primeira parte — fantine - cld.pt · num dia em que o imperador foi visitar seu o, encontrou- se...

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PRIMEIRAPARTEFANTINE

LIVROPRIMEIROUMJUSTOIOabadeMyriel

Em 1815, era bispo de Digne o reverendo Carlos Francisco BemvindoMyriel, o qual contava setenta e cinco anos de idade, e que desde 1806ocupavaaqueladiocese.

Embora seja estranho ao enredo desta histria, no ser demais referir,aindaquenosejasenoparasermosexactos,osdiversosboatoseconversasque nham circulado a seu respeito, quando da sua chegada diocese.Verdadeouno, o que se diz a respeito dos homens, ocupamuitas vezes nasua vida e, muito mais, no seu des no, um lugar to importante como omesmoqueelestm.

Segundo se dizia, Carlos Myriel era filho de um juiz da Relao de Aix(aristocracia de toga) que, tendo-o des nado para sucessor do cargo queexercia,ocasaramuitonovoainda,apenascomdezoitoouvinteanos,comocostumeemfamliaspertencentesmagistratura.

Apesar de casado, CarlosMyriel, pequeno de estatura,mas de agradvelpresena, elegante emuito espirituoso, dera, ao que constava, bastante quefalardesi,porcon nuardedicandoa suaexistnciaaosprazeresmundanos.Rebentou a revoluo e os acontecimentos precipitaram-se rapidamente; asfamliasdosmagistradosdizimadas,expulsas,perseguidas, fugiram.Logonosprimeiros dias da revoluo, Carlos Myriel emigrou para Itlia, onde suamulher sucumbiu, devido a uma afeco pulmonar de que h muito sofria,deixando-o sem descendncia. Que se passou depois disto na vida de CarlosMyriel?Dar-se-iaocasodarunadaan gasociedadefrancesa,adecadnciada prpria famlia, os trgicos acontecimentos de 93, talvez ainda maispavorosos para os emigrados que os viamde longe aumentados pelo terror,lhe terem feito germinar no esprito ideias de solido e de renncia? Teriasido no meio das afeies e distraces em que ocupava a vida, alcanadosubitamenteporalgumdessesterrveisemisteriososgolpes,quesvezesvodireitos ao corao e fazem derribar o homem que as catstrofes pblicas,mesmo ferindo-lhe a existncia e a fortuna, no seriam capazes de abalar?Eraimpossveldiz-lo;oquesesabiaque,quandoregressoudeItlia,vinhapadre.

Em 1804, Carlos Myriel, j de idade avanada, era proco da igreja deBrignollesevivianamaiscompletasolido.

Por ocasio da coroao teve de ir a Paris por causa de uma pequenapretenso,aqueandava ligadoo interessedasuaparquia.Entreaspessoasdeinfluncia,cujaprotecosolicitouemfavordosseusparoquianos,contava-

seocardealTesch.Numdiaemqueoimperadorfoivisitarseu o,encontrou-se na passagem com o digno eclesis co, que aguardava na antecmaraocasio oportuna para ser admi do audincia. Napoleo, notando ainsistncia com que aquele velho o observava, voltou-se de repente eperguntou:

Quemestehomemquenodeixadeolharparamim? Sire disseMyriel VossaMajestadereparounumpobreinsignificante,

euolhoparaumgrandehomem.Podemosambosaproveitar.Nessamesmanoite,oimperadorperguntouaocardealonomedoabadee,

pouco tempo depois, Carlos Myriel, surpreendido, recebeu a no cia de quehaviasidonomeadobispodeDigne.

Atqueponto,porm,eraverdadeoquesediziarela vamenteprimeirapartedaexistnciadaquelehomem?Ningumosabia,porquepoucasfamliashaviamconhecidoadeleantesdarevoluo.

Apesardebispoemesmoporo ser,Myriel tevede resignar-se sortedetodasaspessoasquechegamaumacidadepequena,ondemaioronmerodebocasque falamdoque cabeasquepensam.Nofimde tudo, porm, asconversasemqueoseunomeandavaenvolvido,nopassavamdeboatos.

Fossecomofosse,decorridosnoveanosdeepiscopadoede residnciaemDigne, todos esses mexericos, que nos primeiros tempos so o objectoconstante das conversas entre o povo das terras pequenas, caram em toprofundo esquecimento, que j ningum ousava repe -los, nem sequerrecordar-sedeles.

OreverendoMyrielveioparaDigneacompanhadodesua irmBap s na,mais nova do que ele dez anos e uma criada da mesma idade da irm,chamada Magloire, a qual passara a exercer as duplas funes de criadagravedasenhoraedispenseiradonovobispo.

Alta,magra, plida, delicada e afvel, Bap s na, embora se no pudessechamarotipodamulherveneranda,porqueparaissoeranecessrioquefosseme, realizava, todavia, a mais completa expresso da palavra respeitvel.Nuncaforabonita,masasuaexistncia,queseresumianumalongasriedeobras de caridade, reves ra-se, por fim, de umaespcie de alvura luminosaque lhe dava, depois de velha, aquilo a que poderemos chamar abeleza dabondade. O que na sua mocidade fora magreza, tornou-se na velhice emtransparncia,atravsdaqual,comodeumvu,seentreviaumanjo.Eraemsimesmamaisqueumavirgem,eraumaalma.Oseuvultoparecia feitodesombra; apenas o corpo necessrio para determinar o sexo; era pequenaporodematriacontendoumachamaceleste;olhosgrandesesemprefitosnocho,umpretextoparaumaalmaandarnaterra.

Magloireeraumavelhinhabaixaemuitogorda,sempreatarefada,semprearquejante,nosporefeitodasuamuitaac vidade,masemconsequnciadosseuspadecimentosasmticos.

ApenaschegouaDigne,onovopreladotomoupossedopalcioepiscopal,com todas as honras concedidas pelos decretos imperiais, que classificam obispo imediatamente aps o marechal de campo. Omaire e o presidenteforamlogocumpriment-lo,eele,porsuavez, fezomesmoaogeneraleaoprefeito.

Depoisdeveronovopreladoestabelecidonogovernoespiritualdadiocese,acidadeesperoupelosseusactos.

IIOabadeMyrieltorna-seMonsenhorBemvindoOpao episcopal deDigne estava situado junto do hospital, era um vasto

edi cio de pedra de cantaria, mandado construir no princpio do sculopassadoporMonsenhorHenriquePuget,doutoremteologiapelafaculdadedeParis,abadedeSimoreebispodeDigneem1712.

Esteedi cioeraumverdadeirodomicliosenhorial,emquetudorespiravagrandeza; os aposentos par culares do bispo, os sales, os quartos, o amplop o de recreio com o seu claustro em volta, segundo a an ga modaflorentinaeasmagnficasrvoresdojardim.

Na salade jantar, umaextensae sumptuosagaleriano rs-do-cho, cujasjanelasdavamparaos jardins, vera lugaro solenebanqueteoferecidopelobispoPugetem29deJulhode1714,aoarcebispoprncipedeEmbrun,CarlosBrulatdeGenlis,AntniodeMesgrigny,capuchinho,bispodeGrasse,FilipedeVendome,gro-priordeFrana,abadedeSantoHonoratodeLrins,FranciscodeBertondeGrillon, bispo-barodeVence, Csar de Sabrande Forcalquier,bispo e senhor de Glandeve e a Jean Soanen, da congregao do oratrio,pregadorordinriodoreiebispoesenhordeSenez.

A sala achava-se decorada com os retratos destes sete reverendospersonagenseemcimadeumamesademrmorebrancovia-segravadaemletrasdeoiroamemorveldatade29deJulhode1714.

Ohospitaleraumpequenoedifciodeumsandar,comumjardinzinho.Trsdiasdepoisdasuachegada,obispofoivisitarohospital.Terminadaa

visita,pediuaodirectorqueoacompanhasseaopao. Senhordirector perguntou-lhe quantosdoentestemaseucargo? Vinteeseis,Monsenhor. Foiosquecontei disseobispo. Ascamasestomuitoapertadasejuntas. Tambmrepareinisso. Asenfermariassomuitopequenasetmfaltadearejamento.

Tambmmepareceu. E o jardim mal chega para os convalescentes passearem quando est

bomtempo. Assim,comefeito. Emocasiesdeepidemias, comoeste ano, emquehouvemuitos casos

detifo,nosabemoscomoacomodarosdoentes. Tambmmeocorreuisso. Mas,senhorbispo,nopodemosfazeroutracoisasenoresignarmo-nos

concluiuodirector.Estaconversadesenrolava-senasaladejantarougaleriadoandartrreo.Apsummomentodesilncio,obispovoltou-sederepenteparaodirector

eperguntou-lhe: Quantascamaslheparecequepoderocabernestasala? NasaladejantardeV.Ex.?! exclamouodirector,estupefacto.Entretanto,obispocorreuavistapelasala,comoquemmedeecalculaas

distnciasedissecomoquefalandoconsigoprprio: Podemaquicabervintecamasvontade! Eemseguidaacrescentou,

elevandoavoz: Senhordirector,evidentequehaquiumgrandeerro.Osenhor temvinteeseispessoasemcincoouseisquartospequenos.Nsaquisomostrsetemoslugarparasessenta.Repitoqueherro!Osenhorocupaaminhacasaeeuvouocuparasua.Faamos,pois,atroca.

No dia seguinte, os vinte e seis pobres que naquela ocasio estavamdoentes, eram transportados para o pao episcopal e o bispomudava a suaresidnciaparaohospital.

Myriel no possua bens de fortuna, pois a revoluo arruinaracompletamenteasuafamlia.Airm nhaumapensovitalciadequinhentosfrancos, a qual, enquanto Myriel fora proco, bastava s suas despesaspessoais, e ele, como bispo, recebia do Estado uma dotao de quinze milfrancos.Nomesmodiaemquefixouasuaresidncianacasaqueeradantesohospital,determinoudumavezparasempreoempregodestaquan a,escritopeloseuprpriopunhodaseguintemaneira:

Distribuiodasdespesasdaminhacasa:Paraoseminrio:1500francosCongregaodamisso:100francosParaoslazaristasdeMontdidier:100francosSeminriodasmissesestrangeirasemParis:200francosCongregaodoEspritoSanto:150francosEstabelecimentosreligiososdaTerraSanta:100francosSociedadesdecaridadematernal:300francosParaadeAries:50francosParamelhoramentosdasprises:400francos

Parasocorroelivramentodepresos:500francosParalivramentodepaisdefamliaspresospordvidas:1000francosGratificaesaosmestrespobresdadiocese:2000francosParasocorrodospobresdosAltos-Alpes:100francosCongregaodas irmsdeDigne,deManosqueedeSisteron,paraoensinogratuito

dasraparigasindigentes:1500francosParaospobres:6000francosParaaminhadespesapessoal:1000francosTotal:15000francos

Durante todo o tempo do seu episcopado, o virtuoso prelado no fez amenoralteraonestasdisposies, aqueele, comoseviu,davaonomededistribuiodasdespesasdaminhacasa.

Bap s na aceitou com a mais completa submisso a vontade do irmo.Para a virtuosa senhora, Myriel era no s seu irmo, mas seu bispo, seuamigo segundo a natureza, seu superior segundo a igreja. Amava-o evenerava-o inteira e simplesmente.Obedecia, quandoele ordenava e aderias suas menores vontades sem fazer a mais leve observao. A criadaMagloirequenoSeconformouinteiramentecomsemelhantedistribuio,por ver que o bispos reservava para si mil francos, os quais, reunidos penso de Bap s na, perfaziam a soma demil e quinhentos francos anuais,nicorendimentocomqueostrstinhamdeviver.

Enosviviam,comefeito,comoatquandoalgumprocodealdeiavinhacidade,obispoaindaachavamododehosped-lo,graasseveraeconomiadeMagloireeinteligenteadministraodeBaptistina.

Uma ocasio, trs meses decorridos, depois da sua chegada a Digne, obispodisse:

Apesardetudo,sabeDeuscomoeuvivoconstrangido! Isso vejo eu! exclamou Magloire. Se Monsenhor nem ao menos

requisitouCmarao subsdioque foi sempre costumedar aosbispos, paradespesasnacidadeegastosdejornadasnasvisitasdobispado!

Parece-mequetemrazo,Magloire disseobispo.Efezareclamao.Passado algum tempo, a Cmara, tomando em considerao o seu

requerimento, votava-lheaquan aanualde trsmil francos, soba seguinterubrica:Subsdio ao senhor bispoparaprover s despesas de estado e s dasvisitaspastorais.

No foi precisomais para excitar as conversas da burguesia local, e paraque, por essa ocasio, um senador do imprio, an gomembro do Conselhodos Quinhentos, par drio do dezoito brumrio e provido numa pinguesenatoria nas proximidades da cidade de Digne, escrevesse ao ministro doscultos, Bigot de Prameneu, uma carta confidencial em termos irritados, da

qualextramosasseguinteslinhas,cujaautenticidadegarantimos:Carruagemparaqu?Quererandardecarruagemnumacidadequenochegaater

quatro mil habitantes? Despesas com a visita ao bispado? Em primeiro lugar, de queservem tais visitas? Em segundo lugar, como quer ele andar de carruagem numa terramontanhosa comoesta, ondenemestradash e sa cavalo sepode transitar? SenemsequerapontedeDurancemChteau-Arnoux,dpassagemanoseraalgumcarrodebois?Ospadressotodosassim,vidoseavaros!Este,quandochegouaqui,apresentou-secomobomapstolo;agoramostra-secomotodososoutros, jprecisadecarruagem,no dispensa o luxo dos bispos. Scia de padrecas! Asseguro-lhe, senhor conde, queenquantoo imperadornonos livrardestapragadecarolas,ascoisasnotomarobomrumo.AbaixooPapa! (Nestapocaas relaescomaSantaSandavamcomplicadas).EusouporCsaresporCsar!etc,etc.

