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Primeira infância e educação natural em Rousseau (II): os cuidados do adulto 1 Cláudio Almir Dalbosco 2 Resumo I O conteúdo da educação natural esboçado por Rousseau no primeiro livro de Émile e dirigido à primeira infância é marcado, em linhas gerais, pela tensão entre as necessidades da criança e os cuidados do adulto. Em um outro artigo (Dalbosco, 2006) tratei desta tensão tomando-a pelo viés das necessidades da criança; no presente, que é, em certo sentido, uma continuidade do anterior, vou abordá-la a partir dos cuidados do adulto. Com a caracterização das necessidades da criança e do modo como o adulto deve exercer seus cuidados podemos obter uma idéia geral da concepção rousseauniana de primeira infância e, sobretudo, das dificuldades e dos problemas concernentes a sua definição. A principal das dificuldades reside, certamente, no fato de que o projeto de educação natural só poder dar conta minimamente da relação entre adulto e criança em sua primeira infância mediante a condição de ter que assumir um caráter manifestamente aporético. Tal caráter revela a complexidade da ação educativa, confirmando, a partir das idéias educativas de Rousseau, o fato trivial, mas, ao mesmo tempo, difícil de ser aceito, a saber, de que a educação é um dos problemas mais difíceis da humanidade e, por isso, não pode ser concebida como se fosse um receituário constituído por um conjunto de técnicas. Se ao tratar das necessidades da criança busquei livrar o pensamento de Rousseau da objeção que o acusa de diretivismo autoritário, agora, no contexto dos cuidados do adulto, surge outra objeção que brota da tese, central à primeira infância, de que o respeito pelo mundo da criança só pode ser assegurado pela ênfase no exercício dos cuidados do adulto e, portanto, o que determina o mundo da criança é, em última instância, a própria intervenção adulta. Sendo assim, e este é o conteúdo da objeção, uma vez que considera a atuação adulta na constituição do mundo infantil como determinante, Rousseau não se 1 Trabalho vinculado ao projeto de pesquisa Iluminismo e Pedagogia, pertencente à linha de pesquisa Fundamentos da Educação do PPG em Educação e ao Núcleo de Pesquisa em Filosofia e Educação (Nupefe) da Universidade de Passo Fundo (UPF/RS). 2 Professor do Curso de Filosofia e do PPG em Educação da UPF/RS.

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Primeira infância e educação natural em Rousseau (II): os cuidados do adulto1

Cláudio Almir Dalbosco2

Resumo

I

O conteúdo da educação natural esboçado por Rousseau no primeiro livro de Émile

e dirigido à primeira infância é marcado, em linhas gerais, pela tensão entre as

necessidades da criança e os cuidados do adulto. Em um outro artigo (Dalbosco, 2006)

tratei desta tensão tomando-a pelo viés das necessidades da criança; no presente, que é, em

certo sentido, uma continuidade do anterior, vou abordá-la a partir dos cuidados do adulto.

Com a caracterização das necessidades da criança e do modo como o adulto deve exercer

seus cuidados podemos obter uma idéia geral da concepção rousseauniana de primeira

infância e, sobretudo, das dificuldades e dos problemas concernentes a sua definição. A

principal das dificuldades reside, certamente, no fato de que o projeto de educação natural

só poder dar conta minimamente da relação entre adulto e criança em sua primeira infância

mediante a condição de ter que assumir um caráter manifestamente aporético. Tal caráter

revela a complexidade da ação educativa, confirmando, a partir das idéias educativas de

Rousseau, o fato trivial, mas, ao mesmo tempo, difícil de ser aceito, a saber, de que a

educação é um dos problemas mais difíceis da humanidade e, por isso, não pode ser

concebida como se fosse um receituário constituído por um conjunto de técnicas.

Se ao tratar das necessidades da criança busquei livrar o pensamento de Rousseau

da objeção que o acusa de diretivismo autoritário, agora, no contexto dos cuidados do

adulto, surge outra objeção que brota da tese, central à primeira infância, de que o respeito

pelo mundo da criança só pode ser assegurado pela ênfase no exercício dos cuidados do

adulto e, portanto, o que determina o mundo da criança é, em última instância, a própria

intervenção adulta. Sendo assim, e este é o conteúdo da objeção, uma vez que considera a

atuação adulta na constituição do mundo infantil como determinante, Rousseau não se

1 Trabalho vinculado ao projeto de pesquisa Iluminismo e Pedagogia, pertencente à linha de pesquisa Fundamentos da Educação do PPG em Educação e ao Núcleo de Pesquisa em Filosofia e Educação (Nupefe) da Universidade de Passo Fundo (UPF/RS).2 Professor do Curso de Filosofia e do PPG em Educação da UPF/RS.

distinguiria substancialmente da pedagogia moralista de sua época, fato este que

confirmaria mais uma vez seu diretivismo autoritário em matéria de educação.

A questão decisiva para tratar desta objeção recai sobre o modo como Rousseau

pensa o exercício dos cuidados do adulto. Sendo assim, podemos encontrar no pensamento

do genebrino uma pedagogia do cuidado no sentido preciso de que a educação natural

dirigida à primeira infância debruça-se sobre o cuidado exercido pelo adulto sobre alguém

(a criança) que ainda não pode cuidar inteiramente de si mesma e a produtividade de tal

pedagogia depende, por isso, de uma justificação adequada do exercício dos cuidados.

Na seqüência, procurando mostrar a improcedência da objeção acima, vou analisar o

modo como Rousseau concebe os cuidados do adulto, orientando-me pelas seguintes

questões: o que significa propriamente o cuidado do adulto no primeiro livro do Émile?

Quais são os aspectos precisos que o caráter aporético da educação natural assume frente a

caracterização oferecida ao modo como o adulto deve exercer seus cuidados? Vou tratar

destas questões amparando-me na hipótese geral de que, ao perceber a insolubilidade de

algumas dificuldades que surgem da relação pedagógica entre adulto e criança Rousseau

não tem nenhuma alternativa senão buscar contorná-las e tal busca, delineada em três pólos

tencionais, é a principal característica do projeto da educação natural.

Para tratar destas questões e confirmar a hipótese acima formulada, visando dirimir

a referida objeção, retomo, em primeiro lugar, aqueles resultados nucleares da

argumentação desenvolvida no artigo já citado que serão indispensáveis à compreensão do

modo como o adulto deve exercer seus cuidados. Em segundo lugar, reconstruo em quatro

argumentos principais a caracterização oferecida por Rousseau sobre o modo como os

adultos devem exercer seus cuidados. O núcleo do pensamento consiste em que sua

definição dos “cuidados do adulto” depende, em última instância, da inserção da própria

temática dos cuidados no contexto normativo mais amplo da educação natural, cujo traço

principal repousa na idéia da liberdade bem regrada como diretriz do caminho natural ao

qual o processo formativo-educacional da criança deve ser conduzido. Por fim, na parte

conclusiva do ensaio concentro-me em precisar os três pólos tencionais do caráter aporético

da educação natural que emergem da caracterização oferecida ao modo do exercício dos

cuidados. Quanto à importância de tal caráter à meta de tornar a criança “rainha de si

mesma” parece persistir pouco dissenso: a conquista progressiva da maioridade pela

2

criança depende, em grande medida, do modo como o adulto exerce seus cuidados, cujo

exercício está, por sua vez, profundamente dependente da consciência adulta sobre o caráter

aporético da educação natural e da busca pelo seu contorno no processo educativo.

