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#fomosprarua imeira impressão pi pr nº 41 | julho de 2014 |

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Revista experimental Primeira Impressão (edição 41). A publicação é produzida por alunos do Curso de Jornalismo da Unisinos (campus São Leopoldo/RS). Veicula reportagens ligadas por uma única temática. Esta edição traz 23 reportagens sobre o tema "rua". Com 116 páginas, é impressa toda colorida. A tiragem é de 1.000 exemplares, distribuídos em universidades e redações jornalísticas de todo o Brasil.

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editorial

A rua é dos repórteresLugar de repórter é na rua. A frase

é conhecida, clichê, já quase ficou fora de moda, mas parece ter ganhado um fôlego novo com as

tecnologias móveis de produção de con-teúdo online. Atualmente, consumimos e produzimos notícias, informações, fotos, vídeos e toda a sorte de conteúdos digitais ao alcance dos dedos, ao tocarmos as sensí-veis telas de nossos tablets e smartphones.

Mas e a rua? Que rua é essa que se multiplica nas telas de nossos dispositivos eletrônicos, em mapas, fotos, vídeos e his-tórias? Que rua é essa que se estende em palavras, orações e notícias nas páginas de jornais e revistas? O que é esse espaço que parece sempre o mesmo, mas que muda a cada instante e que é tão igual e tão diferente de si mesmo a cada logra-douro? Bem, a rua tem muitos sentidos, muitas respostas, muitas possibilidades. Para compreendê-la é preciso ter um certo espírito vagabundo, como sugere João do Rio em A alma encatadora das ruas. É preciso se perder para se encontrar. Desligar o GPS e abrir os olhos, ouvidos e o coração. A rua é aquela coisa que corre sob pés elegantes vestidos em sapatos de couro

e salto alto ou sob os pés nus, apressados e arteiros dos moleques que insistem em transformar a rua em campo de futebol.

É a rua dos apressados veículos auto-motores e do vagar do passante cego que “vê” a rua com a ponta de sua bengala. É a rua pública que o fascinado milionário pensa que é privada. É a rua onde os idosos voltam a ser crianças, com seus jogos e disputas. É rua que tem gosto de liberdade de quem viveu, décadas atrás, a vigília dos campos de concentração. É a rua onde o lixo de muitos se torna a fonte de riqueza de poucos. É a rua que não chega para quem espera pela liberdade dentro de uma cela. É a rua da pregação, do templo a céu aberto. É a rua em seu estado político das ações sociais. É a rua estreita onde só se anda sobre duas rodas. É a rua composta de notas, arranjos e melodias dos músi-cos que têm a calçada como palco. São as ruas que levam aos estádios. É a rua por onde correm macas, desfibriladores e a esperança de cura. É a rua do amolador de facas e do jornalista, que transformou a rua em redação ou estúdio. É a rua da manifestação artística. É a rua anônima, mas é também a rua onde as sombras da

ditadura sobrevivem com seus líderes que dão nome aos logradouros. É a rua que virou consultório médico. É a rua de quem a espia da portaria. É a rua transformada em quitanda, é a rua da feira. É a rua onde pontos dispersos – as paradas de ônibus – conectam pessoas que vêm e vão para diferentes lugares. É, também, a rua da discórdia, onde o entulho é de todos e, por isso mesmo, de ninguém.

A rua tem alma. A rua ganha vida quando emprestamos a nossa para ela. A 41ª edição da Primeira Impressão é também a rua, de onde se origina o trabalho dos repórteres e fotógrafos que realizaram estas reportagens, afinal, lugar de repórter é na rua.

Thaís FurtadoEditora de textosFlávio DutraEditor de fotos

Ricardo MachadoEstagiário-docente

LEON

ARDO SAVARIS

Veja mais no Facebookfacebook.com/revistaprimeiraimpressao

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4 n Primeira Impressão n Julho de 2014

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Primeira Impressão n Julho de 2014 n 5

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Se essa rua, se essa rua fosse minhaImagina ter tanto dinheiro que você poderia comprar sua própria rua, fazer tudo o que quisesse, ter carros de luxo. Na vida e na rua de Caburé, isso tudo é real

6 n Primeira Impressão n Julho de 2014

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MATH

EUS KIESLIN

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Se essa rua, se essa rua fosse minhaPor Rodrigo Westermann Blum

Fotos de Marina Corte e Matheus Kiesling

n No litoral gaúcho, o empresário Caburé

personalizou a rua onde estão as casas de veraneio de sua família

Primeira Impressão n Julho de 2014 n 7

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8 n Primeira Impressão n Julho de 2014

Onde está o Caburé? – pergunta o senhor de cabelos e barba brancos.

– Está viajando – res-ponde em coro um batalhão de homens uniformizados.

– Para onde? – volta a perguntar o homem.

A resposta vem embaralhada nas várias vozes que respondem a pergunta:

– China.– Índia.– África– Colômbia.O senhor, apontando para uma versão

imaginária dele mesmo, pergunta:– E quem é aquele?O batalhão, bem treinado, responde

com firmeza:– O capataz!Orgulhoso da reação obediente de seu

pequeno batalhão de guardas, o empre-sário de sucesso, mais conhecido como Caburé, dá–se satisfeito com sua estra-tégia para despistar curiosos. Preferindo manter sua imagem em sigilo, não se deixa fotografar, nem por convidados, nem por visitantes. No entanto, seu visual destoa da vestimenta dos demais. Com um quepe de marinheiro, camisa pólo azul marinho, uma calça capri num tom anil, quase puxando para o púrpura, sapatos de couro alaranjados e diversos acessórios de ouro, ele se destaca da multidão com roupas em tons pasteis, preto e branco. Os guardas vestem calça social, sapatos, gravata e uma camisa onde se lê em le-tras laranjas a palavra “segurança”. O restante dos funcionários usa camiseta e bermuda em tons de cinza e calça tênis. Todos com um boné que indica a quem servem: “Caburé”.

O encontro entre patrão e empregados não é acaso. Acontece todas as quintas–feiras no município de Xangri–lá, no litoral norte do Rio Grande do Sul, para o pagamento da “gorjeta” semanal. Sua chegada é anunciada por Júnior Rosa dos Reis, o coordenador dos funcionários. Um rapaz de aparência jovial e com o uniforme modesto dos empregados. Traje que não denuncia sua responsabilidade: liderar um grupo que, para dar conta de toda a infraestrutura, soma quase 60 funcionários. Com um sorriso aberto, ele recebe o chefe, que chega no banco

do carona de um luxuoso SUV vermelho. Caburé pergunta se estão todos ali e re-cebe a informação positiva, com exceção de um pequeno grupo de seguranças, que permanece em seu posto.

Alinhado, o grupo de guardas, jardi-neiros, zeladores, cozinheiras e mesmo um marceneiro, esperam pelo patrão, todos ansiosos pelo pagamento. Com voz e postura firmes para quem já passou dos 80, Caburé chega falando alto e em tom de deboche:

– Vocês tão loucos para receber, né?! Mas quero só ver se estão trabalhando mesmo!

Não há hesitação. Todos respondem animados que estão trabalhando, sim se-nhor, seu Caburé. Se há alguma nesga de formalidade, ela é quebrada pelo patrão. Ele está ali não só para fazer o pagamen-to, mas para saber como cada um está. Veio almoçar com eles, conversar com os empregados e, novamente, contar sua história e ensinar o valor do dinheiro.

Ali, entre piadas sujas e uma gozação recheada de palavrões, Caburé pergunta em voz alta, com um quê de impaciência para com o acanho de seus empregados, quem é o próximo. Um a um, eles respon-dem com um tímido “eu, seu Caburé.” Depois de saber um pouco mais sobre como anda a vida do empregado, o patrão pergunta – de maneira quase inocente – quanto ele deve receber. É o empregado que diz quanto é sua gorjeta. Depois de ouvir o valor, que varia entre R$ 600 e R$ 3 mil, a pergunta seguinte é para provar o merecimento:

– Mas está trabalhando, ou fica só cagando por aí?

Para ele, não é humilhação. É aproxi-mação. É desafio. Se a resposta vem em voz baixa, a bronca é certa:

– Mas como que tu me responde as-sim, nesse jeitinho “qué qué qué, seu Caburé”? Tem que dizer que sim. Estou trabalhando. Estou dando o meu melhor. Como que tu quer ser alguém na vida com essa vozinha frouxa? Tem que acreditar. Tem que querer. Tem que saber que, se tu trabalha para mim, tu é o melhor. Tu é casado?

– Sim, seu Caburé. – responde o em-pregado em voz baixa.

– Como é que uma mulher pode ca-sar com um cara assim, para baixo, com

medo? Vamos lá, tem que ser homem. Tem que mostrar que está aqui para tra-balhar. Tem que ter certeza de si mesmo. De que quer vencer. Tu tá ganhando bem aqui pra isso.

Silêncio.– Toma, tá aqui. – Caburé, ao puxar

um maço grosso de notas do bolso, conta e entrega o dinheiro. – Precisa de mais? Está tudo bem na tua casa? Se precisar é só pedir. Ou melhor, toma aqui. Leva mais isso. – E dá para o empregado mais dois pares de notas alaranjadas, com onças adornando.

E a sequência continua. Todos re-cebendo sua gorda gorjeta semanal. E o fim do mês ainda nem chegou, com o salário e os benefícios. Do faxineiro ao segurança, todos ganham bem por ali. “Ninguém aqui ganha menos de quatro mil por mês”, expõe Caburé. Chega a ser quase dez vezes mais do que ganha a média dos trabalhadores do litoral – em funções semelhantes – segundo uma das empregadas. E o resultado é notável pela expressão de ânimo de cada um dos empregados ao responder à pergunta do patrão:

– Alguém quer sair daqui para tra-balhar em outro lugar?

Uníssono firme, daqueles que não deixa dúvida:

– Não!Mesmo Júnior, que está terminando

a graduação em direito, a quem Caburé chama de “Doutorzinho”, quando ques-tionado pelo patrão por que não sai dali e vai trabalhar em um escritório de ad-vocacia, responde:

– Porque aqui é melhor, seu Caburé.

Eu mandava, eumandava ladrilhar

E ele realmente o fez. Por pouco, não com pedrinhas de brilhante, porém com uma pavimentação em blocos de concreto coloridos perfeitamente alinhados, que formam desenhos em uma superfície tão, ou mais plana, que muitas ruas asfaltadas de qualquer cidade brasileira. A impressão de perfeição de cada cantinho da famosa Rua do Caburé, na praia de Atlântida, uma das que compõem o município de Xandri–lá, é inesquecível. Não há como não reparar na organização e na limpeza

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Primeira Impressão n Julho de 2014 n 9

n O cuidado com os jardins é tão grande

que até as dunas foram gramadas

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quase asséptica da rua. Impossível de não se impressionar com a beleza dos jardins que, não por acaso, têm como ponto alto as relíquias de Caburé: duas oliveiras de quase três metros e meio de altura, en-voltas em telas sombreadoras, para que o vento não maltrate suas folhas. Cada uma, segundo ele, com cerca de 1200 anos. Suas joias.

Todo esse cuidado não se restringe aos jardins das residências da família de Caburé. Tanto a rua Buriti, onde estão as casas de praia de Caburé e de dois de seus filhos, quanto a rua Guia das Pedras, para onde fica o pátio dos fundos da casa do empresário, recebem manutenção diária, que vai desde a pintura do meio–fio, até o recolhimento do lixo. Sim, o caminhão de lixo que passa de hora em hora nas ruas é pago por Caburé. Diz José Luiz Mota da Silva, seu filho, que o pai adotou a área. Diz seu pai, que é ele quem manda em tudo aquilo ali. “Aqui a prefeitura não se mete. Eu sou o prefeito, eu sou o governa-dor, eu sou o presidente. Pode perguntar pra qualquer um. Quem manda aqui é o Caburé”, coloca. Percebe–se.

Do alto da varanda da casa mais próxima do mar, vê–se que a avenida Beira–mar só vai até o gramado onde há o heliporto de Caburé. Terminado o gramado, a avenida volta a existir. “Até tentaram atravessar o meu gramado com essa rua. Não deixei. Disse que aqui quem mandava era eu, e ponto”, ele diz. Realmente, ali tudo é exatamente con-forme sua vontade. Naquela quadra, o poder é de Caburé.

Não há melhor expressão para des-crever o que Caburé fez na região do que “agregar valor”. Em toda sua signifi-cância, em toda sua graça, em toda sua pompa, a expressão serve para ilustrar tudo que ele fez naquela quadra. A rua é ponto turístico. “Tem que ver isso aqui no verão”, diz um dos seguranças. “É uma loucura. É tanta gente para ver as casas, a rua e os carros, que chega a dar congestionamento”, completa. Na alta temporada, Caburé não pode sequer caminhar pela sua rua. Ele vi-rou uma lenda, de acordo com uma das empregadas. “Ele é sinônimo de fama, de sucesso, de dinheiro. E as pessoas vêm aqui justamente para ver tudo isso. Para viver um pouco de tudo isso. Meio que para sonhar acordadas”, ela coloca.

A fama de Caburé como alguém que agrega pessoas já estava feita por suas festas de aniversário à beira–mar em Capão da Canoa, quando ainda não havia comprado a casa – ou a rua – de Xangri–lá. Eram festas ao ar livre. Quem quisesse, podia ir chegando, bebendo e comendo às custas do aniversariante. Não havia distinção entre conhecidos e desconhe-cidos. Todos estavam convidados. E o mesmo aconteceu com a rua, onde não há grades, nem muros. Onde seus carros esportivos de luxo – Ferraris, Porshes – ficam expostos para quem quiser ver.

“Tinha que ver isso aqui há alguns anos”, comenta um funcionário. Ele conta como as festas eram incríveis, como elas ocorriam sem motivo ou data especial. Fala dos garçons andando de um lado

para outro na rua, servindo quitutes e espumante para quem estivesse por ali. Dos dançarinos de tango, mágicos e saxo-fonistas que davam shows pelas esquinas. Todos pagos por Caburé que, de vez em quando, sobrevoava jogando chocolates e flores de seu helicóptero para quem estivesse por ali desfrutando de tudo isso. “Era lindo no Carnaval”, conta um dos em-pregados mais antigos. “O Caburé tinha o próprio bloco, com desfiles, sambistas e tudo mais. Era um glamour”, lembra ele aos sorrisos. “A gente trabalhava muito, mas se divertia”, fala.

Há 25 anos, Caburé comprou uma residência abandonada, ladeada por lotes cobertos de mato, formando banhados. Uma casa velha, caindo aos pedaços. Reformou a casa. Comprou os lotes. Aparou o mato. Aterrou os banhados. Tudo isso para ter uma boa casa de praia para sua família. Aos poucos, foi ajei-tando seu paraíso particular. Dezesseis anos depois, nasceu sua primeira neta, Marina. Para ela, Caburé construiu um parquinho de diversões na praia. Não poderia ser diferente, ao seu estilo, com o melhor que poderia dar. “Era um parque de diversões. Ou seja, um pouco grande para uma menina brincar sozinha”, conta José Luiz, pai da menina. Os filhos dos vizinhos começaram a vir desfrutar do parquinho. A entrada era livre, assim como a pipoca. Era uma festa. “Até que um dia, um carro estacionou na rua e mais crianças desceram. Depois disso, não parou mais de vir gente conhecer a Rua do Caburé”, lembra José Luiz.

n O caminhão de lixo pago pelo

empresário passa de hora em hora

no quarteirão onde ficam suas

propriedades

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Primeira Impressão n Julho de 2014 n 11

Ao lembrar-se dessa história, Caburé não tem papas na língua ao dizer que foi ele quem fez daquela praia o que ela é hoje. “Depois que eu ajeitei tudo isso aqui, os outros começaram a vir”, conta, referindo–se aos vizinhos. “Eles gostam muito de dizer que têm dinheiro, que são amigos das celebridades e tudo mais, mas não põem um tostão para arrumar a rua. Sou eu quem faz tudo por aqui. E não é por menos. Enquanto eu pago bem para meus funcionários, eles não pagam mais do que R$ 800 para os deles. Aí, não há quem trabalhe direito. Parece que não querem ver os funcionários crescerem. Eu é quem gasto R$ 600.000 por mês pra manter tudo isso aqui”, fala indig-nado. José Luiz conta que os donos de construtoras dizem que foi Caburé quem fez de Atlântida a praia movimentada e procurada que ela é hoje. “E quem diz isso são os mais antigos, que antes de tudo começar eram pescadores por aqui e, depois, começaram a investir na região quando viram a movimentação que a vinda do Caburé gerou para a região”, explica ele.

Para o meu, parao meu amor passar

“Eu devo tudo o que eu tenho hoje à minha esposa”, diz um Caburé em um tom humilde. Uma gratidão que está estam-pada em diversos lugares da casa dele e de um dos filhos na forma de pôsteres e fotos da mulher que, segundo Caburé, fez dele o que é hoje. “Ela me transformou de um mentiroso, vagabundo, enganador, no homem que sou. Tudo isso é por causa dela”, ele fala com a voz melosa.

Aos 18 anos – como ele bem gosta de contar, Luiz Carlos Pigatto da Silva era um vendedor de melancia no centro de Porto Alegre. Cheio de astúcia, lábia, observador e com o dom de “ler” as pes-soas, ele já fazia um bom dinheiro com o negócio. Vendeu de tudo um pouco e trabalhou no comércio. Tinha jeito para fazer dinheiro com qualquer coisa. Tanto que ganhou o apelido de Caburé, uma pequena coruja do nordeste que, dizem, traz sorte e mulher bonita para quem está perto. Verdade tamanha que foi isso que a vida lhe trouxe: uma bela esposa que, certo dia, trouxe um recorte de jornal

com um anúncio de vagas para corretor de seguros.

“Meu pai fez um curso de corretor, onde, lá pelas tantas, disseram que, se ele fizesse a pessoa assinar aquele contrato, ele ganharia uma comissão. Era tudo que ele precisava saber”, conta José Luiz. Com o tempo, Caburé obteve tanto sucesso, que abriu sua própria seguradora, que também deu tão certo quanto o esperado. Há 32 anos, o grupo Caburé Seguros fechou uma parceria com o Banco do Brasil, alavancando ainda mais os negócios. “Tudo graças à minha esposa”, diz Caburé, com saudade da mulher que morreu há cerca de três anos. A sabedoria que ela deixou, ele faz questão de repassar a quem possa: “Se um dia eu fosse escrever um livro sobre minha vida, ele teria o título ‘Vai’. Eu posso ter todos os defeitos do mundo, mas eu tenho essa qualidade: eu vou e faço. Sem medo de nada e nem de ninguém”, ensina ele. “E é por isso que hoje eu tenho tudo o que tenho.”

Uma gratidão tão aparente que, mes-mo quem trabalha na Rua do Caburé, co-nhece bem. “Ela era tudo para ele. Depois que ela faleceu, as festas pararam. Já não há mais mágicos, dançarinos e saxofonis-tas na rua. Os carnavais já não são mais os mesmos”, conta um funcionário. Os empregados percebem e observam que hoje Caburé é um homem rico, que tem tudo o que quer, do jeito que quer, mas é carente, sente falta da razão para aquilo tudo existir: sua esposa. E quanto à rua? Segue aberta, à disposição de quem quiser viver um breve sonho de glamour. Mas onde está o Caburé? ele está viajando. Para China, Índia, Colômbia. Aquele lá é só o capataz, Luiz Carlos Pigatto da Silva.

impressões derepórter

Durante esta reportagem, tive dois momentos bem distintos. Primeiro tive acesso

a uma história de vida como diversas outras, de luta, conquista, sucesso. Em seguida, vivi a pauta. Experimentei um mundo restrito. Depois disso, pude chegar a conclusões um tanto quanto complicadas. Percebi que nós estamos predispostos à adversidade, à dificuldade, à escassez. Como diz a filósofa Dulce Magalhães, vivemos sob o paradigma da escassez, onde reclamar, ser negativo e lidar com a perda e com o lado ruim da vida é inerente ao homem. Isso é o comum, o normal. Adaptamo-nos facilmente e superamos aquela situação de estresse, mas voltamos à normalidade. O problema é quando saímos dessa realidade para um cenário extremamente bem sucedido, onde não há limites. Onde podemos ter tudo que quisermos. Essa sim é uma realidade estranha. O paradigma da abundância, ao qual não estamos acostumados. Por isso, precisamos, os fotógrafos e eu, de algum tempo para nos recuperarmos da vivência da pauta. A mudança de cenário, o entendimento de uma nova realidade, a vida sob outra perspectiva nos atordoa. Principalmente quando é tão distante da vida que levamos: a da realidade da extrema riqueza de Caburé. Contar histórias de vidas difíceis, que tendem a melhorar, ficou fácil depois de experimentar o mundo caótico da fartura, do poder e da vasta liberdade.”

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Vídeo de José Luiz Mota da Silva, filho de Caburé, contando a história de vida de seu pai.

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Outra forma de enxergar

A percepção da rua além do olharPor Joana Dias e Belisa Lazzarotto

Fotos de Ana Carolina Eidam e Marina Corte

As pessoas se deslocam a cada segundo para todos os lugares com o olhar atento ao que as rodeiam. Na firmeza de cada

passo, com a certeza de saber para onde se quer ir, os detalhes da rua são percebidos. Para quem não enxerga, a rua é um enig-ma. Como é possível enfrentar buracos, não bater em árvores e ainda atravessar a rua sem sequer imaginar o que se pode encontrar do outro lado?

A vida de alguém com cegueira se cons-trói a partir da descrição intermediada pelo que as outras pessoas veem. A riqueza de detalhes, através da fala, faz com que o cego crie em seu imaginário como são todas as coisas. Com a privação da vista, enxergar além do horizonte da retina é possível quando outros sentidos são aprimorados, como, por exemplo, tocar, ouvir, saborear e sentir aromas.

Rodrigo Possamai, de 31 anos, natural de Canoas, na Região Metropolitana de Porto Alegre, é cego desde os primeiros mo-mentos de vida, devido ao calor excessivo da incubadora. Ele imagina a rua a partir da sua vivência e convivência ao andar nela. “A rua na verdade é como eu imagino. É uma reta, assim, uma rua. Um local que tem vários carros, tem vários veículos passando, tem calçadas, tem lugares, tem tudo que é coisa que tu pode imaginar. Tem casas, tem estabelecimentos, tem esquinas, tem tudo. Eu imagino ela como eu vejo ela, na verdade, não tem outra definição. Como eu vejo, como eu toco, como eu vivencio, como eu ando nela.”

Filho único, Rodrigo nasceu prema-turo, com seis meses, e precisou ficar na incubadora. Devido à oxigenação no local e ao calor, já nos primeiros dias de vida, suas retinas foram atingidas, causando sua cegueira. “Eu não tenho noção de nada, não sei se é claro ou escuro. Quando é noite e quando é dia eu sei, eu sinto. Eu sinto pelas horas, pela vibração, pela alma.” A percepção aguçada é um dos maiores sentidos que Rodrigo possui. “Eu tenho sensibilidades que eu nem sabia quando eu era pequeno. Eu sempre tive o dom de chegar perto das pessoas e sentir certas coisas, mas eu não entendia por quê. Agora eu sei, eu olho de longe a pessoa, eu vejo a pessoa por dentro. Eu vejo a alma da pessoa. Eu vejo como a pessoa é. Eu boto meus olhos, meus ouvidos, eu já sei como a pessoa é”, revela. Sobre os sonhos que tem ao dormir, Rodrigo explica que isso é igual para ele como é para os que podem ver. “A pessoa é como ela é pra mim agora, tudo é para mim igual. A partir de como eu vivo, é como aparece no meu sonho.”

Todos os dias, o relógio desperta. É pre-ciso levantar da cama, pegar a bengala, an-dar entre os cômodos da casa, arrumar-se e começar a rotina. Sair de casa à tarde para trabalhar, descer uma escadaria. Enfrentar o portão, a calçada e finalmente a rua. Esta, que não está devidamente pavimentada, cheia de buracos e com inúmeros obstácu-los a serem enfrentados, que vão além dos elementos presentes na rua. Telefonista no Hospital Veterinário na Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), Rodrigo se

CANO

AS

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MARINA CORTE

Primeira Impressão n Julho de 2014 n 13

n Rodrigo, que ficou cego logo que nasceu, imagina a rua a partir

de suas vivências

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14 n Primeira Impressão n Julho de 2014

sente satisfeito com suas atividades hoje, que consistem em estudar para concursos públicos, ouvir televisão pela manhã antes do trabalho, de ter a companhia de sua cadelinha Preta e das leituras que realiza. Para se adaptar ao emprego, ele precisou ter domínio da localização das teclas no aparelho telefônico, que não é adaptado para cegos.

Não é desde pequeno que Rodrigo utiliza a bengala para se locomover. Suas idas e vindas da escola primeiramente eram realizadas na companhia de sua mãe e, com o passar do tempo, colegas e caronas foram surgindo para ajudar neste processo. Aos 16 anos, com a realização de um curso de orientação e mobilidade para cegos, Rodrigo aprendeu como uti-lizar a ferramenta e tomou a decisão de que precisava começar a dar os primeiros passos na rua sozinho.

Entre um passo e outro, Rodrigo toca com a bengala o meio fio para localizar-se e, por meio dos sons da rua, perceber o que está acontecendo à sua volta. No cami-

nho para a praça, próxima à sua casa, ao chegar à esquina, ele para. Pacientemente espera que alguém o ajude a atravessar a rua. Mas Rodrigo nunca saberá como é visualmente o outro lado. Para ele, o instinto natural não é saber. É sentir.

Um novo sentidoKelly Souza Oliveira precisava pegar

ônibus, trem e andar na rua para chegar nas diversas atividades que realizava. A jovem de 24 anos participava de um gru-po de dança em um Centro de Tradições Gaúchas (CTG), trabalhava e ainda cur-sava a faculdade de Ciências Contábeis. Um choque anafilático, seguido por uma parada respiratória, mudou totalmente essa realidade.

Ao ingerir uma medicação da qual é alérgica, por prescrição médica, Kelly passou 36 dias internada em um hospital de Canoas. Em decorrência da falta de oxi-genação no cérebro, por um prolongado período de tempo, ela perdeu todos os mo-

vimentos e a visão. “Tive que aprender a falar, a comer, a andar”, lembra. Depois de um ano intenso de tratamentos, incluindo sessões de fisioterapia e fonoaudiologia, a única perda que não pôde ser revertida foi a da capacidade de ver totalmente.

Kelly vê borrões e consegue distinguir cores, o que não a ajuda muito a andar na rua. O hábito, antes tão rotineiro na sua vida, tornou-se um desafio. “É horrível andar na rua depois que se perde a visão”, define. Nas primeiras vezes, estava sempre acompanhada de sua mãe ou de algum amigo para auxiliá-la. Depois de fazer um curso de orientação e mobilidade – no qual aprendeu a usar a bengala – e de informática para cegos, Kelly achou que era o momento de retomar a sua vida e, principalmente, locomover-se sozinha.

Aluna da faculdade de Recursos Humanos, no Unilasalle, ela se desloca três vezes por semana para a universidade. Com o auxílio de um computador adapta-do, que traduz os textos em áudio, Kelly não encontra grandes problemas para

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Primeira Impressão n Julho de 2014 n 15

acompanhar os colegas nas atividades acadêmicas. A dificuldade fica por conta do trajeto de ida e volta, bem como do deslocamento dentro do campus. “Muitas vezes eu me pego tropeçando em coisas idiotas, ontem tropecei em uma garrafa pet. Se eu enxergasse, nem me ia me ligar que aquela garrafa estava no chão, iria passar despercebido”, explica. Os buracos nas calçadas, tampas de bueiros abertas e hidrantes, por exemplo, também são obstáculos constantes na epopeia diária da estudante.

Para pegar ônibus, Kelly conta com a ajuda dos passantes. Nas paradas, precisa pedir para que a avisem quando o ônibus que quer pegar estiver chegando. Como vê um pouco, o suficiente para saber se algo está perto ou longe, geralmente atravessa a rua sozinha, também utilizando da au-dição para orientá-la. No trem, sempre há um funcionário em cada estação para acompanhar os deficientes visuais. Ela diz não ter medo de andar na rua, uma vez que a maioria das pessoas oferece auxílio. “Nenhum cego é totalmente independen-te, sempre precisamos de alguém para nos ajudar”, observa.

Quatro anos depois do acidente que a deixou cega, Kelly aprendeu a viver com uma percepção totalmente diferente das ruas e tudo o mais que a rodeia. “Eu preciso disso, não tem outra solução”, diz. É com o sorriso fácil no rosto que ela enfrentou e continua encarando os desafios que diariamente se apresentam.

A realidade, ainda nova na sua vida, não vai impedir Kelly de conquistar seus ob-jetivos. Determinada, ela deseja crescer profissionalmente e ter uma vida con-fortável. O plano não deve ser difícil de realizar para quem precisou reaprender tudo, inclusive a enxergar.

Nas suas jornadas diárias, o principal companheiro de Rodrigo e Kelly é o bom humor. Os dois cegos, como preferem ser intitulados, contam com um sorriso no rosto as histórias engraçadas que já viveram em razão da falta de visão. O olhar deles não pode se dar ao luxo de viciar. A cada dia, é preciso perceber novos aromas, novas sensações. Eles sempre terão uma nova relação com a rua através do invisível e da descoberta do que ainda poderá ser encontrado.

Versão em áudio da reportagem para que cegos possam ter acesso às histórias relatadas. O mesmo áudio pode ser acessado com o QR Code abaixo.

Passar uma tarde ao lado de cada um dos personagens desta história

foi, sem dúvida, uma experiência transformadora. Para nós, dotadas de visão, o ato de formular perguntas para conhecer a vida de Rodrigo e Kelly já representou um enorme desafio. Ao acompanharmos os dois andando nas ruas, chegamos um pouco mais perto de descrever como não é tão simples a caminhada que eles enfrentam. Kelly nos ajudou com a percepção de alguém que via nitidamente e que, de um dia para o outro, perdeu esse sentido. Rodrigo, pacientemente, nos explicou como é a rua que ele vê, sempre através da alma. Ao finalizarmos o texto, nos demos conta que somos todos cegos. Não da visão, nem de alma, mas por não conseguirmos compreender totalmente a realidade de quem é diferente de nós. “Para a gente saber como é para um cego andar na rua, só sendo um deles”, Kelly nos contou. Humildemente, esperamos que, com esta reportagem, tenhamos conseguido transmitir, ainda que de forma externa, a forma com a qual os cegos enxergam.”

n Para voltar a andar na rua sozinha, Kelly precisou fazer

um curso de orientação e

mobilidade para cegos

impressões derepórter

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16 n Primeira Impressão n Julho de 2014

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Sem hora para acabar

Em cada jogo de rua, seja ele de bocha, damas ou cartas, inúmeras

histórias de vida estão sendo contadas Por Diego da Costa. Fotos de Francine Malessa e Tina Borba

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Primeira Impressão n Julho de 2014 n 17

Jogos de bocha, damas, cartas e dominó ao ar livre fazem parte do dia a dia de Porto Alegre, e em cada lugar há inúmeras histórias a

serem contadas. Na Praça da Alfândega, no Parque da Redenção, no Gasômetro, na Rua da Praia. Em todos esses locais é comum encontrar pessoas que passam sete dias por semana na companhia de amigos praticando seu hobby favorito. Na sua maioria formada por idosos, as equipes muitas vezes organizam inclusive torneios entre associações e sociedades desportivas. A qualquer hora do dia, em meio às multidões apressadas e ao trânsito caótico da Capital, eles estão lá, fazendo

parte do cenário e promovendo a cultura da cidade.