Aconcessoquetantoincomodouosenador,encheudejbiloMagloire. OragraasaDeus! disseelaaBaptistina. Osenhorbispocomeoua

caridadepelosoutros,mas lembrou-se,enfim,tambmdesi.Agora jtemostrsmilfrancos.

Nesse mesmo dia, o bispo entregou a sua irm uma nota concebida doseguintemodo:

Despesasparacarruagemevisitasaobispado:Paradarcaldodecarneaosdoentesdohospital:1500francosParaaSociedadedeCaridadeMaternaldeAix:250francosParaaSociedadedeCaridadeMaternaldeDraguignan:250francosParaosenjeitados:500francosParaosrfos:500francosTotal:3000francos

Tal era o oramento do bispoMyriel. Quanto aos rendimentos eventuais,como dispensas de proclamas, bnos de igrejas ou capelas, casamentos,dispensasdevriosgneros,tograndeeraovigorcomqueobispooexigiadosricos,comoafacilidadecomqueodavaaospobres.

Passadoalgum tempo, comearama afluir as ofertas dedinheiro.Osquenhameosqueno nhamtodosba amportadaresidnciaepiscopal,uns

para dar, outros para receber a esmola que os primeiros iam depositar nasmos do virtuoso prelado. Em menos de um ano tornou-se o tesoureiro detodos os bene cios e o provedor de toda a misria. Avultadas quan as lhepassavampelasmos,masnempor isso fezamenoralteraonoseumodode viver, acrescentando ao que lhe era indispensvel a mais insignificantesuperfluidade. Pelo contrrio, como h sempre mais misria nas camadasinferiores do que fraternidade entre as superiores, o bispo dava tudo, porassimdizer,antesdeoterrecebido.Odinheironasuamoeracomoguaemterra sequiosa, por mais que recebesse achava-se sempre sem dinheiro.Nestascircunstnciasdespojava-seatdoquelheeraindispensvel.

Guiadosporumaespciedeafectuoso ins nto,entreosnomeseapelidosdo bispo, que, como hbito, exarava no princpio das suas pastorais e

circulares,ospobresdaterraescolheramaquelequelhesofereciaumsentido.Assim, pois, todos o designavam porMonsenhor Bemvindo, o quemuito lheagradavaequensigualmenteadoptamos.

Gosto deste nome dizia ele. Bemvindo modifica o tratamento deMonsenhor.

Nonossapretensodarcomoexactooretratoqueaquitraamos;oquesabemosenoslimitamosadizerqueeleverdadeiro.

IIIAbombispo,maubispadoApesardeterconver doacarruagememesmolas,nemporissodeixavao

bispode fazerassuasvisitaspastorais,visitasquenadiocesedeDigneeraminfinitamente di ceis por causa das suas pssimas comunicaes e da mnatureza do terreno para quem viaja. Em toda adiocese, que se compe detrinta e duas abadias, quarenta e um vicariatos e duzentos e oitenta e cincocuratos,noeraempresafcil,masopreladoconseguiulev-laacabo.

Quando as visitas eram nas vizinhanas, ia a p; na plancie, ia numcarrinho coberto de vimes e, na montanha, a cavalo. As duas mulheresacompanhavam-nosempre,exceptoquandoa jornadaeraemextremodi cilparaelas,porqueentoiasozinho.

Certo dia, entrou em Senez, an ga cidade episcopal, montado numjumento, porque a sua bolsa, naquela ocasio pouco abastecida, lhe nopermi raoutromododelocomoo.Omairedacidade,recebendo-oportado pao, no ocultou o seu descontentamento vendo-o apear-se dainsignificante cavalgadura, e alguns burgueses que se achavam tambmpresenteschegaramatarir.

Senhormaire,evs,senhores disseobispo seimuitobemoquevosdesagrada;achamquedemasiadasoberbanumpobrepadrecomoeuservir-separao seu transportedomesmomeioqueusou JesusCristo!Afirmo-lhes,porm,queofizpornecessidadeenoporvaidade.

Nas suas visitas,mostrava-se indulgente e afvel com todos os que se lheapresentavam. Conversava mais do que pregava. No ia nunca muito longebuscarosargumentosemodelosquedesejavaapresentar.Aoshabitantesdeumalocalidadecitavaosdalocalidadevizinha.

Noscantes,cujosmoradoressemostravampoucocompadecidosparacomosnecessitados,dizia:

VejamoshabitantesdeBrianon.Concederamaosindigentes,svivaseaos rfos, licena demandar ceifar as suas searas, trs dias antes demaisningum. Por isso uma terra abenoada por Deus. S l de cem em cemanosqueseouvefalarnumassassnio.

Nas aldeias onde os pequenos lavradores se viam a braos com grandes

dificuldadesparaacudiraoserviodascolheitas,dizia: Olhaiparaoque fazemosdeEmbrun.Naocasiodas ceifas, sealgum

pai de famlia, que temos filhos alistados no exrcito e as filhas a servir nacidade,adoece,vendo-seassimna impossibilidadede fazeraceifa,oprocorecomenda-onaocasiodapr ca,enodomingo,depoisdamissa, todososhabitantesdaaldeia,homens,mulheresecrianas, sedirigemparaocampodopobre homema fazer-lhe a colheita e a transportar-lhe a palha e o groparaaeira!

As famlias a quem questes de par lhas e outros interesses trazia emdesunio,dizia:

Olhai paraosmontanhesesdeDevolny, terra to selv caquenemdecinquenta em cinquenta anos se ouve o cantar do rouxinol! Pois ali, quandomorre o chefe de qualquer famlia, os rapazes vo procurar fortuna noutraparteedeixam todoopatrimnios irmsparaqueelaspossam fazerbonscasamentos.

Aoshabitantesdoscantes,amigosdepleitosequestesquedesbaratavamosseushaveresempapelselado,dizia:

OlhaiparaaquelesbonsaldeesdeQueyras.umapovoaodetrsmilalmase,louvadosejaDeus,vivemcomonumapequenarepblica.Nosabemo que seja um juiz, um processo ou um escrivo. Omaire quem faz tudo.Reparte o imposto, colecta cada habitante o que em conscincia lhe pareceque deve pagar, julga todas as causas gratuitamente, preside s par lhasentre os membros de uma famlia sem cobrar emolumentos, proferesentenas sem levar nada s partes, e todos lhe obedecem, porque umhomemjustonomeiodeumapopulaodehomenssimples.

Nas aldeias em que no encontrava mestre-escola, dizia, citando aindacomoexemplooshabitantesdeQueyras:

Quereissaberoqueelesfazem?Comoumlugardedozeouquinzefogosnopode spor si sustentar ummestre, combinam-se comos habitantes deoutros lugares e assim arranjam, co zando-se entre si, mestres que vo delugarem lugar,demorando-seoitodiasaqui,dezalm,dando liesaquemdelas se quer aproveitar. Os mestres, andam de feira em feira, como eumesmo j presenciei, e do-se a conhecer segundo o nmero de penas quetrazemnafitadochapu.Osquesensinama ler,trazemumapena;osqueensinamalereacontar,usamduaseosqueensinamaler,acontarela m,usamtrsesoconsideradosgrandessbios.umavergonhaficartodaavidaignorante,fazeicomoosdeQueyras.

Assim discursava o bom prelado, com gesto grave e paternal, inventandoparbolasquandono nhaexemplos,concisonafrase,opulentoemimagens,

persuasivoeconvicto,singeloeeloquente,comooutroraaeloqunciadeJesusCristo,convincenteepersuasiva

IVAspalavrassemelhantessobrasDotado de gnio prazenteiro e afvel, conversava e ria alegremente com

todos e em especial com as duas mulheres, companheiras nicas do seumodestoviver,acujasintelignciasadaptavaassuasconversasQuandoria,oseurisopareciaodeumacriana.

Magloire tratava-o quase sempre por minha grandeza. Certa vez, o bispolevantou-se da sua poltrona e dirigiu-se estante para rar um livro, mascomoerabaixoenopdechegar-lhe,virou-separaacriadaedisse-lhe:

Magloire, traga-me uma cadeira, porque a minha grandeza no chegaquelaprateleira.

Entre as visitas que o bispo deDigne recebia na sua residncia episcopal,contava-seadacondessadeL,suaparenteafastada

Todas as vezes que se encontravam, nunca aquela damaperdia a ocasiode lhe enumerar o que ela apelidava as esperanas dos seus trs filhosConsistiamestasnaprximaheranadosnumerososascendentesdacondessa,de quem seus filhos eram naturais herdeiros e que no prome am longadurao. O mais novo, por morte de uma segunda a, ficaria com umrendimentosuperioracemmilfrancos,osegundoherdariadeum oo tulodeduque;omaisvelhosucederiaaoavnopariato.

Obispo,ordinariamente, limitava-seaescutaremsilncioas inofensivasedesculpveisexpansesdoseuamordemeTodavia,numadasocasiesemque a condessa de L repe a a enumerao de todas aquelasheranas emperspectiva, reparando no ar pensa vo e distrado com que o prelado aescutava,interrompeu-seedisse-lheumtantodespeitada:

Que tem,meuprimo?Parecequenoprestaatenonenhumaaoqueeudigo.

Estouapensarnumacoisasingularque li respondeuobispo e quesegundome parece, pertence a Santo Agos nho: Ponde a vossa esperananaqueleaquemningumsubstituiu.

Outra vez, recebendoumacartaemque lhepar cipavamamortedeumfidalgoda terra,naqual,almdasdignidadesdodefunto,pomposamenteseostentavam todas as qualificaes feudais e nobilirias dos seus parentes,exclamou:

Quelargascostastemamorte!Comocarrega,semsequeixar,tamanhacarga de tulos, e que grande habilidade tm os homens para fazerem dotmuloinstrumentodasuavaidade!

Quando se lhe apresentava ensejo, nha sempre pronto um dito, que

encerravaumsentidosrio.Um ano, pela quaresma, chegou cidade um eclesis co ainda novo que

pregou na catedral. O assunto do seu tema foi a caridade e discursoueloquentementesobreoassunto.Convidouos ricosaauxiliaremospobres,afim de evitarem o inferno, que ele pintou o mais horroroso que pde ealcanaremoparaso,quemostroucomascoresmaisdeliciosaseagradveis.

Entreoauditrio,encontrava-senaquelaocasioumabastadonegociante,chamado Gborand, o qual, depois de ter ganho dois milhes em empresasfabris, se re rara do comrcio para se entregar com mais ou menosmoderaoaotrficousurrio.

Nunca na sua vida, Gborand dera esmola a um infeliz,mas depois destesermoviam-no,todososdomingos,aproximar-sedascincoouseisvelhasquemendigavamportadacatedraledarumsoldoparaelasrepartirementresi.

Umdia,indoobispoapassarquandoonegociantedavaaumadasinfelizesacostumadaesmola,voltou-separaairmedisse-lhe,sorrindo:

AliestosenhorGborandacomprarumsoldodoparaso!Quandosetratavadecaridade,norecuavamesmodiantedeumarecusa,

poistinhasempreprontaqualquerrespostaqueobrigavaareflectir.Uma vez, em certa reunio, tendo aberto um peditrio para os pobres,

aproximou-se do velho e avarento marqus de Champtercier, singularpersonagem que sabia o segredo de combinar o seu realismo exaltado comideias ultra-voltarianas (esta variedade exis u) e disse-lhe, tocando-lhe nobrao:

EV.Ex.,senhormarqus,nocontribuitambm?Omarqusvoltou-seerespondeucommodobrusco: Eutambmtenhoosmeuspobres,senhorbispo. Nessecaso,rogo-lhequemosd.Umdia,nacatedral,pregouestesermo:

Meus queridos irmos e amados ouvintes, h em Frana ummilho e trezentas evintemilcasasdehabitaodecamponeses,asquaisstmtrsaberturas;ummilhooitocentasedezassetemil,quetmapenasduas,umaportaeumajanela;e,finalmente,trezentasequarentaeseismilcabanas,cujanicaaberturaaporta.Acausadistoodenominadoimpostodasportasejanelas.Imaginaiummontodepessoas,umafamlianumerosacompostadevelhosecrianas,vivendo juntasemcadaumdessesdomicliossemarnemluzepensainasfebreseepidemiasaqueistopodedarorigem!Oh,dDeusoaraoshomensealeivende-lho!Noacusoalei,masbendigoaDeus!NoIsera,noVar,nosaltosebaixosAlpes,oscamponeses,quenemcarrosdemopossuem,transportamosestrumesscostas;notmcandeeirosnemvelasparaosalumiareparaobteremluzqueimampausefragmentosdecordasembebidosemresina.Omesmoacontecendoemtodos os lugares do Alto Delfinado. Fabricam po para seis meses e cosem-no com oestrumesecodasvacas.NoInverno,corta-seopoamachadoeconservam-nodemolhode um dia para o outro para se poder comer. Compadecei-vos, meus irmos, vendoquantosinfelizessofrememtornodevs!