II

Uma caracterização adequada das necessidades da criança em sua primeira infância

está profundamente entrelaçada com o próprio modo como o adulto se relaciona com ela.

Contra a objeção do diretivismo autoritário voltado a Rousseau, de que ele teria sucumbido,

em última instância, à tentação de uma intervenção autoritária do adulto no mundo da

criança, procurei argumentar, amparando-me na análise de algumas passagens escolhidas

do primeiro livro do Émile, a favor do princípio pedagógico que exige a consideração da

criança em seu próprio mundo. O resultado disso foram dois bons argumentos a favor da

consideração necessária da criança como criança.

O primeiro refere-se à insistência de Rousseau no fato de que o adulto precisa

respeitar a etapa de maturação biológica e cognitiva da criança, evitando, com isso, que ele

apresse, no comportamento dela, aquelas ações e aqueles movimentos que ainda não estão

devidamente “maduros” para serem desenvolvidos. O respeito por tal maturação visa, do

ponto de vista moral, por um lado, proteger a criança contra os hábitos viciados do adulto e,

por outro, prepará-la para que possa distinguir, progressiva e adequadamente, entre o bem e

o mal e para que, em síntese, possa enfrentar com serenidade as intempéries da vida. Neste

sentido, a interdição dos excessos do adulto cometidos contra a criança faz-se notar,

sobretudo, no tocante ao aprendizado da linguagem, pois Rousseau desautoriza qualquer

iniciativa adulta no sentido de querer impor um linguajar que não pertença à respectiva fase

da criança. Como ele mesmo afirma no primeiro livro do Émile, é preciso evitar que a

criança adquira um péssimo habito adulto, a saber, o de ter mais palavras do que idéias.

Entrelaçado com isso está o segundo argumento, o qual preza pela observação adulta detida

sobre choro e o gesto da criança e o respeito pela sua manifestação, considerando-os como

forma própria de expressão do mundo da criança em sua primeira infância. O desrespeito

adulto pode trazer prejuízos não só ao desenvolvimento psico-biológico da criança, como

também afetar a própria formação moral de seu caráter. Assim, o adulto, por exemplo, ao

3

deixar-se curvar pelo choro da criança, voltando-se permanente e inteiramente a ela, pode

contribuir à alimentação desregrada de seus desejos caprichosos e, por conseguinte, mesmo

que involuntariamente, à formação viciosa de seu caráter.

Estes dois argumentos são, portanto, dois fortes indicativos a favor da tese de que

Rousseau tinha em alta conta o princípio pedagógico de respeito pela criança em seu

próprio mundo. A defesa conseqüente deste princípio, considerando-o como núcleo

constitutivo da educação natural, permite formular um conceito de primeira infância

ancorado no próprio conceito de necessidade enquanto seu eixo articulador. Embora isso

não se encontre esclarecido adequadamente no texto de Rousseau, o conceito de

necessidade tem, como pano de fundo de sua definição, o conceito de natureza, o qual

assume, ambiguamente, tanto o significado externo, como sociedade e meio ambiente

físico, como o significado interno, referindo-se, sobretudo, às disposições naturais. Do

ponto de vista do que interessa ao conteúdo da educação natural dirigido à primeira

infância, é no confronto entre as disposições naturais da criança e os hábitos dos adultos

que se põem os principais problemas à própria educação natural. Para fortalecer a formação

de um caráter sadio da criança, contra uma educação viciosa oriunda dos hábitos do adulto,

Rousseau adota a exigência de colocar a criança frente a frente com as mais diversas

provações oriundas das forças e intempéries naturais. Daí que a simplicidade da vida no

campo, junto à natureza, adquire importância, segundo ele, porque, ao encontrar na sua

relação com a natureza um contraponto à artificialidade do mundo adulto, a criança estaria

lançando raízes fecundas na formação de um caráter sensível, autêntico e solidário.

Se as necessidades da criança não são vistas só como carências biológico-

alimentares de sobrevivência, mas também como potencialidades latentes que precisam ser

aguçadas e conduzidas pela ação (cuidado) do adulto, torna-se importante, neste contexto,

analisar o modo como Rousseau interpreta o exercício adulto de tais cuidados. Vou

reconstruir, na seqüência, os quatro argumentos básicos lançados mão por ele para

normatizar a ação do adulto.

III

4

O primeiro argumento importante apresentado no primeiro livro do Émile a favor

da tese de que a criança precisa ser considerada em seu próprio mundo é construído por

Rousseau a partir da análise da relação entre a mãe e o bebê, considerando o ato da

amamentação do bebê como constitutivo de seu primeiro entrelaçamento afetivo e social.3

Neste sentido, ele atribui valor significativo à amamentação, partindo do princípio,

socialmente aceito em sua época, de que é a mulher (podendo ser a mãe ou mesmo a ama

de leite) que deveria se ocupar intensivamente com a criança em sua primeira infância, e o

critério básico adotado para sustentar tal princípio é a importância que o leite materno

desempenha no desenvolvimento da criança. Não chegou a pensar em situações - hoje

normais ao mundo ocidental contemporâneo, inclusive com o amparo legal -, nas quais é o

pai que fica em casa e se ocupa diretamente com a criança pequena, enquanto a mãe sai

para o trabalho; ou, ainda, naquelas em que a criança fica sozinha em casa, apenas com a

companhia da TV ou é levada para escolas de educação infantil enquanto o pai e a mãe

saem para o trabalho.4 Independente disso, Rousseau desenvolve uma argumentação firme

na direção de mostrar a importância do leite materno para o desenvolvimento saudável do

bebê. “Mas que as mães concordem em amamentar seus filhos e os costumes reformar-se-

ão sozinhos, os sentimentos da natureza despertarão em todos os corações; o Estado se

repovoará. E este ponto, tão-somente este ponto, vai tudo unir. A atração da vida doméstica

é o melhor contra-veneno para os maus costumes” (Ibidem, p. 21). Despertar os

sentimentos da natureza em todos os corações, eis uma das finalidades maiores da educação

natural. Em consonância com isso, como está estabelecido na parte final da passagem, o

3 Rousseau deposita muita importância no relacionamento da mãe com seu bebê, em seus primeiros meses de vida, porque acredita no papel insubstituível que cumpre no sentido de “facilitar” o melhor ambiente possível ao seu desenvolvimento progressivo. Sob esta perspectiva ele antecipa a linha dorsal do pensamento de Winnicott de que, ao exercer sua maternidade com naturalidade, a mãe desenvolve uma capacidade extraordinária de colocar-se no lugar de seu bebê, identificando-se com ele e, ao proceder desta forma, cria-lhe as condições indispensáveis para sua segurança psico-afetiva, a qual, por sua vez, é o ponto de partida seguro de seu posterior desenvolvimento cognitivo-moral. Ainda segundo Winnicott, este modo afetivo-natural de ação da mãe é um procedimento altamente especializado que, além de não poder ser ensinado, não deve sofrer interferência estranha, nem mesmo do especialista pediátrico (Winnicott, 2002, p. 1-13).4 Estas novas situações trazem novos problemas ao contexto familiar e ao mundo da criança que extrapolam a perspectiva de análise e o contexto histórico de Rousseau. Neste sentido, seria importante analisar a partir do projeto de uma educação natural o que significa à aprendizagem da criança seu longo contato diário com a TV.