De acordo com o aposentado Antonio Carlos Pintos, 69 anos, todos os dias jun-tam-se cerca de 30 pessoas para jogar damas na Praça da Alfândega, no Centro. Os jogos ocorrem das 9h às 20h30min, mas o tempo pode ser estendido conforme a disposição da turma. “Para mim os jogos são uma terapia. Aqui nós aliviamos as nossas tensões, fazemos nosso joguinho, ouvimos os pássaros e nos divertimos sem hora para acabar”, explica.

Conforme Paulo Brum, 63 anos, in-tegrante da Associação Gaúcha de Jogos de Mesa, aos domingos os praticantes

fazem pequenos torneios, mas sem apos-tar dinheiro. Para ele, o que vale mesmo é a diversão. “Procuramos diversificar. Praticamos jogos de cartas, como a canas-tra e a escova, e de dominó. No domingo nos reunimos e fazemos o torneio com os melhores”, afirma.

Ainda segundo Paulo, praticante há 15 anos dos jogos na Praça da Alfândega, o mais importante é a reunião com os amigos. “Tem pessoas que começaram junto comigo a jogar e nós mantemos contato sempre. Encontrar os amigos e bater um papo nos ajuda a passar o tempo”, reitera.

No Parque da Redenção, em meio às crianças comendo algodão doce e os mais

FRANCIN

E MALESSA

n Em meio à pressa das multidões na

Capital, centenas de idosos se reúnem

diariamente para se divertir e deixar a

solidão de lado

FRANCIN

E MALESSA

TINA BO

RBA

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18 n Primeira Impressão n Julho de 2014

variados tipos de cães desfilando lado a lado com os seus donos, fica localizada a Sociedade Esportiva Recreativa Recanto da Alegria (Soeral). Rodeada pelas ár-vores do Parque, a organização reúne mais de mil idosos por semana e conta com 300 sócios efetivos. Em 2013, foi a campeã do campeonato de bocha de Porto Alegre. No local também são realizados jogos de cartas, xadrez, damas e gamão. Os frequentadores são idosos, alguns aposentados e na sua maioria vêm para conversar, dar boas risadas e interagir.

Segundo Enio Jesus Menezes, apo-sentado, 67 anos, e frequentador da Soeral há 27 anos, a Associação é, acima de tudo, um espaço de lazer. “Não há tempo ruim que não me faça vir. Nunca envolvemos dinheiro aqui. Somos todos amigos e buscamos prestigiar os melhores. Há jogadores que são melhores que muitos profissionais”, garante.

O bochero Ênio ainda destaca que a perspectiva para a equipe sair vitoriosa em 2014 é a melhor possível. “O cam-peonato municipal deste ano começou no mês passado, já está na décima sexta rodada e não perdemos nenhuma. Este ano, se Deus quiser, vamos levantar o caneco novamente e levar o bicampeo-nato”, promete.

Para Léo Costa, 69 anos, campeão mu-nicipal dos jogos de bocha de Porto Alegre no ano passado, a Sociedade Desportiva é a sua segunda casa. “Venho aqui de tarde, tomo um cafezinho, vejo os amigos e me divirto. Fazemos tudo por amor ao esporte. Fomos campeões no campeonato passado e dá gosto de jogar com o pessoal. Só gente boa”, afirma.

Um dos praticantes mais antigos da Soeral, com toda certeza, é o pintor aposentado Anildo Caloni. Conhecido como “Pistola” pela turma, por sua agilidade e astúcia como jogador, ele, aos 86 anos tem um amor pelo jogo de bocha e conta histórias difíceis de serem encontradas em qualquer local. Um dos remanescentes da primeira equipe campeã nacional de jogos bocha em 1964, Anildo conta que já foi cam-peão estadual pelo menos 15 vezes pelas equipes que passou. “Joguei no famoso

Independente. Disputamos o campeo-nato com São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais e nos sagramos campeões. Depois disso, joguei em Caxias do Sul e em outras cidades da Serra. Só aqui na Soeral estou há 11 anos e pretendo ficar até o fim da minha vida, a turma aqui é muito boa”, conta.

Mas dentre todos os mais de 300 jogadores que se reúnem diariamente na Soeral, tem um que tem uma histó-ria de vida que se confunde com a da entidade. O amor que o presidente do Conselho Deliberativo, Darcy Zibetti, advogado aposentado, tem pelo local, fica demonstrado na sua dedicação e luta ao longo das décadas não só para manter a Soeral, mas também para melhora-la. Integrante da Associação desde a sua inauguração em 1976, ele conta com orgulho a trajetória dos bocheiros mais tradicionais de Porto Alegre e a luta para estruturar o conselho, mantendo todas as receitas e despesas em dia, com a contribuição daqueles que compartilham do mesmo amor que ele. “Comecei aqui quando tinha 39 anos, hoje estou com 77 e, cada vez mais, a nossa casa ganha mais parceiros e associados. Na minha época, isso aqui era um piso de chão, e eu jogava de pés descalços, de forma simples. Era o que tínhamos. Depois, com muita luta é que conseguimos erguer um telhado e proteger da chuva, senão a manutenção deste espaço não seria possível”, explica.

Resumindo numa fala, Darcy revela tudo que sente pelo lugar que ajudou a construir. “ A Soeral, além de ser uma te-rapia para todos nós, é um local onde faze-mos almoços, cafés e reunimos a moçada. Freqüentam aqui os melhores jogadores do Brasil. A Associação representa muito para todos nós, é a nossa vida”, encerra.

Entrevista em vídeo com o vice-presidente do Recanto da Alegria, Paulo Borges, sobre as atividades recreativas realizadas no local.

Jogo de Bocha

A bocha, conforme alguns historiadores, originou-se de um esporte praticado no Egito e na Grécia Antiga, onde eram usados objetos de formatos esféricos, como pedras redondas. Há registros da prática deste esporte no tempo do Império Romano, quando tinha o nome de “boccie”. Durante a expansão do im-pério, teria sido levado pelos exércitos de ocupação a todos os povos por eles dominados. Em 1500, o “boccie” já era praticado na França, Itália, Espanha, Portugal e Inglaterra. No decorrer dos séculos, sofreu várias transformações e hoje é visto como um esporte de consi-derável prestígio internacional.

A prática consiste em lançar bochas (bolas) e situá-las o mais perto possível de um bolim (bola pequena), previa-mente lançado. O adversário, por sua vez, tentará situar as suas bolas mais perto ainda do bolim, ou “remover” as bolas dos seus oponentes. As canchas devem ter dimensões de 26,50 metros de comprimento, 4 metros de largura lateral com altura uniforme de 30 centímetros. A maioria das pessoas que pratica o esporte é composta de idosos, mas o quadro vem mudando nos últimos anos com a adesão de jovens ao esporte. A prática foi trazida para a América Latina pelos imigrantes italianos, primeiro para a Argentina e mais tarde para outros países.

Os estados de São Paulo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, que recebe-ram grandes concentrações de imigrantes vindos da Itália, foram responsáveis pelo início do esporte no Brasil, que posterior-mente se espalhou por Paraná, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Minas Gerais. Antigamente era permitido arremessar a bocha com força e rolando, em vez de arremessá-la pelo ar. Atualmente, as regras determinam distâncias espe-cíficas para as áreas a serem atingidas pelos bochaços. O “bochaço” é dado quando, em sua vez de jogar, o atleta interpreta que não há outra maneira de ficar mais próximo ao bolim do que o seu adversário.

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impressões derepórter

É incrível como algumas histórias passam despercebidas

no dia a dia de uma cidade. Conhecer os jogos de rua, em especial os jogos praticados pelos idosos de Porto Alegre, nos colocam diante de um momento da vida que, com sorte, passaremos. Há casos de jogadores natos, que passaram a vida toda jogando, praticando e mantendo o seu ciclo de amizades. Há outros que encontram, após a sua aposentadoria, um espaço de recreação, lazer e confraternização. A maioria afirma que estes locais de jogos a céu aberto são, na verdade, a sua melhor terapia para lidar com os problemas da vida. Mas, em minha opinião, este seria apenas o motivo inicial para a pessoa se integrar. Os motivos fundamentais, com o tempo, passam a ser os laços afetivos com os demais jogadores. O sentimento de equipe dividido por todos, no caso da Soeral, vem junto com o sentimento de pertencimento, de algo profundo que é compartilhado diariamente por todos. Não é jogar bocha, cartas, damas, xadrez ou gamão. O que importa de verdade para esses ilustres senhores é o companheirismo, as risadas, os bate papos sobre as aventuras da vida e, principalmente, manter-se ativo. Não se entregar nem para a idade, nem para as dificuldades, é manter o espírito de cooperação e de vitória, mesmo que seja só para se divertir. A maior motivação deles é acordar de manhã e passar boas horas de alegria com os bons e velhos amigos.”

FRANCINE MALESSA

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PORT

O AL

EGRE

Hertha Spier, númeroRetirada da liberdade das ruas da Polônia, a jovem bailarina

judia sobreviveu a quatro campos de concentração

Por Letícia Rossa Fotos de Augusto Veber, Larissa Luvison e Josué Braun

A21646

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JOSUÉ BRAUN

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As mãos trêmulas e o suor da dor não eram mais sentidos. Os pas-sos arrastavam-se pela rua de chão sujo, impregnado de san-

gue. O lento caminhar que acompanhava a fila extensa era carregado de tristeza. Os movimentos seguiam o pulsar do coração que, nervoso, parecia querer gritar pela garganta. A fila diminuía e, com a chegada de sua vez, pouco a pouco, a agonia, as lembranças e o vazio deixado por suas perdas ficaram submersos ao medo de ouvir uma única palavra.

- Links! Rechts! Esquerda! Direita!Josef Mengele, conhecido como “o anjo

da morte”, era quem selecionava as mu-lheres aptas ao trabalho – que seguiam para a esquerda – e as que, sem serventia, rumavam para a direita. Hertha Gruber estava entre elas. A polonesa, que vinha acompanhada da irmã, Gisi, temia pela segunda opção. E, em um último suspiro de esperança, seus olhos fecharam como se, assim, o impacto da palavra não lhe atingisse em cheio.

- Links! Esquerda!O anjo da morte conferiu um atestado

de vida à Hertha. Ela continuaria ali. Por quanto tempo? Não sabia. O movimento de seu corpo, que se dirigiu à esquerda, foi o carimbo de sua estadia em Auschwitz, o terceiro campo de concentração em que passara durante a sangrenta e tortuosa Segunda Guerra Mundial. Com o sim de Josef Mengele, a menina recebeu em seu antebraço esquerdo o desenho de uma lembrança até hoje registrada: A21646. Ali, para os soldados alemães, Hertha Gruber não era a primeira bailarina da Escola de Danças Irma Keller, na sua cidade-natal de Bielitz, na Polônia, ou a jovem menina que via no colo do pai, Moritz, o lugar mais aconchegante do mundo. Em Auschwitz, em meio à ocupação nazista liderada por Adolf Hitler, Hertha era apenas mais uma judia cujos sonhos e direitos foram igno-rados. Era apenas a prisioneira A21646.

Casas que nãoeram a sua

Hertha é a mais jovem de cinco irmãos: Max, Eugenie, Henriette e Gisella. Os mi-mos que lhe eram tecidos a transformaram na mais querida da família, que encantava os olhos dos pais que a assistiam sobre o

palco do Bielitzer Stadt-Theater, leve feito pluma, conduzindo seus braços e pequenos pés de acordo com os acordes do ballet. “Foi um tempo muito bom, mas chegou a guerra e acabou com tudo”, atesta Hertha.

O timbre de voz doce de Hertha se con-funde com a aspereza das palavras que pro-nuncia. Emoldurados em um rosto sofrido estão os olhos recém-maquiados, frutos de uma ida ao salão de beleza, prática jamais abandonada por ela. Seguidamente, eles se perdem mirando o horizonte. É com este desejo de quem busca resgatar no mais profundo da memória as lembranças de um passado tão distante que ela reconta seus passos. “Tinha 21 anos quando saímos de nossa cidade, com medo da guerra, e fomos para Cracóvia. De lá tiraram meus pais. Os soldados alemães os colocaram em um caminhão de carga. Eram os ca-minhões da morte. Perder meus pais foi horrível”, lamenta.

Hertha não pôde se despedir dos pais. Tropas nazistas recolheram os conside-rados “velhos” para um fuzilamento em grupo no dia seguinte. Entre eles, estavam os pais da jovem bailarina, que perdera, ainda neste mesmo curto espaço de tempo, as irmãs Henriette e Eugenie.

Esta foi a primeira vez em que a liber-dade lhe foi negada. Hoje, com 95 anos e instalada em Porto Alegre, Hertha ainda recorda dos instantes em que observou, apoiada à janela, a marcha dos soldados alemães que percorriam a rua principal de Cracóvia, para onde havia fugido com seus pais dias antes de as tropas nazistas

desembarcarem na Polônia. Os soldados exclamavam, em forma de cântico, as se-guintes frases:

- Die juden ziehen daher, sie ziehen durchs Rote Meer, Die Wellen schlagen zu, die Welt hat ruh! Os judeus estão indo embora, atravessem o Mar Vermelho. As ondas se fecham e o mundo descansa!

Após a longa estadia no Gueto de Cracóvia, onde o frio trincava até os pen-samentos solitários da caçula, Hertha foi levada a Plasnow, campo onde rejeitou uma oportunidade que poderia lhe levar à liberdade. Seu então amor de juventude, Ari Reissman, convidou-a para ingressar em um grupo de trabalho de uma fábrica nos arredores do campo de concentração de Plasnow. Sua irmã Gisi, porém, não seria incluída na lista, que era restrita a poucas pessoas. Lista esta que, anos depois, ficou mundialmente conhecida como a Lista de Schindler – criada por Oskar Schindler, nazista alemão que ins-talara na Polônia uma fábrica de panelas com o consentimento das autoridades da Segunda Guerra.

O empresário elaborou, na época, uma relação de nomes de poloneses judeus que lhe serviriam como funcionários. A Tropa de Proteção (ou SS) era quem recebia os salários que, a princípio, deveriam ser des-tinados aos empregados. Como a fábrica tornara-se viável financeiramente para o Partido Nazista, em contrapartida, a SS falsificava documentos onde era regis-trado que os trabalhadores de Schindler eram essenciais para a Guerra. Assim, os nomes listados não seriam entregues aos campos de extermínio. “Não quis entrar para a lista porque eu não queria deixar minha irmã sozinha. Eu preferi ficar com ela no campo”, garante. Hertha relata a experiência vagarosamente, como se cada palavra lhe trouxesse uma lembrança do que não disse à Reissman.

Os tentáculos da guerra a fizeram che-gar, depois de sua passagem por Cracóvia e Plasnow, a um novo campo de concentra-ção. Ali, os cheiros de ferrugem e sangue seco eram conduzidos pelos ventos. Os olhos que não encontravam mais os de seus pais e irmãos avistaram, de imediato, uma grande e cinza fumaça que se perdia em meio ao céu polonês. No portão de acesso à sua nova casa, uma placa já dava indícios de onde Hertha estava: “Arbeit

LARISSA LUVISON

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macht frei – O trabalho liberta”. Sim, ela estava em Auschwitz.

Passaram a fazer parte de sua vida, dia e noite, o trotear dos soldados, o som dos coturnos batendo forte no chão, que mar-telavam como tiros na cabeça de Hertha, e o estridente barulho das carabinas dispa-rando tiros que paravam no peito de judeus – quem sabe, seus irmãos? Seus amigos? “Era horrível, o que posso dizer? Um dia eu olhei pela janelinha pequena que tinha lá e vi muito fogo. O céu era vermelho. Eles queimaram as pessoas. Tiravam de caminhões e jogavam um depois do outro no fogo. Eles morreram vivos. Foi horrível e eu vi isso de uma janelinha bem pequena. Foi uma sensação que nunca vou esquecer. Em Auschwitz, havia montes e montes de mortos empilhados. Eu conseguia dormir, mas sempre tive pesadelos”, relembra. Junto dela estava apenas sua irmã Gisi, que também sobreviveu à decisão de Josef Mengele. Ambas se reencontraram e per-maneceram juntas daí em diante.

No “campo da morte”, como era chamado Auschwitz, o cheiro de carne queimada era levado pelo vento, que

assoviava como um anúncio do que acontecia. Sobre os corpos de judeus movimentava-se a bandeira com a suás-tica nazista, sempre inserida em locais que estivessem sob o olhar de todos. Foi com a vista da bandeira que Hertha trabalhou nos campos de concentração pelos quais viveu – e sobreviveu. “Eu consertava os buracos nos uniformes nazistas. Eu era muito vaidosa e sabia fazer muita coisa bonita. Botava um pedacinho de tecido e costurava tão fino, tão bonito, que não se notava a costura. Parecia que já era assim”, orgulha-se.

Era deste modo, retrabalhando suas habilidades de costura, que Hertha pro-curava apagar o abismo bélico infiltrado dentro de si. Meio século após vivenciar na pele as dores da Segunda Guerra, Hertha recorda que nunca cogitou fugir dos campos porque, se tentasse, “ga-nhava bala”. “Eu tive muito medo de morrer. Sonhava com isso. Mas Deus foi grande comigo. Sobrevivi por sorte. Achei que iam me fuzilar, mas isso não aconteceu”, revela.

Os sonhos aconteciam durante suas poucas horas de sono. Não apenas os pesadelos. As doces idealizações que Hertha ainda mantinha sobre os teatros de Viena, os passos de dança, seus qua-dros de pintura, não aconteciam mais em sua cama confortável em Bielitz, na Polônia. Seu quarto deu lugar a uma grande prateleira, onde eram dispostas oito mulheres que, ali, descansavam todas as noites. Após as semanas pas-sadas em Auschwitz, um trem de carga conduziu a polonesa a Berger-Belsen, o último campo de concentração pelo qual passou. Foi ali que, em seus braços, faleceu sua irmã Gisi, vítima da febre do tifo. “Depois disso, eu também queria morrer. Era muito triste ver a rua de longe, porque eu sabia que não podia sair de lá nunca. Achei que nunca fosse sair”, reconhece. Mas saiu.

A última lembrança física de Hertha da Segunda Guerra Mundial está em Berger-Belsen, quando foi socorrida por uma colega após o falecimento de Gisi. “Uma pessoa que eu me lembro era a senhora Mont, que em alemão é Lua. Ela me deu

n Hoje Hertha vive em Porto Alegre. Seu apartamento é decorado com quadros e esculturas feitos por ela durante os seus 95 anos

JOSU

É BR

AUN

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pedacinhos de pão que havia guardado embaixo do travesseiro para não rou-barem. Isso me salvou a vida, porque depois a guerra terminou.” Duas semanas após a morte da irmã e de sua aproxima-ção com Mont, Hertha foi socorrida pela Cruz Vermelha das tropas inglesas, horas antes do término da Segunda Guerra. Inconsciente, ela foi levada a um hospital na Suécia, país onde permaneceu durante um ano antes de escolher o Brasil para recomeçar sua trajetória.

O renascer no BrasilApós 30 dias de viagem no navio

cargueiro que partiu de Götemburg, na Polônia, Hertha desembarcou no Brasil em outubro de 1946 – ainda com o sobrenome Gruber, herdado de seu pai. O porto do Rio de Janeiro, então capital brasileira, deu as boas-vindas a uma nova Hertha, que procurava uma razão para renascer.

Imersa em um novo universo, ela ade-riu com tranquilidade ao idioma portu-guês. E foi pelas ruas brasileiras que a

polonesa aprendeu a conviver com seus fantasmas do passado. Começou a tra-balhar com costura, ainda valendo-se da habilidade desenvolvida durante a Segunda Guerra. Em 1948, casou-se com o judeu alemão Siegfried Spier, com quem tem os filhos Mario e Lúcio. Ambos são médicos e cresceram ouvindo os relatos da mãe sobre uma Polônia e Alemanha distantes, mas que permearam e cons-truíram sua história.

Após o falecimento do marido, vítima de câncer, Hertha buscou forças dentro da dor que a aniquilava. Deu continuidade à empresa de Siegfried, tornando-se uma das primeiras representantes comerciais do Rio Grande do Sul. Mas ela não esta-va sozinha. Nunca mais estaria. “Meus filhos sempre foram muito queridos. São bons filhos. Meus netos também. São uns amores. Já tenho um neto na medicina. E outra neta que é linda”, relata.

Assim como a dança colaborou na cons-trução da personalidade de Hertha, hoje a arte se mantém em sua vida como uma maneira de conectá-la ao passado. Na sala

de seu apartamento, no bairro Moinhos de Vento, em Porto Alegre, as paredes estão cheias de quadros pintados por ela. Sua mais recente história em terras brasileiras divide-se entre as ruas da capital gaúcha e as de Gramado, na Serra, onde mantém residência. “Eu gosto muito de Gramado, me sinto bem na minha casa lá. É bom morar em Gramado. Mas eu gosto de Porto Alegre também. Sou muito feliz nos dois lugares”, admite.

Um cumprimento ao passado

Hertha não disfarça o sorriso ao fa-lar dos filhos. Não esconde, também, o orgulho de ter trilhado, em 2004, com Mario e Lúcio, o mesmo caminho que percorreu nos anos 40 – naquela vez, contra sua vontade. “Fizemos um tour pela Europa. Estivemos em Bielitz, no local onde dancei. Eles conheceram meu apartamento velho, onde nasci. A via-gem foi muito boa. Estivemos também em Auschwitz. Lá é muito triste, mas

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AUGUSTO VEBER

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impressões derepórter

São raras as pessoas que jamais leram ou ouviram ao menos um relato de

sobreviventes da Segunda Guerra Mundial. Eu não sou diferente. Acompanhei narrativas de pessoas que renasceram após suas passagens em países ocupados pela Alemanha nazista. Já soube, também, de histórias sobre as câmaras de gás, a marcha das tropas nazistas e as torturas enfrentadas nos campos de concentração.No primeiro sábado de maio de 2014, contudo, minha leitura foi diferente. Ela aconteceu frente a frente a uma personagem da sangrenta guerra de Hitler. Não busquei apenas ler a figura de dona Hertha Spier, a sobrevivente A21646 de Auschwitz, mas também ouvir, ver e sentir a presença desta polonesa de 95 anos que hoje faz de Porto Alegre sua casa. Eu ri com seu sorriso e me deixei levar com suas lágrimas. Aprendi com sua fibra e vibrei com sua emoção. Se isso não é jornalismo, o que mais poderia ser? Somos seres humanos que contam histórias. E, como feitos de carne e osso, nos envolvemos e nos entregamos ao relato que devemos transcrever. Eu sempre soube que existem pessoas extraordinárias no mundo. Receber o afeto de uma delas, dona Hertha Spier, fez com que eu me sentisse uma também. Minha alegria e gratidão por poder relatar aos leitores da PI as singularidades dessa personagem que, na década de 40, viu em Auschwitz o seu lar, é imensurável.”

é de verdade. Foi uma emoção muito grande. Foi bom... Foi bom. O teatro era tão bonito como os de Viena. Lá eu dancei”, recorda.

A leveza com que Hertha traçou sua trajetória de vida esteve também nesta nova ida a Auschwitz. Desta vez, porém, ao invés de ter um grito de socorro estancado em sua garganta, ela trouxe consigo um sorriso – de alívio, de alegria, de agra-decimento por uma dor que veio, ficou, mas foi embora. “Quando ela voltou lá conosco, sentou em uma das prateleiras onde dormia com mais sete mulheres e disse com a maior naturalidade: ‘Agora estou no meu quarto’”, conta Mario.

Após as incontáveis emoções a que Hertha foi submetida, mais uma surpre-sa a aguardava em Bielitz. Mas esta era positiva. “No dia que chegamos na cida-de, estava tendo um espetáculo no teatro onde nossa mãe dançava. O único lugar disponível era um camarote. Aceitamos os assentos, compramos as entradas e, após nos dirigirmos ao local, ela nos disse que aqueles mesmos lugares eram destinados a seus pais quando ela era barlarina e se apresentava lá. Foi muito, muito emocio-nante”, lembra Mario.

Nos primeiros instantes da guerra, Hertha recusou uma liberdade que hoje desfruta junto aos filhos. Os passos que ela ouve não são mais os dos soldados nazistas, mas os dos descendentes, que a cercam diariamente. As mãos que to-cam as suas não são mais as dos colegas de campo de concentração, mas as dos netos, que a mimam igual a quando era criança. A liberdade das ruas abdicada por Hertha foi recompensada. “Hoje sou realizada, afinal”.

n Os filhos Mario e Lúcio (com Hertha na página ao lado) contribuíram com a construção do livro Hertha Spier, a sobrevivente A21646, biografia escrita pelo autor Tailor Diniz

Vídeo que traz os depoimentos de Hertha Spier sobre a Segunda Guerra e um mapa ilustrando o trajeto percorrido por ela da Polônia até o Brasil.

JOSUÉ BRAUN

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EGRE Garimpando

a felicidade

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Garimpando a felicidade

Marcos enfrenta os desafios das ruas para sustentar sua família Por Amanda Nunes e Daiane Dalle Tese Fotos de Diego Appel

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Em meio a um pequeno pátio, com diversas garrafas pets no chão, Marcos, um homem magro, de barba branca, vive com seus dois

cães e sua esposa, Rosa. Com quase 60 anos, Marcos Antonio Machado Correa - morador do loteamento Chapéu do Sol, em Belém Novo, na zona Sul de Porto Alegre - sustenta a sua família através do seu trabalho de recolher materiais recicláveis em loteamentos, supermerca-dos, padarias, algumas casas e, por vezes, também em lixeiras.

Seu objetivo de vida nunca foi ser ca-tador, inclusive ainda procura por outras ocupações. Há doze anos, Marcos traba-lhava em uma padaria que faliu. A partir do desemprego, viu uma oportunidade de sustento nos materiais recicláveis. O catador diz que enriqueceu muitos patrões e hoje não vê problemas em trabalhar sozinho. Considera seu trabalho digno, pois, além de ajudar o meio ambiente, auxilia na limpeza das ruas.

Marcos trabalha mais de doze horas por dia. Sai de casa às 22h e, com uma rotina movimentada, retorna na manhã seguinte. Custa para encher o carrinho, mas só volta com ele cheio, indepen-dente do tempo que demore para que isso aconteça: “Se tu catar meia dúzia de coisas não vale a pena, tu não junta nem pra comida”. Depois que sai para a atividade, denomina-se um andarilho. Não tem rumo e nem rota preestabelecida durante a semana. Trabalhar durante a madrugada não é bem uma opção para Marcos. Alguns condomínios e estabele-cimentos não gostam de ver catadores.

Conhecido como tio, velho, seco, morcegão e até mesmo bacalhau, Marcos é organizado e tem todas suas vendas mensais anotadas em um ca-derno. Não tem um salário mensal fixo, seu rendimento semanal varia de R$ 350 a R$ 450. Todo seu sustento vem das ruas: “Se eu não buscar, ninguém me dá nada, então tenho que correr atrás”. Ele recolhe materiais desde a parada 42 em Viamão até praticamente toda a zona Sul da Capital, o que dá em média de 19 quilômetros. É categórico em falar que ele trabalha na rua e que, pátio para dentro, é sua esposa que comanda. Ele recolhe os materiais, e Rosa, sua mulher há mais de trinta

anos, separa tudo para que seja vendido posteriormente.

Marcos trabalha de segunda a domin-go. Junta os recicláveis durante a semana e um caminhão vai buscar os materiais toda sexta-feira. Comercializa o que en-contra nas ruas em vários ferros velhos, pesquisando os valores e vendendo para o que pague mais. O catador tem uma tática para que não lhe passem a perna “Eu tenho 64kg, então, sempre quando vou vender me peso na balança, se der 64 é porque está certa, assim eu sei que não estão me roubando”. Prefere vender apenas uma vez na semana para evitar assaltos. Um dia foi assaltado na saída de um ferro velho e os R$ 16,50 que ganhou foram levados.

Durante suas pernadas, Marcos busca se informar sobre os assuntos li-gados ao universo dos catadores. Sabe de estatísticas, direitos e deveres dos trabalhadores do ramo. Procura fazer

amizades para ter um bom relacionamen-to com quem o ajuda. Recolhe materiais em casas de pessoas conhecidas em Porto Alegre, como Dunga, Dona Miguelina (mãe de Ronaldinho Gaúcho) e Felipão. Conta que é tratado como se fosse de casa, ao contrário de alguns loteamentos, por exemplo, que não permitem nem a sua entrada.

Além do material reciclado, o ca-tador ganha o que considera presentes das pessoas. Já ganhou cestas básicas, TVs, móveis, aberturas para sua casa e louças para o banheiro. Faz ques-tão de afirmar que não aceita dinheiro como ajuda. Às vezes também lhe são oferecidos água e café nas residências. Infelizmente não são em todos os lares que é bem recebido. O catador conta que já obteve a seguinte resposta ao pedir um copo de água: “Eu pago a água para o DMAE, então não posso ficar doando para todos”.

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Os desafiosQuando começou a trabalhar, colo-

cava um saco nas costas e ia catar. Mas o trabalho não rendia, já que tinha que ir e voltar para casa muitas vezes para descarregar o que havia recolhido. Decidiu adaptar uma bicicleta. Com uma geladei-ra, a transformou em um carrinho, mas, devido ao peso transportado, ela entortou muito rápido. Com o dinheiro que havia guardado de outros tempos da própria reciclagem, conseguiu dar uma entrada em um carrinho manual. Pagou muitas parcelas até fechar o valor de R$ 1.800. Hoje, esse carrinho é o meio de sustento de sua família. O dinheiro conquistado, além de manter as despesas da casa, está ajudando em uma ampliação do local.

Afirma que nas ruas os carros e veí-culos maiores não respeitam os catadores, mas prefere não demonstrar medo, pois podem fazer pior. O tratamento que dão para os catadores no trânsito é igual em

todas as horas do dia. Há quatro anos, sofreu um grave acidente. Foi atropelado e jogado em cima de outros carros. Muitos acreditaram que ele nem iria sobreviver, mas no dia seguinte já estava trabalhan-do, com uma mão no carrinho e a outra segurando uma bengala.

O preconceito presente nas ruas não faz com que ele desista: “Já me chamaram de rato, mendigo, traficante, ladrão, mas entra num ouvido e sai pelo outro. Eu sei que eu não sou nada disso”. Marcos conta que deixou que sua mulher educasse seus dois filhos fazendo com que eles tivessem o aprendizado que ele não teve na sua infância. O casal é oriundo de outros locais de Porto Alegre. A partir de uma ação da prefeitura, há 14 anos, eles foram transferidos para o local que hoje moram.

O catador já adoeceu algumas vezes, mas afirma que não pode nem ao menos ficar parado para se recuperar: “Quando se vê as coisas faltando dentro de casa,

não há doença que me segure. Nada cai do céu, tua ajuda são teus braços”. Nunca deixou faltar comida em casa, porém ficava triste quando oferecia só arroz e feijão para a família.

Marcos não fica confortável quando sente o cheiro do lixo em suas mãos ao se alimentar, mas dá muito valor ao seu meio de sustento. Encontra em sua esposa, Rosa, seu porto seguro e sua companhia para todos os momentos. Apesar das dificuldades, segue sua vida enfrentando um dia após o outro.

impressões derepórter

Com a dimensão do tema “rua”, pensamos em diversos assuntos que poderiam

ser abordados, mas a história de Marcos nos chamou atenção. Ao encontrar um senhor de quase 60 anos, com uma simpatia contagiante, descobrimos que uma pessoa pode superar as dificuldades do cotidiano com um sorrido no rosto. Não há novidade na escolha do assunto. O objetivo da matéria é mostrar o dia a dia de um catador, justamente para desmistificar o preconceito que há em torno da categoria. Marcos se mostrou organizado em suas finanças e atento ao que acontece nas ruas. Foi interessante ver a relação de um casal que, com o passar dos anos, se uniu em torno do trabalho e criou laços de cumplicidade. Acompanhar as brincadeiras que um faz com o outro a fim de motivar e fazer com que ambos ultrapassem as barreiras que aparecem em seus caminhos foi bastante engrandecedor.”