Provenal de nascimento, o bispo familiarizara-se com todos os dialectosdas regies meridionais. Falava com extrema facilidade tanto o do baixoLanguedoc, como o dos Baixos Alpes e do Alto Delfinado. Isto agradava aopovoecontribuabastanteparalhegranjearsimpa as.Nocampo,nacidade,ounamaishumilde choupanadasmontanhas, achava-se comoemsua casa.Sabia dizer as coisas mais complicadasnalinguagem mais simples. Sabendofalaratodos,entravaemtodasasalmas.

Almdisto,atodostratavade igualmodo,fossemdascamadassuperioresoudas inferiores.Jamaisformulavajuzodesfavorvelarespeitodoquequerque fosse ou condenava sem atender s circunstncias. Costumavadizer:Vejamosocaminhoporondeaculpapassou.

Noobstante ser umex-pecador, comoa simesmosedenominava,nuncaprofessava as asperezas do rigorismo. A sua doutrina, que abertamenteobservava,adespeitodaausteridadeinflexvel,podia,compequenadiferena,resumir-senoseguinte:

O homem tem sobre si a carne, que o seu fardo e a suatentao. Ela arrasta-o e ele cede-lhe. O seu dever vigi-la,cont-la, reprimi-la e no lhe obedecer seno na l maextremidade.Essaobedinciapodeaindaserculposa,masaculpaassimvenial.cair,mascairde joelhosepor isso terminaremorao.

Sersantoumaexcepo;aregraserjusto.Errai,ca,pecai,massedejustos.

Pecaromenospossvelodeverdohomem,nopecarnuncaosonhodoanjo.Tudooqueterrestreestsujeitoaopecado.Opecadoumagravitao.

Quando via o tumultuoso alarido e a precipitada indignao de muitos,dizia,sorrindo:

Bastaveraazfamacomqueahipocrisiaseapressaaprotestareapr-seasalvo,paraseconhecerqueofogotambmlheandouporcasa!

Indulgenteparacomasmulhereseparacomospobres,sobrequemrecaisempreoantemadasociedade,costumavadizer:

As faltas das mulheres, das crianas, dos servos, dos fracos, dosindigentesedosignorantes,soasfaltasdosmaridos,dospais,dosamos,dosfortes,dosricosedossbios

Econtinuava: Aosignorantes,ensinai-lhesomaisquepuderdes;asociedadeanica

culpada por no ministrar a instruo gratuita e torna-se responsvel pelastrevasqueproduz.Opecadocomete-senomeiodaescuridoqueenvolveas

almas.Oculpadonooquepeca,massimdequemproduziuasombra.Como se v, o prelado professava um singular e par cular sistema de

encararascoisas,quedesconfiotivesseaprendidonoEvangelho.Certanoite,numa reunioemqueele seencontrava, contou-seahistria

deumprocessohpoucoinstauradoequeembreveiaentraremjulgamento.Levadopeloseuextremosoafectoaumamulherquelhederaumfilho,certodesgraado ao ver-se sem recursos, fabricou moeda falsa. Nessa poca, ofabricodemoedafalsaerapunidocompenademorte.Amulherforapresanaocasioemquepassavaaprimeiramoedafabricadaporele.Conservaram-napresa,masno tendoprovas contraela, comearamaacusaroamante.Eraelaanicapessoaqueopodiaperder,denunciando-o,masnoofez,negandosempre. Nova insistncia. Amesma nega va. O procurador teve ento umaideia.Disse-lhequeoamantelheerainfiel,epormeiodealgunsfragmentosdecartasastuciosamenteforjadas,persuadiuainfelizdequeoseucmpliceaatraioava.Entonumacessodecime,eladenunciaraoamanteeconfessaratudo. O homem estava perdido. Contava-se a histria do infeliz, o qual embreveiaserjulgadoemAixcomasuacmplice.Todoslouvavamaadmirvelsagacidade do magistrado, que, pondo em aco o cime, fizera do dioirromperaverdadeedavinganaa jus a.Obispoescutaraanarraoemsilncioedepoisdeterminada,perguntou:

Porquemvoserjulgadosessehomemeessamulher? Pelotribunal. Equemjulgaroprocurador?Um dia, deu-se em Digne um trgico acontecimento. Um homem foi

condenado morte por crime de homicdio. Era um desgraado nointeiramentedes tudodeinstruoequeantesdeserpresoexerciaoduplomisterdesal mbancoeescritorpblico.Oseuprocessoprendeu aatenodetoda a cidade. Na vspera do dia fixado para a execuo do criminoso, ocapelo da cadeia adoeceu repen namente. Era preciso um sacerdote queassis sseaopacientenosseusl mosmomentos,erecorreu-seaoproco,oqualserecusou,dizendo:

Issonocomigo,nadatenhoque fazercomcondenados,noesseomeulugar...ederestotambmestoudoente.

Depoisdelhecontaremarespostadoproco,obisporespondeu: Oprocotemrazo,noelequecompeteir,massimeu.E, dizendo isto, dirigiu-se imediatamente cadeia, entrou na cela do

sal mbanco,chamou-opelonome,estendeu-lheamoeconversoucomele,passouodiaa seu lado, semse lembrardecomernemdedormir,orandoaDeus pela alma do condenado e pedindo a este que intercedesse pela dela.

Disse-lhe as melhores verdades, que so as mais simples. Foi pai, irmo,amigo, bispo somente para o abenoar. Ensinou-lhe tudo, tranquilizando-o econsolando-o. Aquele homem ia morrer desesperado. A morte era para eleum abismo, a cujo limiar chegara forado e vista do qual recuavahorrorizadoetrmulo.Noeratoignorantequesetornassecompletamenteindiferente,masoviolentoabalodasuacondenaocomoqueabriraalgumasfendas,nessevuchamadoavida,quenosseparadomistriodascoisas.At chegada do bispo, por essas fatais aberturas, s via trevas; veio o bispo eapontou-lheaclaridade.

Quando,nodia seguinte, o vierambuscarparao conduzir ao cadafalso, obispo, que no o nha abandonado, acompanhou-o ao lugar do suplcio, porentreosolharesdamul do,queo contemplavaadmirada, por v-lo comoseumanto roxoe a cruz episcopal aopeito, ao ladodo infeliz, comasmosamarradasatrsdascostas.

Toprostradoeangus adonavspera,orostodocondenadomostrava-seagorailuminadoporumresplandecenteclarodealegria.Reconciliadocomasua alma, entregava-se confiadamente a Deus. No momento em que ocarrascosepreparavaparadescarregarogolpefatal,obispoabraou-opelaltimavez,dizendo-lhe:

Meufilho,oquemorreparasa sfaodajus adoshomens,ressuscitaemDeus;oquesevrepelidoporseusirmos,encontraabertososbraosdopai!Orai,crede,entrainavidaceleste,queDeuslvosespera!

Quando desceu as escadas do cadafalso, o seu olhar fulgurava com umaestranha luz, que impunha respeito mul do e a obrigava a dar-lhepassagem. No sabemos qual das coisas eramais digna de admirao, se asuapalidez, sea sua serenidade.Aoentrarna suamodestahabitao,aqueelechamava,sorrindo,oseupalcio,disseirm:

Acabeiagoramesmodecelebrarpontificalmente.Como quase sempre as coisas mais sublimes so tambm as menos

compreendidas,nofaltounacidadequem,comentandooprocederdobispo,dissesse:

Issonopassadeafectao!Masestaapreciaonosaiudossales.Opovo,poucopropensoadeitar

malcianasacessantas,admirava-oemostrava-secomovido.No que respeita ao bispo, a vista da guilho na causou-lhe um abalo

profundo,dequedurantemuitotemponolhefoipossvelrestabelecer-se.Oaspectodocadafalso,comefeito,quandoseerguetemqualquercoisade

alucinante. Pode mostrar-se indiferena em relao pena de morte;podemoshesitar,nonospronunciarmosclaramente,enquantocomosnossos

prpriosolhosnovemosumaguilhotina,mas,desdequeavimos,oabaloquenoscausatoviolentoquetemosdenosdecidirouproucontra.Admiram-na uns como Maistre, outro detestam-na como Becaria. A guilho na aexpresso concentrada da lei; chama-se vingana, no neutral nem nospermite s-lo. Quem a v sente percorrer-lhe no corpo o mais misteriosoestremecimento.Emvoltadessecutelosurgemtodasasquestessociaiscomoumpontodeinterrogao.Ocadafalsoumaviso,noummadeiramento,uma mquina, um mecanismo inerte feito de pau, ferro e cordas. umaespcie de ente dotado de no sei que sinistra inicia va. Dir-se-ia que essamola de madeira v, que essa mquina ouve, que esse mecanismocompreende,queesse ferroeessas cordas tmumavontade.A vistadeumcadafalsofazembrenharoespritoemsombriascogitaes,domeiodasquaissurge terrvel e como que circundado dos espectros das suas vi mas. Ocadafalso o cmplice do carrasco, nutre-se de carne e sangue humano. uma espcie demonstro fabricado pelo juiz e pelo carpinteiro, um espectroquepareceviverahorrorosaexistnciacompostadetodasasmortesquetemdado.

A impresso que semelhante vista causou no esprito do bispo foi toprofundaehorrvel,quenodiaseguinteeaindadapormuitosdias,obondosoprelado parecia visivelmente oprimido. A serenidade quase violenta domomento fnebre havia desaparecido para dar lugar ao fantasma da jus asocialqueoperseguiaeobcecava.Ele,quehabitualmentevoltavadetodososactos que ia desempenhar com to radiante sa sfao, agora quase pareciaexprobar-sedoque nhafeito.svezespunha-seafalarsozinho,balbuciandolgubres monlogos. Eis um que a irm, uma noite, ouviu e conservou dememria:

Nuncasupusquefosseumacoisatomonstruosa!umerrodeixarmo-nosabsorverpelaleidivina,apontodeolvidarinteiramentealeihumana.Matars a Deus pertence! Com que direito tocam os homens nessa en dadedesconhecida?

Comodecorrerdotempo,estasimpressesforam-seatenuando,attalvezse ex nguirem. Todavia, houve quem notasse que o bispo, desde ento,evitavapassarpelapraaonde nhamlugarasexecues.Podiamchamaroprelado a qualquer hora para ir confessar um enfermo ou assis r a ummoribundo, que ele no ignorava ser este o seu dever mais sagrado, a suamisso mais sublime. As vivas e os rfos no precisavam de o chamar,porque ele lhes acudia voluntariamente. Sabia estar sentado durante horasinteiras a escutar silencioso e a animar com palavras de conforto o homemque perdera a mulher amada, ou a me que perdera o filho querido.

Admirvel consolador! Os seus esforos no tendiam a fazer ex nguir a dorpeloesquecimento,masaengrandec-lapelaesperana!

Atentai bemnomodo como contemplais osmortos dizia ele. Noocupeisovossopensamentocomoqueapodrece.Olhaifixamenteevereisnofundodocuachamavivadoentemortoaquemamveis.

Ele sabia que a crena era santa e por isso aconselhava e serenava ohomem desesperado, apontando-lhe o homem resignado, e transformava ador imveldiantedeumasepultura, indicando-lheadorquefitaosolhosnocintilardeumaestrela.

VComoMonsenhorBemvindopoupavaassuasbatinasA vida n ma de Carlos Myriel assemelhava-se inteiramente sua vida

pblica.Seforadadoaalgumobserv-ladeperto,ficariaimpressionadocomo grave e aomesmo tempo gracioso espectculo da pobreza voluntria emqueviviaobispodeDigne.

Comotodososvelhosecomoamaiorpartedospensadores,dormiapouco,masprofundamente.Pelamanh,apsumahoraderecolhimento,diziaasuamissa na catedral ou no seu oratrio par cular e, assim que terminava estatarefadiria,iaalmoar.Oseualmooconsis aemalgumassopasdepodecenteiocomleite,extradodeduasvacasque nhaemcasa.Emseguida,davaprincpioaosseustrabalhos.

Umbispoumhomemocupadssimo;temdedartodososdiasaudinciasao secretrio da cmara eclesis ca, que habitualmente um cnego, e aquase todosos seusvigriosgerais.Almdisto, temdevisitar congregaes,conceder licenas, examinar uma completa livraria espiritual comocatecismos, livros de horas, etc., escrever pastorais, compor as desavenasentre os procos e as autoridades, dar expediente correspondnciaeclesis ca e civil, atender de um lado o estado, de outro a igreja;finalmente,milcoisasquelhereclamamaateno.

Otempoque lhesobravadobrevirioedocumprimentode todososseusencargos e obrigaes, dedicava-o em primeiro lugar com os necessitados,comosenfermoseaflitos;eoquedetudo istoainda lhesobrava,aplicava-oaotrabalho,oracavandoaterradasuahorta,oraaler,ouaescrever.Aestasduasespciesdetrabalho,designava-ascomomesmonome:jardinar.