5

núcleo familiar assume papel importante no desenvolvimento da criança, considerando a

mãe como a verdadeira ama e o pai como o verdadeiro preceptor.5

Com a preocupação pedagógica de que o adulto não deve projetar verticalmente sua

postura no mundo da criança, Rousseau pretende evitar a intromissão excessiva do adulto e

atribuir papel importante aos pais e à família no sentido de proteger a criança contra a

invasão precoce e prejudicial da agressividade social no mundo da criança.6 Ele pretende

evitar aí, na verdade, a “colonização adulta” do mundo da criança e, com isso, evitar que a

criança se transforme apenas em província ou apêndice do mundo adulto. Mas, por outro

lado, considerando que não se pode e não se deve isolar completamente a criança do mundo

adulto e nem do convívio social mínimo, a questão é como protegê-la desta colonização

sem isolá-la. Justamente aí reside uma das tarefas centrais da educação natural, a saber, a de

pensar e preparar o ingresso progressivo da criança na sociedade, evitando que tal ingresso

signifique, ao mesmo tempo, a desfiguração infantil. A sutileza desta tarefa consiste no fato

de que ela deve ser preparada pedagogicamente de tal forma que possa proteger

socializando a criança, evitando com isso que ela seja tratada desde o início só como um

pequeno adulto.

5 Evidentemente que Rousseau tem diante de si um contexto histórico no qual predomina, por assim dizer, um modelo clássico de família, constituído por um homem e uma mulher e no qual o pai exerce a atividade profissional e a mãe ocupa-se com os afazeres da casa e com a educação dos filhos, envolvendo-se com a vida social que, de modo geral, já era planejada à mulher pelo próprio marido. 6 Preocupada em pensar a origem da crise da educação americana na segunda metade do século XX Arendt considera a “emancipação” da criança em relação à autoridade adulta como um dos motivos fundamentais de tal crise. Isto é, voltando-se contra a pedagogia moderna de inspiração pragmatista, que pregava o enfraquecimento do papel do adulto em nome da autoridade do grupo de crianças, ela defende o exercício da autoridade legítima do adulto, o qual residiria, segundo ela, na responsabilidade do adulto pelo curso das coisas no mundo e na maneira dele cuidar do ingresso progressivo da criança na sociedade. Sob este aspecto, o mundo da infância não deveria tornar-se absoluto e sua autonomia deveria ser relativizada, simplesmente porque a criança é um ser humano em desenvolvimento e a infância, por ser etapa temporária e não definitiva na vida do ser humano, deveria ser tomada como fase de preparação da criança para seu ingresso no mundo adulto. Considerando, por um lado, a condição de novidade e de fragilidade da criança ao chegar no mundo e, por outro, a condição social moderna de permanente transformação do privado em público, ao qual as crianças estão constante e prematuramente expostas, perdendo com isso aquele espaço de intimidade necessário à progressiva maturação de sua personalidade, Arendt, provavelmente inspirando-se em Rousseau, defende o exercício legítimo da autoridade adulta como forma de proteger a criança contra a invasão perversa da sociedade, assegurando a ela sua condição natural, a saber, a do bem-estar vital de um ser em permanente crescimento e, portanto, em permanente formação (Arendt, 1994, p. 255-276).

6

O modo como são exercidos os cuidados do adulto em relação às crianças, na

primeira infância, torna-se questão decisiva para saber a intensidade e a qualidade da

intervenção do adulto no mundo da criança. Neste contexto, Rousseau considera, como

vimos, a constituição familiar e o papel dos pais como dois aspectos indispensáveis contra

os maus costumes e como forma de preparar a criança contra uma educação viciada. O que

está em jogo na sua crítica é o abandono da vida familiar, indispensável à educação das

crianças, em nome de uma vida social baseada nas aparências e na representação

dissimuladora. Os próprios adultos se deixavam seduzir pelo canto da vida em salões e pela

vida pública artificial na mesma proporção em que se desinteressavam pela família e pela

educação de seus filhos ou entregavam-na exclusivamente aos cuidados de terceiros. Frente

às exigências impostas por uma forma de vida baseada na representação que os próprios

adultos faziam de seu mundo, tomando como referência basilar a imagem que os outros

deles mesmos faziam, a preocupação central de Rousseau era proteger o mundo da criança

contra o artificialismo e a dissimulação das relações sociais provocadas pelo “caráter

espetacular” do mundo adulto.7

O projeto de uma educação natural exige, por isso, uma participação efetiva dos pais

na educação dos filhos, pois, para Rousseau, uma das formas de solidificar a “voz da

natureza” na formação da criança, contra a artificialidade reinante na sociedade, é a de fazer

valer a “voz do sangue” no sentido de fortalecer hábitos naturais por meio dos cuidados e

da proteção exercidos pelos pais. O pressuposto desta posição é que a vinculação afetivo-

7 Os ideais de uma educação natural podem ser vertidos, neste sentido, contra o aspecto “alienante” do mundo adulto compreendido como “espetáculo”. Em seu penetrante estudo Salinas Fortes (1997) procurou mostrar a centralidade do conceito de espetáculo, bem como de seu caráter ambíguo, no pensamento de Rousseau, o qual conceberia o espetáculo como categoria constitutiva da necessidade humana imperiosa de mostrar-se ao outro, assumindo a função de um elo que ataria o “eu” ao “outro”. Dar-se em espetáculo significaria, neste contexto, um ato originário de constituição do ser humano na medida em que tal ato resumiria a necessidade humana de mostrar-se ao outro, oferecendo-se ao seu juízo apreciativo. Mas, como assinala Salinas Fortes, há uma ambigüidade que corta o mostrar-se por meio do espetáculo: “sair da Natureza é aparecer ao Outro mediante a operação da linguagem e da arte que exprimem e mascaram simultaneamente e que, além disso, tornam perpetuamente presente e atuante o jogo possível entre um parecer-dizer mentiroso e um ser-fazer mais autêntico” (Salinas Fortes, 1997, p. 49). No espetáculo como esforço humano de mostrar-se ao outro está embutido, portanto, tanto a mentira como a busca pela autenticidade e é neste contexto que Rousseau, buscando proteger o mundo da criança contra o mostrar-se adulto mentiroso, faz a educação natural voltar-se contra o sentido inautêntico do espetáculo. Surge aqui, como veremos adiante, uma dificuldade crucial, porque a educação natural, ao apoiar os cuidados do adulto na arte da encenação, a qual não deixar de ser a sua própria maneira uma forma de espetáculo e, por isso, também está sujeita ao seu caráter ambíguo.

7

paterna com a criança, orientada por aqueles princípios da educação natural que atribuem

sentido normativo ao modo como os cuidados adultos devem ser exercidos, constrói um

núcleo interno importante à formação progressiva da identidade da criança que lhe ajudaria

na resistência futura contra os malefícios oriundos do caráter de representação artificial das

relações adultas. O problema é que os próprios pais, embora disponham neste caso de uma

vinculação afetiva com seu filho mais do que qualquer outro adulto, também não deixam de

ser eles próprios um adulto vivendo em sociedade e, nesta condição, estão expostos a todos

os malefícios oriundos da configuração social.

O não envolvimento dos pais na educação de seus filhos resulta no rompimento da

educação natural, o qual se manifesta de duas maneiras bem definidas. Primeiro, na

omissão de suas responsabilidades. No caso específico da mãe, quando se recusa, por

razões estético-sociais, de amamentar o bebê e o entrega a uma ama de leite. Segundo, no

caso extremo, quando os pais depositam excessivos cuidados à criança, isolando-a do

mundo adulto. Qualquer uma dessas formas de rompimento é considerada muito prejudicial

ao desenvolvimento da criança. Neste contexto, os cuidados do adulto tornam-se decisivos,

tendo que se evitar tanto uma intervenção vertical constante como uma proteção excessiva.