Vídeo de Marcos recolhendo materiais recicláveis e contando sua história.

n Após 12 horas, Marcos encerra sua jornada. Segundo ele, são quase 20 quilômetros percorrendo as ruas da Capital

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O recomeço fora da prisão

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Primeira Impressão n Julho de 2014 n 31

O recomeço fora da prisão

Paulo César e Valmir mostram que é possível, sim, dar a volta por cima e buscar oportunidades

novamente na rua

Por Cássio Pereira e Matheus Kiesling Fotos de Caroline Paiva e Sabrina Stieler

“As grades não são a pri-são, e a liberdade não é a rua; existem homens presos na rua e livres na

prisão”. A frase de Mahatma Gandhi, um dos maiores líderes espirituais e ativis-tas dos direitos humanos do século XX, leva a refletir sobre o real significado da liberdade. Paulo César Romero da Silva e Valmir Agostinho Filho procuram virar algumas páginas obscuras que fizeram parte de suas histórias. Privados da rua, recuperam aos poucos o direito de ir e vir.

Para Paulo César, fatores como a ju-ventude e a vontade de conquistar seus objetivos de maneira rápida foram deci-sivos para que perdesse, ao menos que temporariamente, a sensação de liberda-de. Já Valmir viu os planos de seguir a profissão do pai se desfazerem ao perder a cabeça por ciúmes.

CAROLIN

E PAIVA

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Da Vila Cruzeiro ao dinheiro fácil

Hoje auxiliar de serviços gerais, Paulo César nasceu e cresceu na Vila Cruzeiro, um dos bairros mais carentes da capital rio-grandense. O pai trabalhava como motorista da Secretaria Municipal de Obras e Viação de Porto Alegre, e a mãe,

como boa parte das mulheres moradoras da região à época, era dona de casa.

Ao notar que alguns de seus amigos aparentavam estar melhor do que ele financeiramente, com roupas da moda e dinheiro nos bolsos, nasceu a curiosidade que mudaria os rumos da vida de Paulo para sempre. O caminho, sem volta para muitos, mostrou ao rapaz de então 18 anos um universo completamente novo, repleto de adrenalina, mas que lhe trouxe grandes consequências.

Ao saber que o dinheiro que seus amigos conseguiam era proveniente de assaltos a supermercados e lojas de câm-bio de zonas afastadas da que morava, Paulo César se juntou ao bando como motorista. “Como eu sabia dirigir desde cedo, um desses amigos me convidou para fazer uma boleia, ou seja, dirigir. Em questão de dois ou três minutos, a gente pegou um bom dinheiro”, recorda.

n Prestes a completar um sexto da pena, Valmir auxilia na manutenção do Albergue

Estadual de Montenegro

SABRINA STIELER

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Primeira Impressão n Julho de 2014 n 33

A adrenalina e o dinheiro fácil fizeram com que o interesse pelo crime crescesse rapidamente. Paulo César participou de mais três outros assaltos como motorista. Porém, a curiosidade o levou a praticar os assaltos juntamente com os demais. “Fiz quatro assaltos à mão armada entre 1989 a 1992”, lembra.

Em 1994, aos 21 anos, Paulo César viu os rumos da própria vida mudarem drasticamente. Ao voltar da casa de uma namorada que tinha à época, foi abordado por policiais da Brigada Militar, que esta-vam fazendo ronda pela região. “Tinha ido me arrumar. Aí, quando o policial me viu, disse para encostar na parede. Puxei a arma e dei um tiro nele”, relata. A bala, disparada em direção ao peito do policial, se alojou no colete à prova de balas. Ao tentar correr, Paulo César foi alvejado por um tiro, que entrou em suas costas e atravessou o ab-dômen. Foram oito meses entre a primeira

cirurgia, no Hospital de Pronto Socorro, e a recuperação total, no antigo hospital do Presídio Central de Porto Alegre.

O suficiente paramudar uma vida

Em 2006, quando estudava para o concurso da Polícia Civil, Valmir, hoje com 31 anos, cometeu o ato que o levou ao Albergue Estadual de Montenegro, no Vale do Caí, a 50 quilômetros de Porto Alegre. Tomado por ciúmes após uma discussão, feriu com golpes de faca a ex-esposa e o homem com quem ela se relacionava. O fato ocorreu no Centro de Montenegro e, em poucos minutos, Valmir entrava algemado na delegacia do município. Condenado por dupla tentativa de homicídio, recorreu em li-berdade por ser réu primário. Após oito anos de trâmite processual, foi levado

ao cárcere para cumprir quatro anos no regime semiaberto.

Em aproximadamente um ano de re-gime fechado no Presídio Central, Paulo César participou de três tentativas de fuga. “Fizemos os buracos com tampas de pa-nela. A gente fez um túnel que dava para sair no muro. Só que descobriram. Nunca dava certo. É difícil. Chegamos a ficar a uns três metros de passarmos o muro e irmos embora”, relata.

Do Presídio Central, Paulo César foi enviado à Penitenciária Estadual de Charqueadas (PEC) como medida de se-gurança e penitência por envolvimento nas tentativas de fuga. Passado um ano, em 1996, voltava ao Presídio Central. Em 1997, foi enviado novamente a Charqueadas, agora para a Penitenciária Estadual do Jacuí (PEJ), juntamente com outros apenados, inaugurando novas galerias no local. Em 2001, por bom comportamento, Paulo ob-teve alívio na pena, e foi enviado ao regime semiaberto pela primeira vez. “De lá eu fugi e fiquei um ano e seis meses foragido”, salienta. Capturado novamente, Paulo ficou mais nove anos no Presídio Central, até janeiro de 2012.

Valmir, por sua vez, é um dos 70 apena-dos do Albergue Estadual de Montenegro, no Vale do Caí. De acordo com ele, a vida na prisão não tem sido fácil. Ao ingressar no semiaberto, passou a usar drogas com frequência, vendo-se obrigado a pedir ajuda à direção do Albergue. Em uma das crises, fugiu e ficou oito dias foragido. “Voltei por insistência dos meus filhos. Pediram que eu pagasse logo a pena para poder esquecer isso de vez”, conta Valmir, pai de dois meninos, com 9 e 11 anos.

Antes de ir para o regime semiaber-to, ele passou três meses no fechado, na Penitenciária Modulada Jair Fiorin, localida-de de Pesqueiro, no interior de Montenegro. Lá, passou por maus bocados e se defendia

n Paulo César passou quase duas décadas no sistema prisional. Atualmente, como auxiliar de serviços gerais, segue uma vida tranquila junto da família

CAROLIN

E PAIVA

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34 n Primeira Impressão n Julho de 2014

como podia. “Eu não sou bandido. Agi com raiva no dia do crime, por impulso, mas não sou ladrão, nem traficante. Gente assim, ‘com ficha curta’, não é muito bem vista na cadeia. Quanto menor o delito, com mais desprezo você é tratado. E para piorar, sou filho de ‘polícia’. A coisa não foi fácil.”

Um recomeço, que depende de várias mãos

Há cerca de 10 anos, a assis-tente social Cíntia Izabel Gomes Vasconcelos trabalha em casas dirigi-das pela Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe). Atualmente ela trabalha no Albergue Estadual de Montenegro, no Vale do Caí. São cerca de 70 apenados que cumprem penas nos regimes semiaberto e aberto. Cabe à Cíntia a tarefa de acompanhar os primei-ros passos destes homens fora dos altos muros que cercam a casa, localizada a 50 quilômetros de Porto Alegre.

De acordo com a assistente, o ideal é que o processo que leva o apenado de volta à rua comece antes de o juiz determinar a progres-são de regime. “Em algumas casas prisionais, existem grupos de preparação para liberdade, coordenados por advogados, psicólogos e assistentes sociais. Eles reúnem presos que já cumpriram boa parte das penas e que devem progredir de regime dentro de pouco tempo”, explica. Com esse auxílio, tomam as primeiras medidas, como a busca por familiares. “É triste, mas é bem comum que a família vire as costas para quem foi preso, por vergonha e preconceito. Quando sai do sistema peni-tenciário, ele está sozinho, sem nada. Por isso tentamos reatar esses laços”, completa.

Quando se trata da massa carcerária feminina, o primeiro encaminhamento dos grupos de preparação para liberdade é o contato com os filhos que, em muitos casos, estão sob a tutela do Estado.

No regime semiaberto, no qual o de-tento precisa pernoitar na cadeia, Cíntia explica que os esforços são concentrados na busca por uma vaga de emprego. “Corremos muito atrás de empresas que possam ofe-recer espaço aos apenados”, salienta a assistente, que elege o ingresso no mundo do trabalho como quesito fundamental no caminho da ressocialização.

Alguns apenados chegam ao regi-me semiaberto sem nenhuma noção

da realidade. Casos de homens presos há 20 anos, que perderam o contato com a família e não têm informações precisas sobre a situação econômica ou política do país, nem sobre a re-alidade do mercado de trabalho. “O preso desembarca aqui com a vida de cabeça para baixo, sem noção do mundo exterior e das mudanças que acontece-ram nos últimos anos”, revela o diretor do Albergue Estadual de Montenegro, Paulo Adriano Teixeira Pires. Ele é um dos responsáveis por intermediar esse choque de realidade e tentar dar um rumo aos apenados.

Invariavelmente, o primeiro procedi-mento realizado após a chegada do detento ao Albergue é a confecção dos documentos, como RG e CPF. Depois começa a busca por familiares. “Laços familiares podem ajudar no processo de ressocialização”, explica Pires. Cumprida a meta de 1/6 da pena, é o momento de checar se o ape-nado se enquadra em alguma das vagas disponíveis. “São poucas as empresas que abrem esse espaço. É difícil, há rejeição da sociedade. Todos estão com medo da violência, receosos”, afirma o diretor.

Além da rejeição por parte de em-pregadores e sociedade, Pires esbarra em outro problema: a mentalidade dos presos. “Cresceram vendo pai e irmãos praticarem crimes, entraram nesse mundo e acabaram presos. Viveram 15 ou 20 anos em um sistema penitenciário precário e não conseguem entender a importância de trabalhar, ganhar o dinheiro hones-tamente”, ressalta. “Por isso acontece de termos cartas de emprego sobrando, mas apenados que não querem voltar para a rua como empregados. O crime é a vida deles”, completa.

Outra questão que impede o ingresso dos apenados do regime semiaberto no mercado de trabalho é a falta de qualifica-ção e estudo. Para o diretor do Albergue, o poder público não proporciona que o preso evolua neste sentido. “O Estado precisa oferecer espaços e cursos pro-fissionalizantes. Não apenas para que o preso deixe de ser bandido, mas para que compreenda a importância de ter uma profissão e colaborar com a sociedade de alguma forma. Sem estudo e quali-ficação, como serão ressocializados?”, questiona Pires.

Há ainda um último limitador, cuja culpa o diretor também atribui ao Estado, que é a ausência de fiscalização, devido ao número escasso de profissionais. “A nossa lei é complexa e, funcionalmente, muito relapsa. Nos Estados Unidos, por exemplo, o ex-presidiário é visitado sema-nalmente por um agente que avalia como está sendo o seu retorno à sociedade. Aqui, não temos nem profissionais para ir até as empresas e conferir se o apenado está mesmo trabalhando. Conto apenas com o relato do empregador”, lamenta.

n O Albergue Estadual de Montenegro conta hoje com 70 apenados

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Primeira Impressão n Julho de 2014 n 35

Uma nova vida por trás de oportunidades

Após conseguir nova progressão de pena para o regime semiaberto, Paulo César trabalhou por quatro meses em um local destinado aos detentos na PEC. De lá, por indicação de alguns conhecidos, foi levado para trabalhar na Susepe, onde está atualmente.

Segundo ele, são diversas as reações das pessoas que o conhecem e passam a saber que ele está cumprindo pena no regime semiaberto. “Geralmente, quem me conhece já sabe que eu estou no regime semiaberto. Quando eu falo para algum desconhecido, as pessoas se assustam”, destaca.

Hoje, Paulo César diz querer apro-veitar a vida da melhor maneira possível, recuperando o tempo que perdeu no sis-tema penitenciário, se aproximando dos

familiares e buscando conquistar tudo com o próprio esforço. “Meus irmãos me ajudaram bastante. Nos finais de semana procuro me reunir com eles, meus sobri-nhos, meus primos. Minha condicional termina no ano que vem. Eu quero é po-der andar de cabeça erguida. Quando eu estava na vida do crime, sempre andava de cabeça baixa, desconfiado”, planeja.

O preconceito não é novidade para Valmir. Enquanto recorria da sentença, sentiu o peso dos olhares desconfiados sobre alguém que cometeu um crime. Entretanto, não se assusta com o que está por vir. “Se eu fosse empresário, apostaria num ex-presidiário, porque é alguém que precisa recomeçar, retomar a vida”, afirma. Entretanto, sabe que esse não é o desejo de alguns colegas de cárcere. “Aqui dentro é uma escola, para o bem e para o mal. Aprende-se a vender droga, cometer assaltos. Mas também pode te ajudar a conseguir um emprego e voltar à vida normal. A decisão é de cada um.”

Ansioso, conta os dias para a che-gada do mês de agosto, quando com-pleta um sexto da pena e poderá buscar uma vaga de emprego. Assim, colocará em prática o que aprendeu nos cursos técnicos em Refrigeração e Elétrica, realizados antes de ser preso. Por en-quanto, ele auxilia na manutenção da casa prisional e é um dos responsáveis por preparar o almoço e a janta dos apenados e funcionários.

Sonhos que podem virar realidade

Ao deixar o sistema penitenciário, Paulo César deseja realizar um sonho que nutria junto com sua mãe, já falecida. “Quero conhecer a Bahia. Sempre dizia para minha finada mãe que iríamos juntar um dinheiro e ir para lá. Infelizmente, não tive tempo. Mas ainda vou realizar esse sonho”, finaliza.

Para Valmir, o passado é uma página que necessita ser virada. Por isso, pre-tende ficar longe de possíveis confusões e quer continuar estudando após deixar o sistema prisional, para, quem sabe, realizar um sonho que fez crescer e flo-rescer ao longo do tempo. “Um dia vou ser enfermeiro”, afirma.

impressões derepórter

Nesta edição da revista Primeira Impressão, que trata sobre diversos aspectos

do tema “rua”, resolvemos contar histórias de quem foi obrigado a ficar longe dela. Mais do que isso: ouvimos pessoas que estão se preparando para recuperar o direito de ir e vir. Ao ouvir a fala pausada e a voz mansa de Paulo César Romero, é difícil acreditar que ele tenha cometido assaltos e tentativa de homicídio. Preso há mais de 20 anos, sonha em recuperar o tempo que perdeu. Valmir, que cumpre pena em Montenegro, também faz planos. Motivado por ciúmes, feriu com facadas a ex-esposa e o homem que acompanhava. Com origens e histórias distintas, os dois têm algo em comum: saudade da liberdade. A ideia em momento algum foi transformar esses homens em santos ou inocentes. Em ambas as entrevistas nos colocamos à disposição para ouvi-los, sem julgamentos ou preconceitos. Os dois reconhecem os erros cometidos no passado, estão pagando suas dívidas com a Justiça e parecem determinados a tomar novos rumos. Também tivemos a oportunidade de ouvir uma assistente social e o diretor de um presídio que recebe apenados dos regimes semiaberto e aberto. Com tom de desabafo, não escondem os defeitos do sistema penitenciário brasileiro e lamentam o fato de uma pequena minoria alcançar a ressocialização.”

Mais fotos de Paulo César e Valmir.

SABRINA STIELER

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n Templo em frente ao Brique da Redenção é

ponto de encontro dos devotos de Krishna

FABRÍCIO RO

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Primeira Impressão n Julho de 2014 n 37

O templo sem paredes

Pregações religiosas recuperam a rua como espaço de busca dos fiéis

Por Aline Casiraghi e Méurin FassiniFotos de Ubirajara Costa, Fabrício Romio e Pedro Kobielski

A ação de pregar a palavra de Deus, de acordo com as escritu-ras cristãs, vem desde o tempo de Jesus. No limiar do século

XXI, este ato se mantém nas mais diver-sificadas formas pelas quais a religiosi-dade tem se delineado. Talvez mais do que nunca, os líderes religiosos estejam encorajando fiéis à missão evangeliza-dora, ou, como também se pode dizer, à pregação nas ruas.

O Centro da capital gaúcha, por exemplo, é um local de convergência de crenças e manifestações de religiosida-de, onde se pode observar a presença constante de representantes de correntes religiosas em esquinas, praças, e vias movimentadas. Muitos param para ouvi--los, outros, os olham com estranheza. Há ainda os que nem sequer os percebem.

A rua e o encontrocom o outro

“Sempre haverá pobres na terra. Portanto, eu ordeno a você que abra o co-ração para o seu irmão israelita, tanto para o pobre como para o necessitado de sua terra” - Deuteronômio capítulo 15, versí-culo 11. Com base nessa passagem bíblica, o vice-presidente pastor auxiliar Jaime Alencar da Silveira Tolfo, de 53 anos, da Igreja do Evangelho Quadrangular do bairro Nova Ipanema, na zona Sul de Porto Alegre, com os demais integrantes da igreja, tenta ajudar o próximo. Jaime conta, que há mais ou menos oito anos,

de maio até setembro, no período de inverno, vai para as ruas de Porto Alegre distribuir alimentos, café e agasalhos para as pessoas que moram em situação precá-ria, principalmente debaixo de viadutos. Jaime enfatiza que a intenção é ajudar a minimizar as dificuldades físicas pelas quais esses moradores de rua passam no frio e, sobretudo, ajudá-las espiri-tualmente, através de um trabalho de evangelização. “Nós mesmos preparamos os alimentos e as bebidas que levamos para eles, tiramos do nosso próprio bolso para ajudá-los. Muitas vezes vamos com o veículo cheio de mantimentos, com umas sete a oito garrafas de café, além das pessoas que vão ajudar a distribuir. Procuramos mostrar a eles que há con-dições de aceitar que existe um Deus que pode tirá-los da situação em que estão vivendo”, relata. A ação é realizada aos sábados à noite, no percurso que vai do Hospital Santa Casa até a Rodoviária e o entorno do Mercado Público.

“Temos uma equipe de cerca de 10 pessoas. Muitas vezes os alimentos não dão conta da demanda”, diz, relatando com tristeza histórias de pessoas que tinham uma vida estável e que, por depen-dência química ou mesmo por desilusões, desmotivaram-se e passaram a morar nas ruas. “Como diz na Bíblia: Nunca é em vão semear a palavra. Para nós é muito gra-tificante poder ajudar de alguma forma, como Jesus sempre auxiliou, pregando e distribuindo alimentos para os mais necessitados. Eles sempre nos agradecem

pela ajuda que estamos prestando para eles. Gostaríamos que eles pudessem sair dessa situação, mas muitos não saem”, conta Jaime com sentimentos opostos de felicidade e tristeza.

Religiosidade no Mercado Público

Sexta-feira. 17h. Chove em Porto Alegre. Como sempre, a movimentação dentro do Mercado Público é intensa, entre co-merciantes, consumidores e visitantes. O cheiro da chuva se mistura ao aroma das especiarias expostas nas bancas, os diálogos e passos apressados se somam ao ruído incessante dos automóveis e do trem, que para logo em frente. Na entrada lateral, acontece um ato de oração e difusão do evangelho, por padres e seminaristas. Fiéis fazem fila para receber bênçãos, en-quanto ouvem atentamente as palavras dos pregadores. Arturo Aquino Márques é um jovem natural do México, que veio ao Brasil preparar-se para o sacerdócio. Atualmente ele integra a Congregação Servos da Caridade de Porto Alegre. “As pessoas estão precisando de Deus”, explica, enfatizando que é um pedido do Papa que os sacerdotes levem o evangelho às ruas e a todos os ambientes. “O Papa pede que levemos a palavra de Deus a todos os lu-gares. A Igreja tem, acima de tudo, o papel de evangelizador e missionário, cabe a nós partilhar do amor de Deus e de sua palavra com nossos semelhantes para que juntos possamos melhorar o mundo”, completa.

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38 n Primeira Impressão n Julho de 2014

O Mercado Público, ou Mercadão, como também é chamado, é um espaço onde se manifestam livremente todos os tipos de crenças. Ele é bastante conhecido por ser uma referência para religiões de matriz africana.

Sábado. 10h. Na área central do Mercado Público, religiosos vestidos com roupas coloridas e cintilantes fa-zem reverências e jogam moedas ao Bará (conhecido como símbolo das tradições espirituais das religiões afro-brasileiras, que acreditam ser ali a morada de uma divindade que guia e protege os fieis que o cultuam). As moedas soam estridentes ao cair no chão e são rapidamente recolhidas por um senhor que, atento, aguarda por mais oferendas.

Marcelo de Paoli, proprietário de uma loja de floras, explica que os rituais acon-tecem durante todo o ano por diversos segmentos das religiões afro-brasileiras. Ele esclarece que as floras são procura-das para, além da compra de artigos e acessórios religiosos, aconselhamentos espirituais e busca de conhecimento sobre as religiões. “Nós não fazemos pregação dos ensinamentos em público, mas as pessoas nos procuram e nos sentimos felizes em poder auxiliá-las. O mundo está precisando de fé”, diz Paoli.

Movimento Hare Krishna em Porto Alegre

Domingo, 18h. Devotos do movimen-to Hare Krishna dão início a um festival no Centro Cultural de eventos Hare Krishna, que fica no andar superior do restaurante Govinda, em frente ao Brique da Redenção em Porto Alegre. O presidente do Centro e proprietário do Restaurante, Lila Das conduz o evento, que é aberto, com a en-toação do mantra Hare Krishna, e depois continua seguindo os ensinamentos base-

ados no livro sagrado Bhagavad Gita. O grupo é formado por indivíduos de todas as idades, desde bebês até a terceira ida-de. “Man, significa mente e tra, libertar. A mente pode ser liberta pelo mantra e alcançar a liberdade transcendental. Com a prática do mantra e sentindo a energia que emana do canto, vamos crescendo em espiritualidade. Sat significa eterni-dade, chit é consciência plena e ananda quer dizer bem-aventurança”, esclarece, enquanto faz uma pausa, mas não solta as teclas do instrumento (um harmonium indiano), que faz todos acompanhá-lo com o embalo de seus corpos visivelmente re-laxados. “Krisnha está dentro do coração de todos, ele propicia a bem-aventurança a todos os que com pureza se relacionam com ele, e essa bem-aventurança é multi-plicada ao infinito”, ensina. “Este estado de consciência plena nos faz ir além do mundo fenomênico e passamos a voltar nosso olhar à Krishna,” prossegue.

O Festival de Domingo, segundo Lila, acontece em todas as partes do mundo, e é um momento de meditação, de cantar mantras, e de fazer oferendas no altar. Ao final do evento um coquetel vegetaria-no sempre é oferecido aos participantes. Além das atividades promovidas dentro do Templo, os devotos também levam às ruas informações sobre a cultura espiritu-alista do movimento, com a distribuição de livros de meditação, filosofia védica, vegetarianismo, mantras e outros estudos. Diversas atividades também acontecem no Brique da Redenção, principalmente aos finais de semana e qualquer pessoa pode participar.

Dois mil anos depois de Cristo, as religiões tentam, cada vez mais, dis-seminar nas ruas suas concepções a respeito de Deus e transformam a rua em Templo. Apesar das suntuosas edi-ficações de igrejas e templos, com ricos ornamentos repletos de significados, a rua continua sendo um espaço de evan-gelização e espiritualidade. Com a ideia de se aproximar dos fiéis, os represen-tantes religiosos estão se voltando para o lugar onde Jesus começou a ensinar as palavras de Deus, demonstrando que as pessoas necessitam um contato mais humano, que a rua também é capaz de proporcionar.

impressões derepórter

A pauta surgiu com o objetivo de mostrar algo diferente nas ruas. Partindo da ideia de

que Jesus pregava nas ruas, buscamos pessoas de religiões distintas que pudessem contar as suas histórias, de como elas procuram ajudar os outros de alguma forma. Fazer essa reportagem foi muito prazeroso, pois a partir dela pudemos ter contato com religiões, cada um com sua forma de pregar e com o mesmo objetivo final, que é o bem ao próximo. Os entrevistados se mostraram dispostos a falar conosco, era perceptível uma alegria em seus rostos, era como se eles se sentissem pessoas importantes. O mais legal de tudo isso foi que, quando terminamos as entrevistas, todos fizeram questão de nos pedir um exemplar da revista para poder mostrar para os seus conhecidos. O jornalismo nos proporciona esses tipos de situações, ou seja, ouvir histórias e poder divulgá-las é algo único e muito gratificante.”

Vídeo produzido no Festival Hare Krishna e galeria de fotos.

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n Floras do Mercado Público oferecem itens para variadas religiões (no alto). Sacerdote abençoa fiéis no Mercado Público (à esquerda). Pastor da Igreja Quadrangular leva o evangelho a moradores de rua

PEDRO KOBIELSKIFOTOS UBIRAJARA COSTA

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Se, por um lado, na medida em que envelhecem, as ruas de Porto Alegre adquirem mais sujeira, pichações e bu-racos; por outro, ganham informação e

interatividade. Foi exatamente pensando nisso que um grupo de alunos do Colégio Farroupilha presenteou a cidade no seu último aniversário, celebrado dia 26 de março, com um projeto que deu vida novas às ruas da Capital.

Com o objetivo de informar o caminho até os principais pontos da cidade a pé, estudantes que cursaram o terceiro ano em 2013 colocaram em prática a ação Passo a Passo. Eles colaram 200 placas informativas em postes de bairros próxi-mos ao colégio, as quais indicavam a distância em minutos até determinado local, a direção e um QR Code com o trajeto completo.

O critério utilizado para escolher os locais a serem sinalizados era ser bastante frequentado e estratégico aos pedestres. Apenas shoppings e outros estabelecimentos fechados ficaram de fora da lista, pois a ideia era justamente incentivar a ida a lugares abertos, motivando a vivência do dia a dia nas ruas da Capital.

No Parque Moinhos de Vento, conhecido popularmente como Parcão, por exemplo, infor-ma-se a distância até o Hospital de Clínicas, o Instituto Porto Alegre, o Parque da Redenção, o Hospital de Pronto Socorro e o Hospital Moinhos de Vento. Já na Praça da Alfândega, a placa in-dica o caminho até a rodoviária, o Gasômetro, a Santa Casa e o Parque Harmonia.

O projeto Passo a Passo faz parte do Movimento #daescolapravida, do Colégio Farroupilha, que estimula a discussão dos alunos sobre os pro-blemas da cidade. O movimento tem o intuito de transformar estudantes em líderes sociais preocupados em construir um mundo melhor

e de resgatar valores esquecidos na sociedade, como o respeito ao patrimônio público.

Desde 2012, o Movimento #daescolapravida conta com a parceria do coletivo urbano Shoot the Shit. Um dos fundadores do grupo, Luciano Braga, faz uma palestra a todos os alunos, na qual contextualiza o tema do projeto e convida os interessados a participar do próximo passo: um workshop. Após, os estudantes decidem se querem se envolver com uma ação e, imediata-mente, começam a desenrolá-la.

Em 2014, oito alunos se engajaram no Passo a Passo, embora somente cinco tenham parti-cipado da colocação das placas. O projeto uti-lizou a ferramenta norte-americana Walk Your City para confeccionar o material. Conforme explica Luciano, a plataforma online é volta-da para auxiliar na criação de ações off-line. “Acessamos o site, customizamos nossas pró-prias placas e recebemos um PDF para apenas fabricá-las aqui. Agora fazemos parte de um padrão internacional”, esclarece.

Em relação ao tema trabalhado em 2014 no projeto, Luciano considera importantíssimo, pois acredita que nas ruas as pessoas não estão acostumadas a serem surpreendidas com diversão e criatividade. “Achei o máximo desenvolver esta ação com os estudantes, porque tenho certeza que ela gera impacto. As pessoas seguem a sua rotina meio que no automático, e quando a gente consegue quebrar esse modo ‘zumbi’, colocamos uma pequena alegria no dia delas. Logo, pessoas alegres e inspiradas passam a mensagem adiante, costumam fazer com que nossas ações sejam vistas por mais gente”, salienta.

Já os alunos mostraram interesse na proposta porque consideram que caminhadas são uma forma sustentável de deslocamento e também

O passo a passo da interatividade

Projeto do Colégio Farroupilha com a Shoot the Shit traz criatividade e informação às ruas da Capital

Por Bethina Baumgratz e Gabriela Boesel. Fotos de Guilherme Maciel

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uma oportunidade de seguir um estilo de vida mais saudável. Acreditam, ain-da, que seja uma chance de encontrar pessoas, sentir brisa e cheiros e, enfim, viver a cidade. Além disso, a iniciativa pode ajudar os turistas que virão para a Copa do Mundo a desbravarem melhor as ruas de Porto Alegre.

“Percebemos que as pessoas vão de carro para tudo, até para pequenos traje-tos, como padaria, academia ou mercado. Pensamos que elas têm que descobrir o quanto é bom ir a pé e acreditamos que a sinalização que colocamos poderá in-fluenciar isso”, afirma uma das estudantes envolvidas, Vitória Pigatto.

Para ser um participante do projeto, não bastava apenas participar da palestra, do workshop e do desenvolvimento junto ao colégio e ao Shoot the Shit. Os alunos tiveram que suar a camiseta na arrecada-ção de fundos para confeccionar as placas. A ideia era juntar R$ 2 mil por meio da plataforma Catarse (site de financiamento colaborativo), mas a divulgação rendeu tanto que, por fim, juntou-se quase o dobro: R$ 3.860.“Não bastava termos uma boa ideia. Tínhamos que divulgar bem e contar com a ajuda das pessoas. Felizmente, conseguimos. Isso é muito gratificante”, lembra a ex-aluna Maria Laura Conter Villanova.

Um mês e meio após a colocação das placas, a Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC) informou os responsá-veis pelo projeto sobre a possível retirada das mesmas, pelo fato de a ação não res-peitar as normas do Código de Trânsito Brasileiro. Conforme adianta o assessor de comunicação Lucas Barroso, será re-alizada uma reunião entre a entidade, o

Shoot the Shit e o Colégio Farroupilha para falar sobre o assunto. “Vamos bus-car alternativas para a implantação do projeto. Quem sabe fazer uma parceria com o grupo e convidar outras escolas também”, salienta.

O que é o Shoot the ShitO termo em inglês que dá nome ao

coletivo significa trocar ideias, jogar conversa fora. Segundo um dos funda-dores, Luciano Braga, a expressão foi descoberta enquanto os fundadores assistiam ao programa FearLess Q&A, apresentado por Alex Bogusky. Há um trecho na música de abertura que diz “Let’sShoot The Shit.“Aquilo nos cha-mou muito a atenção”, lembra.

Com a cidade como plataforma, o grupo tem por objetivo inspirar, alertar para problemas e estimular o senso de cidadania e de cuidado para com o pa-trimônio público. Para isso, são criadas intervenções urbanas um tanto quanto

n Luciano (à direita), do Shoot the Shit, estimula os alunos do Colégio Farroupilha a pensarem em ações que beneficiem os moradores de Porto Alegre

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Primeira Impressão n Julho de 2014 n 43

inusitadas, cheias de criatividade, que tem Porto Alegre como alvo principal.