Oespritoumjardim costumavaeledizer.Ao meio-dia, quando o dia estava ameno, saa e dava um passeio pela

cidade ou pelos arrabaldes, visitando muitas vezes as casas dos pobres quedeparavanocaminho.Nadamaisfcildoqueencontr-losozinho,absortonassuas cogitaes, de olhos fitos no cho, encostado sua comprida bengala,agasalhado na sua acolchoada capa roxa, meias da mesma cor, grandes

sapatoseoseuchapudetrsbicoscomumagrandeborladeoiroemcadaum. Onde quer que aparecesse, todos o festejavam. Dir-se-ia que a suapresena aquecia e iluminava. Por onde ele passava, velhos e crianasassomavamsportas,comomesmoalvoroocomquesairiamaaquecer-seaosraiosdosol.Eleabenoavaopovo,opovoabenoava-oaele,apontandoaresidncia episcopal como o lugar em que todo o infortnio acharia alivio etoda a necessidade socorro. Parava acada momento, gracejando com osrapazeseraparigas,sorrindobenevolamenteparaasmesedandoconselhosa todos. Enquanto nhadinheiro, visitava os pobres; acabado ele, visitava osricos.

Como queria que as ba nas lhe durassem muito tempo, nunca saa apassearpelacidadesenocomacaparoxa,oquedeVeronodeixavadeoincomodar.

Depoisvoltavaacasaparajantar.Ojantarassemelhava-seaoalmoo.s oito e meia da noite, ceava em companhia da irm, servidos por

Magloire, que se conservava de p por trs deles. Nadamais frugal do queesta refeio, excepto quando o bispo nha algum hspede, porque entoMagloirearranjavapretextoparaapresentarnamesaalgumpeixeoualgumapea de caa. A isto, que se repe a sempre que havia hspedes no pao, obispo nada dizia. Fora destas ocasies, as refeies habituais constavamsempre de legumes ou de alguma simples sopa. Deste frugalmodo de viveroriginava-seoseguintedito,jproverbialnacidade:

Hspedenopaodomingogordoemcasadejornaleiro.Depoisdaceia,demorava-seaindameiahoraaconversarcomBap s nae

com Magloire, recolhendo-se em seguida ao seu quarto, onde se punha aescreveremfolhassoltasounamargemdealgum inflio.CarlosMyrielerainstrudoealgumacoisaversadonascincias,comooprovamoscincoouseiscuriososmanuscritosporeledeixados,entreosquaissecontaumadissertaosobreoversculodoGnesis:NoprincpiodomundooespritodeDeuspairavasobre as guas. Comeste versculo confronta o rabe que diz: Sopravam osventosdeDeus.OutrodeFlvioJos:Umventovindodoaltoprecipita-sesobreaterra. E finalmente a parfrase caldaica deOnkelos, onde se l: Um ventomandado porDeus soprava sobre a super cie das guas. Noutra dissertaoexamina as obras teolgicas de Hugo, bispo de Ptolomeida, o em terceirograu do autor deste livro, concluindo que se devem atribuir a esse bispo osdiversos opsculos publicados no sculo passado sob o pseudnimo deBarleycourt.

s vezes, qualquer que fosse o livro que vesse entre mos, paravasubitamente de ler e caa em profundameditao, finda a qual se punha a

escreveralgumas linhas,nasprpriaspginasdovolume, sem,muitasvezes,aquiloqueescreviaterrelaoalgumacomoquediziaolivro.Temosaseguirumanotaescritaporelenamargemdeumlivro:

Correspondncia de Lord Germai com os generais Clinton, Cornwalis e com osalmirantesda estaodaAmrica.Versailles,emcasadolivreiro Poinoi;eemParis,nadolivreiroPissot,caisdosAgostinhos.

Anotadiz:Oh,vsquemsois!?O Eclesiastes chama-vos Todo Poderoso; os Macabeus, Criador; a Epstola aos

fesos,Liberdade;Baruch,Imensidade;osSalmos,SabedoriaeVerdade;Jean,Luz;oLivrodos Reis, Senhor; o xodo, Providncia; o Lev co, San dade; Esdras, Jus a; a criao,Deus;ohomem,Pai;Salomo,porm,chama-vosMisericrdia,eesteomaisbelodetodososvossosnomes.

s nove horas, as duas mulheres re ravam-se para os seus quartos, queficavamnoprimeiro andar, deixandoo bispo sozinho, at demadrugada, nors-do-cho.

AgoranecessriodaraexactaideiadahabitaodobispodeDigne.VIQuemguardavaacasadoprelado

Acasaqueobispohabitavacompunha-seders-do-choeprimeiroandar;ors-do-choeradivididoemtrssalas,oandarsuperioremtrsquartos,porcima dos quais ficava um sto. Nas traseiras da casa havia um pequenojardim.Asduasmulheresocupavamoprimeiroandar,obispoors-do-cho.Aprimeirasala,cujasjanelasdeitavamparaarua,servia-lhedesaladejantar,a segunda de quarto de dormir e a terceira de oratrio. No se podia sairdestesempassarpeloquartodedormir,nemdoquartodedormir,sempassarpelasaladejantar.Nofundodasalaqueserviadeoratriohaviaumaalcovafechada, com uma cama de reserva para os hspedes, que o bispo ofereciaaos procos de aldeia que os seus prprios negcios ou as necessidades dassuasparquiasobrigavamaviraDigne.

Afarmciadohospital,pequenocompar mentoaofundodojardim,serviadecozinhaedispensa.

Havia,almdisso,tambmno jardim,umestbulo,queemtemposforaacozinhadohospcioeondeagoraobispoguardavaduasvacas.Porpoucoquefosse o leite que elas dessem, mesmo assim, todos os dias pela manh, oprelado mandava entregar metade aos doentes do hospital, ao que elechamavapagaroseudzimo.

Comooseuquarto,demasiadamentegrande,eramuitofriodeInvernoealenha em Digne fica por elevado preo, lembrou-se de mandar fazer noestbulo das vacas um compar mento de madeira, onde passava as noitesmaisfrias.Chamava-lheeleoseusalodeInverno.

Os mveis do salo de Inverno consis am apenas, como os da sala de

jantar,numamesaquadradadepinhoequatrocadeirasdepalhinha.Nasalade jantar apenas havia mais um velho bufete, pintado de vermelho. De umbufeteigual,convenientementeadornadodetoalhaserendasdepoucocusto,fizeraobispooaltarquedecoravaooratrio.

Porvriasvezes,asconfessadasricasdobispoeoutrasdevotasdacidadesehaviamquo zadoentresipara,suacusta, lhemandaremfazernooratrioumaltarmaisasseado,mas,detodasasvezes,opreladoderaodinheiroaospobres.

Omelhor de todos os altares dizia ele a alma de um infelizagradecendoaDeusoalviodoseuinfortnio!

Nooratrio nhadoisgenuflexriosdepalhinhaenoquartodedormirumacadeira de braos, tambm de palhinha. Quando acontecia sete ou oitopessoas virem-no visitar ao mesmo tempo, o prefeito, o general, o estado-maiordoregimentoquefaziaaguardadacidade,ouosalunosdoseminrio,era preciso ir ao estbulo buscar as cadeiras do salo de Inverno, osgenuflexrios ao oratrio e a cadeira de braos ao quarto de dormir,conseguindo-se, deste modo, reunir at onze assentos, se tantas eram asvisitas. medida que iam chegando, ia-se desguarnecendo de mveis cadasala.

Sucedia algumas vezes serem doze as visitas; ento o bispo dissimulava oembarao da situao, conservando-se em p junto do fogo, se era deInverno,oupasseandonojardim,seeradeVero.

Haviaaindanaalcovaumacadeiradepalhinha,mascomo,almde teroassentoarrombado,s nhatrspernas,nopodiaservirsenoencostando-a parede. A senhora Bap s na nha tambm no seu quarto uma grandepoltrona com dourados, que j mal se conheciam, mas como a escada erademasiado estreita, no pudera ser conduzida para o primeiro andar, senoiando-apelajanela,resultandodaquenosepodiacontarcomoseuauxlioparaasocasiesdeapuro.

Bap s na vera sempre a ambio de poder comprar uma mobliacompletadeacaj,paraornamentardevidamenteaquelamodesta casaMasparatalser-lhe-iamnecessrios,pelomenos,quinhentosfrancos,evendoquedurante cinco anos no conseguira economizar mais de cinquenta francos,renunciaratristementeaoseuprojecto

Nadamais simplesde imaginardoqueoquartodedormirdobispo.Umajanela rasgada, que deitava para o jardim; defronte, uma cama de ferro dehospital, com cor nado de sarja verde; junto da cama, encobertos por umacor na, vrios objectos de toucador, denunciando aindaos hbitos elegantesdohomemdeboasociedade;duasportas,umajuntodofogo,quedavapara

ooratrio,aoutraprximadaestante,dandoparaacasadejantar.Aestante,grandearmrioenvidraadocheiode livros;o fogo,guarnecidodemadeirapintada a fingir mrmore, quase sempre apagado, com trempe de ferroornadadedoisvasoscheiosdeplantaseembu dos,primi vamenteprateadosa fosco, o que cons tua certo luxo episcopal; por cima do fogo via-se umcrucifixode cobredesprateado, assente sobreumpedaode veludopreto jmuito velho, num caixilho que fora dourado; junto da janela, uma espaosamesa com um nteiro ao centro, pejada de volumosos livros e papis emconfuso. Ao p da mesa a cadeira de palhinha e ao p da cama umgenuflexrio,pertencenteaooratrio.

Decadaladodacama,viam-sedoisretratosemcaixilhosovais,penduradosnaparede.Algumasinscriesgravadasemletrasdeoironofundoescurodecadatela.porbaixodasfiguras,indicavamqueosretratosrepresentavam,umo abade de Chaliot, bispo de S. Cludio, o outro, o abade Tourteau, vigriogeraldeAgdeeabadedeGrand-Champs,daordemdeCister,nadiocesedeChartres.

Quando o bispo fixara a sua residncia naquela casa, que fora o hospital,encontrara ali aqueles retratos e deixara-os ficar no mesmo lugar, porqueeram de sacerdotes e talvez de benfeitores, duas razes para que ele osrespeitasse. Tudo o que ele sabia acerca destes dois personagens era queambos nham sido providos, umno seu bispado, outro no seu bene cio, pornomeao rgia datada do mesmo dia, 27 de Abril de 1785. Soubera estacircunstnciapora terencontradoescritaemcaracteresque jmal se liam,num quadradinho de papel, amarelado pela aco do tempo, pregado comquatro obreias na parte posterior do retrato do abade de Grand-Champs,numaocasioemqueMagloiretiraraosdoisquadrosparaoslimpardop.

Pendiada larga janelaumacor nadegrosseirotecidode lmuitoan go,queMagloireparaevitaradespesadeumanova,seviunanecessidadedelhefazer uma grande costura no centro. Como a costura apresentavaexactamenteaformadeumacruz,obispoindicava-asvezes,dizendo:

Nuncahouvecosturacomaspectomaisagradvel.Osquartos,tantoosdors-do-chocomoosdoprimeiroandar,eramtodos

caiadosdebranco,comoerahabitualnoshospitaisenosquartis.Muitosanosdepois,porm,Magloireencontrouporbaixodopapelcaiado

vrias pinturas que ornavam o quarto de Bap s na. Antes de ser hospital,aquelacasaforacentrodereuniodosburguesesedaprovinhaadecorao.Os quartos eram ladrilhados de jolos, que todas as semanas se lavavam, eaospsdecadacamahaviaumaesteira.Numapalavra,ahumildehabitaodobispo,acargodasduasmulheres, respiravaoperfumedamaisesmerada

limpeza.Eraonicoluxoqueeleconsentia. Comistonosetiranadaaospobres! costumavaeledizer.Convm,contudo,dizerquelherestavaainda,doqueoutrorapossura,seis

talheresdeprataeumacolherdesopa,queMagloireviatodososdias,comomaiorprazer,reluzirsobreaalvatoalhadelinhogrossoquecobriaamesa.

EjqueaquipintmosobispodeDignetalqualera,devemosacrescentarquemaisdeumavezselheouviradizer:

H-decustar-memuitocomercomumtalherquenosejadeprata!Aestabaixelaacrescentaremostambmdoiscastiaisdepratamacia,que

herdaradeuma a.Estescas aisque nhamduasvelasdecera,figuravamhabitualmentesobreofogo.Quandohaviaalgumhspede,Magloireacendiaas velas e colocava os cas ais sobre a mesa. No quarto do bispo, junto cabeceiradacama,haviaumpequenoarmrioondeMagloiretodasasnoitesfechavaostalheres,massemnuncatirarachave.

O jardim,umtantoprejudicadopelas feiasconstruesdeque j falmos,eradivididoporquatrocaminhosemcruz,comumtanquenocentroAolongodomurocaiadoquefechavaojardim,haviaoutrocaminhoqueocircundava.Estas ruas eram separadas por canteiros orlados de buxo, em trs dos quaisMagloire cul vava legumes, ficando ainda outro, onde o bispo nha as suasfloreseondeplantaratambmalgumasrvoresdefruto.

Numa ocasio, a criada dissera ao bispo, sorrindo com ar de afectuosamalcia:

Monsenhor, quede tudo raproveito, no sei como temno jardimumcanteiroinutilizado.Noseriamelhorsemearnelealfacesemvezdeflores?

Est enganada, Magloire respondeu ele. O agradvel to lcomo o l. E, aps um momento de silncio, acrescentou: Ou talvezmais.