Tal equilíbrio da intervenção do adulto deve ser encontrado por meio do princípio

pedagógico da educação pelas coisas, o qual é o segundo argumento decisivo empregado

por Rousseau no primeiro livro do Émile para regular os cuidados do adulto.

IV

Como se vê, o princípio pedagógico das educação pelas coisas,como segundo

argumento, torna-se decisivo ao conteúdo da educação natural. Mas o que entende

Rousseau por tal princípio? O problema pode ser formulado ainda de modo mais claro da

seguinte forma: se o conteúdo da educação natural dirigido à primeira infância depende, em

grande medida, do modo como os cuidados adultos são exercidos, temos aqui, nestas

passagens iniciais do primeiro livro do Émile, a indicação de que o cuidado assume a forma

de um procedimento pedagógico amparado na educação pelas coisas. A questão consiste,

precisamente, em saber o que significa cuidar da criança educando-a pelo exemplo das

coisas.

8

O princípio pedagógico da educação pelas coisas pode soar hoje como uma

expressão em desuso. No entanto, seu sentido atualizado pode estar sintetizado, por

exemplo, na idéia da educação como prática. Mas é preciso ter claro que Rousseau, ao

associar a prática, mais precisamente o conceito de experiência – entendo-o mais

amplamente, não só no sentido epistemológico que a tradição empirista lhe conferiu, mas

também como esfera do agir humano em sua dimensão ético-pedagógica - ao princípio

pedagógico da educação pelas coisas, quer dizer com isso que o ponto de partida do ato

educativo precisa levar em conta o mundo do educando, com seus respectivos limites e

potencialidades (disposições naturais). Neste sentido, o princípio da educação pelas coisas

deve substituir, sobretudo na primeira infância, a intervenção discursiva vertical do adulto.

Para esclarecer o próprio sentido dado por Rousseau a este princípio pedagógico,

nada melhor do que recorrer ao seu clássico exemplo do vidro quebrado da janela. Embora

tivesse sido prevenida, antecipadamente, de que não deveria quebrar os vidros da janela,

mesmo assim, a criança termina por fazê-lo. Diante deste fato, Rousseau aconselha ser

muito mais educativo, em vez de fazer um longo discurso à criança e reparar logo em

seguida o vidro quebrado, não dizer nada a ela, mas também não consertá-lo. Assim, ao

passar frio, a criança aprenderia, através da experiência com as coisas (no caso, com o

vento gelado que entra em seu quarto) a cautela necessária para agir em outras situações

semelhantes. Somente quando ela vier a protestar em razão do frio é que então a fala do

adulto começaria a ter mais eficácia. Este exemplo mostra a importância da sensibilidade

pedagógica do adulto em identificar claramente a situação – saber exatamente do que se

trata no momento –, ter paciência para agir na hora certa e, sobretudo, agir com firmeza,

mas sem perder a serenidade. Senso de observação, paciência, firmeza e serenidade

parecem ser, neste caso, qualificativos do princípio da educação pelas coisas.

A educação pelas coisas deve substituir os longos discursos, muitas vezes

moralizantes e agressivos dos adultos! Com isso temos que a ênfase na educação da

primeira infância não recai sobre a educação discursiva e, por isso, também não pode ser

levada a diante, de modo direto e exclusivo, pela negociação argumentativa do adulto com

a criança. Considerando-se a inexistência de uma “linguagem articulada” na criança que se

encontra na primeira infância, o conflito e os impasses assumem normalmente uma

perspectiva mais direta, na qual a criança, sem condições de negociar argumentativamente,

9

coloca-se na posição simples e direta de mando ou obediência. Como afirma Rousseau,

“suas primeiras idéias são de império ou de servidão” (Ibidem, p. 24). A educação pelas

coisas é característica de um período de desenvolvimento da criança no qual a autonomia,

entendida como capacidade de pensar e decidir por conta própria usando-se de argumentos

racionais está ausente e, nesta circunstância, a educação argumentativa não tem o mesmo

poder de esclarecimento e convencimento como tem os exemplos extraídos da simples

funcionalidade das coisas, com seus respectivos riscos, possibilidades e proibições.

Neste contexto fica evidente que um comportamento inadequado do adulto em

relação à criança e um exercício equivocado de seus cuidados podem torná-la, ao mesmo

tempo, escrava e tirana. Rousseau refere-se claramente a isso na seguinte passagem do

primeiro livro do Émile: “Finalmente quando esta criança, escrava e tirana, cheia de

conhecimentos e desprovida de sentidos, igualmente débil de corpo e de alma, é jogada no

mundo mostrando a sua inépcia, seu orgulho e todos os seus vícios, ela faz com que se

deplorem a miséria e a perversidade humanas” (Ibidem, p. 24). Uma postura inadequada do

adulto para com a criança contribui decisivamente à formação de seu caráter viciado, o

qual, em vez de se contrapor ao egoísmo e à perversidade humana, assume-os como seus

valores constitutivos. Uma intervenção discursiva vertical e excessiva na primeira infância

corrompe a criança, tornando-a escrava e tirana, cuja combinação afasta-a de si mesma,

gerando problemas sérios na constituição de sua identidade e, com isso, à sua socialização

adulta futura.

V

No entanto, quanto mais a socialização da criança avança, mais a educação pelas

coisas deve ceder lugar à educação discursiva, baseada no contrato e na negociação.

Embora a educação discursiva inicie ainda na segunda infância e na adolescência, ela

ocupará o centro do conceito de educação natural na fase da juventude, a qual é designada

por Rousseau como idade da razão. Mesmo havendo um deslocamento claro no conceito de

educação natural, do predomínio das coisas à centralidade do contrato baseado na

negociação discursiva permanente entre os envolvidos no processo pedagógico, o fato é que

Rousseau mantém, como válida, para qualquer uma das fases do processo educacional, a

10

tese de que é a socialização e, portanto, a convivência da criança com o mundo adulto que a

faz desenvolver sentimentos morais opostos, como o egoísmo, a raiva, a piedade e a

cooperação. É por meio do indispensável confronto com outras vontades humanas que ela é

estimulada a buscar seu equilíbrio, aprendendo a ser paciente ou a assumir atitudes opostas,

de irritação e impaciência. Assim afirma ele: “Enquanto as crianças só encontrarem

resistência nas coisas e não nas vontades, não se tornaram emburradas, nem coléricas e

conservar-se-ão em melhor saúde” (Ibidem, p. 47).

Se a resistência advinda do confronto com as coisas torna o corpo da criança

saudável, por si só não é suficiente para constituir sua moralidade, a qual origina-se do

confronto entre vontades que não se reduzem à “lógica de funcionamento” das coisas. Sem

a possibilidade de se tornarem “emburradas e coléricas” as crianças não se colocariam o

problema do bem e do mal e, sem este, estariam alheias ao próprio problema da moralidade.

Rousseau parece ter clareza sobre este ponto e, em todo caso, o que quer assegurar, como

núcleo da formação da criança, em sua primeira infância, uma vez que nesta fase não se

deve introduzi-la ainda, diretamente, nos princípios morais da educação natural, é a

formação saudável de seu corpo e o desenvolvimento de sua sensibilidade por meio da

educação pelas coisas.