O coletivo nasceu da insatisfação profissional de Luciano e outros dois publicitários, Gabriel Gomes e Giovani Groff. Eles trabalhavam em uma agência, mas estavam frustrados e insatisfeitos devido aos projetos que mais gostavam não serem executados. Dessa forma, re-solveram criar juntos um espaço onde pudessem colocá-los em prática sem depender de cliente, prazo, verba, entre outros empecilhos.

Atualmente, o escritório de Porto Alegre é comandado por Luciano. Gabriel se mudou para o Rio de Janeiro, onde montou uma filial, e Giovani não faz mais parte do projeto. Como explicam os sócios, a Shoot the Shit não é uma empresa, portanto não visa obter lucros: “A verba para executar as ideias vêm do nosso próprio bolso ou de financiamentos colaborativos”, diz Luciano.

Por este motivo, o coletivo não costuma trabalhar com marcas – embora muitas já tenham feito propostas. “Percebemos que várias empresas só querem se promover em cima da intervenção, e não necessa-riamente fazer algo de relevante à cidade. Só abrimos exceção para o Farroupilha, porque trabalha diretamente com os jo-vens. Considero importante plantar a sementinha neles”, explica Luciano.

Além do Passo a Passo, o coletivo já criou diversos outros projetos de inter-venção urbana. Que Ônibus Passa Aqui é um dos preferidos dos publicitários. A ação consiste na colagem de adesivos em paradas de ônibus, nos quais as pessoas podem escrever as linhas que circulam nestes pontos.

O fundador destaca também as ações #poaprecisa e Porto Alegre, Paraíso do Golfe. A primeira se resume em um espaço em tapumes de obras onde a população é convidada a escrever o que poderia melhorar na cidade. E a segunda faz um deboche com o asfalto esburacado da cidade, transformando-o em um grande campo de golfe.

impressões derepórter

Uma vez definido o tema desta edição da PI, diversas ideias vieram à nossa mente.

Decidimos falar sobre as atividades do coletivo urbano Shoot the Shit porque suas iniciativas são bastante focadas nas ruas de Porto Alegre e porque as consideramos importantes à sociedade.Tivemos sorte de o coletivo estar, na época, planejando colocar em prática uma ação: a Passo a Passo, em parceria com o Colégio Farroupilha. Para não falarmos pouco sobre muitos projetos, resolvemos focar somente neste e dar uma pincelada em outros anteriores. Então, dia 26 de março, nós e o fotógrafo Guilherme Maciel acompanhamos os envolvidos na saída a campo que tinha por objetivo colar as placas. Não tivemos dificuldade alguma para combinar toda a logística e, ainda, conseguimos adquirir todas as informações necessárias de uma só vez. Percebemos que a turma do Farroupilha estava bastante engajada com a iniciativa, e o fundador da Shoot the Shit, Luciano Braga, por sua vez, entusiasmado com isso. Ficamos satisfeitas em divulgar um trabalho sério com um propósito admirável.”

Mapa indicando os pontos em Porto Alegre com placas informativas.

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A via das bicicletasNa pressa das grandes cidades ou na

tranquilidade interiorana, as ciclovias agilizam o deslocamento, dão segurança a quem pedala e convidam a todos a deixar o carro na garagem

Por Cássia Oliveira. Fotos de Emerson Ribeiro e Manoeli Rodrigues

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Tratadas como estratégia para de-safogar o trânsito ou alternativa de entretenimento. Separadas dos carros por canteiros e à sobra de

árvores ou representadas por uma faixa pintada no chão. Ciclovia ou ciclofaixa. A via exclusiva para tráfego de bicicletas recebe tratamento diferente nas cidades – algumas sequer as têm – e, aparentemente, não existe mesmo um modelo que sirva a todas. Se em Porto Alegre os pedestres que tomam as faixas exclusivas para bicicleta são motivo de reclamação constante, em Campo Bom, localizada a 57 km da Capital, o espaço é dividido tranquilamente entre quem usa a bike e quem faz uma caminhada. Lá, perder alguns minutos desacelerando para poder ultrapassar uma criança que brinca no local impróprio também não parece incomodar. A

diferença talvez não esteja na cidade nem na ciclovia, mas no uso que os cidadãos fazem dessa alternativa de locomoção.

“A bicicleta te leva aonde você quer”

A frase é de Leonel da Luz Servo, mo-rador de Campo Bom. Todos os dias ele pedala a Magrela, apelido carinhoso pelo qual chama a bicicleta que o acompanha há cerca de oito anos até o trabalho, uma fábrica de calçados. O percurso dura 20 minutos e cruza parte dos 21km de ciclovias que cortam a cidade. Muito para o território de cerca de 60 km². Para Servo, a bicicleta é a rotina. O carro, comprado quando a filha resolveu fazer carteira de motorista, fica na garagem, reservado para distâncias mais longas. “A

bicicleta te dá mobilidade. Quero fazer uma compra no mercado, pego e vou. Não preciso esperar ninguém. Ou pedir para irem me buscar. Coloco as sacolas no cestinho dela e pronto”, diz Servo. O acessório é parte importante da bike. Ele conta que ganhou outro modelo em um sorteio da empresa há alguns anos, mas preferiu não se desfazer da Magrela. “Essa tem o cestinho. É melhor, dá pra guardar tudo. Saio do trabalho, coloco o guarda-pó no cesto e vou pra casa”, explica.

Campo Bom é o município pioneiro em ciclovias na América Latina. A primeira foi construída em 1977. A população, hoje cerca de 60 mil habitantes, está muito habituada a usar a bicicleta como meio de transporte. Hoje, no entanto, a cidade também tem problemas com o tráfego intenso de carros. A prática de ir ao trabalho de bicicleta já não é

EMERSO

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tão banal como no passado quando, segundo Leonel, era possível sair e encontrar 3.000 pessoas andando de bicicleta. Hoje usam carros. “Mesmo com a ‘bike’, está saturado o trânsito de Campo Bom”, diz.

Se as bicicletas já não levam tantas pes-soas ao trabalho, as ciclovias são intensamen-te utilizadas para passeios – a pé ou em duas rodas – e a segurança que elas transmitem parece ser o fator decisivo. “É noite e tem gente correndo. Pela manhã cedo já estão de bike ou caminhando. Você encontra amigos”, diz. Morador de Campo Bom há 34 anos, Servo pensa em ir morar em Porto Alegre e assim atender a um pedido da filha. Quando ele vai pedalar na Capital, a experiência co-labora para adiar a mudança. Poderia levar a Magrela na viagem, mas acha mais fácil usar o serviço de aluguel de bicicletas que a Capital atualmente oferece. “Morar em Porto Alegre não quero. Eu vou em finais de semana. Fui no Parque Farroupilha e lá achei bom pedalar. Tranquilo. Nas ruas é complicado, mais perigoso. Não é como aqui, que você está mais protegido. Daqui uns 10 anos, quem sabe, eu vou morar lá”, cogitou.

Entregas sobre duas rodas

Cruzar Porto Alegre sobre uma bicicleta não é mesmo tarefa fácil. No trânsito intenso, carros, motos, bicicletas e pedestres dispu-tam espaço por ruas, calçadas e ciclovias. Quem usa a bike vive a curiosa realidade de ser tratado como portador de um veículo, ter regras de trânsito a cumprir, equipamento de proteção obrigatório, mas ao circular em uma avenida ouvir de um motorista: ‘vai pra calçada’! Qual a atitude a tomar numa hora dessas? Segundo o ciclista Glênio Guimarães, é acenar e quebrar o clima de animosidade que parece tomar o trânsito nos dias atuais.

Morador do bairro Bom Fim, em Porto Alegre, e hoje empreendedor independente, Guimarães usava a bicicleta para chegar ao trabalho, uma agência de publicidade, diariamente. Começou então a dividir seu tempo entre o trabalho fixo e a produção de pães artesanais. O que era apenas uma terapia foi ganhando espaço e demandando tempo e dedicação. Ele largou a publicidade e decidiu dedicar-se apenas aos pães. De bicicleta, entrega a produção da ‘Tudo de Pão’ num raio de 3 km. Apesar da reivin-dicação da clientela, não há previsão para ampliar os bairros atendidos. Isso porque é ele quem recebe os pedidos, põe a mão na massa e entrega a produção. De bicicleta, faça chuva ou sol. E isso não vai mudar mesmo se surgirem planos de crescimento da em-presa, que hoje funciona no apartamento de Guimarães. “Se for para crescer será, talvez, com investimento em maquinário, sair de casa. Não mudar a estrutura de entregas. É

fundamental manter a bicicleta. Tem toda uma proximidade com o cliente. Eu faço o pão e vou entregar. Conheço as pessoas. A gente conversa”, diz. O empresário utiliza ainda a produção para aproximar os clientes do universo dos ciclistas. Através da página da empresa no Facebook, ele chama a aten-ção para a forma como entrega a mercadoria. Com postagens como ‘Teu pão chega aí de bicicleta!’ ele pretende mostrar o conceito da empresa. “Não é uma bicicleta, é uma pessoa que está sobre ela. É um filho, um pai. E quem está no carro precisa ver isso. Nem todos que compram o pão são ciclistas. Então é uma forma de conversar com outro público e humanizar o assunto”, destaca Guimarães.

Uma cidade para pessoasA capital dos gaúchos tem 496 km²

de território e cerca de 20 km de ciclovias ou ciclofaixas sinalizadas. É quase nada e, ao observar a localização, é fácil perce-ber uma das principais reclamações dos ciclistas: tratam-se de muitos pequenos trechos que não se interligam. Não for-mam uma malha e, por isso, não levam a lugar algum. “Quem usa as ciclovias vê os problemas que elas têm. E a gente não entende como os profissionais que idea-lizaram elas na cidade as fizeram dessa forma. São trechos estreitos, obstáculos, curvas acentuadas. As ciclofaixas não impraticáveis no inverno. Eu uso a rua. Porque é uma tinta vermelha que escor-rega quando molha. É impossível usar!

n Glauco e Leonel utilizam a bicicleta como principal meio de transporte

FOTOS MANOELI RODRIGUES

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Não tem segurança e já houve acidentes”, reclama Guimarães.

O Plano Diretor Cicloviário promte melhorar a situação. Segundo a Empresa Pública de Transporte e Circulação de Porto Alegre (EPTC), até o final de 2014 a Capital alcançará 50 km de ciclovias ou ciclofaixas. Os novos trechos previstos in-cluem avenida Tronco, avenida Loureiro da Silva, Ipiranga, Edvaldo Pereira Paiva, Padre Cacique, rua Voluntários da Pátria, a Avenida dos Estados, Severo Dullius, Dona Alzira e Sertório. Quanto a tinta utilizada para demarcar a ciclofaixa, a EPTC informou tratar-se de material utilizado em diversas cidades do mundo e atender as normas do Código de Trânsito Brasileiro. A EPTC ressalta, ainda, que, assim como os condu-tores de veículos automotores, os ciclistas também têm de reduzir a velocidade em dias de chuva, pois todos os tipos de piso tendem a ficar menos aderentes.

As melhorias ainda são vistas com des-confiança. “Porque a gente não tem uma cidade pensada para as pessoas. Mobilidade é abrir rua? Mobilidade é para carro? Não. Hoje as pessoas sofrem no trânsito. Somos obrigados a pensar a cidade de outra forma”, diz o ciclista, que aposta na alternativa da educação da população como única espe-rança. “Quando se fala em uma habilitação para ciclistas ou quando quem está de bike reclama do pedestre, eu vejo que é a mesma lógica do motorista. E está errado. Precisa de campanha educativa. Para o ciclista também

respeitar o pedestre e se fazer respeitar no trânsito. Porque ali é o nosso lugar, não na calçada. A bicicleta é um veículo e é menos um carro na rua”, defende Guimarães.

Mesmo mostrando-se descrente no in-vestimento em ciclovias, Guimarães se diz convencido de que a mentalidade das pessoas está mudando. Talvez mais por necessidade do que por vontade. O fato é que as pessoas se vêem obrigadas a dividir o mesmo espaço e começam a se dar conta que liberdade e autonomia não é ter um carro na garagem. “A bicicleta te dá liberdade. O que o carro faz em uma hora hoje em Porto Alegre, eu faço em 15 minutos. Porque o carro está preso no congestionamento”, diz. Para ele, uma nova forma de ver a cidade está surgindo e há boas atitudes que o fazem esperançoso. “Pode ser raro, mas têm motoristas que te dão preferência. E assim a bicicleta pode ser usada não só para ir trabalhar. Tem jovem indo pra festa de bike. O comerciante ao invés de ter um estacionamento, investe em um bicicle-tário. Já surgem tentativas de regredir esse pensamento voltado ao automóvel”, destaca.

impressões derepórter

Quando defini dois personagens para a pauta, um de Porto Alegre e outro de

Campo Bom, sabia que teria contrastes. E minha preocupação era não dividir o texto de forma que a Capital ficasse sobrecarregada de críticas, afinal, trata-se de uma cidade maior, com mais habitantes e frota superior, portanto, é natural que a implantação de um sistema cicloviário seja mais complicada. Fui a Campo Bom esperando encontrar uma cidade em que a população respeitasse a ciclovia e não a utilizasse para outros fins que não o de andar de bicicleta, evitando assim as brigas e reclamações que Porto Alegre tem. Descobri, no entanto, que exatamente o mesmo ocorre por lá. As pessoas caminham e crianças brincam na ciclovia. O contraste da pauta não estava no tipo de ciclovia, mas na relação que a população criou com ela. Em Porto Alegre não há apenas menos quilômetros de ciclovia, há menos paciência para dividir a via com os demais.”

Vídeo com informações sobre ciclovias de Campo Bom e Porto Alegre.

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As flautas que percorrem o mundo

Descubra como Percy Yari e os irmãos Montalvo tiram o seu sustento das ruas

Por Daiane Trein e Nathalie Abrahão Córdova. Fotos de Josué Braun, Larissa Luvison e Pedro de Brito

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PEDRO DE BRITO

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A decisão de sair de casa não é uma escolha fácil, que dirá deixar o seu país em busca de uma vida melhor. Levar para as ruas o

som doce das flautas e conseguir atrair, nem que seja por alguns minutos, os olha-res e a atenção dos passantes também é uma missão complicada. Porém, há pessoas que buscaram sair da zona de conforto e sobrevivem de um ganha-pão adquirido dia após dia.

É o caso do peruano Percy Yari, de 43 anos, que fica tocando sua flau-ta de bambu e vendendo seus discos em frente à farmácia Ideal, situada no Calçadão de São Sebastião do Caí, Rio Grande do Sul, a 65 quilômetros de Porto Alegre. Quem circula pelo local já deve ter ouvido o som de suas flautas que se espalha pelo ar.

A melodia tocada por Percy atrai a atenção do público, e sempre tem alguém parando para escutar suas músicas. Seu jeito calmo e tranquilo é visível enquanto

toca. A mesma sensação é transmitida às pessoas por meio das canções.

Natural de Arequipa, cidade ao Sul do Peru, Percy aprendeu a tocar flauta e violão ainda criança, com os pais. Apesar de eles serem músicos, Percy conta que não esperava viver desta profissão. “Aos 20 anos fiz uma viagem sozinho pela América do Sul e, na metade do cami-nho, terminou o dinheiro”, recorda. A solução encontrada para sobreviver foi começar a tocar nas ruas para ganhar algum dinheiro.

De lá para cá, vem fazendo um verdadeiro tour pelo mundo. No iní-cio, circulava pelos países vizinhos ao Peru, como Argentina e Bolívia, onde também morou. Durante uma de suas viagens, um amigo de Percy sugeriu que ele viesse para o Brasil. Há 20 anos ele saiu definitivamente do Peru e rumou para cá. Na época, uma forte crise de cólera atingia al-guns países da América do Sul, o que

dificultou seu visto de trânsito para entrada no Brasil.

Ao chegar, o choque com a cultura brasileira foi tremendo. Uma das primei-ras dificuldades encontradas pelo músico foi a língua falada pelo povo. O primeiro momento foi de adaptação. “Falava es-panhol com calma, e torcia para que as pessoas me entendessem”, lembra. Com o passar do tempo, foi acostumando--se com o português e hoje já domina o idioma.

Tocando suas flautas de bambu, ele conta que vive somente da música e que não tem outro meio de trabalho. “Muitos músicos têm um trabalho fixo e a música como passatempo, mas eu sobrevivo integralmente dela”, orgulha-se.

Morando atualmente em Porto Alegre, ele viaja diariamente de carro com a esposa, Ana Margarete Braga, e com o cachorro, Caruso da Boabarba, por várias cidades do estado. Entre os municípios visitados estão Estância Velha, Ivoti, Dois

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Irmãos, Portão, Novo Hamburgo e região de Porto Alegre, Santana do Livramento, Frederico Westhphalen, Torres e fron-teira do país. Em 2012, percorreram 12 mil quilômetros em apenas três meses por Santa Catarina.

Ana á natural de São Sebastião do Caí. O casal não tem filhos e optou por adotar um cachorro para lhes fa-zer companhia. O primeiro deles foi o Flapy da Baviera, adotado em um canil, que morreu no ano passado. Em seguida surgiu o Caruso da Boabarba, também adotado em um canil. Ele acompanha os donos onde quer que vão e atrai a atenção, principalmente das crianças.

Ao chegar ao seu destino, Percy des-carrega a caixa de som do carro, o DVD, aparelhos de som, pedestal, microfone e, com um cuidado todo especial, ajeita a maleta com os CDs. Os 32 modelos estão sempre expostos no local e alguns chamam mais atenção, como as versões de Beatles e Love Songs.

O trabalho como músico também o levou a conhecer outros estados do Brasil, como os do Nordeste. Já são 32 CDs gravados ao longo de sua trajetória, nos estilos de meditação, sertanejo, român-tico, hinos cristãos e músicas andinas. Percy explica que ele não compõe novas

músicas, apenas interpreta canções fa-mosas e que fazem ou já fizeram sucesso.

Os primeiros discos eram gravados em São Paulo, em uma gravadora de um amigo. Porém os gastos eram altos e o músico resolveu gravar seus CDs em casa. Ele investiu na compra de equipamentos e agora trabalha de forma independente.

Nos dias de chuva ou muito frio, o músico opta por não sair de casa. Nesses dias, aproveita as horas de folga para ficar com a família e ensaiar as composições. Ele também não possui horário fixo de trabalho, às vezes inicia cedo e encerra o dia tarde, em outras ocasiões, o clima interrompe seu trabalho.

Segundo o músico, não há um CD mais procurado, todos têm boa saída. Apesar disso, ele precisa um mínimo de CDs vendidos por dia para poder sobreviver e pagar as contas. Em alguns períodos, as vendas são ruins e é preciso mudar de município para alavancar o comércio. “Não posso ficar em apenas um local. Preciso visitar lugares dife-rentes”, explica.

O músico diz que nem sempre é bem aceito pelas pessoas na rua. Ele relata que muitos passam por ele e fazem cara feia ou reclamam que a música está in-comodando. “Eu não obrigo ninguém a comprar um CD meu; também não passo

o chapéu pedindo esmola, vendo o meu trabalho de forma honesta e correta”, justifica.

Percy também diz que a vida de ven-dedor na rua não é muito fácil. Conta que algumas vezes foi abordado por pessoas que diziam ter adquirido um produto seu com problema. “Alguns vendedores oferecem produtos mais baratos e com qualidade mais baixa, e, quando as pes-soas me encontram na rua, vem pedir troca de algo que nem é meu”, lembra.

Caso não fosse músico, o peruano pensa que talvez fosse artesão e traba-lharia com arames, atividade que exerce nas horas vagas. Além disso, as flautas utilizadas por ele nas apresentações são de fabricação própria. A principal matéria-prima utilizada na fabricação, o bambu, é importada da Bolívia e do Peru.

O tempo de mão de obra varia de acordo com o modelo, de três dias para

n O casal Percy Yari e Ana Margarete viajam

com o cachorro, Caruso da Boabarba, por cidades

do Rio Grande do Sul para tocar e vender discos

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a flauta mais simples, podendo chegar a até uma semana para as mais completas. É preciso um tempo para fazer a flauta, deixar o bambu secar naturalmente e passar óleo ou verniz. “Muitas pessoas pedem para que eu faça uma flauta, mas reclamam do valor. Porém, dá muito trabalho”, acrescenta.

A sobrevivência nômade dos irmãos Montalvo

Jaime e Fausto Montalvo também são flautistas. De origem indígena, os irmãos saíram do Equador para espalhar a sua música pelo mundo. Deixaram, além da família, uma vida inteira para traz. Jaime, o irmão mais novo, com 35 anos, é mais falante e conta a trajetória da dupla sob o olhar desconfiado do primogênito.

Arranhando o portunhol, Jaime con-ta que resolveram viajar pelo mundo, pois fora de seu país de origem a música indígena faz mais sucesso. “Nos outros lugares fica mais fácil fazer música e viver dela. Aqui no Brasil, principal-mente, as pessoas gostam da música que fazemos, pois não estão acostumadas com canções mais relaxantes e mais introspectivas”, afirma.

O que ainda é um obstáculo para muitos, para Jaime e Fausto é quase uma diversão: conhecer novos países e culturas. Os equatorianos, que há mais de vinte anos desbravam os continentes, não se deixam criar raízes. Dos lugares que já passaram levando a melodia suave das flautas que tocam, os irmãos destacam os seguintes: Espanha, México, Holanda, Peru, Bolívia, Suiça e França.

A “turnê” pelo Brasil começou há pouco tempo e desde o início do ano, quando aterrissaram em terras tupini-quins, já conheceram Rio de Janeiro, São Paulo e em sua última parada, Porto Alegre. Depois da capital gaúcha os ir-mãos embarcaram para o Equador com o objetivo de rever a família. “Temos mais três irmãs e dois irmãos. Ficamos com muita saudade deles, porém é difícil compartilhar com a família a vida que levamos. Eles acabam ficando lá (no Equador), e nos vemos apenas nos intervalos das viagens”, relata o tímido Fausto.

Questionados sobre a profissão, am-bos são enfáticos ao afirmar que não são profissionais e que vivem “do jeito que dá”. “Ao chegarmos à cidade que escolhemos, nós buscamos um hotel ou

LARISSA LUVISON

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algum lugar provisório que nos abrigue até conseguirmos algo que seja bom o suficiente para passarmos o resto da estadia”, diz Jaime.

Segundo ele, o dinheiro adquirido sempre fica com Fausto, que organiza e separa o ”salário diário” para manter as despesas. O luxo fica por conta de um bom lugar para comer e beber, de resto é tudo contado e pensado para que dê certo. “Nós vamos para vários lugares e não sabemos como vai ser até chegar lá! Sempre fica uma angústia e uma ansiedade para saber se tudo vai se arranjar”, conta Jaime.

Os trocados adquiridos diariamente, e não revelados nem sob insistência, ora salvam o dia, outras vezes desanimam os músicos. “Às vezes penso que não vale a pena ficar fora de casa e que tudo isso não vai dar em nada, mas quando eu me lembro dos países que conheci e vejo que muita gente para e fica feliz com o som que fizemos, percebo que vale a pena”, diz Fausto.

Adeptos à cultura indígena, os Montalvos não abrem mão dos trajes típicos. Cores, penas, cocares e acessó-rios fazem parte dos “personagens” que montam. Fausto conta que os adereços, comuns para eles, não são bem vistos em todos os lugares. “Nós não andamos assim o tempo inteiro. Quando saímos à noite, por exemplo, usamos roupas nor-mais, as mesmas que estamos vestindo por baixo desta (diz apontando pra suas

vestimentas). Mas muita gente ainda estranha, e, como não estamos em nosso país, preferimos respeitar os moradores de onde estamos.”

De todos os percalços vividos nesses vinte anos de estrada, a saudade da fa-mília é o que mais fere a dupla, o resto acaba sendo recompensado pelas expe-riências vividas. “Nos meus 40 anos de vida, não posso reclamar que sofri muito por isso. E sim que aprendi a conhecer e me adaptar a outras pessoas e outras culturas. Quando chegamos em um lugar, tenho que entender que o lugar é delas e não meu”, diz Fausto.

Olhando para o irmão com ar de cumplicidade, e de quem já repetiu muitas vezes a mesma frase, Jaime diz: “Mas sempre vale a pena, sabe? A gente conhece o mundo e o mundo conhece a nossa música. Quanta gente não tem o privilégio de viver isso? Não podemos reclamar. E a vida é isso mesmo, esse jogo de idas e vindas.”

E tem como discordar?

impressões derepórter

Sempre tivemos curiosidade em relação às pessoas que tocavam e vendiam

seus produtos nas ruas. Várias vezes cruzamos com elas em avenidas, mas nunca havíamos parado para apreciar seu trabalho ou, muito menos, conversar sobre sua rotina de trabalho. O tema da Primeira Impressão foi uma oportunidade para conhecermos melhor a vida dessas pessoas. Foram várias dificuldades até chegarmos ao final da pauta: a procura das fontes, o medo que algumas pessoas tinham de falar conosco e outras que não queriam ser fotografadas. O clima também dificultou o nosso trabalho, já que os músicos não saem para a rua em dias de chuva. Os dois casos abordados na matéria são de pessoas de outros países da América do Sul que vieram em busca de uma vida melhor. Isso dificultou um pouco o contato com eles, pois no início mostraram uma certa resistência com relação a uma possível entrevista para a revista. O que mais ouvimos durante as entrevistas foi que, assim como em outras profissões, tirar o sustento das ruas não é fácil. Ao final, podemos afirmar que, além de fazermos uma matéria, construímos uma amizade com nossos entrevistados.”

Vídeo sobre os personagens e bastidores de produção da reportagem.

n Jaime e Fausto saíram

do Equador para tocar

flauta pelo mundo

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Onde as paixões se encontram

Para levar o fanatismo adiante, algumas ruas marcam a história dos dois maiores clubes do Rio Grande do Sul

Por Lucas Möller e Matheus Beck. Fotos de Fabrício Romio, Pedro Kobielski e Emerson Ribeiro

Antes do despertador, antes do pai calçar os chinelos, o ansioso menino já aguarda pelo lendário domingo. Final de semana é dia de jogo, dia

de acompanhar o pai em mais uma batalha futebolística. Uma epopeia que empolga mi-lhões de brasileiros que desde cedo defendem as cores de seus clubes como a honra de sua família. Cuecas da cor do clube, fardamento idêntico ao dos ídolos, chuteiras bem amar-radas e cabelo penteado. Eis o momento de ir para o espaço onde tudo está liberado, o berço dos maiores acontecimentos do espor-

te: o estádio de futebol. No local, craques já desfilaram fintas, pontapés, golaços, carrinhos emocionantes e esticaram seus braços ao má-ximo para levantar as taças conquistadas com muito suor e disposição. Mas de onde surge toda a disposição da torcida? Qual é o caminho responsável pela interminável paixão por um clube? Muitos chamam de ruas do futebol, da bola ou da união, onde todos lutam por uma única causa e preconceitos são considerados descabidos. Essas vias são determinantes e levam consigo uma infindável história e integrantes que a valorizam.

FOTOS FABRÍCIO ROMIO

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Avenida Padre Leopoldo Brentano, 110, Humaitá

Enquanto o técnico em informática Jonas Danelon, 35 anos, praticamente atravessa o Rio Grande do Sul para chegar até a Arena do Grêmio, o representan-te comercial Marcelo Montesdioca, 39 anos, precisa de apenas 20 minutos de metrô para fazer o percurso até Porto Alegre. Um deles vem de Cerro Grande, no noroeste gaúcho, o outro de Esteio, na Região metropolitana. Em uma praça na rua Monsenhor Arthur Wickert, no bairro Humaitá, eles se juntam a outros aficionados para celebrar as horas que antecedem o grande momento do dia, o clássico GreNal. Ao redor de uma chur-rasqueira, a distância de 384 quilômetros entre as duas cidades é resumida a uma paixão, o tricolor.

Cônsul do Grêmio no município de Esteio, Marcelo está presente em quase todos os jogos, e, quando possível, se reúne próximo ao estádio com torcedo-res de diversos lugares do estado. “As condições para confraternizar com os amigos antes do jogo melhoraram em relação ao Estádio Olímpico. Por ficar em uma área menos central, existe um maior número de bares. Pelo fato de ser um bairro mais humilde, as pessoas são mais receptivas”, afirma.

Para Danelon, apesar de a Arena estar localizada em um bairro não tão nobre quanto a Azenha onde ficava o antigo estádio do Grêmio, o alto preço dos in-gressos tem afastado uma fatia do público. “Infelizmente estamos caminhando para a elitização dos estádios. Tanto que para comprar ingressos antecipadamente você

precisa utilizar o cartão de crédito, o que já dificulta o acesso de alguns”, completa.

Crescimento comercial e da paixão

“Nos encontramos no Bar da Zuleica!” Quase todos os torcedores que foram ao menos uma vez à Arena do Grêmio já pronunciaram, ouviram ou leram essa frase. O fato de os torcedores ainda não estarem totalmente ambientados com a nova casa faz com que pontos de referên-cia sejam utilizados para a localização. O que pode ser melhor do que um bar em frente ao estádio para essa finalidade?

Zuleica Terezinha Carvalho dos Anjos, 44 anos, é uma das grandes persona-gens das ruas do futebol. Ainda que não apareça muito e seja tímida, é um dos nomes mais falados pelo público que chega ao jogo. Dona do bar, localizado na rua Leopoldo Brentano antes mesmo de haver o projeto da construção do templo sagrado dos tricolores, ela é uma das pessoas que teve a vida modificada totalmente pelo futebol. “A vida finan-ceira mudou completamente, além disso, o ambiente do bairro melhorou muito com a construção do estádio.”

Morar e ter um comércio em frente ao estádio fez com que Zuleica tivesse não só o crescimento econômico de seu estabelecimento comercial, mas ainda a oportunidade de encontrar um grande amor. Foi ali que ela conheceu o parai-bano Antônio Venâncio dos Santos, 40 anos, com quem permanece casada até então. “Ele é corintiano, mas pela minha influência e por ter ajudado a construir a

Arena, aqui no Sul ele torce pelo Grêmio”, conclui.

O sonho que setornou um pesadelo

Porém, nem tudo é festa nas ime-diações do estádio. Mostrando orgu-lhosamente o capacete que simboliza a construção da Arena, Paulo Carvalho, 51 anos, ao lado de sua esposa Marta Mendes, 43 anos, se diz enojado de fu-tebol. Moradores do bairro Humaitá há 38 anos, o casal reclama do que em dias de jogos não pode sequer tirar o carro da garagem. Gremista de coração, Paulo conta que teve que buscar uma bandeira do Grêmio para mostrar a um torcedor que ameaçava invadir a sua casa. “Ele estava transtornado por drogas e álcool, batia na grade da casa insinuando que éramos colorados. Mesmo que fôssemos, estamos em nossa casa e ele não tem o direito de agir assim.” Segundo eles, a polícia se preocupa muito com a rua da frente do estádio e esquece as travessas que chegam até ela. “Já presenciamos muitas brigas em frente a nossa casa. Socos, chutes, garrafadas e até uma facada já aconteceram diante de nossos olhos. Esses cidadãos bebem, usam drogas e urinam em frente ao portão. Infelizmente as pessoas não sabem aproveitar a liber-dade”, desabafa Marta.