O canteiro, que era dividido em quatro alegretes, ocupava a ateno dobispo, tantocomoos seus livros. Semprequepodia,passavaaliumaouduashoras, cortando, sachando, mondando e lanando terra novas sementes.Menoshos lcomosinsectosdoqueseriaparadesejarnumjardineiro,obispotambmno nhaaspiraesabotnico;desconheciaosgruposeasfamlias,noselembrandosequerdedecidirentreTourneforteomtodonatural,nemde tomarpar dopelosutrculos contraos cotyledoniosoupor Jussieu contraLimeu.Noestudavaasplantas,amavaasflores.Respeitavamuitoossbios,respeitava aindamais os ignorantes e, sem nunca deixar de respeitar uns eoutros,noVeroregavatodasastardesosseusalegretescomumregadordelatapintadodeverde.

Emtodaacasanohaviaumasportafechadachave.Aportadasalade

jantarquedavasadaparao largodacatedral, fora,emtempos,guarnecidade fechaduras e ferrolhos, como se fosse a porta de uma priso. O bispomandou rartodasasfechadurasedaemdiantequerfossenoite,querdia,aporta apenas ficava segura por um simples fecho. Quem quisesse abrir aporta,podiafaz-loaqualquerhora.

Nosprimeirostempos,istoafligiaasduasmulheres,masobispodizia-lhes: Sequiseremmandemprferrolhosnosvossosquartos.Desdeento,elasprincipiaramapar cipardaconfianadobispoou,pelo

menos, a mostrar que par cipavam. Apenas Magloire sen a, de tempos atempos,renascer-lheosreceios.Noquerespeitaaoprelado,podemdar-nosaexplicaoou,pelomenos, indicaodoseupensamento,as seguintes linhasescritasporelenamargemdeumafolhadaBblia:Eisadiferena:aportadomdiconuncadeveestar fechada e a porta do sacerdotedeve estar sempreaberta.

Noutro livro in tuladoFilosofiadacinciamdica escreveraeleestanota:Tomdicosoueucomoeles.Elestmosseusenfermos,aosquaischamamdoentes;eutenhoesseseosmeus,aquemchamodesgraados.

Noutra parte lia-se ainda: No pergunteis nunca o nome de quem vospedir pousada Aquele que necessita de ocultar o seu nome, quem maiscarecedeasilo.

Uma ocasio, um respeitvel proco, no sabemos bem se o deCouloubroux,seodePompierry,perguntou-lhe,talvezins gadoporMagloire,seestavacertodenocometer,atcertoponto,uma imprudncia,deixandodenoite aporta aberta, mercdequemquisesse entrar, e se, finalmente,noreceavaconsequnciasdesagradveisnumacasatomalguardada.

Obispo,comserenagravidade,ps-lheamonoombroedisse-lhe: NisiDominuscustodieritdomum,invanumvigilantequicustodiuntearn.Dizendoisto,mudoulogodeassunto.Osacerdote,costumavaeledizer,temtantabravuracomoomilitar.Coma

diferena,acrescentava,queanossadevesermaispacfica.VIIGravatte,osalteador

Vemapropsitoaquiumfactoquenodevemosomi r,porserumdosquemelhordoaconhecerocarcterdovirtuosobispodeDigne.

Depois de destroada a quadrilha de Gaspar Bs, terrvel bandido queinfestaraasgargantasdeOlialles,refugiara-senamontanhacommaisalgunssalteadoresqueconseguiramescaparjus a,umdosseuslugares-tenentes,chamadoGrava e.Conservando-sealgumtempoocultonocondadodeNice,Grava eentrounoPiemontee,quandomenoseraesperado, reapareceuemFrana,doladodeBercelone e,sendovistoprimeiroemJausiersedepoisem

Tuiles.Ocultonas cavernasde Joug-de-lAigle, fazia frequentes incursesnoslugares e aldeias dos arredores, descendo pelos barrancos de Ubaye e doUbayette.

Umanoite,chegoumesmoaentraremEmbrun,ondepenetrounacatedral,roubandotodososobjectosqueseencontravamnasacris a.Osseusrepe dosassaltos traziam a terra em con nuo e terrvel sobressalto. Destacou-se umcorpodegendarmeriaparaoperseguir,mas foi trabalhobaldado.Escapava-se sempre e at algumas vezes resis a s foras mandadas em suaperseguio.

Nomeio deste terror, chegou o bispo, que andava a fazer as suas visitaspelodistritodeChastelar.Omairefoiaoseuencontroepretendeuconvenc-lo de quanto seria prudente voltar para trs, pois Grava e ocupava amontanhaatparaalmdoArche.Tornava-seperigosoatravess-la,mesmocom uma escolta, porque seria expor inu lmente a vida de trs ou quatropobressoldados.

Porissomesmotencionoirsemescolta disseobispo. PoisMonsenhorintentasemelhantecoisa?! exclamouomaire. De talmodoque recusoa companhiados soldadosedaquiaumahora

pr-me-eiacaminho. Poisteimaempartir? Porqueno? Sozinho? Sim. Issoumatemeridade,senhorbispo. H trsanos replicouobispo que no visito o pequeno e humilde

lugarejo da montanha, cujos habitantes e bons pastores, so todos meusamigos.Asuariquezaumacabradecadarebanhodetrintaqueguardam;asua indstria, fazer bonitos cordes de l de diversas cores e o seudiver mento, tocar riasmontanhesas emflau nsde seis buracos. PrecisamdeouvirapalavradeDeusdetemposatempos.Quehaviamdedizerdeumbispomedroso?Quediriamseeulnofosse?

Mas,Monsenhor,eossalteadores? verdade,temrazo.Seosencontrasse...Olhequetambmdevemter

necessidadedeouvirfalaremDeus! umagrandequadrilha!Umrebanhodelobos! Pois talvez seja desse rebanho, senhormaire, que Jesus queira que eu

sejapastor.QuemsabeosdesgniosdaProvidncia? Podemroub-lo,senhorbispo. Notenhonada.

Podemassassin-lo! Ora! Com que fim fariam eles mal a um pobre sacerdote que vai a

passar,ocupadounicamenteemrezarassuasoraes? Valha-meDeus!Quesucederseosencontrar? Pedir-lhes-eiesmolaparaosmeuspobres. Emnomedocu,Monsenhor,noexponhaasuavida! Poisesseoseutemor,senhormaire! atalhouobispo. Eunoando

nomundoparaguardaraminhavida,massimparaguardarasalmas!Ningum o pde fazer mudar de resoluo. Apesar de todas as splicas,

partiuacompanhadoapenasporumrapazqueseprestouaservir-lhedeguia.A sua obs nada resistncia deu muito que falar, deixando os nimos

sobressaltados em extremo. Desta vez no quis que a irm nemMagloire oacompanhassem.

Atravessouamontanhamontadonumamulaechegousoesalvoataospastores seusamigossemter doomenorencontrodesagradvel.Demorou-se quinze dias no meio deles, pregando, ensinando, moralizando,administrandoossacramentos.

Quandoestavaprestesare rar-se,resolveucantarpon ficalmenteum Te-Deumecomunicouasuaintenoaocura.Massurgiramgravesdificuldades,pois no havia as insgnias episcopais que era mister. A modesta igrejaparoquial apenas podia pr disposio do bispo alguns deterioradosparamentosdedamasco,guarnecidosdegalesfalsos.

Issonoserobstculo,senhorcura disseobispo. AnuncienamissaonossoTe-Deum,queomaissempreseh-dearranjar.

Procuraram-separamentosemtodasasigrejasdosarredoresereunidasasmagnificncias das humildes parquias, mal chegavam para reves rconvenientementeumchantredacatedral.

Achavam-seascoisasnestesapuros,quandoportadaresidnciaparoquialchegaram dois cavaleiros desconhecidos que, depois de fazerem entrega deumagrandecaixadequeeramportadores,tornaramapar rimediatamente.Aberta a caixa, viu-se que con nha uma dalm ca carregada de oiro, umamitra guarnecida de diamantes, uma cruz arquiepiscopal, um bculomagnfico, todos os paramentos pon ficais roubados um ms antes dasacris adeNossaSenhoradeEmbrun.Nofundodacaixaestavaumpapelemqueseliamestaspalavras:OfertadeGravatteaMonsenhorBemvindo.

Eu bem dizia que tudo se havia de arranjar! exclamou o bispo. Emseguidaacrescentou, sorrindo: A quem se contentava com a sobrepeliz deumsimplescura,enviaDeusummantodearcebispo!

Deus...ouodiabo! murmurouoproco,abanandoa cabeacomum

sorrisodeincredulidade.Obispofitouatentamenteoprocoereplicouemtomaustero: FoiDeus.Quando voltou a Chastelar, de todos os lados, vinha gente beira da

estrada para o ver passar. Chegado residncia paroquial de Chastelar,encontrouairmeMagloirequeoesperavamalie,apenasasviu,exclamou:

Ento, eu no nha razo? Vai um pobre sacerdote visitar os infelizesmontanheses comasmos vazias e voltade l comelas cheias!Quando fui,levavaapenasaminha confianaemDeus,eagoravolto trazendoo tesourodeumacatedral!

noite,antesdesedeitar,disseainda: Notenhamosreceiodeladresedeassassinos.Somuitopequenosos

perigosexteriores.Devemosterreceiodensprprios!Ospreconceitoseosvcios que so os verdadeiros ladres e os verdadeiros assassinos! Osmaioresperigossoosqueseachamdentrodensmesmos.Queimportaqueanossacabeaouanossabolsaestejaameaada?Nodevemostemersenooquenosameaaaalma! Depois,voltando-separaairm,acrescentou: Minha irm,o sacerdotenodeveprecaver-se contraoprximo.Aquiloqueelepra capermi doporDeus.Limitemo-nosa implorarabondadedivina,quandonosjulguemosameaadosporqualquerperigo.Imploremo-la,noporns,masparaqueosnossosirmosnocaiamemtentaopornossacausa.

Todavia,osacontecimentos foradocomum,eramrarosnasuaexistncia.Omododeviverdobispoeraquase sempre idn co,passavaa vidaa fazersempreasmesmascoisasnasmesmasocasies,demodoqueummsdoseuanoassemelhava-seaumahoradoseudia.

Quanto ao des no que levou otesouro da catedral de Embrun,embaraados nos veramos se algum nos perguntasse o que foi feito dele.Eram, na verdade, coisasmuito ricas e tentadoras para no serem furtadasemproveitodosdesvalidos.Edemais,furtadasjelas nhamsido.Metadedaaventuraestavapassada;oquefaltavaeramudarapenasadirecodofurto,fazendo-lhe dar mais uns passos para o lado dos pobres. No afirmaremos,pois, coisa alguma a tal respeito. O que sabemos ao certo que entre ospapisdobispoapareceuumanotadecertomodoobscura,quealudetalvezaesteassunto,econcebidanosseguintestermos:Opontoconsisteemsaberseistodevevoltarparaacatedral,ouirparaohospital.

VIIIFilosofiadesobremesaOsenadordequeatrsfalmos,eraumhomementendido,quepercorrera

sempreoseucaminhocomrectidopoucoatentaatodososencontrosquelheservem de obstculo e a que se chama conscincia, f, jus a e dever;

superior a semelhantes preconceitos, caminhara sempre direito ao seu fim,semumasvezsedesviardalinhadoseuadiantamentoeinteresses.Erauman go procurador, no perver do pela prosperidade nem dotado de maucorao,prestandocom facilidadeos serviosquepodiaem favordosfilhos,genros,parenteseatamigos;aproveitarasempreosensejosda fortunaeoque a vida tem de melhor, sem se importar com mais nada, porque ocontrrio, no seu entender, era asneira. Espirituoso e instrudosuficientemente para se julgar discpulo de Epicuro, no passando talvez deum produto de Pigault-Lebrun, ria-se com amaior sa sfao e vontade dascoisasinfinitaseeternasedosdesvariosdobombispo,chegando,porvezes,afaz-locomamaisprazenteiraautoridade,napresenadoprprioprelado.

Um dia, por ocasio de uma cerimnia semi-oficial, encontraram-se ajantar em casa do prefeito, Carlos Myriel e o conde de... (o senador). sobremesa,osenador,umtantoprazenteiro,semcontudoperderadignidade,exclamou:

Senhorbispo,senoseimporta,conversemosumbocado.Umsenadoreumbispo raramenteconseguemfitar-se sempiscarosolhos.Ns somosdoisagoureiros. Vou fazer-lhe uma revelao. Tenho um sistema filosficopropriamentemeu.

Faz muito bem respondeu o bispo. Conforme a filosofia queprofessamos,assimacamaquepreparamosparansprprios.AdeV.Ex.deveserdeprpura,senhorsenador.

Este,maisanimado,continuou: Sejamosbonsrapazes! Pobresdiabos,mesmo! disseobispo. Declaro-lhe prosseguiu o senador que o marqus de Argens,

Pyrrhon,HobbeseNaigeon,nosonenhunsparvosridculos.Tenhonaminhabibliotecatodososmeusfilsofos,magnificamenteencadernados.