Portanto, o princípio da educação pelas coisas deve ceder lugar, progressivamente,

ao princípio da educação discursiva. Isso parece óbvio uma vez que o contrato, pelos

menos no sentido em que é concebido por Rousseau no Émile, não pode ocorrer

simplesmente entre coisas, senão entre pessoas por meio de sua mediação discursiva

(dialógica). Mas, cabe destacar que a substituição progressiva da educação baseada na

observância das coisas pela educação baseada na mediação dialógica não significa um

abandono por completo da mediação pelas coisas, pois o genebrino considera a influência

do exemplo e do “testemunho” no contato com as coisas como fundamental não só à

infância, como também à formação do ser humano em suas diferentes fases. Ou seja, aquilo

que o ser humano, como um sujeito em permanente estado formativo aprende por meio do

contato com o “fluir natural” das coisas, não deve ser abdicado quando seu processo

educativo assume nitidamente a forma discursiva.

O que a educação pelas coisas visa é a educação da vontade da criança. Mas, se a

vontade da criança precisa ser educada, por outro lado, ela também precisa ser deixada a se

11

desenvolver livremente e o problema consiste justamente em saber quando ela deve ser

regulada pela intervenção do adulto e quando deve ser deixada a se desenvolver

livremente. Rousseau não dá evidentemente uma resposta pronta para este problema, mas

parece oferecer um critério ao afirmar que também o adulto precisa, em determinadas

circunstâncias, deixar dobrar-se a certas vontades da criança, sem precisar contrariá-la.

Como afirma, “cumpre pensar sempre que há grande diferença entre lhes obedecer e não as

contrariar” (ibidem, p. 47). Obedecer sem contrariá-la significa, neste contexto, atender

aquelas necessidades que vão de encontro à natureza e aos reclames da criança que estão

profundamente enraizados, por um lado, nas necessidades físico-biológicas e, por outro, no

sentimento natural de justiça e de injustiça que reside em seu coração. Portanto, se ao

exercer seus cuidados para auxiliar a criança a satisfazer suas necessidades, o adulto

simplesmente impusesse sua vontade, sem considerar o mundo da criança, ele certamente a

estaria adestrando.

Por outro lado, se é da fragilidade inicial da criança, de suas necessidades, que

provém o sentimento de sua dependência em relação ao adulto, quando tais necessidades

não forem atendidas adequadamente, elas podem se tornar um império de dominação. O

domínio que a criança pode exercer sobre o adulto, tornando-o escravo dela e de si mesmo,

depende muito mais dos cuidados por ele dispensados do que das necessidades naturais da

própria criança. Rousseau parte da tese, portanto, de que a dominação escravizante

assumida pela criança origina-se do próprio modo da intervenção adulta. Neste sentido,

para que possa respeitar o mundo da criança, não a vendo apenas como um “pequeno adulto

defeituoso”, o adulto não pode simplesmente impor sua vontade a ela ou, por outro lado,

dispor-se a atender todas os seus caprichos. Com isso fica claro também que a dimensão

significativa do conteúdo da educação natural deriva-se da exigência, posta ao adulto, de

assumir responsabilidades na formação da vontade e do caráter da criança, não podendo,

com isso, simplesmente projetar sua vontade no mundo da criança, mas, ao mesmo tempo,

não manter intocável seus desejos e caprichos. Neste contexto, fica claro que os efeitos

morais observados no desenvolvimento da criança devem-se à sua socialização e, sobretudo

em sua fase inicial, do modo como o adulto intervém no mundo da criança. É por esta razão

que Rousseau considera a moralidade não como obra da natureza, nem do destino e muito

menos de forças divinas, mas sim como resultado das interações sociais. Daí brota a tese de

12

que a moralidade das ações humanas está vinculada ao seu processo formativo-educacional

e, portanto, ao seu próprio processo de socialização.8

Até aqui busquei mostrar a importância concedida pelo genebrino a intervenção do

adulto no mundo da criança. Antes de prosseguir com a argumentação sobre tal

importância, ressaltando outros aspectos, torna-se oportuno voltar-se à objeção posta no

início do ensaio, reformulando-a agora por meio da seguinte pergunta: ao conceder tal

importância à intervenção do adulto, Rousseau estaria se distinguindo realmente da

pedagogia moralista de sua época? O que o diferencia daquela é o modo como pensa os

cuidados do adulto e o conteúdo que lhes atribui. Rousseau é um dos primeiros, entre os

modernos, a expor a tensão constitutiva do processo pedagógico que emerge do ideal de

autonomia e de emancipação atribuído aos envolvidos e faz isso quando, ao pensar

especificamente no papel do adulto, indica o grau de complexidade presente em sua relação

com a criança, mostrando que a tarefa adulta movimenta-se no fio da navalha de não

adestrar a criança e nem se deixar ser por ela escravizada. Sua posição resoluta sobre este

problema é enunciada na seguinte passagem: “Cumpre acostumá-la desde de cedo a não

comandar nem nos homens, por não ser senhor deles, nem nas coisas que não a entendem”

(Ibidem, p. 48). Mas o que resta à criança – poderíamos nos perguntar a esta altura da

argumentação - se ela não pode comandar nem os homens e nem as coisas? Vê-se que o

esforço de justificação da educação natural dirigida à infância exige a formação de um

caráter que deve permitir a criança encontrar devidamente seu espaço entre os homens e as

coisas, sem que destrua a ambas por meio de seu modo de agir. A busca por este espaço

precisa ser orientada, desde o início, e exatamente aí reside o problema, pela inserção

progressiva da criança no “caldeirão” da sociabilidade ou no “inferno” das relações sociais.

O preceito da educação natural consiste em fazer com que a criança tire conclusões

a partir de sua idade e de acordo com suas condições e possibilidades. Para Rousseau, as

crianças não são “anjos” e nem “demônios”, mas seres humanos em desenvolvimento e é o

processo de socialização delas por meio das mãos do adulto que as tornam o que são em

sua primeira infância. O genebrino deixa claro, em muitas passagens do Émile, que, ao

serem confrontadas com um comportamento inadequado do adulto, as crianças incorporam 8 Esta tese central da filosofia moral de Rousseau e que, portanto, sustenta o projeto de educação natural, encontra-se amplamente desenvolvida na “Profissão de fé do vigário saboiano”. Ela contrapõe-se a um certo “inatismo moral” que poderia estar contido na idéia de que as crianças já nascem com sentimentos de justiça e injustiça Sobre isso ver Dalbosco (2005, p. 70-103 e 2006, p.).

13

qualidades destrutivas em seu caráter. O conteúdo da seguinte passagem confirma isso:

“Eis como elas se tornam incômodas, tirânicas, voluntariosas, maldosas, indomáveis;

progresso que não lhes vem de uma vontade natural de domínio e sim que lhes dá essa

vontade [do adulto, CAD.]; pois não é necessária uma longa experiência para sentir a que

ponto é agradável agir pelas mãos de outrem e não ser preciso senão mexer a língua para

movimentar o universo” (Ibidem, p. 49).

O paradoxo consiste no fato de que em sua relação com as crianças, os adultos

impõem-lhes, primeiro, sentimentos de dominação e de maldade e, depois, deixam-se

escravizar a si próprios por tais sentimentos. A pergunta consiste, evidentemente, em saber

porquê a intervenção adulta toma esta direção: seria, nesta situação, um desejo claro de

“preservação da espécie”, uma vez que os pais, por exemplo, para poderem tornar seus

filhos aptos a competirem socialmente, precisam fazer concessões permanentes, dobrando-

se à sua vontade ilimitada? Certamente que Rousseau não desconecta a justificativa de seu

projeto de educação natural da crítica cultural mais ampla, dirigida contra a sociedade de

sua época, sendo que um de seus objetivos é evitar, neste contexto, que se reproduza na

formação da criança as mesmas formas de vida marcadas pelo cinismo e pela dissimulação,

próprias à racionalidade da sociedade de corte9, da qual ele próprio fora excluído em sua

infância e juventude e na qual participou parte de sua vida adulta, mas depois se retirando

quase inteiramente dela.