Avenida Padre Cacique,891, Praia de Belas

Apaixonado pelo Sport Club Internacional desde que nasceu e sócio do

n Paulo Carvalho e Marta Mendes agora possuem novos vizinhos

(foto à esquerda). Os vendedores ambulantes comemoram o

retorno do Beira-rio (foto central). Movimento do bar da dona Zuleica aumentou com a chegada da Arena

FOTOS FABRÍCIO ROMIO

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Primeira Impressão n Julho de 2014 n 59

clube desde 2005, o tecladista e professor de latim Rodrigo Maciel Jacinthon, 41 anos, lembra com muito orgulho dos inú-meros churrascos produzidos às margens da avenida Edvaldo Pereira Paiva com os pés por vezes molhados da água que permeia o lago Guaíba. Após as reformas e remodelação do Gigante da Beira-rio, Rodrigo voltou ao estádio para aprovei-tar a festa de reinauguração do celeiro de ases, como os torcedores costumam chamar. “Agora estamos retomando esse espaço e fico muito feliz em estar de vol-ta ao nosso estádio, fazendo churrasco novamente com os amigos, mesmo que agora em outro local”, contou Rodrigo. Ele saboreava um típico churrasco gaúcho no parque próximo ao acesso ao Beira-rio, na Rua A, local diferente de onde eram realizadas as refeições antes da reforma, sempre às margens do Guaíba. Junto com ele, o advogado Luiz Portinho, 40 anos, não perde um jogo do Inter. Portinho é cadeirante e estava ansioso para acessar o estádio após a remodelação. “No entorno, o acesso ainda está horrível, pois ainda existem muitas obras, mas a tendência é melhorar”, salienta o advogado e tor-cedor colorado.

Novas estruturas e dificuldades

Com as dificuldades para estacionar próximo ao estádio, já que os acessos não estão concluídos e os antigos es-paços destinados para veículos foram proibidos, muitos torcedores têm de deixar seus veículos longe do destino futebolístico. A avenida Padre Cacique

é então superlotada e as vagas cada vez mais cobiçadas e raras.

Aproveitando a extensa área de pedes-tres, vendedores ambulantes estendem seus artigos e tentam driblar a fiscalização para garantir suas contribuições extras. Com o dinheiro curto, eis uma grande oportunidade para vender bebidas, cami-setas, bonés, chapéus e bandeiras.

O frentista Paulo César Costa de Lima, 43 anos, é um desses vendedores que aproveita a paixão dos torcedores para faturar. Mesmo sendo um colorado de co-ração, Paulo César não encontra nenhum problema em efetivar o mesmo serviço no lado azul de Porto Alegre, ou até mesmo em outras cidades. “Nos últimos dois anos caíram as vendas, pois o Inter não estava jogando Beira-rio. Mesmo assim, eu viajava para Caxias ou Novo Hamburgo para vender. Como o público era menor, as vendas naturalmente caíram” conta o vendedor. Com grande diversidade de produtos, Paulo César lembra que a rua Padre Cacique já o fez vender mais de 40 chapéus em um só dia. Segundo ele, as vendas são intensificadas em finais de campeonato e clássicos.

As ruas de estádios são como caminhos sagrados onde peregrinos se aglomeram para chegar até as catedrais do futebol. Nelas, fiéis de todas as crenças se jun-tam em defesa de uma só causa. Pintar esses caminhos com as cores dos clubes é apenas a mais simples das manifestações que esses crentes fervorosos realizam. As ruas do futebol são lugares únicos, que interferem na vida de milhares de pessoas no ponto de vista social, econômico e principalmente emocional.

impressões derepórter

Lidar com futebol é sempre apaixonante. Jogar, comentar, debater, torcer e assistir

estão entre os verbos que tomam uma proporção muito maior quando se trata do esporte que os ingleses inventaram. Quando podemos aliar isso ao gosto pelo jornalismo e por contar histórias, a pauta sai com maior naturalidade. Um fanatismo indiscutível e por vezes exagerado foi encontrado nos dois lados e, de certa forma, traçou um perfil dos amantes da bola que residem no nosso Estado. O mesmo caminho que leva ao local onde contemplam suas paixões remete muito mais que apenas uma rua ou um clube. Trata-se de uma escolha normalmente sem volta. O clubismo é muito forte e o entorno é moldado para o espetáculo do futebol. O churrasco, a simples reunião para beber e conversar é uma tradição que transforma o roteiro da capital dos gaúchos. Independente da cor da camisa, aqueles que realmente amam o esporte e seus clubes esperam que as ruas próximas aos estádios sirvam para confraternização e não para a violência.”

Vídeo das torcidas se deslocando pelas ruas antes de partidas de futebol.

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PEDRO KOBIELSKI

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SÃO

LEOP

OLDO

n O pátio interno do hospital é uma das poucas visões

de Neemias ao olhar pela janela do quarto

onde se recupera de uma infecção

JÚN

IOR D

A LUZ

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A vista que ninguém quer ter

Pacientes do Hospital Centenário relatam o que está por trás da janela

Por Nicolle Frapiccini. Fotos de Júnior da Luz e Maytê Ramos Pires

Paredes, camas, aparelhos e outras pessoas deitadas sobre seus colchões. Esta é a visão de muitos pacientes internados em hospitais brasileiros,

que estão presos, por algum motivo, a um leito hospitalar. O cheiro da casa de saúde, a contagem das gotas de soro caindo e os medicamentos servidos em copinhos de café fazem com que a rua que está do outro lado da parede seja uma miragem. As janelas são os olhos desses pacientes para o mundo exterior. Respirar a rua, com suas flores, árvores, artes, poluições, violência e congestionamentos, é uma vontade aflorada em todos.

A falta de liberdade é a primeira fra-se que vem na mente de muitos pacientes internados. Com o autônomo Neemias da Cunha Carvalho, 51 anos, que está internado na Fundação Hospital Centenário de São Leopoldo (FHCSL), não foi diferente. Há mais de 40 dias, está tratando uma infecção no membro superior direito, na clínica médica masculina “D”. Do leito 7402, ele está ligado ao mundo exterior por meio de uma janela ao lado de sua cama. “Abro e fecho, mas não penso muito nela. Se começar a pensar muito, dá vontade de dar uma fugidinha”, comenta, ao salientar a importância de renovar o ar do quarto. “Não dá para deixar a janela fechada. O hospital, por si só, já tem muita bactéria, e nós também temos no corpo. Não podemos correr o risco de pegar outra.”

O pátio interno do hospital, onde, de vez em quando, alguns pacientes pegam um sol e dão uma caminhada, e uma outra janela para um quarto da ala feminina são as visões de Carvalho ao se inclinar e observar o que acontece fora das quatro paredes, que divide com mais seis pessoas. “Não estou preso,

encarcerado, mas tenho que ficar retido, porque, se não, o prejuízo é meu”, diz, ao enfatizar que não dá muita atenção para a rua. “Olho por olhar, mas passa despercebido, justamente para não ficar pensando no que estou fazendo aqui, e porque não fico bom nunca. Logo esqueço e termina a vontade de querer sair.”

Sem televisão, muitas vezes, os momentos de descontração são as notícias que chegam pelo rádio do celular, colocado na marquise da janela. Além do jornal e da visita de familiares, todas as quartas-feiras, há cerca de um ano, a Corrente do Bem descontrai o ambiente desejando bom dia e melhoras aos pacientes. Vestidos com trajes típicos do Rio Grande do Sul, os estudantes da Unisinos Maikinho Pereira e Vinícius Lima arrancam sorrisos e brincam com os pacientes. “Cadê o chimar-rão?”, perguntou Carvalho. “Não trouxemos”, responderam os gaúchos, questionando se ele iria torcer pelo Grêmio no jogo contra o San Lorenzo, da Argentina, pelas oitavas de final da Copa Libertadores da América. “Claro que não, eu sou colorado”, retrucou.

Passeios públicos hospitalares

Os corredores da casa de saúde podem ser comparados com as ruas, na medida em que existem avenidas (corredores princi-pais), cruzamentos (corredores secundários), casas (quartos), carros (macas) e pedestres (pessoas). Estas ruas frequentadas por mé-dicos, enfermeiros e pacientes apresentam os mesmos problemas enfrentados nos passeios públicos urbanos. Confusão e congestiona-mento no trânsito podem ser percebidos,

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62 n Primeira Impressão n Julho de 2014

principalmente na Emergência, sempre lotada e com grande tempo de espera no atendimento. Casos de erros médicos viraram corriqueiros no hospital, que em 2012 chegou a ter setores interditados e o atendimento proibido pelo Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul (Cremers), devido a uma série de problemas na estrutura do prédio e nas paredes, verificadas em uma vistoria. De acordo com o Cadastro Nacional de

Estabelecimentos de Saúde (CNES), o Centenário é um hospital geral, públi-co e municipal com 224 leitos, sendo 198 exclusivos para o Sistema Único de Saúde (SUS).

Em um desses quartos, o 7821 da clí-nica pediátrica, a dona de casa Jaqueline Gonçalves Feca, 23 anos, mãe de seis filhos, está acompanhando sua filha Sophia, quatro meses, que voltou ao hos-pital dois meses e 15 dias após receber alta por causa de problemas respiratórios. Jaqueline deu entrada na casa de saúde no dia 23 de dezembro de 2013 para dar à luz suas filhas Clara e Sophia de parto normal. Por nascerem prematuras, ficaram até o dia 5 de março de 2014 internadas na ala pediátrica, que tem as janelas fechadas 24 horas por dia por causa da claridade. “A sensação é de que você está presa, trancada. A vontade de

querer estar lá fora é muito grande, até porque, estando fora do hospital, você sabe que está bem”, argumenta Jaqueline, que reveza com o marido os cuidados com as crianças. Sophia está no Centenário e Clara, em casa.

Sophia precisou ser internada nova-mente porque o procedimento feito na Emergência, um dia antes, foi equivo-cado. Como tem apenas quatro meses, não poderia ter recebido medicamento via oral, e sim pelo soro. “Se o primeiro atendimento tivesse sido correto, não precisaria estar aqui novamente”, desta-ca Jaqueline, que não vê a hora de sair, de ir para a rua. Durante as horas em que está com ela, além de ficar atenta a tudo que está acontecendo, Jaqueline assiste à televisão e observa a avenida Theodomiro Porto da Fonseca, no Centro de São Leopoldo. “São momentos para

n Quando olha pela janela do hospital, Jaqueline diz prestar mais atenção em coisas que não percebe no dia a dia, como diferenças físicas, de personalidade e de roupas

JÚN

IOR

DA

LUZ

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Primeira Impressão n Julho de 2014 n 63

pensar e refletir e ver o que na pressa do dia a dia não se enxerga”, comenta, ao se questionar por quantas vezes já passou pela avenida e o que já aconteceu nesse lugar. “Da janela, presto mais atenção em coisas que na correria não percebo, as diferenças físicas, de personalidade e de vestimentas entre as pessoas.”

Os momentos de aflição e o clima de hospital fazem com que a angústia se faça presente. “Com este ambiente, ninguém consegue descansar, porque toda a situação é muito desconfortável”, relata, ao lembrar que no local o movi-mento é intenso. “Tudo é muito rápido, a toda hora se escuta as ambulâncias chegando. Preferia não estar aqui, por já estar sofrendo e por ter que lidar com a sensação de que a todo instante pessoas estão sendo trazidas com problemas, às vezes mais graves”, relata, ao ajeitar a

meia da sua filha e pontuar: “A meia que a Sophia ganhou é do Internacional, mas na verdade, ela é gremista”.

As experiências hospitalares viven-ciadas pelos pacientes proporcionam a eles observar mais atentamente o que enxergam e perceber pequenos detalhes que antes não eram vistos. Uma dessas particularidades é a sensação de falta de liberdade que, de uma forma ou de ou-tra, acaba sendo mencionada por todos. As quatro paredes que juntas formam um quarto, privam os internados e seus acompanhantes de respirarem a rua, já que, de uma forma ou de outra, eles estão presos naquele quarto e só sairão quando estiverem completamente recuperados, quando a pena imposta e sentenciada pela doença acabar. Dessa forma, após a alta, poderão ter as vistas que tinham antes de serem baixados na casa de saúde.

impressões derepórter

Quando estava escrevendo a pauta, não imaginei que fosse tão difícil encontrar um

paciente que já estivesse internado há mais de um mês em um hospital público. Inicialmente pensei no Hospital Geral, em Novo Hamburgo, porém eles alegaram que não tinham nenhum paciente na situação em que procurava: pessoas que tinham relação com a rua por meio da janela do quarto e estavam internadas há mais de um mês. Então entrei em contato com o Hospital Centenário, em São Leopoldo, e a direção do hospital aceitou que a reportagem circulasse pelo local. Conversei com as enfermeiras chefes de alguns setores para que elas indicassem os pacientes. Para eles, o ar puro que entra pelas venezianas das janelas é a força de vontade que precisam para enfrentar e vencer as batalhas impostas pelas doenças e voltarem às ruas. Durante a realização da reportagem, mais precisamente após as idas ao Centenário, pude vivenciar, um pouco, as angústias dos meus entrevistados. Acompanhei meu pai, que ficou internado quatro dias no Hospital Regina, em Novo Hamburgo. Mesmo que não tenha ficado essas 96 horas dentro da casa de saúde, nos momentos em que estive, tive vontade de sair do quarto e ir para à rua, pois ficar deitada na cama ou na poltrona, sem fazer nada, vendo as enfermeiras entrar de tempo em tempo, é muito desconfortante. Se para os acompanhantes, como foi o meu caso, essa rotina cansa e faz com que nos sintamos presos, até porque temos que estar à disposição em qualquer momento para auxiliar nosso familiar, imagina para os pacientes, que estão em busca de liberdade e quando olham a rua enxergam essa situação como uma miragem.”

Vídeo com imagens do hospital e depoimentos dos entrevistados, além de uma galeria de fotos.

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JÚN

IOR D

A LUZ

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64 n Primeira Impressão n Julho de 2014

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A SCHNEIDER

Da sola do sapato para a ponta da faca

Com uma bicicleta, um apito e muita fé, o amolador de facas

Gilberto é exemplo de dedicaçãoPor Sabrina Martins. Fotos de Ana Elisa e Bruna Schneider

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Era tarde de uma sexta-feira ensolarada, fazia calor ao sol e frio à sombra, clima típico do outono gaúcho. O relógio

marcava 13h53min. Eu não conhecia Gilberto. Imaginava ser um senhor sexagenário e com cabelos grisalhos. Cheguei ao ponto de encontro e não o achei. Vi um homem jovem, com trajes sociais e com cabelos negros, próximo ao local onde eu encontraria quem es-tava procurando. Desconfiei que quem eu esperava tinha a aparência diferente do que havia imaginado. Passei por ele, dei mais alguns passos e, como havíamos combinado, liguei para avisar que chegara. Aquele homem atendeu meu telefonema. Ele era Gilberto, o “afiador de facas”.

Quando exercia a comum tarefa de afiar as facas de sua casa e os demais instrumentos de corte utilizados no dia a dia da família na pequena cidade de Porto Xavier – localizada no Alto Uruguai e distante aproximadamen-te 570 quilômetros de Porto Alegre –, Gilberto Vieira Carvalho jamais imaginaria que essa tarefa rende-ria futuramente o sustento da sua família. Ainda jovem, com 16 anos, Gilberto – hoje chamado por amigos de “Baixinho” – mudou-se para a capital gaúcha. Sob Sol forte, frio intenso ou chuva constante, ia diariamente para a obra da qual estivesse encarregado. Trabalhava como pedreiro e, por uma década, teve essa profissão. Sofrendo constantemente com dores na coluna e cansado do trabalho pesado e dos ho-rários rigorosos que precisava seguir, Gilberto resolveu mudar.

Em um encontro casual com um amolador de facas, surgiu o interesse de Gilberto pela profissão. Interessado pelo trabalho e hábil na função que deveria exercer, não teve dúvidas: tornaria-se um amolador de facas. Para tanto, bastava “apenas” a bicicleta adaptada, que ele logo providenciou. E de sua forma. “Vi uma vez uma bicicleta de um afiador e fiquei um tempo com aquele pensamen-to na cabeça, de montar uma daquelas para mim. Como eu tinha guardado na memória, mandei fazer um eixo, coloquei os rolamentos, fiz o encaixe, coloquei na bicicleta. Coloquei outra roda atrás, uma correia para acoplar e fiz um pezinho para a bicicleta ficar no ar”, relembra ele, com orgulho estampado em um sorriso.

Passados 10 anos desde a “construção” de seu meio de trabalho, Gilberto acumula milhares de quilômetros rodados pelas ruas e dezenas de cidades percorridas. Canoas, Guaíba e a capital gaúcha são os itinerários mais comuns feitos por ele. Aos 36 anos e com um condicionamento físico de dar inveja, ele afirma já ter percorrido mais de 100 quilômetros em um único dia. “Uma vez fui a Tramandaí. Saí de Porto Alegre às três horas da manhã e cheguei lá às três da tarde. Fui pedalando e andan-do”, conta ele sobre sua ida à cidade do litoral gaúcho, situada aproximadamente a 120 quilômetros da Capital.

Com o som inconfundível de seu apito, Gilberto segue todos os dias, entre 9h e 16h por bairros como Bela Vista, Santa Tereza e Ipanema, em Porto Alegre, e Mathias Velho, em Canoas. Caminha a passos vagarosos carregando a bicicleta, trabalhando e ao mesmo tempo conhe-cendo novos locais. Notando detalhes de

uma rua que talvez antes tenham passado despercebidos a seus olhos.

Levando entre quatro e 10 minutos para afiar e com preços que variam en-tre R$ 7 (para tesouras, facas, alicates, cortadores de unhas e demais materiais de manicure) e R$ 10 (para facões e ou-tros tipos de instrumentos de corte como machados, por exemplo), Gilberto segue uma das profissões mais antigas e mais ameaçadas de extinção. A incerteza do amanhã não é motivo para fazê-lo temer, mas sim um incentivo para seguir em frente. Segundo ele, há dias que em uma única rua é possível ter ganhos de até R$ 100, mas também há aqueles em que a volta para casa pode ser da mesma forma como a ida: sem nada.

Andar com féEm mais um dia de trabalho, Gilberto

iniciou sua caminhada pontualmente às 9h. Partindo da frente do Aeroporto Internacional Salgado Filho, o amo-lador de facas disputava com carros, motocicletas, ônibus e caminhões um lugar na movimentada BR-116. Sem um itinerário exato, seguiu até o seu destino daquela manhã: o bairro Bela Vista, em Porto Alegre.

Luxuoso e repleto de subidas e des-cidas, o local já é um velho conhecido de Gilberto. Empurrando sua bicicleta, api-tando e observando detalhadamente cada prédio e casa ao redor, ele seguia. Nenhum movimento e som passavam desperce-bidos. A jornada já durava 55 minutos quando um senhor que varria a calçada de sua casa chamou Gilberto. Ele então segurou o punho da bicicleta com as duas

BRUN

A SCHNEIDER

ANA ELISA O

LIVEIRA

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Primeira Impressão n Julho de 2014 n 67

mãos, deu alguns passos para trás em direção ao senhor que demonstrara-se interessado no seu serviço e, com um simples movimento da cabeça de cima para baixo, se pôs à disposição. Ele queria saber quais os dias que Gilberto andava por ali, pois era a primeira vez que o via e o ouvia. Em meio ao som dos galhos das árvores que mexiam-se com o vento, surgiu a palavra “quinta-feira”, dita pela boca do amolador. Rapidamente fez-se silêncio. Para aquele senhor, um silêncio normal; para seu Gilberto, um silêncio com tom de esperança; e para mim, um silêncio desesperador. Gilberto agradeceu e seguiu. Sorriu e me disse: “Eu te falei que não era fácil”.

E assim foi o restante da manhã. Muita sola de sapato gasta e muito Sol na cabeça. Muitos lugares novos conhe-cidos e nenhuma água bebida. Muitos sorrisos distribuídos e poucos recebidos. Muita sabedoria e histórias compar-tilhadas. Muito trabalho e nenhuma recompensa financeira.

Já eram 13h e meu horário se esgo-tava. Pedi a Gilberto que fizéssemos um caminho que eu pudesse retornar ao centro de Porto Alegre sem atrapalhá--lo. Nessa altura, meus pés e joelhos doíam, meu corpo pedia hidratação e minha barriga “roncava”, enquanto

Gilberto demonstrava muita tranqui-lidade. Já havíamos passado por locais como as avenidas Assis Brasil, Protásio Alves e Ipiranga.

Entre subidas e descidas, andamos muitos quilômetros. Gilberto e eu. Depois de quatro horas na companhia um do outro e mais de 30 quilômetros, me senti como ele. Caminhei como ele. Não bebi água e não me alimentei como ele. Andei em busca de clientes como ele. Acreditei que pudesse ser um dia muito produti-vo de trabalho, assim como ele. Pensei na esposa Janete e nos filhos, Gilberto, Emerson e Everton. Pensei na casa locali-zada na Vila Dique e nas contas. Imaginei como seria ter todas essas responsabili-dades, sair para trabalhar todos os dias e, em alguns – como esse – voltar sem nenhum real para casa.

No final do percurso, perguntei a Gilberto como seria chegar em casa sabendo que nenhuma faca fora afiada naquele dia. Com o mesmo sorriso de sempre, ele me respondeu que agradeceria a Deus – como faz todos os dias – e que no outro dia faria a mesma coisa, indepen-dente da produtividade. Complementou e, como forma de consolo para mim, disse: “Se hoje não deu, amanhã dará”.

impressões derepórter

Após escolher a pauta sobre o amolador de facas, sem conhecer meu personagem,

tinha como intenção contar como era o trabalho desse tipo de profissional, que é cada vez mais raro e sempre muito interessante. Foram três encontros com Gilberto e, até acompanhá-lo por uma manhã, mantive essa ideia, de escrever sobre a sua rotina. Na manhã do dia 15 de maio, o acompanhei durante quatro horas e, por infelicidade, em todo esse tempo nenhuma faca foi afiada. Nesse período, pude conhecer quem realmente era Gilberto Vieira Carvalho e me surpreendi. Descobri que ele, que frequentou apenas o primeiro ano do Ensino Básico, é um homem sábio. Sábio, humilde e que sabe ouvir. Muito religioso, demonstrou-se sempre confiante em relação ao seu trabalho, mesmo quando a situação não era favorável. Fazia questão de agradecer a Deus e de lembrar-me que era evangélico, acima de todas as dificuldades.”

Vídeo com depoimento de Gilberto e making of da produção da reportagem.

n Gilberto adaptou uma bicicleta para poder afiar facas e outros utensílios

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LIVE

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Infância em qualquer lugar

Onde brincam hoje as crianças das grandes cidades

Por Guilherme Neis. Fotos de Anne Kunzler e Larissa Tassinari

A infância de hoje em dia não é a mesma de antigamente, afinal, ela está sempre mudando. As brincadeiras se modificam com

o tempo, mas nunca deixam de existir, é claro. Está em nossa essência experimen-tar e buscar o novo. As ruas por muito tempo foram o ambiente principal onde as crianças desenvolviam as mais diver-sas brincadeiras, mas elas estão cada vez mais perigosas, mais cheias de carros e de gente. A proteção dos pais é inevitável e, com isso, brincadeiras caseiras, no vide-ogame ou no computador, tornam-se as mais comuns entre as crianças de hoje.

Do alto do prédio,na capital gaúcha

Do alto do 27° andar de seu aparta-mento, localizado na Rua dos Andradas, Porto Alegre, Nicolas Lermen, 7 anos, vive com os pais e o irmão. Espremido entre tantos outros, o prédio não pos-sui um playground, então a solução é brincar dentro do próprio apartamento. Ele gosta de jogar videogame, assis-tir Dragon Ball na televisão e usar o computador. Está no primeiro ano e, mesmo tão jovem, já utiliza ferramentas como as redes sociais para se comunicar com os amigos. O computador é onde

mais gosta de brincar. Segundo a mãe, Andreia Lermen, a infância do filho é bem diferente da sua. “Eu morava no interior e vivia subindo em árvores, brincando de boneca. Fui conhecer TV com a idade dele”, diz. Na escola, o menino brinca de “pega-pega” e joga futebol com os amigos, mas em casa a história é diferente. “Ele combina com os amigos de virem aqui no apartamen-to, mas, como não tem espaço para jogar futebol, eles acabam indo para o videogame”, conclui a mãe.

Aliado à falta de espaços está o medo das ruas. Andreia considera

n Nicolas mora no 27º andar da

Rua dos Andradas e só brinca dentro

do apartamento. Andreia, sua mãe, diz que teve uma

infância bem diferente da do filho

FOTOS LARISSA TASSINARI

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que estão menos seguras do que nos seus tempos de criança. “Só me sinto segura se estou junto com ele”, afir-ma. Essa resposta é sustentada pelo filósofo e professor da Unisinos Clóvis Gedrat. “As ruas estão mais perigosas, sem dúvida. Mais cheias de carros e gente. Por isso, os pais, com certeza, estão mais preocupados com o bem estar de seus filhos. Isso é amor, sem dúvida”, explica. Ao mesmo tempo, Clóvis considera que os pais devem buscar por espaços apropriados para as brincadeiras ao ar livre, salientan-do que não permitir isso seria uma

síndrome de posse. “As crianças não são posse de seus pais, pois precisam ser preparadas para viver a sua vida no mundo”, diz.

Uma realidade parecida, mas diferente

A alguns quilômetros da Rua dos Andradas, no bairro Ideal, em Canoas, região metropolitana de Porto Alegre, vive Ryan Capelão, 12 anos. Apesar da diferença de idade em relação a Nicolas, percebe-se entre eles diversas caracte-rísticas em comum, principalmente o

gosto para o videogame, futebol e redes sociais. Talvez fossem amigos, caso se conhecessem. Ryan mora com a avó, Leda Capelão e o pai, Rafael Capelão, e ao falar de suas brincadeiras favo-ritas, cita o futebol, contando sobre seu sonho de ser jogador profissional. Determinado, o aspirante a atacante pratica o esporte em uma praça próxima a sua casa, onde encontra os amigos do bairro. O local se encontra nas margens de uma rótula, onde estão agregados uma quadra de futebol, um parquinho e uma academia pública. As ruas são pouco movimentadas e o espaço foi

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70 n Primeira Impressão n Julho de 2014

recentemente reformado. Ryan des-fila por ali fazendo embaixadinhas e usando uma camiseta do Grêmio, time do coração. A avó Leda diz que o neto sempre brincou na rua, mas salienta que essa permissão possui explicações. “Aqui costumava ser um lugar perigo-so”, conta, citando um assalto ocorrido no local, “mas melhorou muito. Se morasse em um lugar mais perigoso e não houvesse o espaço da praça, seria diferente”, conclui.

Ryan conta que se comunica com os amigos pelo Facebook e que a fer-

ramenta é utilizada para combinar as partidas de futebol. Um exemplo benéfico do uso da internet e de como ela pode auxiliar nas relações interpes-soais. Mas, apesar de poder ser usada para brincar, não pode se tornar um “passatempo”, argumenta o profes-sor Clóvis. “A internet nos apresenta o virtual, mas nenhuma criança vai sentir o peso de uma bola virtual ou a velocidade de uma bola virtual num jogo de futebol virtual. Entrar num campo de futebol e jogar bola é algo que acrescenta muitas informações

para um cérebro em desenvolvimento”, acrescenta.

Exemplos como o de Nicolas e Ryan demonstram que a infância ainda é infância e que não se pode afirmar se ela está melhor ou pior do que antes, apenas diferente. A tecnologia também pode ser uma aliada ao invés de inimiga do convívio social, sendo ferramenta para essas crianças poderem se comuni-car e, por que não, conhecer o mundo. Para brincar na rua, há a necessidade de que existam espaços com estrutura e segurança, algo muitas vezes pouco

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pensado enquanto as cidades crescem desordenadamente. A grande e única diferença entre os exemplos apontados, não passa pelas características da ca-pital gaúcha e Canoas, nem pelo fator econômico, e sim pela estrutura dos locais. Cabe às grandes cidades pensar no fator lazer enquanto crescem os nú-meros de andares, pois, como lembra o professor Clóvis: “Enquanto a criança brinca, ela sorri e demonstra felicidade, porque é algo incomensurável o prazer de brincar, já que ele significa que o ser que brinca está vivo”.

n Estimulado pela avó, Leda, Ryan joga futebol na praça quase todos os dias

impressões derepórter

Foi uma atividade desafiadora, pois nunca havia entrevistado crianças antes. No começo, o garoto mais novo, Nicolas, de 7 anos, ficou um pouco tímido,

resumindo suas respostas a um “sim” ou um “não”. Passando daquele momento que para ele pode ter sido intimidador, consegui conversar e observar como era sua vida de forma muito mais eficaz. Já Ryan, talvez por ser mais velho, com 12 anos, foi um caso mais simples. O menino chegou para a entrevista já sabendo o que iria acontecer. Veio com camiseta do Grêmio e com uma bola de futebol, disposto a responder qualquer pergunta. A mãe e a avó dos entrevistados contribuíram para o desenvolvimento da reportagem, demonstrando preocupação com as crianças. Na verdade, não tenho exercido atividades como repórter já há algum tempo, pois trabalho com assessoria de imprensa. Com esta atividade, relembrei como é difícil desenvolver um texto de jornalismo literário, que flua, seja rico em informações e ao mesmo tempo interessante para o leitor.”

Mais fotos dos garotos Nicolas e Ryan brincando, cada um a sua maneira.

FOTOS ANNE KUNZLER

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Galerias a céu aberto

Projetos existentes na Capital desenvolvem programas culturais realizados na rua

Por Karoline Cardoso. Fotos de Carol Santos e Diego Appel

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CAROL SAN

TOS

Os projetos Cidade Baixa em Alta e Vizinhança têm como objetivo difundir a convivência interpessoal com programação

cultural diversificada. Um tem endereço fixo, o outro é itinerante e pode acontecer em qualquer ponto da cidade.

Boa parte da vida noturna de Porto Alegre está instalada na Cidade Baixa. Esse bairro, no início de sua história, era reduto de italianos, que faziam serviços especializados, e de negros fugidos de seus senhores. O local sempre teve es-paços para a cultura afro como batuque, danças, música e festa, tudo organizado pelos negros. Até hoje a região guarda traços do passado, como a Travessa dos Venezianos, a rua João Alfredo e a Rua da República, que mantém seu ar antigo, seja pelas luminárias ou pelos paralelepípedos.

Há dois anos, o bairro conta com o grupo Cidade Baixa em Alta, que or-ganiza eventos diurnos e, atualmente, reúne milhares de pessoas. Tal organi-zação surgiu depois que a fiscalização da Secretaria Municipal da Produção, Indústria e Comércio (Smic) fechou co-mércios e impôs o horário da meia-noite para que as atividades de qualquer esta-belecimento, que não fosse casa noturna, se encerrassem. O bairro passava por uma onda de crescimento. Qualquer coisa que não fosse comércio alimentício fechava e virava um bar. A consequência foi o aumento do público e a desorgani-zação. Os moradores, insatisfeitos com a bagunça, fizeram uma denúncia à SMIC, assim os donos de bares e restaurantes tiveram prejuízo.

O coordenador do Cidade Baixa em Alta, Tiago Faccio, conta que esse descon-trole fez com que a cerveja fosse vendida a baixo preço e as festas não tivessem hora para acabar. “O bairro cresceu de uma forma descontrolada. A rua João Alfredo, por exemplo, era uma que só tinha samba-rock, e todas as noites um estabelecimento comercial fechava e vi-rava bar. Uma oficina virava bar, tudo virava bar. Com isso, a cerveja era vendida a rodo, e isso fez com que virasse um carnaval”, lembra Faccio.

Num primeiro momento, a inter-venção da SMIC foi vista como um bom negócio pelos moradores, porque a sen-

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sação de tranquilidade era notável. A vida na Cidade Baixa mudou radical-mente. Entretanto, cerca de dois meses depois, a população começou a sentir insegurança de andar nas ruas, já que o tradicional movimento já não existia mais. Os investidores que antes apos-tavam no bairro perderam o interesse, os comerciantes não tinham lucro e os garçons não tinham salário.