ComoV.Ex.,senhorconde interrompeuobispo.Osenadorprosseguiu: Odeio Diderot! um idelogo, um declamador revolucionrio, mas no

n momaiscrenteemDeusemaisreligiosodoqueVoltaire.EsteescarneciadeNeedhameno nha razo, porque as enguias deNeedhamprovamqueDeusintil.Umagotadevinagrenumacolherdefarinhaamassadavalepelofiat lux. Imaginem uma gota maior e uma colher de mais avantajadasdimenseseatmomundo!Ohomemaenguia!Nestecaso,dequeserveoPadreEterno?Senhorbispo,nopossolevarpacinciaahipteseJeov.Sserveparaemagrecerosquepensamdemais.Abaixo,pois,essegrandeTodoquemeincomoda!VivaZero,quemedeixatranquilo!Aquientrens,parano

ficar nada por dizer e confessar-me aomeu pastor, como devo: declaro-lheque,porora,tenhoacabeanodevidolugar,enomesintoapaixonadopeloseuJesusquepregaportodososcantosarennciaeosacri cio.Conselhodeumavarentodadoamendigos. Renncia, porqu? Sacri cio, a quem?Nocrvelqueumloboseimoleporoutrolobo.Conservemo-noscomoanaturezanos fez. Estamos no cume, seja tambm superior a nossa filosofia. De queserveestarnocimo, seagentenovumpalmoadiantedonariz?Vivamosalegremente,porquena vida se cifra tudo!Nooutro futuroquedizemqueohomem tem c por cima, l por baixo, em qualquer parte, isso escusam depregar,porquenocreionumaspalavra.Comomerecomendamosacri cioearenncia,devomeditarsobretodasasminhasacesequebraracabeapara dis nguir o bemdomal, o justo do injusto, e o lcito do ilcito Porqu?Porque terei de dar contas das minhas aces? Quando? Depois da minhamorte. Que bonito sonho! Depois de eumorrer ho-de pegar-me nas botas!Falemosfranco,nsquesomosiniciadosequeerguemosatnicadeIsis.Nohbemnemmal,hapenasvegetao.Procuremosarealidade,cavemosataofundo,quediabo!necessrioencontraraverdade,cavemosatencontr-lae tenhamosa certezadequeelanosdarosmais requintadosprazereseque far com que nos riamos do resto. Bem v que sou quadrado na base.Senhorbispo, a imortalidadeda almanopassadeummito, umapromessaencantadoraemaisnada!QuefelicidadeserfilhodeAdo!Seralma,seranjo,ver-seagentecomasasazuisnasomoplatas,quedeslumbranteperspec va!Vamos,senhorbispo,ajude-meamemria,nofoiTertulianoquemdissequeos bem-aventurados andaro de astro em astro? Ora a tem! Seremos osgafanhotos das estrelas e ainda por cima gozaremos da presena de Deus.Que patarata toda esta coleco de parasos! Deus no passa de umafrioleiramonstruosa! Por certo que eu no ia agora pr-me a dizer isto nascolunas doMonitor, mas aqui entre amigos inter pocula posso diz-lo.Sacrificaraterrapeloparasolargarapresapelasombra!extremamenteestpido ser logradopelo infinito.Oque soueu senoumaporodonada?Exis a porventura antes de nascer? No. Con nuarei a exis r depois demorto?No.Oquesouento?Umpoucodepagregadoporumorganismo.Quedevofazernaterra?Possoescolher:sofrerougozar.Aondemeconduzirosofrimento?Aonada.Mastereisofrido.Aondeme levarogozo?Aonada.Mas terei gozado. Assim, pois, a minha escolha est feita. indispensveldominar ou ser dominado. Prefiro dominar! prefervel ser martelo a serbigorna.estaaminhateoria.Nofimdetudoistoestocoveiro,queparans o Pantheon e est tudo arrumado.Finis. Liquidao total. Some-se tudoparanuncamaisaparecer.Creia-me,amorteamortee,pormaisqueme

digam,nopossodeixarderirquandopensonela.umainvenodeamasdecrianas;paraestasopapo,paraoshomensJeov!Almdotmulo,haigualdadedonada.SardanapaloouVicentedePaula,quemquerque tenhaissido, o mesmo nada vos caber em sorte. Aqui est a verdade! Portanto,vivamos, d por onde der. Faamos uso do nosso eu, enquanto o possumos.Repito-lhe,senhorbispo,tenhoaminhafilosofiaeosmeusfilsofosenomedeixo engrinaldar com patranhas. Todavia, alguma coisa ho-de ter os querastejam na lama, os ps-descalos, os miserveis. Do-se-lhe a engolir aslendas, as quimeras, a alma, a imortalidade, o paraso, as estrelas. E eles lvomas gandotudo.Quemnotemnada,temDeus.Pouco,masvalha-nosisso. Da minha parte no lhe ponho obstculos, mas guardo Naigeon paramim.QuantoaDeus,deixo-oaopovo.

Oraissoquesechamafalar! exclamouobispo,batendoaspalmas. Excelente! realmente maravilhoso o seu materialismo, senhor conde!Quem o professa est livre de cair em logros; no se deixa desterrarestupidamentecomoCato,nemapedrejarcomoSantoEstvo,nemqueimarvivo como Joana dArc! Quem consegue chegar a possuir to admirvelmaterialismo tem o prazer de conseguir a irresponsabilidade e adquirir aconvico de que tudo pode devorar sem susto, empregos, sinecuras,dignidades, palindias lucra vas, traies teis, saborosas capitulaes deconscincia e que descer ao tmulo, depois de bem feita a digesto. Queagradvel coisa! Eu no digo isto por V. Ex., senhor senador. Todavia, nopossodeixardelhedarosparabns!Osfidalgos,comoV.Ex.disse,tmumafilosofia prpria, sub l, requintada, unicamente acessvel aos ricos, p mocondimentoparaguisarcomtodasasvoluptuosidadesdavida!umafilosofiadesenterrada das profundidades por inves gadores especiais. Porm,magnates de bom corao, no levam a mal que a crena em Deus seja afilosofiadopovo,domesmomodo,porassimdizer,comoaaordaoperudopobre.

IXOcarcterdoirmodescritopelairmPara dar ideiamais perfeita da vida n madobispodeDigne e domodo

como as duas mulheres subordinavam os hbitos e intenes do prelado assuas aces, pensamentos e at ins ntos demulheres assustadias, semqueele vesse sequer o trabalhode falar para as exprimir, nadamelhor doquetranscreverumacartaescritaporBap s naviscondessadeBoischevron,suaamigadeinfncia.

Digne,16deDezembrode18...Minhaqueridaamiga:Nosepassaumsdiaemquenofalemosaseurespeito. Istoumhbitoan go,

mas,almdisso,haindaoutrarazo.ImaginequeaMagloireandandoalavarealimpar

os tectos e asparedes da casa, fez uma grande descoberta; agora os nossos quartosforradosdepapelan goecaiadoporcima,nofariammfiguranumpalciodognerodoseu.Magloirerasgoutodoopapeleencontrouporbaixoumainfinidadedecoisas.

Aminha sala,queno temmveis, edequensnos servimosparaestender roupa,tem quinze ps de altura e dezoito de largura. V-se agora que o tecto foi forrado delona,notempoemque istoerahospital,an gamenteerapintadoedouradoe nhaattrabalho de talha, enfim, um tecto an ga. Porm, o que digno de se ver o meuquarto. Por baixo de uma camada muito densa de papis colados, Magloire descobriuvriaspinturas,asquais,semseremboas,somuitosuportveis.

UmarepresentaTelemacoaserarmadocavaleiroporMinerva;outrarepresenta-onosjardinsnoseideque...ondeasdamasromanass iamumavez.Como lhehei-dedizertudo? Tenho romanos e romanas (nesta passagem da carta h uma palavra ilegvel)etoda a sua comi va. Magloire limpou e lavou tudo e este Vero, reparadas algumaspequenas avarias, o meu quarto ficou um verdadeiro museu. Encontrou tambm numcantodosto,duas consolasmuitoantigas.Pediramdozefrancosparaasrestaurar,mas prefervel dar este dinheiro aos pobres, porque, afinal de contas, so dois objectosmuitofeios,queeudeboavontadetrocariaporumamesaredondadeacaj.

Eucon nuo a sermuito feliz pela bondade demeu irmo. D tudo quanto tem aospobreseenfermos.OsInvernosaquisomuitorigorosos,demaneiraqueindispensvelfazeralgumacoisapelosinfelizes.Nsvivemosmuitoapoquentados,mas,graasaDeus,notemosfaltadelenhanemdeluz.Bemvqueestascoisasnosodadasatodos.

Meu irmoesthabituadoacertascoisas ediz semprequeumbispodevesercomoele.Imaginequeaportadanossacasanuncasefechaachave.Meuirmonotemmedodenada,nemmesmodenoite.Segundoelediz,umsacerdotenodevetermedo.

No quer que eu nem Magloire nos preocupemos por causa dele. Expe-se aosmaioresperigos e no podemos sequerdemonstrar que isso nos assusta. necessriosabercompreend-lo.

Achuvanoo impedenuncadesair, chegandono Inverno a fazer longas jornadasap,debaixodegua,semtemerasestradasnemrecearqualquermauencontro.

Oanopassadofezumadassuasexcurses aumlugarinfestadodesalteadores enoquis que ns o acompanhssemos, demorando-se porlquinze dias. Quando chegou acasa, sem que vessesofrido o menor incmodo e quando todos j o julgavam morto,disse-me: Aqui est como me roubaram!. E abriu uma grande mala onde seencontravam todas as jias dacatedral de Embrun e que os ladres lhe nham dado.Destavez,masdemodoqueningumouvisse,nopudedeixarderalharcomele.

Ao princpio, assustava-memuito por ver como ele seme a aos perigos sem tomarqualquer medida de precauo, mas depois fui-me habituando. Recomendo sempre aMagloirequeonocontrarieequeodeixeprocedercomomuitobemlheapraz.Nestasocasies,retiro-meparaomeuquarto,peoaDeusporeleedurmodescansada.Sinto-metranquila,porqueseiquenoresis riaselhesucedessealgumadesgraa, iriareunir-mecommeuirmoemeubisponapresenadeDeus.Magloiretevemaisdificuldadedoquee uem habituar-se ao que ela chamava imprudncia do senhor bispo, mas, por fim,tambm se habituou. Oramos ambas, assustadas s vezes, mas concludas as nossasoraes deitamo-nos e adormecemos. Na nossa casa podia entrar o prprio diabo semque ningum se lhe opusesse. Mas no fim de tudo, que podemos ns recear? Temossempre connosco omais forte.O diabo pode passar por ela,mas no entrar porque habitadaporDeus!

Equantomebastaparaviversossegada.Meuirmoagoranemprecisadedizer-meamenorpalavra.Seioqueelequer,eentregamo-nosnasmosdaProvidncia.

Creio que no devo proceder de outro modo com um homem de inteligncia tosublime.

Ob ve demeu irmo as informaes que aminha amiga pretendia rela vamente

famliadeFaux,porquebemsabequeeleaindanoperdeuosbonssen mentosrealistasquesempreteve,lembrando-seaindadetudo.Efec vamente, umaan qussima famliada Bretanha.H quinhentos anos, j exis amumRaul de Faux, um Jean de Faux e umThomazdeFaux,todosfidalgoseumdelessenhordeRochefort.Ol mofoiGuyEstvoAlexandre,mestredecampoenoseioqunacavalaria ligeiradaBretanha.Suafilha,Maria Lusa, casou comAdrianoCarlosde Gramont,filho do duque de Gramont, par deFrana, coronel das guardas francesas e tenente-general do exrcito. O nome destafamliatemaparecidoescritodetrsmodos:Faux,FauqeFaouq.

Minhaboaamiga, peo-lhequenos recomendenas oraes do seu santoparenteosenhor cardeal. Quanto sua querida Silvana, tem feito muito bem em no perder oscurtosmomentosquepassana suacompanhia,parameescrever.Umavezqueela temsade, trabalha segundo os desejos daminha amiga eme conserva a an ga afeio, quantodesejo.Eunopassomal,todavia,noseiporqu,estoucadavezmaismagra.

Adeus.Estaacabaropapel,eporissoconcluo,desejando-lhetodasasventuras.Baptistina

P. S.O seu sobrinhoest lindo comoosanjos. Sabequeembrevevai fazer cincoanos? Ontem, vendo passar um cavalo com umas Coelheiras, perguntou: Oque temaquelecavalonosjoelhos?.umacrianamuitointeressante.Oirmomaisnovo,passahorasseguidasabrincar,arrastandoumcestinhovelho,aquechamaasuacarruagem.

Comosevporesta carta,asduasmulheres sabiamafeioar-seaomododeviverdobispo,comotalentopar culardamulherquemelhorcompreendeohomemdoqueeleprpriosecompreendeasi.ObispodeDignesoboseuar prazenteiro e cndido, que nada era capaz de alterar, pra cava s vezescoisassublimes,arrojadasemagnficas,comomodomaisnaturalesimples.As duas mulheres tremiam de susto, mas no lhe opunham resistncia.Magloirearriscavasvezesumaobservao,masantesoudepois,nuncanamesmaocasio.Nuncaoperturbavamnapr cadequalqueracoporumapalavraousequerporumgesto.Emcertosmomentos,semlhesernecessrioa ele diz-lo nem se lembrar talvez de o fazer, to completa era a suasimplicidade,conheciamelasvagamentequeeleprocediacomobispoeentoeram apenas como que duas sombras, divagando pela casa. Serviam-nopassivamente e, se para obedecer fosse necessrio desaparecer,desapareciam. Por uma admirvel delicadeza de ins nto, conheciam que hsolicitudes que incomodam. Assim, ainda que o supusessem em perigo,compreendiam-lhe, se no a inteno, pelo menos o gnio, a ponto de noexerceremamenorvigilnciasobreele.Deixavam-noentregueaDeus.