9 Nobert Elias certamente foi um dos primeiros autores que melhor reconstruiu as linhas sócio-culturais das formas de vida politicamente dominantes na época de Rousseau. Partindo do princípio metodológico de que não são os indivíduos singulares, mas a “configuração” que formam entre si que constitui o todo social de uma determinada época, Elias analisa a “racionalidade de corte”, diferenciando-a da “racionalidade burguesa” no aspecto de que, enquanto esta última tem seu caráter específico “no planejamento calculado da estratégia singular de concorrência pelo poder econômico”, àquela o tem “no planejamento calculado de estratégia própria na direção de possíveis perdas e ganhos de chances de status e prestígio sob a pressão de uma concorrência contínua pelo poder” (Elias, 1989, p. 160). A busca permanente por tal prestígio fazia com que a realidade social residisse justamente na posição e na reputação atribuída a alguém pela sua própria sociedade, daí que a necessidade de mostrar-se aos outros e de orientar-se, fundamentalmente, pela opinião que eles formavam ao seu respeito era o aspecto decisivo na constituição da “identidade” dos membros daquela sociedade. Aí reside justamente a raiz social da importância que a idéia de representação ligada à manutenção das aparências por meio de recursos artificiais exercia na mentalidade das pessoas e, neste contexto, toda crítica político-cultural de Rousseau pode ser interpretada como firme denúncia da inautencidade inerente à tal representação. Afirma Elias: “Não se pode compreender Rousseau e sua influência, a possibilidade de seu sucesso também no interior do ‘monde’, se não o compreender simultaneamente como expressão de um movimento contrário à racionalidade de corte e contra a supressão do ‘sentimento’ que ela promovia” (Ibidem, p. 194-195).

14

VI

Antes de prosseguir, resumamos o aspecto importante do que foi dito até aqui:

temos como núcleo da caracterização atribuída por Rousseau aos cuidados do adulto, a

insistência na proteção da criança contra o excesso da intervenção discursiva do adulto,

recorrendo à educação pelas coisas como modelo normativo para regular o exercício adulto

dos cuidados. Se seu argumento terminasse aí, certamente a análise pedagógica do filósofo

genebrino sobre a primeira infância permaneceria muito incompleta. No entanto, ele

acrescenta um terceiro e decisivo argumento para precisar os cuidados do adulto, a saber,

a exigência de conduzir a criança ao seu caminho natural. Isto é, neste contexto, o caminho

natural é posto como princípio pedagógico da educação pelas coisas.

Mas o que significa propriamente caminho natural como especificação pedagógica

da educação pelas coisas? Embora seu significado seja central à qualificação dos cuidados

do adulto, a expressão “caminho natural” parece mais confundir do que ajudar,

considerando seu caráter enigmático. Reconstruir seu significado não é tarefa fácil, porque,

considerando a tese forte da teoria social de Rousseau, trata-se da “naturalidade” de um

processo que só pode ser conquistado mediante a socialização da criança. Por caminho

natural entende Rousseau, primeiro, o desenvolvimento das disposições naturais em

oposição aos vícios e isto significa dizer que toda educação e todos os cuidados a ela

dispensados devem estar orientados para atender, de modo não viciado, as necessidades

naturais da criança. Isto é, o adulto deve contribuir para não torná-la dependente, egoísta e

dominadora. Em segundo lugar, o significado do caminho natural repousa na diferença

entre as necessidades e as fantasias que constituem o mundo da criança. A passagem da

necessidade à fantasia é algo que deve ser observado atentamente pelo adulto, pois a forma

elementar e grosseira de corrupção do caráter de ambos começa quando o adulto não está

preparado o suficiente para perceber o quanto a criança é capaz não só de fantasiar seu

mundo, mas, principalmente, para empregar de forma habilidosa tal fantasia na conquista

de seus desejos e caprichos desregrados. Portanto, o cuidado do adulto mostra-se aqui como

sua capacidade de perceber adequadamente a diferença entre necessidade e fantasia e poder

disciplinar, de modo não autoritário, a corrupção do desejo infantil em fantasias cheias de

15

capricho. Mas o que constitui a necessidade e a fantasia e no que elas se diferenciam

propriamente?

Muitas dificuldades estão associadas a esta distinção. No que diz respeito,

especificamente, ao conceito de necessidade, é preciso considerar que, como vimos, seu

significado não pode ser esclarecido somente com o recurso aos aspectos fisiológicos e

biológicos que o compõem, como, por exemplo, as necessidades elementares de

sobrevivência (satisfação da fome, da sede, do sono, etc.), mas e, sobretudo, as disposições

naturais10 e o seu desenvolvimento como condição indispensável à socialização humana.

Juntamente com a supressão das necessidades básicas coloca-se o desenvolvimento das

disposições naturais e os cuidados do adulto para conduzir adequadamente à criança ao seu

caminho natural precisa atender estas duas exigências.

Em relação à fantasia, por sua vez, sua definição não é tão simples como poderia

parecer, porque está muito próxima da imaginação, à qual Rousseau, como sabemos, atribui

papel decisivo na formação moral de Emílio: é por meio da imaginação que Emílio adquire

a capacidade de sair para fora de si mesmo, rompendo com o egoísmo de seu amor próprio

e deixando-se compadecer pelo sofrimento do outro.11 O ponto importante nesta discussão é

que tanto a fantasia como a imaginação, embora não sejam idênticas, precisam contar com

um certo grau de espontaneidade criativa e se isso é algo em comum entre ambas, a questão

decisiva, para o exercício adequado dos cuidados do adulto, é como ele pode limitar a

capacidade fantasiosa da criança orientada por “desejos caprichosos” sem, ao mesmo

tempo, coibir o desenvolvimento daquela capacidade imaginativa que é indispensável à sua

formação moral.

10 Poder-se-ia dizer que o grande nó da educação natural consiste em propiciar o desenvolvimento autônomo das disposições naturais da criança e o cumprimento de tal tarefa exige que Rousseau argumente com um conceito altamente complexo e ambíguo de natureza. Sobre isso ver Dalbosco (2006, p. 20, nota 26). 11 Uma análise cuidadosa do livro IV do Émile é capaz de mostrar que a capacidade imaginativa não é somente uma capacidade intuitiva, no sentido de ser formada só pela capacidade sensível, mas está profundamente imbricada com a capacidade racional do ser humano, sendo dela até certo ponto dependente. Isso é vital à filosofia moral de Rousseau, pois a capacidade de sair para fora de si mesmo e incluir o outro em sua ação depende de um sentimento moral que também precisa ser justificado racionalmente. Neste sentido, a decisão moral contrária ao egoísmo humano é sustentada pelo apelo ao “coração”, mas esclarecido à luz da “razão”. Isso mostra, por outro lado, a obscuridade da distinção e da relação entre os conceitos de consciência e razão na formulação das idéias morais de Rousseau. Tratei deste tema no artigo “O problema da determinação racional da vontade humana em Rousseau”, defendo claramente uma interpretação das idéias morais de Rousseau em uma perspectiva kantiana.

16

Apesar destas dificuldades, os cuidados do adulto precisam estar voltados à tarefa

de conduzir a criança ao caminho natural. Rousseau formula, em quatro máximas, o modo e

o sentido como o adulto pode ajudá-la a manter-se no caminho da natureza:

Primeira: ajudar a criança a desenvolver e empregar livremente todas as forças que recebeu

da natureza, evitando também que abuse das mesmas.