Para que o bairro não ruísse de vez, o Cidade Baixa em Alta reuniu inicialmente cinco comerciantes que pagavam uma mensalidade de R$ 150. Hoje o número de associados chega a 60, além da empresa de bebidas Brasil Kirin, que é investidora.

O lucro arrecadado mensalmente é revertido integralmente para as ações coletivas, como o piquenique no pátio do Museu Joaquim José Felizardo. Com isso, os músicos locais começaram a tocar nas esquinas e surgiu a matiné a céu aberto.

Como primeira demanda de uso do dinheiro, o Cidade Baixa em Alta criou uma cartilha de boa convivência, que diz, por exemplo, que o morador que levar seu cachorro para passear pre-cisa juntar as fezes, e o visitante que sai da festa não pode gritar. Sempre pensando nesses dois públicos. A ideia é também promover a cultura durante o dia, num bairro que é conhecido por sua boemia.

Mas assim como existem pessoas que estão dispostas a ajudar, tem aqueles que não querem de jeito nenhum fazer parte disso. Tiago diz que com as pessoas que não querem colaborar não tem o que fazer: “Temos alguns casos em que o morador é intransigente, que pensa que fazer um evento às dez da noite é um desrespeito. Tem também o comerciante que não quer ser mensalista, pois acha uma besteira. Mas assim como existem os caras que deveriam estar morando no meio do mato, existem aqueles que ajudam informan-do, por exemplo, quando a coisa está passando do limite. Praticamente cem por cento da população (moradores e comerciantes) é a favor do Cidade Baixa em Alta”, declara Faccio.

Em seus eventos, o grupo procura pensar no coletivo, trabalhando sempre com a ideia de que a vida social presencial é melhor que a virtual. O resultado é posi-tivo e os eventos estão atraindo cada vez mais pessoas. No último Carnaval, o pú-blico foi tão grande que era praticamente impossível transitar pela rua João Alfredo. Não há investimento de divulgação em mídia tradicional, tudo é feito através das redes sociais, como Facebook e Twitter. O número de réplicas é tão grande que a mídia acaba se pautando.

No dia 3 de maio de 2014 aconteceu na Rua da República a quarta edição do

Bueiros com Arte. A iniciativa surgiu depois que um dos membros do CB em Alta viu que em locais como Londres e São Paulo as bocas de bueiros da rua es-tavam sendo customizadas pelas pessoas. O primeiro passo foi entrar em contato com o grupo de grafiteiros chamados Urbanóide para fechar uma parceria de trabalho. A cada mês, uma rua é escolhida como “palco” para a pintura dos bueiros. Todo mundo pode participar, mesmo se não souber pintar. Os grafiteiros auxiliam a população. A pessoa dá a ideia do que quer fazer, e o artista ajuda a criar a arte. As tintas são da parceria feita com a marca Coral. “Nossa ideia é transformar a rua num museu de arte, deixar ela colorida, já que vivemos num imobiliário urbano tão cinza”, afirma Tiago Faccio.

Enquanto os bueiros ganhavam vida, outro evento acontecia no mesmo ende-reço, a República do Escambo. O objetivo era criar um ambiente de troca ao ar livre e não somente de vendas, como ocorre em um brique tradicional. A ideia é se desfazer de um objeto que não parece mais útil, mas que pode ser para outra pessoa. Nesta primeira edição, a maioria dos ex-positores estava vendendo seus produtos com preços a partir de R$ 2. Havia de tudo um pouco: quadros, bolsas, roupas de boneca, livros de química xerocados e, até mesmo produtos de sex shop.

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Vizinhança itinerantePorto Alegre também conta com ou-

tro projeto que visa à interação pessoal da população. O Vizinhança foi pensado para ocupar espaços normalmente ocio-sos, públicos ou privados, com atividades gratuitas de arte e cultura para todas as idades. A proposta é reunir pessoas em espaços diferentes. Cada edição é reali-zada em um ponto da cidade.

Aline Bueno, uma das criadoras do projeto, conta que a primeira edição, em agosto de 2012, foi feita em conjunto com o lançamento da galeria Vendoarte, da qual é sócia junto com a arquiteta Márcia Braga. O espaço escolhido foi uma casa no bairro Boa Vista, que estava desocupada há mais de dois anos. “Como a Márcia é arquiteta, ela tem muitos contatos com pessoas que têm imóveis e, no caso da primeira edição, alguém tinha uma casa para alugar ou vender. Como o imóvel estava há um tempo parado, ela apro-veitou para fazer as duas coisas”, conta Aline. A galeria continua funcionando no mesmo lugar.

A partir daí, cada edição teve um en-dereço e um espaço diferente, mas todas tinham a mesma estrutura, o mesmo formato, com a limpeza do local, pintura das paredes, oficinas, exposições, shows, palestras, churrascos, almoços, entre ou-tras atividades.

A quarta edição foi em junho de 2013, no bairro Petrópolis, em homenagem aos 31 anos do Clube de Jazz. O endereço não foi escolhido à toa. O evento aconteceu no quintal da casa de Ivone Pacheco, co-nhecida como A Dama do Jazz de Porto Alegre. Aline Bueno define a quarta edi-ção: “A edição foi emocionante”. Ivone Pacheco tem 80 anos e há 30 tem um clube de jazz no porão de casa.” Esse lu-gar é super lendário, pois ninguém sabe exatamente quando ela vai abrir. É só para quem sabe. Não tem fins lucrativos, então cada um leva sua bebida. Abrimos a casa para outros estilos musicas. Foi um evento inusitado para o local, que costu-ma receber os artistas do clube durante à noite”, conta Aline.

No dia 17 de maio aconteceu a sétima edição do Projeto Vizinhança. Desta vez o terreno escolhido era situado no bairro Santa Tereza. Pouco mais de 20 pessoas compareceram ao evento, número que, segundo Aline, é bom para sua intera-ção com todos os presentes. “Assim eu consigo conversar com todos. Quando o número é maior, não dou conta de atender à todos”, relata. Tanto o Cidade Baixa em Alta quanto o Vizinhança, proporcionam a interação pessoal entre a população. Cada evento tem sua particularidade, mas sempre com o objetivo de levar a cultura para a rua.

impressões derepórter

Fazer as duas saídas para a produção da matéria foi muito interessante. Pude ver mundos

diferentes de dois projetos que são ao mesmo tempo muito parecidos e muito diferentes entre si. Os eventos do Cidade Baixa em Alta são mais populares, atraem um número grande de pessoas e têm uma divulgação maior. Cada evento é feito pela região, o que acaba facilitando a participação do público, até mesmo pelo fato de ser um bairro bastante frequentado. Infelizmente, pegamos a pintura dos bueiros no final, tinha somente um menino terminando a pintura. “Se é pra fazer, então que seja bem feito”, nos disse ele. O Projeto Vizinhança é menor, até pelo fato de ser um projeto sem apoio financeiro. Tudo que é organizado provém da colaboração dos participantes. Cada um dá o que pode para que aconteça. Nesta última edição, o dono do terreno emprestado para as intervenções estava presente o tempo inteiro, acompanhando tudo que era feito e deixando as pessoas, principalmente os grafiteiros, bem à vontade. O que dificulta um pouco o acesso (o meu pelo menos) é o fato de cada edição ser realizada em um ponto diferente da cidade. O Vizinhança é um evento mais familiar. Praticamente todos se conhecem. Os “desconhecidos” são as pessoas que vão pela primeira vez. A coisa é tão simples que eu e a fotógrafa fomos de mãos vazias e nos ofereceram até churrasco.”

Fotos das pinturas produzidas nas quatro edições do Bueiros com Arte.

nMandala na esquina da Rua da República com rua João Alfredo recebe os últimos detalhes. Muro de entrada do Projeto Vizinhança vira moldura para as fotos

CAROL SAN

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SÃO

LEOP

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Uma é feita de paralelepípe-dos. A outra é de chão batido. Uma possui calçadas floridas. A outra, caminhos de terra fei-

tos pelos transeuntes. Uma conta com saneamento básico impecável. A outra exibe seu esgoto a céu aberto. Uma tem planejamento. A outra, surgiu da falta dele. O que duas ruas tão distintas podem ter em comum? Ambas não possuem uma identificação oficial. Ambas, não possuem nome.

Engana-se quem pensa que ruas não identificadas existem apenas em periferias de difícil acesso esquecidas pelas autori-dades locais. Não é preciso ir muito longe do centro da cidade de São Leopoldo, a 30 quilômetros de Porto Alegre, para encontrar endereços onde as cartas não chegam, a iluminação pública é precária e os moradores precisam achar diversas formas de provar seu local de residência.

Com uma população de 3.809 ha-bitantes, o Cristo Rei é um dos locais mais lembrados pela população leopol-dense. Berço da Unisinos, o bairro de classe média-alta comporta um quartel do Exército, estação de trem, o Fórum da cidade, retiros espirituais, escolas, restaurantes e muitos outros serviços, sendo que cerca de 60% da área do bairro é residencial. É no meio dessa localida-de de infraestrutura privilegiada que se esconde a rua Cristóvão de Mendonça, ou Paulo Sérgio de Gusmão, ou apenas “Rua 2”, nos mapas gerados via satélite.

Sem nenhuma placa de identificação visível, a rua de paralelepípedos é situa-da ao lado de um importante centro de espiritualidade coordenado pelos padres

e irmãos jesuítas da Província do Brasil Meridional. Belíssimas casas compõem o cenário de uma vizinhança tranquila, onde as famílias se reúnem ao final da tarde para tomar chimarrão. Sentada em frente a sua casa, na companhia de seus cachorros, Nair Pegoraro Gomes responde prontamente quando questionada sobre o nome da rua: “Olha, esta rua aqui é complicada, ela possui dois nomes, mas ninguém acha. Tu estás perdida?”.

Nair mora na “Rua 2” há 15 anos. “No início, a rua tinha o nome de Cristóvão de Mendonça, mas há cer-ca de cinco anos a prefeitura mudou o nome para Paulo Sérgio de Gusmão. Isso nos deu uma confusão danada, porque agora nós nunca sabemos que endereço fornecer. Alguns lugares onde eu já tinha cadastro com o nome antigo permanecem com este nome e nos novos lugares eu forneço o novo nome da rua, porque se procurarem aqui pelo nome antigo, não acham. Na verdade nem pelo novo. Ninguém acha nada”, diz Nair. A mudança não foi oficializada, de modo que não consta nos registros dos Correios e tampouco aparece nos mapas quando procurada. Em virtude desta ambiguidade, seguidamente os moradores enfrentam dificuldades em receber contas ou até mesmo entregas de lojas.

“Se tu comprares medicamentos, móveis para casa, eletrodomésticos, tu precisas ir até a esquina da rua para ser encontrado. Minha filha comprou um quarto para minha neta e os entregadores levaram duas horas e meia procurando a rua. Eu tive que pedir para ele me esperar

no cemitério (duas quadras abaixo da Rua 2) para que eu pudesse acompanhá-lo até minha casa”, relata.

Nair pede licença, se levanta e vai buscar dois envelopes. Um deles, a conta do celular, foi enviada ao endereço anti-go. A outra, uma propaganda de loja, ao endereço novo.

Os Correios só tem acesso à rua por-que os carteiros que trabalham nesta região já o fazem há bastante tempo. “Faz dois anos que estamos com o mesmo carteiro, mas, quando tem gente nova, a conta sempre vai parar em outras casas. A conta de água é a mais problemáti-ca, as vezes temos que ir até o Serviço Municipal de Água e Esgotos (SEMAE)

Incógnitas geográficas

As ruas que compõem a cartografia urbana, mas não estão no mapa

Por Jessica Pedroso. Fotos de Fabricia Bogoni e Luísa Boéssio

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buscar a segunda via, pois a primeira, que vem pelos Correios, acaba se perdendo pelo caminho”, afirma. O marido de Nair, que possui uma empresa na mesma rua, também passa por dificuldades quando precisa dar o endereço. Neste caso, ele usa o Código de Endereço Postal (CEP) da rua Cristóvão de Mendonça. Nos registros da Secretaria de Habitação do município de São Leopoldo, a rua continua sem nome.

A rua do descasoNão muito longe dali, é possível encontrar

outra rua inexistente nos mapas e esquecida pelo governo local. Diferente da primeira, esta mais se parece um caminho perdido entre

n Nair mora na Rua 2, ou Cristóvão de Mendonça, ou Paulo Sérgio Gusmão. Com tantos nomes, é difícil encontrar sua casa

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as casas que surgiram ao seu redor. Existe um escoamento de esgoto a céu aberto, um grande buraco com cerca de cinco metros de profundidade, um perigo iminente para alguém desatento. Torna-se difícil de entender como uma via de acesso a inúmeras famílias encontra-se nesse estado.

Fabiano Haubert, morador do bairro Duque de Caxias há 44 anos, e presiden-te da associação de moradores, conta que, no princípio, a “Rua Nova”, como é chamada pelos moradores, era ape-nas uma travessa de pedestres: “Ali era apenas uma passagem, e os terrenos ao redor pertenciam a uma só família. Eles começaram a vendê-los, e as pessoas foram loteando. Com isto, a passagem de pedestres deu espaço a uma rua, que até

hoje segue sem regularização”, explica. Em 2009, os moradores conseguiram a aprovação de uma demanda votada pelo Orçamento Participativo para a realização do calçamento e rede de esgoto. Até hoje não ocorreu.

“O governo prometeu a obra para maio de 2014, vamos aguardar. Fora o calçamento, ainda existe a questão do esgoto que está a céu aberto”, desabafa Fabiano. O esgoto escoa diretamente no rio, sem qualquer tratamento prévio. A situação se torna caótica devido ao fato de que na mesma rua foi constru-ído um loteamento de condomínios do programa Minha Casa Minha Vida. A rede de escoamento é visivelmente precária, sem contar todo o restante

da infraestrutura, como iluminação pública e calçamento.

Segundo a Secretaria de Habitação da prefeitura de São Leopoldo, o pro-cesso para nomear a rua é muito sim-ples: basta que a população apresente o interesse à Câmara de Vereadores e, a partir de um projeto de lei, a rua é aprovada e inserida nos registros e entidades oficiais. Os moradores já se mobilizaram: “Nós fomos à Câmara, e a informação foi que, se nomearmos a rua fazendo uma homenagem a al-guém que já faleceu, temos que fazer todo um histórico sobre aquela pessoa. Precisamos saber quando ela nasceu, que papel ela desempenhou na comu-nidade, quem era esta pessoa. Uma vez

n Fabiano, presidente da Associação dos Moradores do Bairro Duque de Caxias, aponta as necessidades da “Rua Nova”. Os moradores aguardam a concretização das promessas do governo local

FOTOS LUÍSA BOÉSSIO

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que isto é feito, nós apresentamos em uma sessão do Legislativo e o nome da rua é aprovado. A Prefeitura manda esta informação para os Correios, que criam um CEP”, Fabiano descreve os procedimentos.

Não fossem os carteiros que já tra-balham no bairro há anos, as correspon-dências jamais chegariam às residências. Ao fazer compras em lojas, a entrega é feita mediante a explicação de pontos de referência, isso quando o entregador consegue localizar desta forma.

Paulo Juliano, morador da Rua Nova, comenta a dificuldade de explicar onde mora. “Sempre tenho que entrar no Google Maps e fazer um grande círculo vermelho para localizar a minha rua no

mapa quando quero explicar para alguém. Abrir conta em loja então, nem se fala! O que eu faço é dar o nome da rua aqui de cima, a General Osório. Não acho certo uma rua com tantas pessoas morando, praticamente no centro da cidade, não ter sequer um nome. Sem contar que a rua é feia, olha só”, argumenta Paulo, mos-trando amplamente o lugar. “Eu queria que fosse mais arrumado, e não só eu, como os outros moradores também. Esse esgoto aberto aí é uma vergonha, olha lá!”. Paulo aponta para uma toca de roedores que andam tranquilamente pelo local. “Já faz tempo que está assim. Mas ainda bem que esse ano tem eleição né? Sei que não serão eleições em nível municipal, mas não perco a esperança!”, conclui.

impressões derepórter

Identificar-se com o meio em que se vive é fundamental para o bem estar de

qualquer pessoa. Tão importante quanto nossas características que nos tornam indivíduos dentro de uma sociedade, ter uma residência fixa com endereço completo nos faz cidadãos, moradores oficiais de um determinado local. Fazer esta reportagem desmistificou para mim a imagem de que a rua sem nome é obrigatoriamente uma rua ilegal. Encontrei duas ruas que abrigam dezenas de famílias em áreas centrais da cidade, ruas as quais as pessoas compraram seus terrenos para começar a construir uma vida. O nome da rua traz consigo uma série de benefícios que o cidadão deve e precisa ter. Mais do que trazer saneamento básico, calçamento, iluminação pública, ter um endereço completo traz a dignidade de receber correspondência, poder abrir um cadastro, receber entregas, poder dizer para os familiares, sem confusões, onde fica seu lar. Morar em um lugar identificado é não fazer parte de uma estatística clandestina.”

Vídeo com imagens das ruas e depoimentos de moradores.

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80 n Primeira Impressão n Julho de 2014

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Um encontro humano itineranteConsultório na Rua

é mecanismo de acesso à cidadania

para população sem domicílio Por Angélica Dias Pinheiro

Fotos de Ana Carolina Eidam e Caroline Paiva

Para quem não desvia o olhar e encara a realidade, é fácil notar a quantidade de pessoas que mo-ram pelas ruas de Porto Alegre.

Com barraquinhas de papelão sob os viadutos ou sobre colchões improvisa-dos debaixo de marquises pelo centro, os moradores de rua estão presentes na vida da cidade e formam uma população totalmente diversa e estranha aos olhos “domesticados” da maioria de nós. Por isso é ignorada. Como um buraco, os cantos da cidade “escondem” pessoas que não se enquadraram ou decidiram não aceitar os padrões vigentes, seja pela orientação sexual, por problemas psico-

lógicos, mudanças de perspectivas em relação à própria vida, falência financeira, briga familiar, histórico penitenciário, entre outras razões.

Para atender a esta demanda, por muito tempo ignorada pelo Estado, diaria-mente as Kombis coloridas do Consultório na Rua percorrem a cidade, levando saúde e promovendo o vínculo da população de rua com a Rede de Atenção à Saúde. Formada por uma equipe multidiscipli-nar, os profissionais realizam consultas médicas, orientam as pessoas sobre a retirada de documentação, encaminham para internação quando solicitado, fazem testes rápidos de HIV, hepatite, tuber-

n Os profissionais do Consultório

na Rua conferem exames, vacinas e

encaminhamentos médicos

CAROLINE PAIVA

ANA CAROLINA EIDAM

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Primeira Impressão n Julho de 2014 n 81

Um encontro humano itineranteculose, diabetes e ainda acompanham o tratamento destas mesmas doenças.

“Existe um mito em torno da popula-ção de rua”, afirma Vera Celina Cândido de Farias, assistente social do Consultório na Rua do Grupo Hospitalar Conceição (GHC). “A população em geral enxerga o morador de rua como mendigo, dro-gado, vagabundo, e transpor esse mito é um desafio para quem trabalha com tal população, porque as pessoas em geral costumam esperar que o serviço público realize uma higienização da rua, que tire ‘o mendigo’ de perto das suas casas, do seu local de trabalho. Mas não é esse o trabalho do Consultório na Rua”, com-

pleta Vera. O objetivo do serviço é levar saúde à população, esteja ela onde estiver.

No intuito de cumprir esse ob-jetivo, o Ministério da Saúde criou o Consultório de Rua como uma das estratégias do Plano Emergencial de Ampliação de Acesso ao Tratamento e Prevenção em Álcool e outras Drogas no Sistema Único de Saúde (PEAD), a partir da experiência do Banco de Rua, desenvolvido em Salvador, na Bahia. Em 2011, por meio das portarias mi-nisteriais 122 e 133, o serviço passou a fazer parte da Atenção Básica e mudou o nome para Consultório na Rua (CR), que consiste em uma equipe itinerante

para atenção integral à saúde da popu-lação em situação de rua, que vai além da saúde mental, contando com equipes multidisciplinares.

Maria de Lourdes Marques dos Santos é uma das usuárias dos serviços do CR. Ela conta que nunca teve felicidade em sua vida. “Eu não fui feliz em nada, sabe? Caí muito nessa vida. Aí eu morava no trabalho, né? E quando eu não tive mais trabalho, eu fui para a rua e não tinha onde morar”, conta Maria de Lourdes. Ela vive, quando pode, nos albergues, quando não há vagas, fica na rua mesmo. Com 63 anos de idade, ela é um exemplo contrário da imagem típica e preconceituosa que se faz

CAROLINE PAIVA

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n Os atendimentos acontecem tanto na rua quanto na

sede do consultório por demanda dos

usuários

do morador de rua, não faz uso de drogas, não é jovem, não escolheu ficar na rua.

Apesar das dificuldades, Maria de Lourdes se diz saudável. “Às vezes eu recebo atendimento na rua, às vezes eu venho até aqui (unidade de saúde) para fazer exames de sangue, pré-câncer…”, comenta. Usuária do Consultório na Rua do Centro, Maria de Lourdes está contente com atendimento recebido. “Eles são muito atenciosos e eu sempre fui muito bem tratada, até pelo doutor, que sempre explica direitinho o que eu tenho que fazer e onde eu tenho que ir”, revela.

No Rio Grande do Sul, diversos municípios contam com o serviço, que ainda não é política obrigatória, mas que oferece um bom financiamento aos municípios que aderem, desde que estejam dentro do critério populacional mínimo para implementação das equi-pes de CR. Em Porto Alegre existem

duas equipes, uma responsável pela região do Centro e outra pela Zona Norte. De acordo com a enfermeira Carla Félix dos Santos, do CR do GHC, a equipe realiza cerca de 300 atendi-mentos por mês.

“A Rua exige que o SUS funcione em Rede”

O atendimento à população de rua exige um olhar integral do sujeito, da sua condição física, mental, cidadã. Mais do que curar a doença ou impor verdades sobre como a pessoa deve tocar sua vida, o Consultório na Rua busca ajudar a pessoa a viver melhor na situação em que está. “Não é o objetivo tirar a pessoa da rua, mas melhorar a vida dela. Se for o desejo sair da situação de rua, nós ajudaremos. Se não for, nós ajudaremos também, porque o que a equipe faz é facilitar o acesso aos serviços”, afirma a assistente social Vera.

Uma das principais dificuldades re-latadas por ambas as equipes é o funcio-namento da Rede de Atenção à Saúde. A equipe sai à rua e volta cheia de de-mandas, tanto do SUS como do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). São demandas de leitos, de internação para desintoxicação química solicitada pelo usuário, de albergue, de encaminhamen-tos para benefícios sociais, entre outros serviços. “Faltam vagas, faltam centros de convivência, falta entendimento do serviço quanto à ausência de compro-vante de residência e mesmo identidade muitas vezes. Falta uma retaguarda da rede mesmo para as demandas identi-ficadas”, relata Carla.

Outra dificuldade é a localização das pessoas, pois o serviço de limpeza pública remove a população em situação de rua do espaço público, em um verdadeiro serviço de “higienização da cidade”. É o que relata o agente de saúde Odair

CAROLINE PAIVA CAROLINE PAIVA

ANA CAROLINA EIDAM

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Primeira Impressão n Julho de 2014 n 83

Não somos lixo

Poema de Carlos Eduardo (Cadu), morador de rua em Salvador, extraído do Manual Sobre o Cuidado à Saúde Junto à População em Situação de Rua, 2012

Não somos lixo. Não somos lixo e nem bicho. Somos humanos. Se na rua estamos é porque nos desencontramos. Não somos bicho e nem lixo. Nós somos anjos, não somos o mal. Nós somos arcanjos no juízo final. Nós pensamos e agimos, calamos e gritamos. Ouvimos o silêncio cortante dos que afirmam serem santos. Não somos lixo. Será que temos alegria? Às vezes sim...Temos com certeza o pranto, a embriaguez,A lucidez dos sonhos da filosofia.Não somos profanos, somos humanos.Somos filósofos que escrevemSuas memórias nos universos diversos urbanos. A selva capitalista joga seus chacais sobre nós. Não somos bicho nem lixo, temos voz. Por dentro da caótica selva, somos vistos como fantasmas. Existem aqueles que se assustam. Não somos mortos, estamos vivos. Andamos em labirintos. Depende de nossos instintos. Somos humanos nas ruas, não somos lixo.

impressões derepórter

Fazer a reportagem sobre o Cosultório na Rua era um desejo desde que eu

conheci o programa, em julho do ano passado, ao participar do Projeto Vivências e Estágios na Realidade do Sistema Único de Saúde - VER-SUS em Porto Alegre. A participação no projeto possibilitou uma nova visão acerca da saúde, da população de rua e também da comunicação. Quando eu soube que o tema da revista seria “rua”, o programa do Ministério da Saúde foi a primeira coisa que me veio à mente como proposta de pauta. Ao partir para as entrevistas e saídas com os profissionais para atendimento, minha visão foi um pouco diferente daquela do VER-SUS. Mais do que mostrar o que era o trabalho, era notória a vontade de fazer entender a importância daquela atividade, com o cuidado de não me deixar sair dali com uma visão deturpada do trabalho, pois era uma chance de dar visibilidade àquela população atendida pelo Consultório na Rua. Esta reportagem me deixou feliz em poder mostrar um outro lado da população de rua estigmatizada e da função do SUS e do poder público como um todo em relação a ela. Isso, para mim, é jornalismo. E é por isso que estou me formando.”

Uma apresentação em Prezi com o histórico e outras imagens do Consultório na Rua.

Luiz Barbosa. “Num dia atendemos a pessoa em um lugar e no outro não sa-bemos onde encontrá-la. Muitas pessoas estão saindo do centro em direção aos bairros”, explica.

Frustração e diversidade

Trabalhar com a população de rua é uma escolha da maioria dos profissionais do Consultório na Rua. Para o educador físico do GHC, Fernando Bilibio, trabalhar com essas pessoas tem a peculiaridade de sempre estar no limite, o próprio limite. “Habitamos os limites das nossas próprias certezas. Diversas vezes nos questionamos e se não conseguimos as respostas, re-pensamos. Acho isso saudável, enquanto relação humana. É uma oportunidade de aprendizagem com a possibilidade de ajudar as pessoas. É bem legal”, conta.

Segundo a enfermeira Alexandra Angélica Marques, do CR do Centro,

na rua tem de tudo, não existe rótulo único. “Precisamos sair para a aborda-gem na rua de mente aberta, porque nem sempre o que a gente identifica como necessidade é o que eles querem o que eles necessitam. Estamos ali para amenizar as dores do corpo e também da alma”, afirma.

Já para a médica argentina Nora Graciela Sarachaga, que veio parar no Consultório na Rua por meio do Programa Mais Médicos, há dois meses, o maior desafio é lidar com a frustração de ver seu trabalho nem sempre funcionar. “Eu trabalhava numa emergência, que era uma situação muito diferente. A frustração é grande aqui, porque às vezes eles não seguem as orientações, às vezes somem, mas quando descobrimos pessoas que vêm até nós para contar que saíram da rua, que estão felizes, livres das drogas, tudo vale à pena. E é por isso que a gente trabalha com gosto”, completa.

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84 n Primeira Impressão n Julho de 2014

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Primeira Impressão n Julho de 2014 n 85

Sempre emtrânsito

O repórter Mateus Ferraz, responsável por cobrir a BR-116, fala da

importância da rua para o jornalismoPor Pedro Kessler. Fotos de Julian Kober

Mateus Ferraz é jornalista formado pela Unisinos. Repórter de trânsito da Rádio Gaúcha, Mateus co-

bre principalmente a BR-116. Apaixonado por jornalismo desde criança, ele salienta que a rua será futuramente a redação do jornalista. Para ele, já é.

Primeira Impressão – Mateus, como você escolheu o Jornalismo?Mateus Ferraz – Desde criança eu já curtia isso de contar histórias. O que eu mais me lembro é de, quando peque-no, ver os repórteres que contavam as histórias. Eu sempre quis o jornalismo, pois sempre gostei das transmissões es-portivas. Imaginava que um dia seria repórter de campo e imitava narradores e repórteres. Só que, quando comecei na faculdade, acabei indo para o hard news, e daí não adianta. Depois que se chega ao hard news e vê o que ele é, se o amor pelo esporte não é 100%, tu acaba mudando.

PI – Qual é a tua trajetória no Jornalismo?Mateus – Eu comecei trabalhando na indústria, e isso acabou me afastando do jornalismo, quando tinha uns 17 anos. Então cheguei a fazer alguns semestres de Administração e de Engenharia Mecânica. Aí um dia pensei: “Eu não vou me dar bem e também não gosto dessas áreas. Vou para o Jornalismo”. Saí da empresa em que estava e fui fazer estágio. Comecei na Secretaria de Comunicação de Gravataí, cumpri os dois anos de estágio e fui para

a Assembleia Legislativa, trabalhar com o deputado Adão Villaverde. Ainda no pri-meiro ano na Assembleia, pensei: “Estou no meio da faculdade e ainda estou longe dos veículos”. Queria trabalhar com os ve-ículos, principalmente com o rádio. Então mandei um currículo para a Bandeirantes, liguei e marquei uma entrevista. Fui fazer a entrevista e me disseram o seguinte: “Tenho duas coisas para te dizer. Uma é que é muita responsabilidade e a outra é que o salário é baixo.” Não pensei duas vezes e aceitei.

PI – Foi fácil se manter?Mateus – Em um ano eu não conseguia mais me manter e então voltei para a Assembleia Legislativa. Cumpri um ano de estágio lá e me ofereceram um “freela” na Bandeirantes para ganhar, na época, metade do que eu recebia na Assembleia. Novamente não pensei duas vezes e voltei para Band. Logo em seguida, um colega, Paulo Rocha, foi para Gaúcha e eu fui para vaga dele. Fui contratado. Um ano depois eu acabei saindo da Band e fui para a Rádio Web. Lá eu ajudei a criar uma Rádio Web do Ministério Público. Quando eu fechei três meses na Rádio Web me chamaram para fazer os testes na Gaúcha. Passei um mês fazendo testes, entrevistas e provas. Então, em março de 2013, eu entrei na emissora.

PI – Tu começaste na Gaúcha já trabalhando rua ou produzindo da redação?Mateus – No primeiro dia eu já fui fazer rua. Comecei como repórter de Geral.

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Desde que eu cheguei, não pararam de ocorrer mudanças. Quando cheguei, o Daniel Scola estava saindo da apresenta-ção do Gaúcha Hoje e o Jocimar Farina iria assumir. E nisso a BR-116, que o Jocimar cobria, ficou vaga. Então me perguntaram se eu queria ficar com a BR-116. Eu entraria às 6h. Aceitei na hora. Eu ouvia o Jocimar e era fã dele. Eu tinha já uns três meses de Gaúcha nesse momento. Com algumas mudanças que estavam ocorrendo na emissora, ficou também uma lacuna na apresentação do Correspondente Ipiranga. Abriram uma nova seleção e fui selecionado. Hoje eu sou o quinto na linha de sucessão. No final de semana em que falta alguém, eu assumo. A última novidade é que eu devo lançar um blog só com notícias da região metropolitana, linkado à Rádio Gaúcha, em que serei o editor. A ideia é ampliar o foco na região. Foram um ano e dois meses de muitas mudanças desde que estou na rádio.

