologia da educação com a psicolo-gia da educação escolar e desta com o estudodas atividades de ensino e aprendizagem nassalas de aula.

Também nesse ponto se assiste a uma mu-dança de tendência. São cada vez mais freqüen-tes as vozes que reivindicam a volta a um con-ceito mais amplo de educação que leve em con-ta o conjunto das atividades e das práticas so-ciais – entre as quais se encontram as práticaseducativas escolares, mas não apenas elas –mediante as quais os grupos sociais promovamo desenvolvimento pessoal e a socialização deseus membros. O interesse por outro tipos depráticas educacionais não-escolares, como asque ocorrem no âmbito da família (ver, porexemplo, Rodrigo e Palacios, 1998; Solé,1998b) e em outros ambientes sociais e institu-cionais (de trabalho, de lazer, meios de comu-nicação, etc.), aumentou espetacularmente aolongos das últimas décadas. Os esforços paracompreender as relações e as interconexões en-tre a prática educativa escolar e outros tiposde práticas se multiplicaram (ver, por exem-plo, Lacasa, 1997; Vila, 1998; Capítulo 24 destevolume). Em suma, embora seja certo que apsicologia da educação continua sendo basi-camente uma psicologia da educação escolar,tudo sugere que essa situação está perto de sercorrigida e que a abertura a outros tipos de

práticas educacionais, formais e não-formais,vai continuar e aumentar, se possível, nos pró-ximos anos.

Encerro este capítulo introdutório sobreconcepções e tendências atuais da psicologiada educação com três anotações finais. A pri-meira é que, como se mencionou na introdu-ção, o panorama descrito mostra que efetiva-mente a diversidade – de formulações episte-mológicas, de enfoques e de alternativas teóri-cas, de conceitos e de critérios e de estratégiasde pesquisa –, e não a unidade, é a caracterís-tica mais destacada da psicologia da educação.A segunda é que essa diversidade, a meu ver,apenas reflete a diversidade e as encruzilha-das em que se encontra imersa a psicologia ci-entífica depois de um longo século de existên-cia. A terceira e última é uma rememoração euma reivindicação de caráter bifronte da psi-cologia da educação: por um lado, é uma áreaou uma especialidade da psicologia, compro-metida com o desenvolvimento do conhecimen-to psicológico a partir de seu âmbito específi-co de trabalho e de indagação, o que o obrigaa respeitar as exigências e os critérios de atua-ção e de validação próprios da disciplina; poroutro, está diretamente comprometida com amelhoria da educação e, por meio dela, com amelhoria da qualidade de vida das pessoas, oque a leva inevitavelmente a adquirir compro-missos ideológicos e morais. Mais uma vez,porém, talvez essa não seja, afinal, uma carac-terística específica da psicologia da educação,mas sim da psicologia geral e inclusive do con-junto das ciências sociais.

NOTAS

1. De acordo com Pérez (1978), é preciso distin-

guir entre as disciplinas cuja finalidade especí-

fica é estudar os processos educacionais, e que

constituem um núcleo específico das ciências

da educação, daquelas outras que, sem ter essa

finalidade, realizam aportes e propostas que

muitas vezes são úteis e pertinentes para uma

melhor compreensão e explicação dos fenôme-

nos educacionais. O conjunto das ciências hu-

manas e sociais, incluída a psicologia, perten-

cem à segunda categoria: a didática, a sociolo-

gia da educação e a psicologia da educação

integram a primeira. Embora, a nosso ver, seja

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conveniente rever as disciplinas que configu-

ram o núcleo específico das ciências da educa-

ção – incluindo, por exemplo, além daquelas

mencionadas pelo autor, outras como a filoso-

fia da educação, a política da educação, a so-

ciolingüística da educação, a antropologia da

educação ou a organização escolar –, a pro-

posta tem indubitável interesse para os argu-

mentos expostos neste capítulo. De fato, não

haveria contradição nenhuma, se tal distinção

é aceita, entre o fato de caracterizar a psicolo-

gia da educação como disciplina-ponte com

uma identidade própria e aceitar, ao mesmo

tempo, o inegável interesse e a utilidade que

tiveram, têm e, sem dúvida, continuarão ten-

do no futuro muitos aportes e propostas que

surgem da pesquisa psicológica básica.

2. A identificação da psicologia da educação es-

colar com a psicologia do ensino foi e continua

sendo objeto de polêmica entre os especialis-

tas. Algumas vezes, recusa-se à identificação,

alegando que o conceito de ensino se centra

exclusivamente nos aspectos relacionados a en-

sinar e a aprender conteúdos escolares, sendo,

como conseqüência, muito mais restritivo que

o conceito de educação, mesmo no caso da edu-

cação que tem como cenário a escola. Outras

vezes, ao contrário (ver, por exemplo, a defini-

ção de Resnick incluída no Quadro 1.1), a re-

cusa tem sua origem na associação que se pro-

duziu historicamente entre a psicologia

cognitiva e a psicologia do ensino, na realida-

de interpretando esta última como “psicologia

cognitiva do ensino”, isto é, como o estudo dos

processos cognitivos complexos associados ao

ensino e à aprendizagem dos conteúdos esco-

lares. Em nossa opinião, no entanto, as duas

expressões – psicologia do ensino e psicologia

da educação escolar – podem ser utilizadas

como sinônimos, interpretando, por um lado,

que o termo “ensino” designa qualquer tipo de

mudança que se produz nos alunos como re-

sultante da influência educacional exercida no

ou a partir do contexto escolar, e, por outro,

que a natureza dessas mudanças não é apenas

cognitiva, nem que elas possam ser explicadas

unicamente a partir de um enfoque cognitivo.

3. A psicologia escolar é concebida atualmente

como um dos ingredientes fundamentais da in-

tervenção psicopedagógica nas instituições

educacionais escolares, expressão utilizada

para designar um espaço de atividade profissi-

onal no qual confluem especialistas diversos

(psicólogos, pedagogos, assistentes sociais,

etc.) e que incorpora aportes de diferentes dis-

ciplinas (psicologia da educação, psicologia clí-

nica infantil, psicologia social, didática, orga-

nização escolar, etc.).

4. Ver Olson e Torrance (1996) para uma apre-

sentação geral desses novos enfoques e formu-

lações e de seu impacto no pensamento psico-

lógico atual sobre a educação.