Segunda: auxiliá-la a suprir todas suas necessidades físicas e suas carências relacionadas à

inteligência e à força.

Terceira: limitar os cuidados com ela ao “útil real”, não concedendo nada, sem razão, à sua

fantasia e ao seu desejo.

Quarta e última máxima: observar com atenção e cuidado a linguagem e os sinais da

criança para poder distinguir através deles o que nos desejos dela vem da natureza e o que é

imediatamente provindo da opinião e da artificialidade do mundo adulto.

Em síntese, o conteúdo destas máximas prescreve um procedimento cuidadoso do

adulto em relação ao mundo da criança, devendo tal procedimento auxiliar na supressão das

necessidades físicas, no desenvolvimento das forças naturais, no disciplinamento da

fantasia e do desejo da criança e, por meio da observação de seu choro, de seu gesto e de

sua linguagem, rejeitar firmemente opiniões e desejos provindos da artificialidade do

mundo adulto. O sentido preciso contido por estas máximas prescreve, portanto, um

conteúdo claramente ético-pedagógico aos cuidados do adulto para com as necessidades da

criança. Com o estabelecimento destas máximas e com as exigências postas ao tipo de

cuidado que o adulto precisa exercer Rousseau visa fortalecer um núcleo interno de

resistência da criança contra a “invasão perversa” da sociedade: como não se pode educar a

criança no isolamento e como ela ainda não está em condições, em sua primeira fase de

vida, de distinguir entre o bem e o mal e, por isso, como ela está extremamente dependente

dos cuidados do adulto, pensar um projeto de educação natural para esta primeira fase

implica em dedicar um “cuidado especial” ao modo como o adulto dispensa seus cuidados

às crianças. Neste sentido, o projeto da educação natural de Rousseau pode ser

compreendido como um cuidar do próprio cuidado.12

12 Interpretada nesta perspectiva, a educação natural se insere em uma longa tradição que remonta pelo menos até o Alcebíades de Platão. O problema central deste diálogo gira em torno do propósito socrático de mostrar ao jovem Alcebíades que a “arte de governar” os outros passa primeiramente pelo “cuidado de si mesmo” e, no caso da criança e do jovem que não estão plenamente em condições de cuidar de si mesmo, precisam do mestre que “cuide do cuidado” que eles dispensam

17

VII

Se estas máximas são suficientes ou não para manter a criança no caminho da

natureza, isso deve permanecer ainda como uma questão em aberto. De qualquer modo,

elas têm como propósito, segundo a intenção de Rousseau, garantir um dos princípios da

educação natural, a saber, o de contribuir na formação da criança como “rainha de si

mesma” e isso exige, por sua vez, introduzi-la no conceito de liberdade bem regrada. “O

espírito destas regras está em conceder às crianças mais liberdade verdadeira e menos

voluntariedade, em deixá-las com que façam mais por si mesmas e exijam menos dos

outros. Assim, acostumando-se desde cedo, a subordinar seus desejos a suas forças, elas

sentirão pouca privação do que não estiver em seu poder” (Ibidem, p. 50). O conteúdo da

educação natural expressado nesta passagem exige de modo claro um equilíbrio na

formação da criança, que não prime nem pela falta e nem pelo excesso, mas vise sua

autodeterminação progressiva, a qual pressupõe um autodomínio mínimo em relação aos

seus desejos, uma consciência serena em relação aos seus limites e, por fim, um exercício

adequado de sua própria liberdade.

A liberdade bem regrada é o quarto argumento arrolado por Rousseau para definir

os cuidados do adulto em relação à criança, servindo com isso também para ampliar a

própria definição de primeira infância. Para que não seja compreendido como um caminho

de volta à natureza enquanto exclusão da sociabilidade humana, o próprio caminho da

natureza precisa ser completado pelo significado da expressão liberdade bem regrada,

impondo limites e condições ao modo como os cuidados adultos devam ser exercidos. Ou,

melhor dito, a idéia de liberdade bem regrada deve servir como ideal normativo regulador

do princípio pedagógico de condução da criança ao caminho da natureza e, frente a isso, do

sobre si mesmo e sobre os outros. Amparando-me na interpretação de Foucault sobre este diálogo platônico procurei mostrar, em outro lugar (Dalbosco, 2006, p. 34), que o significado ético-pedagógico do cuidar de si significa a “atitude da alma expressando o modo como um sujeito de ação relaciona-se com a dimensão regulativo-normativa da ação humana; tal atitude ordena, no mínimo, que não se pode servir indiscriminadamente de tudo e de todos. Portanto, é preciso que o sujeito imponha um princípio limitador ao seu modo de agir com as coisas e com as pessoas”. Como teórico da educação Rousseau poderia ser visto, neste sentido, como alguém preocupado em cuidar do cuidado do adulto dispensado àqueles que ainda não estão em condições de exercer autonomamente seus próprios cuidados.

18

modo como o adulto exerce seus cuidados. A tensão que cruza o significado da expressão

“liberdade bem regrada”, entre os dois valores absolutos, a liberdade e a lei, projeta uma

complexidade elevada ao exercício dos cuidados. Ou seja, o princípio de maioridade, - o

“tornar a criança rainha de si mesma” – pressupõe a liberdade, a qual, sem a referência a

regras mínimas, torna-se completamente cega, egoísta e autodestrutiva. Mas o problema

consiste, do ponto de vista pedagógico, em como se manter livre mediante o caráter

minimamente coercitivo imposto por qualquer regra. Se ao cuidado do adulto é exigido que

não perca de seu horizonte tanto a liberdade como a lei, o desafio que se apresenta é o de

como tornar produtiva, no processo pedagógico, a tensão entre liberdade e lei, sobretudo,

considerando-se o fato de que a situação da criança, em sua primeira infância, ainda não lhe

oferece condições sequer de se aperceber adequadamente de tal conflito.

Tal desafio põe um questionamento claro sobre o modo como o adulto deve exercer

seus cuidados: como contribuir para a liberdade da criança, visando sua autonomia,

sabendo que a conquista da mesma exige o confronto da ação da criança com o caráter

coercitivo mínimo das regras em uma situação na qual a própria criança ainda não está em

inteiras condições de compreender racionalmente o conteúdo das regras? O que se pode e

deve ser imputado à sua ação? O dilema consiste no fato de que se, por um lado, a rigidez

extremada das regras conduz ao adestramento, por outro, sua flexibilização excessiva leva

ao egoísmo possessivo e, com ele, a insociabilidade humana. Eis novamente o fio

afiadíssimo de uma navalha sobre o qual devem se movimentar, segundo os preceitos da

educação natural, os cuidados dispensados pelo adulto à supressão das necessidades da

criança. Neste contexto, socializar não adestrando torna-se o lema da educação natural.

VIII

Conduzir a criança no caminho da natureza orientado pela idéia da liberdade bem

regrada constitui o ideal normativo regulador do modo como o adulto deve exercer seus

cuidados em relação às necessidades da criança em sua primeira infância. Orientando sua

ação pela busca de tal ideal o adulto estaria respeitando dignamente a criança em seu

próprio mundo. Se este é o resultado principal das análises precedentes, quero mostrar

19

agora, em forma de conclusão, em que sentido tal resultado está profundamente dependente

do caráter aporético da educação natural.