PI – Para você, qual a importância da rua para o jornalismo?Mateus – A rua é muito importante e acredito que futuramente ela vai ser não só o campo de pautas do jornalismo, mas também a redação dele. Hoje em dia tu volta para redação mais como um costu-me do que algo que é realmente preciso. Com um smartphone, se eu saio às 6h, eu posso voltar no final do turno e entregar o telefone e ir embora, pois eu consigo fazer tudo com ele. Na Gaúcha a gente não

faz só o rádio. Fazemos vídeo, foto, texto para o site e postamos nas redes sociais.

PI – Qual a diferença, na prática, de o repórter estar na rua?Mateus – Estar na rua é importante. Por exemplo, acontece um acidente onde eu estou. A primeira coisa que eu faço é tirar uma foto e postar no Twitter. Faço três ou quatro frases ou ligo para a redação e passo as informações para postarem no site da rádio. Depois, se for algo visual, o que um acidente de trânsito costuma ser, eu faço um vídeo, edito pelo celular, pois alguns aplicativos possibilitam fazer isso, colocando caracteres, vinheta de abertura e fechamento, e já mando o vídeo pronto por e-mail. O que às vezes é um problema, pois nem todo lugar tem um bom sinal de internet. Quando eu estou mais tran-quilo, ligo para a redação passando mais informações ou escrevo no próprio celular. Concluindo, eu fiz tudo que eu faria na redação na rua. Cinco minutos antes do programa, se tem algum problema na ligação, eu gravo o áudio como se fosse fazer ao vivo e mando. Em um minuto

ele recebe, e é como se eu estivesse na redação. O uso do smartphone é fantástico em todos os sentidos. Tudo que ele faz, faz bem. Sendo assim, ele tira a necessidade de se ter uma redação física. Então a rua é tudo para o repórter.

PI – Em relação à cobertura do pró-prio fato, qual a importância de se estar na rua ?Mateus – O fato de estar na rua te pos-sibilita enxergar os fatos. Tu estás na avenida Farrapos e percebe que tem um buraco na rua. Aí, no outro dia, tu estás na Mauá e percebe outro buraco. Aí tu te lembras que viu um buraco na Lucas de Oliveira. Nisso, já têm uma pauta. Ou se estás em algum lugar e flagra o arromba-mento de um carro. Então tu começas a conversar com as pessoas e constata que isso é frequente. Isso só se vai saber se estiver na rua. Outro ponto é o componen-te da sorte. Tu estar na rua e presenciar um acontecimento. Mas aí entra o fato de você estar disponível para essa sorte. Se tu estiver na rua, pode acontecer de não ver nada. Na redação é certo que não verá nada. O repórter tem que usar a rua como a sua redação cada vez mais.

PI – Nas tuas pautas, na rua, têm alguma situação que tenha te marcado?Mateus – Um dia eu saí da rádio, depois de uma chuva que durou a noite inteira, e, chegando entre Esteio e Sapucaia do Sul, o trânsito parou. Geralmente eu

“A rua é tudo para o

repórter”

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vou até Novo Hamburgo e volto para Porto Alegre, só que estava escuro ain-da, chovendo muito e o trânsito parado. Daí eu saí do carro, caminhei uns 60 metros e vi um rio na BR-116. Algo que eu nunca tinha visto. Tinha uns 500 metros abaixo d’água, com um metro de profundidade. Aí foi amanhecendo e conseguimos ver que tinha um ônibus com trabalhadores que estavam ilhados no meio desse alagamento. Com aqui-lo se fez muito importante o rádio e o fato de estar fora da redação naquele momento. Ali não só estava chovendo como encontramos um aguaceiro. Eu tive que dar a dimensão disso no rádio. Foi tanta chuva que eu acho que afetou o sinal de telefonia, porque eu não con-seguia mandar foto, vídeo e nem nada, a não ser pelo WhatsApp. Eu mandava os vídeos e fotos para a minha editora, e o pessoal do online baixava e botava no site. Era uma logística tremenda para cobrir e só nós estávamos lá. Chegamos no começo e ninguém mais conseguiu chegar. Ali eu tinha que passar todo o ineditismo da situação. Na hora do res-gate das pessoas que estavam no ônibus, foi algo fantástico. Narramos ao vivo o resgate. Não que as pessoas estivessem correndo risco de morte, mas a situação era muito tensa.

PI – Então a rua é um elemento essencial para o jornalismo?Mateus – Claro que sim. Grande parte das coisas que o repórter faz da rua ele

pode fazer da redação. Mas só vai ser o mesmo resultado se ele quiser, porque, se um cara me ligar agora e me perguntar o que esta acontecendo, eu vou contar pra ele, mas ele não terá a noção exata ou igual a minha. Então, se tu estás na rua tem que aproveitar isso. Eu fui a Três Passos cobrir o caso Bernardo. Eu cheguei na noite do primeiro dia, ou seja, tudo que tinha que acontecer naquele dia já tinha acontecido. Chegando à noite, com vários programas para gravar, co-mecei a ouvir as pessoas e observá-las, tentando transmitir pelo rádio aquele sentimento que havia na cidade. E isso que faz a diferença entre o repórter que está na rua em relação ao da redação. Eu posso, de Porto Alegre, ligar para lá e pegar relatos pelo telefone e colocar no ar. Sairia uma matéria da mesma forma. Mas estando lá eu vejo, por exemplo, exatamente a hora em que uma família chega e cola um cartaz ou acende uma vela. Eu consigo captar isso com fotos. Então, se eu estou lá, tenho que aprovei-tar essa situação e ser o mais descritivo possível. O repórter assume o espírito do local. Então é normal tu ouvires um repórter transmitindo um fato de forma mais exaltada ou mais calma, mais alto ou mais baixo. Isso faz com que o ouvinte tenha uma melhor noção das coisas, e só o fato de estar na rua propicia isso. E nisso a rua é vital, pois só ali tu podes narrar o fato de uma forma em que o ouvinte se sinta o mais próximo possível do que está acontecendo.

impressões derepórter

Cobrindo essa pauta, me senti mais em uma conversa sobre jornalismo do que fazendo

uma entrevista. Pude enxergar nossa profissão de uma forma nova. A rua é algo que faz do jornalismo algo incrível. As histórias, os fatos e as notícias estão na rua. E hoje, com a tecnologia e os smartphones, é possível deixar de lado a redação e partir para a busca das histórias de onde elas vêm. É quase redundante o que eu digo aqui, pois minhas ideias se assemelham às do Mateus, meu entrevistado. Eu também acho que o fato de se estar na rua não nos garante presenciar um fato, porém na redação não vemos nada. A redação às vezes nos prende, nos limita. Temos que enxergar o mundo e só podemos enxergá-lo fora da redação, na rua. O jornalismo está mudando, e a rua faz parte dessa mudança.”

Vídeo com depoimentos de alunos de Jornalismo sobre a importância da rua para a profissão.

“A rua é vital, pois só ali tu podes narrar o fato de uma

forma em que o ouvinte se sinta o mais próximo

possível do que está acontecendo”

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Na vitrineEntre a rua e o prédio, os porteiros da Rua da Praia, uma das mais

conhecidas da Capital, precisam ser educados, organizados e atentos a tudo o que acontece dentro e fora do seu local de trabalho

Por Marcelo Grisa. Fotos de Joane Garcia

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Existem guardiões do limiar entre a rua e os colossos de metal, concreto e tijolos que se erguem em torno dos cidadãos apressados das gran-

des cidades: os porteiros. Esses funcionários vigilantes mantêm a tarefa de cuidar da segurança da entrada dos edifícios, além de garantir que os visitantes consigam chegar às salas ou apartamentos que desejam.

Em ruas muito movimentadas, esses homens e mulheres tem um papel ainda mais importante, como na Rua dos Andradas, também conhecida como Rua da Praia, no Centro Histórico de Porto Alegre. A maior parte dos frequentadores do local acaba

precisando dos serviços dos profissionais, que fazem do relacionamento com quem passeia pelas calçadas a sua rotina diária.

Mesmo assim, alguns porteiros estão quase escondidos de quem está passan-do, como a equipe que guarda o hall do Condomínio Edifício Santa Cruz, locali-zado no número 1234 da Andradas. À tar-de, no endereço principal, quem sempre atende os visitantes é a dupla de nomes compostos Paulo Ricardo Mandagaran, 47 anos, e Carlos Alberto Francisco, 67. Ambos têm experiência no trato com o público, mantendo o semblante tranquilo e a fala mansa.

Os bons termosO mais velho conhece o local como a sua

própria casa: Beto, como é conhecido (até no crachá), é um senhor de fala calma, que está há 40 anos na portaria do Santa Cruz, um prédio de 31 andares e dois subsolos, que abriga de residências a agências de emprego. Já Paulo Ricardo acompanha o parceiro há sete anos, e ambos se parecem na postura com o público, já que Paulo atuou por quase oito anos ininterruptos na rede McDonalds, de atendente a gerente de loja.

“A gente precisa usar sempre os bons termos, ser educado com as pessoas, mesmo que elas não sejam”, explica Beto, ao passo

n Paulo Ricardo e Carlos Alberto cuidam do Edifício Santa Cruz, bem próximo de onde trabalha Adão. Os três presenciam diariamente o cotidiano de uma das ruas mais frequentadas de Porto Alegre

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que o colega, com fala rápida e concisa, lembra da responsabilidade deles com a imagem do edifício. “Aqui é a vitrine do prédio. Se algum problema for acontecer, bate primeiro na portaria”, aponta Paulo Ricardo, para quem a experiência com fast food ensinou o que precisava para manter esses mesmos bons termos.

A experiência de Paulo Ricardo com gestão de pessoas fez com que ele também se tornasse responsável pelo treinamento dos novos colegas que integram a equipe de 12 pessoas que cuida de duas portarias - além da Andradas, existe outra saída na rua Sete de Setembro, 1069.

Segurança a partir do respeito

Não muito longe dali fica outro pré-dio, que está situado ao mesmo tempo em três ruas: o Comercial SulAmérica, cuja entrada esta localizada na Travessa Acelino de Carvalho, 10, também tem endereços na Andradas e na avenida Borges de Medeiros. Lá, Adão Rosa da Silva, de 60 anos, atende frequentadores, transeuntes e até parentes, quando estes aparecem. “Aqui no Centro é tudo próxi-mo, então de vez em quando eu recebo umas visitas. É gostoso ter a companhia da família também.”

Adão, que trabalha há 12 anos como porteiro, e há cinco no SulAmérica, entende que esse é um trabalho intenso com as dife-rentes falas que vêm da rua, passando pelo seu local de trabalho e se perdendo prédio adentro. “Tem de tudo por aqui: prostituta, trabalhador, assaltante, empresário… E cada um tem sua linguagem.”

Apesar disso, o tratamento do sorridente senhor é sempre cordial, não importa a quem. A cada um cabe uma espécie de “ami-zade”, uma forma de tratar bem. “Quando passa o cara que tem má intenção, que é delinquente, eu mesmo assim cumprimento, porque, dessa forma, eu dou o recado pra ele,

Fotos dos prédios onde trabalham os personagens da matéria.

n Keronlai e Andréia gostam de sua profissão, mas querem alçar voos maiores

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de que sei o que ele quer fazer, que aqui tá cuidado. É uma forma até de impedir que ele aborde o frequentador do prédio, e transmitir uma segurança a partir do respeito”, explica Adão, com um sorriso pelo canto da boca e olhar mais estreito.

Esse olhar de Adão permite que ele mantenha todo o bom humor que lhe é característico, já que parece ser difícil vê-lo sem um sorriso no rosto a todo momento. “Ah, e essas coisas são fáceis de lidar: se tu vê que o cara vai ser assaltado, chama ele e diz: ‘vai lá pra cima’”, referindo-se aos andares superiores ao térreo. A entrada no prédio acaba sendo a forma utilizada pelos porteiros para proteger os transeuntes que podem ser vítimas da violência.

“O cotidiano atual é violento”, afirma. Segundo o porteiro do SulAmérica, quem trabalha numa portaria vê a cidade nua a crua. “A gente aprende a qualificar melhor os outros, sabe? Vê quanta gente boa e quanta gente ruim tem no mundo.” Tão violento que ele até classifica o que acontece: a predomi-nância é de assaltos, com poucos casos mais graves ou que resultem em morte.

E quando acontece algo grave durante o expediente? O conhecimento entre os porteiros é a chave, segundo Adão. “Quando a gente sente o cheiro do perigo na volta, usamos a nossa linguagem, do pessoal de portaria, pra avisar e deixar todo mundo esperto”, comenta, mantendo a aura de mistério sobre a dita forma de comunicação.

Essa forma de comunicação entre os porteiros é percebida por Keronlai Fonseca, de 22 anos, que trabalha na recepção do Edifício Sloper, um prédio comercial de seis andares, localizado a menos de 100 metros da portaria de Adão, no número 1342 da Rua dos Andradas. Entretanto, a convivência com os colegas de profissão raramente passa disso. “Até conheço os outros porteiros, mas não de nome. Eles passam aí, dão um oi, mas são distantes.”

Keronlai atua no Sloper há apenas dois anos, depois de três anos trabalhando na limpeza do mesmo prédio. A oportunidade veio após o afastamento da mãe, Glaci, que, depois de quatro anos na portaria, precisou afastar-se devido a uma doença. Ela também vê a violência (o pior que já viu, relata, foi um corpo de alguém assassinado na esquina da Andradas com a Acelino de Carvalho), mas se mantém muito tranquila no trabalho, folheando jornais e revistas em meio a um

atendimento e outro. “A gente olha para o lado e continua. Claro, às vezes tem assalto, é estressante, não dá pra sair daqui. Mas tem muita coisa bonita pra se ver”, complementa.

Ouvindo músicas de índios, performan-ces, violões e pessoas, a jovem de cerca de um metro e meio de altura se diverte na jornada de trabalho. A quantidade de ma-nifestações culturais permite a ela ver cores diferentes na realidade que a cerca. “É tudo muito interessante: a música, o teatro, um mundo de coisas legais no meio desse mo-vimento”, destaca. Uma experiência dessas, entre tantas, a marcou positivamente: uma performance com dois atores pendurados na fechada do próprio prédio. “Eles falavam sobre amor, balançavam no ar, e era muito lindo! Eu nunca vou esquecer essa”, assegura.

A portaria comopassagem

Apesar da boa experiência que vem ten-do no Edifício Sloper, Keronlai acredita que a vida como porteira é apenas uma fase da sua vida profissional, que ainda está começando: ela faz um curso técnico de Fotografia, em Guaíba, onde mora e ajuda a mãe doente.

Não é só ela que deseja alcançar voos maiores. A porteira Andréia de Castro Lopes, 35 anos, trabalha há 13 no Edifício Langer, na Andradas, 1464, mas quer ter o próprio negócio. “Tenho o curso de cabelereira e quero estar mais próxima do meu filho e meu marido”, planeja.

Andréia fica em uma portaria, que, assim como aquela do Edifício Santa Cruz, onde Beto e Paulo Ricardo trabalham, fica mais distante da rua. Porém, trabalhando, ela já conheceu toda a cidade de Porto Alegre. Antes da portaria, foi office girl por sete anos. “Aqui é diferente, mas ambos os serviços foram muito bons na minha vida, aprendi muito”, reconhece.

O trabalho no prédio de 16 andares é tranquilo, porém constante, com pessoas chegando a toda hora - algumas sem nem saberem se o que estão procurando está ali. A porteira também acaba ficando amiga da-queles com quem tem mais tempo de convi-vência, mas não chega a precisar dos colegas à volta: “Quando a coisa complica, eu chamo o zelador”, confessa. “É que eu fico mais pra dentro, a gente acaba ficando cada um na sua.”

Apesar da cordialidade, os frequenta-dores do Langer ás vezes não entendem o fato de Andréia estar ocupando a posição.

“Alguns não me respeitam, só por eu ser mu-lher. Até achei que isso não fosse acontecer, mas antigamente devia ser pior”, pondera.

No final das contas, todos concordam que essa proximidade com a rua, obser-vando o movimento e atendendo aqueles que chegam, é tranquila, mesmo com os eventuais percalços. “A gente tem até agên-cias de emprego aqui, mas essa maneira de tratar o visitante sempre acaba deixando nosso trabalho mais fácil. É um exercício de ouvir o que ele quer, mesmo quando xinga”, afirma Paulo Ricardo, do Santa Cruz. “Pra quem gosta do público, é muito bom de trabalhar. Eu adoro isso aqui! Mesmo sendo aposentado, continuo na ativa”, brinca Adão, do SulAmérica. “A convivência com os proprietários e com quem vem da rua é muito tranquila. É um bom trabalho”, reflete Keronlai, do Sloper. “Sabe, quando eu vim pra cá, achava que seria mais corrido. Tem bastante gente, mas é mais calmo do que eu imaginava”, assume Andréia, do Langer.

impressões derepórter

O porteiro configura uma daquelas ocupações que se sente invisível no espectro

social: no Ed. Santa Cruz, Paulo Ricardo ficou honrado em nos receber, e disse que nunca tinha visto jornalistas quererem falar sobre a profissão. Mesmo não sendo os porteiros personagens corriqueiros na mídia, choquei-me especialmente por não ter pensado nisso antes de vir até a Andradas. Entretanto, no desenrolar da pauta, percebi que, para quem passa costumeiramente em halls de entrada e portarias, o trabalho deles é essencial: quantos compromissos salvos da impontualidade, consultas feitas às pressas e até assaltos evitados somente por estes caras, e apenas em Porto Alegre? Fiquei muito feliz de conhecer todos eles, em suas maneiras simples e tão diversas.”

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n A feira do Parque Marinha do Brasil, na Capital, é uma

das poucas que fica aberta até às 20h

Vai laranja aí, freguesa?

Conheça um pouco sobre o dia a dia de quem oferece alimentos e flores nas bancas a céu aberto

Por Fabiana Eleonora e Sabrina Strack Fotos Diovana Dorneles e Dominique Nunes

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Sexta-feira, 19h, Porto Alegre, ave-nida Borges de Medeiros, próxi-mo ao estádio Beira Rio. Os car-ros passam bem perto enquanto

vozes exclamam: “Olha a salsinha, três molhos por R$ 2! Vai a batata, fregue-sa? Dois quilos por R$ 5...”. A feira do parque Marinha do Brasil foi deslocada da avenida Padre Cacique para o local há cinco meses em função das obras no estádio, contam Nilberto Pipino e Michael Crochemore da Silva, os vendedores da banca de Doces Crochemore.

Para Nilberto e Michael, que vêm de Pelotas todas as sextas pela ma-nhã, o tempo passa voando enquanto se deslocam até a Capital: “A viagem para Porto Alegre dura quatro horas e meia. A gente está lá e, quando eu vejo, chegamos aqui”, afirma Nilberto, há cinco anos na feira. Os dois gostam de trabalhar com o público e têm orgulho em demonstrar os produtos que trazem. Na banca Crochemore eles oferecem de frutas cristalizadas a rapaduras de leite, de doces cremosos de frutas a ambrosias dos tipos clara e escura. Tudo com a qualidade dos doces de Pelotas.

As diferenças entre os públicos diur-no e noturno são conhecidas por eles, que trabalham também pela manhã aos sábados no largo Zumbi dos Palmares e aos domingos na avenida Baltazar de Oliveira Garcia. Michael, há dois anos no ramo, observa que o público da noite está sempre mais apressado do que o do

dia. As pessoas chegam, compram rápido e vão logo embora. Com a troca do lo-cal da feira, houve alteração do público e diminuição do movimento. Nilberto lamenta que, de um prédio comercial da rua Miguel Couto, vinham diversos clientes todas as semanas adquirir do-ces. Após a mudança do ponto, eles não apareceram mais.

Famílias de agricultores no inte-rior do Estado enviam, através de seus filhos, a produção para comercializar na Capital. Suzi Justo, de 29 anos, e seu esposo, Dirlei, 33, saem todas as sextas pela manhã do município de Dom Pedro de Alcântara, região Litoral, onde a família produz bananas. Suzi, que trabalha na feira desde que casou, há dez anos, aprecia o trabalho. “Às vezes eu vejo que a pessoa vem mal humorada. Então eu cumprimento, dou um sorriso, chamo para ver as fru-tas, e a pessoa muda, já fica contente. Trabalhar naquilo que a gente gosta é muito bom”, conclui.

Quando cai a noite, existe a preferên-cia de clientes que moram nos bairros Restinga, Belém Novo, Belém Velho e Hípica, próximos à feira existente na avenida Juca Batista. Carlos Eduardo Rodrigues, responsável pela banca de frutas e legumes, conta que os fregueses vão à feira da Borges ao retornar de seus trabalhos, garantem os ingredientes para o jantar e ficam com a manhã de sábado livre.

Nas segundas e quintas à tarde, Carlos e o pai, Tomé Rodrigues, compram alimentos na Centrais de Abastecimento do Rio Grande do Sul S.A. (Ceasa). Também vão às propriedades de famí-lias de produtores rurais de Porto Alegre, nos bairros Vila Nova e Belém Velho, e a municípios como Nova Santa Rita e Montenegro, de onde trazem as verdu-ras, legumes e frutas. “A gente tem uma garagem em que guardamos as coisas. Faz 50 anos que meu pai trabalha em feira. Desde pequeno eu estou enga-jado nisso”, acentua Carlos. Ele vende em feiras de Porto Alegre de terças a domingos e explica que, pelo sistema de feiras-modelo da Capital, em cada feira as bancas se alternam na venda dos diversos alimentos.

Quase todas as sextas-feiras, o ser-vidor público José Itarajara Ferreira faz suas compras na feira da Borges. Morador do bairro Humaitá, ele apro-veita a proximidade após a saída do trabalho, na Secretaria Municipal da Juventude, bairro Cidade Baixa. “Venho atrás do que só se encontra na feira, da qualidade e da quantidade”, avisa. Assim como ele, Inglia Elesbão, advo-gada, costuma ir à feira fazer todo o reabastecimento de legumes, verduras e frutas. Ela mora no bairro Tristeza, e o local é caminho para sua casa na volta do trabalho.

Quem entrega as sacolas a Inglia é Jonathã Cândido, 17 anos, que trabalha

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há dez meses na feira. O garoto mora em Viamão e de lá conhecia Paulo, o dono da banca, que o chamou para trabalhar. Eles também estão na feira nas quartas até as 20h no bairro Leopoldina, e no sábado pela manhã próximo ao Hospital Conceição. Os legumes que oferecem são trazidos da Ceasa todas as quartas e sex-tas: “Hoje tudo está fresquinho”, salienta o jovem, satisfeito com o trabalho. “Aqui a gente interage, ri, brinca. Eu gosto de ficar assim. Aqui todo o mundo é amigo, todo o mundo se dá bem”, declara.

A feira da ColôniaJaponesa

Para a cidade de Ivoti, o que traz visi-tantes de cidades da Região Metropolitana de Porto Alegre é a Feira da Colônia Japonesa, que acontece todo último domingo de cada mês. A feira é organi-zada pela Cooperativa de Produtores e Agroindústrias de Ivoti e pela Associação Cultural e Esportiva Nipo-brasileira, com o apoio da Prefeitura. É nesse dia, todos os meses, que são reunidos no mesmo lo-cal produtos da cultura alemã e japonesa.

Mas o que realmente encanta na feira são as histórias das famílias nipônicas que migraram para o Brasil, assim como a origem da Colônia Japonesa em Ivoti, que data de 1966. Um total de 26 famílias japonesas, que naquele ano se encon-travam todas já em Ivoti, se uniram e compraram um lote grande de terra. Esse

terreno foi então dividido em 27 peda-ços, um para cada família e outro ficou para a construção da sede da Associação. Cerca de dois anos depois, mais gente foi chegando e se instalando por perto. Hoje a Colônia de Ivoti é a maior do Estado, com 45 famílias.

A estrutura do local, a sede da Associação, onde acontece a Feira, é man-tida pelos associados. A ideia é melhorar o espaço para que a cada mês, quando o visitante chega, note alguma melhoria, algo diferente. Para expor na Feira, é preciso passar pela inspeção da comissão da cooperativa, que avalia os produtos que serão vendidos e busca manter a fidelidade ao cliente, ou seja, ter sempre a mesma variedade de itens sendo ofertados nas bancas, para não frustrar o visitante. A excessão são os produtos que possuem épocas de safra, como as uvas e o xitaque (uma espécie de cogumelo).

Yukio Hironaka tem 64 anos e é presença confirmada em toda edição da Feira. “Queria ter 50, mas fazer o que né? Infelizmente tem que aceitar a idade que a gente tem”, brinca ele abrindo uma conversa bem descontraída sobre a his-tória da própria família, que se confunde com a da Colônia. Ele veio para Ivoti em 1971. Antes morava em São Leopoldo, na Feitoria. “Esses dias passei por lá e não conheci mais o lugar, de tanto que mudou. Eu tenho saudade daquele tem-po, parecia colônia. Mas agora é muita gente”, conta. Ele veio em 1958 do Japão

junto com os pais. Época em que o go-verno japonês financiava a viagem dos imigrantes, porque o Japão estava em fase de construção depois da Segunda Guerra Mundial.

A mudança para Ivoti veio por causa das melhores condições de se estabele-cer. “Viemos para cá porque aqui tinha chance de adquirir terra. Porque antes nós vivíamos em terras arrendadas”, diz Hironaka. Em 1971, muitas famílias japonesas já haviam se estabelecido na cidade, era um tempo de expansão para a Colônia, devido a produção e exportação das tradicionais uvas do país. A família de Yukio também começou a plantar uva, cultura que durou 20 anos, desde 1975. Hoje ele planta flores e vende na floricultura da esposa.

A presença dele na feira é justificada, principalmente, por poder rever muita gente e conversar. “Eu venho pra reen-contrar aqueles velhos tempos, o pesso-al, relembrar dos tempos bons com os amigos, conversar e também aproveitar e comprar. O que mais compro é o sushi, porque a gente tem desde pequeno a tra-dição de comer sushi, a gente sente falta, aí eu venho aqui”, finaliza Hironaka. Rebeca Ishigaami Bohn, de 32 anos, cuja família foi uma das 26 que chegaram em Ivoti em 1966, é quem cuida da banca de flores da feira. Ela recebe ajuda do marido, Charles Bohn, de origem alemã. Assim como para Yukio, para Rebeca, a presença na feira é um prazer. “Aqui

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todos se conhecem, desde sempre. Eu cresci, estudei aqui, tinha aula de japo-nês. Conheço todo o pessoal”, conta ela.

Rebeca nasceu e morou na colô-nia, com a mãe, até se casar. Quando se mudou para o centro de Ivoti. Mas, antes de casar, ela morou cinco anos no Japão. “Fui sozinha. Para trabalhar com eletrônicos, saí do Brasil com emprego na Sony. Decidi voltar porque estava cansada. Minha ideia era voltar para lá, mas acabei casando”, relembra. A

família continua dividida entre Brasil e Japão. Muitos voltaram para o país e ainda estão por lá. O contato é feito pela Internet e a vontade de voltar ainda per-manece. “É outra vida”, revela Rebeca.

A vida dos feirantes e de seus fregue-ses se mescla no espaço urbano durante a feira nas diferentes cidades. No dia de-terminado, o colorido original e variado das bancas, repletas de alimentos e de flores, toma conta das ruas, e constitui uma demonstração de cultura.

Dois vídeos: um sobre a rotina dos agricultores da feira da colônia japonesa de Ivoti e outro sobre o acesso ao local da feira do Parque Marinha do Brasil durante as obras da Copa do Mundo.

n Nilberto e Jonathã vibram com a chegada de cada freguês na feira do Parque Marinha do Brasil, em Porto Alegre. Yukio compra sushi na feira de Ivoti, onde Rebeca vende flores

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impressões derepórter

Ao escrever esta matéria, ficamos com uma impressão: a de que os trabalhadores das feiras sabem dar valor à vida e ao

que fazem. Parecia ser uma reportagem que renderia conteúdo, mas não tanto. As pessoas com quem falamos nos transmitiram a energia com que chegam para trabalhar. Zelam pelas frutas, legumes, verduras, artesanato, flores e pratos japoneses. E demonstraram ótima disposição em nos contar sobre seu cotidiano nas feiras e em relembrar suas histórias de imigração. Desde o jovem Jonathã, que está iniciando na atividade, ao Carlos Eduardo, que está há décadas no ramo, notamos entusiasmo mesmo às 20h, quando a feira está terminando. Não que o trabalho seja fácil, pois muitas vezes eles madrugam para ir longe buscar seus produtos. Examinam a qualidade das mercadorias, carregam pesadas caixas e organizam tudo. O ambiente das feiras é descontraído, e as pessoas que compram estão satisfeitas pelo acesso a esses alimentos e pelo atendimento que recebem dos feirantes. E pensar que a maior parte de quem conhecemos e nós mesmas estamos acostumadas a ir aos supermercados para adquirir esses itens. Agora, fica a vontade de formar um novo hábito, o de comprar alimentos na feira.”

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Histórias de quem espera

Ruas do interior gaúcho ganham alma através das pessoas que torcem para que seus ônibus cheguem logo. E o sonho de uma vida melhor também

Por Bianca Hennemann Fotos de Augusto Veber e Camila Mayuri

Eles são todos iguais, mas diferentes. São feitos de carne e osso, sorrisos e olhares. Porém, seus sor-risos e olhares não são os mesmos. Assim como seus destinos. Seja pela vida que levam, seja pela

rota que seguem. Suas histórias são unidas por uma única certeza: esperar. Esperar que a rua traga o que lhes faz trocar de lugar, esperar que o trajeto lhes faça parar de pensar, esperar que as idas e vindas lhes tragam esperanças para continuar nessa viagem insana que é a vida. Ao passar pela BR-116, no interior da Serra Gaúcha, é possível encontrar muitas pessoas que, pacientemente, esperam seus ônibus chegar. Seja para trabalhar, visitar alguém ou voltar para casa, simplesmente. E uma coisa é fato, quem espera, mesmo que seja dominado pela pressa da chegada do transporte, sempre tem algo para contar ou que prefere nem lembrar.

Aquele sábado em busca das histórias de quem espera era um dia de aparência comum. Um céu cheio de nuvens consequentes de uma madrugada chuvosa. Aos poucos, o branco daquelas manchas que pareciam algodão foi dando espaço para o alaranjado brilho do Sol, que surgia tímido a cada minuto que passava. Tão tímido quanto o sorriso do agricultor Antônio de Moura, de 69 anos. Ao notar a aproximação de quem queria conhecer a sua história, ele levanta as bochechas levemente exibindo as curvas da sua boca, escondidas por detrás do seu icônico bigode branco, tal como as nuvens que ainda pairavam no céu. Era um homem que esperava. Mas não transparecia se importar com aquilo,

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AUGUSTO VEBER

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muito pelo contrário. Estava conversando com pessoas que lhes pareciam próximas, como se tivesse o tempo todo do mundo. “Só vim pro Centro para comprar um cabo de machado e poder continuar meu trabalho”, diz o simpático senhor, que já começava a ensaiar algumas risadas altas, chamando a atenção de quem estava na rodoviária da pacata Nova Petrópolis, a 90 quilômetros de Porto Alegre.