Contudo,comoacabadeler-se,Bap s nadiziaqueamortedoirmoseriaamortedela,eMagloire,postonoodissesse,tambmosabia.

XObispoempresenadeumaluzdesconhecidaEm poca pouco posterior data transcrita nas pginas precedentes, o

prelado fez uma coisamais arriscada ainda, na opinio de toda a gente dacidade, doque a jornadapelamontanha infestadade salteadores.HavianosarrabaldesdeDigneumhomemquevivia inteiramente isoladodasociedade.

Esse homem, de nomeG..., pronunciemos sem amenor hesitao a palavraterrvel,eraumantigomembrodaConvenoNacional.

EntreopovodeDigne, falava-senoconvencionalG...comumaespciedeterror. Um convencional! Algum faz ideia exacta do que essa coisa queexis a no tempo em que todos se tratavam por tu e se chamavam uns aosoutroscidados?

Essehomemeraquaseummonstro.Novotaraamortedorei,maspoucomenos. Era um meio-regicida, que fora heri do terror. Como fora possvelque no estabelecimento dos prncipes leg mos, semelhante homemescapasseaojustocas godosseuscrimes?Noqueriammancharasmosnosangue dele?Muito bem.Mas deviam t-lo expulso, desterrado para toda avida, dando assim um exemplo, finalmente, etc., etc. Grasnar de gansosacercadoabutre.

E seria realmenteumabutreo convencionalG...?Decerto, a julg-lopelaferoz solidoemque vivia.No compreendidonosdecretosdedesterro, pornotervotadoamortedorei,fora-lheconcedidoresidiremFrana.

Alihabitava,pois,atrsquartosdelguadacidade,foradopovoado,longeda estrada, nomeio de um vale agreste, onde possua, segundo diziam, umesconderijo.No nhavizinhoseningumpassavaporali.Ocarreiroque,emtempo,conduziaaovale,desapareceracobertopelaerva,depoisqueeleparaaliforaresidir.Falava-sedaqueles ocomodamansodocarrasco.Todavia,obispolembrava-sedele,edetemposatempos,olhandoparaohorizonte,nadirecoemqueumamoitaindicavaovaledoan goconvencional,diziaparaconsigo:Haliumaalmaqueviveisolada.E,nofundodoseupensamento,acrescentava:Omeudeverirvisit-la.

Todavia,cumpreconfess-lo,talideia,primeiravistamuitonatural,apsum momento de reflexo, apresentava-se-lhe como estranha, impossvel equaserepulsiva,poisnoseun mopar cipavadaimpressogeral,inspirando-lheohomem,semelemesmoterperfeitaconscinciadisso,essesen mentoquedefrontacomodio,tobemexpressopelapalavrarepulso.

Contudo,deveopastorfugirdaovelhasarnenta?No.Masqueovelhaeraaquela!

Obondosobisposen a-seperplexo.Algumasvezesfoiatmeiodocaminhoevoltousempreparatrs.

Umdia, espalhou-se na cidade a no cia de que um rapazinho que estavacomocriadodoconvencionalviera cidadeembuscadeummdicopara irver o celerado ao seu covil, o qual acome do por um ataque apoplc co,estavamoribundo,atalpontoquesereceavanopassassedaquelanoite

GraasaDeus! exclamaramalguns.

O bispo pegou na bengala, cobriu-se com o capote, no s por causa domau estado da ba na, como tambmpela aragem fresca da noite, que notardariaalevantar-seesaiu.

Declinava o sol, quase a ponto de esconder-se, quandoo bispo chegou aolugar excomungado. Ao ver-se prximo do covil, o corao bateu-lhe emsobressalto. Saltou um valado, transps uma sebe, deu alguns passosresolutamentee,derepente,descobriuoesconderijoocultoporummatagal,nofundodobaldio.

Eraumapequenacabana,deaspectopobre,mas aprazveleasseada, comtodaapartedafrentecobertaporumaramada.

A entrada da porta, numa velha cadeira de rodas, estava sentado umhomem de cabelos brancos e que parecia sorrir-se para os l mos raios desol.

Junto do velho sentado, encontrava-se de p um rapazito, po de pastor,apresentando-lheumatigeladeleite.

Estavaaindaobispoacontemplarestequadro,quandoouviuavozdovelhoquedizia:

Obrigado,jnoprecisodenada!Edesfitouosolhosdosolparaosfixar,sorrindo,norapazinho.O bispo adiantou-se. Ao rudo dos seus passos, o velho voltou a cabea,

exprimindonafisionomiaasurpresaquesepodeexperimentardepoisdetoprolongadaexistncia.

Desde que aqui estou esta a primeira vez que algum vem aminhacasa disseele. Quemosenhor?

Chamo-meBemvindoMyriel respondeuobispo. Bemvindo Myriel... J ouvi esse nome. No ao senhor que o povo

chamaMonsenhorBemvindo? Exactamente.Ovelhoprosseguiucomligeirosorriso: Vistoisso,omeubispo. Creioquesim Tenhaabondadedeentrar.Oconvencionalestendeuamoaoprelado,masestefingiunopercebere

limitou-seadizer: Vejocomprazerquemeenganaram,vistorealmentenoparecermuito

doente. Esperodentroempoucoficarrestabelecido respondeuovelho.E,aps

umacurtapausa,acrescentou: Novivereimaisdetrshoras.Obispofitou-o,admirado,eelecontinuou:

Tenhoalgunsconhecimentosdemedicina,por issoconheoossintomasdamorte.Ontem nha apenas os ps frios; hoje tenho tambmos joelhos esinto que o frio me vai subindo para o meio do corpo; quando chegar aocorao, deixarei omundo. A vista do sol umbelo espectculo, no acha?Pediquemetrouxessemcpara foraporquequeriav-lopelal mavez.Osenhor pode conversar, no me incomoda. Fez muito bem em vir assis r morte de um homem. bom que esse momento tenha testemunhas. Cadaqualtemasuamania,desejavaviverataoromperdaaurora,masseiquesmerestamtrshorasparaviver.Morrereidenoite,mas,nofim,queimportaisso? Acabar uma coisa simples. No se necessita de dia para morrer.Pacincia, morrerei luz das estrelas. E, voltando-se para o rapazinho,disse-lhe: Vaidescansar.Passasteanoiteemclaro,devesestarfatigado.

O rapazinho re rou-se e o velho, seguindo-o com a vista, acrescentou,comofalandoconsigomesmo:

Quando eu morrer, estar ele a dormir. So dois sonos que no seestorvaro.

Obisponoestavacomovido,comoparecequedeveriaestar.Nojulgavapressen rapresenadeDeusnaquelemododemorrer;digamostudoporqueaspequenascontradiesdasgrandesalmasdevemser apontadascomotudoomais, eleque, sempreque seofereciaocasio, ria jovialmentequando lhedavamotratamentodeVossaGrandeza,sen u-seumtantoressen dodenoser tratado por Monsenhor, e esteve quase tentado a replicar: cidado!Acometera-o uma veleidade de caprichosa familiaridade, muito vulgar nosmdicosenospadres,masquenelenoeranatural.Pelaprimeiraveznasuavida,talvez,obisposen u-secomseveradisposiodeespritocontraaquelehomemque,apesardeconvencional,derepresentantedopovo, nhasidoumpoderosonaterra.

Aomesmo tempo que o convencional o contemplava com ar demodestacordialidade, a quetalvezno era de todo estranha a humildade prpria dohomemquesenteaproximar-seofim.

O bispo, posto que fosse habitualmente pouco curioso, porque, no seuentender,acuriosidadeviveparedesmeiascomaofensa,nosepodiacoibirde oexaminaratentamente porque, por no provir de um sen mento desimpa a, a sua conscincia lhe haveria decerto exprobrado, se vesse lugarparacomoutroqualquerhomem.Noseuentender,porm,umconvencionalestavaforadetodasasleis,mesmodaleidacaridade.

G..., com o seu aspecto sereno e firme, a voz vibrante e grave, era umoctogenrio dos que causam admirao ao fisiologista. A revoluo foi fr lnesseshomensproporcionadospoca.Conhecia-senaquelevelhoohomem

deaco,que toprximodamorte, conservavaainda todososmovimentosde sade. Na sua vista segura, na voz firme, no robusto movimento dosombros,pareciahaveraindaenergiadesobejopararepeliramorte.Azrael,oanjo maometano do sepulcro, teria retrocedido, julgando-se enganado naporta.

Aquelehomempareciamorrervoluntariamente.A suaagoniapareciaumactoespontneo.Saspernastinhamperdidoomovimento,comosefosseporelasqueamorteo vesseagarrado.Osps jaziam-lhemortose frios,masacabea respirava-lhe toda a seiva da vida e parecia em perfeita lucidez.Naquele grave momento, G... assemelhava-se ao rei do conto oriental, cujapartesuperiordocorpoeradecarneeainferiordemrmore.Obisposentou-se numa pedra que viu prxima de si e principiou.O seu exrdio foi um ex-abrupto.

Felicito-o disseeleemtomdeexprobrao. Creioquenemsemprevotouamortedorei.

Oconvencionalpareceunorepararnosen doocultodapalavrasempreerespondeucomamaiorseriedade:

Nomefelicite,porqueoqueeuvoteifoiofimdotirano.Eraavozausteraempresenadaseveridade. Nopercebooquequerdizer tornouobispo. Querodizerqueo ranodohomemaignorncia,equefoiasuamorte

oqueeuvotei.Foiesse ranooautordarealeza,queaautoridadetomadade ideias falsas, enquanto a cincia a autoridade tomada da verdade dascoisas.Ohomemspelacinciadevesergovernado.

Epelaconscincia acrescentouobispo. a mesma coisa. A conscincia no mais do que a quan dade de

cinciainataquepossumos.O bispo escutava, tomado de admirao, aquela linguagem inteiramente

novaparaele.Oconvencionalprosseguiu: QuantoaLusXVI,votei contraamortedele.Nome julgocomdireito

dematarumhomem,mastenhoodeverdeexterminaromal.Porissovoteiofimdo rano,isto,ofimdapros tuioparaamulher,odaescravidoparaohomem,odastrevasparaacriana.Voteiisto,votandoarepblica.Voteiafraternidade, a concrdia, a aurora. Trabalhei na queda dos erros e dospreconceitos, de cujo desmoronamento resulta sempre a luz. Fizemos cair asociedade velha, vaso de misrias, que, ao derramar-se sobre o gnerohumano,seconverteuemumadefelicidade!

Felicidadeamarga! retorquiuobispo.

Pode dizer felicidade perturbada; e hoje, depois desse fatalrestabelecimento do passado chamado 1814, felicidade desaparecida.Desgraadamente, reconheo, a obra ficou incompleta; demolimos o an goregime nos factos, mas no pudemos extermin-lo inteiramente nas ideias.Nobastadestruirosabusos,necessriomodificaroscostumes.Destruiu-seomoinho,masaindaficouovento.

Demolirpodeserqueseja l,masdesconfiosemprededemoliesemqueentraaclera.

Odireitotemtambmasuaclera,senhorbispo,eacleradodireitoum elemento do progresso. Assim, digam o que disserem, a revoluofrancesa foi o maior passo que a humanidade tem dado depois doaparecimentodeCristo.Incompleta,concordo,massublime.Resolveutodasasincgnitas sociais, suavizou os espritos, acalmou, pacificou, esclareceu;inundou a terra das ondas da civilizao Foi portanto boa! A revoluofrancesafoiasantificaodahumanidade.

Obisponopdeconter-seeretorquiu: Sim?E93?O convencional endireitou-se na cadeira com solenidade quase lgubre e

exclamoucomtodaaenergiapossvelaummoribundo: A vem com 93! J estava espera disso! H mil e quinhentos anos

principiouaformar-seumanuvemque,aocabodequinzesculos,rebentou.Eosenhorvemacusaroraio!

Apesar de tentar encobri-lo a si prprio, o bispo sen u-se ferido, porm,respondeu,aparentandoindiferena:

Ojuizfalaemnomedajus aeosacerdoteemnomedareligio,queumajus amaiselevada.Oraionodeveenganar-se. Eolhandofixamenteparaoconvencional,acrescentou: ELusXVII?

Lus XVII? Ora vejamos. Quem que o senhor las ma? a crianainocente? Nesse caso, estamos de acordo, porque choro com o senhor. acriana real? Peoquemedeixe reflec r. Paramim, o irmodeCartouche,meninoinocente,atadoforaporbaixodosbraosesuspensoatofazeremmorrer,spelocrimedeserirmodeCartouche,nofactomenosdolorosodoqueomar rioporquepassouonetodeLusXVnatorredoTemplo,spelofactodesernetodeLusXV.

Euquenopossoaceitaraaproximaodesemelhantesnomes disseobispo.

Masporqualdosdoisreclama?PorCartoucheouporLusXVII?Seguiu-seummomentodesilncio.Obispoquasesearrependiadeterido

ali,porquesesentiaestranhamenteimpressionado.