Usei até aqui indistintamente o conceito de aporia. Convém agora, antes de avançar

na análise, esclarecer seu sentido mais apropriado para caracterizar o projeto da educação

natural. Em um de seus significados gregos, a aporia provém da dificuldade experimentada

pelo emprego conflituoso de argumentos (Aristóteles, Top. VI, 145b). Neste significado

está explícito a idéia de que uma argumentação aporética é logicamente contraditória e, por

sê-la, conduz os argumentos a um caminho sem saída, tornando-os deste modo inválidos.

Mas aporia pode significar também o contorno argumentativo de dificuldades insolúveis,

sem que a análise chegue a um termo definitivo. É este segundo significado que interessa

ao tema que está sendo tratado, pois abre a possibilidade para se compreender o discurso

filosófico sobre o processo formativo-educacional humano e, no contexto especificamente

de Rousseau, o discurso acerca do modo como o adulto exerce seus cuidados, como um

discurso que não pode alcançar uma conclusão absoluta.

Considerando isso, o caráter aporético do projeto da educação natural reside na

tentativa de contornar dificuldades insolúveis que se apresentam no processo da relação

pedagógica entre adulto e criança. Para esclarecer isso quero evidenciar agora o nexo entre

os quatro argumentos que caracterizam o modo dos cuidados do adulto e o pólo tencional

que emerge de cada um deles. Sendo assim, temos, no que diz respeito ao primeiro

argumento, que do modo como a mãe se relaciona com o bebê e, em sentido mais amplo, o

modo como o adulto se relaciona com a criança, emerge a tensão entre o caráter

indispensável de seus cuidados no atendimento das necessidades da criança e o risco

eminente de viciar o comportamento da criança por meio do exercício de tais cuidados. Na

seqüência, do segundo argumento, que consiste no princípio pedagógico da educação pelas

coisas e do terceiro, que põe o caminho natural como especificação da educação pelas

coisas surge a tensão entre o desenvolvimento das disposições naturais e o recurso à arte de

encenação. A ela vincula-se também a questão decisiva à educação natural: como pode ser

realmente “natural”, no sentido normativo mais forte que o termo assume em Rousseau, o

exercício dos cuidados do adulto que, ao mesmo tempo em que se baseia no caminho

natural da educação pelas coisas, também precisa recorrer à arte da encenação? Por fim, do

20

quarto argumento, que se refere à idéia da liberdade bem regrada, emerge a tensão entre o

cultivo da liberdade e o caráter coercitivo da regra.

No que diz respeito ao primeiro, a análise precedente mostrou que as necessidades

da criança não podem ser atendidas sem os cuidados do adulto e que estes cuidados, por ser

um modo prático-social do adulto viver no mundo, não estão isentos da perversão, do

cinismo e da corrupção reinantes na sociedade. Com isso fica evidente o aspecto do caráter

aporético do projeto de educação natural dirigido à primeira infância: sem os cuidados do

adulto a criança não sobreviveria e, ao depender deles, não está livre de incorporar seus

hábitos viciosos. O dilema consiste aqui no fato de que a satisfação das necessidades da

criança e, portanto, a manutenção de sua própria sobrevivência depende de seu contato com

os hábitos viciados do adulto.

O segundo pólo tencional da aporia emerge do princípio pedagógico da educação

pelas coisas e, mais precisamente, de sua vinculação com a arte da encenação13. Rousseau

recorre a ela em muitas passagens do Émile para trazer seu aluno fictício para dentro dos

princípios da educação natural: encena e simula situações para provar e reforçar o caráter

do Emílio. No entanto, um dos problemas que se coloca aí é o de saber até onde a

encenação corresponde efetivamente aos princípios da educação natural e quando a própria

arte da encenação não se transformaria em uma criação artificial e meramente

dissimuladora do educador. A aporia consiste no fato de que a educação natural precisa

recorrer, por um lado, a um mecanismo artificial para fazer valer seu princípio de livre

13 Como a educação pelas coisas não pode ocorrer sem uma ação discursiva mínima, a qual repousa na arte da encenação, ou seja, naquelas situações simuladas por Rousseau ao Emílio, a questão que se coloca é a de saber até que ponto esta simulação, uma vez que é constituída por convenção, pode manter algo de natural ou, então, não corresponder mais ao princípio de educação pelas coisas? Encontramo-nos aqui, mais uma vez, diante de uma daquelas tantas ambigüidades que permeiam o pensamento de Rousseau: uma educação pelas coisas que só pode ser levada a diante por um ato de convenção do educador. Ao discutir o problema da origem do corpo político em Rousseau, Hochart tem destacado o duplo movimento contraditório que se desenvolve em seu pensamento entre os conceitos de direito natural e sociedade geral, mas que, apesar de contraditório, possui certa coerência interna, representada nas figuras metafóricas do simulacro e do modelo. Assumindo a tese de que a noção de direito natural em Rousseau possui nitidamente uma origem teológica o referido autor conclui: “Acreditamos que o lugar desta impossível superação da metafísica, o lugar em que se realiza ao mesmo tempo em que se retrai, pode estar situado no conceito de direito natural, no qual se ligam e se desligam estranhamente, na rotação do simulacro, a natureza e a convenção” (HOCHART, 1972, p. 131). Ora, mesmo que o conceito de direito natural não desempenhasse diretamente um papel decisivo no projeto de educação natural à primeira infância, não impediria, ao meu ver, que se pense analogicamente aquela ambigüidade entre educação pelas coisas e a arte da encenação como “rotação do simulacro entre natureza e convenção”.

21

desenvolvimento das disposições naturais do aluno, sem ter, por outro, garantia sobre a

legitimidade pedagógica e moral de tal mecanismo: visando uma educação natural busca-

se combater o artificialismo por meio de um recurso artificial! Esta dificuldade inerente ao

princípio pedagógico da educação pelas coisas põe, como se vê, outros problemas ao

esforço rousseauneano de elaborar princípios à educação da criança na primeira infância

que enfatizem mais o exemplo do educador do que suas intervenções verticais,

manifestadas tanto pela agressão física como pela ação verbal. Enfim, ela exige uma

reavaliação constante da arte de encenação como recurso pedagógico para manter a criança

no caminho da natureza.

O terceiro pólo tencional emerge do confronto entre as vontades dos envolvidos no

processo pedagógico. Embora a oposição do comportamento da criança à resistência das

coisas seja o melhor procedimento à formação segura e digna de seu caráter, tal oposição só

pode se realizar no processo de socialização, o qual implica a oposição entre vontades, a da

criança e a do adulto. Isto mostra que o conteúdo da educação natural, mesmo quando

pensado à primeira infância, só pode ser definido por meio do confronto entre vontades

humanas que são diferentes entre si. O que está implícito, no fundo, é a tese de que uma

educação adequada da vontade da criança constitui um núcleo decisivo para seu

desenvolvimento moral e a questão é que tal vontade só pode ser educada mediante o

conflito permanente entre a liberdade e a existência de leis. Como vimos, o princípio

pedagógico de condução da criança pelo caminho da natureza só assume sua inteira

significação pedagógica quando inserido no ideal normativo da liberdade bem regrada. Tal

inserção evidencia, por sua vez, o conflito crucial entre liberdade e lei que cruza o processo

pedagógico do começo ao fim, revelando à educação um de seus maiores desafios: como

educar para a liberdade mediante o caráter coercitivo mínimo imposto por qualquer regra?

Parece-me, neste contexto, que a idéia de liberdade bem regrada reúne, como ideal

normativo supremo da educação natural, os principais aspectos da tentativa desesperada de

Rousseau de contornar as dificuldades insolúveis que surgem da relação humanamente

pedagógica entre adulto e criança.

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