Antônio estava esperando o ônibus para poder voltar para casa, na pequena localidade de Linha Imperial. E, enquanto esperava, aproveitava para colocar o papo em dia com os amigos que geralmente não são de longa data, pois ele faz amizades na hora. Seu sorriso fácil aproxima muita gente. “Na vinda pra cá, estava chegando na rua, onde fica a parada de ônibus, quando vi o maldito passar. Perdi. Mas como tenho mui-tos amigos, nem deu tempo de esperar: um conhecido passou por mim e me deu uma carona”, conta Antônio. Fazendo pouco caso do aguardo longo para seu ônibus chegar, o agricultor evidencia que o que espera da sua vida são coisas que não têm preço. “Vou sempre à igreja para agradecer e pedir o que mais espero para mim e minha família. Só quero saúde e paz. Às vezes a gente espera coisas que não acontecem. Mas vivo alegre mesmo assim”, diz. Com toda essa simpli-cidade e humildade, Antônio tem um sonho ambicioso. Ele, que começou a tocar gaita há menos de sete meses, já quer gravar um DVD tocando e cantando para entregar de lembrança aos netos – e, por que não, fazer sucesso pelo mundo. “Meu genro já me gra-vou tocando e eu gostei. Quero botar umas 20 músicas no DVD. Todas gaúchas. Vai ficar lindo”, fala, ajeitando seu chapéu preto, enquanto ri alto com a mesma intensidade da vontade que tem de realizar seu pequeno grande sonho.

Esperas e esperançasOutra risada que chama a atenção ao

esperar o ônibus chegar também tem nome. Nome de santa, comum, porém forte e en-cantador: Maria. O Sol já brilhava intensa-mente no céu quando ela esperava, solitária, em uma parada de ônibus à beira da BR-116 em Picada Café. Maria Sirlei Bauermann da Silva, de 43 anos, tomava lentamente o seu refrigerante, sentada no cantinho do abrigo,

na esperança de que, assim, o tempo pas-sasse mais rápido. Ela esperava para poder ganhar a vida. A morena de olhar cansado, de quem já muito batalhou na vida, aguardava a chegada do ônibus que a levaria para seu trabalho, de auxiliar de produção em uma cooperativa de Nova Petrópolis. Ela mora em Estância Velha e espera pelo ônibus todos os dias, porém perto de sua casa, não ali onde estava. “Meu marido e eu viemos a Picada Café para fazer umas compras. Há pouco ele me deixou aqui na parada”, conta Maria, faceira por poder ir trabalhar. Ela diz, com um sorriso sincero, que a espera é válida, pois gosta muito do seu serviço e das pessoas que a rodeiam.

Mas a vida de Maria não conta somente com esta espera diária. Muitas esperas re-compensadoras – e outras nem tanto – já fizeram parte da sua rotina. A melhor dessas já aconteceu quatro vezes durante sua exis-tência, cada uma com o mesmo tempo de duração: nove meses. O seu olhar se traduz numa ternura imensurável quando começa a falar dos seus filhos. “São nove meses de muita ansiedade para ver o rostinho dele, algo que foi gerado dentro de ti. Não tem preço, é uma emoção muito grande”, fala, com um sorriso que irradia e ilumina seu rosto inteiro. Apesar de toda a sua alegria ao falar dos que vieram do seu ventre, o pri-meiro nascimento não lhe traz lembranças muito felizes. Sua primeira filha nasceu com apenas uma parte do coração. Infelizmente não resistiu muitos dias e acabou morrendo. “Perdemos ônibus em nossas vidas e ficamos tristes. Mas essa perda foi de uma tristeza infinita”, diz Maria, seguida de um silêncio ensurdecedor de quem não esperava ter que relembrar aquele fato dolorido naquele dia. Logo depois, ela emenda, com um tom de voz cheio de otimismo: “A segunda filha veio seis anos depois. Deu uns sustos no decorrer da sua vida, mas já passou, e hoje somos muito felizes.” Maria conta que, ao completar seis anos, sua filha foi diagnosticada com leu-cemia. Teve que passar por um tratamento árduo, com injeções doloridas. “Hoje tenho certeza de que ela é uma pessoa mais forte por ter passado por isso. Mal vejo a hora de ela chegar aqui com o ônibus e eu poder dar um abraço nela. Ela trabalha comigo lá na cooperativa. Deve estar se arrumando agora”, relata. Depois da filha mais velha, Maria teve mais dois: uma menina e um menino. Ela

n Nelson, Marli (nesta página), Maria e Antônio compartilharam suas histórias, traduzidas por palavras, sorrisos e olhares

FOTO

S CAMILA M

AYURI

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é prova viva de que perdas e ganhos fazem parte da viagem da vida, e que é preciso saber interpretá-los para seguir adiante.

Esperas e solidãoA história do misto de expectativas e

rompimentos de Maria se parece com a de outra mulher que esperava à beira da rua em Picada Café. O seu olhar era desconfiado e resumia um misto de distância e tristeza, escondido por detrás de seus pequenos ócu-los. Marli Herbert, aposentada de 56 anos, aguardava na parada junto com o seu filho. O destino era a casa da sua mãe, que mora em Nova Petrópolis. “Sempre vou de ônibus quando quero passear. Mas esperar é uma agonia sem fim. Muitas vezes o ônibus de-mora muito para chegar”, relata. Marli não espera muito da sua vida. Diz que se viver bem com o “seu guri”, já está bom. “Sou uma pessoa que sempre esteve acostumada a esperar. Por pessoas, por visitas que não chegam, por dinheiro que não vem. Uma hora a gente se conforma.” A aposentada conta que já perdeu muitos ônibus na sua vida. Inclusive para ir ao serviço. Mas a maior perda que já sofreu aconteceu há sete anos. “Meu marido faleceu. Meu filho era muito pequeno ainda. Foi uma agonia, mas agora estamos bem.” Marli não queria entrar nos pormenores da sua história. Expunha, nas suas palavras curtas e objetivas, a vontade que tinha de que o ônibus chegasse logo, com um angustiante ar de conformada com o que o destino já tinha preparado para ela. “Saber viver é assim mesmo. Esperamos coisas e perdemos outras”, conclui, com um sorriso sem jeito.

Tão sem jeito quanto a reação do tam-bém aposentado Nelson Mior, de 70 anos, ao receber atenção. O senhor, que segurava com convicção a sua mala de viagem, nitidamente não estava acostumado com companhia na espera do seu meio de transporte para voltar para casa. Ele recém chegara da sua chácara, em Presidente Lucena, e aguardava mais um ônibus que o levaria ao interior do municí-pio de Dois Irmãos. “Vou sempre durante a semana para lá, um lugar tranquilo que transmite paz. Faço minhas plantações e assim me distraio. Há sete anos vivo assim”, conta ele, depois de relatar que, para chegar da chácara até a parada de ônibus, precisa caminhar por cerca de uma hora na rua.

Nelson é sozinho. Sempre foi, conforme seu olhar solitário traduz. Ele vai se levantando, ajeitando as galochas de borracha, ao mesmo tempo em que corre em direção ao ônibus quando frisa que não espera mais realizar grandes coisas durante a sua existência. “Quero só é continuar vivendo numa boa.”

Toda a história de quem espera nas ruas transcende um misto de aflição com espe-rança de vida melhor. Pessoas simples, de olhares e sorrisos sinceros, que não sabem se têm um sonho, se estão satisfeitas, se que-rem que a vida seja diferente. O pessimismo aliado ao otimismo, a felicidade aliada à tristeza, a vontade de fazer acontecer aliada ao conformismo de estar tudo do jeito que está. Os indivíduos que esperam são uma antítese constante. Justamente por isso são tão misteriosamente encantadores.

impressões derepórter

Mais do que uma profissão, o jornalismo é a realização de uma obra. Para construí-

la, não precisamos de cimento, tijolos, argamassa. Precisamos de histórias. Mais do que isso, de ter a sensibilidade de saber ouvi-las e contá-las. A ideia de contar as histórias de quem espera nas ruas surgiu em um dos retornos da Unisinos para minha casa. No meio do caminho, reparei nas pessoas que aguardavam por seus ônibus à beira da BR-116 de Novo Hamburgo até Nova Petrópolis. Meu pensamento voou e comecei a me questionar sobre quem seriam elas. O que sentem e esperam da vida? O que pensam enquanto esperam? Fiquei com um pouco de medo do que encontraria. Medo de ouvir histórias banais, comuns. Mas lembrei que repórter precisa ter coragem. Realmente, escutei histórias comuns, porém em nenhum momento elas perderam seu encanto. Muito pelo contrário. Vi brilho nos olhares e nos sorrisos, vi dúvidas, sonhos. Mais do que ver, aprendi que na simplicidade estão as maiores lições. Aprendi que a rua fala e tem alma através das pessoas. Aprendi a me surpreender com detalhes que só a simplicidade tem.”

Um mapa que mostra os locais onde os personagens se encontravam no momento da reportagem. Também se surpreenda com detalhes de fotografias das quatro histórias.

AUGU

STO VEBER

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GRAV

ATAÍ

FERN

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RBA

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Cada vez mais comuns, os exem-plos de descaso com o ambiente demonstram muito da irrespon-sabilidade humana. O lixo jogado

indevidamente em locais públicos trans-forma para pior o sentido original dado às ruas e aos terrenos, que não servem mais apenas como locais de transporte e moradia, mas também como depósito para tudo que é descartado por pessoas sem conscientização. Um terreno localizado em Gravataí, cidade que pertence à Região Metropolitana de Porto Alegre, não só passa por essa situação, como também conta com um agravante: está localizado entre duas escolas. O lixo jogado no local é um problema recorrente e é motivo de insatisfação já há algum tempo para os moradores. Um ponto preocupante é que, mesmo com a limpeza do terreno sendo feita periodicamente pelo serviço público do município, o local, semana após semana, aparece novamente poluído. A partir dessa realidade, fica evidente que o maior problema parece não ser a sujeira e os prejuízos trazidos com o seu acúmulo, mas a confirmação da falta de conscientização do ser humano.

Alunos, professores, moradores, pe-destres, todos que convivem diariamente com o lixo a céu aberto deixam claro o seu descontentamento. E justamente a partir dessa atitude é que se buscam alternativas e que surgem maneiras de combater o problema. Rodrigo Fagundes, professor de geografia da Escola Estadual Morada do Vale, resolveu explorar o assunto, que praticamente bate à porta do local de en-

sino, para incentivar a conscientização de seus alunos.

A dinâmica se baseou em um passeio com uma das turmas do terceiro ano do Ensino Médio pela quadra onde se localiza a escola, passando pela frente do terreno nesse trajeto. Com um detalhe: os estu-dantes dessa classe - que contava com uma aluna com deficiência visual - fizeram a atividade com os olhos vendados, para que eles pudessem sentir na pele o que seria dar uma volta sem poder enxergar, ou tentar se comunicar com alguém que está prestes a pisar nos entulhos espalhados na calçada.

O professor confessa que a passagem pelo terreno foi proposital, justamente pelos “obstáculos” que ele apresenta. O objetivo foi fazer com que, a partir disso tudo, os alunos nutrissem um sentimento de conscientização. “Era para notar que não precisamos ir longe para perceber descaso, pois a falta de preocupação do poder público encontra-se bem perto de nós. Queríamos desenvolver este olhar, esta preocupação nos jovens de hoje. Perceber que tanto para videntes, quanto para cegos, é difícil dar uma caminhada na quadra da escola, onde a população tem de andar pela rua, já que parte da calçada é intransitável”, diz Rodrigo.

A situação enfrentada trouxe reflexos imediatos. O professor afirma que alguns alunos terminaram a atividade revoltados com o poder público ao se darem conta da realidade que os cerca. Infelizmente, mes-mo que a escola já tenha tentado procurar saídas para resolver o problema, a ajuda necessária não parece estar à disposição.

Esperança contra o lixo

Atividades que despertam a consciência das pessoas podem ser a melhor maneira

de evitar a poluição de locais públicosPor Douglas Ripel. Fotos de Fernanda Borba e Giovana Peinado

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“Há uns dois ou três anos a escola foi ver com a Prefeitura se não podiam parar de usar aquela área como local de entulhos para os caminhões o buscarem e os levarem para o devido local. No entanto, eles disse-ram que o terreno é deles (da Prefeitura) e eles fazem o que querem”, conta Rodrigo.

Esse problema torna-se mais preocu-pante se levadas em conta as alternativas oferecidas para que esse lixo não fosse descartado incorretamente. A cidade de Gravataí possui quatro ecopontos, para onde o lixo pode ser levado e separado corretamente. Uma unidade está localizada exatamente no bairro do terreno, o que parece não fazer diferença para quem polui o local. “Nós sabemos quem são muitas das pessoas que jogam lixo lá. Ao invés de usarem as carroças (disponibilizadas pela prefeitura da cidade) para descartar nos ecopontos, eles jogam tudo no terreno”. A afirmação é do representante comer-cial Sergio Xavier de Borba, que mora em frente à escola.

O descarte indevido é uma realidade recorrente para os moradores da rua Anita Garibaldi, para onde o local faz frente. Segundo Sergio, a questão do lixo inco-moda há mais de dez anos. A insatisfação cresce com o tempo, pois, mesmo com limpezas sendo realizadas periodicamente, os caminhões que recolhem os escombros jogados nada podem fazer para mudar a cabeça de quem insiste em sujar inconse-quentemente o local. “Nós temos quatro coletas semanais de lixo aqui no bairro, e, mesmo assim, toda a semana temos mais

coisas jogadas no terreno: pneus, restos de obras e até animais mortos. “Eu já fotografei e mandei para a Prefeitura pedindo para que o terreno fosse cercado, porém, eles me dizem que a área é pública e por isso não pode ser fechada.”

A reclamação de Sergio é justa, mas a Prefeitura realmente enfrenta essa restri-ção. De acordo com a Secretaria de Serviços Urbanos de Gravataí, existe uma lei que proíbe o cercamento de qualquer área pública. A única alternativa usada para tentar evitar o acúmulo de lixo é a coloca-ção de placas que sinalizam a proibição. Entretanto, nada impediria a utilização do local para a construção de uma praça, uma creche ou em outro espaço que poderia ser usado pela população. Apesar disso, não há neste momento nenhum projeto pensado para ocupar de alguma maneira o terreno.

O serviço de limpeza da cidade de-monstra preocupação com o caso ao deixar claro o porquê é muito difícil lidar com essa situação. Segundo informações do departamento de parques e jardins da se-cretaria, mesmo com a limpeza do terreno sendo feita uma vez por mês, se as pessoas continuarem sujando o local com tamanha frequência, simplesmente não há como resolver o problema.

O grande período pelo qual as pessoas já convivem com esse problema faz com que o professor Rodrigo, também mora-dor daquele bairro, relembre dos tempos em que era possível desfrutar daquela área. “Antes era um espaço sem uso, não causava preocupações a ninguém. Sou

morador do bairro, me lembro que nos fim dos anos 1990 , quando eu estudava na Escola João Paulo II (instituição que fica no outro lado do terreno), nós íamos até uma pequena lagoa que ali existia para vermos os peixinhos e os girinos. Era um local bem limpo e tranquilo.”

Sergio aponta para uma problemática maior: a cultura. Para ele, a falta de cons-cientização, a preguiça e os maus exemplos são os agravantes para uma população acostumada a deixar as coisas ruins como estão, sem ter a iniciativa de buscar algum meio de melhorar a realidade. “Isso mostra o problema cultural com o qual convivemos. A pessoa vê um local sujo e, mesmo não tendo o costume de jogar lixo no chão, o faz, porque sabe que se ela não fizer, a próxima fará. Não podemos fazer algo só porque alguém fez. Temos que seguir aquilo que a nossa consciência diz estar certo”, afirma o morador.

Galeria de imagens do lixo e da atividade da escola, além de infográfico com dados sobre acúmulo e descarte de lixo no Brasil.

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FERNANDA BORBA

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O começo do trabalho de apuração da pauta foi complicado, pois não

estava conseguindo encontrar um personagem ou uma situação que se encaixassem com a proposta do tema “rua” junto aos itens lixo e terreno baldio. A partir de uma indicação, foi possível identificar um bom caso para a reportagem, pois se tratava de um local que realmente apresentava um problema crônico em relação a sua preservação. Ao mesmo tempo, foi muito interessante saber que existem pessoas preocupadas com a situação dos locais públicos e os cuidados que são necessários a esses ambientes. Infelizmente, nem sempre é possível fazer com que os devidos responsáveis se deem conta da necessidade da conscientização. É claro que esse é apenas um exemplo isolado dessa realidade. Porém, acredito que mesmo nos menores casos que envolvem esse tema é possível aprender uma lição sobre a importância da consciência pela preservação do ambiente. Talvez falte um pouco de destaque para esse tipo de matéria, que, se fosse mais explorada, poderia contribuir mais ativamente para o assunto.”

n Entre duas escolas de

Gravataí, um terreno que virou

depósito de lixo foi objeto de estudo

dos estudantes

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A memória na geografia da cidade

No ano em que o golpe civil-militar completou 50 anos, um mapa com demarcações de ruas e lugares

em Porto Alegre retoma a história da cidadePor Paula Silveira. Fotos de Caroline Santos

“Restaurar a legalidade, revigorar a democra-cia, restabelecer a paz e promover o progresso

e a justiça social.” Com essas palavras, tomava posse, em 15 de abril de 1964, o primeiro presidente do Regime Militar no Brasil, Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco. Naquele ano, no dia 31 de março, um golpe civil-militar depôs o então presidente João Goulart, o Jango, colocando em seu lugar uma junta mi-litar, logo sucedida por Castelo Branco.

A intervenção militar, que teve o apoio das classes médias, dos setores conservadores da elite, e até mesmo de empresas de comunicação, instaurou no país um período de exceção, arbi-trariedade, desrespeito aos poderes es-tabelecidos, aos direitos dos cidadãos, à integridade física e à liberdade de ex-pressão, foram os conhecidos “anos de chumbo”. Em 2014, o golpe completa 50 anos e diversas iniciativas estão sendo desenvolvidas a fim de resgatar a memó-ria e evidenciar fatos desse período, que durou 21 longos anos, ainda obscuros para a maioria da sociedade brasileira.

Na Capital, o vereador Alberto Kopittke lançou o Mapa da Ditadura em Porto Alegre, projeto que traz uma relação de todos os locais que tiveram representatividade durante o Regime Militar, bem como símbolos – estátuas, nomes de ruas – que fazem alusão a personagens do Governo Militar. O par-lamentar explica que a motivação para a implementação do mapeamento partiu

do conceito de justiça de transição, que tem por propósito a reparação das víti-mas atingidas naquele período, a busca pela verdade e construção da memória, a efetivação da justiça e a reforma de instituições do Estado.

“Tem ocorrido várias iniciativas no Brasil de resgate da memória, de en-frentamento dos símbolos do período autoritário, por exemplo, a discussão sobre uma estátua, como nós temos aqui no Parcão, do Castelo Branco: ela é um símbolo histórico que não deve ser tocado ou é a representação de um uma herança autoritária na sociedade democrática?”, pergunta Kopittke, se referindo a um dos principais parques da cidade.

O projeto cartográfico apresenta qua-tro categorias, com pontos demarcados por cores diferentes: Locais de Tortura, em vermelho; Símbolos do Golpe, em amarelo; Locais de Resistência, em azul; e Memória da Resistência, em verde.

Na categoria “Locais de Tortura” são exibidos 13 lugares que serviram para torturar presos políticos, entre eles está a Ilha do Presídio ou Ilha das Pedras Brancas. O local serviu como prisão para presos políticos de 1964 a 1973. Entre eles, estiveram Carlos Araújo, ex-marido da presidente Dilma Rousseff. O caso mais conhecido envolvendo o local foi a morte do sargento do exército Manoel Raymundo Soares. Em 1966, o corpo do ex-militar, que cumpria pena na ilha, foi encontrado boiando no Guaíba com sinais de tortura. O episódio é conhecido como Caso das Mãos Amarradas, devido

à forma como o corpo foi encontrado. Em 2011, foi inaugurado um monumento no Parque Marinha do Brasil em homena-gem ao sargento. A obra faz parte de uma série de monumentos produzidos pelo projeto Direito à Memória e à Verdade – A Ditadura Militar no Brasil, que desde 2008 busca atuar na preservação da memória a partir de obras em alusão a personagens importantes da resistência ao governo militar.

O mapa apresenta também o pré-dio onde hoje funciona o Palácio da Polícia na Capital, que abrigava o antigo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), principal órgão de repressão do governo. O Dopinha, primeiro centro de repressão clandestino do país, onde opositores do regime eram investiga-dos, torturados e assassinados, é outro ponto de destaque do mapa. Também consta o Departamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), que servia principalmente para espionagem, com sede na rua Luiz Afonso, onde hoje é a 8ª circunscrição de Serviço Militar. O Quartel da Polícia do Exército, local onde funcionava a cela chamada de Boi Preto, um cubículo sem nenhuma iluminação ou estrutura para abrigar pessoas, símbolo

n Na Justiça Militar, presos políticos eram

condenados e denúncias de tortura eram

arquivadas

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do terror da época entre outros, também compõe a cartografia.

Símbolos do golpe O projeto de mapear a cidade e apre-

sentar os principais pontos que auxilia-ram o governo durante o Regime Militar traz à tona a memória da cidade. É a história sendo repassada para as novas gerações que tiveram pouco ou nenhum contato com esse período. Este é um dos principais objetivos da iniciativa, segundo o vereador: propor uma refle-xão aos jovens sobre os acontecimentos que circundavam as ruas, os locais em que eles vivem e que carrega uma carga histórica praticamente desconhecida. “A ideia é de desnaturalizar ‘o que é a

tal da ditadura? ’, mostrar que é algo concreto que funcionou na geografia da cidade, que implantou seus símbolos, em nomes de ruas, nomes de escolas, estátu-as, avenidas. São diversas demarcações simbólicas que fazem com que ela (a ditadura) seja muito presente. As novas gerações absorvem isso sem nenhuma leitura crítica e esse material vem ajudar nessa reflexão”, explica.

Entre os símbolos que Kopittke fala, está a avenida Castelo Branco, que dá acesso à entrada de Porto Alegre. Os outros dois símbolos expostos no mapa são o Colégio Estadual Presidente Artur da Costa e Silva e a Escola Estadual de 1° e 2° Grau Presidente Costa e Silva, as duas batizadas em homenagem ao segundo presidente da ditadura, cujo go-

verno foi marcado pela grande repressão e crimes contra a humanidade por parte do Estado. “Nestes dois últimos casos o pensamento que fica é: será que os jovens que estudam nessas instituições, sabem quem foi Costa e Silva e de que forma ele influenciou a história do Brasil?”, indaga o vereador.

Cartografiada Resistência

O mapa não é composto apenas de lugares que serviram de alicerce para o governo autoritário. Porto Alegre ficou conhecida como uma capital de forte efervescência de movimentos clandes-tinos, por meio dos quais os opositores do Regime demonstraram, através de

n O Largo da Legalidade lembra a campanha liderada por Leonel Brizola, expoente do movimento. Na esquina da rua Gen. Zenóbio da Costa com a avenida João Pessoa, localizava-se o Quartel da Polícia do Exército, que servia de prisão política

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Primeira Impressão n Julho de 2014 n 109

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No momento em que o tema da revista foi escolhido a dúvida de que pauta escolher

pairou sobre a minha cabeça. Não poderia e não queria cair no lugar comum. Em uma conversa com o meu chefe, Marcos Rolim, coordenador da Assessoria de Comunicação do Tribunal de Contas, veio a ideia do Mapa da Ditadura, muito oportuno e com profundidade histórica.Entrar em contato com uma história tão viva e tão importante, mas ao mesmo tempo tão dolorosa e que mancha a história do país, aproximou-me de um período do qual me interesso muito, mas que tinha pouco contato. Porém, resgatar a história da cidade em que nasci e cresci me trouxe o sentimento de não estar mais alheia àquilo que os lugares e símbolos espalhados por Porto Alegre representam de fato. Escrever sobre a história do meu país através dos acontecimentos da minha cidade torna-me, de uma maneira concreta, parte dessa história.”

expressões culturais, movimentos es-tudantis, o seu descontentamento. Eles lutaram por um governo democrático que devolvesse os seus direitos tolhidos a partir do golpe.

Os principais locais de resistência trazem na sua história a herança política e cultural da Capital. O Auditório Araújo Vianna, por exemplo, palco de grandes espetáculos, era o local de encontro dos Grêmios Estudantis para organização das manifestações que ocorriam nas ruas de Porto Alegre. Outro lugar de grande expressão na luta pela redemocratização do país foi o Teatro de Arena, onde, entre os anos de 1964 e 1968, abrigou diversas manifestações culturais de resistência e encontros para debates políticos.

Recuperando e dando luz à memó-ria da cidade, encontramos também os pontos de “Memória da Resistência”. O Largo da Legalidade, localizado ao lado do Palácio Piratini, recebeu uma estátua de Leonel Brizola em homena-gem a sua participação na Campanha da Legalidade. Já o Centro de Memória Ico Lisboa homenageia o militante político Luiz Eurico Tejera Lisboa, sequestrado e assassinado em São Paulo em 1972, e sepultado clandestinamente pelos mi-

litares. Seu corpo foi o primeiro a ser encontrado e identificado. Esses locais foram demarcados em homenagem às figuras que lutaram e foram protagonis-tas de momentos marcantes na história da redemocratização do Brasil.

Expor as feridas deixadas por este período, ainda que doloroso, promover a memória e não deixar que a luta de pessoas revolucionárias caia no esque-cimento, são objetivos que legitimam a importância de uma inciativa como o mapa da ditadura. Abrir os arquivos des-sa época traz à tona as marcas indeléveis de nossa história e nos dá parâmetros para que essa época nunca mais se repita.

Galeria de fotos dos locais apontados no mapa e link do mapa.

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Boulevard histórico na esquina central

da Europa

BUDA

PEST

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Conectada por um antigo metrô, a rua Andrássy é a comunhão entre o passado e o presente em Budapeste

Texto e fotos de Glauco Bittencourt

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n Tanto a rua quanto a Praça dos Heróis fazem parte de um

conjunto arquitetônico considerado patrimônio

da humanidade

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Ruas são mais do que exten-sões viárias do círculo urbano. Carregam calos – ou buracos – e, como narradores ocultos,

detém a onisciência objetiva de toda história por ali passada. Em Budapeste, capital da Hungria, isso não é diferen-te. A cidade é cortada ao meio pelo rio Danúbio, e o nome “Budapeste” é a junção dos nomes das antes indepen-dentes Buda e Peste. As ruas da cidade testemunharam invasões, ocupações e revoluções ao longo dos 140 anos de existência. E, entre elas, espremida entre os distritos V, VI e VII, há a avenida Andrássy út (út que em húngaro sig-nifica avenida). Como uma régua, ela carrega um caráter rígido e linear, sem detalhes curvilíneos em seu asfalto re-juvenescido, mas dona de um boulevard preenchido pela imperfeição das curvas dos galhos de árvores que por ela pas-sam. No verão, é verde incandescente. No inverno, branca, de neve.

Andrássy é, assim como Budapeste, dual. Ela é atravessada ao meio por uma via expressa que liga um extremo ao outro da cidade. Mas que divide. Do lado oes-te observa-se uma proliferação de lojas de artigos de luxo, prédios neorrenas-centistas e art noveau renovados e uma quantidade incrível de restaurantes. Do leste é possível voltar no tempo: casarões do século XVIII, o alargamento da via, os mesmos prédios neorrenascentistas e art noveau em nem tão bom estado e a Casa do Terror (QG do regime soviético e nazista durante as respectivas ocupa-ções). Este contraste lembra a relação da Europa ocidental e oriental. Em uma rua. Enquanto o ocidente é próspero e capitalista, o oriente carrega a chaga pós--socialista do tradicionalismo.

A avenida Andrássy é casa da Operaház. O teatro de Ópera local. É fabuloso. Histórico por ter sido palco do famoso pianista e compositor húngaro Liszt Ferenc. “É um estupor viver e correr

ao lado deste prédio todos os dias”, conta Eszter Virág Rab, que, apesar de húngara, mora em Budapeste há apenas um ano. Ela é natural de Pécs, uma cidade univer-sitária do sul húngaro quase encostada nos balcãs. Eszter tem cabelos ruivos, olhos claros e é vizinha da Andrássy. “Já vivi e vi muitas ruas e avenidas em outros países, mas nada comparável ao charme da Andrássy”, sublinha. Percorremos toda a avenida juntos, um dos seus lugares pre-feridos na cidade. Conversou e apontou ao menos uma dezena de cafés, restaurantes, livrarias e pontos históricos para se ver e fotografar. Num desses pequenos bares à beira da calçada larga tomada por estações de bicicleta, me deixou por um Fröccs, drinque típico húngaro que consiste em uma mistura de vinho com água com gás.

A história da avenida Andrássy tam-bém dorme coberta sobre o asfalto e seu boulevard. O segundo metrô mais antigo do mundo percorre cada metro dos dois quilômetros e meio da avenida.

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Primeira Impressão n Julho de 2014 n 113

Inaugurado em 1896, só perde em idade para o de Londres. Foi originalmente contruído com o propósito de transpor-tar parte da população até a praça dos heróis, onde há um parque e uma área de lazer que, durante os meses mais quentes, dá lugar a piqueniques e, no inverno, à patinação em um pequeno lago congelado ao lado. Essa praça de-termina o fim da Andrássy.

Não há músicos, mas há turistas. E como. Asiáticos com teleobjetivas capazes de focar um buraco em Marte transbordam a cada esquina. O caráter húngaro fica por conta das buzinas in-cessantes dos veículos transeuntes, ou pelos terraços lotados no verão. Num deles estabeleci contato com um casal de amigos russos: Max Orlov e Alena Stepkina. Max é turista, Alena mora em Budapeste. Ambos são naturais da Sibéria. Fazia 21 graus e era prima-vera. Andrássy estava verdejante. “21 graus é verão de alta temporada para mim”, dizia Max, com corroboração de um semblante feliz de Alena. O retrato deles ilustra a invasão de turistas que chegam aos montes após as expansões das linhas de voos de baixo custo, ope-rados pela companhia húngara Wizz Air. Andrássy nunca foi tão próxima da Europa ocidental depois do colapso soviético como agora. E ela agradece.

A linha rígida que conduz do ínicio ao fim de sua vida de idas e vindas acaba por um suspiro: Praça dos Heróis. É um monumento-praça, ou uma praça-monu-mento. Formada por estátuas hermetica-mente postas lado a lado em uma forma de meia-lua. É o prêmio que se dá a quem corre ou percorre os dois quilômetros e meio de extensão da avenida Andrássy. A via e a praça, por sinal, fazem parte do conjunto arquitetônico considerado patrimônio da humanidade pela ONU. A avenida leva o nome do principal incenti-vador ao plano de construção da época: o primeiro-ministro Gyula Andrássy. Toda rua tem uma história. Andrássy tem um pouco de todas elas. Conectadas por ga-lhos, metrô, praças e pessoas.

impressões derepórter

Escrever sobre a avenida Andrássy foi fácil. Tenho o prazer de viver nas

cercanias e passar por ela quase que diariamente. Ela sempre me chamou atenção pela diferença de formas, arquitetura e por ser esteticamente muito bem planejada. Ela é única na cidade por todas essas diferenças. Foi prazeroso reservar uma tarde inteira para percorrê-la de ponta a ponta. Andar pelo metrô que a atravessa e ler cada placa de registro histórico que no dia a dia é quase impossível fazer-se notar. Conversei com muitas pessoas em busca de transformar falas em insumos para construir minha narrativa. Mas não decidi utilizar todos. Filtrei os mais interessantes: dois turistas e uma moradora local. O texto fluiu bem, assim como a tarde. Decidi redigir a matéria em um café a céu aberto no fim da tarde. Selecionei fotos, produzi grande parte da reportagem e voltei para casa já na penumbra. A impressão é de que não poderia ter sido melhor.”

Vídeo e galeria de fotos darua Andrássy.

n A rua Andrássy liga um extremo

a outro de Budapeste

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REDAÇÃO: Lucas Pies

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ErrataNa edição 2013-1, “Memórias”, as fotos das páginas 70, 71, 72 e 73

foram erroneamente creditadas para Juliana Freitas. A autoria das imagens

é de Michele Geremia.

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