Oconvencionalprosseguiu: Vejo que no gosta do rigor da verdade, senhor padre! Gostava Cristo,

que pegava numa vara e varria o templo. O seu azorrague cheio derelmpagosdiziabemrudesverdades.Quandoexclamava:Siniteparvulos,nofazia dis no entre as crianas. No teria escrpulo de juntar o filho deBarrabscomofilhodeHerodes.OtratamentodeAltezanoservedenadainocncia,porque toaugusta cobertadeandrajos comoquandoadornadadearminhos!

exacto disseobispoemvozbaixa. Insisto, pois, naminha opinio con nuou o convencional. Falou-se

em Lus XVII, entendamo-nos, portanto. Devemos chorar sobre todos osinocentes, sobre todos os mr res, sobre todas as crianas, sejam filhos dopovo, sejam filhos do rei? De acordo. Mas ento, repito, necessrioretroceder muito alm de 93, porque antes de Lus XVII que as lgrimasdevem comeara ser derramadas. Estou pronto a chorar com o senhor osfilhosdosreis,contandoqueosenhorchorecomigo,osfilhosdopovo!

Euchoroportodos disseobispo. Igualmente! exclamou G... Mas se a balana deve inclinar para

algumaparte,quesejaantesparao ladodosfilhosdopovo,porquehmaistempoquesofrem!

Seguiu-senovapausa,aqualfoiinterrompidapeloconvencional.Firmou-senumdoscotovelos,apertouentreopolegareondicedobradoapeledacara,com o gesto maquinal de quem interroga ou reflecte, e fitou no bispo umolhar perscrutador, que respirava toda a energia da agonia. Foi quase umaexploso.

Sim,senhorbispo,hmuitoqueopovosofre!Masfaaofavordedizer-me:oquepretendiaaovirinterrogar-meefalar-mesobreLusXVII,osenhoraquem eu nem sequer conheo? Desde que resido nesta terra, tenho vividosempre aqui encerrado, sem companhia, sem ver ningum, alm desserapazinhoquemetemservido.Oseunomeverdadequeoouviporduasoutrsvezese,devodiz-lo,pronunciadocomrespeito,masissonadaquerdizer;oshomensastuciosossabemperfeitamentecomoselanapoeiranosolhosdopovo. verdade, eu no ouvi o rudo da sua carruagem; deixou-a decertoocultanoarvoredo,entradadocaminhoqueconduzaqui?Repito-lhe,nooconheo, disse-me que era o bispo, mas isso nada me adianta noconhecimento das suas qualidades morais. Em suma, o senhor um bispo,querdizer,umprncipedaIgreja,umdesseshomensquesecobremdeoiroearminhos, vivem no fausto e nos regalos, cobram boas rendas, disfrutambispados:porexemplo,odeDignequetemderendafixaquinzemilfrancose

dezmildeemolumentos,somavinteecincomilfrancos:umdesseshomensquetmlacaios,mesa lauta,ondesexta-feiraseserveomelhorpeixe;querodeadosdecriadossepavoneiamemcochesdegalaehabitampalcios,tudoemnomedeJesusCristo,queandavadescalo!Osenhorumprelado,querdizer, um homem com rendimentos, palcios, cavalos, lacaios, boa mesa,todasassensualidadesdavida,enfim,quepossuicomoosoutrosedasquaiscomoqualqueroutrogoza.Estmuitobem,masissodizmaisoumenosqueosuficiente;nomeesclarecesobreoseuvalorintrnseco,essencialparaquem,comoosenhor,talvez,vemaquicomointuitodemedarsabedoriaeluz?Comquemestouafalar?Quemosenhor?

Obispoinclinouacabeaerespondeu: Vermissum. Umvermedecarruagem! murmurouoconvencional.Chegaraasuavezdesemostraraltivoeobispohumilde. Poissejaassim! replicouobisposuavemente. Mas explique-me de

que modo provaaminha carruagem, que deixei oculta entre o arvoredo, aminhaboamesa,opeixequenelaseservesexta-feira,omeurendimentodevinteecincomil francos,omeupalcioeosmeus lacaios, comoque tudoistoprovanoserapiedadeumavirtude,aclemnciaumdevereque93nofoiinexorvel?

O convencional passou a mo pela fronte como que para afastar umpensamentoeemseguidadisse:

Antesde lhe responder, peo-lhequemeperdoe a falta que come .Osenhor est em minha casa, meu hspede, devo trat-lo com cortesia.Discuteasminhas ideias, devo limitar-mea combateros seus raciocnios.Assuasriquezas,osseusgozossooutras tantasvantagensqueeutenhoameufavornodebate,masdequeparecemal servir-mePrometo,portanto,nootornarafazer.

Agradeo-lheainteno disseobispo.G...continuou: Voltemos explicao queme pediu. Em que ponto estvamos? Dizia-

me,sebemmelembro,que93foiinexorvel. Inexorvel, issomesmo! repe u o bispo. Que ideia faz de Marat

batendoaspalmasemfrentedaguilhotina? QueideiafazdeBossuetentoandoumTe-Deum,depoisdasdragonadas?Arespostaeracruel,masfoidireitaaoalvocomarigidezdeumapontade

ao.O bispo estremeceu e emudeceu,mas sen u-se ofendido ao ouvir citarBossuet de semelhante modo. Os espritos mais esclarecidos tm os seusdolosesvezescomoqueseagastamcomosdesacatosdalgica.

O convencional principiava a respirar com dificuldade, a asma da agoniaentrecortava-lhe j a voz; todavia, notava-se-lhe ainda nos olhos perfeitalucidezdaalmaeprosseguiu:

Digamos ainda algumas palavras sobre o assunto, que desejo imenso.Tirando a revoluo, que, tomada em geral, foi uma grande afirma vahumana, 93 uma rplica.O senhor acha-a inexorvel,mas que tem sido amonarquia?Carrierumfacnora,masquenomedaMontrevel?Fouquier-Finville um miservel, mas que conceito forma de Lamoignon-Bville?Maillardumacriaturarepugnante,masquedizdeSaulxTavannes?OpadreDuchesne umhomem feroz,mas que epteto achao senhor quemereceopadreLetellier?Jourdan-Coup-Tteummonstro,masmuitomenoshediondodo que o marqus de Louvois. Lamento Maria Antonieta, arquiduquesa erainha,mas lamentotambmaquelapobremulherhuguenote,queem1685,no reinadodeLusoGrande, foi atadaaumposte,nuaat cintura, comofilhinho que amamentava abandonado a alguma distncia; o seiotransbordava-lhe de leite e o corao de angs a; a infeliz criancinha,esfomeada e plida, agonizava e gritava, sem poder colar os lbios naqueleseio, e o algoz dizia infeliz me: Abjura!, dando-lheaescolher entre amorte do filho e a da conscincia. Que lhe parece este suplcio de Tntaloacomodadoaumapobreme?Creia,senhorbispo,arevoluofrancesateveas suas razes. A sua ira h-de encontrar absolvio no futuro. O resultadodela ser um mundo melhor. Os seus golpes mais terrveis escondem umafagoaognerohumano.Masnopossomais...fizomeu...dever...amorteavizinha-se.

E, desfitando os olhos do bispo, concluiu o seu pensamento nestas poucaspalavras:

As brutalidades do progresso chamam-se revolues! Depois delasterminadas todos reconhecem que o gnero humano foi severamentemaltratado,masquedeualgunspassosemfrente!

Mal suspeitavao convencional que, uns aps outros, acabavadederrubartodososredutosdoespritodobispo.Todavia,aindaumficavadep,edele,supremo recurso da resistncia de Monsenhor Bemvindo, saram estaspalavras,quedeixavadenovotransparecertodaaseveridadedehpouco:

O progresso deve crer em Deus. O bem no pode ter por servidora aimpiedade.Malvaiaognerohumano,seoatesmoseuguia!

Oan gorepresentantedopovonorespondeu.Sen uumestremecimento,fitou os olhos no cu e duas lgrimas lhe deslizaram pelas faces lvidas.Depois, lentamente, em voz baixa, como que falando consigo mesmo,murmurou:

Stu,ideal,stuexistes!Obisposentiuumainexplicvelcomoo.Depoisdealgunsinstantesdesilncio,oconvencionalergueuumdedopara

ocu,dizendo: Oinfinitoexiste,estbem!Seo infinitono vesseumeu,oeu seriao

seulimitee,portanto,noseriainfinito,ou,poroutraspalavras,noexis ria.Oraeleexiste.Logotemumeu.OeudoinfinitoDeus!

Estas palavras foram proferidas em voz alta pelo moribundo, com oestremecimento do xtase, como se es vesse vendo alguma coisaextraordinria.Apenasacaboudefalar, fechouosolhos.Oesforoquefizeraextenuara-o.Eraevidentequeaquelehomemacabavadevivernumminutoaspoucashorasquelherestavamdevida.Chegara,enfim,omomentosupremo.

O bispo compreendeu-o, compreendeu toda a urgncia da ocasio e queforaalicomosacerdote.Passandoentogradualmentedoextremodafriezaextremacomoo,contemplouaquelesolhosfechados,pegounamoinerteegeladadomoribundo,dizendo-lhe:

Esta hora pertence a Deus! No acha que seria para lamentar que onossoencontronotivesseresultado?

Aestaspalavras,o convencional reabriuosolhos comaspectode sombriagravidade.

Senhor bispo disse ele com len do, procedida talvez mais dadignidadedealmadoquedafaltadeforas tenhopassadoaminhavidanameditao, no estudo e na contemplao. Tinha sessenta anos quando fuichamado pelo meu pas, para tomar parte na direco dos seus negcios.Obedeci. Comba os abusos que nele se davam; havia ranias, destru-as;havia direitos e princpios, proclamei-os e professei-os. O territrio estavainvadido,defendi-o;aFranaestavaameaada,ofereci-lheomeusangue.Noera rico e fiquei pobre. Fui um dos senhores do Estado; os subterrneos doBancoencontravam-se atulhadosdedinheiro, apontode serprecisoescorarasparedesparanoabateremcomopesodooiroedaprata,eeu iacomertodososdiasaumahospedariadaruadelAbre-Sec,ondesejantavaporvintee doissous. Socorri os oprimidos, protegi os que sofriam. Rasguei as toalhasdos altares, verdade, mas foi para ligar as feridas da ptria. Sustenteisempre o progresso da humanidade para a luz e opus-me algumas vezes aoprogresso inexorvel. Protegi sempre que me foi possvel os meus prpriosadversrios;hajaemvistaoconventodeurbanistaschamadodeSantaClara,situado no lugar de Petegben, na Flandres, exactamente onde os reismerovngiospossuamoseupalciodeVero,queeusalveiem1793.Cumpricomomeudever atondepudeefizobemqueme foi possvel.Nofimde

tudo isto, fui expulso, perseguido, escarnecido, conspurcado, amaldioado,proscrito. Passados j tantos anos e apesar dosmeus cabelosbrancos,muitagentese julgaaindacomdireitodemedesprezar;paraamul do ignorantetenho rosto de condenado e eu resigno-me semdio ao isolamento do dio.Agora,comoitentaeseisanos,voumorrer.Quepretendeosenhordemim?

Asuabno disseobispo,ajoelhando.Quandoo prelado ergueu a cabea, sen u-se impressionado pela augusta

expressodoconvencional.Aquelehomemsublimehaviaexpirado.O bispo regressou a casa profundamente absorto nos seus pensamentos.

Aquelanoitepassou-aaorar.Nodiaseguinte,algunscuriosostentaramfalar-lhenoconvencionalG...;obispo,pornicaresposta,limitou-seaapontar-lhesparaocu.Deentoemdiante,opreladoredobroudeafectoecomiseraoparacomospequenoseosdesvalidos.

A menor aluso ao velho celerado G... fazia-o cair em profundameditao.Ningumpodianegarqueapassagemdaqueleespritopelafrentedo seu e que o reflexo daquela grande conscincia sobre a sua, nhamcontribudoparaoaproximardaperfeio.

Comoeradeesperar,avisitapastoralaoan gomembrodaConvenodeuquefalardurantealgumtempoaosociososdaterra.

porventura cabeceira de tal moribundo o lugar de um bispo? Eraevidentenohaveraliaesperanadeconverso;todososrevolucionriossorelapsos. Para que foi l o bispo? Que nha afazer em semelhante lugar?Sempreeraprecisoestarcommuitavontadedevercomoodiabolevavaumaalma!

Certa ocasio, uma senhora j idosa, pertencente classe que se julgaespirituosa,disse-lhe:

Andam todos ansiosos por saber quando recebe Vossa Grandeza obarretevermelho.

uma cor muito viva respondeu o bispo. Felizmente, os que adesprezamnosbarretes,veneram-nanoschapus.

XIRestrioSeriaerroconcluirdoquetemosdito,queMonsenhorBemvindo fosseum

bispofilsofoousacerdotepatriota.Oseuencontro,aquesepoderiachamaraliana, com o convencional G..., deixara-lhe apenas certo respeito pelasdesgraasalheias,respeitoqueotornaramaisafectuosoainda.

Apesar deMonsenhor Bemvindo no se ter dado nunca pol ca, vem apropsito indicar aqui, ainda que resumidamente, qual a sua a tude nosacontecimentosdaquelapoca, sequepeloespritodobispopassoualgumdiaalembranadetomartalatitude.

Voltemos,pois,algunsanosatrs.Pouco tempo depois da eleva